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DCS – DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Imagens da mulher moderna: um estudo da Revista O Cruzeiro e o consumo feminino (1930/1950) Amanda da Fonseca de Oliveira 1 Everardo Rocha 2 . 1 Aluna de graduação do curso de Comunicação Social da PUC-Rio. 2 Professor Associado do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.

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DCS – DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Imagens da mulher moderna: um estudo da Revista O Cruzeiro e o consumo feminino (1930/1950)

Amanda da Fonseca de Oliveira1 Everardo Rocha2.

1Aluna de graduação do curso de Comunicação Social da PUC-Rio. 2 Professor Associado do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 3 1. A REVISTA O CRUZEIRO, A POLÍTICA E A ECONOMIA (1930/1950)......... 3 2. DISCURSO MODERNIZADOR E LEITORA BRASILEIRA ............................ 5 3. CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DA MULHER......................................................6 3.1. O padrão estético, a moda e os hábitos de consumo de beleza..............................6 3.2. A dona de casa e a mulher moderna: um mesmo comportamento .......................10 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................12 BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................13

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Introdução

O público feminino é, sem dúvida, o mais rentável para os diversos segmentos de produtos de moda e beleza. Desde publicações online a produções cinematográficas, a imagem da mulher é utilizada como meio de propagar não apenas padrões estéticos, mas também de estabelecer formas de comportamento e fomentar hábitos de consumo. Essa imagem, portanto, tal como construída nos grandes veículos de comunicação pode refletir valores e mudanças sociais de uma época. Afinal, a simbologia de imagens e palavras escolhidas pelos meios de comunicação pode ser um bom ponto de partida para um retrato fidedigno do que pensa, fala, vê e deseja uma sociedade.

Interessado em investigar o consumo e o universo feminino em sua relação com a ideia de modernidade no Brasil da primeira metade do século XX, o presente trabalho analisou edições da Revista O Cruzeiro entre os anos 1930 e 1950. Nosso objetivo foi o de observar, através das peças publicitárias, colunas e capas das edições, a relação entre a imagem do feminino e a ideia de modernidade presente tanto no contexto histórico e social da época quanto na própria linha editorial desenvolvida na revista. O Cruzeiro, pertencente ao conglomerado de Assis Chateaubriand foi a principal publicação semanal ilustrada no Brasil entre os anos de 1930 e os de 1970. Neste sentido, vamos descrever as características da mulher moderna retratada pela revista e indícios da utilização de conteúdos sobre beleza e comportamento na construção de um ideário moral e de consumo para as suas leitoras.

1. A Revista O Cruzeiro, a política e a economia (1930/1950) No período entre 1925 e 1930, circulavam revistas nacionais, a maioria de pouca

expressão e tiragem intermitente, como “A Estrada de Rodagem”, “Radio”, “Vida Doméstica” e “Boas Estradas”. Em 10 de Novembro de 1928 é lançada, no Rio de Janeiro, a Revista O Cruzeiro, o principal periódico a trazer inovação para os meios de comunicação. Desde a sua primeira edição, ela caracterizou-se por capas com belas figuras de mulheres e priorizou em suas páginas a beleza e o glamour feminino em detrimento de um conteúdo mais interpretativo sobre a realidade do período. Eram figuras que expressavam representações não apenas do imaginário feminino do período, mas de toda uma época.

Ela fazia parte dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, tendo como diretor Carlos Malheiro Dias, no período de 1928 a 1933, sendo sucedido por Antonio Accioly Netto. Foi conhecida pelo surgimento do fotojornalismo, fortalecido pela parceria com as duplas repórter-fotógrafo, sendo a mais famosa formada por David Nasser e Jean Manzon que, nos anos 1940 e 1950, fizeram reportagens de grande repercussão. Em 1954 alcançou a maior tiragem de sua história, com 720.000 exemplares vendidos na edição que cobriu o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto daquele ano. Com um número médio de 80.000 exemplares por tiragem a partir de então, O Cruzeiro deixou de circular em julho de 1975 após a consagração definitiva da mídia televisivo.

