IMAGENS DE LÍNGUA FRANCESA NO CONTEXTO DA UFRJ · 2 EXAME DE DISSERTAÇÃO MOREIRA, Sany Lemos....
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IMAGENS DE LÍNGUA FRANCESA NO CONTEXTO DA UFRJ
por
Sany Lemos Moreira
Aluna do curso de Mestrado em Letras Neolatinas
Opção: Língua Francesa
Dissertação de Mestrado em Letras
Neolatinas, opção Língua Francesa,
apresentada à Coordenação dos Cursos de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Orientadora: Professora Doutora Márcia
Atálla Pietroluongo.
FACULDADE DE LETRAS – UFRJ
Rio de Janeiro, primeiro semestre de 2007.
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EXAME DE DISSERTAÇÃO
MOREIRA, Sany Lemos. Imagens de Língua Francesa no contexto da UFRJ. Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. Dissertação de Mestrado em Língua Francesa.
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Língua Francesa.
Banca Examinadora:
_________________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo – UFRJ.
_________________________________________________________________
Professor Doutor Décio Orlando Rocha – UERJ
_________________________________________________________________
Professor Doutor Pierre François Georges Guisan – UFRJ
_________________________________________________________________
Professora Doutora Mariluci Novaes - UFF
_________________________________________________________________
Professora Doutora Anamaria Skinner – UFRJ
Examinada a Dissertação:
Em _________/_________/ 2007.
3
À professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo, pela
orientação, dedicação à pesquisa e
participação em minha vida acadêmica desde
os tempos de iniciação científica;
Ao professor Doutor Pierre Guisan, pelos conselhos e
ensinamentos que muito contribuíram para a
presente pesquisa;
Ao professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes, pelas
informações e incentivo;
Às minhas amigas Cristiane, Déborah e Érika, pelo
carinho e apoio ao longo do curso;
Ao Renato, pela paciência e generosidade;
Aos meus pais, Samir e Deise, e ao meu irmão, Samir
Al-jalali, por terem acreditado em mim;
agradeço imensamente.
4
“O indivíduo é determinado, mas para agir, deve ter a ilusão de ser livre”.
(Claudine Haroche)
“Eu não sou um homem político, eu sou apenas um homem livre, e ensinar o francês
é servir à pátria”.
(Victor Hugo)
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MOREIRA, Sany Lemos. Imagens de Língua Francesa no contexto da UFRJ. Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. Dissertação de Mestrado em Língua Francesa.
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Língua Francesa.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar os
efeitos de sentidos produzidos pelos alunos da
Faculdade de Letras da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, modalidade
Português/Francês, quando estes escrevem
sobre a língua francesa. A questão principal do
trabalho é verificar a relação que existe entre a
memória discursiva concernente ao francês no
Brasil e o que foi formulado pelos graduandos
da Faculdade de Letras no momento da
produção dos textos. Para tanto, a questão aqui
apresentada tem como suporte teórico
conceitos formulados pela Análise do Discurso
de Michel Pêcheux.
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MOREIRA, Sany Lemos. Imagens de Língua Francesa no contexto da UFRJ. Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. Dissertação de Mestrado em Língua Francesa.
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Língua Francesa.
RÉSUMÉ
Le présent travail a pour but d’analyser les
effets de sens produits par les étudiants de la
Faculté de Lettres de l’Université Fédérale de
Rio de Janeiro, modalité Portugais/Français,
lorsque ceux-ci écrivent sur la langue française.
La question principale de ce travail est de
vérifier le rapport qu’il y a entre la mémoire
discursive concernant le français au Brésil et
ce qui a été formulé par les étudiants
universitaires de la Faculté de Lettres lors de la
production de leurs textes. Pour ce faire, la
réflexion présentée ici a comme support
théorique les concepts formulés par l’Analyse
du Discours de Michel Pêcheux.
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MOREIRA, Sany Lemos. Imagens de Língua Francesa no contexto da UFRJ. Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. Dissertação de Mestrado em Língua Francesa.
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Língua Francesa.
ABSTRACT
This work intends to analyze the effects of
senses produced by the students of Portuguese
and French from the UFRJ, when they write
about the French language. The main issue of
this work is to check the existing relation
between the discursive memory concerning to
the French in Brazil and what was formulated
by undergraduate students from the UFRJ at
the moment of the text’s production. Hence,
the reflection hereby presented has as
theoretical support formulated concepts by the
Discourse Analysis by Michel Pêcheux.
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SINOPSE
Imagens de língua francesa correntes no
imaginário dos alunos de Francês da
Faculdade de Letras da UFRJ. Breve
histórico das relações França-Brasil.
Imagens de língua francesa no Brasil em
contraste com aquelas que os franceses têm
de sua própria língua. Experiências de
inscrição em língua estrangeira.
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ABREVIATURAS
AD – Análise do Discurso
FLE – Francês língua estrangeira
LM – língua materna
LE – língua estrangeira
PALAVRAS-CHAVE
Língua Francesa - Análise do Discurso – Formações Discursivas – Globalização - Francofonia
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO......................................................................................................11
1.1 A língua francesa vista pelos alunos da UFRJ: “um olhar para fora”....................14
1.2 A língua francesa vista pelos franceses: “um olhar para dentro”............................16
2. QUADRO TEÓRICO...............................................................................................21
2.1 Noções de Sujeito: De Saussure à Teoria da Enunciação.......................................21
2.2 Conceitos oriundos da Análise do Discurso de Escola Francesa............................25
3. LÍNGUA E CULTURA: CONSIDERAÇÕES E CONTRADIÇÕES......................35
3.1 O conceito de língua em manuais didáticos de FLE...............................................46
3.2 Um breve estudo dos momentos sociohistóricos que contribuem para a formação
do imaginário dos brasileiros........................................................................................49
3.3 O fenômeno da globalização e as “crises identitárias”...........................................61
3.4 O “charme francês” e suas implicações................................................................66
3.5 O “gênio” da língua francesa................................................................................72
4. LÍNGUA PRIMEIRA X LÍNGUA SEGUNDA...................................................... 75
4.1 A subjetividade do sujeito bilíngüe.........................................................................75
4.2 O confronto com a língua estrangeira.....................................................................81
5. CONCLUSÃO......................................................................................................... 88
6. BIBLIOGRAFIA...................................................................................................... 92
7. ANEXOS ..................................................................................................................96
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1. INTRODUÇÃO
A contribuição francesa ao longo da história brasileira é marcante. Os padrões de
vida francesa, sobretudo no século XIX, eram imitados. Falar francês era considerado
demonstração de elegância e sofisticação. Ler em francês significava ter acesso ao que se
tem de mais encantador no campo da arte. E hoje? Quais são as imagens veiculadas
sobre a língua francesa no cenário nacional a fim de evocar a importância do estudo do
francês? Face ao espanhol, língua do Mercosul, e à avassaladora conquista da língua
inglesa na cena mundial, qual é a atual posição ocupada pela língua francesa no Brasil?
Buscando encontrar respostas para as questões supracitadas, propusemos aos
futuros profissionais do francês, alunos da Faculdade de Letras da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, que respondessem à seguinte pergunta: O que a língua francesa
representa para você? O trabalho foi realizado em sala de aula e, na tentativa de não
interferir na maneira como escrevem, não foi feita exigência quanto à forma, optando,
além disso, por redações anônimas. Propusemos, apenas, que tentassem transcrever suas
imagens quanto à língua francesa. Com o intuito de não limitar o aluno, preferimos que o
texto fosse escrito em língua materna. As 87 redações foram aplicadas no 4º, 5º, 6º, 7º e
8º períodos nos anos de 2004 e 2005. A opção por formar o corpus a partir do 4º período
foi motivada pela crença de que haveria um maior amadurecimento por parte dos
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graduandos, uma vez que estes já teriam tido algum tempo de contato com a língua
francesa e, de certa forma, estariam mais aptos a tecer imagens sobre a mesma.
Nossa proposta é apresentar a análise dos textos em questão à luz da Análise do
Discurso do filósofo Michel Pêcheux, para quem todo discurso produzido retoma ditos
que o antecedem, sustendo-se em uma memória discursiva. Embora o sujeito do discurso
não se dê conta de que sua produção discursiva está estreitamente vinculada a uma
memória que é ativada no momento de sua tomada de palavra, a análise que se segue
busca recuperar uma fundamentação teórica capaz de explicar como os sujeitos, ao se
expressarem, reproduzem valores, crenças e pontos de vista vigentes dentro de uma
prática social.
Apoiando-nos nas noções propostas pela Análise do Discurso na perspectiva de
Michel Pêcheux, apontaremos o fato de que os alunos são submetidos a um efeito
ideológico e, dessa forma, sustentam discursos apoiados, muitas vezes, na formulação de
estereótipos estabelecidos a partir de uma supervalorização do parâmetro cultural
francês. Tal análise leva em conta o processo histórico-social responsável pela formação
discursiva à qual os alunos se filiam. Embora eles não tenham consciência disso,
sabemos que eles retomam discursos anteriores, uma vez que se acredita que em toda
enunciação há uma reformulação de discursos já produzidos em outro lugar. Dessa
forma, buscaremos recuperar discursos já veiculados anteriormente que remetam à
mesma representação de língua proposta pelos graduandos. A pesquisa tem por objetivo
fazer um estudo calcado na influência da cultura francesa ao longo da história brasileira
para, dessa forma, situarmos a atual posição ocupada pela língua francesa no Brasil.
Apesar de a França não ter exercido poderio político sobre o Brasil, “muitos são
os laços que unem as duas culturas”1, logo, buscaremos evidenciar, sem rigor
1 História Viva, número 9, 2005, p.5.
13
cronológico, alguns dos momentos históricos que possibilitaram as trocas. Verificaremos
como foi transportada para o Brasil a necessidade de se estudar a cultura e língua
francesas. Buscaremos apontar três momentos marcantes para a compreensão da
realidade atual: a vinda da missão francesa de 1816, promovida por D. João VI e a sua
conseqüente repercussão em termos culturais como, por exemplo, a criação da Academia
de Belas Artes, em seguida, a missão de 1934 e o que se convencionou chamar de
“revolução intelectual”, que se deu com a criação da Universidade de São Paulo e, por
fim, a ruptura da tradição francesa no Brasil que começa a ocorrer no final do século XX
e a postura adotada pelos franceses a fim de combater o modelo globalizado que tornou o
inglês a língua franca de comunicação. Tais dados nos permitem compreender melhor
como se formou o imaginário da comunidade lingüística brasileira no que concerne à
língua francesa.
Em virtude das comemorações do ano do Brasil na França, por conta da decisão
do governo francês de homenagear o Brasil em 2005, a revista História Viva publicou,
no mesmo ano, uma edição especial chamada “A Herança Francesa”. Nesta
encontramos grande suporte para o trabalho, pois ela nos apresenta como a França teve
influência decisiva na formação do pensamento brasileiro. Os artigos, elaborados sob a
ótica de historiadores, contribuiu significativamente para a pesquisa, pois neles
encontramos um arcabouço histórico de como a França ganhou seu espaço no Brasil,
sobretudo no Rio de Janeiro. A apresentação dos vestígios deixados pelos franceses se dá
desde a primeira atuação francesa em 1504, quando o capitão Binot Gonneville se instala
na atual Santa Catarina, o que nos permite questionar e interpretar como se formou o
imaginário dos brasileiros.
14
“Há muito que dizer das trocas culturais entre a França e o Brasil, pois a história do pensamento brasileiro está inextricavelmente ligada à daquele país que, apesar de não ter-nos colonizado, influenciou e contribuiu significativamente para a constituição da identidade brasileira”.2
1.1. A língua francesa vista pelos alunos da UFRJ: “um olhar para fora”
Os alunos, ao falarem sobre a língua francesa, buscam, em grande parte,
transmitir mensagens que supervalorizam a língua. Tal atitude nos permite acreditar que
esta admiração é fruto de um imaginário construído a partir de a relação que o Brasil teve
com a França ao longo de sua formação, visto que se trata da língua de um povo que
influenciou, de forma decisiva, a construção de nossa identidade. O Brasil, enquanto ex-
colônia, via a Europa como uma grande metrópole cultural, sendo ela a grande fonte de
inspiração de nossos valores. No que se refere à França, sabe-se que a sua influência teve
muitos aspectos positivos em termos culturais. No início do século XIX, a elite brasileira
falava francês e vestia-se com o estilo francês de ser e, em conseqüência desta admiração
desmedida, nota-se, até hoje, os vários desdobramentos simbólicos resultantes do
decisivo contato cultural que aquele país nos proporcionou.
“O Brasil foi e é um país muito ligado à França. No
século XIX chega a ponto de Machado criar um
personagem que quer ser Napoleão III, como
representação do sonho brasileiro... Seguramente
Machado está deixando claro que há um
descompasso qualquer no Brasil. Um Brasil
2 História Viva, número 9, p.10. A citação elucidada é da historiadora Mônica Cristina Corrêa.
15
tropical, ainda inculto e que, no entanto, tem na sua
elite uma discordância radical em relação ao Brasil
do interior. A elite tem uma ligação muito grande
com o outro lado do oceano”.3
Sendo a língua entendida pelos alunos como parte da riqueza cultural francesa,
eles falam sobre a língua enquanto aquisição de um bem cultural.
Como diz um aluno, aprender francês é
“... meio de obtenção de cultura. É voltar ao tempo e perceber que a grande revolução que marcou o início de grandes transformações sociais ocorreu na França”. É perceber que o grande legado cultural que existe foi deixado pela França.” (Francês IV-2004/2)
Essas palavras nos levam a acreditar que se faz presente na memória coletiva dos
brasileiros, ainda que seja inconsciente, o fato de que a França ajudou a criar a nossa
independência com seus ideais igualitários e iluministas, fruto da Revolução de 1789. E,
ainda, foi ela que muito enriqueceu a nossa literatura, desde o romantismo de
Chateaubriand até o modernismo com as vanguardas européias. Muitas das instituições
brasileiras, como, por exemplo, o Instituto Oswaldo Cruz, foram inspiradas em modelos
franceses. Vale destacar que tais fatos marcaram a construção do pensamento brasileiro
de tal modo que este sentimento de fascínio pela história política da França perdura até
os dias atuais.
Não tendo a França participado diretamente da política brasileira, a relação que
se teve com aquele país foi sempre apoiada em princípios que anulavam qualquer tipo de
3 http://txt.estado.com.br/francais/canibal/canibal6a.html. Machado de Assis e a França. In: Les Français et les Brésiliens : les images, les échanges, l’imaginaire, por Gilberto Passos, professor da Universidade de São Paulo.
16
opressão. Com isso, a língua francesa não se tornou um elemento colonizador, pelo
contrário, toda a arte e cultura francesas eram atraentes aos olhos do Brasil. O interesse
pelo que vinha da França era enorme, chegando-se a desconsiderar, em muitos
momentos, as particularidades da cultura local. Nascido de contrastes, o Brasil sempre
foi a presença em si da diversidade e em meio a desproporções e incertezas, buscávamos
anular as diferenças e nos constituir num outro. Embora muitos artistas tenham
valorizado nossa mestiçagem e nosso hibridismo, o olhar de admiração pela cultura
francesa é notório, fazendo dela um mito. Mito este que foi reproduzido nos textos dos
alunos, visto que a necessidade de se apreciar o estrangeiro é uma idéia ainda corrente no
imaginário brasileiro.
1.2 A língua francesa vista pelos franceses: “um olhar para dentro”.
Para contrapor o imaginário dos alunos com aquele que o próprio francês faz de
sua língua, o lingüista Claude Hagège teve relevante importância para essa pesquisa, pois
ele descreve, em “Le Français, histoire d’un combat”, 1996, como se deu a consolidação
da língua francesa mediante aos vários momentos de resistência ao latim, língua erudita
por excelência. Tanto a Reforma como a fundação da Academia por Richelieu
permitiram que, no decorrer do século XVII, o francês pudesse, progressivamente, tomar
o lugar de prestígio outrora ocupado pelo latim. Esse reconhecimento é atingido por dois
motivos fundamentais: o poder militar e político da França na época e as qualidades
17
intrínsecas de clareza e elegância atribuídas à língua francesa, que proporcionaram a
criação do Mito do Gênio da Língua Francesa.
A crença de um Gênio próprio ao francês permitiu que, no século XVIII, a língua
atingisse seu apogeu enquanto língua diplomática, sendo ela representada mundialmente.
Ainda no final do mesmo século, a partir de 1789, a Revolução faz com que os franceses
acreditem que falar francês signifique um modo essencial de se mostrar patriota. Pode-se
dizer, como bem o demonstra Claude Hagège que, com a Déclaration des Droits de
l’homme et du Citoyen, a idéia de “nação” se torna cada vez mais importante na vida dos
franceses e, paralelamente a esse novo conceito, surge a necessidade se falar francês para
se tornar cidadão. O Abade Gregoire fez muito para promover a crença de que somente a
unidade lingüística seria capaz de garantir a integridade do país.
