IMAGENS DE RECEPÇÃO DA MENSAGEM TELEVISIVA Resumo · 2 emergem nas posições dos pesquisados e...
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IMAGENS DE RECEPÇÃO DA MENSAGEM TELEVISIVA - Concepções sobre educação e poder no interior da crítica à televisão no Brasil -
Nara Magalhães
Resumo: Este é um artigo que aborda o significado de uma certa crítica à televisão na sociedade contemporânea, a partir de uma pesquisa de etnografia de audiência realizada com pessoas pertencentes a camadas médias de uma cidade de médio porte do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Na pesquisa, procurei compreender os modos como as pessoas vêem (a) TV – ver TV e ver a TV no seu significado social. As pessoas pesquisadas vêem a TV através de uma crítica social que supõe que outros grupos não possuem cultura para vê-la de modo crítico. As conexões entre as suposições dos pesquisados e um certo debate intelectual são importantes para tentar identificar as razões desta crítica se manter forte, mesmo num contexto de diversidade e pluralidade cultural. Educar o “outro”, proporcionando acesso à cultura letrada, seria a única forma desse “outro” ler corretamente a mensagem da televisão? O que os estudos de recepção propõem desde a década de 1980 seria um respeito às diferentes leituras ou às releituras realizadas por receptores concretos, em contextos específicos. Ambas perspectivas – dos estudos de recepção e das pessoas pesquisadas - são aproximadas neste artigo, numa reflexão que tenta apontar que existem alguns pressupostos compartilhados sobre a superioridade da cultura letrada, mesmo quando se considera o receptor como sujeito no processo de comunicação. Por fim, o artigo esboça algumas conseqüências do debate atual e hipóteses para novas pesquisas. Palavras-chave: camadas médias; televisão; estudos de recepção; cultura brasileira; antropologia da mídia.
Introdução Este artigo aborda algumas reflexões construídas a partir de uma pesquisa sobre o
significado da televisão, desenvolvida com pessoas de camadas médias no interior do Rio
Grande do Sul, Brasil, buscando compreender seus modos de ver (a) TV : modos de ver TV
e ver a TV no seu significado social1. É um trabalho que, a partir das discussões sobre
televisão, propõe uma reflexão sobre as relações entre saber científico e saber popular que
1 Refiro-me a uma pesquisa que se desenvolveu de modo intermitente, entre os anos de 1997 e 2004, resultando em minha Tese de Doutorado, intitulada: “Televisão, uma vilã na sociedade contemporânea – um estudo sobre os modos de ver (a) TV de pessoas pertencentes a camadas médias”, concluída em abril de 2004, no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina.
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emergem nas posições dos pesquisados e em certo debate intelectual, quando se discute o
significado social da televisão, e propõe um repensar sobre as bases desta crítica, buscando
em seu interior os significados sobre poder e educação.
Neste artigo, exponho algumas das razões que, suponho, estão presentes nos
pressupostos do debate sobre televisão no Brasil. Um debate que apropriadamente propõe
democracia dos meios de comunicação de massa, questiona os acordos e favorecimentos
ilícitos obtidos por grandes empresas de comunicação, expõe preocupações quanto às
tentativas de manipulação, de homogeneização ou mercantilização das manifestações
culturais ou da cultura. Porém é um debate que, quando se refere à população, considera-a
sem cultura para criticar a mensagem dos meios, desconsidera as possibilidades de
reinterpretações críticas da mensagem, e propõe, por sua vez, uma homogeneização na
crítica à televisão, considerando que a maneira adequada de criticá-la seria através do
acesso à cultura letrada. É um debate que contribui, no interior de suas formulações, para a
construção de outras exclusões simbólicas.
Trabalhando com o método antropológico, procuro, neste artigo, colocar em diálogo
alguns estudos de recepção2 e outras teorias, com os dados trazidos pela pesquisa de campo
realizada. Procuro demonstrar que há pontos comuns, e que os dilemas enfrentados por
estes estudos referem-se a questões epistemológicas mais amplas, relacionadas a
concepções sobre relações de poder e distintas concepções de cultura. Trata-se, portanto, de
uma análise sobre processos sociais contemporâneos: a importância dos meios de
2 Seria impossível no âmbito deste trabalho fazer justiça a toda tradição teórica de estudos sobre televisão e especialmente sobre os estudos de recepção, campo que aborda as significações construídas pelos sujeitos que recebem a mensagem dos meios e a interpretam de variadas maneiras, de acordo com a cultura do grupo em que estão inseridos. Para citar apenas alguns que podem clarear a linha de interlocução adotada aqui, que perpassa várias áreas do conhecimento (antropologia, comunicação social, literatura, etc.): Miceli (1972), Kaplan (1983), Eagleton (1983), Silva (1985), Leal (1986), Ortiz (1989), Sousa (1995), Martín-Barbero (1997), Borelli (1996, 2000), Travancas (2003), Jacks (1998), entre outros.
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comunicação na sociedade atual, num período considerado como a Era da Comunicação, e
a colocação em perspectiva da crítica aos meios hoje, propondo repensar os pressupostos
desta crítica, com a intenção de contribuir para a construção de uma outra, que não tenha
como resíduos significados opostos aos que se deseja construir.
Na primeira parte, exponho algumas hipóteses iniciais e a especificidade da abordagem
antropológica de relativização, que me levou a repensar os estudos de recepção, campo
multidisciplinar que extrapola a antropologia. Na segunda parte, relaciono as principais
reflexões presentes nesse campo de estudos com outras abordagens, tentando demonstrar as
semelhanças de pressupostos entre o que afirmam os pesquisados e a teoria. Finalmente,
proponho à guisa de conclusão, novas hipóteses para futuras pesquisas, e um repensar do
que supomos ser a educação necessária para “ler” os meios de comunicação.
* * *
Dilemas iniciais
Na pesquisa desenvolvida, as pessoas com quem interagimos nas entrevistas, etnografia
de audiência e coleta de depoimentos, estavam sendo consideradas como sujeitos críticos
em relação à televisão. A análise de suas interpretações e reintepretações das diversas
mensagens de uma variada programação televisiva que acompanhamos juntos, bem como
sua crítica à televisão e à sociedade brasileiras, eram consideradas sob a ótica de conhecer
seu posicionamento enquanto sujeitos. Mas era instigante sua suposição de que os outros
não teriam esta capacidade crítica: segundo eles, o poder televisivo se tornava ainda mais
maléfico para quem não tinha condições de perceber as tentativas de manipulação, e estes
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outros variavam: podiam ser as crianças, os jovens ou pessoas de grupos populares, que
apareciam implicitamente em seu discurso como “não-sujeitos”.
No exercício incessante de tentar relativizar, e respeitar as diferenças, não queria
considerar esta crítica dos pesquisados como inadequada. Queria entender porque ela se
mantinha tão forte e o que dizia sobre nossa sociedade. A princípio, me parecia um
discurso bem afinado com a perspectiva frankfurtiana e bem localizado no grupo. Depois
percebi que havia uma identidade entre o que diziam as pessoas pesquisadas e o próprio
discurso acadêmico.
Precisei me debruçar novamente sobre os estudos de recepção, para ver se apresentavam
uma saída para a reflexão inicial que me parecia paradoxal: se os estudos de recepção
propunham um respeito às diferentes interpretações da mensagem, como ficava minha
leitura dos dados, que apontavam uma posição dos pesquisados que parecia se confrontar
com a minha? Será que os estudos de recepção estavam impedindo o “encontro
etnográfico” ou a “fusão de horizontes” 3?
Ou seja, o problema que aparecia era duplo: a antropologia propõe o respeito às
diferenças, e os estudos sobre diferentes perspectivas culturais precisam levar em
consideração o ponto de vista dos nativos – mas o ponto de vista dos nativos se confrontava
com a perspectiva dos estudos de recepção (que perpassam vários campos, inclusive o
antropológico) que consideram o receptor como sujeito no processo de comunicação, pois
os pesquisados consideravam o receptor outro como alguém incapaz de elaborar críticas e
interpretações próprias. Parecia que nem o relativismo cultural nem a proposta de
3 Estas expressões são utilizadas na discussão metodológica em antropologia, para significar a profunda compreensão do universo pesquisado, buscada no encontro com as pessoas pesquisadas durante o trabalho de campo, nas trocas que envolvem também valores subjetivos, que proporcionam também uma mudança no universo do pesquisador, e uma nova visão de mundo para ambos, a partir dessa experiência. Ver a respeito Cardoso de Oliveira (1983), Peirano (1995), entre outros.
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considerar a recepção como dinâmica era suficiente para explicar o ponto de vista dos
pesquisados.
Além disso, os estudos de recepção também pareciam enfrentar o impasse de não
conseguir propor algo além da dinâmica de reelaboração nas mensagens, como sinaliza
Lopes:
“Se por um lado, as descrições etnográficas têm sido extremamente úteis em demonstrar que os receptores não são uns “dopados culturais”, mas sim pessoas que extraem sentidos específicos de textos, gêneros e meios, a simples reiteração da comprovação dessa hipótese central não garante o avanço teórico desses estudos. Nota-se claramente nas pesquisas empíricas o risco de se produzir uma verdade formal e estéril sobre a complexidade e as contradições entre meios e audiências.” (Lopes, 1998: 113)
A autora se refere exatamente aos impasses iniciais que enfrentei na pesquisa realizada:
não bastava dizer que as reinterpretações da televisão existem e que há múltiplos
significados atribuídos à mesma mensagem, nem me deter formalmente em demonstrar que
existem complexidades e contradições entre os objetivos dos produtores das mensagens dos
meios e seus receptores.
As questões que lancei aos dados coletados demonstram a tentativa de ir além dessa
perspectiva: busquei não só demonstrar que os pesquisados reelaboram significados da
mensagem, mas também reelaboram a própria pauta televisiva no momento da recepção,
debatendo sobre outros assuntos; busquei as semelhanças de interpretação entre grupos
sociais distintos: o que apresentavam em comum os pesquisados de camadas médias com as
interpretações de grupos populares; busquei a influência4 da televisão sobre suas práticas,
considerando-a uma entre outras influências a que estamos todos submetidos na vida em
4 Considerando a noção de influência na mesma perspectiva de Weber, quando discute poder: todos estamos exercendo e recebendo influência na vida em sociedade, na interação social.