Essa era uma revista diferente das demais de sua época. Em seu primeiro editorial, já declarava estar separada de suas “irmãs mais velhas que nasceram das demolições do Rio Colonial”3, colocando-se na vanguarda da modernidade ao relacionar seu nome a tecnologias modernas: “O Cruzeiro encontrará ao nascer o arranha-céu, a radiotelefonia e o correio aéreo”4. Além disso, se fazia distinta e consistente por ser semanal e ilustrada. Assim, seu

3 O Cruzeiro (10 de novembro de 1928) "editorial". p. 3 4 O Cruzeiro (10 de novembro de 1928) "editorial". p. 3

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leitor não tinha como objeto apenas as textos de reportagens, mas também as imagens a eles acopladas, facilitando a compreensão das matérias publicadas.

Criada no período em que o Brasil se urbanizava a partir da criação de fábricas, que colaboravam os novos ares de modernidade, a Revista O Cruzeiro surgiu, ainda, para atingir todo o território brasileiro e dar uma ideia ampla de nação no período. O contexto político em que a revista se situou por maior tempo foi marcado pelo governo intervencionista de Getúlio Vargas, baseado na aliança de classes para implementar programas de desenvolvimento. As principais características do período varguista, principalmente na década de 1930, foram o populismo e as reformas favoráveis aos trabalhadores, além das que garantiram direitos sociais. Nas escolas, eram oferecidas cartilhas em saudação à Vargas, como o grande homem da nação e o “pai dos pobres.” O objetivo da propaganda governamental era construir a imagem de um Estado nacional em desenvolvimento a partir de um controle da comunicação. Ou seja, um período marcado não só pela elevação da intervenção do Estado na economia, com uma grande centralização do poder governamental, mas também na organização da sociedade. Ele, inclusive, foi o objeto da capa da Revista de 8 de Novembro de 1930, evidenciando sua influência para além das ações políticas.

Figura 1 – O Cruzeiro, edição de 8 de Novembro de 1930

Entretanto, o que se observa é que os anos de 1930 a 1950 são apenas o anunciar de uma época de investidas evidentes do governo para tirar o país do atraso e modernizá-lo, concluídas na segunda metade do século XX. O próprio Vargas desenvolveu uma política voltada para a criação de setores estratégicos envolvendo a energia, o transporte e a siderurgia. Em 1952, ele cria o Banco Nacional de Desenvolvimento, BNDE. No ano seguinte, foi criada a Petrobrás, a principal empresa de petróleo do país. E em 1954 entrou em operação a Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso. Com a morte de Vargas em 1954, é eleito, em 1955, Juscelino Kubitschek, nome principal ligado ao nacionalismo desenvolvimentista, da conhecida política dos “50 anos em 5”. Assim, o período das décadas de 1930 a de 1950, foi, mais do que terreno econômico e político, o despertar do moderno para a sociedade, como preparação para as mudanças efetivas que ocorreriam e se concluiriam nos anos seguintes.

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Foi nesse contexto político e social do país que a revista O Cruzeiro mostrou, a cada semana, uma sociedade que ia se transformando aos poucos e se antecipou em representar uma mulher que contava com as facilidades dos aparelhos eletrodomésticos, que consumia cosméticos e que se vestia segundo a moda europeia e norte-americana, sem deixar de corresponder às expectativas sociais em relação ao seu papel feminino. Assim, O Cruzeiro foi a responsável, em certa medida, por conceber um conceito de modernidade para a mulher.

2. Discurso modernizador e leitora brasileira

Inseridas no processo de modernização do país, as revistas ilustradas começavam a

cruzar fronteiras sociais. As novas tecnologias de impressão simultânea de imagens e textos causaram uma redução no custo dos impressos, barateando o produto final. Ao se tornarem mais atraentes e com preço acessível, as revistas ilustradas promoveram “uma democratização da cultura visual, estimulando o hábito da leitura e o interesse das classes menos favorecidas pela alfabetização.” (SOBRAL, 2007, p. 30). Ao atuar no imaginário coletivo, as revistas ilustradas difundiram alterações no meio urbano, nos hábitos e valores, assim como na vida cultural da população, que modificou ou reforçou códigos sociais. Ou seja, exerceram influência na vida de brasileiras e brasileiros tanto no âmbito público, quanto no privado. Assim foi a Revista O Cruzeiro.