“Para extirpar todos os preconceitos, desenvolver todas as verdades, todos os talentos, todas as virtudes, unir todos os cidadãos em uma única massa nacional, (...) é necessário identidade de linguagem…” 4
Buscou-se a democracia pela unificação lingüística, porém elevou-se, mais uma
vez, a crença de que o dialeto da cúpula parisiense era mais prestigioso do que os
demais, uma vez que só ele permitiria dar liberdade e igualdade aos cidadãos. Desde
então, a idéia de língua una e de identidade nacional passam a ser veiculadas como
indissociáveis. Napoleão também contribui para tal sustentação ideológica ao tentar levar
a língua francesa aos territórios conquistados como símbolo de nacionalismo. Durante o
período napoleônico, apostou-se numa Europa em que todos falariam francês. Sabe-se
4 APUD “Le Français, histoire d’un combat” do lingüista Claude Hagège.
18
que, antes mesmo da Revolução, em algumas cortes da Europa falava-se a língua
francesa como em Paris. O luxo e conduta de Luis XIV deixaram vestígios simbólicos
significativos, pois desde a criação de Versalhes, as demais cortes da Europa acabavam
por copiar o modo de vida francês e, assim, muitas pessoas falavam francês.
Entretanto, o declínio de toda essa supremacia chega ao seu término no momento
em que os Estados Unidos passam a intervir na Primeira Guerra Mundial. O marco
histórico que põe fim à carreira do francês nas relações diplomáticas é o documento
chamado “Tratado de Versalhes”, assinado em junho de 1919. Trata-se de um acordo de
paz que finaliza a guerra e assegura a derrota dos alemães. Este documento é escrito em
duas versões, uma em francês e a outra em inglês, visto que os representantes americanos
e ingleses não falavam francês e, em escala global, o numero de falantes do idioma
francês era inferior ao do inglês. 5 Até a assinatura deste documento, o francês possuía o
privilégio de ser a única língua oficial das conferências internacionais, porém a partir da
data já mencionada, o poderio político e econômico americano começa a fazer do inglês
a língua internacional. Embora conste que o motivo da mudança tenha sido o já apontado
acima, sabe-se que a questão lingüística nas relações internacionais tem uma importância
que não se limita àquela de facilitar as trocas comunicativas, pois alcança considerações
de vantagem política.
Longe de aceitar tal declínio, os franceses lutam até os dias atuais contra a
hegemonia do inglês. Criou-se, para tal propósito, a Organização Internacional da
Francofonia, que reúne 63 países de língua francesa em prol de políticas de comum
acordo. A Organização é uma instituição fundada sobre o princípio de uma língua e de
valores comuns. Ela conduz ações nos campos da política internacional e da cooperação
multilateral.
5 Dados retirados do livro Histoire de la France de Georges Duby, publicado em 2003.
19
“A organização conduz uma ação política em favor da paz, da democracia e dos direitos do Homem e dirige em todos os domínios uma integração entre seus membros”.6
Assim, é sabido que a Francofonia busca assegurar o fortalecimento das
comunidades francófonas para, dessa forma, se ter um bloco que possa não só fazer
frente ao modelo econômico atual no qual o inglês tem predominância, mas também não
deixar acabar todas as conquistas já sedimentadas anteriormente.
Aprofundando as idéias apontadas nessa introdução, este trabalho tenta entender
de que forma se deu a construção do pensamento brasileiro no que tange à língua
francesa. Para tanto, a pesquisa será dividida em três momentos. Começaremos por um
quadro teórico, no qual o conceito de discurso determinará toda a análise que será
apresentada posteriormente. Num segundo momento, apresentaremos a análise que se dá
a partir de excertos extraídos das redações aplicadas na UFRJ e ela está subdividida em
dois capítulos. A questão principal do primeiro capítulo é analisar os efeitos de sentidos
produzidos no corpus da pesquisa, centrando-nos no conceito de língua e nas imagens de
língua francesa. Pretendo, nesse capítulo, dar ênfase aos fatos sócio-históricos que
contribuíram para compor a história das relações do Brasil com a França, apontando
também algumas das imagens dos franceses quanto à sua própria língua para contrapô-
las com aquelas observadas no corpus.
Já o segundo capítulo tratará do sujeito das redações e suas experiências de
inscrição em língua estrangeira. Pretendo explicitar algumas das implicações
6 http://www.francophonie.org/oif/historique.cfm
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concernentes à aprendizagem de uma língua estrangeira e como o contato-confronto com
uma segunda língua pode possibilitar a comparação de significados, a elaboração de
novos sentidos e a aceitação da diferença. A escolha por tal divisão não é aleatória,
sendo ela determinada, sobretudo, pelo critério das recorrências observadas nos textos
dos alunos. Essas duas grandes questões que serão apresentadas e questionadas fazem
com que cheguemos a uma conclusão, terceira e última parte da pesquisa.
21
2. QUADRO TEÓRICO
2.1 Noções de Sujeito: De Saussure à Teoria da Enunciação
Verifica-se, a partir da instituição da Lingüística como ciência, o diverso
tratamento dado ao sujeito da linguagem. A Lingüística sistêmica, cuja origem pode ser
marcada com o Curso de Lingüística Geral de Ferdinand Saussure, argumenta que a
língua deve ser pensada como sistema abstrato de regras. A língua, objeto de ciência se
opõe à fala, manifestação individual, como resíduo não científico da linguagem. O
lingüista, ao proceder desta forma, enfatiza a língua em detrimento da fala. Ao descrever
a língua como sendo social e a fala individual, o sujeito é excluído como objeto de
estudos da lingüística saussureana.
“O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonação é psicofísica. (...) Sem dúvida, esses dois objetos estão estreitamente ligados e se aplicam mutuamente”.7
7 SAUSSURE, Ferdinand. De. Curso de lingüística Geral. 6.ed. São Paulo: Cultrix, 1974.
22
Interessante notar que os objetos em questão são descritos como distintos
e interdependentes. Porém, percebe-se o grau de importância conferido à língua, uma vez
que esta é tida como parte essencial. Embora o lingüista tenha estabelecido a dicotomia
entre língua e fala (parole), tal oposição permitiu determinar a língua como objeto de
análise privilegiado pela lingüística, excluindo a fala, ato particular de caráter volitivo,
segundo o lingüista.
Os estudos lingüísticos que seguem o modelo saussuriano apenas especificam o
objeto da lingüística canônica ao estabelecerem a frase como seu limite. Segundo Roman
Jakobson, não existe liberdade individual na combinação fônica e nem mesmo no
interior da frase, pois o código já estabeleceu todas as possíveis relações frasais. Já na
combinação de frases em enunciados, o sujeito passa a gozar de maior liberdade. Trata-
se aqui de um sujeito livre e consciente das escolhas lingüistico-discursivas que faz.
Entretanto, as variações, resultantes de sua subjetividade, não afetam à língua enquanto
sistema lingüístico.
“Existe, pois, na combinação de unidades lingüísticas, uma escala ascendente de liberdade. Na combinação de traços distintivos em fonemas, a liberdade individual do que fala é nula; o código já estabeleceu todas as possibilidades que podem ser utilizadas na língua em questão. A liberdade de combinar fonemas em palavras está circunscrita; está limitada à situação marginal da criação de palavras. Ao formar frases com palavras, o que fala sofre menor coação. E, finalmente, na combinação de frases em enunciados, cessa a ação das regras coercivas da sintaxe e a liberdade de qualquer indivíduo para criar novos contextos cresce substancialmente, embora não se deva subestimar o número de enunciados estereotipados.”8
8 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 2003.
23
Noam Chomsky, por sua vez, em sua teoria sintática da frase, tem por objetivo
marcar se a posição sujeito está sendo preenchida ou não e, nesse âmbito, o sujeito é
limitado a uma mera posição estrutural. Esta teoria gerativa é feita de um locutor-ouvinte
ideal9, não existindo espaço para a teoria dos sujeitos, pois se busca observar apenas tal
preenchimento gramatical a fim de verificar se o item lexical possui traço mais ou menos
humano.
Na medida em que alguns lingüistas buscam uma aproximação com o plano onde
atua o sujeito, surgem os trabalhos de Émile Benveniste, que objetivam examinar as
marcas do “homem na linguagem”. Neste sentido, busca-se evidenciar os indicadores
que revelam as marcas da subjetividade na linguagem. O estudo é feito levando em
consideração as marcas de pessoa, os indicadores da dêixis e as expressões de
temporalidade, a fim de situar o sujeito no tempo. Para a Teoria da Enunciação, o
homem se constitui como sujeito pela linguagem.
“A linguagem é tão profundamente marcada pela expressão da subjetividade que nós nos perguntamos se, construída de outro modo, poderia ainda funcionar e chamar-se linguagem”. 10
A subjetividade, definida por Benveniste como elemento fundamental da
linguagem, é a capacidade, por parte do locutor, de apropriar-se da língua para constituir-
9 Este termo aparece aqui marcado pela noção empregada por Patrick Charaudeau em Análise do Discurso: Fundamentos e Práticas. In: Uma Teoria dos Sujeitos da Linguagem. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso – FALE/ UFMG, 2001, p.27. Neste sentido, segundo Charaudeau, “Não há, portanto, lugar para a teoria dos sujeitos, uma vez que estes desaparecem na abstração ideal de um modelo de competência supostamente perfeito”. 10 BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral 1. Campinas: Pontes 1988.
24
se como sujeito. O locutor é tido como parâmetro. Nesta perspectiva, não existe
enunciação sem locutor. Este, ao dizer eu, constitui-se como sujeito. Nota-se que o
modelo de sujeito instaurado pela Teoria da Enunciação é consciente e dotado de
intenções subjetivas.
Neste sentido, Benveniste distingue a pessoa subjetiva (eu) da pessoa não-
subjetiva (tu), acreditando que existe um deslocamento flexível entre os termos e, dessa
forma, um não se concebe sem o outro. Embora esta polaridade seja fundamental, os
termos são assimétricos, visto que “ego” ocupará sempre uma posição transcendente em
relação a “tu”. Os indicadores da dêixis, elementos que apontam o contexto da
enunciação, também são considerados constitutivos da linguagem. Estes elementos
lingüísticos situam o que o sujeito diz como coincidente ou não com o momento da
enunciação e só se definem na instância do discurso proferido pelo eu que se enuncia.
É oportuno dizer aqui que Jakobson também contribui diretamente à
Teoria da Enunciação, visto que no esquema da comunicação por ele proposto têm-se a
inserção do sujeito como ponto de origem de todo ato de comunicação verbal e, assim, a
linguagem passa ser estudada a partir da variedade de suas funções. Segundo Jakobson,
toda comunicação requer fatores constitutivos de seu processo e para cada um dos
fatores envolvidos na comunicação existem funções que lhes são associadas. Os
conceitos de emissor e receptor, por exemplo, encontram-se distinguidos e
personalizados pelas funções emotiva e conativa. A mensagem enviada pelo remetente
ao destinatário corresponde à função poética. O contexto a que se refere à mensagem é
representado pela função referencial. Já o código comum aos interlocutores e o contato,
canal físico que capacita a comunicação entre ambos, são marcados pelas funções fática
e metalingüística, respectivamente.
25
Além disso, Jakobson faz uso da terminologia “embrayeurs” para falar dos
dêiticos. Reconhecidos como marcas lingüísticas que determinam as condições
particulares de cada enunciação, os “embrayeurs” delimitam a instância do EU, do AQUI
e do AGORA, ou seja, as marcas gramaticais de pessoa, as coordenadas de espaço e de
tempo, respectivamente. Segundo Jakobson, os dêiticos dão, efetivamente, conta da
especificidade do funcionamento semântico-referencial constitutivos da situação de
comunicação.
Contudo, vale salientar que foi somente a partir de os trabalhos desenvolvidos por
Jakobson e Benveniste quanto à reintrodução da categoria de sujeito que se pôde
evidenciar, nos estudos lingüísticos, a importância dada à presença dos responsáveis pela
tomada de palavra, suas identidades e seus papéis. Os trabalhos referentes às formas da
língua próprias para designar aquilo que se encontra presente na esfera comunicativa
também mereceram destaque a partir dos autores acima citados. Enquanto na perspectiva
saussureana o sujeito não era objeto de reflexão, em muitos estudos lingüísticos
posteriores à Teoria da Enunciação, ao contrário, o sujeito está na origem da linguagem
e, assim, concebido como consciente e apto para manipular o seu dizer.
2.2 Conceitos oriundos da Análise do Discurso de Escola Francesa
A Análise do Discurso de escola francesa também contempla a questão do
sujeito. Entretanto, esta trata do discurso, objeto que não é integralmente lingüístico.
Para Michel Pêcheux, a língua é a materialidade sobre a qual se instaura o discurso e,
26
nessa perspectiva, o discurso é o efeito de sentido entre os locutores. Entrelaçam-se, no
discurso, o lingüístico e o ideológico e os sentidos são dados na perspectiva da relação
sujeito-história-linguagem. Inverte-se o foco de observação, pois não se parte apenas dos
sentidos produzidos, mas sim de como se dão a produção dos sentidos e a constituição do
sujeito.
A emblemática frase de Benveniste “É Ego quem diz Ego” resume, segundo
Pêcheux, o quanto as teorias da Enunciação são idealistas. A noção de sujeito, tal como
se coloca para a Teoria da Enunciação, é inconcebível do ponto de vista da AD, pois para
Pêcheux, o sujeito não é identificado ao indivíduo. Trata-se de um sujeito social e
múltiplo, determinado pela ideologia e pelo inconsciente. Enquanto na Teoria da
Enunciação o sujeito é considerado o responsável pela enunciação, na Análise do
Discurso, o sujeito, constituído pela história, é concebido como lugar discursivo
submetido à linguagem. No quadro de Pêcheux, a enunciação é histórica, ou seja, sua
atualização só se realiza através da reformulação de enunciados anteriores, sendo a partir
dos enunciados, portanto, que se chega às determinações históricas que caracterizam
cada discurso em particular.
O discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção
dadas. Os elementos estruturais às condições de produção do discurso são os sujeitos e a
situação. A memória também é levada em consideração. Para Pêcheux, todo processo
discursivo supõe a existência de formações discursivas e imaginárias e, ainda, ele
acrescenta que todo discurso é constituído por traços de uma formação social.
As Formações Discursivas são as manifestações, no interior do discurso, de
determinadas formações ideológicas e elas são capazes de regular o que o sujeito pode
ou não dizer. No trecho abaixo, Pêcheux explica:
27
“Uma formação discursiva existe historicamente no interior de determinadas relações de classes. (...) As formações discursivas determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma harenga, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, uma certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico (...) Diremos, então, que toda formação discursiva deriva de condições de produção”.11
.
A ideologia, entendida por Pêcheux como elemento determinante do sentido, está
presente no interior de toda prática discursiva. E, a fim de melhor especificar tal
conceito, Pêcheux, 1975, afirma:
“Cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito uma com as outras.”12
Quanto às formações imaginárias, Pêcheux é influenciado pelo conceito de
imaginário proposto por Lacan. Ele as define a partir do que chama de antecipação.
Regras de projeção características das formações sociais são estabelecidas e, com isso, o
sujeito falante projeta uma representação imaginária do receptor para, dessa forma,
estabelecer suas habilidades discursivas. Trata-se, na verdade, de um jogo de imagens
que é determinado pela posição dos protagonistas do discurso. Nas palavras de Pêcheux,
11 PÊCHEUX, Michel. Por uma análise automática do discurso. 3ªed.Campinas: UNICAMP:1997, p.167. 12 Idem, p. 166.
28
1969, “todo processo discursivo supunha, por parte do emissor, uma antecipação das
representações do receptor, sobre a qual se funda a estratégia do discurso”.13
É importante salientar que as formações imaginárias se manifestam também
através das relações de força e de sentido. Não se trata só da imagem que o sujeito faz
do receptor, mas também daquela que ele faz de si mesmo e do referente. As relações de
força dizem respeito aos lugares ocupados pelos sujeitos na formação social e como tal
posicionamento determina às diferentes produções discursivas. As relações de sentidos
possibilitam que o sujeito relacione os discursos ditos num dado momento com outros
pré-existentes e ou imaginados. Embora inconsciente, tal relação é particular a cada
sujeito, sendo determinada por sua experiência e formação social.
É nessa via que Pêcheux critica as “teorias idealistas da enunciação”, nas quais a
evidência de um sujeito dotado de razão e da transparência dos sentidos se faz presente.
