Imigrantes brasileiros em Portugal

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Dossier (entrevista + reportagem com testemunhos) sobre a integração de imigrantes brasileiros em Portugal

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21»noticiasmagazine 10.JAN.2010

TodasAsPalavras»nm# 920»entrevista

Imigrantes.António Luís de Jesus Pires,54 anos,é o responsável pela paróquia da Costa de Caparica,onde a comunidade imigrante

brasileira residente é muito significativa,a maior do país:cerca de quatro milbrasileiros,ou seja,um terço da população total da freguesia almadense.

ENTREVISTA Sarah Adamopoulos¬ FOTOGRAFIA Rui Coutinho

Que ecos tem de comportamentos racistas porparte da população em relação à comunidadebrasileira residente na Costa de Caparica?Não tenho conhecimento de comporta-mentos racistas em relação à comunidadebrasileira. De qualquer modo, recordo, nãocomo sendo um comportamento racistamas um comportamento desastrado, aqui-lo que aconteceu há uns anos, no início dofenómeno da imigração brasileira, quandoos serviços responsáveis pelo controlo daimigração ilegal mandaram cercar a praçaprincipal da Costa e enviaram para identi-ficação dezenas de pessoas. Isso aconteceunum domingo de Janeiro, enquanto tocavauma banda na praça, criando um ambientede alarde desnecessário.Em que contexto surgiu essa operação poli-cial?

Num contexto de controlo da imigraçãoilegal, embora eu pense que há outras for-mas de fazer esse controlo. Em muitos ti-pos de circunstâncias, um comportamentomais desastrado pode provocar situaçõesque promovem a segregação. Quanto aproblemas de segregação, não tenho co-nhecimento de que haja, mas conheço si-tuações em que as pessoas se chocam emconsequência dos seus feitios e tambémdas suas culturas. Por vezes, alguma comu-nicação social, ao empolar alguns compor-tamentos menos adequados, pode provo-car na população comportamentos quetêm uma aparência de segregação mas quesão comportamentos defensivos.Não posso concordar consigo. Parece eviden-te que há uma enorme diferença de estatutoentre os brasileiros da primeira geração e os

da segunda. Diferenças que determinamque os brasileiros da primeira vaga fossembem acolhidos e os da segunda geração jánão sejam assim tão bem recebidos, nemtenham razões para esperar prosperar nonosso país, ao contrário do que aconteceucom os da primeira geração. Os artistas e intelectuais brasileiros quevêm a Portugal e que vemos nos jornais erevistas diariamente são brasileiros desucesso e não sei de comportamentos xe-nófobos em relação a eles, que dão imen-sas entrevistas e autógrafos e voltam to-dos contentes para o Brasil. Acontece quenão se misturam com os brasileiros quecá vivem e trabalham, e aliás nem os co-nhecem. Nós temos sessenta por centode crianças brasileiras no nosso infantá-rio e nunca ouvimos falar de manifesta-

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ções xenófobas por parte de nenhuma mãeou pai portugueses. Na escola, o mau com-portamento afecta tanto os alunos portu-gueses como os brasileiros. No entanto, háum enorme problema por resolver: o de sa-ber qual é o trabalho que o Ministério daEducação faz com uma criança brasileirachegada a Portugal com 8, 10 ou 14 anos e vaifrequentar uma escola pública. Como sãovalidadas as suas competências à entrada nosistema de ensino português? O que se dizsobre as crianças brasileiras pode ser dito so-bre as africanas. Se essa criança for devida-mente acompanhada, como em muitos ca-sos já é, e as suas competências à entrada tiverem sido devidamente validadas, e emconsequência a criança tiver sido integradanum nível adequado, será ela vítima do insu-cesso escolar que assola hoje uma parte sig-nificativa dos filhos dos imigrantes? Sãoquestões da responsabilidade do Estadoportuguês, e que devem ser reflectidas, pri-meiro de um ponto de vista teórico, e depoisprático. Que acordos tem o Estado portu-guês com o Estado brasileiro e com os ou-tros? Tem o Estado português capacidadepara fazer uma avaliação de competênciasaos cidadãos brasileiros que vêm frequentaras nossas escolas? As escolas estão prepara-das para o fazer? Têm essa competência, es-sa autonomia? Podem, em consequência deuma avaliação e acompanhamento sérios dacriança, fazê-la recuar dois ou três anos, setal for de facto considerado necessário?

leiros e outros. Já as questões de racismo,acho que são, muitas vezes, empoladas. Quer dar um exemplo?Há uns tempos, houve um jornal que publi-cou uma notícia, com fontes oficiosas, di-zendo que na margem sul havia um gang li-gado ao Brasil que tinha uma estrutura de ti-po mafiosa. Um gangcomplicadíssimo e quelevantaria graves questões de segurança emuito temor. Ainda hoje estou para saberqual era a fonte oficiosa e que credibilidadetinha aquela notícia. Mas ela fez primeirapágina desse jornal e eu recebi telefonemasde todas as televisões e da maior parte dosjornais a pedirem a minha opinião. Se traba-lhasse para outro órgão de comunicação so-cial, eu ia à procura daquela fonte… «as fon-tes» ! Penso mesmo que nos estamos a tor-nar um país de «sussurros» e de «fontes». O que eu quero dizer é que este tipo de em-polamentos, que se fazem com grande faci-lidade, vêm frequentemente de fontes quenão são credíveis. Dou-lhe um exemplo: seeu viver num prédio de dez andares e hou-ver um conjunto de vizinhos recém-chega-dos, sobretudo homens, a viver sete ou oitona mesma casa – sendo que um ou outro be-be habitualmente alguma cerveja –, no diaem que fizerem um bocado de barulho por-que beberam umas cervejas a mais, eu, queacabei de saber por um órgão de comunica-ção social credível (onde trabalham jorna-listas que têm carteira profissional) que háum gang de tipo mafioso a operar no meu