A lógica do mercado industrial da década de 1930 não podia mais restringir consumidores. Era preciso avançar e atrair até mesmo quem estava fora da engrenagem social. A revista optou por uma comunicação mais dirigida ao público feminino5, um consumidor com um grande potencial ainda pouco explorado pela mídia da época e que disseminaria seus desejos de consumo para outras camadas sociais, conseguindo, assim, ampliar o processo. Com sua imaginação estimulada por novidades, através da ilustração e das formas gráficas de apresentação do texto, além da implementação de colunas, fotos e ilustrações, esse público alvo encontraria os assuntos femininos revestidos de um discurso modernizador. O objetivo era conquistar a leitora brasileira e fomentar hábitos de consumo através da ideia do “novo”, da modernidade trazida pelas mudanças econômicas e pela gama de produtos e estilos criados a partir de uma cultura de massa vinda do cinema.

Ao mesmo tempo, segundo Anthony Giddens (1991), o século XX, descrito como o da Guerra, foi o período que forçava “provar a suposição de que a emergência da modernidade levaria à formação de uma ordem social mais feliz e mais segura.”6 Ou seja, a ideia de mudanças - difundida pela Revista O Cruzeiro com o discurso de mulheres modernas que adotam novos hábitos de consumo e de comportamento - também serviria para garantir uma estabilidade, pelo temor das tensões sociais que poderiam acontecer na época. Assim, o discurso modernizador poderia, também, assumir o lugar de um estabilizador social. Isso justificaria o estímulo às formas de vida e de comportamento feminino como estratégia para ganhar mais consumidores no país e garantir o padrão social sem muitas mudanças. Essa estratégia significou espaços que enalteciam o imaginário feminino, sem levar em consideração o que de fato acontecia em todas as camadas sociais do país naquele momento (classes operárias e desigualdades sociais), mas, sim, a formação de concepções que levassem ao consumo e à garantia da manutenção do espaço econômico, político e social.

5 O Cruzeiro não era uma revista essencialmente feminina, mas dedicava mais de 50% das páginas a esse público, em colunas especializadas e publicidade, ou em espaços que mostravam a realidade social das “senhoras” e das “moças.” 6 GIDDENS. Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1991. p. 19.

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Segundo Gilberto Freyre (2009), a “moda” é definida como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo e resultante de determinado gosto, ideia, capricho, ou das influências do meio. É maneira, feição, modo; fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de conquistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social. Nesse sentido, a moda de beleza e comportamento estampada nas capas, colunas e propagandas da Revista O Cruzeiro representavam, também, um reflexo o que era necessário para sustentar uma imagem da mulher.

Tomando como base o estudo de Serpa (2003) que pesquisou reportagens, notícias, fotos, colunas e propagandas da revista O Cruzeiro de 1928 a 1945, foi possível observar que a revista divulgou as brasileiras das camadas mais privilegiadas da sociedade, ao abordar temas como comportamento, moda, política. Descobriu-se que o público-leitor era de várias partes e camadas sociais do país e até do exterior, sendo que o magazine circulava na Europa e em vários países da América Latina. Isso demonstra a variedade do público de leitoras de O Cruzeiro apesar de suas edições evidenciarem mulheres da elite do país, especialmente as integrantes das famílias das classes médias e altas da burguesia, constituída de empresários, comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais, industriais, entre outros (Fausto,1983). O universo atingido pelo discurso modernizador era o de uma minoria da população feminina, uma realidade que se restringia às senhoras e senhoritas de uma restrita camada social, pois eram ou pertencentes do mundo artístico, ou esposas de grandes industriais e políticos. Com isso, entende-se que a transformação vendida pela revista como uma realidade já existente não levava em conta um público sem acesso aos bens de consumo tidos como modernos, como os eletrodomésticos. Entretanto, todas essas mensagens criavam um processo aspiracional nas camadas menos favorecidas.

Vários textos deixam transparecer as reais intenções de mostrar que a sociedade brasileira estava alcançando a modernidade através das transformações das cidades e do surgimento de uma nova forma de vida, agora mais urbanizada, moldando comportamentos. O discurso e a linha editorial da publicação era totalmente voltado para inovações linguísticas e gráficas, o que inclui a consolidação da fotorreportagem. No editorial de sua primeira edição Assis Chateaubriand anunciou a sua linha moderna: seria o futuro nas publicações, baseado em um modelo de fora, tendo como fontes a Paris Match e a Life.