Assim, a partir de Althusser, Pêcheux formaliza o sujeito da ideologia, definindo-o como
posição e não como substância. O sujeito que enuncia é interpelado a ocupar um lugar
determinado numa conjuntura social, sem que ele perceba tal efeito. A teoria da
subjetividade de natureza psicanalítica, perspectiva na qual a AD se apóia, determina
todo o pensamento apoiado na desconstrução de um sujeito que domina e controla o seu
dizer. Todavia, sabe-se que a ilusão que o sujeito tem de estar na “fonte do sentido” é
necessária para que o sujeito possa agir e intervir no mundo.
O sujeito do discurso, efeito-sujeito para Pêcheux, é descentrado, pois é
assujeitado pela linguagem e afetado pelo real da história14. Para Pêcheux, o sujeito é
aquele que acredita assumir posições pessoais, quando, na verdade, assume posições
afetadas pela ideologia. Assim, não se pode mais sustentar que a ideologia funcione
13 Idem, p. 82. 14 Remetemos ao legado do materialismo histórico pressuposto pela Análise de Discurso, isto é, “o de que há um real da história de tal forma que o homem faz história, mas esta também não lhe é transparente”. (Orlandi, 2002, p. 19).
29
exteriormente à linguagem, uma vez que para Pêcheux a ideologia é tida como princípio
de constituição da própria linguagem. Neste sentido, como nos diz Eni Orlandi,
“Podemos dizer que a ideologia faz parte, ou melhor, é a condição para a constituição
do sujeito e dos sentidos”.15
A memória, quando pensada em relação ao discurso, é tratada como
interdiscurso, ou seja, conjunto de formulações já-feitas anteriormente. O autor acredita
que para melhor compreendermos o funcionamento do discurso, devemos nos apoiar na
relação entre o interdiscurso e o intradiscurso, em outras palavras, na confluência entre
os enunciados já-ditos e o que está sendo dito num momento dado, por um determinado
sujeito, em condições específicas. Assim, numa análise, devemos considerar a relação
que existe entre o já-construído e o que está sendo reformulado, pois todo discurso se dá
na tensão dessas duas forças. As formulações intradiscursivas são sempre atravessadas
por um já-dito anterior da ordem do interdiscurso, não existindo, assim, fonte única de
sentido. Em suma, o interdiscurso é, sem dúvida, o conceito chave de toda a construção
teórica de Michel Pêcheux.
O conceito de paráfrase e de polissemia apresentado pela AD marca a distinção
entre o que é do domínio da produtividade e da criatividade respectivamente. Tem-se
como produtividade a reformulação de discursos já produzidos em outro lugar e como
criatividade a geração de novos sentidos. Tais noções nos permitem selecionar as
diferentes formulações do mesmo dizer, ou seja, a variedade do mesmo, a paráfrase e,
por outro lado, a ruptura de processos de significação, a polissemia. Embora todo
discurso seja reformulação, o novo também tem seu lugar na teoria proposta. Entretanto,
15 ORLANDI, Eni. Análise De Discurso - Princípios & Procedimentos. São Paulo: Cortez Campinas,
1999, p.46.
30
a capacidade que o sujeito tem de alterar discursos preexistentes e gerar novos sentidos
só se dá pela capacidade crítica e pelo questionamento.
Pêcheux, ainda sob o pseudônimo de Thomas Herbert, publica seu primeiro
artigo em 1969. O texto intitulado “Análise automática do discurso” é bastante
provocador, pois além de se ter a elaboração de um objeto novo, o discurso, Pêcheux
acredita na possibilidade de “uma máquina discursiva” capaz de desvincular a leitura de
sua subjetividade. Seu fascínio pelas máquinas e pela informática lhe permite contestar
as ciências humanas, particularmente a psicologia social, com a criação de um
dispositivo técnico capaz de excluir da prática de leitura a presença de um sujeito dotado
de possíveis interpretações subjetivas.
Como explica Denise Maldidier,
“... o dispositivo da análise do discurso é o primeiro modelo de uma máquina de ler que arrancaria a leitura da subjetividade”.16
Embora Pêcheux tenha, no decorrer de seu amadurecimento, criticado e
reelaborado seu texto fundador, sobretudo no que concerne à exclusão radical do sujeito,
esse texto é concebido como marco inicial de uma teoria que critica questões
fundamentais sobre a leitura, o sentido e o sujeito. A evidência da leitura subjetiva
causava total desconforto a Pêcheux, razão pela qual ele constrói um novo olhar sobre o
objeto a fim de criticar o sujeito concebido pela psicologia social, visto que sua relação
com a prática política era ignorada, princípio tido como fundamental na concepção do
teórico.
16 MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso. Tradução de Eni P. Orlandi. Pontes, 2003, p.21.
31
Segundo Pêcheux, podemos perceber duas formas de esquecimento no discurso.
O primeiro chamado de esquecimento ideológico seria a ilusão de sermos origem do que
dizemos, visto que o sujeito é incapaz de perceber a forma como a ideologia o interpela.
A segunda ilusão é da ordem da enunciação. Por este esquecimento, o sujeito do
discurso se julga incapaz de reformular o seu dizer. Segundo Orlandi “Quando nascemos
os discursos já estão em processo e nós é que entramos nesse processo”. Os
esquecimentos são estruturantes, uma vez que possibilitam a constituição dos sujeitos e
dos sentidos. Os sentidos são determinados pelo modo através do qual nós nos
inscrevemos na língua e na história.
Além da memória discursiva, ativada num dado momento, deve-se levar
em conta os esquecimentos e a posição ocupada pelos protagonistas do discurso, uma vez
que os sujeitos são percebidos a partir de lugares socialmente determinados. Enquanto as
Teorias da Enunciação acreditam em situações concretas, a AD difere ao propor
instâncias imaginárias. Os sujeitos como pessoas físicas não são considerados, o que se
vê são imagens de sujeitos construídos sociohistoricamente. O autor de um texto, por
exemplo, não é tomado como um ser humano individual, mas sim como uma construção
feita a partir de uma variedade de outros elementos sociais e históricos, ou seja, o “autor”
estará sempre sujeito às influências de suas circunstâncias, cultura e linguagem e ele só
se faz presente na articulação entre as relações sociais e políticas. É possível recuperar de
um texto uma série de outros.
Pêcheux distingue duas dimensões de sujeito. A primeira dimensão apresenta-se
como a “forma-sujeito”. Esta seria a forma dominante dentro de uma formação
discursiva qualquer. Trata-se do sujeito universal, canônico e estereotipado daquela
formação discursiva. Os sujeitos que tomarão lugar numa determinada formação
discursiva se aproximam ou se afastam da “forma-sujeito”. Por conseguinte, cada sujeito
32
adota uma “posição-sujeito”, postura tomada por certo sujeito em relação a este sujeito
universal. Esta posição pode divergir ou não da forma-sujeito. Dessa forma, Pêcheux
salienta que não há sujeito único, explicitando que dentro de uma mesma Formação
Discursiva é possível depreender diferentes posições de sujeito.
O esquema informacional da Teoria da Comunicação, postulado por Roman
Jakobson, também é censurado por Michel Pêcheux. Para este teórico, não se trata de
uma simples transmissão de informação entre A e B, emissor e receptor, mas sim de
efeitos de sentidos entre os locutores, visto que sujeitos oriundos de formações
discursivas distintas podem não estabelecer a mesma interpretação numa referida
“comunicação”. Nem sempre o receptor interpreta a “mensagem” do jeito que o emissor
pretende, pois como se sabe a evidência do sentido e a interpretação como mera
decodificação não constituem a perspectiva de Pêcheux.
A crítica à teoria da comunicação tem por objetivo negar a relação biunívoca
entre significante e significado. A equivalência das palavras não existe no interior da
língua, não existindo sentido único para elas. Pêcheux acredita que não é possível
depreender o sentido das palavras, senão pelo contexto discursivo no qual elas estão
inseridas. O que permite ao analista a identificação do sentido é o reconhecimento da
formação discursiva na qual o discurso está atrelado. A heterogeneidade constitui os
sentidos e ela pode existir até mesmo no interior de uma formação discursiva definida.
Isso explica que o discurso passe a ser definido pelas condições de sua produção, não
sendo mais visto como uma manifestação de caráter volitivo sem um determinante
histórico e social. Nessa via, no momento da análise, o analista não pode cair na ilusão
de transparência da linguagem, pois os sentidos podem parecer evidentes, todavia, as
palavras não têm sentidos presos a sua literalidade.
33
Reforçando a noção mencionada no parágrafo acima, Pêcheux em “Semântica e
discurso” demarca as evidências que fundam a Semântica. A noção de sentido “próprio”
e “figurado”, como nos é apresentada por esta ciência, não existe para Pêcheux, pois um
mesmo vocábulo pode ter sentidos diferentes se inscrito em formações discursivas
distintas. Os sentidos não são determinados pela língua e a evidência do sentido é, na
verdade, um efeito ideológico elementar, segundo Pêcheux. Nesse sentido, somente a
interpretação e a capacidade crítica são capazes de recuperar o sentido de um discurso e
cabe ao analista levar em conta as condições submetidas por aquele que o enuncia.
Em La Pensée, Pêcheux esclarece essa questão:
“Como todas as evidências, inclusive aquela que faz com que uma palavra « designe uma coisa » ou possua uma significação (inclusive as evidências da transparência da linguagem), esta evidência de que eu e você somos sujeitos – e de que isso não causa problema – é um efeito ideológico, efeito ideológico elementar. »17
Nesse sentido, não é possível analisar o texto como o discurso, pois o texto é uma
unidade lingüística fechada em si mesma enquanto que o discurso é visto como
dispersão de textos cuja significação só pode ser apreendida a partir da análise dos
processos de sua produção. A unidade do texto nos remete a um sujeito e a uma
instituição, enquanto que para a análise do discurso é preciso pensar nos outros discursos
possíveis a partir de um estado definido de condições. Todo discurso traz marcas de
outros ditos já feitos e, assim, ele é apenas visto como atualização de discursos
precedentes. No que concerne à análise do discurso, sirvo-me das palavras do próprio
teórico para esclarecer a questão: “... Um discurso não apresenta uma unidade orgânica
17 La Pensée, n. 151, 1970, p.30.
34
a um só nível que se poderia reconhecer a partir do próprio discurso, mas toda forma
discursiva particular remete necessariamente a uma série de formas possíveis”.18
A Análise do Discurso reside na articulação de três áreas distintas: o materialismo
histórico, a lingüística e a psicanálise de Freud. Pêcheux busca em Marx os lugares
determinados na estrutura de uma sociedade, ciência das formações sociais. O princípio
da “luta de classes” do Marx determina consideralvemente o que Pêcheux vê como
posições diferenciais capazes de caracterizar cada discurso em particular. A teoria das
transformações sociais é compreendida por Pêcheux como a teoria da ideologia. No que
concerne à lingüística, Pêcheux nunca aceitou a concepção instrumental da linguagem,
onde a enunciação sempre foi vista como um simples sistema de operações, e justamente
para romper com essa tradição, ele, filósofo de formação, decide seguir seus estudos na
área da lingüística, criando assim um novo objeto de estudo, o discurso.
Quanto a Freud, é extremamente relevante a sua elaboração de uma teoria do
inconsciente, na qual se elimina a idéia de que o sujeito enunciador é dotado de
estratégias. Pelo contrário, as implicações que estão por trás das intenções do sujeito,
muitas vezes inconscientemente, as ultrapassam. Estes empréstimos fizeram com que
Pêcheux pudesse romper e remodelar conceitos anteriores.
18 Idem, ibidem.
35
3. LÍNGUA E CULTURA: CONSIDERAÇÕES E CONTRADIÇÕES
Proponho-me a começar a análise pelo que há de mais recorrente nas redações,
visto que é no que se tem como absolutamente transparente e naturalizado que
acreditamos, ilusoriamente, na evidência de um sentido predeterminado. É pelo
apagamento de que existe uma memória discursiva que os consensos sociais são tidos
como verdades, sem que se pare para refletir sobre o processo histórico do fenômeno.
Assim, iniciarei a análise tomando como base a concepção de língua mais corrente nas
redações, aquela que aponta uma aderência entre língua e cultura. Para os estudantes de
francês, escrever sobre a língua francesa implica necessariamente em escrever sobre a
cultura francesa. Ao estudarem a língua francesa, a grande motivação por parte dos
graduandos é pela busca de um enriquecimento cultural e o conseqüente reconhecimento
num mercado de trabalho que está por vir. Os trechos abaixo resumem o que acabo de
explicitar:
“Chegar à faculdade e ter contato com a língua francesa, para mim, é ter contato com uma cultura que representa o mundo no que diz respeito ao teatro, literatura, arte e grandes pensadores.” (Francês IV-2005/1) “Abertura para o mercado de trabalho... melhores condições de emprego e de garantia de um futuro melhor.” (Francês IV-2005/1)
36
Para os estudantes, a língua francesa não existe sem a sua cultura, razão pela qual
os alunos empregam inúmeras vezes a palavra cultura para tecer imagens sobre a língua.
Entretanto, a noção de cultura presente nas redações não é unívoca. Dessa forma,
apontaremos o termo cultura em sentidos diferentes e, por vezes, contraditórios.
“... uma oportunidade de estar em contato com uma cultura diferente... compreendendo dessa forma a maneira como vivem, seus costumes”. (Francês IV-2005/1)
“... conhecer toda a cultura de um povo tão diferente, tão único, cuja história influenciou vários outros povos ao redor do mundo”. (Francês VII-2004/1) “Para mim a França é democrática, transparecendo em sua língua”. (Francês V-2004/1)
A concepção de cultura predominante nos fragmentos supracitados refere-se ao
conjunto de comportamentos, crenças e costumes que distingue um grupo social.
Conhecer a língua francesa significa necessariamente reconhecer o outro em sua
coletividade. O termo em questão tende, nesse momento, à sua dimensão etnográfica,
uma vez que falar em cultura implica em descrever um povo, uma raça e uma língua.
Trata-se de uma coletividade que possui uma atividade cultural unificada e que pode, por
sua vez, ser comparada à de outras. Nota-se a construção de uma cultura nacional
homogênea, representação que tem seus fundamentos em princípios que anulam as
diferenças culturais no interior de cada coletividade.
37
Segundo Stuart Hall, não existe qualquer nação composta por uma única cultura,
sendo todas elas híbidros culturais. O autor nos diz que a identidade nacional é uma
“comunidade imaginada” e isto se dá por serem três os conceitos que constituem o
princípio da unidade de uma nação, sendo “as memórias do passado”, “o desejo por viver
em conjunto” e “a perpetuação da herança”.
No decorrer da análise, percebi uma outra acepção fortemente mencionada pelos
alunos. Trata-se do reconhecimento de que a língua francesa é parte de um conjunto de
valores que compõe a cultura francesa e que esta língua é detentora de prestígio social,
por conta de o Brasil ter tido ao longo de sua formação a França como referência
cultural. No intradiscurso dos alunos, observa-se os seguintes comentários:
“... possibilidade de aprofundar minha cultura já que, a França, principalmente, é um país rico culturalmente...”. (Francês VI-2004/1)
“... sempre quis falar francês, aprender sobre a cultura e tudo o que está relacionado à França”. (Francês V-2004/1)
“... muita cultura, pois através da língua podemos conhecer a cultura francesa que é uma das mais ricas”. (Francês VIII-2004/1)
Interessante notar que o efeito de sentido produzido pelo vocábulo cultura nos
excertos acima nada tem a ver com a dimensão etnográfica citada anteriormente, mas
sim com o desenvolvimento chamado pelos sociólogos de “capital cultural”, ou seja,
avanço intelectual de uma determinada sociedade. Pierre Bourdieu define “capital
cultural” como o conjunto das qualificações produzidas pelo sistema escolar e pela
família. Tal noção é apresentada pelo autor de três formas distintas: uma forma
38
objetivada, os bens culturais, uma forma incorporada, hábito cultural construído por
socialização sucessiva, e uma forma institucionalizada, os títulos escolares. Os
fragmentos dos intradiscursos abaixo reforçam esta questão.
“O forte desta língua se representa de uma maneira cultural muito forte e abrangente, sobretudo nas artes como na pintura, literatura...” (Francês V-2004/1)
“... meio que me permitirá o acesso ao que tem de encantador no campo da arte”. (Francês IV-2004/2)
Notamos, nos excertos acima, como a memória discursiva exerce papel
fundamental na prática discursiva. Durante alguns séculos, a imagem veiculada era de
que a cultura francesa era mais elevada do que as demais e, por isso, não foi possível,
embora estejamos vivendo hoje um novo contexto, desfazer, em absoluto, as imagens já
sedimentadas.