Eu, se estivesse no lugar deles, diria o mes-mo. Vejamos a que condições de trabalho sãoem muitos casos sujeitos os imigrantes bra-sileiros: qual é a vida de um jovem brasileirode 17, 18, 20, 25 anos? É uma pessoa que lar-gou toda a sua família, uma família alargadacomo nós já não temos hoje, marcada por fe-nómenos de pobreza, e que chega a um paísestranho, onde fica a viver com mais quatroou cinco, numa situação muito complicadaem termos de emprego, por vezes de escra-vidão, sim. Está por fazer a história da Ex-po’98, a história dos estádios de futebol, etambém a história da instalação do gás cana-lizado, onde trabalharam muitos brasileiros– e essas histórias são concomitantes, sim,trata-se do mesmo «pacote» de grandes em-preitadas e de subempreitadas e de subem-preitadas de subempreitadas, em que traba-lharam muitos imigrantes brasileiros. Rece-bi inúmeras queixas de pessoas a quem seficou a dever dinheiro. Estou convencido deque em muitas obras públicas que foram pa-gas, o dinheiro não chegou às mãos daquelesque as executaram. Ou seja, grandes obrasque todos nós pagámos a pessoas que não pagaram a muitos trabalhadores imigrantes.E por isso eu acredito que um brasileiro quechegue hoje a Portugal, sobretudo se vem so-zinho, vem a contar com essas injustiças….Porque ele aqui pode confrontar-se com si-tuações de pobreza mais gravosas do que ti-nha no Brasil, onde apesar de tudo contavacom o apoio da rede familiar. Ele aqui tem deviver com mais três ou quatro, porque a via-gem que ele comprou para Portugal foi comdinheiro emprestado, e porque tem de man-dar dinheiro para o Brasil. E tem obviamen-te de ter dinheiro para comer e pagar as con-tas da água, da electricidade, etc. Interessa-me perceber o que é que eu faço como «outro» que é diferente de mim e que vem vi-ver para o meu prédio. Posso confiar nele? Quaissão as suas motivações? Vai ele ajudar o meupaís em crise? Ou, pelo contrário, veio trazermais problemas? Posso ajudá-lo, se tambémeu precisar de ajuda? Como devo encará-lo?Esse outro que é diferente veio para cá paratrabalhar, e trouxe para cá os mesmos objec-tivos que nós levámos para França ou para aAlemanha quando para lá emigrámos emmassa. Esse outro que é diferente pretendeencontrar trabalho, esperando que lhe pa-guem, que é para conseguir enviar algum di-nheiro para casa. Esperando, também, ir vi-ver a sua reforma para o seu país, ou entãoencontrar raízes aqui, e ficar por cá. Ora,sempre que isto não acontece, as coisas tor-nam-se complicadas para ele. Porque aquiloque eu espero de um país para onde vou é queesse país me proporcione aquilo que lá fuiprocurar: no caso, trabalho. Se nesse país nãoexiste trabalho para mim, ou se porventuraexiste mas o preço da hora diminui cada vezmais, eu passo a ter reacções pouco simpáti-cas em relação a esse país, para onde eu fui

Intenções «Queremossempre integrar as pessoas,masimporta ver se o fazemos bem.Esta reflexão é importantíssima.»

Temos também o problema da língua, que advémda ilusão de partilharmos uma mesma língua, ouuma mesma cultura, e que é uma questão cen-tral em termos de políticas de integração. Em matéria de integração não chega terboa vontade. Nós queremos sempre inte-grar todas as pessoas, mas importa ver se ofazemos bem. Interessa perceber se foramconvenientemente avaliadas as competên-cias da criança brasileira que entrou na nos-sa escola, e quem diz brasileira diz cabo--verdiana. São estas as questões que verda-deiramente importa perceber num paísque recebe imigrantes. Esta reflexão é im-portantíssima, porque pode determinar aintegração ou não das pessoas. Ter boas in-tenções não chega para fazer a integraçãoadequada aos imigrantes que temos, brasi-

concelho, fico aterrorizado, e pergunto--me se aqueles sete ou oito brasileiros nãofarão parte dessa organização criminosa.E por isso falo de empolamentos. E de em-polamentos muito graves, porque gerammedo e preconceito. Porque depois, eu,que estou incomodado com aqueles brasi-leiros do meu prédio, começo a dizer aosmeus amigos que os brasileiros são todosiguais, e essa opinião é reproduzida, e derepente o que é uma opinião torna-se umafalsa verdade. A facilidade com que se fazum empolamento de consequências gra-ves é muito preocupante.Isso não torna o racismo que há em Portugalmenos significativo ou preocupante. Falei cominúmeros brasileiros que me disseram que sãovítimas de racismo no nosso país.