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sociedade; busquei as razões que o grupo apresentava para negar a importância de ver TV
ao lado das razões para considerar a TV um veículo de comunicação tão importante e
poderoso; busquei as categorias locais para entender significados atribuídos às práticas de
ver, assistir, ouvir, olhar televisão, pois elas me pareceram pistas importantes para
demonstrar a grande presença da televisão na vida das pessoas hoje, e também para tentar
entender a visão sobre o outro que estavam subjacentes àquelas categorias, buscando as
visões de poder e educação no seu interior.
Precisei refletir sobre uma questão que atravessava os campos da antropologia e
comunicação. Além da análise dos dados trazidos pelo trabalho de campo, a revisão da
teoria sob a ótica que estes dados trouxeram, é em parte a reflexão que tento a seguir5, que
relaciona os estudos de recepção, e o modo como foram abordados no Brasil com uma
discussão sobre saber erudito e saber popular, ou sobre ciência e senso comum.
Lanço, portanto, um questionamento aos estudos de recepção sob a ótica do trabalho de
campo: busco o motivo da crítica à televisão manter-se, na visão dos pesquisados, longe da
perspectiva de múltiplas leituras por parte dos receptores (proposta daquele campo de
estudos). Esta reflexão é ainda ampliada, pois não poderia tomar os estudos de recepção
isoladamente no campo científico, e há outros pressupostos, especialmente distintas
concepções de cultura, que estão embasando certo debate sobre os meios de comunicação
na sociedade contemporânea.
5 Outra parte está em Magalhães (2004), onde relaciono as afirmações dos pesquisados com os estudos sobre cultura brasileira e identidade nacional.
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Após uma breve retrospectiva sobre o contexto que propiciou a emergência dos estudos
de recepção6, procuro esboçar uma hipótese de que estes estudos (no momento em que são
por sua vez, reinterpretados seus resultados), acabam enfrentando a reposição, num
segundo nível de análise, de uma visão sobre a incapacidade do sujeito receptor de
interpretar a mensagem dos meios, feita com base numa certa visão sobre saber e cultura.
Os estudos de recepção e o estatuto de sujeito do receptor
Os estudos de recepção, que tomam o receptor como sujeito7 no processo de
comunicação, têm se revelado uma nova tendência desde 1980, entre os pesquisadores
envolvidos nesta temática. No entanto, não foi sempre assim. A discussão sobre o papel dos
meios de comunicação de massa na sociedade começa com a emergência da própria
chamada sociedade de massas no pós-guerra e liga-se a toda trajetória de surgimento e
desenvolvimento dos meios de comunicação. Os primeiros estudos já apontavam para uma
preocupação da sociedade com o poder dos mass media. Lazarsfeld, um dos precursores
dos estudos de mídia, o primeiro a realizar estudos empíricos sobre o tema, em um artigo
conjunto com Merton, já em 1948 afirma que “... o papel social representado pela mera
existência dos mass media tem sido grandemente superestimado.” (Cf. Merton e Lazarsfeld,
1978: 112; in Lima, 1978).
No mesmo período trabalha Shannon, o autor que, em conjunto com Weaver, elaborou o
conhecido esquema “fonte, emissor, canal, receptor e destinatário”, o qual foi utilizado
exaustivamente pelos pesquisadores da comunicação. Ainda que a elaboração de seu 6 Retrospectiva esta na qual uma certa preponderância do viés antropológico é inevitável, por ser minha área de formação e com a qual tenho mais contato. Busco construir aqui uma abordagem dialogando com as áreas de comunicação e literatura, que certamente deixa muitas lacunas devido à amplidão do tema em debate. 7 Como exemplo, há uma publicação da área de Comunicação Social, contando com artigos de vários autores das Ciências Sociais, sobre esse novo enfoque: Sousa, Mauro Wilton (org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995.
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esquema fosse mais técnica - pois os autores eram da área de engenharia e estavam
preocupados em eliminar as interferências da comunicação - sua obra foi reapropriada e
trouxe noções muito importantes para o debate, como a noção de “ruído na comunicação”
(Cf. Fiske,1993). Mas sua visão excessivamente linear da comunicação, sem atentar para os
processos dinâmicos envolvidos, tem sido também exaustivamente criticada.
Ainda nos anos 40 esta temática começou a interessar um grupo de filósofos alemães: a
conhecida Escola de Frankfurt - a posição desta escola foi tão importante, que se manteve
como referência no debate no Brasil até meados da década de 80. Só após os anos 50 é que
a temática começou a interessar os sociólogos, inicialmente os seguidores de Merton.
Os autores da Escola de Frankfurt trabalhavam com o pressuposto de que um
determinado sistema de produção de símbolos está ligado a um modo social de produção.
No debate teórico deste período, o conceito de ideologia era central. Pensada como
indissociável de um conteúdo de falsidade e dissimulação da realidade, levada a efeito pela
classe dominante, a concepção de ideologia completava-se com a análise da massificação e
homogeneização levada a efeito pelos meios de comunicação, a serviço da mesma classe e
dos quais a grande “massa” seria alvo.
A grande maioria dos estudos desse longo período centram-se na análise dos meios, de
seu poder, de seus efeitos, de suas intenções ocultas. O cenário começa a mudar nos anos
80, quando proliferam as críticas aos frankfurtianos e resgata-se a importância do receptor
como sujeito da comunicação, e esta é vista então como um processo complexo e não
apenas num esquema linear.
A crítica aos frankfurtianos e a todos que temiam o “fim da cultura” ou a irremediável
desqualificação realizada pela mídia é feita por vários autores, especialmente à sua
compreensão da cultura como algo imposto e não construído coletivamente, e à sua
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suposição de que a massificação seria irreversível, lamentando a destruição das formas
estéticas puras8.
São muito conhecidas, e hoje consideradas clássicas nos estudos da área, as expressões
cunhadas por Umberto Eco quanto aos campos teóricos que debatiam o assunto: os
apocalípticos, que consideram, como Heráclito9, a “cultura como um fato aristocrático”,
perante o qual a “cultura de massa” torna-se o sinal de uma queda irrecuperável, e o
“homem de cultura o profetizador de seu desaparecimento perante o apocalipse da
massificação” (Cf. Eco, 1979: 8).; de outro lado os integrados, que tal como seus
oponentes, assumem o “conceito-fetiche de massa”, pretendem construir seus projetos para
ela, “educar a massa”, operando um reducionismo no seu interior: há uma ausência de
sujeitos na massa (Cf. Eco, 1979: 18).
Como já assinalei, é importante notar que a crítica realizada pelas pessoas de camadas
médias pesquisadas refere-se aos “efeitos nocivos da televisão” e aparece ainda muito
identificada às preocupações frankfurtianas de vulgarização da cultura, e dentro do campo
dos apocalípticos apontados por Eco. Mas elas não são as únicas, como veremos.
Alguns conceitos como o de ideologia têm se mantido centrais na reflexão, ainda que
sua combinação posterior ao conceito de hegemonia, tenha contribuído em parte para
ampliar e relativizar o debate sobre as relações de poder envolvidas na comunicação de
massa. Com a centralidade atribuída a tais conceitos pela maioria dos estudiosos do tema
no Brasil, explica-se porque, apesar de todas as críticas, o prestígio da Escola de Frankfurt
entre nós se manteve quase inabalável até os anos 1980.
8 Quanto a estas concepções, refiro-me especialmente a Adorno e Horkheimer, 1975. Para uma crítica à Escola de Frankfurt, ver Leal, 1986; Ortiz, 1989; Eco, 1993[1970], entre outros. 9 Eco faz uma citação de Heráclito: “Por que quereis levar-me a toda parte, ó iletrados? Não escrevi para vós, mas para quem me pode compreender. Um, para mim, vale cem mil, e a multidão, nada” (Eco, 1993:8)
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A partir desse período, com a incorporação do conceito gramsciano de hegemonia, a
discussão avançou. Muitos trabalhos na área de ciências sociais partiam de Gramsci, e
abordavam a reelaboração possível de um bem cultural produzido massivamente.
Questionou-se então a idéia do “produtor legítimo”, a partir da análise do processo em que
a reprodução e a transformação de uma dada produção hegemônica são simultâneas ou
fruto de negociações e relações de poder em que a legitimidade é alternadamente atribuída
a diferentes grupos10.
Nos estudos sobre televisão, cinema, literatura, música, da área de Ciências Sociais e
Comunicação11, que adotam os referenciais gramscianos para debate, a sociedade é pensada
de forma dinâmica e a construção da hegemonia é tomada como um processo, nunca pronto
e acabado, que inclui o aspecto da negociação: para que as idéias de uma classe possam ser
dominantes, elas precisam ser convincentes, o que não pode acontecer exclusivamente com
base em valores falsos. Isto remete à noção de eficácia: só existirá adesão a determinados
valores se eles repercutirem num imaginário construído socialmente. O gosto não é algo
que se impõe, mas inclui uma escolha, ainda que limitada, entre as possibilidades colocadas
pela sociedade.
Neste período, os pesquisadores da área utilizavam o conceito de ideologia de um modo
distinto daquele proposto por Marx e pelos marxistas. Incorporando o conceito gramsciano
de hegemonia para entender a dinâmica cultural e as oscilações nas relações de poder, os
estudiosos definiam ideologia de maneira muito identificada com a concepção de cultura,
isto é, como sinônimo de sistemas de significados construídos coletivamente e próprios de
10 Ver, por exemplo, Oliven (1986) e Ortiz (1988). 11 Refiro-me às abordagens de Ortiz (1988, 1989); Oliven (1986); Leal (1986, 1993); Borelli (1996) e Ramos (1995); Jacks (1987; 1998), entre outros.
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determinada época histórica, sem o conteúdo de falsidade e mascaramento que geralmente
lhe era atribuído por aqueles estudiosos12.