A revista, dessa forma, tentava reproduzir manifestações de novidades vindas de países do exterior e servir como vitrine de consumo dos produtos modernos aos quais todos deveriam almejar, mesmo os pertencentes, em sua maioria, às classes médias. Chateaubriand conseguiu criar, com sua linha editorial baseada na modernidade, a necessidade na leitora brasileira, de acompanhar os passos da mulher moderna, sabendo, principalmente, como se portar e o que consumir. A Revista O Cruzeiro intencionou, portanto, criar aspirações. Era não apenas um catálogo de estilos de vida e comportamento, mas um veículo de comunicação que serviria como um dos primeiros passos para uma transformação social no sentido da modernidade.

3. Construção da imagem da mulher 3.1. O padrão estético, a moda e os hábitos de consumo de beleza

Desde a primeira edição, a revista objetivou mostrar, escrever, anunciar e criar uma

“nova mulher”: uma imagem relacionada às mudanças de um país que se urbanizava oferecendo-lhes água de colônia, blush e pó-de-arroz. Eram imagens femininas de uma

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mulher moderna que ilustravam as revistas, marca desde a primeira edição. As capas eram as vitrines da moda e beleza e devem ser entendidas como evidências simbólicas da época. A primeira edição da revista, datada de 10 de novembro de 1928, já traz, em sua capa, o escopo de uma mulher que se assemelha ao do tipo melindrosa, com estrelas do Cruzeiro do Sul – que inspiraram o nome da revista - que a adornam com diversas cores que dão tonalidade à ilustração. Suas unhas são feitas e sua maquiagem própria de uma estrela.

Figura 2 - O cruzeiro 1ª edição de 10 de Novembro de 1928

O padrão estético era baseado nas influências de beleza de fora do país. O moderno, portanto, estava estritamente ligado às manifestações artísticas e tendências em países que já estavam em um estágio avançado de desenvolvimento político, econômico e social. O magazine tomava como figura feminina a que estava dentro dos padrões moldados pelo cinema americano, ligado à mulheres belas, ricas e inseridas nos altos círculos sociais. Era uma realidade fantasiada a partir de informações vindas em abundância dos estúdios da capital do cinema mundial, que estimulavam as moças e senhoras a se espelharem nas estrelas de Hollywood, que usavam cosméticos e belas roupas, tinham novas ideias e conquistavam a fama e o prestígio.

Foi nas propagandas de produtos que enalteciam a beleza e que reforçavam a ideia de uma nova mulher, agora mais consumista, que a revista vendia o sonho de mudanças. (SERPA, 2006). A cada edição, rostos belos enchiam as páginas em ilustrações e fotos. Mulheres sem identificação, sem legenda. Em algumas seções que mostravam os famosos, as damas da sociedade marcavam presença em eventos sociais, como bailes e salões de festas e em atividades esportivas ou beneficentes, para alcançar espaço em fotos ou textos. As qualidades que um dado período considera belas nas mulheres são meros símbolos do comportamento feminino que esse período considera desejável: o mito da beleza prescreve

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mas o comportamento que a aparência. (WOLF, 1992) Assim, o comportamento das classes sociais mais altas, aliado ao conceito do moderno vindo do ideário hollywoodiano, contribuía para a construção da mulher moderna pra Revista O Cruzeiro.

As notícias de Hollywood estavam presentes em todas as edições, registrando os romances das estrelas e falando de moda ou de esportes. O cinema americano era tido como o maior ditador de modas e as modelos hollywoodianas desfilavam novos cortes e peças de tecidos para serem usadas em festas. Seis modelos aparecem numa das páginas da edição de 6 de dezembro de 1929, sob o título: “O cinema e a moda”, cujo texto diz: “O cinema é hoje o maior ditador de modas. Eis aqui alguns modelos lançados pelas mais galantes estrelas da Metro Goldwyn Mayer.”7. Nas propagandas, não era diferente. Nesse exemplo de 1942, a referência de beleza é a atriz americana Rita Hayworth, em que declara “Uso-o há anos, diariamente, para manter o viço juvenil da minha cútis” e, ainda, “Faça como Rita Hayworth, use Lever [...]”.