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com uma determinada expectativa. Interes-sa também tentar perceber o que é que a co-municação social do Brasil diz de Portugal,que país ela veicula. O que é que eles dizem?Contactei alguns jornalistas no Brasil que medisseram que isso não é um assunto lá no Bra-sil. A única história de imigração que é inscritaé a dos imigrantes que foram para o Brasil (osjaponeses, os italianos, os alemães). Disseram--me também que isso se deve à juventude dopaís, cujas elites (que controlam a comunica-ção social) mal se comovem quando matam umbrasileiro na Europa. Um país cuja história so-cial no estrangeiro está por fazer. Pois. E eu sei porque é que isso não é um as-sunto. Eu pensava que uma cidade com tan-tos imigrantes brasileiros como é a Costa deCaparica se tornasse também um local de re-ferência para os artistas, os intelectuais e osagentes de cultura brasileiros. Mas nunca ne-nhum cá veio. E mais: não estabelecem qual-quer tipo de contacto, como se a comunidadeemigrante brasileira que trabalha nas obras,no comércio, etc., em Portugal não tivesse na-da que ver com eles, como se não pertences-sem ao mesmo país. Ora isto, para um portu-guês, é incompreensível. Como é que os inte-lectuais brasileiros que vêm a Portugal falarde igualdade e cantar canções bonitas, algu-mas das quais estiveram proibidas antes do 25de Abril, não têm um olhar de afabilidade pa-ra os seus concidadãos? O que eu esperava eraque uma vez chegados a um aeroporto portu-guês eles se dirigissem aos seus irmãos brasi-leiros e lhes mandassem um grande abraço, eprocurassem interessar-se pela sua sorte.Mas não, nunca conseguimos cá trazer ne-nhum. O contacto com as populações emi-gradas é uma preocupação dos artistas por-tugueses e de outros agentes de cultura.Pensemos no exemplo de Amália, que emmuitos casos, nas suas deslocações a paísesde emigração portuguesa, se referia aosemigrantes, chegando mesmo a cantar paraeles. Esta preocupação faz, de facto, parte donosso património.Suponho que seja porque não têm meios de pa-gar os cachets chorudos que seguramente pe-dem. Que trabalho social é este que a sua paró-quia dedica a esta comunidade um bocadinhoespecífica pela expressão grande da imigraçãobrasileira?O trabalho que nós fazemos é o trabalho quea Igreja faz. A Igreja tem as portas abertas, aspessoas vão entrando, umas vão pedindo aju-da, outras vão conversando, ou seja, não faze-mos um trabalho que a Igreja não faça nou-tras paróquias. É um trabalho de disponibili-dade para atender as pessoas e para asacompanhar nos tempos em que elas preci-sam de acompanhamento. Estar com elas,ajudá-las – e falo de toda a comunidade e nãoapenas dos imigrantes. Não podemos ficar alheios ao facto de a comu-nidade imigrante brasileira ser aqui tão expres-siva. Será que não têm problemas e necessida-

des específicas, diversas das das comunida-des tradicionais?Essas necessidades específicas têm sobretu-do que ver com formas de pobreza. Pobrezaafectiva e pobreza material. Começamos a teros primeiros fenómenos de pobreza afectivae material na comunidade imigrante, que nãotínhamos há quatro ou cinco anos. E isto é umproblema novo. Temos imigrantes ilegais, al-guns sem trabalho e que revelam formas mui-to agressivas de pobreza. Nomeadamenteporque não têm acesso aos meios de apoio so-cial que os portugueses têm, rendimentos sociais de sobrevivência e inserção, designa-damente. E nessas situações nós tentamosajudar naquilo em que a comunidade cristã écapaz, nomeadamente ao nível das necessi-dades básicas. Em relação à pobreza afectiva,aos laços e às redes, tentamos ajudar a que es-

estranho que uma mulher adolescente, de 18anos – e nisto posso ser evidentemente con-trariado no meu juízo, porque se trata demaiores de idade – ande a viajar sozinha pe-la Europa. Posso entender que os serviçosnão sejam capazes de interceptar essas mu-lheres adolescentes se forem poucas, mas seforem muitas, e se ficarem alojadas em ho-téis em Lisboa, então acho estranho que is-so não aconteça. Esta é uma das realidadesque conheço de mulheres sós. Sei tambémde grupos de três, quatro ou cinco mulheres,que vêm na expectativa de encontrar traba-lho. Essas mulheres procuram sobretudopessoas idosas que estão acamadas, e a tro-co de algum dinheiro e de alojamento, ten-tam amealhar qualquer coisa. Mas acho es-tranho que essas «enfermeiras de idosos»acertem logo, encontrem logo um idoso que

Olhares «Como é que os intelectuais brasileiros que cá vêm falarde igualdade não têm um olhar deafabilidade para os seus concidadãos?»

ses laços e redes se criem, promovendo o en-contro entre as pessoas. Ou seja, criar condi-ções para que um indivíduo de 24 ou 25 anos,que chegue aqui sozinho, não seja exploradonem pelos que já cá estavam nem por todos osoutros. Criar grupos que os informem e de-fendam, que os ajudem a encontrar trabalho,e também a não ser enganados. Há também apreocupação de fomentar momentos de con-vívio entre essas pessoas e a população portu-guesa local, de forma a integrar realmente aspessoas estrangeiras e de alargar as suas pos-sibilidades efectivas de inserção.A imigração brasileira tem hoje muitas formas,não é já só essa imigração a que se referiu an-teriormente. Há muitas mulheres que imigramsozinhas, por exemplo. Há pessoas que vêmtrabalhar durante uns meses para pagar umadívida, para lançar um negócio, e já não forço-samente para criar raízes. Em relação às mulheres sozinhas devo con-fessar que acho muito estranho que mulhe-res adolescentes brasileiras se passeiem so-zinhas pela Europa. Sabemos de alguns casos de mulheres que foram espancadas,aqui na Costa, e que tinham andado a passearpela Europa toda, o que muito me intriga.Está a referir-se a redes de prostituição, presu-mo. Calculo que sim, nalguns casos. E isso es-panta-me, porque passam todas pelo aero-porto de Lisboa, onde estão as polícias e osserviços de informação e segurança. Acho

lhes dá trabalho e as acolhe. Por que acho es-tranho? Porque essa mão-de-obra está tam-bém abrangida pela lei do trabalho. Essesidosos pagam-lhes? Fazem descontos? Ou étudo clandestino? Tudo o que não seja claroprejudica sempre o mais fraco.Essas mulheres vêm responder a necessida-des nossas, ou enfim, às de um mercado cadavez mais marcado por fenómenos paralelos àtransparente legalidade.Se eu fosse uma pessoa aflita com problemasde dinheiro no Brasil, é evidente que aceitariaesses trabalhos em Portugal. O que quero di-zer é que não me custa compreender o que vaina cabeça da pessoa que vem e aceita traba-lhar nessas condições. O que me custa com-preender é em que condições ela vem, e comoé a sua vida enquanto está cá. Porque essestrabalhos podem ser trabalhos de escravidão.Porque essas mulheres ficam indefesas, re-féns na casa de pessoas que a todo o momen-to podem chantageá-las: ou você trabalha ashoras todas ou eu ponho-a na rua. Mas mais:pensemos por exemplo na situação de umasenhora ou de um senhor com Alzheimer,que fica em casa com uma enfermeira que afamília mal conhece – quem é que verifica sehá maus tratos? E se houver medicação emexcesso para eles dormirem o dia todo e nãodarem trabalho? Sei de casos assim. Temos deser muito cuidadosos quando olhamos paraestas realidades complexas. Se nós, em Por-tugal, não temos meios de acudir a situações