A partir da segunda metade da década de 80, o saber científico tornou-se, ele próprio, o
centro das reflexões. Houve uma série de questionamentos que colocaram em xeque certos
pressupostos: na relação sujeito-objeto de pesquisa, começou-se renegando o próprio termo
“objeto”, para tentar refletir sobre as desigualdades criadas na situação de pesquisa, a qual
só podia acontecer a partir de uma relação social estabelecida entre no mínimo dois sujeitos
– o pesquisador e o pesquisado. As tentativas de acabar (ou diminuir) o poder do
pesquisador se estenderam à escrita científica, tendo como proposta a polifonia, isto é, a
construção do texto acadêmico a partir das muitas vozes dos pesquisados. Na antropologia,
uma das críticas mais contundentes foi ao chamado realismo etnográfico, que seria, entre
outras questões, a pretensão de, a partir da pesquisa empírica e da comprovação inegável de
que se esteve em campo, tomar a descrição resultante como se fosse “a própria realidade”,
construindo a teoria de modo empiricista e dando à teoria um estatuto de verdade
inquestionável, como se pudesse expressar fielmente a realidade.
Com o questionamento ao saber científico, chegou-se ao reconhecimento de que ele é
um saber entre outros13, sem aquele estatuto de superioridade e verdade que geralmente lhe
era atribuído, desde o seu surgimento no século XVIII. Os ideais da modernidade não só
não haviam se realizado, como precisavam ser abandonados.
12 Com isto, tais abordagens foram consideradas responsáveis pela “despolitização” do conceito de ideologia no Brasil. Cf. Durham, “A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspectivas”, In: Cardoso (1986:29). 13 Os questionamentos sobre o saber científico e a pretensão de verdade ou apreensão da realidade encontram-se já em Foucault, em Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979; e também em Rabinow, “Representations are social facts: modernity and pos-modernity in Anthropology”. In: Clifford and Marcus. Writing Culture. Berkeley, University Press, 1986.
12
Esse debate teve como referência na Antropologia a obra de Clifford e Marcus14, e é
aqui resgatado com a intenção de refletir sobre algumas de suas principais conseqüências
para nossa visão a respeito da construção de conhecimento: a partir da discussão pós-
moderna, cada vez mais o dogmatismo foi sendo descartado; procurou-se, deste então, não
mais o "produtor legítimo", mas conhecer os vários critérios de legitimidade construídos
por diferentes culturas; houve o reconhecimento de que o saber científico é um entre outros
saberes, entre eles o popular, e que o primeiro só pode ser construído a partir de uma
experiência coletiva: no trabalho de campo e no debate entre os pares - portanto, ele é
produto de uma relação de intersubjetividade, no encontro etnográfico e na reflexão que ele
lança sobre a construção de nosso conhecimento, sempre provisório. 15
A abordagem aqui proposta tem como referência estes questionamentos, procurando
contextualizar e extrair da discussão o que pode ser produtivo para uma Antropologia feita
no Brasil. É uma abordagem que parte do pressuposto antropológico de que estamos
mergulhados num sistema simbólico16 construído coletivamente, o qual inclui nossos
valores e orienta as nossas práticas; que incorpora a idéia da multiplicidade de saberes e
considera fundamental a busca da construção da intersubjetividade. A televisão está sendo
tomada aqui como parte de um sistema simbólico; e dessa perspectiva busquei verificar o
lugar que ela ocupa no cotidiano dos grupos estudados, qual o valor que lhe atribuem, como
recebem sua mensagem. Com isto emergiu uma pluralidade de interpretações e de práticas
cotidianas a envolvem. Ao propor este tipo de recorte a respeito do significado da televisão,
14 Refiro-me ao seu livro Writing Culture, de 1986. 15 Estas conseqüências são apontadas por autores como Cardoso de Oliveira (1983); Caldeira (1988) e Trajano Filho (1988) 16 Sobre cultura como sistema simbólico, construído com base em classificações, ver Lévi-Strauss, 1970 e 1975; Douglas, 1976 e Dumont, 1966. Sobre cultura como sistema simbólico, no sentido de “código” compartilhado, ver Geertz, 1978.
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estava supondo que estas são objeto de construção social, e, portanto, podem assumir
diferentes significações segundo o grupo social considerado.
Mas se nos anos 1980 a discussão ia por estes caminhos, no início da década de 90
ganhou fôlego uma outra discussão: a globalização. E então os meios de comunicação de
massas, e as novas tecnologias foram citados muitas vezes como agentes de um processo
que continuava não só padronizando e homogeneizando as massas, como todo o mundo,
transformando-o numa aldeia global.
Com este debate, um dos autores recuperados foi Marshall McLuhan, autor já
considerado um clássico nos estudos de comunicação, e reconhecido hoje como um
visionário que antecipou muitas das questões agora debatidas, mas à sua época considerado
muito otimista em relação aos meios (Eco irá chamá-lo de superintegrado).
Com os questionamentos recentes, houve um resgate de sua obra, e o autor passou a ser
considerado um visionário, que antecipou muitas questões, só hoje compreendidas. É que
com o desenvolvimento das novas tecnologias, especialmente a partir dos anos 90, também
o computador conectado em rede passou a ser mais que um instrumento ou ferramenta de
trabalho, tornou-se também um meio de comunicação, que proporciona novos tipos de
sociabilidade, diferentes das até então existentes, não se restringindo à interação face a face,
e isto ampliou ainda mais o debate a respeito do significado da comunicação humana.
McLuhan é surpreendentemente atual em suas colocações: afirma que o homem de sua
época está mergulhado em uma crise advinda de revoluções, primeiro a elétrica, depois a
eletrônica, que abalaram os fundamentos da experiência do homem tipográfico, isto é, o
homem habituado à cultura do livro. Está falando das novas tecnologias, da internet, do
mundo virtual? Não, está se referindo ao surgimento dos meios de comunicação de massa e
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o que representaram de impacto sobre uma cultura baseada no livro, em seu texto Visão,
Som e Fúria , de 1954 (anterior ao seu mais conhecido Understanding Midia, de 1964) .
Para ele, já no século XVI, com a invenção da mecanização da escrita, houve uma
grande revolução em relação à escrita em pergaminho, característico da Idade Média. Nesse
período, devido à dificuldade de acesso aos pergaminhos, o estudante procurava memorizar
tudo que lia; isto gerou o enciclopedismo e também a prática de ter pronto para discurso a
erudição total de cada um. Com a mecanização da escrita houve uma maior disponibilidade
de textos para leitura e o discurso oral deixou de ser o método de aprendizado. No século
XX, a exuberância da produção falada e escrita resulta de um desvio da cultura do livro
para a comunicação oral - o rádio, a imprensa, a fotografia desafiaram o monopólio do
livro. O autor traz também uma diferença interessante para pensarmos: cultura para os norte
- americanos sempre esteve mais associada a livros, enquanto para os europeus cultura não
era só literatura, mas também música, pintura, escultura e comunicação. Quando se fala em
erudição e se argumenta que, quanto maior a erudição do receptor, maior a possibilidade de
não se deixar levar pela mensagem dos meios, de que erudição estamos falando? Do acesso
aos livros ou algo mais?
McLuhan afirma também neste texto que todos os meios de comunicação compartilham
um certo “caráter cognitivo”, e que isto deveria nos libertar das perturbações advindas da
preocupação exclusiva com qualquer forma de comunicação. Mas ele dá uma agência e um
poder transformador à tecnologia em si que pode ser problemático17, o que não é o caso
neste trabalho. Resgato sua afirmação, porque me parece que é justamente este caráter
cognitivo dos meios que perturba hoje muitos estudiosos da comunicação e educadores em
geral: se os meios representam um tipo de abordagem do mundo, que leva a um tipo de
17 Agradeço a Sônia Maluf por ter me chamado a atenção para este aspecto.
15
conhecimento sobre o mesmo, há o temor que ele se torne o conhecimento exclusivo, o
considerado mais legítimo.
No debate sobre o poder da televisão na sociedade, surgem propostas de “levar” o “saber
erudito” ou o “saber técnico” ou o “saber acadêmico” a grandes parcelas da população para
que elas pensem “de certo modo”. Um modo considerado adequado e que,
coincidentemente, é um modo próprio de quem detém este saber ver as coisas, e considerar
que só então, assim capacitados, os receptores terão condições de fazer uma crítica à
televisão, eis um grande paradoxo atual, que combina uma crítica recente ao saber
científico e por outro lado, ainda um grande apego a este mesmo modo de ver as coisas.
Através do debate sobre os meios, percebemos que o monopólio continua garantido: é
na instituição acadêmica que continua residindo o saber considerado legítimo. Então por
que o temor? Será que à medida que avançam as críticas à racionalidade, à medida que se
reconhece a legitimidade de vários saberes além do saber científico18 cresce também a
desqualificação de outras formas de apreensão do mundo, que possuem tanta ou maior
pretensão de legitimidade que a ciência?
Ainda para McLuhan, a mensagem encodificada não pode ser considerada uma simples
cápsula produzida de um lado e consumida de outro: a comunicação é comunicação em
toda linha. Esta afirmação também pode ser entendida na perspectiva atual, de considerar a
comunicação como um processo, que não se esgota nas intenções do produtor ou emissor
da mensagem. O autor afirma que para fazermos uma crítica pertinente aos novos meios,
precisamos libertar-nos das concepções próprias da cultura do livro.
E eu acrescentaria: para elaborar a crítica adequada aos meios o problema não seria
apenas estar mergulhado na cultura do livro, mas a valoração construída no interior dessa
18 Refiro-me em especial às abordagens de Tambiah (1991); Geertz (1983) e Bourdieu (1980).
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cultura, a respeito do autor e do leitor. Considerar que o texto contém um sentido
determinado que o leitor só traduz, pois quem dá o sentido é o autor, esta é que me parece
ser a concepção problemática, que é transposta para a discussão sobre os meios.
Trabalhando no campo da literatura, Terry Eagleton (1983) coloca instigantes questões
sobre a relação autor-leitor, que servem para pensarmos a relação emissor-receptor e o
processo de comunicação como um todo. Em seu livro: Teoria da literatura - uma
introdução, no capítulo intitulado “Fenomenologia, Hermenêutica e Teoria da Recepção”,
Eagleton começa sua abordagem com a fenomenologia de Husserl: este autor estava
discutindo a possibilidade do conhecimento, questionando-se a respeito do que poderíamos
ter certeza, quando elaborou sua teoria. Para Husserl, os objetos não são coisas em si, mas
coisas postuladas pela consciência; a consciência é mais do que o registro do mundo, ela
constitui o mundo. O mundo exterior deve ser reduzido ao limite de nossa consciência, esta
é a “redução fenomenológica” de Husserl, e a fenomenologia é a ciência dos fenômenos
puros, um método filosófico segundo o qual todas as realidades devem ser tratadas como
puros fenômenos, tal como se apresentam à nossa mente.