Figura 3 – Edição de 1942

Em 27 de janeiro de 1934, a figura de uma mulher jovem diz em um anúncio: “A cutis de um rôsto belo deve ter o assetinado de uma pétala[...] Pó de Arroz Orygem de GALLY.” Esses anúncios são exemplos, dentre muitos, que colocam o consumo do produto de beleza, inspirado nas atrizes de fora, como necessário para se ser a mulher moderna. Dessa forma, imaginário feminino ia sendo criado, atrelado a um novo perfil de mulher, que se preocupava com a estética, como as estrelas do cinema.

O consumo de maquiagens e produtos de higiene pessoal eram considerados essenciais. A cútis, ou a pele, de atrizes, assim como o odor agradável são expressões encontradas na maior parte da publicidade das edições da Revista O Cruzeiro estudadas. Perfumes e joias também aparecem, em segundo plano. O que se observa é que são reforçados hábitos de consumo de higiene pessoal, como o creme dental e produtos para o cabelo, que passavam o aspecto do belo, como um reflexo da urbanização do país – em um extenso período de êxodo 7 O Cruzeiro, 6 dez. 1929

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rural, cujo ápice se deu nos anos de 1950. Determinavam-se novos hábitos para uma sociedade que se urbanizava e que entrava em contato com novos produtos antes inacessíveis.

Mas as revistas também eram grandes ditadoras de modas e costumes. Quem se destacou neste âmbito foi Alceu Penna e sua coluna “Garotas do Alceu”, publicada na revista “O Cruzeiro” de 1938 a 1964. Alceu reproduzia conjuntos de roupas detalhados, presentando a menina moderna a cada semana de publicação. A coluna abordava diferentes temas, como: cotidiano, política, cinema, esporte e se tornou uma referência de moda a ser copiada pelas meninas. O colunista fazia uma boa produção dos desenhos, detalhava as texturas e o corte dos tecidos, e as cores que iam ser sucesso nas estações do ano.

Figura 4 – O Cruzeiro, edição da coluna Garotas do Alceu da década de 1940

Eram, também, importantes as sugestões para penteados e as frases e atitudes que as “Garotas do Alceu” apresentavam porque eram adotados, criando modismos populares. Ziraldo (1983), também ilustrador colaborador da revista, revelou:

“Durante anos, todas as moças bonitas deste País (…) se penteavam, se sentavam, gesticulavam, sorriam e se vestiam como as Garotas do Alceu. E nos encantavam e nos faziam sonhar. (…) Estou seguro de que, nem um nem outro, conseguiu com seu desenho agir sobre o modo de ser do brasileiro, determinar maneiras de comportamento, de sentir, de escolher, de vestir. Em suma: criar uma moda brasileira. (...) Suas meninas de olhos expressivos, de gestos delicados e cheios de graça, de cinturas finas, de longos cabelos e de saias rodadas, cujo tecido era informado com duas ou três pinceladas – a gente sabia se era seda ou algodão – eram tão fortes que, me parece, os leitores conviviam com elas como se convive com um ser vivo. (… ) Elas tinham vida própria, e tanta que Alceu desaparecia por trás delas.”

O vocabulário da moda modificou a própria língua nacional: garotas passaram a ser chamadas de girls, de gal; fashion virou sinônimo de moda e rainha da beleza passou a ser denominada miss. Em outras, o sentido da internacionalidade e de novas referências ficam por conta das expressões como nesse exemplo da edição de 1950 do creme pó contacto Coty “É o que você obterá com a nova criação de Coty, que harmoniza o mundialmente famoso pó[...]”; “E agora não se usa maquillage pesada, que agrava com o tempo as imperfeições da pele”; e “Agora se usa este make-up[...].”

O Cruzeiro não apenas falou de beleza, mas ajudou a criar, como mostrado, um universo novo e moderno de produtos e hábitos de consumo, principalmente os de higiene pessoal, cabelo e pele, que migraram, também, para os círculos sociais, mesmo que restritos às elites das grandes cidades brasileira. A revista teve participação em concursos de beleza, para a eleição da miss Brasil e da miss Universo. Na edição de 6 de setembro de 1930, a

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revista dedicou 12 páginas para mostrar as mais belas e registrar o “Miss Universo 1930”, a exemplo de outras edições que trataram do mesmo evento, como foi a do mês de julho de 1929. E essa missão se prolongou, inclusive, para depois dos anos de 1950. Isso mostra que a preocupação de O Cruzeiro com a divulgação de um padrão de beleza brasileiro e internacional, criou a oportunidade e deu a autoridade para apresentar novos hábitos de consumo de beleza a serem adotados por moças e senhoras da época que quisessem alcançar o ideal da mulher elegante e moderna.