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destas, se não temos mão-de-obra suficien-te, ou se a temos, mas de pessoas indisponí-veis para realizar esse tipo de tarefas, o quevamos fazer? Vamos continuar a fazer tudono desenrascanço e a usar os imigrantes? É evidente que isso dá mau resultado e traznovos problemas.Uma das queixas que ouvi dos imigrantes irre-gulares foi precisamente a da protecção dotrabalho, que não existe. Um desses imigran-tes disse que em Espanha, onde trabalhou an-tes de vir para Portugal, se sentia mais prote-gido, porque podia denunciar quando não lhepagavam e era atendido.Eu não conheço a realidade e a legislação es-panholas, mas tenho algumas dúvidas de queesteja efectivamente mais protegido em Es-panha. Em Portugal, se um imigrante sozi-nho, sem o apoio de uma associação ou deuma instituição, denuncia uma irregularida-de laboral, sentirá grandes dificuldades. Por-que são muitas as barreiras que tem de ultra-passar, para além da falta de informação ao ní-vel dos seus direitos, o que o impede a maiorparte das vezes de avançar com uma queixa.Mas se fizer isso ajudado, enquadrado poruma associação por exemplo, a experiênciaque tenho demonstra que as autoridades por-tuguesas agem. Ainda assim, verifico que nal-guns casos as pessoas não fazem nada porquereceiam ser deportadas. Mas isso são as con-sequências da imigração ilegal. Não sei se emEspanha será melhor, mas sei que em Espa-nha a pressão da construção e a falta de mão-

E por isso digo que uma comunidade tão re-presentativa só tem a ganhar em associar-se.Há a Casa do Brasil e há associações na Amo-ra e no Seixal que existem para os ajudar.Há também o ACIDI, em Lisboa, com gabinetesde aconselhamento e enquadramento legal, àespera que os imigrantes lá vão com projectosassociativos. Ou seja, têm acesso a ferramen-tas fornecidas e financiadas pelo Estado por-tuguês no seguimento das políticas de fomen-to à negociação social definidas pela Europacomunitária. Como motivá-los então para a ne-cessidade de tomarem a resolução dos seusproblemas em mãos?Penso que isso decorre do facto de ser umaimigração ainda recente. Ainda não houvetempo para fazer esse caminho. Mas é pre-ciso perceber que embora tenhamos criadoessas condições, talvez não estejamos aindaa incentivar nem a acompanhar esses pro-cessos como deve ser. Penso que no caso dascomunidades africanas isso está um bocadomais desenvolvido.Já há seguramente mais caminho feito do queno caso dos brasileiros, embora com muitas di-ficuldades ainda.Penso que mais do que colocar o enfoque nocombate à imigração ilegal no sentido dasdemonstrações de força que referi atrás, épreciso transferir esse enfoque para a ori-gem dessa imigração, que é para as pessoasperceberem que não vale a pena virem. Por-que quando elas vêm já é tarde de mais – porque quando vêm isso significa que já

ra além de gerarmos desemprego no nossopaís. As estradas não aparecem do nada. É muito fácil descobrir onde é que eles traba-lham e em que condições. Aqui, na Costa deCaparica, a mão-de-obra feminina brasileiraprovocou o desemprego de alguma mão-de--obra feminina africana. Porque a hora que amulher-a-dias africana levava era mais carado que a hora que a brasileira leva. E falamosde cafés, de lares, de cabeleireiros, de tudo. A mão-de-obra africana é toda, ou a maiorparte, legal, conhece os seus direitos e não sesujeita a trabalhar em casa de uma pessoa 24horas por dia – porque tem a sua vida, a sua fa-mília, a sua casa. Uma mulher brasileira acei-ta trabalhar 16 horas por dia num lar. Como é que podemos esperar que elas se as-sociem a trabalhar 16 horas por dia? Quando éque têm tempo e cabeça para tomar consciên-cia dessa necessidade? É também por isso que considero empola-mentos como aquele que houve há uns anosem Bragança uma irrelevância. Mas uma ir-relevância perigosa, com consequências ter-ríveis, porque hoje é fácil fazer-se generaliza-ções negativas sobre a mulher brasileira.Acompanhei esse caso e falei com pessoas deBragança. Li e vi tudo o que a comunicaçãosocial disse. As entrevistas com as ofendidasresumiram-se a pouco mais que duas. Duas!Acha isto representativo? As cidades peque-nas sempre tiveram fenómenos de prostitui-ção – perante a indiferença das autoridades.Nas cidades mais pequenas do interior sem-

Protecção «Em Portugal,se um imigrante sozinho,sem o apoio de uma associação ou de uma instituição,denunciauma irregularidade laboral,sentirá grandes dificuldades.»