Ora, encontramos também o termo cultura identificado à posse de conhecimentos.
Nesta terceira concepção, cultura parece ser uma propriedade de um indivíduo. A
obtenção de cultura, ou seja, “ser culto” tem sempre uma carga positiva, enquanto que
“ser inculto” é considerado negativo. Cultura aqui é algo adquirido “conscientemente”,
deixando entrever que “ter cultura” habilita alguém a ocupar um posto, pois “não ter
cultura” significa não estar preparado para inserir-se no mercado de trabalho, por
exemplo. Nota-se que a palavra cultura sugere prestígio social, como se “ser culto”
significasse o mesmo que “ser superior”. Dessa forma, os alunos acreditam numa
39
possibilidade de destaque, pois com o domínio da língua francesa, eles estariam
“armados”, como sugere um aluno, pra “enfrentar” o mercado atual.
“... mais um tópico para a minha cultura”. (Francês VI-2004/1)
“... uma nova cultura, um novo mundo que se abre para mim”. (Francês VI-2004/1)
“... instrumento de enriquecimento cultural...”. (Francês VIII-2004/1)
“... arma poderosa para enfrentar o atual mercado de trabalho tão competitivo e tão saturado do inglês”. (Francês IV-2005/1)
“... melhores oportunidades no mercado de trabalho. Os profissionais formados pela Faculdade de Letras em Português-francês poderão concorrer a vagas no magistério, na área de tradução, em áreas ligadas à propaganda, à publicidade, etc”. (Francês IV-2004/2)
Continuando a análise a propósito do uso do termo cultura em seu sentido
erudito, terceira acepção, verificamos certas contradições, uma vez que não são todos os
alunos que reconhecem as diversidades culturais e lingüísticas praticadas pelas
comunidades francófonas. Enquanto alguns deles associam a “Língua Francesa” a um
espaço preciso, espaço denominado “Cultura Francesa”, referindo-se precisamente à
França, outros são capazes de ressaltar as diferenças que constituem os povos de língua
francesa.
40
“Além de ser a língua oficial da França, é encontrada na África, em países da Europa, na Guiana e em inúmeros outros locais. A língua possui um número significativo de falantes”. (Francês IV-2004/2)
“Gosto de observar os seus vários dialetos da África e do Canadá, por exemplo, o que dá à língua mais importância histórica e cultural”. (Francês IV-2005/1)
“Recurso muito significativo em minha vida, pois será uma ponte para conhecimentos de países (que falam a língua); um recurso para conhecimento de outras culturas, costumes (...).” (Francês V-2004/1)
Fazemos a hipótese de que o reconhecimento da pluralidade francófona não seja
de domínio apenas de parte dos graduandos. Embora muitos alunos não façam alusão à
Francofonia e às suas representações, não acreditamos que haja alunos mais atualizados
do que outros, pois acreditamos que tudo se passa inconscientemente. O que se percebe é
que todo fato histórico significa no interior do discurso, embora a ruptura leve tempo
para ganhar seu lugar. A força do interdiscurso não permite que os sentidos sejam
alterados facilmente e, por esse motivo, muitos ainda acreditam numa cultura ideal,
reforçando o mito do estrangeiro. O prestígio atribuído à França durante alguns séculos
devido ao seu meio cultural considerado homogêneo e constante, ao seu centralismo real
e ao seu jacobinismo republicano, ainda não foi substituído pelos ideais vigentes na
sociedade pós-moderna, na qual a política de blocos e a valorização do global vêm se
tornado cada vez mais forte.
A Francofonia, por sua vez, tem como objetivo desfazer algumas idéias prontas
proferidas pelo senso comum, tal como a associação da língua francesa a uma cultura
específica. Os discursos francófonos tendem a considerar a diversidade cultural e
41
lingüística das diversas comunidades francófonas a fim de valorizar a heterogeneidade
discursiva. Além disso, a Francofonia busca, ao aceitar a diferença, sustentar discursos
que desfaçam o mito de uma monolíngua para, dessa forma, se fortalecer, visto que a
união das comunidades francófonas reforça a busca pela superação e reconquista de um
lugar já ocupado outrora.
Nas palavras de Dominique Wolton:
“Há um projeto de emancipação inegável no projeto da francofonia: a diversidade lingüística como condição primeira para a diversidade cultural e a luta contra a homogeneidade.” 19
Busca-se, com a Francofonia, a não uniformização dos padrões de cultura para
fazer frente ao contexto atual que visa estandardizar o modelo global. É esta a idéia
sustentada pelos países membros da Organização Internacional da Francofonia, ou seja,
a de que a integração mundial seja democrática e, que, a partir desta nova rede
econômica em expansão, possa existir mais respeito às diferenças dos integrantes deste
bloco.
No texto de um aluno, encontra-se uma passagem intradiscursiva que parece
oportuno citar:
“Recurso muito significativo em minha vida, pois será uma ponte para conhecimentos de países (que falam a língua); um recurso para conhecimento de outras culturas, costumes (...)”. (Francês V-2004/1)
19 In Label France, revista internacional da atualidade francesa, número 63 do ano de 2006.
42
Estão em jogo neste excerto duas das questões já levantadas. O aluno aqui é
capaz de salientar a existência de culturas de língua francesa e, ainda, ao reconhecer tal
fato, ele acredita que a diversidade pode enriquecê-lo culturalmente.
Seguindo nossa análise, podemos identificar um outro significado para o termo
cultura. Estamos, agora, diante da idéia de que numa mesma sociedade pode haver mais
de um tipo de cultura. Embora os alunos, ao escreverem seus textos, não definam a que
outro tipo de cultura eles fazem alusão, compreende-se a existência de uma outra cultura
e o grau de importância conferido à cultura de elite.
“... significa a fertilidade de um campo cultural mais rico, complexo e cujos adeptos são pessoas seletas de um nível cultural elevado.” (Francês IV-2005/1)
No prefácio do livro intitulado Langage et pouvoir symbolique de Pierre
Bourdieu, encontramos a seguinte passagem que fala sobre o processo responsável pelas
imagens de prestígio social.
“A distribuição do capital lingüístico está relacionada à distribuição de outras espécies de capital (capital econômico, cultural, etc) que definem a posição do indivíduo dentro do espaço social.”20
20 Bourdieu, Pierre. “Langage et pouvoir symbolique”. Seuil, 2001, p.33.
43
Valendo-se desta proposição, Bourdieu explica que quanto mais o capital
lingüístico de um locutor é importante dentro da conjuntura social, maior é a capacidade
deste de assegurar o seu perfil de distinção dentro do sistema de diferenças. A reflexão
proposta por Bourdieu leva em consideração que as formas de expressão mais
desigualmente distribuídas recebem maior valor, não somente porque são restritas, mas
por serem formas raras dentro do mercado.
Ainda nesse sentido, Bourdieu acredita que os indivíduos oriundos de classes
superiores são dotados deste perfil de distinção, o que lhes permite encarar facilmente o
mercado oficial. Entretanto, os demais indivíduos possuem como refúgio o sistema
educativo e, segundo o sociólogo, somente as sociedades desenvolvidas são dotadas de
instituições que tornam possíveis a acumulação dos diferentes “capitais culturas”. Assim,
trazendo para a análise tal contribuição, acredito que os alunos encaram a “aquisição” da
língua francesa como mais um “capital cultural”, pois tendo a elite francesa exercido
domínio sobre a língua durante alguns séculos, o que ficou na memória discursiva dos
alunos foi a crença de que a língua francesa é a expressão de uma sociedade que possui
perfil de distinção . Como diz um aluno, o aprendizado da língua francesa significa
“... entrada em um mundo cultural amplo... um conhecer de cultura, de arte que é próprio da elite.” (Francês IV-2005/1)
O que se observa no intradiscurso dos alunos é a reprodução de discursos
anteriores. Através de conceitos propostos por Michel Pêcheux, percebemos que os
estudantes são submetidos a uma construção ideológica, embora não sejam capazes de
44
perceber como a ideologia os interpela. Os efeitos de sentidos apresentados ao termo
cultura nos faz verificar como as palavras não estão fixas a um único sentido. Ao
considerar que a legitimação dos conceitos se dá sociohistoricamente, Pêcheux acredita
que as palavras mudam de sentido passando de uma formação discursiva a uma outra.
Para o teórico, as condições sócio-históricas determinam os sentidos, porém ele
acrescenta que até dentro de uma mesma formação discursiva pode-se identificar
sentidos diversos.
É notória a dispersão de sentidos para o termo cultura nos textos dos alunos. Embora
os alunos pertençam a um mesmo contexto, sendo todos de um mesmo curso e
instituição, há diferentes formações sociais na UFRJ. Há hoje prioritariamente alunos de
classe média baixa, mas há também os de classe média e classe média alta. Isto intervém
nas condições de produção, por isso, percebe-se o porquê de os alunos falarem sob
pontos de vista diferentes. Ainda que exista uma predominância de sentido, visto que se
tem, de modo geral, que língua e cultura são conceitos interdependentes, nem sempre a
concepção de língua e cultura é apresentada sob a mesma ótica.
Assim, por tudo o que foi dito acima quanto à variedade de sentidos atribuídos aos
vocábulos língua e cultura, percebo que há no interior de uma mesma formação
discursiva uma variedade de “posições-sujeito”. A “forma-sujeito” desta formação
discursiva seria aquela que apontaria a aderência língua e cultura, porém, as “posições-
sujeito” não são sempre as mesmas, visto que, como pude destacar, foram verificadas,
pelo menos, quatro diferentes noções que implicam tal associação.
Ainda que de um lugar teórico diferente do de Pêcheux, vale lembrar o que nos diz
Patrick Charaudeau sobre o mito de que uma língua representa inevitavelmente uma
cultura. O autor defende que não é a língua em si que é portadora de traços culturais, mas
os usos discursivos feitos pelas diferentes comunidades. Ele nega tal relação ao
45
exemplificar as particularidades que distinguem as culturas portuguesa e brasileira,
francesa e canadense, etc. Segundo o autor, os diversos modos de abordar um
determinado assunto é que são constituídos por traços de um grupo social. Dessa forma,
Charaudeau afirma que “é preciso dissociar língua e cultura e associar discurso (usos) e
cultura” (CHARAUDEAU, 1990).
Pêcheux nos diz que na Análise do Discurso, é preciso levar em consideração as
condições submetidas pelo eu enunciador, pois ele considera que os discursos são
profundamente marcados por projeções que o antecedem. Deste modo, é relevante
pensarmos nas implicações que a “aquisição” desta cultura tem para o aluno da
Faculdade de Letras, visto que ela é a “chave” de um futuro de sucesso.
Por detrás das imagens de língua e cultura presentes nos textos, torna-se possível
recuperar os efeitos reproduzidos sobre os sujeitos. Os alunos, ao privilegiarem a língua
e cultura francesas, estão necessariamente depreciando as suas culturas de formação. A
forma como este “ganho imaginário” funciona para cada aluno está ligada à imagem que
cada um faz de sua posição dentro da estrutura social. Isto remete à imagem projetada
sobre o outro e de que forma esta reflete em si mesmo. É como se os alunos tentassem
recriar sua própria identidade através de outra identidade social. Toda esta relação se dá
por conta do prestígio que a língua francesa desenvolveu ao longo dos séculos. Assim, ao
tratarem a “incorporação” da língua francesa como um “passo à frente”, os alunos
deixam transparecer que eles não se consideram tão cultos e desenvolvidos como a
sociedade francesa e, por isso, buscam adotar os modelos franceses, que supostamente
atenderiam as suas expectativas.
Assim, levando em conta que os discursos são proferidos por alunos em formação
acadêmica e que estes, dentro da realidade brasileira, ocupam um lugar de ascensão e, ao
mesmo tempo, convivem com a angústia da incerteza profissional, uma vez que ainda
46
não tiveram acesso ao mercado de trabalho, nota-se que eles buscam, através da
supervalorização de seu objeto de trabalho, a afirmação de um futuro promissor. Ao
aceitar a idéia de que todo discurso é atravessado por outros, percebe-se que há no
discurso dos alunos paráfrases discursivas, ou seja, reformulações de discursos já
proferidos antes em outro lugar acerca da herança cultural deixada pelos franceses.
3.1 O conceito de língua em manuais didáticos de FLE
Considerando que as redações foram aplicadas em um contexto preciso, sala de
aula de Francês Língua Estrangeira na Faculdade de Letras da UFRJ, sabe-se que as
imagens de língua francesa são tecidas por alunos inseridos num universo de
aprendizagem. Assim, busquei em livros didáticos de FLE o porquê de os graduandos
acreditarem que a aprendizagem de uma língua leva à aprendizagem de uma cultura.
Dentre os princípios metodológicos apresentados por alguns manuais, nota-se a grande
importância dada aos comportamentos dos franceses e aos aspectos do patrimônio
cultural francês. Nesse sentido, acredita-se que para aprender a língua, o aluno deve
necessariamente dominar uma série de informações culturais. O pressuposto para que se
atinja um significativo nível de proficiência lingüística implica em aproximar-se
profundamente de aspectos específicos da sociedade francesa.
A forma como a França se apresenta nesses manuais didáticos é diferente das
imagens veiculadas ao se estudar inglês, espanhol, alemão, etc. Enquanto os autores dos
métodos de FLE acreditam que estudar francês é necessariamente entrelaçar os conceitos
47
de língua, cultura e civilização da sociedade francesa a fim de aceder à diferença, os
livros de inglês, predominantes na cena mundial, privilegiam o sistema econômico
globalizado e, dessa forma, adotam estratégias comunicativas que possibilitam o
encobrimento da diferença, de tal forma que as especificidades culturais das diferentes
comunidades que falam inglês são apagadas.
Ao se sentir incomodada com a forma como os aspectos culturais franceses são
propagados em métodos de Francês Língua Estrangeira diante do fenômeno atual da
globalização, a pesquisadora Maria José Coracini buscou nesses métodos21 como o
francês reage à aparente homogeneização cultural decorrente da globalização. Coracini
aponta que embora exista um aparente descentramento, uma vez que os livros não se
restringem apenas às fronteiras geográficas da França, a resistência à globalização é bem
marcada. As influências externas não são negadas, porém são tratadas de forma
superficial, buscando sempre transmitir uma visão positiva e supervalorizada da história
social e política da França.
“... essa visão globalizante ou essa abertura para o mundo não coloca, num mesmo patamar valorativo, a França e os demais países de língua francesa. A França sempre aparece como o centro, um pressuposto para tudo o que envolve a língua e cultura francesas. Vimos igualmente que a imagem transmitida é de que a França influência o mundo, enquanto é muito influenciada por ele, o que certamente não condiz com a realidade, mas com o desejo do povo de preservar sua própria cultura, de apagar as influências externas, objetivando, assim, à construção de uma representação de si próprio homogênea, singular em meio às demais culturas.” (CORACINI, 2003)
21 Coracini decidiu concentrar seus estudos em dois métodos largamente utilizados para o ensino de FLE, Tempo 1 e Libre échange1.
48
As imagens reforçadas pelos manuais didáticos de que a França possui uma
história vitoriosa e, por esse motivo, sua língua e cultura são detentoras de certo valor
idealista são reconhecidas por Coracini.
“(...) O livro didático com seus textos “idílicos” e seus exercícios de língua (em geral, gramaticais) colabora para a construção de estereótipos do tipo: a França é perfeita; os franceses são muito gentis; os verbos constituem um problema para a aprendizagem da língua; o importante é falar, se comunicar, enfim, ser como os franceses (se possível, é claro...).” (CORACINI, 2003)
Vale notar que estas mesmas representações são descritas pelos alunos:
“O francês tem muitos atrativos para mim porque traz importâncias históricas e culturais que me atraem bastante”. (Francês V-2004/1)
“... língua carregada de valores. Como a influência de outros povos, até mesmo aspectos sociais, contribuem para essa língua. Representa também séculos de inovações, cultura e história.” (Francês V-2004/1)
Esta pesquisa consiste exatamente em verificar como tal imaginário foi formado e
como ele vem sendo sustentado até os dias atuais. Para tanto, precisarei abordar a
História para falar sobre como os discursos sobre a língua e cultura francesas têm sido
retomados. A memória discursiva permite que os alunos retomem ditos anteriores,
porém, sob efeito ideológico, eles reatualizam consensos sociais sem se darem conta de
49
que se trata de uma reformulação. Encontramos no artigo “L’interculturel entre mythe et
réalité” de Patrick Charaudeau a afirmação de que a associação “língua e cultura”
provém do pensamento europeu do século XIX.