3.2. A dona de casa e a mulher moderna: um mesmo comportamento

Um perfil mostrado em textos de colunas e publicidades é o da dona de casa que

comprava o sonho da modernidade. Ela deveria ser a mãe de filhos saudáveis, submissa ao seu marido, e seguia receitas de como fazê-lo como na coluna “Lar Doce Lar.” A educação e os bons modos ainda eram primordiais para serem boas mulheres e, com isso, a condição inferior em relação ao marido era tida como natural. Ou seja, apesar de seguir a modernidade vendida pela revista através produtos de beleza e da representação das figuras estereotipadas de Hollywood, a mulher ainda deveria dar continuidade ao ciclo de suas mães e avós: casar, ter filhos, ser uma boa esposa e mãe.

Apesar do paradoxo, esse perfil de mulher, que é dona de casa, também era o moderno, uma vez que ela havia conquistado a um novo direito: liberdade de ser boa consumidora e cuidar de seu corpo, apesar de socialmente contida. Assim, as leitoras, paradoxalmente, seguiam as receitas de boa esposa, mas compravam a ideia de que estavam se modernizando. Isso acontecia porque muitas ainda dependiam financeiramente de seus maridos, por estarem em casa e, com isso, a independência que podiam alcançar era o direito a ter o desejo de bens de consumo e a liberdade para escolhê-los.

Por isso, e qualquer que fosse a propaganda, a mulher ainda era representada como dona de casa quando o produto era eletrodoméstico. Ela, portanto, tinha o papel de escolher o melhor produto, o que não significava dizer que seu papel social seria mudado. Essa ideia ainda é reforçada pela presença da menina, nessa propaganda de 1950 da marca Frigidaire que, com curiosidade, parece já prever qual o papel lhe está reservado.

Figura 5- O Cruzeiro, edição de 1950

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Mulher moderna consume produto moderno, mas desempenha o papel de boa esposa e mãe. Ela pode cuidar do rosto e da pele, desde que estejam de agrado ao seu marido, uma vez que deveriam aprimorar “a difícil arte” de ser esposa. Em uma coluna da revista, conselhos eram dados para que se conseguisse dominar as habilidades de dona de casa. Esses conselhos, mostravam a necessidade de saber cozinhar, respeitar o marido e ainda permanecer com um semblante feliz:

SE A PALAVRA É DE PRATA O SILENCIO É DE OURO. Não fale com seu marido senão quando elle terminar de barbear-se ou escovar os dentes. Não o importune quando estiver se barbeando; para o homem o vestir-se e barbear-se é como a celebração de um rito que a mulher não deve interromper. Lembre-se de que o mais eloquente dos homens é calado de manhã. Prepare a mesa para a primeira refeição de maneira que seu marido sente-se a ella com prazer. Não esqueça de collocar o cinzeiro ao lado do talher. [...] De quando em vez procure provar-lhe que você estava sem razão. Se seu esposo tem algum hábito ou preferência especial, procure satisfaze-lo sem insinuar que você assim procede por fazer-lhe a vontade. Não fale em demasia dos amigos delle, mas também não os esqueça. APRENDA A COSINHAR. Não diga que só cosinha para elle e sim para ambos. Não prepare muito amiudadamente seus pratos favoritos. Não ande de chinellas, nem mesmo na cosinha. O BOM HUMOR DA ESPOSA É UM REPOUSO PARA O MARIDO. Não se queixe. [...] O MARIDO VÊ O VESTIDO DE SUA ESPOSA, E, NÃO A ALMA. Mude de vestido diariamente, se possível. Se o guarda roupa que possue não fôr abundante, varie o toilette com uma golla nova, uma gravata, um collar. Nunca appareça a seu marido com um vestido que não ousaria exibir às visitas. [...] (O Cruzeiro, 11 maio 1935. p. 32.)