-de-obra são de tal ordem que partem daquimuitos carros cheios de ilegais para trabalharem Espanha. Lembro-me de irem para lá car-rinhas cheias de trabalhadores ilegais e deachar muito estranho que nenhuma opera-ção stop os interceptasse. Eles iam daqui atéMadrid e ninguém os mandava parar. Mor-riam e morrem que nem tordos nas estradasportuguesas e espanholas, mas não vejo nadana comunicação social a noticiar a detençãodos responsáveis por essas viagens e emprei-tadas. Penso que o comportamento de Espa-nha em relação aos ilegais tem sido pior ain-da do que o nosso. Sei de muitos trabalhado-res que regressaram e que acabaram por ficaraqui pela Costa. Parece-me evidente que oque os espanhóis pagam a um imigrante bra-sileiro não tem comparação com o que pa-gam a um trabalhador espanhol. Duvido queeles estejam mais protegidos em Espanha.

estão endividadas no Brasil e não têm remé-dio, têm de ficar para tentar ganhar algumdinheiro, e então debatem-se com todo o ti-po de problemas.Penso que essa reflexão não está minimamen-te feita, nem na nossa sociedade nem da deles.Penso que a comunicação social não faz o seutrabalho, porque não chega fazer as coisas se-gundo uma agenda mediática que só de vezem quando é que se lembra dos brasileiros.Tal como não chega dizermos que somos umpaís que recebe imigrantes para depois nãosermos capazes de os acolher com dignidadee com afabilidade. Uma parte desse trabalhode sensibilização passa pelas escolas. Os pro-blemas do emprego são os que geram maisconflitualidade, mas a verdade é que enquan-to nós aceitarmos que se pode pagar menos aum ilegal as coisas vão mal, e esse ilegal con-siderará sempre que está a ser maltratado. Pa-

pre houve casas de alterne. A diferença é queagora têm brasileiras. E ucranianas. E que pordetrás delas estão muitas vezes redes mafio-sas de tráfico de seres humanos. Como é quese explica que tenha aparecido há uns meses,na Costa de Caparica, na rua, uma adolescen-te brasileira que tinha sido violentamente es-pancada? Onde há uma significa que há mais.Como é que se explica que uma rapariga bra-sileira, uma pobre da Bahia, tenha chegado aLisboa e ficado alojada num hotel de cinco es-trelas, e tenha seguido para Estocolmo, ondeficou durante bastante tempo, e tenha depoisvoltado a Portugal, onde acabou por vir ficara uma pensão na Costa de Caparica, onde le-vou essa enorme tareia? A naturalidade comque a generalidade das pessoas encara isto es-panta-me! Veio o SEF, vieram as polícias, masninguém achou nada de estranho. Fizeram asidentificações e foram-se embora.«

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oitenta revela idiossincrasias que mere-cem reflexão. Se é por definição áspera aconquista a que todos os migrantes se aba-lançam quando saem do seu país por ra-zões de subsistência, a verdade é que o es-tatuto dos brasileiros em Portugal tem so-frido alterações significativas, e que nãoestão apenas em relação com o facto deconstituírem hoje uma das maiores comu-nidades imigrantes no nosso país. Umolhar atento ao que se passa nas ruas, naslojas, nos programas de televisão, na socie-dade portuguesa em geral, revela que osportugueses se tornaram frequentementehostis em relação àqueles que nos anos oi-

tenta eram tidos como irmãos – irmãos naHistória e na língua, que as telenovelas bra-sileiras consagravam sem demoras comouma espécie de heróis exóticos da nação.

HiperidentidadesGente (sobretudo mais velha, talvez irre-vogavelmente marcada pelo pensamentocolonial do Estado Novo) que ao primeiropequeno conflito logo trata de mandar osbrasileiros para a terra deles. Mas não só,porque o fenómeno é mais vasto e maiscomplexo do que isso. Na verdade atinge asociedade portuguesa de forma transver-sal, e ainda mais por estes tempos de globa-

lização (que tornou mais afirmativa a dife-rença no pensamento da generalidade) ede depressão económica – factores que fi-zeram disparar para níveis disparatadosum sentimento hiperidentitário, que se jános dominava, agora literalmente nostranstorna. Do que resulta que, se a con-quista já era áspera para os brasileiros imi-grados, agora é-o ainda mais, em razão damaneira como são pensados pelos portu-gueses. Não se tratará, com efeito, apenasde ressentimentos mais ou menos incons-cientes, despoletados pela escassez de tra-balho num mercado deprimido e entregueaprocessos paralelos, tão-pouco apenas de

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Eu tou dentro de um ci-nema vendo um fil-me», diz com grandenaturalidade um brasi-

leiro que contactei no início desta reporta-gem, e logo me indigno – se estava no cine-ma por que atendeu o telefone? Não me en-tra na cabeça, isto. Não começamos bem?Infelizmente começamos, porque, sem po-liciamento socialmente correcto, me des-cubro também eu xenófoba, também eu lo-go pensando que «é mesmo coisa de brasi-

leiro, atender chamadas no cinema». E noentanto, quantos portugueses e outros eu-ropeus fazem o mesmo? Muitos segura-mente, e aliás as salas de cinema são hoje nasua esmagadora maioria lugares muito di-ferentes daqueles que conheci em tempos – lugares de entretenimento e apenas, ondese comem pipocas ruidosas e se bebem co-pos gigantes de Coca-Cola e... se fala ao te-lefone. Hábitos culturais e costumes à par-te, envergonham-me os meus pensamen-tos preconceituosos, que embora o meusentido crítico não reconheça como sendomeus (mas de uma cultura que me antece-de, a que define o discurso pátrio sobre o

Outro Diferente, e que nenhuma política deintegração parece conseguir tornar algumavez Igual), são-no, porque os carrego comouma maldição – que é o que são os «aprioris»e os preconceitos, os clichés e os rótulos, assupremacias e demais complexos sociais.