Nota-se que a partir da Revolução francesa, o conceito de sujeito passivo passou a
ser substituído pelo de cidadão de direitos e, nesse sentido, tem-se uma identificação
entre o cidadão e o Estado. Nesse período, um dos requisitos que faz do homem um
cidadão ativo é a aquisição da língua nacional22. Assim, percebe-se que o imaginário de
língua associada à cultura, apresentado no intradiscurso dos estudantes, já se faz presente
no pensamento europeu há pelo menos dois séculos.
3.2 Um breve estudo dos momentos sociohistóricos que contribuem para a
formação do imaginário dos brasileiros.
Até a Revolução Francesa, a língua não legitimava uma sociedade, logo falava
francês aquele que era súdito do rei. Todavia, com a Revolução Francesa, surgem os
movimentos nacionalistas e, nas palavras de Claude Hagège, “... o patriotismo torna-se
a nova religião”23. Esse sentimento estendeu-se ao campo lingüístico, permitindo que a
língua exercesse papel crucial durante esse período. A idéia de nação moderna e de
língua nacional, tal como a concebemos nos dias de hoje, aparece somente com a
22 O conceito de língua nacional será esclarecido no próximo tópico. Ainda neste tópico, colocarei em evidência como tal idéia teve repercussão no Brasil. 23 HAGÈGE, Claude. “Le Français, histoire d’un combat”. Editions Michel Hagège, 1996, p.79.
50
Revolução e passa, desde então, a ser essencial para a efetiva distribuição dos direitos
democráticos e republicanos.
Trata-se não mais da língua da corte, mas sim da “língua da liberdade, da igualdade e
da fraternidade”. O problema era a grande diversidade de dialetos presentes na França, o
que deixava a situação lingüística do país bastante heterogênea. Era preciso adotar uma
língua nacional, uma vez que os diferentes “patois” não contribuíam para uniformizar a
nação. Assim, verifica-se que um dos princípios da revolução era a imposição da língua
francesa sobre os dialetos locais a fim de contribuir para a unificação da nação. O
período em questão é marcado por uma transformação radical no âmbito lingüístico e os
grandes responsáveis pela divulgação desse novo ideal foram o abade Gregoire e o
deputado Barrère. Estes, responsáveis pela elaboração de relatórios que denunciavam os
diferentes falares locais24, o fazem apoiados na crença de que somente a “língua pura”
daria igualdade aos cidadãos.
Parece-me interessante citar aqui as palavras de Barrère para ficar esclarecido como
o período em questão é extremamente significativo, pois, pela primeira vez, a associação
língua e identidade é estabelecida. Ao criticar o regime anterior, o autor sustenta:
“A monarquia tinha motivos para parecer-se com a torre de Babel; na democracia, deixar os cidadãos ignorantes da língua nacional, era trair a pátria. O francês torna-se a língua universal, sendo a língua dos povos. Tendo a honra de servir à Déclaration des Droits de l’homme, ele deve ser a língua de todos os
24 Os autores citados foram os responsáveis pelos famosos relatórios apresentados na tribuna da Convenção Nacional. Sob os títulos de “Rapport du comité de salut public sur les idiomes (8 pluviose an 2)” e “Rapport sur la nécessité et les moyens d’anéantir les patois et d’universaliser l’usage de la langue française”, os respectivos autores, Barrère e Gregoire, conseguem mudar o “Comité d’instruction publique” e, a partir de então, tem-se uma nova gramática da língua e é enviado a cada região onde se falava qualquer outro idioma que não fosse o francês um professor de língua francesa. Assim, no período conhecido por La Terreur, os relatórios contribuem para a instabilidade e caos provocados por uma série de outros motivos, uma vez que, no que tange aos diferentes dialetos, é exercida uma repressão.
51
franceses. (…) Em um povo livre, a língua deve ser uma e a mesma para todos.” 25
Nesse sentido, podemos dizer que, no final do século XVIII, com a célebre “Queda
da Bastilha”, começa a imperar uma profunda transformação no que concerne a visão
política dos franceses. O povo passa a se identificar diretamente com o Estado e isso
explica o início de uma fase que ganha força no século seguinte. Segundo Stuart Hall, o
conceito de cultura, concebido como identidade nacional, foi difundido pela tendência
romântica do século XIX.
« O conceito de cultura funciona mais ou menos como um eufemismo da palavra raça. Alguns acreditam até que essa sinonímia (contestável) dos dois termos já estava inscrita na idéia de cultura desenvolvida pelos pensadores românticos do século XIX. » 26
A Revolução despertou esperanças, entretanto ela produziu decepções. No período
que se convencionou chamar de “mal du siècle”, os poetas, marcados por uma profunda
crise existencial, se sentem decepcionados, pois a busca pelo sentido da vida, por
influência dos filósofos do século anterior, não se concretiza. Essa problemática dá
origem ao romantismo francês, estilo literário que tem como objeto central o indivíduo
com seus sentimentos. O princípio da subjetividade evidencia um sujeito em busca de
sua identidade. Assim, tentou-se recuperar o patrimônio cultural francês e propagou-se o
conceito de língua como identidade da nação.
25 APUD HAGÈGE, p. 83 e 84. 26 Hall, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva – Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
52
Nesse sentido, analisando o contexto brasileiro do final do século XVIII e início do
século XIX, percebemos a marcante presença da França na história do período. Os
princípios revolucionários franceses chegam à colônia portuguesa e estimulam os
movimentos separatistas brasileiros. Segundo o historiador Luis Villalta27, as bibliotecas
de colégios eram proibidas, entretanto muitos eram os livreiros em atividade e, com isso,
existiam muitas bibliotecas particulares e seus acervos eram, em grande maioria, em
francês. O historiador acrescenta que os vários intelectuais envolvidos na Conspiração de
1789 possuíam acervos particulares. “José de Alvarenga, por exemplo, tinha 17 livros,
Tomás Antônio Gonzaga 83 e Cláudio Manoel da Costa 383. Já o cônego Luis Vieira da
Silva possuía cerca de 800 volumes”.
Nota-se, assim, a familiaridade de muitos intelectuais brasileiros com a língua
francesa já no século XVIII. Os jovens pertencentes às elites locais deveriam
obrigatoriamente fazer estada em Portugal ou em Paris para, dessa forma, se ter uma
educação qualificada e, de retorno, serviam de intermediários culturais. Outro exemplo
que revela como a língua e a inspiração francesa estavam presentes entre nós é o
movimento conhecido como Conjuração Baiana de 1798. E, como nos diz João
Pimenta, professor da USP, “o que já era suficiente para fazer o fantasma francês
assombrar o governo local (...) adjetivos como “afrancesado” ou “jacobino” passam a
ser utilizados para desqualificar pessoas acusadas de delitos de todo tipo.”28 As
autoridades do Império Português passam a averiguar e punir aqueles que possuíam
bibliotecas particulares nas quais obras francesas se faziam presentes. A censura frente
aos escritos de Voltaire e Rousseau era abertamente divulgada. Muitos documentos
ligados a acontecimentos da Revolução foram apreendidos, pois eles representavam
possibilidades de mudança política.
27 História Viva, número 9, 2005, p.29. 28 História Viva, número 9, 2005, p.30 e 31.
53
Com a abertura dos portos em 1808, a Inglaterra passa a dominar a economia
brasileira. Esse tratado comercial com a Inglaterra faz Portugal perder sua independência
econômica. Entretanto, o francófilo diplomata português, conhecido por conde da Barca,
acreditou que a cultura francesa poderia servir de “consolo” diante da forte atuação do
comercio inglês e, por isso, tem a iniciativa de chamar um grupo de intelectuais
franceses para enriquecer a capital portuguesa. “Se à Inglaterra coube dominar por mais
de cem anos a economia brasileira, à França caberá essa primeira colonização cultural”.29
Embora seja contraditório, visto que esta atuação muito contribuiu para a nossa
independência, de fato, a vinda da Missão Francesa em 1816 deixou marcas
significativas na vida cultural brasileira. A fundação da Academia de Belas Artes no Rio
de Janeiro e os seus ensinamentos neoclássicos tiveram forte influência sobre nós e a
escola literária romântica francesa serviu de modelo aos escritores brasileiros. Alguns
escritores, influenciados pela necessidade de glorificar a nação, tentam valorizar a língua
nacional. José de Alencar, por exemplo, defensor de uma língua brasileira, acreditava
que a mistura da tradição européia com a cultura indígena constituía a base étnica da
nação brasileira. Em artigo intitulado “A comédia brasileira”, o escritor afirma:
“Não achando pois na nossa literatura um modelo, fui buscá-lo no país mais adiantado em civilização, e cujo espírito tanto se harmoniza com a sociedade brasileira: na França.”
Em Triste fim de Policarpo Quaresma a mesma relação é apontada. Essa
construção de uma língua única como instrumento de identificação nacional era a crença
do personagem criado por Lima Barreto. Quaresma, patriota fervoroso, considerava o
tupi-guarani a verdadeira expressão nacional. Este chegou a ser internado em um
29 História Viva, número 9, 2005, p.45.
54
hospício, ao tentar fazer do tupi a “língua oficial e nacional” do povo brasileiro. Assim,
verificamos como a idéia de unidade nacional alicerçada numa língua idealizada pura e
única se faz presente no imaginário brasileiro.
O período que corresponde ao romantismo na literatura é, segundo Leila Perrone-
Moisés, o mais idílico nas relações entre os dois países. O grande interesse em relação ao
novo fez com que muitos escritores brasileiros se avolumassem com imitações servis. O
que não acontece com autores como Machado de Assis, Lima Barreto e José de Alencar,
visto que estes, ainda que muito influenciados pela tradição literária proveniente da
França, souberam retirar de grandes autores franceses aquilo que permitia desenvolver as
potencialidades brasileiras.
Ao fazer um estudo panorâmico da imagem da França na cultura brasileira, Leila
Perrone-Moisés chama a atenção para as muitas rejeições em busca de uma identidade
nacional. Assim, ela comenta que « cada momento de forte influência francesa é
igualmente recusa dessa influência, por parte da intellegentzia brasileira. »30 A
pesquisadora nos mostra que as relações culturais não são tão passíveis de aceitação
como é afirmado habitualmente e, como é sabido, os ilustres poetas brasileiros souberam
adaptar os modelos franceses aos nossos padrões socioculturais.
Um outro exemplo muito interessante, para nosso tema, é o personagem Rubião do
romance Quincas Borba. Este, ao enlouquecer, acredita ser o imperador francês
Napoleão III. Eis aqui mais um exemplo de nossa admiração desmedida pela cultura
francesa.
Apoiando-me na idéia de que a associação língua e cultura é proveniente da França
pós-revolucionária, período em que, dentre os diversos fatos que transformaram a visão
política do mundo ocidental, o conceito de língua como expressão individual é
30 PERRONE-MOYSÉS, Leila. Galofilia e galofobia na cultura brasileira. In : Gragoatá. Niterói, 2001, p. 41, n.5.
55
substituído pelo de língua expressão de uma coletividade que constitui uma identidade
nacional, busquei como essa idéia foi transferida para o imaginário dos brasileiros.
Assim, tomando por fonte os textos já citados acima, reconheço que o nosso profundo
interesse pelas ideais franceses nos permite acolher tal sustentação simbólica, razão pela
qual se acredite, até hoje, nos estudos da civilização francesa como imprescindível para a
aprendizagem do francês.
A teoria na qual a pesquisa se apóia tem como fio condutor a crença de que a
linguagem só funciona na sua relação com a história. Nessa perspectiva, toda atualização
discursiva está vinculada às práticas sociais e somente a crítica dá ao sujeito a
capacidade de alterar discursos preexistentes e criar novos sentidos. Cairíamos em
contradição se só acreditássemos em reformulações parafrásticas, pois não haveria lugar
para o novo. Pêcheux nos diz que se a alteração de sentidos não fosse passível de
ruptura, não haveria transformação. Logo, a interpretação e a capacidade de reflexão
podem fazer intervir o diferente.
Nas metodologias de FLE, a questão cultural já se apresentou de forma diferente
da abordagem comunicativa propagada atualmente. Hoje, acredita-se na necessidade de
se estudar as particularidades culturais de um determinado povo pra melhor dominar a
sua língua. Como já vimos, tal tradição tem suas origens numa época em que língua e
cultura eram indissociáveis. Porém, se pensarmos no índice de insucesso que acerca a
aprendizagem da língua estrangeira, é notório que não são significativos os resultados
provenientes desses estudos, pois embora a competência cultural seja reconhecida pelos
manuais didáticos como parte de um conjunto de competências que possibilitam um
aperfeiçoamento lingüístico, esta competência não está numa relação tão direta com a
competência lingüística e as especificidades culturais nos manuais são em geral
apresentadas muito superficialmente.
56
Ainda hoje, com a elaboração de diversos métodos e abordagens, a dificuldade
que enfrenta alguns alunos frente a este nosso mundo de significações é inegável. Nos
textos abaixo, verificamos como é árduo o exercício de se expressar em língua francesa.
“... é uma língua cheia de enigmas a serem desvendados. É simplesmente uma língua difícil de aprender, com muitos pormenores que precisam ser estudados com bastante cuidado pois fazem uma diferença enorme no total.” (Francês IV-2004/2)
“As dificuldades têm sido, por vezes, maiores que o prazer. Não vejo possibilidade de desistência, a solução é estudar com o recurso reduzido que tenho, a sala de aula”. (Francês IV-2004/1)
“Não posso caracterizar o francês como uma língua fácil, muito pelo contrário, não sei nem mesmo se um dia terei grande afinidade com ela”. (Francês IV-2005/1)
“Não é uma língua fácil de ser aprendida, mas bastante complexa”. (Francês IV-2005/1)
Segundo Christine Revuz, a aprendizagem de línguas estrangeiras se caracteriza
por sua taxa de insucesso, porém o sucesso do inglês é explicado pelo fato de não se
estudarem as particularidades do inglês, mas sim pela criação de um código construído a
partir do menor denominador comum, código que não representa a língua natural de uma
comunidade social. Trata-se, antes, de uma adaptação ancorada no princípio da
uniformização. A teórica Christine Revuz questiona:
57
“Aprender inglês é aceder à diferença britânica, americana, neozelandesa etc, ou é dar-se os meios de partilhar com um grande número de pessoas os lugares comuns científicos, econômicos, ideológicos que criam, além das diferenças nacionais, uma semelhança ancorada na hegemonia de um sistema econômico?” 31
Na medida em que essa língua artificial toma conta do modelo de globalização
predominante na cena mundial, criou-se um discurso político francófono que tem por
objetivo recuperar o estatuto do francês através do estudo da diferença entre as culturas e
indivíduos falantes da língua francesa. A heterogeneidade discursiva sustenta a posição
política adotada pela Francofonia. Ao contrário do que se vê em muitos métodos de
Francês Língua Estrangeira, a Francofonia privilegia o intercultural. Mas, como sustenta
Coracini, isto ainda é um engano, pois embora o discurso francófono preze pela
diversidade, a França está sempre em ascendência.
Segundo Charaudeau, o intercultural é “o domínio no qual ocorre a conquista da
identidade”. O autor acredita que o reconhecimento do Outro facilita a aceitação do
Outro pela sua diferença. A revista Label France traz, em seu numero 63, uma imagem
importante veiculada sobre a francofonia.
“Eles formam não um bastião de defesa da língua e do pensamento franceses, mas constroem, pelo contrário, um universo plural e mestiço. (...) E é dessa mistura, dessa polifonia, que se alimenta a francofonia. Oposto de um ato de fechamento em si mesmo, de uma postura defensiva, ou de uma ação impregnada de conservadorismo..”32
31 REVUZ, Christine. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio.In: SIGNORINI, Inês (Org). Língua(gem) e identidade. Campinas São Paulo: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2001. p. 228. 32 Fragmento retirado da revista internacional da atualidade francesa, Label France, número 63 do ano de 2006, p. 41.
58
Martine Abdallah-Pretceille, por exemplo, sustenta a hipótese de que “é improvável
que conhecimentos factuais sobre a cultura (...) favoreçam a comunicação, ou seja, o
encontro com o Outro”.33 A antropóloga acredita que “a cultura é objeto de
manipulações múltiplas que não autorizam uma análise a partir de um simples
conhecimento descritivo das culturas.” A abordagem cultural, presente nos métodos de
ensino de FLE, não facilitaria o aprendizado. Não é o simples fato de a cada unidade o
método apresentar pontos característicos da sociedade francesa que permitiria um melhor
aperfeiçoamento lingüístico. No que se refere ao corpus desta pesquisa, os alunos falam
da necessidade e, ao mesmo tempo, da dificuldade de se alcançar um aperfeiçoamento
lingüístico.