A fenomenologia pretendia fornecer à filosofia uma base experimental para a construção
do conhecimento fidedigno; fornecia um método para o estudo de qualquer coisa, era uma
ciência da ciência ou uma ciência da consciência humana, que indagava sobre as condições
de possibilidade de qualquer tipo de conhecimento.
As indagações atuais sobre o processo de conhecimento não me parecem
substancialmente diferentes. O saber científico e o saber popular são tomados como dois
tipos de construção sobre o mundo, ambos válidos nas suas diferenças. Esta é uma linha
recente de debate nas ciências sociais, que tem preocupado autores bem diversos. Geertz,
por exemplo, no quarto capítulo de Local Knowledge (1983) afirma que, se o senso comum
17
não é nada mais que uma interpretação das imediaticidades da experiência, uma explicação
destas imediaticidades, como são o mito, a pintura, a epistemologia ou qualquer outra coisa,
estão também sujeitos a pautas de juízo definidas historicamente. Para ele, o senso comum
é um sistema cultural, ainda que não muito integrado, que está assentado sobre a mesma
base de outros: a convicção que sua posse se relaciona com seu valor e validade.
Também Bourdieu, em Le sens pratique (1980), afirma que aquilo que nós chamamos
de pensamento primitivo, “pré-lógico” ou “selvagem” não é nada mais que a lógica prática,
adequada à ação e voltada para a ação, aquela à qual nós recorremos cada dia, em nossas
ações e nosso julgamento sobre os outros e sobre o mundo. E pergunta: por que nosso
conhecimento sobre o outro é considerado objetivo? É que para o autor uma verdadeira
compreensão das práticas supõe um duplo movimento: ir além do objetivismo e do
subjetivismo e reconhecer que nossas descrições muitas vezes são feitas do mesmo material
que nós chamamos primitivo.
O debate a respeito do que seria um pensamento primitivo ou civilizado, perpassa as
teorias antropológicas. Recentemente tivemos o resgate da obra de Lévi-Bruhl19, em obras
que nos fazem repensar a racionalidade ocidental moderna e reconhecer seus limites para
entender o pensamento e a experiência humana nos dias de hoje. O fascínio que exerce
sobre nós antropólogos, essa relação entre um pensamento considerado pré-lógico e um
pensamento racional é constitutivo da própria disciplina20.
Na interpretação de Eagleton, se Husserl propunha uma ciência para o estudo dos
fenômenos puros, tal como se apresentam à mente humana, e se questionava sobre a
19 Sobre o resgate da obra de Lévi-Bruhl, ver Tambiah (1990) e Goldman (1994). 20 Desde Lévi-Strauss (1970), com O Pensamento Selvagem, passando por Geertz (1983), com Local Knowledge, e por Sahlins (1990), com Ilhas de História, bem como as discussões que realiza sobre culturas translocais (Sahlins, 1997), trata-se de reconhecer que outros povos têm suas maneiras próprias de pensar e construir sofisticadas explicações sobre o mundo, para nortear, explicar e perguntar-se sobre sua experiência.
18
possibilidade de conhecer, um questionamento profundo que atormenta não só a filosofia,
mas toda ciência moderna, o problema para a realização do “projeto” teórico de Husserl
seria a sua concepção da linguagem: para ele, o significado seria algo que antecede a
linguagem, esta seria uma atividade secundária, que dá nomes a significados que os homens
já dispõem. Heidegger foi um discípulo de Husserl que rompeu com o mestre por discordar
dessa concepção sobre o significado.
Ainda segundo Eagleton, Heidegger ocupa-se da questão do ser e do modo de ser que é
especificamente humano. Essa existência é sempre ser-no-mundo: só somos sujeitos porque
estamos praticamente ligados ao nosso próximo e ao mundo material, e essas relações são
constitutivas de nossa vida, e não acidentais a ela. Surgimos, como sujeitos, de dentro de
uma realidade que nunca podemos objetivar plenamente, que engloba tanto sujeito como
objeto, que é inesgotável em seus significados e que nos gera tanto quanto nós a geramos.
O conhecimento humano move-se a partir de um pré-entendimento: antes de pensar
sistematicamente, já partilhamos de uma quantidade de pressupostos tácitos, obtidos de
nossa ligação prática com o mundo; a ciência e a teoria são abstrações parciais dessas
preocupações concretas.
E o autor continua: para Heidegger, a existência humana é histórica e constituída pela
linguagem. Para ele, a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, um
recurso para expressar idéias, mas aquilo que faz o mundo ser. Só há mundo, onde há
linguagem no sentido humano. Por isto, o próprio Heidegger teria definido seu
empreendimento filosófico como uma “hermenêutica do Ser”, entendendo-se a
19
hermenêutica como ciência ou arte da interpretação. O modelo filosófico do autor é a
filosofia hermenêutica.21
Eagleton também ressalta que um dos hermeneutas sucessores de Heidegger é Gadamer,
que em sua obra de 1960 colocou questões que atormentaram a moderna teoria literária - e ,
eu diria, atormentam até hoje muitos teóricos que estudam comunicação - tais como: qual o
sentido [significado] do texto literário? Que relevância tem para este sentido a intenção do
autor? Podemos compreender obras que nos são cultural e historicamente estranhas? É
possível o entendimento objetivo ou todo entendimento é relativo à nossa própria situação
histórica?
Eagleton (e os autores com os quais está trabalhando) questiona concepções segundo as
quais o significado de um texto seria dado pelo que o autor pretendeu que fosse. Segundo
ele, não há nada na natureza do texto que leve o leitor a interpretá-lo de acordo com o
significado pretendido pelo autor. Só quem considera o significado como algo à parte da
linguagem poderia afirmar isto. Segundo ele, tanto Heidegger como Gadamer
compreenderam que o significado da linguagem é uma questão social, que há um sentido
segundo o qual a linguagem pertence à minha sociedade antes de pertencer a mim.
Depois de abordar a importância da hermenêutica para a teoria do conhecimento em
geral, Eagleton analisa o que segundo ele seria uma novidade, surgindo na década de 80 na
Alemanha: a estética da recepção ou teoria da recepção, que ele considera como uma
manifestação da hermenêutica.
E aqui é preciso sinalizar algumas nuances que surgem nas denominações do campo:
entre os estudiosos de recepção existem polêmicas a respeito de quando começam as
21 Eagleton se refere neste ponto a Sartre, Merleau-Ponty, Ricoeur e outros.
20
preocupações com o receptor, saindo do enfoque nos meios. Fausto Neto, por exemplo,
afirma que as discussões sobre a recepção existem há mais de meio século, ainda que tenha
ganho contornos mais específicos nas duas últimas décadas (Cf. Fausto Neto, 1998: 15).
Maria Immacolata Lopes identifica já nos estudos de Lazarsfeld dos anos 40 uma
preocupação com os receptores, na medida em que faziam pesquisas buscando “vínculos
entre alguns tipos de conteúdos e certos tipos de audiência” (Cf. Lopes 1998: 110). A
mesma autora destaca a contribuição dos estudos culturais, os quais: “analisando a
produção e a recepção da mensagem dentro de um quadro semiológico inspirado no
marxismo, acabaram por colocar a recepção como prática complexa de construção social de
sentido.” (Cf. Lopes,1998: 110). Ou seja, para ela, já existiam estudos de recepção, mas a
perspectiva crítica que emerge nos anos 80 é que seria distintiva:
“Os estudos de recepção na América Latina são muito recentes. Sua emergência se dá no início dos anos 80, no bojo de um forte movimento teórico crítico que procurava fazer uma reflexão alternativa sobre a comunicação e a cultura de massas através da perspectiva gramsciana, reflexão alternativa às análises funcionalistas, semióticas e frankfurtianas, predominantes até então.” (Lopes, 1998:111)
Esta ressalva é importante, pois demonstra que até mesmo ao tentar definir quando
começam os estudos de recepção, nós pesquisadores estaremos envolvidos em escolhas,
dependendo do que desejamos ressaltar na análise. Cabe o destaque de que, neste trabalho,
estou tentando colocar em diálogo aquele campo de discussões chamado de teoria crítica
literária22, com o campo de discussões dentro da antropologia23 e com os estudos mais
diretamente ligados ao campo da comunicação24.
22 Representado aqui por Eagleton (1983)
21
Algumas das referências que estou considerando no debate sobre comunicação em
antropologia, além daquelas já referidas, são as discussões propostas por Winkin25, que
apresenta uma proposta oriunda de uma rede de pesquisadores norte-americanos, “que
formam um colégio invisível em torno de Palo Alto (na Califórnia) e da Filadéfia (na costa
Leste).” (Winkin, 1998:10). Nele o autor traz uma densa discussão sobre a dinâmica do
processo comunicacional, comparado a uma orquestra, que se contrapõe a uma outra visão
mais linear como a do telégrafo (id: 34); também faz uma critica a certas perspectivas,
como a do interacionismo simbólico (id: 104-105), e propõe como metodologia para
investigar a nova comunicação, uma nova lingüística, vendo nela uma possibilidade de
“renovação do programa saussureano em particular e do programa estruturalista, em geral”
(id:112-113).
Parece-me que estes autores26 estão propondo algo diferente do que eu desejo reforçar (e
que outros autores já o fizeram e vêm fazendo) com este trabalho, que é a necessidade de
pesquisas multidisciplinares. O grupo de pesquisadores referido não a está negando, pois a
equipe que propõe o debate de pesquisadores é multidisciplinar (reunindo antropólogos,
psicanalistas, psiquiatras, etc.), mas a proposta que apresentam é de uma antropologia da
comunicação, e a definição ampla de comunicação com a qual trabalham tem privilegiado
outros debates que não a comunicação de massas ou a indústria cultural27.