Estatuto social mudouMas, se vários factores explicam a discri-minação que por defeito costuma atingirentre nós, e num primeiro plano, as gentesoriundas de terras outrora colonizadas pe-los portugueses, no caso dos brasileiros ocaminho percorrido pelas suas comunida-des de imigrantes desde meados dos anos

«

Começámos por acarinhá-los,a eles que vinham do país de Elis,Caeta-no,Vinicius,João Cabral de Melo Neto,Drummond de Andrade,ou dasnovelas como não havia outras.¬Honrava-nos a sua presença,a alegriaque agradecíamos,a fraternidade na língua,aquela energia.¬ Hojeolhamos amiúde para eles como malandros usurpadores dos nossos em-pregos e maridos,parecendo-nos,quem sabe por serem tantos,afinalmuito diferentes de nós.¬E para a integração dos seus imigrantes nasociedade que também eles constroem como um problema que não fossenosso também.¬Viagem pela imigração brasileira em Portugal.

TEXTO Sarah Adamopoulos¬ FOTOGRAFIA Rui Coutinho

Ópera

«Hoje em dia, não sei se é dos antidepressivos ou dos brasileiros, estamos muito mais alegres.»,

Luísa Costa Gomes a Elisabete Pato, nm 29.11.2009.

dos malandros

REPORTAGEM

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Casa do Brasil contabilizava 150 mil cidadãosbrasileiros em solo português, 110 mil legaisrecenseados pelo SEF, a que foram somadosos cerca de quarenta mil então com dupla na-cionalidade ou em situação irregular à épo-ca. A Casa do Brasil acredita serem hoje bas-tante mais, já que o fluxo migratório com ori-gem no Brasil prosseguiu com afinco, apesarda crise. Não estaremos longe da verdade seconsiderarmos serem actualmente pelo me-nos duzentos mil. Um estudo sociológicoefectuado pela Casa do Brasil sobre a segun-da vaga de imigração brasileira revelou que36 por cento dos inquiridos não tinha docu-mentação em dia, desempenhando predo-minantemente tarefas laborais para as quaisnão são necessárias qualificações específi-cas: comércio, restauração, limpezas, assis-tência a doentes e idosos e construção civil.Uma parte importante dessa segunda vagaé protagonizada por mulheres (mais de cin-quenta por cento, segundo o SEF) que imi-

gram sozinhas, suportando financeiramen-te as famílias deixadas no Brasil (filhos epais). Segunda vaga que ao invés da primei-ra, que usava os canais informais de apoio àchegada e à integração, se faz agora amiúdeatravés de redes de contrabando e de tráfi-co humano. Realidades preocupantes, so-bretudo se acrescentadas da tensão socialentre nacionais e imigrantes resultante dacrise económica que a todos afectou. De talforma, que o número de brasileiros reenvia-dos para o seu país (a pedido dos próprios,desesperados sem trabalho) aumentou sig-nificativamente. No final de 2009, a Orga-nização Internacional para as Migraçõesajudou cerca de mil cidadãos brasileiros aregressar ao país de origem. Fluxos migra-tórios ainda assim com tendência a prosse-guir, em resposta, também, às necessidadesdo país em matéria de trabalho barato. Essaé uma questão central – o valor do trabalho,que os imigrantes brasileiros fizeram de-

ses, que se mantêm ao largo, embora cons-tituam uma ameaça económica muitomaior. Convém lembrar que os brasileirosbeneficiam de protecções no âmbito dosacordos bilaterais celebrados entre os Esta-dos português e brasileiro, o que lhes dá be-nefícios de cidadania que por exemplo osafricanos não têm.

Estudo europeuProtecções consideradas, os crimes provoca-dos pelo pensamento xenófobo são uma rea-lidade incontornável e preocupante. EmAbril de 2009, um inquérito de âmbito euro-peu (o primeiro no género a estudar de for-ma sistemática e alargada os grupos minori-tários), realizado pela Agência dos DireitosFundamentais da União Europeia (FRA) nos27 Estados membros junto de 23 500 pessoasimigrantes ou pertencentes a minorias étni-cas, revelou que 55 por cento dos inquiridosconsiderou ser muito vasta a discriminação

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preconceitos relacionados com a sensuali-dade (para nós exuberante) das mulheresbrasileiras, mas de algo maior (embora me-nos definido) e mais grave do que isso.

Em bom portuguêsSenão vejamos: como explicar que um cida-dão português, emigrado no Brasil durantevários anos, se veja, quando regressa, «xin-gado» por todos por causa do sotaque e daspalavras e expressões brasileiras que lhesaíam com musical mimetismo? Não fala-mos de uma «gozação» passageira, feita da-quele humor inconsequente que nos põe arir das nossas diferenças, mas de uma firmenão aceitação, de uma censura, de uma re-jeição liminar perante a ideia de um nosso

trabalho, Brandon está objectivamente nu-ma situação irregular.

Brasileiros melhores no Brasil E também Clément Darrasse, fotógrafo e ar-tista plástico francês, anteriormente casadocom uma cidadã brasileira, tem percorridoum longo e duro caminho para se afirmarcomo falante do português. Ao fim de quasedois anos a residir e a trabalhar em Portugal,varridos que foram (à conta de muita repres-são e apelos à leitura em português de Por-tugal) os seus sotaque e léxico brasileiros,Clément conquistou o direito a falar portu-guês com os portugueses. E um lugar no co-ração dos mais preciosistas defensores dalíngua – porque o seu domínio dela os es-

conterrâneo esquecer em tão pouco tempoas sonoridades e as regras do bom portu-guês de Portugal. Ou que dizer de BrandonStevens (nome fictício), americano tran-quilo que quando chegou a Portugal há no-ve meses vindo do Brasil, feliz da vida porconhecer a língua e ser capaz de usá-la pa-ra comunicar fluentemente, se viu logo àchegada inibido de falá-la, por portuguesesempenhados em não participar do «aban-dalhamento» da língua, e que sistematica-mente (mesmo quando sabem que ele gos-taria de poder fazer progressos em portu-guês) o obrigam a falar em inglês? Brandonconstitui aliás um excelente exemplo de-monstrativo da diferença de estatuto entreum americano do Sul (um brasileiro, porexemplo), e um americano do Norte: ilegalem Portugal, quando o anuncia a um portu-guês o facto é invariavelmente estranhado.Intriga-os que um norte-americano possaestar ilegal. E no entanto, sem um visto de