“... o francês é um constante desafio e sempre tenho a impressão de nunca ser capaz de dominá-lo com perfeição”. (Francês V-2004/1)
Isto posto, acredito que por detrás do aperfeiçoamento lingüístico explicitado
pelo aluno, existe uma outra questão de maior relevância. Por tudo o que já foi dito por
eles anteriormente, vejo que o objetivo aqui é o domínio da língua como instrumento
capaz de garantir um enriquecimento cultural.
Tem-se, a partir da reflexão proposta por Pretceille, que a abordagem cultural em
sua dimensão etnográfica deve ser substituída pela abordagem intercultural para que,
33 ABDALLAH-PRETCEILLE, Martine. Compétence Culturelle, Compétence Interculturelle : pour une anthropologie de la communication. In : ________. Le Français Dans le Monde: recherches et applications. Paris : Hachette, 1996. p. 28-38.
59
dessa forma, a aprendizagem se torne mais eficaz. Embora seja sobre o interdiscurso que
nossos sentidos sejam construídos, é possível destacar uma ruptura no momento em que
novos discursos surgem, uma vez que eles são sempre possíveis de se tornarem um
outro. Percebo aqui que a polissemia, entendida como processo discursivo que garante a
criatividade na língua pela intervenção do diferente, permite o deslocamento das regras,
ou seja, identifico aqui um movimento de mudança, pois se trata, a partir de então, da
aceitação de que não são os saberes culturais que permitem uma melhor prática
comunicativa, mas sim o reconhecimento do modo como o indivíduo utiliza a cultura em
situação de comunicação, sendo necessário, no entanto, desenvolver uma competência de
análise, pois os fatos culturais servem para compreender o que está em jogo na
comunicação.
Além disso, tal posicionamento faz com que o indivíduo reconheça o espaço do
Outro numa perspectiva plural, aceitando as variações culturais e lingüísticas que
configuram o espaço de um idioma. Pretceille acredita que o reconhecimento do Outro
deve acontecer a partir de uma relação de intersubjetivdade, ou seja, aprender uma língua
estrangeira é conhecer o Outro com a condição de não se ter uma valorização do
estrangeiro que deprecie o nacional. Nessa perspectiva, conhecer uma língua estrangeira
nos permite ter acesso a um novo mundo cultural que se exprime naquela língua para,
dessa forma, compreendermos e respeitarmos práticas culturais diferentes das nossas e
não para nos transformarmos no Outro.
Continuando minha análise, deparei-me com o seguinte trecho:
“a língua francesa representa o meio de comunicação da deslumbrante cultura que é a francesa.” (Francês IV-2004/2)
60
Nota-se, mais uma vez, a insistência num encantamento que a língua francesa
poderia oferecer. Essa representação que valoriza o estrangeiro é notável também nos
relatos dos viajantes brasileiros à França, o que, aliás, não se dá de forma neutra, visto
que, como já foi exposto, o desejo inato de aproximação com a cultura francesa se
caracteriza por desdobramentos simbólicos constituintes da identidade brasileira. Na
primeira metade do século XX, a literatura ganha um novo gênero no Brasil, aquele
conhecido por literatura de viagem, na qual escritores relatam suas experiências no
exterior.
A idéia apresentada pelo aluno é também recorrente no olhar do escritor-viajante.
Em muitos dos livros do gênero, a França é idealizada. O olhar daquele que possui uma
cultura considerada inferior e o seu desejo eufórico de estar em contato com a
“deslumbrante” cultura francesa é tão presente nos relatos de viagens que escritores
como Nestor Vitor e Tomás Lopes34 criticam essas imagens desprovidas de reflexões.
Estes acreditam que o idealismo democrático a que tanto aludem tais escritores deve ser
repensado e retrabalhado.
34 Nestor Vitor e Tomás Lopes são reconhecidos por Sandra Natrini, professora integrante do Núcleo de Pesquisas Brasil-França da USP, como pertencentes ao que se convencionou chamar de “literaturas de viagem”. Seus respectivos livros citados pela professora na Revista História Viva, p. 65, são Paris, 1911 e Corpo e alma de Paris, 1909. Buscando reforçar tal idéia, Sandra Natrini diz: “Permeado pelas idéias positivistas, e sem ocultar o complexo de inferioridade do intelectual bárbaro, Nestor Vitor debate-se entre a convicção de que o escritor de uma civilização menor jamais poderia escrever um livro original e com idéias próprias a respeito da Cidade-Luz e a visão da necessidade de o mesmo não se reduzir a um mero repetidor de idéias”. Idem, p.66.
61
3.3 O fenômeno da globalização e as “crises identitárias”.
Todavia, a eclosão da Primeira Guerra Mundial vai conturbar os princípios comuns
ao Ocidente e, em conseqüência disso, tem-se uma ruptura dos valores tradicionais.
Nesta mesma época, o francês passa a não ser mais a língua da diplomacia, pois com a
decisiva postura adotada pelos Estados Unidos para o término da Guerra, o inglês ganha
força internacional. Os efeitos promovidos pela Guerra fazem surgir os movimentos
cosmopolitas, as vanguardas européias e o modernismo. Atraídos pela arte e pelo
mercado internacionais, intelectuais de diversos países se reúnem em Paris e são
influenciados pelos movimentos em voga da época. No caso do Brasil, tais movimentos
tiveram grande repercussão, porém buscou-se, ainda que por influência de uma tradição
francesa, valorizar a identidade nacional, isto é, apostou-se que se deveria atingir o
universal através do singular, ou seja, por meio das tradições populares. Nas palavras de
Mário de Andrade: “Precisamos ser nacionais para que possamos ser universais”35.
Para refletir um pouco mais sobre o que foi dito por Mário de Andrade, debrucei-me
nos estudos de Tierry Gasnier sobre o local e o global36. As palavras do poeta brasileiro
parecem ser um eco das formulações desenvolvidas a partir de o século XIX na França.
Paralelamente a elaboração da “historia nacional” francesa, existiu um acentuado
enfoque dado ao processo de constituição dos patrimônios locais.
“A partir da Revolução, as representações do espaço francês, do todo que ele forma e das partes que o constituem, se organizam em torno dos dois
35 História Viva, número 9, 2005, p.81. 36 GASNIER, Thierry. “Le local – Une et divisible”. In : Les lieux de mémoire. Tome III. Les France, 2. Traditions. Paris, Gallimard, 1992.
62
termos, opostos e complementares, o geral e o particular, o local e o nacional.” 37
Como faz questão de frisar Gasnier, o lugar acordado às especificidades locais teve
força determinante na construção do pensamento nacional identitário francês. A questão
era vista como a heterogeneidade fundamental para a constitutiva uniformização
nacional. As artes e tradições populares passam a ser compreendidas como riquezas
singulares fundadoras da identidade francesa. O espaço local é reconhecido como o
espaço da memória, já que ele permite uma aproximação às origens.
Nos primeiros meses da Revolução, o território francês é reorganizado
administrativamente de forma bem diferente daquela imposta pelo Antigo Regime. A lei
de 14 de dezembro de 1789 assegura a descentralizarão do poder, dissociando a
competência do Estado dos poderes locais. Entretanto, esta nova disposição geográfica é
radicalmente rompida a partir de 1973, momento em que o movimento federalista
prevalece em busca de uma coesão territorial, pois o nacional deveria ser reprodutor de
unidade e, com isso, todas as particularidades e diversidades tornam-se inaceitáveis. Tal
ruptura também é explicitada nos estudos sobre “politique de la langue” de Grégoire,
1790. O bispo Grégoire, como já citado anteriormente38, buscou acabar com os dialetos
locais, ao acreditar que o local era a antítese do nacional.
Desde as últimas décadas do Antigo Regime, muitos foram os movimentos de
reivindicação pelas autonomias locais, porém a idéia de redescoberta do nacional pelo
local só é realmente afirmada com a Terceira Republica. Embora os valores republicanos
tenham se constituído nas tradições jacobinas de centralização, com a Terceira
República, percebe-se, de fato, uma profunda mutação. Há uma passagem nas primeiras
37 Idem, p.465. 38 Ver página 46 e 47 do Capítulo 3.2.
63
páginas de Foyer Breton de Émile Souvestre que esclarece a idéia de que as tradições
devem ser privilegiadas para que o conceito de nação seja afirmado,
“Se a história é a revelação completa da existência de um povo, como escrevê-la sem reconhecer aquilo que há de mais característico nesta existência? As indicações sobre a vida íntima de uma nação se encontram principalmente nas tradições populares”39.
Como se pode perceber, o espaço francês passa a se organizar em duas categorias
complementares, o local e o nacional. Sob o regime de Napoleão III, tem-se a
“redescoberta do território” e o local torna-se o fundamento capaz de definir a França.
Como diz Gasnier, “O espaço local torna-se a pedra angular de identificação do fato
nacional”.40
Tal mudança justifica, aliás, a difusão das particularidades que constituem a França.
A importância dada às potencialidades contidas na infinita diversidade francesa
proporciona novas representações do espaço francês. Assim, como produto do “poder
periférico” tem-se a criação das “sociétés savantes” em diversas cidades, a multiplicação
dos museus nas províncias, um grande número de estudos sobre as tradições locais, a
produção de cartões postais, a abertura de escolas regionais de pintura, a defesa dos
falares locais e a promoção de obras literárias em línguas vernáculas, etc.
Ora, com o advento da Primeira Guerra, passou-se a buscar o apagamento dos traços
característicos do local em prol da cultura dominante. Nesse sentido, o livro “A
identidade cultural na pós-modernidade” de Stuart Hall teve relevante contribuição à
39 APUD GASNIER, Thierry. “Le local – Une et divisible”. In : Les lieux de mémoire. Tome III. Les France, 2. Traditions. Paris, Gallimard, 1992, p. 500. 40 Idem, p.504.
64
presente pesquisa, pois neste o autor traz à tona questões sobre a mudança estrutural da
sociedade moderna.
“Na medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural”. (HALL, 2005)
A reflexão acima nos faz pensar sobre o porquê de existir a necessidade, por parte
dos alunos, de preservar a cultura francesa, de apagar as influências externas e de
supervalorizar a sua história de formação.
“... representa junção de cultura e grande desenvolvimento. Na realidade, a riqueza da língua nada mais é que o reflexo de um país culto e transformador de um povo que lutou e luta por transformações sociais, industriais e científicas”. (Francês V-2004/1)
Por tudo o que já foi dito sobre a França, é sabido que este país é o principal
difusor da busca pela exaltação de seus valores tradicionais, colaborando para a
representação ideal de sua língua e cultura universais. Embora a França seja país
membro da Organização Internacional da Francofonia, organização caracterizada pelo
humanismo crítico, considerando que cada um deve ter o direito de autodeterminar sua
cultura, deparei-me, mais uma vez, com uma contradição, pois me parece que toda a
relação da França com a Francofonia ainda é bastante superficial.
65
Os alunos, sob efeito ideológico, acreditam numa comunidade unificada, pois o
imaginário de uma identidade nacional compactada ainda é mais forte e, por isso,
buscam a afirmação da língua e cultura francesas. Além disso, quem tem prestígio
cultural aos olhos dos alunos é a França e não os países africanos... Envolvidos por
estereótipos de que a França é detentora de muitos prestígios sociais, os alunos temem
que as culturas sejam reduzidas e que a língua francesa seja substituída pela língua
franca internacional, visto que o sistema atual tende a uma homogeneização global.
Embora todos saibam que hoje não há este risco, prevalece na memória dos alunos, a
visão de que a globalização leva inevitavelmente à homogeneização cultural.
O grande temor dos alunos é a perda das identidades e da conseqüente
uniformização cultural que acarretaria perda de prestígio do bem cultural que pretendem
adquirir. Como pode-se observar,
“Apesar de o francês ter perdido sua soberania, a língua ainda aparenta exercer um fascínio ao redor do mundo”. (Francês V-2004/1)
Entretanto, podemos, a partir de Hall, propor um novo olhar sobre o que é dito
pelos alunos. O autor acredita que na medida em que a homogeneização global se
estabelece, há certamente, por outro lado, uma fascinação pelo diferente e pela
alteridade. Isto posto, as chamadas “crises identitárias”, que questionam a idéia clássica
de identidade nacional como algo fixo passam a adquirir uma carga positiva., pois
segundo o sociólogo,
66
« Há, juntamente com o impacto do global, um novo interesse pelo local. Assim, ao invés de pensar no global como substituindo o local seria mais acurado pensar numa nova articulação entre o global e o local. » (HALL, 2005).
Todavia, por mais matizadas que sejam essas noções de cultura segundo Hall,
para o senso comum do qual os alunos participam as culturas são “compactas”, têm
“espessura”. E é importante que seja assim, pois é esta “espessura” da cultura francesa
que traz prestígio e distinção a quem a detém. É por meio deste “ganho” que será
possível, no imaginário dos alunos, “diferenciar-se” dos demais membros de sua
sociedade.
Conclui-se, a partir da discussão acima, que embora os alunos busquem preservar
língua e cultura francesas frente ao modelo globalizado, é improvável que a globalização
vá simplesmente destruir as identidades e culturas nacionais. Teremos, pelo contrário,
novas identificações « globais » e novas identificações « locais ». Com a uniformização
dos modos de vida, o interesse pelo singular pode vir a ganhar um verdadeiro impulso.
3.4 O “charme francês” e suas implicações.
O charme do povo francês associado à beleza da língua também é uma das
imagens freqüentes nos discursos dos universitários.
67
“O francês me transporta à elegância, ao romantismo, à França”. (Francês IV-2004/1)
“... o ar sóbrio, a língua romântica, os ares de antiguidade”. ( Francês IV-2004/2)
“... língua que se caracteriza por sua elegância”. (Francês IV-2005/1)
“Existe todo um glamour nesta língua e talvez seja por isso que tenho um amor especial por ela”. (Francês IV-2005/1)
“... é a língua mais charmosa”. (Francês V-2004/1)
Os excertos acima mencionados sugerem que traços característicos do povo
francês propiciam à língua sofisticação, elegância e originalidade. Os estudantes, assim
como Condillac e os defensores da língua do século XVII, acreditam que o « esprit
français » transparece na língua. Recuperamos este mesmo discurso através das palavras
de Condillac:
“O gênio de uma língua é determinado pelo caráter do povo que a fala e este, por sua vez, é determinado pelo clima e pelas condições políticas (governo)”.41
Acreditando que o lugar de prestígio ocupado pela língua, por conta da difusão
francesa, é uma idéia corrente na memória dos brasileiros, percebo que a paráfrase
discursiva aqui é o processo responsável por tal produtividade na língua. Sendo a
41 TRABANT, Jüngen. Et le Génie des langues ? PUV, Saint-Denis, 2000. p.85
68
produtividade entendida como manutenção de discursos anteriores que se estabelece por
reformulação, os alunos reproduzem algo que já era legitimado pelo classicismo francês.
Ao analisarmos guias e roteiros turísticos sobre a França, constatamos as mesmas
imagens veiculadas sobre a capital francesa. A publicidade que se segue, cujo título é
“Paris Romântica”, nos remete a imagens de língua semelhantes àquelas propostas pelos
alunos.
“Quem está apaixonado, não pode deixar de passar uns dias em Paris. A cidade é paixão pura. Brincam até dizendo que o amor está sempre no ar francês. Casais de todas as idades passeiam de mãos dadas pelas ruas principais da capital francesa. Os programas obrigatórios são ver o pôr do Sol na Pont des Arts, namorar na Pont Neuf onde todos param para trocar beijinhos, jantar ao som de uma orquestra num barco sobre o Sena, jantar no La Tour D´Argent no Quartier Latin ou no Le Ciel de Paris na Tour Mont Parnasse (isso se você tiver com um dinheiro extra no bolso). Se não der para fazer nada disso, que tal abrir uma champagne nas margens do Sena?” 42
Embora o discurso propagado faça parte do “senso comum” e reitere
estereótipos sobre a Cidade Luz, é interessante notar como, segundo os universitários, a
língua adquire exatamente as mesmas características veiculadas sobre a França. A idéia
de que a capital da França agrada a todos por seu ar romântico e por sua sinergia artística
se faz presente tanto na publicidade quanto no imaginário dos alunos. Os alunos
transportam o imaginário romântico francês à língua francesa. Assim, notamos que os
discursos circulam. Essa reformulação de um já-dito esquecido só se torna possível, pois
o sujeito toma a palavra ao apropriar-se de uma memória inerente à linguagem.
42 http://www.folhape.com.br/materia.asp?data_edicao=17/10/2005&mat=34344
69
Dando prosseguimento à análise das imagens de sujeito que advêm dessas imagens
de língua, percebo que os alunos, ao reconhecerem os franceses como elegantes, finos,
sofisticados, cultos, etc, buscam “incorporar” a língua desta comunidade detentora de
prestígio. Ela funciona como um “up grade”, segundo o imaginário brasileiro, visto que
esta “assimilação” permite maior proximidade com os modos polidos, refinados e até
transformadores dos franceses.