23 Representado pelos estudos com meios de comunicação de massa e televisão realizado por Leal (1986), Borelli (1996), Hamburger (1999), Travancas (2003), entre outros. 24 Cujas referências aqui seriam a coletânea organizada por Sousa (1995) - a qual mostra que mesmo essa minha tentativa de delimitação é arbitrária, pois a referida coletânea reúne pesquisadores de várias áreas; além dos estudos realizados por Fausto Neto (1998), Jacks ([1987], 1998); Lopes (1998). 25 Refiro-me a Yves Winkin, e sua obra A Nova Comunicação, publicada pela primeira vez em francês em 1984 e publicada no Brasil em 1998. 26 Mesmo considerando-os como grandes contribuidores ao debate, e referindo-me a eles como é o caso de Stuart Hall (1980 e 1998), ou questionando alguns dos autores com os quais dialogam, como é o caso de Eco (1984, 1985, 1988). 27 Ver Winkin, 1998, especialmente a segunda parte do livro, em que explicita as temáticas abordadas nas pesquisas do grupo.
22
São todos debates vitais ao campo antropológico, mas que não resolvem a discussão,
quando penso que a saída ainda é considerar os estudos de recepção como uma
perspectiva28 que atravessa diferentes áreas (não só a antropologia). Estas diferentes áreas,
em diálogo, tentam construir um conjunto de pressupostos, tanto teóricos quanto
metodológicos, que reúnem redes de pesquisas multidisciplinares na América Latina29. Por
isso, parece-me válido tentar propor uma reflexão à antropologia, como uma rediscussão
dos estudos de recepção do ponto de vista antropológico, pois as pesquisas têm avançado
tanto na comunicação como na antropologia, sem conseguir, no entanto, ir além de um
certo limite, que seriam por um lado propor a dinâmica das reinterpretações das mensagens
e por outro lado considerar as relações de poder (essa dicotomia tem se mostrado central no
debate). Este dilema não me parece ser possível de ser resolvido apenas internamente aos
estudos de recepção, pois esbarra em concepções que não são internas ao campo, mas
externas a ele. São algumas concepções sobre as relações entre ciência e senso comum,
sobre cultura e comunicação no Brasil, com a predominância de uma certa ótica que tem
sido mais considerada no debate. Por sua vez, a antropologia, com a riqueza de discussões e
amplitude do conceito de cultura com o qual trabalha, precisa também se definir quanto a
que conceito de cultura está lhe servindo de base ao debate sobre os meios, como veremos,
pois parece estar sendo priorizado um conceito instrumental de cultura na discussão.
A retomada da análise de Eagleton se faz nesse contexto, de tentar mostrar como alguns
questionamentos a respeito da relação autor-leitor30 ainda são muito pertinentes. Vimos que
28 Como propõem, entre outros, Sousa (1995) e Lopes (1998). 29 Como já vêm propondo (e colocando em prática) vários pesquisadores, como se percebe na coletânea org. por Sousa (1995); e também em Borelli (1996); Martín-Barbero (1997); Lopes (1998); Jacks (1998), entre outros. 30 Mesmo com a problematização já feita a respeito desses termos no debate referido.
23
para ele a grande novidade dessa teoria da recepção31, que estava surgindo na década de 80
na Alemanha, seria examinar o papel do leitor. Houve neste período um reconhecimento de
que sem o leitor não há literatura, não há textos literários; que os livros nas estantes não dão
existência aos textos, quem o faz é o leitor. Textos são processos de significação que só se
materializam na prática da leitura. Houve um reconhecimento que para a literatura
acontecer, o leitor é tão vital quanto o autor.
O autor nos leva a refletir sobre a compreensão de um texto: para tanto, compartilhamos
anteriormente de uma série de significados que são construídos socialmente. Há um
trabalho inconsciente de formulação constante de hipóteses, que levam a novas, que vão
sendo solucionadas e ampliadas à medida que a leitura acontece. O texto em si, portanto,
não passa de uma série de dicas para o leitor, para que ele dê sentido a um trecho de
linguagem; é o leitor que “concretiza” a obra literária. A leitura também não é só um
processo cumulativo, um movimento linear progressivo: ela vai e vem, nossas especulações
e hipóteses iniciais são reformuladas. Um certo tipo de leitor já está implícito no ato de
escrever; o “leitor implícito” ou o “consumo” está presente, é parte do processo de
produção da obra literária ou de qualquer outra.
Mas Eagleton reconhece que, ao mesmo tempo em que o significado não está só no
“texto em si”, não podemos, como leitores, interpretar a obra como queremos. Para que a
interpretação seja relacionada com este texto e não com outro é necessário que ela seja
logicamente limitada pelo próprio texto. Como fica esta questão diante da importância do
leitor? O texto é determinado ou indeterminado? Para responder esta questão crucial, 31 Esta que Eagleton chama de teoria da recepção corresponde ao que Maria Immacolata Lopes e outros autores chamam de estudos de crítica literária. Fazendo um breve balanço sobre a tradição que antecedeu os estudos de recepção, ela refere-se à existência de algum consenso quanto a considerar as seguintes correntes teóricas como principais: pesquisa dos efeitos, pesquisa dos usos e gratificações, os estudos de crítica literária, os estudos culturais e estudos de recepção (que assumem hoje o caráter de uma etnografia das audiências). Ver Lopes (1998: 109-111).
24
Eagleton recorre a Fish, crítico literário norte-americano: para Fish, não há obra literária
objetiva, o verdadeiro escritor é o leitor.
Eagleton vai adiante na afirmação da indeterminação do texto: o texto em si é
indeterminado, mas são criadas institucionalmente maneiras consideradas legítimas de se
lerem obras, essas maneiras formam um inventário que funciona como limitação à leitura
do texto. Um exemplo desse processo é a instituição acadêmica. Segundo Eagleton, são
poucos os autores e críticos de literatura que consideram a possibilidade de um texto
literário não ter um único significado “correto”.
Ao pensarmos no processo de comunicação, percebemos que as afirmações de Eagleton
também se aplicam nesse campo mais amplo32: pensando no autor como aquele que elabora
a mensagem e no receptor como leitor, especialmente no caso da televisão. Os estudos de
recepção têm se ampliado desde a década de 80, a importância do receptor tem sido
ressaltada. Contraditoriamente, entretanto, as propostas dos estudiosos que buscavam uma
crítica aos estudos centrados na emissão da mensagem - por considerarem que estes estudos
menosprezavam a importância do receptor e privilegiavam apenas um pólo da
comunicação, sem vê-la como um processo de significação - são algumas vezes os mesmos
que consideram que a possibilidade desse receptor (que desejam respeitar e considerar
como sujeito ativo no processo de comunicação) fazer uma leitura “correta” depende de um
auxílio externo a ele, de alguém que o capacite a ler uma mensagem televisiva
corretamente.
É o caso de ninguém menos que Umberto Eco, o qual afirma que o leitor possui certa
“enciclopédia”, a qual quando ampliada pode fornecer subsídios para uma leitura mais
32 E aqui proponho algumas questões que penso não estarem ainda resolvidas, fazendo um certo retorno na discussão, como ficará mais claro nas páginas seguintes.
25
crítica. Em seu texto “A inovação no seriado” (Eco, 1989), apesar de suas interessantes
reflexões sobre serialidade e criação, que o levam a afirmar que uma tipologia da repetição
não fornece os critérios para estabelecer diferenças de valor estético e que um
procedimento serial tanto pode produzir excelência como banalidade33, Eco faz referência
em vários momentos a conceitos como “enciclopédia do leitor”, refere-se a diferentes tipos
de leitor: leitor modelo - o leitor que o autor tem em vista; leitor ingênuo - aquele cuja
enciclopédia não é suficiente para entender a mensagem de acordo com as intenções do
autor; e leitor crítico - que possui enciclopédia suficiente para entender as intenções do
autor, criticá-las, propor modificações. Quando se refere à televisão, o leitor é considerado
espectador, também ingênuo ou crítico.
Por outro lado, em artigos de seu livro Viagem na Irrealidade Cotidiana34, Eco afirma
de modo crítico que há educadores que exibem um tipo de iluminismo otimista, quando
acreditam que através de um conteúdo de mensagem “correto” pode-se operar uma
transformação das consciências: bastaria modificar as transmissões televisivas, a cota de
verdade do anúncio publicitário, a exatidão da notícia de jornal (Eco,1984: 167). Até aqui o
autor parece concordar com a questão proposta por Eagleton de que o texto é
indeterminado, quem lhe atribui sentido é o leitor. Mas sua posição não é exatamente esta.
Para ele, o universo das comunicações está repleto de interpretações discordantes de
uma mesma mensagem, e esse reconhecimento leva - o a afirmar que “a variabilidade das
interpretações é a lei constante das comunicações de massa” (Eco,1984: 171) . Para ele, o
33 Nisto Eco se diferencia de Benjamin (In Lima, 1978), para quem a obra de arte, quando reproduzida em massa, perde sua “aura”. Eco está afirmando que nem sempre a reprodutibilidade significa a perda das características artísticas de qualidade. 34 Cf. Eco, Umberto (1984). Viagem na Irrealidade Cotidiana. E também Eco, Umberto (1988). Pour une guérilla semiologique. In: La Guerre du faux.
26
problema é que “até agora ninguém controlou a variabilidade das interpretações, ela tem
sido casual” (Eco, 1984: 172).
O que significa parar de se preocupar só com a mensagem e prestar atenção na
variabilidade de interpretações, que estão soltas? Esta variabilidade de leituras ao acaso,
parece que seria um problema a corrigir, na ótica do autor, como se pode perceber em
algumas de suas afirmações examinadas a seguir. Primeiro, Eco afirma que os políticos, os
educadores, os cientistas da comunicação têm considerado que, para controlar o poder dos
mídia seja necessário controlar dois momentos comunicativos da cadeia: a Fonte e o Canal
(fazendo referência ao conhecido modelo de Shannon)35. Mas para ele essa seria uma
maneira inútil de controlar a mensagem, que se apresentaria então ao destinatário como
forma vazia, que o mesmo destinatário preencheria com significados sugeridos pela sua
situação antropológica, pelo modelo da cultura na qual está inserido (grifo meu).