Essa idealização da boa esposa que trabalha para o bem estar de todos da casa, evitando

problemas domésticos, era a receita para um bom casamento. A fórmula da esposa ideal colocava a mulher no papel de uma serviçal disponível ao marido, disposta a aceitar e concordar com a submissão e, ainda, manter sempre um sorriso nos lábios. Era o seu dever manter a casa em harmonia e, caso fosse preciso, até medicamentos eram receitados para ‘gênio ruim’, como é evidenciado nessa propaganda de 1947: “Mulher geniosa.. Lar infeliz... pode ser a consequência de esgotamento nervoso [...]”

Figura 6 – O Cruzeiro, edição de 1947

Evidencia-se, dessa forma, uma época em que os padrões sociais não se alteravam, a pesar de muitos anúncios de produtos que prometiam às mulheres uma nova fase, a da era moderna.

É preciso ressaltar, ainda, que as revistas da época, especialmente as femininas, ditavam os padrões de comportamento para que moças e mulheres pudessem alcançar as virtudes necessárias para o bem viver não apenas da casa, mas da sociedade. Enquanto o crescimento

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urbano colocava em conflito costumes e tradições desiguais, os veículos de comunicação, incluindo a Revista O Cruzeiro, procurava mostrar a importância da educação para as moças daqueles anos e para as meninas modernas. Com tamanha contradição à sua volta, a mulher “moderna”, deveria saber se comportar e, ao mesmo tempo, inclusive as mais conservadoras, ter a consciência de que alguns aspectos da sociedade estavam mudando. Deveria entender que era preciso acompanhar as novidades para não se sentir velha. Maria Eugênia Celso, uma das colunistas que ocupava um espaço nobre na página 3 da revista a partir de 1940, escrevendo sobre os mais variados temas daqueles anos, sempre enfocando a realidade feminina” escreveu:

No meu tempo [...] No meu tempo [...] Não diga isto, minha senhora! Não diga isto, nem brincando [...] envelhece logo de vinte anos, pelo menos. Seu tempo é o de hoje e tem de ser o de amanhã, se quiser conservar alguns anos ainda seu vitorioso centro da mulher bonita. Quando uma pessoa começa a achar-se destoante do tempo que corre é porque envelheceu. (O Cruzeiro, 10 nov. 1945. p. 3)

A discussão entre o que era e o que não era moderno estava presente em praticamente

todas as colunas e, mesmo naquelas em que o tema não estava explícito, há uma forte tendência a defender uma ou outra posição, sempre tendo em vista que a modernidade existia sem que, com isso, se alterasse a ordem social estabelecida. Era preciso manter homens e mulheres com seus papéis bem definidos na vida a dois: as mulheres sendo donas de casa, mães e esposas; os maridos preocupando-se com o sustento familiar e com as atividades sociais e políticas.

A imagem que se propagava era a da mulher hollywoodiana, ligada ao consumo e a padrões de beleza, mas os assuntos tratados reafirmavam a mulher moderna como aquela que mantém-se fiel ao papel de mulher de bons modos – sendo, assim, moderna apenas pela questão consumista e pelo frenesi de novos cuidados com o corpo e o rosto.

Considerações Finais A pesquisa mostrou que a Revista O Cruzeiro fez associações diferentes entre a ideia de

modernidade no plano do consumo e no plano social. A imagem reproduzida nas páginas da Revista O Cruzeiro denunciam um padrão de beleza com base na estética hollywoodiana, moderna para a leitora brasileira, mas suas colunas e conselhos resguardam uma velada manutenção do padrão de comportamento através da reafirmação de posições sociais da mulher.

Dessa forma, a revista não apresentou uma mudança significativa no papel social da mulher em si - ela alcançava apenas uma independência para consumir, e ainda com o dinheiro dos maridos. Assim, os padrões sociais não se alteravam, apesar de anúncios de produtos que prometiam às mulheres uma nova fase, a da era moderna. As mudanças, apesar de ainda lentas, eram vendidas pela revista como uma realidade já existente. Foi sobretudo nas propagandas de produtos que enalteciam a beleza e que reforçavam a ideia de uma nova mulher, agora dedicada também ao consumo, que a revista vendia o sonho de mudanças. Portanto, a mulher moderna criada pela Revista O Cruzeiro é paradoxal, muda para ser, em certo sentido, a mesma de antes. Agora, porém, consciente de que algumas transformações chegarão a seguir e revestida com uma nova faceta de “independência” moldada pela aquisição de novos hábitos de consumo.

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