panta, e lisonjeia. E no entanto, quando che-ga o momento de escolher um destino de fé-rias, os portugueses escolhem muitas vezeso Brasil, e quando voltam falam daquele po-vo simpático, e daquela alegria, que dir-se--ia, em muitos casos, não serem capazes dereconhecer nos brasileiros que estão emPortugal. Mas será que os brasileiros só va-lem a pena no Brasil? Ou será que os portu-gueses só são generosos e simpáticos quan-do estão de férias? Felizmente há excepções,como Laura Guarda Moreno, uma jovem es-tudante do secundário conhecida entre osamigos por gostar de brasileiros – uma «bra-sileirófila» digamos assim, neologistica-mente. Para ela, os brasileiros são mesmoum povo irmão, que ela aprecia sobrema-neira. «Eles são alegres até mesmo quandosão miseráveis e têm imensos problemas»,diz Laura, que tem um reconhecido fraqui-nho também pelo sotaque brasileiro, queconsidera «muito musical e bonito».

Ter pancada por brasileirosDiz que há muito quem a ache estranha,acusando-a de ter uma «panca», um féticheque não compreendem. Aprecia os rapazesbrasileiros, porque são exóticos, em geralmorenos, como ela gosta, gentis, e muitomais sensuais do que os portugueses. Dizque as raparigas que afirmam não gostar debrasileiros «mudam de opinião quando osconhecem». Laura Moreno acha que os jo-vens brasileiros que frequentam as escolasportuguesas não têm dificuldades de maiorcom a língua, e que não será pelas diferençasentre o português do Brasil e o de Portugalque deixarão de ter as mesmas oportunida-des. Mas numa coisa a jovem reparou: quehá qualquer coisa neles que não os leva a tra-

crescer, de uma forma que indigna a gene-ralidade dos discursos, mas esconde a reali-dade de uma economia que precisa deles,explorando-os sem escrúpulos. Quem se-não eles aceita trabalhar um número muitosuperior de horas às estabelecidas pela leido trabalho (como no caso das brasileirasque dão assistência a lares de doentes e ido-sos) ou o mesmo número de horas por mui-to menos dinheiro e nenhumas responsabi-lidades (caso das empregadas domésticas)?Se as desregulações que vieram trazer aosmercados laborais é um facto, o nosso incó-modo xenófobo é tanto maior quanto maisse afirmam, lentamente misturando-seconnosco, que nesta matéria talvez os pre-feríssemos mais discretos – como os chine-

balhar para ter bons resultados escolares.«Não se esforçam para ter boas notas, quasetodos os que conheço chumbaram pelo me-nos uma vez, o que é encarado com natura-lidade pelas famílias. Acho que vêm de umasociedade muito diferente, em que passar deano e ter boas notas conta menos.» Será? Ouserá antes porque a grande maioria dos imi-grantes brasileiros que vivem e trabalhamem Portugal vem de lugares de pobreza en-démica, de onde saem pessoas muitas vezessem instrução nem qualificações laboraispassíveis de os tornar mais ambiciosos nou-tros planos para além do material?

LevantamentosEm 2006 o SEF (Serviço de Estrangeiros eFronteiras) recenseou entre os brasileiros le-galizados quarenta mil com autorizações deresidência, oito mil com autorizações de per-manência e pouco menos de vinte mil comvistos de longa duração. No final de 2008, a

AbusosOs imigrantes

brasileiros fizeramdecrescer o valor do

trabalho,o queindigna os discursos

mas esconde umarealidade queprecisa deles.

Nenhum destesbrasileirosirregulares gostavade ser português. Não têm aspiraçõesde cidadania e todostêm o mesmoobjectivo: voltar aoBrasil.

Marcos Santos, natural de Minas Gerais, mostra o cartão de cidadão que atesta a sua nacionalidade portuguesa.

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para um senhorio ou uma agência para ir vi-sitar uma casa que está para arrendar, é inva-riavelmente informado que essa casa já foialugada. Pelo que há que pedir a um amigoportuguês, ou alguém que não tenha sota-que brasileiro, para fazer a chamada de con-tacto. E também na visita ao imóvel e even-tual posterior negociação, é melhor que obrasileiro tenha um amigo que não seja bra-sileiro para fazer a mediação. Mas há mais,muitas mais situações que revelam o enor-me preconceito. Se um brasileiro faz um as-salto, o tratamento mediático da notícia vi-sa quase sempre a comunidade brasileira to-mada no seu todo. O mito da criminalidadeem torno das minorias é, aliás, usado e abu-sado pelas propagandas políticas mais po-pulistas, que tradicionalmente usam os imi-grantes como bode expiatório para o que vaimal na sociedade portuguesa: «Os imigran-tes são sempre os culpados, foram eles quevieram baixar os salários e a culpa é toda de-les e nunca dos empregadores. Os estereóti-pos são muito fortes», diz Vanessa, quequanto a ela está mais protegida, por serbranca e estar casada com um português.