Para o autor, a batalha pela sobrevivência do homem, como ser responsável na Era da
Comunicação, não é vencida lá onde a comunicação parte, mas aonde ela chega. Ao invés
de propor uma só Fonte industrializada e uma só mensagem que chegará o público disperso
do mundo inteiro, como desejam os sistemas de comunicação, “nós” [os cientistas e
técnicos da comunicação] teremos de imaginar sistemas de comunicação complementares,
que permitam atingir grupos humanos isolados, cada membro isolado do público, e discutir
os pontos de partida e de chegada da mensagem.” (Eco, 1974:173).
A proposta de Eco, do modo como a estou entendendo aqui, é que: “os cientistas e
técnicos da comunicação” deveriam imaginar (e criar) outros sistemas de comunicação, não
centrados apenas na emissão, mas contemplando emissão e recepção (pontos de partida e de
35 Para uma explicação detalhada e crítica do esquema de Shannon, ver Fiske (1993).
27
chegada), como uma maneira de superar a possibilidade da recepção ser casual (com
grande variabilidade).
O autor está propondo um debate sobre o processo de comunicação, propondo discutir
os pontos de partida e de chegada da mensagem, envolvendo técnicos de comunicação e
cientistas sociais, junto com receptores, suponho eu que para “capacitá-los” a fazer uma
leitura mais direcionada desta mensagem, uma leitura precedida de mais conhecimento
técnico e provavelmente mais de acordo com o debate acadêmico36, de modo a se construir
certamente uma interpretação crítica da mensagem, mas uma crítica dentro de certos
parâmetros, não qualquer crítica.
Chamo a atenção aqui para a afirmação de um estudioso da comunicação, do campo que
exige democracia dos meios, e no qual também busco me situar, afirmação que ele faz “en
passant”, sem destaca-la como central. Mas deixa escapar nas entrelinhas, me parece, uma
pista sobre um imaginário de “educar o outro”. Não me parece casual, ainda que talvez não
intencional, e não vejo muita diferença com o que as pessoas pesquisadas estão propondo:
também elas querem “educar” receptores que consideram despreparados. Ainda que
supondo uma leitura homogênea da mensagem realizada pelo “outro”, diferenciando-se
nisso da abordagem de Eco, também os pesquisados querem corrigi-la e aproximá-la de
outros parâmetros de leitura.
Mas “controlar as variabilidades na interpretação da mensagem” não equivaleria a um
desrespeito às diferenças? Não estaria aí embutida uma crença em um saber autorizado, que
ensina a outros uma interpretação única, unânime, ou se quisermos, uma só leitura
considerada legítima? Esta é uma questão central na reflexão: até que ponto podemos
36 É o que depreendo de sua análise e das categorias por ele propostas para entender as diferentes leituras dos leitores-receptores.
28
ensinar um tipo de leitura dos meios ao receptor? Porque não aceitar que podem haver
múltiplas leituras de um mesmo texto? Por que considerar que há uma leitura correta e
outra ingênua? O leitor que Eco chama de ingênuo não está criando um outro significado
para o texto, diferente daquele pretendido pelo autor? Qual o sentido “melhor” ou “mais
exato” do texto - aquele atribuído pelo autor ou pelo leitor? Faz sentido considerar que há
um sentido “mais exato” ou “melhor”, no mundo dos significados?
Os grupos que pesquisam sobre este tema têm se preocupado extremamente com o
controle dos meios; posição também manifestada pelo grupo de pesquisados que resulta na
análise aqui proposta. Então, neste trabalho, não estou falando apenas de um grupo de Ijuí,
estou falando de valores que extrapolam aquele grupo, estão muito presentes também no
meio acadêmico – as diversas propostas pedagógicas, inclusive de Umberto Eco, de
“controlar” a diversidade de interpretações, se colocam fortemente no debate.
No Brasil, num contexto em que desde o surgimento dos meios de comunicação, eles
estiveram muito controlados pelo Estado, a discussão sempre se deu dentro desse
paradigma de “educar” o receptor. A proposta de Paulo Freire de “educar para libertar”
podia ser considerada “revolucionária”, pois propunha conhecer as categorias utilizadas
pelos educandos dentro de seu modo de vida e, após conhecê-las, propunha então construir
um diálogo, uma troca, entre educador e educando. Neste processo, ambos aprendiam, e
chegavam a um novo tipo de conhecimento.
A enorme aceitação (e sacralização) da obra de Paulo Freire (portanto, as
reinterpretações e reapropriações de sua obra) parece ter sido transposta hoje para a
discussão sobre os meios de comunicação, sem, no entanto, ser precedida desse “conhecer a
interpretação do outro”. Parece que permanece a disposição de “ensinar”, mas sem
valorizar as releituras, as diferentes intepretações, que vão talvez num sentido contrário ao
29
“conhecimento científico e técnico”, o qual parece ser considerado superior a priori,
mesmo com todos os questionamentos sobre seus limites.
Podemos perceber na sociedade atual a existência de uma grande fala contemporânea
sobre televisão, que a transforma numa vilã, responsável (de modo etéreo e sem sujeitos
concretos que lhe correspondam) pelos problemas sociais, dos quais seus críticos parecem
desejar se isentar. O grupo de pessoas pesquisadas pode ser considerado um grupo de
“especialistas em TV”: são pessoas que, a partir da grande experiência de ver todo tipo de
programação televisiva, adquiriram uma familiaridade com a linguagem e com as técnicas
que os leva a formular críticas sofisticadas à produção. Não basta considerá-los
“receptores” da mensagem televisiva, pois revelam uma posição crítica que ultrapassa esse
lugar e invade o mundo privado e público.
O que nos diz esta meta-narrativa, que está presente nas falas de pessoas pertencentes a
grupos de camadas médias, e muitas vezes na própria fala acadêmica, sobre nossa
sociedade? É uma fala que contém um significado extremamente negativo sobre a
televisão, a qual aparece como a grande vilã na era da comunicação e da globalização, mas
que contém em seu interior uma outra: a de que o verdadeiro “vilão” é aquele que não
percebe as intenções da TV de enganar. Este outro sobre o qual se supõe conhecer até a
preferência, a posição política, a ética e a estética (muitas vezes com base no que diz a
própria TV sobre ele), é que seria o grande vilão oculto.
Com isto, percebe-se que não basta reconhecer que o sujeito é capaz de realizar
releituras, pois se de um lado pode haver até um reconhecimento de diversidade cultural, de
múltiplas culturas moldando leituras múltiplas sobre a mensagem da televisão, por outro
lado interpela-se a TV de modo homogêneo, exigindo que mostre a verdade, a ética e a
estética, a política, e a educação nos moldes da própria cultura do interpelador. Reconhecer
30
que o Outro pode realizar releituras e reinterpretações da mensagem tem sido o forte dos
estudos de recepção. Mas o segundo passo tem sido negado sistematicamente no processo
social e extrapola os estudos de recepção: há uma desqualificação constante dessas outras
leituras, uma negação da capacidade do outro de realizar a leitura adequada, de preencher
as lacunas, de elaborar abstrações. Repõe-se, portanto, a incapacidade do receptor, em outro
nível de análise, não aparente, que lhe retira o estatuto de sujeito que lhe era doado37.
Precisamos repensar alguns pressupostos, e nesse repensar, perceber que a proposta de
democratização dos meios ou de qualificar o receptor quanto à produção (como propõe, por
exemplo, a comunicação comunitária38), não é incompatível com o reconhecimento de que
certa crítica aos meios traz subjacente um equívoco de exigir leitura homogênea e
acadêmica desses mesmos meios. Esse reconhecimento não significa abrir mão da crítica ao
poderio dos meios, aos abusos econômicos, aos acordos espúrios, à exigência de ética e
transparência. O reconhecimento de que existe um receptor crítico não significa inocentar
o produtor quanto às suas intenções de lucro ou tentativas de distorção nas informações;
significa reconhecer que o receptor pode percebê-las.
Instigada por estas questões, lembro autores como Simmel e a sua noção do indivíduo
metropolitano como aquele que possui a atitude blasé; Benjamin referindo-se ao flaneur de
Baudelaire, como aquele que flui e frui no espaço urbano e outros, como De Certeau, que já
ressaltaram a fragmentação metropolitana, a impossibilidade de apreender a totalidade
37 Parece-me que um dos dilemas enfrentados pelos estudos de recepção está relacionado justamente com o temor de, ao propor que o sujeito receptor realiza múltiplas interpretações, cair numa defesa liberal da cultura de massa. Cf. discute Lopes (1998:114). O que estou tentando propor aqui é que não precisamos abandonar a idéia de diversidade para sair dos impasses nessa perspectiva de discussão. O que talvez precisemos é repensar nossos pressupostos sobre as relações de poder, nossas concepções sobre cultura, e as relações entre saber erudito e saber popular. 38 Os estudiosos da comunicação comunitária estão propondo que o receptor se transforme em produtor, numa perspectiva de valorização, para que tenha “acesso à comunicação”, como forma de ampliar seus direitos de cidadania Cf. Peruzzo (2002), uma proposta que busca oportunizar inclusão social.
31
desse universo, tanto para o homem mergulhado em seu cotidiano como para o analista e
que propõem o estudo dos traçados urbanos como uma das possibilidades de se entender ou
reconstituir trajetórias nesse espaço complexo.
Está faltando uma teoria que aplique a mesma lógica e tenha a mesma postura diante da
complexidade do mundo da comunicação de massa. Até agora, a maioria dos estudiosos
dos fenômenos da comunicação estiveram preocupados com o controle destes sobre a
sociedade ou como a sociedade pode controlá-los. Não se tomou ainda o fenômeno do
ponto de vista da diversidade, da variabilidade e da complexidade, para além da perspectiva
do controle. Para mim, esta complexidade é da mesma ordem da explosão urbana: as
megalópoles também possuem grupos econômicos poderosos tentando controlar o espaço
urbano, esquadrinhá-lo, definir traçados, da mesma forma que os poderosos grupos
econômicos que controlam as empresas de comunicação.