Como nos diz Jürgen Trabant, “no discurso mundano, o gênio do francês43 se
manifestava em qualidades como suavidade (dos sons), clareza (dos conceitos),
vivacidade (do estilo), portanto nas qualidades retóricas.” 44 Tal crença, sobretudo
quanto à questão musical difundida pelos franceses, caracteriza o imaginário brasileiro.
Observemos alguns fragmentos:
“... para algumas pessoas representa ter um ar sofisticado de educação e de cultura, é ter um tom suave ao falar. Talvez não seja esta a resposta esperada, mas para mim a grande representatividade da língua está exatamente nisso, em um falar sutil e educado, cheio de cultura e histórica política.” (Francês V-2004/1)
“... língua belíssima quanto à sonoridade”. (Francês IV-2004/2)
“... o que mais encanta é a sonoridade de seus sons, ou seja, sua pronúncia”. (Francês IV-2004/2)
“... além de linda e melódica”. (Francês IV-2004/1)
43 Para falar melhor sobre como este conceito foi desenvolvido na França, retomarei esta questão no próximo item, O “gênio” da língua francesa. 44 TRABANT, Jüngen. Et le Génie des langues ? PUV, Saint-Denis, 2000. p.81.
70
“... gosto muito ... da sua fonética” (Francês IV-2004/1)
“... representa a realização de falar um idioma que é o mais belo no que diz respeito ao som, fonética”. (Francês IV-2005/1)
“... muito rica e envolvente (talvez pelo ritmo) o que desperta curiosidade...” (Língua Francesa VIII-2004/1)
A obra de Marc Fumaroli, 1986, que considera a Academia, a Conversação e o
Gênio da língua, as três instituições literárias francesas, nos permite compreender como
o imaginário brasileiro se sustenta. Considerando apenas a Conversação, uma vez que
nela encontramos a base dos discursos mencionados, verificamos como a expressão oral,
considerada como uma atividade literária por Sainte-Beuve, contribui para a formação de
um mito de musicalidade singular. A arte da conversação caracteriza a atual beleza
musical descrita pelos alunos. Como nos diz Madame de Staël:
“Em todas as classes, na França, sentimos a necessidade de conversar, a fala aqui não é somente, como alhures, um meio de comunicar suas idéias, seus sentimentos, e seus negócios, mas sim um instrumento com o qual gostamos de brincar, e que desperta os pensamentos, como a música em alguns povos, e os licores fortes em outros povos.” 45
Recuperamos este mesmo discurso através das palavras de Voltaire:
45 Mme de Staël, De l’Allemagne, éd. S.Balayé, Paris, Garnier Flammarion, 1968, Première partie, chap.XI, « De l’esprit de Conversation ».
71
“De todas as línguas da Europa, o francês dever ser a mais geral, pois ela é a mais apropriada à conversação: ela adquiriu este gênio através do povo que a fala”.46
No que concerne a Conversação, percebe-se que a fala é construída a partir da
escrita. Como a variante escrita é considerada a variante de prestígio, a língua da corte
aproximava-se da língua escrita. No século XVIII, as conversas de salão se constituíam
numa arte. Os registros da fala eram moldados na língua escrita, logo a arte da tomada
da palavra estava estreitamente ligada ao modelo da língua escrita.
Até hoje, o valor que se atribui à tomada de palavra é fato bastante conhecido na
França. Privilegia-se, em primeiro lugar, a qualidade da palavra, a organização do
discurso e o lugar dos articuladores, o que nos permite verificar a influência dos
princípios da retórica clássica nos comportamentos discursivos dos franceses. Assim,
acredito que a imagem de língua melódica que se adota para falar do francês não é, de
fato, remetida à sonoridade da língua, visto que as referências orais são sempre o escrito.
O mais importante aqui é ressaltar que, no que se refere à questão musical, tem-se um
retorno ao já-dito, pois as imagens que os alunos fazem do francês são caracterizadas por
discursos já proferidos pelos próprios franceses.
46 Voltaire. Os Pensadores. "Dicionário Filosófico”. São Paulo: Abril Cultural.
72
3.5 O “gênio” da língua francesa
Presente no imaginário francês até hoje, o mito do “gênio” da língua francesa, foi
difundido na Europa a fim de a língua ser considerada o latim dos modernos. Desde o
Renascimento, esse « je ne sais quoi » próprio à língua francesa, como propõe Du
Bellay, sustenta o imaginário francês. A legitimação da língua francesa sé dá por meio de
argumentos baseados na crença de universalidade, de clareza, de beleza e de grandeza,
todos de ordem natural. Aliás, os vocábulos “génie”, “esprit” e “naturel” circulavam na
França como quase sinônimos. Tais condições proporcionaram a crença do Mito do
Gênio da Língua desde o início do século XVI, o que constitui a representação da
identidade do povo francês até hoje.
As diferenças de imaginários brasileiro e francês, aqui estudados, são caracterizadas
pelas diferentes formações ideológicas, visto que os sujeitos ocupam posições diferentes
dentro de formações sociais também distintas e, com isso, estabelecem diferentes
relações com a história de seu país, e desta com outros países. A “evidência” de um
“gênio francês” não significa para um brasileiro o mesmo que para um francês. Logo,
sabendo que estamos diante de duas realidades e percebendo que não há regularidade
entre elas, identifico aqui formações discursivas diferentes.
Duas das considerações levantadas por Rivarol, em 1784, possibilitaram o
fascínio exercido pela língua francesa nos séculos posteriores ao Renascimento e
reafirmavam que seu prestígio se deve à coerência natural relativa à ordem das frases e à
musicalidade da língua. Rivarol, em seu Discours de l’universalité de la langue,
73
expressa sua convicção da objetividade da língua francesa, uma vez que se tratava de
uma língua de ordem direta.
Acreditando que a língua obedecia a uma ordem direta e necessariamente clara,
cria-se a crença da lógica da “ordem natural” das frases, sujeito-verbo-complemento.
Esta é a postura argumentada pelo autor a fim de provar a clareza e racionalidade da
língua. O mesmo também acreditava na suavidade da língua. Sua sonoridade era tão
agradável que, segundo ele, deveria ser a língua falada na corte européia.
« Essa ordem deve ser sempre direta e necessariamente clara. O francês nomeia primeiro o sujeito do discurso, em seguida o verbo que é a ação e enfim o objeto dessa ação: eis a lógica natural a todos os homens; eis o que constitui o senso comum.» (RIVAROL, 1784)
A figura do Rei também é um forte argumento que reforça tal mito e, assim, as
“formas elegantes” dos dizeres proferidos pela língua do Rei eram claras por excelência
e, por isso, deveriam ser reconhecidas como universais. Este caráter de língua real
concedido ao francês se dá porque esta era a língua falada na “Île de France” e, como é
sabido, tal crença consolida a divulgação da língua francesa.
O estudo crítico referente ao mito do gênio da língua realizado por Henri
Meschonnic visa elucidar as contradições que fundaram a concepção de língua rica,
74
moderna e natural. A fim de desfazer tal crença, Meschonnic considera três marcos
históricos fundamentais à história da língua francesa:
1. 1539 - L’Ordonnance de Villers Coterêt (Após a Guerra de Cem Anos, por
decisão baseada em razões políticas, todo ato jurídico passa a ser escrito na
língua do rei).
2. 1635 - A criação da Academia Francesa (Fundada por Richelieu, a Academia
tinha por missão a elaboração de regras próprias à língua francesa de modo a
torná-la capaz de tratar das artes e das ciências).
3. 1791 - A luta contra os Patois (Com a Revolução, buscou-se eliminar os dialetos
locais pela democracia).
Segundo o autor, estes são os três movimentos que mais contribuíram para a
construção de um ideal de língua. Embora contraditórios, visto que num primeiro
momento a língua francesa é a língua do rei e num segundo a língua da liberdade e dos
direitos, as representações de hoje se originam destas grandes datas. Para que a língua
francesa tomasse conta do lugar outrora ocupado pelo latim, fez-se necessário o mito de
que um dialeto, o dialeto d’oil, dentre os diversos da Idade Média, se impusesse por ser
a língua do poder. No século XIX, a escola laica, pública e gratuita de Jules Ferry
contribui, mais uma vez, para reforçar o mito do gênio da língua, pois apostou-se na
imposição de uma língua única capaz de dar liberdade aos indivíduos.
75
Enfim, pelo que foi possível perceber, as características imaginárias dos
brasileiros e dos franceses são provenientes de formações ideológicas de ordens distintas.
Para um francês, clareza, racionalidade, objetividade, precisão e qualidade da
argumentação são elementos constitutivos da língua, ao passo que, para um brasileiro, a
língua francesa representa musicalidade, melodia, eufonia, etc. Além disso, no
imaginário brasileiro, ela é vista como a forma de expressão da alta “sociedade
francesa”, o que representa poder e status social. É nessa via que os brasileiros acreditam
na aquisição da língua como um “avanço” que lhes permite ter acesso aos prazeres
sociais experimentados pelos franceses.
76
4. LÍNGUA PRIMEIRA X LÍNGUA SEGUNDA
4.1 A subjetividade do sujeito bilíngüe
Na abordagem tradicional, o principal argumento capaz de distinguir a língua
materna da língua estrangeira é o fato de a primeira aquisição ser inconsciente e a
segunda consciente e objeto de uma aprendizagem raciocinada. A expressão língua
materna significa etimologicamente língua da mãe, embora seja freqüente, em ambientes
escolares, a identificação desta com a língua em que a criança é alfabetizada, que pode
não ser a língua da mãe. Dabène, 1994, em “Repères sociolinguistiques pour
l’enseignement des langues” nos diz que a expressão se aplica a situações complexas,
não podendo ser facilmente definida. No que concerne à língua estrangeira, tem-se a
idéia de que ela representa, diferentemente da língua materna e natural, um saber
desconhecido que constitui um objeto de estudo racionado. No entanto, como o objetivo
aqui não é detalhar as particularidades dos termos em questão, proponho-me usar os
termos língua primeira para falar da língua portuguesa e língua estrangeira (LE) para
falar da língua francesa, visto que a análise se dá a partir de textos escritos por estudantes
brasileiros de língua portuguesa.
O que nos interessa aqui é o fato de muitos estudos lingüísticos defenderem a
simplista acepção de língua estrangeira como língua em que a tomada de consciência das
77
estruturas lingüísticas é imprescindível para sua aprendizagem. De fato, a língua
estrangeira é objeto de estudo desde o início de sua aprendizagem e, consequentemente,
tem-se sempre a ilusão de que esta se difere pelo fato de ser sempre pensada, ao passo
que a primeira aquisição se dá sem estudos formais, embora a criança possa vir, mais
tarde, a tomar consciência das estruturas quando entra no universo escolar. Entretanto,
acredita-se que a língua primeira, “aquisição natural” é sempre controlável e a língua
estrangeira, “aquisição por raciocínio”, é sempre portadora de confrontos e, por esse
motivo, impossível de domínio por completo.
Essa mesma idéia foi apresentada por um aluno no momento da produção de seu
texto:
“O conhecimento cabível e essencial se dá através de um esforço lógico no qual um estudante de francês terá que apresentar”. (Francês V-2004/1)
O que vale questionar aqui é a crença de que existe um sujeito como centro de
sentido em língua primeira. Segundo Pêcheux, a linguagem é compreendida como a
representação humana das ideologias e o sujeito, constituído pela história, é concebido
como lugar discursivo submetido à linguagem. Assim, Pêcheux explicita que o sujeito
não é origem de seu dizer e, nem mesmo, livre para posicionar-se. Tem-se, assim, uma
forte ruptura com a tradição lingüística, pois nesta visão o sujeito sofre um grande
descentramento. Embora a memória discursiva seja capaz de atualizar discursos
anteriores, o indivíduo que toma a palavra é afetado pela ideologia e tudo se dá
inconscientemente. Ele não se dá conta de como a linguagem funciona e, assim, ele
acredita ilusoriamente, no domínio total da linguagem que é um dos traços fundamentais
para a construção da sua identidade. Nas palavras de Derrida, 2001:
78
“O idiomático, o que é mais próprio de uma língua, não se deixa apropriar”.47
Esta proposição derridiana pode ser relacionada com a sustentação teórica
compreendida por Pêcheux, uma vez que, como se afirma, não é possível apropriar-se de
uma língua, nem mesmo da língua materna, pois as línguas não pertencem aos sujeitos,
sendo a incompletude uma propriedade do sujeito, embora ele não a perceba, pois,
ilusoriamente, ele precisa da afirmação de que ele possui uma língua e identidade.
Nesse sentido, Pêcheux fala em duas formas de esquecimento no discurso. O
primeiro esquecimento, chamado de esquecimento ideológico, seria a ilusão de sermos
origem do que dizemos, visto que o sujeito é incapaz de perceber a forma como a
ideologia o interpela. Para Pêcheux, o sujeito é polifônico e construído historicamente. A
segunda ilusão é da ordem da enunciação. Por este esquecimento, o sujeito do discurso
acredita não necessitar de reformular o seu dizer. Os esquecimentos são estruturantes,
uma vez que possibilitam a constituição dos sujeitos e dos sentidos. Os sentidos são
determinados pelo modo através do qual nós nos inscrevemos na língua e na história.
Partindo desta perspectiva, fica difícil acreditar que o simples domínio das
estruturas lingüísticas permita a inscrição em segunda língua. Embora esta seja a crença
de muitos métodos de ensino, sabe-se que a linguagem não é algo controlável e a
aprendizagem da língua estrangeira não se limita ao simples conhecimento de seu
sistema de signos e estruturas. Coracini acredita que para a realização de sucessos em
línguas segundas é preciso que o sujeito dê vazão ao seu inconsciente (CORACINI,
2003). Dessa forma, pretendo mostrar que apesar de grande parte dos estudos
enfatizarem que a presença da consciência e o uso da razão são inegáveis para a
47 APUD, FRAZÃO, Kátia. In: O Francês e a diferença, 2006, p.59.
79
aprendizagem da língua estrangeira, em oposição à natural e inconsciente aquisição da
primeira, ambas as línguas estão sujeitas às manifestações dos processos do inconsciente.
Assim, embora o falante de língua estrangeira tenha como ponto de referência
sua língua primeira, ele só significa em língua estrangeira no momento em que ele passa
a aceitar os deslocamentos e conflitos como algo diferente. Se o sujeito precisa ter a
ilusão de completude da subjetividade em língua primeira para agir e constituir-se como
sujeito do mundo, sua subjetividade é necessariamente afetada quando inscrita em
segunda língua. Assim, acredito que o aprendizado de uma segunda língua nos leva ao
desafio da alteração da ilusão de subjetividade e isso pode fazer com que a posição do
sujeito deixe de ser a mesma em língua primeira.
“Fica claro, então, que se inscrever numa língua estrangeira significa, sempre e inevitavelmente, provocar confrontos, portadores de conflitos, entre as formações discursivas fundamentais, melhor dizendo, entre os modos de significação introjetados no sujeito, próprios a primeira língua, impregnados, naturalmente, por maneiras próprias de pensar e ver o mundo (aspectos ideológicos), e as formações discursivas ou os modos de significação da segunda língua”. (Coracini, 2003).
Ao acreditar que o sujeito não pensa livremente, visto que o inconsciente fala
antes e, assim, ele é pensado pela língua, o sujeito deve necessariamente se deixar levar
por novas identificações em língua estrangeira. Acredita-se, então, que não se pode
estruturar o pensamento-linguagem da mesma forma em línguas estrangeiras, pois a
posição que se deve adotar para se pronunciar em línguas distintas nunca é a mesma,
uma vez que toda língua é historicamente marcada por traços de uma formação social e,
dessa forma, os efeitos de sentidos não são os mesmos.
80
Embora se tenha, durante anos, desprezado o estudo comparativo da primeira
língua em aulas de língua estrangeira, acreditando no efeito negativo de interferências,
hoje já é sabido que a aprendizagem de uma nova língua pode fazer com que o aluno
passe a refletir sobre as estruturas da sua língua e, dessa forma, compreenda melhor as
semelhanças, aceitando com mais facilidade as coerções. Intradiscursos de alunos
inseridos num universo de aprendizagem de francês língua estrangeira nos mostra como
é possível o estudo crítico e comparativo das línguas em questão.