Vivemos numa época classificada por alguns autores como a “Era da Comunicação”, um
período em que não só a comunicação é considerada por muitos um poder à parte, além do
político e do econômico, mas também um período em que a informação e o conhecimento
são extremamente valorizados; um período em que, além disso, o volume de informações
que circulam é impossível de ser apreendido na totalidade. Num período como este, as
pretensões de democratização dos meios de comunicação de massa, tanto da propriedade
dos mesmos, como a elaboração das mensagens, são tratados ainda dentro dos ideais
iluministas de libertação. Não há o reconhecimento - que, acredito, se faz necessário - de
que o desenvolvimento das comunicações de massa atingiu um nível em que o controle
total, seja da mensagem, seja do receptor, seja do processo, é impossível. A impossibilidade
do controle, ao invés de nos angustiar, deveria, como ao flaneur, nos libertar.
32
Abandonar a perspectiva do controle e aceitar a possibilidade de múltiplas interpretações
críticas da mensagem é um duplo movimento que a teoria da recepção não poderia realizar.
Propôs um estatuto de sujeito para o receptor, mas esbarrou nas reinterpretações sociais que
por sua vez se fizeram dela: foi interpretada pelos estudiosos de fora do campo como não
contemplando suficientemente as relações de poder39 nas quais o receptor está mergulhado.
Os estudos de recepção tentam propor um debate num mar de idéias em que predominam as
visões sobre a superioridade de certos saberes e de certos tipos de cognição; a barreira que
enfrentam é epistemológica. Esbarram numa concepção social nem sempre explícita, que
permeia os vários campos de estudo, relacionados ou não à comunicação, e está presente
em nosso cotidiano, de que a ciência é a melhor e mais legítima explicação de mundo. É
esta concepção de fundo que impede o reconhecimento de que um receptor que não tenha
saber erudito, não possua poder político e não tenha poder aquisitivo seja considerado
sujeito crítico. Aliada a esta concepção, há outra: a de que os meios são bem mais
poderosos na manutenção do sistema. Novamente reposta a dicotomia entre as práticas
cotidianas e o sistema cultural imutável40, ou o “sistema social objetivo”.
Existe uma grande fala alarmante sobre TV hoje devido a esta compreensão de que este
poder não é percebido por outras pessoas. Negar o poder da televisão sobre si, negar que vê
muita TV e lhe dá importância, supor que a TV tem um poder maléfico sobre outros, tem
sido o estilo com que a TV tem sido tratada por pessoas de camadas médias e também por
39 Dentro do campo os estudiosos estão sempre discutindo as relações de poder nas quais o receptor está envolvido, como é visível nos estudos de Lopes (1998), Fischer (1997), além de Martín-Barbero (1997). De fora do campo, no entanto, supõe-se que subestimam essas relações, por proporem considerar o receptor como sujeito. Como já salientei, penso que a saída não é abandonar a consideração de que existem múltiplas leituras, mesmo quando queremos contemplar as relações de poder. E para isso, também não precisamos adotar uma perspectiva liberal em relação à cultura de massas. 40 Sobre os conceitos de “prática” e “experiência” e suas relações com o sistema cultural, ver Ortner (1984), em seu artigo: “Theory in Anthropology since the Sixties”.
33
muitos intelectuais41. Talvez alguns reconhecimentos, por exemplo, que todos vêem muita
TV hoje e que são pessoas que lhe atribuem a grande importância de que desfruta,
contribuam para trazer questões novas ao debate.
CONCLUSÔES
Neste artigo, foi realizada uma reflexão sobre a crítica à televisão42 elaborada por um
grupo de pessoas de camadas médias, procurando relacioná-la com as abordagens teóricas
dos estudos de recepção e outras teorias com as quais estes dialogam. Pode-se notar que a
perspectiva adotada aqui inclui-se no campo da crítica à televisão, mas foi construída
tentando olhar não só para a televisão ou seu receptor, ou o contexto onde eles estão
mergulhados. Foi uma tentativa de construir uma reflexão sobre a crítica à televisão
construída socialmente, buscando conexões explicativas que permitissem considerar as
concepções dos pesquisados não como peculiares a um grupo social, mas no que
apresentavam em comum com outros grupos, inclusive a visão sobre o sistema social.
No momento de ver TV, os pesquisados constroem uma imagem de si – uma imagem de
valorização da cultura letrada, do domínio de diferentes línguas e o gosto pelas viagens; e
constroem imagens do outro – que não tem condições de entender e criticar a mensagem
televisiva, não tem poder e fica à mercê do poder televisivo.
Esse posicionamento levou-me a repensar diversas abordagens adotadas por estudiosos
da comunicação de massas, as mudanças de perspectivas que levaram à emergência dos
estudos de recepção nos anos 1980, e os dilemas e limites que enfrentam estes estudos, que
41 A respeito dos debates intelectuais sobre cultura, ver cap. 6 da tese citada. 42 Estou considerando o termo crítica em seus significados tanto negativos quanto positivos, e no caso desta pesquisa, como “crítica especializada”, emitida por quem vê TV de determinada maneira ( num estilo de negar a prática de vê-la e também com outros estilos) e vê a TV , destacando seu significado social e cultural.
34
acabam sendo reinterpretados e não conseguem evitar a reposição, num outro nível de
análise, dos mesmo pressupostos que desejam problematizar.
A elite também aparece em vários momentos na crítica dos entrevistados: governar com
base em interesses pessoais, corrupção, excessiva maleabilidade, pouca disciplina, nenhum
respeito as leis ou nenhuma coerência, são comportamentos considerados próprios das
elites e expressos também na TV e na crítica a ela. Parece que o horário do noticiário é o
horário da expressão das elites e o horário das novelas é expressão de uma vulgaridade
cultural. Comprimidos entre esses dois contextos culturais, os pesquisados se rebelam e
lançam suas críticas: à elite, sem identificar-se com ela e sem considerarem-se responsáveis
pela elaboração de políticas sociais; e aos grupos populares, pelo “rebaixamento” da
cultura, com sua preferência ruidosa e nada erudita. Talvez por considerarem que a elite
seria a principal responsável pela reprodução do sistema social (considerado imutável ou
quase) os pesquisados preferem concentrar suas críticas a um suposto gosto popular e uma
“falta de cultura” dos grupos populares, esta sim vista como passível de mudança, numa
noção muito próxima à de “civilizar”.
A discussão sobre cultura brasileira deu muitas voltas em nossa história, mas manteve
um fundo comum: uma certa noção de inautenticidade, seja da cultura, seja da identidade
do brasileiro, seja do “nacional”, esteve sempre presente, na discussão de vários grupos de
intelectuais e também em outros circuitos43. A noção de inautenticidade da cultura popular
foi recorrente desde os anos 1960, ainda que nos períodos anteriores essa noção fosse
aplicada à cultura dos grupos dominantes ou de elite. Suponho que houve uma inversão
43 Alguns autores que discutem densamente sobre cultura brasileira, papel dos intelectuais e identidade nacional, e que tomei como referência fundamental para construir esta periodização, foram: Ortiz (1985,1988), Oliven (1986), Pereira de Queiroz (1980), entre outros.
35
simbólica desse período em diante, pois foi apenas nos anos 60 que pela primeira vez a
cultura dos grupos populares foi também considerada inautêntica44.
Esta inversão simbólica é realizada quando, a partir de uma suposição de inexistência
(ilegitimidade ou inautenticidade) de uma “cultura popular”, segue-se um corolário de que
não há “solução” para o Brasil, enquanto sua população for “atrasada”; portanto estende-se
a suposição de inautenticidade cultural a toda identidade brasileira45.
Este imaginário aparece quando elaboramos nossas críticas aos meios de comunicação
de massa, mas sobretudo à televisão, e pretendemos lutar por sua democratização. Uma luta
justa, pois como vimos também, no Brasil os meios de comunicação, desde o seu início,
foram sempre muito tutelados pelo Estado e pela iniciativa privada, que se utilizaram deles
para seus projetos políticos e econômicos, quase sempre ocultando informações. No
entanto, este contexto mudou, e agora o que impera nos meios de comunicação de massa é
uma relativa diversidade e fragmentação, além da segmentação de públicos, e um propósito
sempre presente de obter lucros. As empresas de comunicação hoje não são “fiéis” a
nenhum governo e/ou Estado (mas parecem bastante fiéis ainda a uma estrutura social
capitalista), nem conseguem esconder por muito tempo seus vínculos com este ou aquele
grupo no poder.
O mundo das comunicações se complexificou: podemos perceber que muitas das críticas
à televisão, no entanto, se dão nas mesmas bases que nas décadas anteriores. Suponho que
44 Quem originalmente apontou esta consideração de inautenticidade da cultura popular foi Pereira de Queiroz (1980). Tento relacioná-la aqui com a noção de inautenticidade surgida na crítica à televisão. 45 Note-se que não estou aqui, por minha vez, supondo que exista uma “cultura popular” autêntica ou inautêntica, ou uma cultura de elite idem; o que estou tentando demonstrar é que os termos e valores subjacentes ao debate são estes.
36
há um conteúdo de “esquerda”, de contestação política na crítica à televisão hoje, sem
corresponder necessariamente a uma posição política e a uma prática de esquerda.
A “crítica à televisão” aqui analisada refere-se ora à falta de cultura da população para
entendê-la, ora ao ocultamento de informações, à aliança nem sempre revelada ou
identificável com grupos do poder, ou ainda ao estímulo excessivo ao consumo. É uma
crítica cultural (certos grupos não possuem cultura, os problemas da sociedade brasileira
devem-se à falta de cultura e ao perigo que a TV representa neste contexto), uma crítica
política (há muito ocultamento de informações, candidatos favorecidos, a população não
percebe que a TV manipula) e uma crítica social (crítica ao consumo excessivo, que
poderia ser uma crítica à sociedade de consumo, mas localiza-se na televisão).
Na crítica cultural, já tentei demonstrar que surge uma inversão simbólica: o problema
parece não ser tanto à falta de cultura na televisão, mas sobretudo uma suposta falta de
cultura da população para entender sua mensagem. Na crítica política emerge uma
concepção de que a TV ainda é um aparelho ideológico do Estado – mas nesse caso
também o seriam as escolas e as universidades e todas as instituições capitalistas e teríamos
de reconhecer mais eficácia ainda naquelas onde a interação social é mais direta,
envolvendo “confiança”46, sentimento de que os meios em geral, e a televisão em especial,
não desfrutam. Na crítica social há uma combinação das críticas anteriores, e ela parece
dirigir-se ao capitalismo, pois a intenção de ampliar vendas e elevar o consumo como
forma de obter sempre mais lucro é a razão de ser de todas empresas capitalistas.
46 Agradeço a Dejalma Cremonese e Amir Limana o debate sobre o conceito de “capital social”, o qual tem como um dos ingredientes fundamentais a “confiança” para poder se acumular. Ver, por exemplo, Putnam, Robert – La tradizione civica nelle regioni italiani. Milano: Mondato, 1993. E também, do mesmo autor, Comunidade e Democracia, a experiência da Itália Moderna. RJ: FGV, 1996.
37
A crítica à televisão, nesses termos, não está servindo para caminharmos rumo à
democratização dos meios: quando a crítica é cultural, a desvalorização da cultura popular e
da identidade brasileira está imbricada; quando a crítica é política, não apresenta saídas;
quando a crítica é social, poderia se dirigir a toda sociedade capitalista, mas se concentra
só na televisão.
Como é uma crítica que (segundo uma das hipóteses explicativas que arrisco) parece se
colocar no “campo da esquerda”, eu poderia dizer que ela é uma crítica à sociedade
capitalista, mas uma crítica que, após a queda do muro de Berlim, após a União Soviética
retornar a ser Rússia, não encontra um objetivo, não propõe uma alternativa. Que outra
sociedade essa crítica propõe? Sem a utopia que dava sentido à critica da sociedade, a
crítica à televisão cai no vazio. Todos a repetem e ninguém lhe dá ouvidos. Todos olham
TV. Olham e julgam que, se não disserem que olham, ou se disserem que não olham,
estarão mais livres para criticá-la. Quando a crítica flui livremente, revela uma prática
constante e especializada de ver TV.
Como no tempo das navegações, as idéias de crítica à TV viajaram dos anos 60 até hoje
quase com a mesma bagagem. Nosso imaginário está prenhe de concepções que circularam
dentro e fora do Brasil nesse período. Quando digo “nosso imaginário”, estou
generalizando um pouco, mas creio que a construção deste trabalho - que partiu de estudos
de etnografia de audiência da televisão com algumas pessoas de camadas médias, e
resgatou uma discussão sobre cultura brasileira de modo a demonstrar certas conexões entre
idéias e práticas em torno da televisão, da cultura, das relações sociais, compartilhadas por
intelectuais e pelas pessoas entrevistadas - demonstrou que é um imaginário que não está
restrito a um grupo de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul.
38
As concepções acerca da televisão explicitadas pelos pesquisados também estão entre
estudantes universitários, entre jornalistas, entre professores do ensino médio e
fundamental, entre cineastas e artistas, entre militantes de diversos partidos políticos, entre
religiosos de vários matizes, no campo e na cidade, nas metrópoles e no interior, estão
também nas letras de música e nos filmes. Não encontrei, nesses vários períodos de
pesquisa, alguém que não fizesse uma crítica à televisão ou que não a assistisse nunca.
Sinto-me autorizada a generalizar pelo menos o tipo de crítica à televisão. Talvez minhas
tentativas de explicação dos significados dessa crítica é que não possam ser tão
generalizadas, pois estão marcadas pela escolha tanto de um certo recorte teórico como
empírico, mas espero que sirvam pelo menos para elaborarmos novas hipóteses no campo
dos estudos de comunicação de massa, e para refletirmos sobre a possibilidade de
elaboração de uma outra crítica à televisão hoje.
Uma das hipótese que arrisco é que precisamos abandonar o termo mídia. Venho
propositadamente falando em meios de comunicação de massas e televisão, procurei não
utilizar o termo “mídia”. É que percebi nos debates sobre a pesquisa47, que quando nos
referimos à mídia em geral, a comunicação de massas fica avassaladora, não há um sujeito
concreto que lhe corresponda. Parece um grande fantasma, distante de nós, sem a agência
humana. Poderia dizer que parece nosso Frankenstein moderno, mas mesmo este tem o
reconhecimento de ter sido criação humana, ainda que com resultados inesperados. Assim
sem sujeito, o termo “mídia” revela a reificação que fazemos a respeito dos meios de
comunicação de massa hoje. Se desejamos lutar por democracia dos meios, precisamos de
um sujeito a interpelar. Se exigimos ética e transparência nas informações e posições
47 Especialmente a partir dos Seminários de Teoria Antropológica II, do PPGAS/UFSC, coordenado pelos professores Oscar Calavia Saez e Raphael Bastos, a quem agradeço, bem como a todos os colegas com quem pude debater o tema.
39
defendidas, podemos nos dirigir ao jornalista, ao publicitário, ao cineasta, ao escritor da
telenovela, enfim, a um produtor concreto, podemos criticar seu texto, seu filme, sua
novela, discordar dele politicamente, exigir que revele fontes, etc. Mas se criticamos a
mídia em geral, a quem vamos nos dirigir?
Outra hipótese que arrisco é que podemos parar de dar tanta importância à televisão.
Através da diminuição dessa crítica constante, não estaremos certamente diminuindo o
poder da televisão, mas pelo menos não o estaremos alimentando, como hoje. Empregamos
um tempo, uma energia, uma emoção, e vários tipos de cognição para criticá-la de um
mesmo modo há tanto tempo, que esta mesma crítica acaba lhe conferindo ainda maior
visibilidade, acaba aumentando seu poder e tolhendo nossa criatividade, fazendo-nos entrar
no mesmo campo de massificação que criticamos.
Outra hipótese é que esta crítica à TV tem servido para alimentar certos pressupostos,
que estão no campo epistemológico e são bastante problemáticos. Alimenta-se, com esse
discurso, uma crença num saber isento e neutro, quando exige-se isso das emissoras (em
geral não do indivíduo, a exigência dirige-se à TV como um todo); alimenta-se uma crença
sobre a possibilidade do conhecimento (científico sobretudo) apreender a “verdadeira”
realidade e com isso são afastadas as possibilidades de valorização dos recortes, das
reinterpretações. Quando se percebe isto? Em vários momentos, como aqueles em que se
exige do texto a “verdade dos fatos” quando poderia ser exigida uma “interpretação
autoral” dos fatos48 (de preferência mais de uma sobre o mesmo fato); ou quando se exige
do texto da novela que combine com os valores de determinado grupo; quando a novela é
tomada como um produto com “intenções ocultas”, enquanto poderia ser tomada como
48 Exigência esta que certamente já vem sendo colocada por muitos estudiosos, no entanto talvez muitos deles se colocando no mesmo campo das concepções analisadas aqui, que embasam o tipo de crítica à televisão que estou tentando colocar em perspectiva.
40
narrativa construída por uma equipe e poderiam ser criadas maneiras de interação crítica
com estes produtores. Quando se supõe que as montagens, edições, mensagens
subliminares, estão imperceptíveis para os grupos populares – mas os programas
popularescos estão no universo televisivo há algum tempo, revelando os bastidores da
programação com mais ou menos humor (refiro-me a programas como Ratinho, Gugu, e
outros, como Big Brother, etc). Há um certo domínio público do código televisivo, que, no
entanto, está sendo negado por essa crítica, construída com base na valorização de outro
tipo de cognição.
Outra hipótese que arrisco é que a negação de ver TV poderia ser revista. Há uma crítica
que condena por sua vez não só o conteúdo televisivo, mas especialmente a prática de ver
televisão. A TV é onipresente na vida diária das sociedades contemporâneas. No entanto,
ver TV não é uma prática admitida ou aceita. Na medida em que a negação persiste, nega-
se também a possibilidade de lhe fazer uma crítica detalhada e aberta. Esta negação de que
vemos TV tem conexões com outros pressupostos: um imaginário que opõe “tempo livre” e
“tempo perdido”, como mostraram os dados da pesquisa realizada. Parece que a TV ocupa
um tempo perdido, quando poderia ser considerada dentro do tempo livre, como escolha,
sem necessidade de abrir mão da crítica. Socialmente não é considerada legítima a prática
de ver televisão, mesmo que a telenovela seja um sucesso inquestionável há mais de vinte
anos no Brasil. Parece haver uma “culpa” coletiva sobre a prática de assistir TV, que
considera o receptor indefeso, submetido a uma vilã perversa.
Esta crítica contestatória à televisão e à prática de vê-la poderia se traduzir em uma
prática contestando a sociedade (para quem o desejasse), mas ela permanece como um
discurso de contestação à TV, não à sociedade e nem precisando se traduzir em prática.
Através da crítica à TV, garante-se um posicionamento progressista, sem necessidade de
41
um exercício de cidadania que significasse sair de casa ou sair de frente da TV, ou parar de
falar nela.
As hipóteses aqui levantadas pretendem contribuir para uma outra crítica à TV hoje, e
esta outra elaboração, certamente deverá envolver não só estudos transdisciplinares, mas
também uma profunda reflexão no campo da teoria do conhecimento, sobre os pressupostos
epistemológicos contidos tanto na construção das mensagens e imagens, e em sua recepção,
em contextos culturais específicos, quanto em sua análise.
Há um alvo na sociedade atual, que garante a quem lhe dirige dardos, estar contra o
sistema e fazer parte de uma comunidade de sentido: esse alvo é a televisão. A comunidade
de sentido na qual se ingressa quando se emite certo tipo de crítica à televisão parece
definir um novo tipo de pertencimento, mais fluido, e ao mesmo tempo representa uma
garantia de pelo menos algum acordo em torno da análise dos problemas sociais
contemporâneos. E aqui finalmente vislumbro um grande sentido positivo, que articula toda
a análise proposta sobre a crítica à TV: talvez não seja em torno da TV que as pessoas se
reúnem hoje, e sim um certo modo de ver a TV é que parece servir de união, e pode estar
servindo para alimentar um outro imaginário: a busca da possibilidade de ainda construir
algum consenso na sociedade contemporânea.
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Autora: Nara Maria Emanuelli Magalhães
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ
Professora Adjunta Departamento de Ciências Sociais
Dra. em Antropologia Social
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