“... o que me faz apreciar a língua francesa é querer conectá-la com a minha língua-mãe, o português”. (Francês IV-2005/1)
“O fato de esta língua ter uma evolução parecida com o português já desempenha um papel interessante para os meus critérios de estudo, despertando o mesmo interesse que direciono para a minha língua”. (Francês V-2004/1)
“Neste curso de graduação, sinto que a língua francesa me enriqueceu bastante, ajudou-me muito com a questão sintática da minha própria língua materna, parte na qual eu tinha muita dificuldade”. (Francês VII-2004/1)
“A comparação inevitável da língua 2 com a materna nos faz críticos de ambas percebendo melhor as particularidades de cada uma a partir das diferenças (e das semelhanças, por que não?)” (Francês VIII-2004/1)
“... o que me fez conhecer o português, minha língua materna mais profundamente”. (Francês VIII-2004/1)
81
No âmbito desta mesma reflexão, é publicado em Belo Horizonte no ano de 2003
o livro intitulado “Língua materna e língua estrangeira na escola: o exemplo da
bivalência”.48 Trata-se de uma coletânea de artigos que acreditam na possibilidade de
integração entre dois conteúdos curriculares – o português, língua materna e o francês,
língua estrangeira. Guiados por exemplos práticos e por relatos de atividades de sala de
aula, os artigos visam incorporar não só os dois conteúdos, propondo, além disso, uma
nova visão metodológica que permita a descoberta de semelhanças e diferenças entre as
línguas, isto é, criando um terreno fértil para o desenvolvimento da reflexão
metalingüística.
4.2 O confronto com a língua estrangeira
Falar uma língua estrangeira é necessariamente estar exposto a novas práticas
culturais e lingüísticas. A sensação de estranheza e de desconforto é uma experiência
necessária na aprendizagem da LE, porém a aceitação desse novo mundo só se realiza no
momento em que se reconhece a diferença que constitui cada língua e cultura.
Entretanto, vale lembrar aqui que nem sempre essa aceitação acontece, pois o diferente
representa, muitas vezes, uma possível ameaça.
Quando se aprende uma nova língua, o caráter singular da linguagem, que
constitui a afirmação do sujeito enquanto ser do mundo, pode se desestruturar, visto que
48 PRADO, Ceres. “Língua materna e língua estrangeira na escola: o exemplo da bivalência”. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE/UFMG, 2003.
82
a impossibilidade de correspondência biunívoca entre significante e significado torna-se
evidente para os estudantes de LE. O arbritário do signo lingüístico passa a ser
experimentado pelos alunos e esse contato com a língua estrangeira lhes faz reconhecer
que não existe um único ponto de vista sobre as coisas e que a tradução termo a termo
não produz sentidos.
As novas descobertas podem motivar os estudantes, visto que se torna possível
repensar todos os conceitos de língua e de sujeito da linguagem já vividos anteriormente,
porém nota-se que, na maior parte dos casos, os estudantes desistem, visto que esse
confronto com a segunda língua vem desarrumar conceitos que o sujeito traz consigo ao
longo de sua história. Nem todo estudante está disposto a viver essa nova experiência,
pois se sabe que ela é capaz de questionar uma afirmação já sedimentada anteriormente.
O estranhamento e a inquietação de entrada num universo novo e vago de
sentidos fazem com que o aluno sinta-se sem saber absoluto. Tal aprendizagem pode
causar a sensação de regressão, pois neste novo mundo existe a dificuldade de se
expressar e de ser entendido, o mesmo sentimento vivido por uma criança que começa a
falar. Trata-se, na verdade, do sentimento de retorno a uma fase de impotência de se
fazer entender.
Christine Revuz, 1992, afirma que até mesmo o desejo, sendo considerado o
grande responsável pelo eficaz aprendizado de uma segunda língua por muitos
estudiosos, não é capaz de preencher o vazio experimentado por aquele que enuncia em
língua estrangeira. A “dimensão afetiva”, como por exemplo, a motivação por parte do
próprio aprendiz, pode levá-lo a aceitar as diferentes maneiras de construir significações,
mesmo que elas possam vir a modificar e interferir toda a sua forma de conceber a
linguagem. Todavia, esse fator não permite que o sentimento perturbador vivido por
quem tem um bom domínio das estruturas de uma língua estrangeira simplesmente
83
desapareça, pois como afirma Revuz “O eu da língua estrangeira não é, jamais,
completamente o da língua materna.”
Já Charaudeau define “intercultural” como “o domínio no qual ocorre a conquista
da identidade” e afirma que “não é possível observar o outro sem observar a si próprio”.
Segundo o autor, esta observação mútua permite um diálogo das diferenças e
semelhanças culturais, gerando ao mesmo tempo uma relação de atração e de rejeição.
Caso estas duas forças sejam equivalentes, temos como resultado uma sensação de
fascínio experimentada por ambas as partes envolvidas.
Nas palavras de Charaudeau,
“Essa fascinação se sustenta na contradição que ela é ao mesmo tempo descoberta do outro e descoberta de si. Em outras palavras, é o conflito que é a priori interessante no encontro entre os seres de culturas diferentes, pois ele é o fator de dinâmica social.” (CHARAUDEAU, 1990).
Ao produzir seus textos, alunos expressam sentimentos que marcam esse
encontro.
“Estudo francês para descobrir outra realidade e para aprender a me posicionar dentro dela”. (Francês IV-2004/1)
“Antes de começar a estudar a língua, eu não tinha idéia de todas as implicações, de todo o mundo que descobriria ao estudar esse idioma. Da civilização ao discurso, completamente diferentes daquele a que eu estou acostumada”. (Francês VII-2004/1)
84
“... para mim representa a chave que permite abrir a porta de um mundo desconhecido porque novo; é o código de entrada no não-conhecido”. (Francês VIII-2004/1)
“A língua francesa representa pra mim um estilo tanto no sentido de pensar, como no sentido de agir”. (Francês IV-2005/1)
“Uma forma que consigo de me transportar para um mundo bem diferente do que vivo. Me remete uma liberdade. Quando estou estudando francês, ouvindo ou lendo, sinto como se estivesse em outro lugar o qual eu não pertenço”. (Francês IV-2005/1)
“Na minha formação pessoal, o francês significa o aprendizado de um modo diferente de se comunicar”. (Francês VI-2004/1)
Nota-se que os alunos redatores dos textos mencionados souberam encarar essa
nova realidade ao reconhecer a alteridade necessária à prática enunciativa em língua
francesa, embora não seja possível afirmar que os fragmentos constituem a realidade do
curso de Português/Francês da Faculdade de Letras, uma vez que o percentual de
desistência e evasão é bem maior do que o número de alunos que conseguem levar
adiante os estudos.
Enquanto ex-aluna do curso de graduação da referida universidade, arriscaria
dizer que a situação em que se encontra a universidade no que concerne o número de
formandos por semestre é bastante inferior se comparado à quantidade de alunos que
ingressam na mesma universidade, entretanto, justifico as minhas premissas com a
análise que faço com base em dados retirados da Seção de Ensino da Faculdade de
85
Letras da UFRJ. O gráfico abaixo é, na verdade, uma forma ilustrativa de representar os
dados coletados49:
30
5
30
14
30
12
30
7
0
5
10
15
20
25
30
2005-2 2005-1 2004-1 2003-2
Calouros
Formandos
Sabendo que a cada semestre são disponibilizadas 30 vagas para alunos que ingressam
através de vestibular, observamos quatro semestres e percebemos que o índice de formandos é
infinitamente menor do que o de ingressantes, constituindo uma média de 9,5 alunos formados
por semestre.
Ora, como se pode perceber no fragmento abaixo, mais um aluno busca a reafirmação
da necessidade de superar as barreiras lingüísticas:
49 A comprovação dos dados coletados encontra-se nos anexos deste trabalho.
86
“Quando se aprende uma língua estrangeira é preciso se entregar e superar as barreiras lingüísticas e gramaticais sem hesitar”. (Francês V-2004/1)
Levando em conta os dados estatísticos acima apresentados, podemos concluir
que o aprendizado de línguas estrangeiras se caracteriza pelo elevado índice de
desistência, sobretudo quando se trata de alunos que receberão habilitação para formar
outros alunos. Trato aqui especificamente dos alunos da UFRJ enquanto futuros
profissionais de FLE, aqueles que não devem ter apenas o domínio de formas prontas
capazes de estabelecer uma comunicação inteligível, mas sim aqueles que devem ter a
capacidade de assimilar todo o mundo expresso e implicado nesta linguagem. Nesse
sentido, é interessante enfatizar, mais uma vez, que são poucos os estudantes que vêem
essa nova experiência como algo encantador, pois como diz Revuz:
“Toda tentativa para aprender uma outra língua vem perturbar, questionar, modificar aquilo que está escrito em nós com as palavras dessa primeira língua. Muito antes de ser objeto de conhecimento, a língua é o material fundador de nosso psiquismo e de nossa vida relacional” (REVUZ, 2001).
Assim, concluir que os alunos capazes de se expressar em língua francesa são
aqueles que reconhecem, sem qualquer desconforto, o encontro supracitado, é negar uma
realidade, pois a estranheza é inevitável nesse universo de aprendizagem. O que se vê é a
postura diferenciada diante dessa nova experiência desconfortante.
87
O processo de aprendizagem de uma língua estrangeira pode proporcionar
o contato com as crenças, costumes e valores de seus falantes nativos, aproximando
horizontes culturais e estabelecendo um processo dinâmico de trocas e possíveis
transformações. O contato com uma língua estrangeira pode levar o aluno a pensar
criticamente e, assim, comparar significados, criar sentidos e reconhecer sua própria
identidade através de uma outra identidade social, num processo recíproco. Todavia, nem
sempre esta troca é tão fácil de ser compreendida:
“... o francês é um constante desafio e sempre tenho a impressão de nunca ser capaz de dominá-lo com perfeição”. (Francês V-2004/1)
Nesse fragmento, a palavra usada pelo aluno a fim de expressar como ele se
coloca diante da aprendizagem em língua francesa é “desafio”. Desafio aqui é aceitar o
diferente e o desconforto, visto que a língua lhe será sempre “estrangeira”. A sensação de
incompletude não será solucionada e cabe a ele aceitar e encarar essa realidade como um
“constante desafio”.
Além de todas as angústias experimentadas pelos estudantes de uma segunda
língua no que concerne às dificuldades de se desligar da língua materna, é preciso que
estes reconheçam como os aspectos culturais de um povo determinam cada significado
em particular. A evidência do sentido deve ser algo sempre questionável. Caso contrário,
a falsa interpretação poderá comprometer o sentido do texto ou da situação de
comunicação, pois os choques culturais são eminentes, sobretudo quando visões
estereotipadas sobre o Outro estão em jogo.
88
5. CONCLUSÃO
O lugar de prestígio ocupado pela língua francesa no Brasil sempre me despertou
curiosidades. Confesso que, envolvida, muitas vezes, também por estereótipos, resolvi
debruçar-me sobre os estudos que acercam as imagens veiculadas sobre a língua francesa
no contexto brasileiro. Para tanto, busquei verificar tais dados num contexto particular,
no meio acadêmico, acreditando que imagens fossilizadas pudessem ser evitadas.
Em um primeiro momento, apliquei as redações para formar o corpus da pesquisa
e, em seguida, comecei por fazer uma primeira leitura dos textos dos alunos. O que me
possibilitou a seleção do corpus foi essa primeira análise, na qual percebi duas grandes
recorrências, sendo a primeira marcada, sobretudo, pela associação de que uma língua
representa necessariamente uma cultura e a segunda pelo contato-confronto de inscrição
em língua estrangeira.
Valendo-me principalmente de fatos históricos que demarcam a influência
francesa sobre nós, procurei fazer um estudo que pudesse esclarecer como a idéia
apresentada pela primeira recorrência havia sido construída. Assim, pude concluir que a
relação estabelecida entre língua e cultura só se constitui tal e qual após a expansão dos
conceitos propagados pela Revolução de 1789.
Não tendo a França exercido domínio político sobre o país, não se tem por ela o
sentimento comum de aversão, pelo contrário, sempre a vimos como uma possibilidade
89
de evasão. É notório o fascínio que a cultura francesa exerce sobre os artistas e
intelectuais brasileiros, sobretudo a partir do século XVIII, pois nela encontrávamos a
garantia de liberdade e dos direitos democráticos que almejávamos.
Assim, os alunos, envolvidos por uma memória discursiva sobre a qual não têm
domínio, propagam formulações anteriores e embora o fenômeno da globalização tenha
vindo perturbar os conceitos tradicionais, os alunos, apoiados na crença de que a língua
francesa adquire exatamente as mesmas características veiculadas sobre a França,
continuam a supervalorizá-la.
Valendo-me principalmente das idéias de Coracini sobre como a França se
apresenta nos manuais didáticos de FLE, procurei desenvolver minhas reflexões, apoiada
na crença de que a França, enquanto representante da Francofonia, não faz jus a sua
função de impulsionar o reconhecimento mútuo dos diferentes povos. Ela faz parte de
um grupo defensor da diversidade cultural, opondo-se assim ao modelo globalizante
vigente, porém sua posição de ascendência ainda é muito forte.
Seguindo as pistas que Pêcheux propõe para a interpretação e análise do discurso,
cheguei à conclusão de que os alunos, ao tecerem imagens sobre a língua, deixam
transparecer as imagens que eles fazem de si mesmos a partir do aprendizado da língua
francesa. A posição ocupada pela “capital da Europa” é tão profundamente marcada no
Brasil que os alunos buscam aproximar-se desta cultura para, desse modo, apagar a
diferença e constituir-se numa outra identidade social. Percebi, ao longo da seleção e
recorte que fiz do corpus, a tentativa por parte dos alunos de absorver as características
francesas, apropriando-se de sua língua e cultura, como forma de ganhar status social.
No que concerne à segunda recorrência, busquei desfazer algumas idéias sobre a
inscrição em língua estrangeira, particularmente em língua francesa, pois sob a ótica de
Michel Pêcheux, não era possível acreditar na subjetividade que envolve aquele que
90
enuncia tanto em língua materna como em língua segunda. Nesse sentido, chegamos à
conclusão de que os alunos precisam ter consciência de como os aspectos culturais são
utilizados e funcionam em cada situação de comunicação, pois, assim, poderá ser evitado
que imagens fossilizadas interfiram em situações de comunicação concretas.
Assim, é válido reforçar que as muitas imagens falsas de língua e cultura
francesas cristalizadas no Brasil, por conta da idealização que sempre se fez sobre a
França, podem gerar distorções no campo discursivo, pois a distância entre a França
idealizada e realidade virá à tona no momento da situação de comunicação. É por esse
motivo que sustento a idéia de que aprender uma língua estrangeira é aceitar estar
exposto a novas identificações expressas por essa língua. Entretanto, como apresentei
numa análise que destaca o número de alunos de francês que se forma a cada semestre na
Faculdade de Letras da UFRJ, percebo que não são muitos os que ousam um diálogo
com a estranha diferença que caracteriza cada língua em particular.
Apesar de a influência francesa estar presente em diversos domínios de nossa
cultura, na década de 60 o governo brasileiro aboliu do currículo obrigatório o ensino da
língua francesa. Tal mudança ocorre por conta da valorização de uma política de
uniformização, sendo apenas uma língua reconhecida no mercado, o inglês. De fato, o
mundo atual tende cada vez mais a globalização e, no que diz respeito aos discursos dos
alunos, tal ruptura é temível de distorções e de efeitos sociais, porém eles continuam
desejosos em adotar a língua e os modelos da sociedade francesa.
Por fim, como tentei mostrar, seja simplesmente por conta de nossa admiração ou
pela presença de políticos, artistas e intelectuais franceses50 que acabaram deixando seus
50 Falo aqui de políticos citados na revista História Viva como, por exemplo, Villegaigon e até mesmo o Conde da Barca e D. Pedro I que, embora fosse de origem portuguesa, era admirador de Napoleão, além de ter hábitos franceses e, por esse motivo, muito contribuiu para a constituição da imagem que fazemos hoje da França. Quanto aos artistas franceses, refiro-me sobretudo aqueles que chegaram no Brasil em 1816 e trouxeram o seu estilo, Debret, Tauny, entre ouros. A criação da Universidade de São Paulo também desempenha papel pioneiro na construção de nossas representações. Fundada em 1934, a universidade
91
princípios por aqui, além da força da literatura francesa sobre a construção da literatura
nacional, a França esteve presente em nosso processo de consolidação nacional e, os
brasileiros, ao tecerem imagens sobre a língua francesa, são envolvidos pelo
interdiscurso, retomando discursos preexistentes que reforçam o mito do estrangeiro,
embora não tenham consciência sobre como toda essa construção ideológica é capaz de
determinar seus discursos.
teve, entre seus primeiros professores, intelectuais franceses como Lévi-Strauss e Roger Bastide. Além de outros que não passaram por aqui, mas que certamente, por vias distintas, deixaram marcas significativas na memória coletiva dos brasileiros.
92
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