Um café e «uma queca»A Lisboa tem chegado ultimamente «muitagente sem qualificação profissional, mas sena primeira vaga de imigração as pessoasqualificadas conseguiam equiparação, ac-tualmente não conseguem», diz a brasileira.Ainda assim, também para ela nem tudo fo-ram rosas. Quando chegou ao nosso país ti-nha imensa dificuldade em entender esteportuguês, o que muito parecia intrigar osportugueses. Vanessa pensa que apesar de asnovelas terem ajudado a divulgar as especi-ficidades do português falado no Brasil, averdade é que há também muito quem nãoentenda os brasileiros. Diferenças que origi-nam equívocos por vezes divertidos: entrarnuma pastelaria e pedir «uma queca» em vezde um queque, ou numa papelaria pedir Du-rex [entre nós uma marca de preservativos]em vez de fita-cola, por exemplo. Apesar doaspecto europeu do Norte de Vanessa, a bra-sileira pensa que o tratamento muda quandoas pessoas descobrem que afinal ela vem doBrasil. «Mais um morto de fome aqui» é umcomentário usual, diz. Mas nem todos os bra-sileiros vêm para Portugal para passar difi-culdades. Há quem tenha vindo com a firmeintenção de fazer vingar uma ideia de negó-cio – como Boanerges Campos, 50 anos, na-tural de Campinas, São Paulo.

EmpreendedorismoAquela que sem dificuldade figuraria emqualquer lista pretendendo determinar oconjunto das comummente aceites como aspiores profissões de todas, é a que trata comcanos, águas sujas, redes de esgoto obstruí-das por concentrações de resíduos humanos– a gordura por exemplo, de todos o mais di-

fícil de eliminar, e também de tirar da me-mória olfactiva de quem chamou a si a tare-fa de desentupir. Engenheiro civil, Boaner-ges chegou a Portugal no dia em que o Chia-do era consumido pelas chamas, deixandono ar de Lisboa um cheiro a queimado queele nunca mais esqueceu. No Brasil, conta,onde tinha uma empresa de tratamento deágua de piscinas (entenda-se de desentupi-mento de tubagens, cheias de cabelos hu-manos e folhas, por exemplo), o brasileiro ti-nha comprado a segunda de uma série demáquinas patenteadas a um emigrante por-tuguês no Brasil. Uma máquina inspiradanum modelo industrial que poderia talvezusar em Portugal no lançamento de um no-vo tipo de serviço na área da limpeza e de-sentupimento de piscinas. «Mas quandocheguei aqui, percebi que o negócio do de-sentupimento de piscinas não era viável,porque é Inverno durante muitos meses, eporque já havia bastante gente a fazer esseserviço, caso das empresas que vendem aspiscinas, que também vendem a manuten-

ção.» Boanerges pensou então que talvez naárea do desentupimento doméstico pudes-se lançar o seu negócio inovador.

Pioneirismo «No Brasil eu tenho um grande amigo, queantes de eu vir para cá esteve um sábado in-teiro a tentar dissuadir-me, porque, dizia ele,tudo o que eu pudesse imaginar como pos-sibilidade de negócio, já existiria cá certa-mente. Ele achava que o facto de Portugal jáestar na Comunidade Europeia significavaque todas as áreas de negócio já estavam to-madas. Mas estava enganado. Abri as Pági-nas Amarelase não havia nada.» Estava-se nofinal dos anos oitenta, os dentistas brasilei-ros apenas pareciam demasiados aos seuscongéneres portugueses, que se viramameaçados nos seus privilégios corporati-vos, e a única reserva da sociedade portu-guesa de que o empresário se recorda era aobrigatoriedade de ter um sócio português.Quando Boanerges pedia uma informaçãona rua, as pessoas eram extremamente gen-

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no seu país de residência e que 37 por centodiz ter sido alvo de um acto de discriminaçãono ano imediatamente anterior. Doze porcento afirmaram ter sido vítimas de crimesracistas, embora não os tenham participadoàs polícias. Questionados sobre o silêncio, 63por cento justificaram-no com o argumentode que as queixas não resultam em nada, des-tinando-se apenas à estatística, e oitenta porcento afirmaram desconhecer organizaçõesde apoio ou aconselhamento – o que denotanecessidades urgentes em matéria de sensi-bilização para os direitos das minorias, nosentido de conquistar a sua confiança nosmecanismos legais de protecção. Em Portu-gal, 74 por cento dos brasileiros inquiridos(de um universo de cerca de quinhentos re-sidentes nos concelhos de Lisboa e Setúbal)considerou haver discriminação baseada naetnia ou na origem. O acesso à habitação e aocrédito bancário, por exemplo, são zonas declara segregação. Mas são as questões labo-rais as que motivam mais queixas de imi-grantes em Portugal, sobretudo por partedos candidat os guineenses, em regra prete-ridos em favor de alguém de raça branca.Nesta matéria, os brasileiros mais escuros es-tão também em desvantagem. E no entanto,a nossa Constituição é clara na questão da dis-criminação por razões da cor da pele. E tam-bém o nosso discurso politicamente correcto.

Abusos de poderMarcos Santos, 44 anos, natural de MinasGerais, hoje cidadão português, foi vítimadesse preconceito inaceitável. Há semanas,o brasileiro foi abordado por uma dupla depolícias de Segurança Pública quando umseu colega de trabalho foi avistado sem cinto– facto azarado de poucos segundos, decor-ridos entre ter saído do carro para entregaruma encomenda e ter voltado a entrar. Indig-nado com a atitude do agente, o colega deMarcos sugeriu que talvez «ele não tivesseido com a cara dele», frase que muito irritouum desses polícias, que imediatamente lhedisse que estava a desrespeitar a autoridadee que por isso estava detido, convidando-osem demoras a entrar na viatura policial, eseguindo dali para a esquadra. Na esquadra,a conversa estragou-se quando o polícia acu-sou ambos de circularem sem cinto, acusa-ção mentirosa a que Marcos imediatamentereagiu, dizendo que o outro agente bem ti-nha visto que ele trazia o cinto colocado.«Brasileiro tem esse jeito de falar, e eu disseque “ele ali” tinha visto que eu estava comcinto. Ele não gostou que eu dissesse “ele ali”,e disse que aquilo não era jeito de falar com aautoridade e que eu tinha mas era de voltarpara a minha terra. Aí eu disse que a minhaterra é aqui, porque eu já sou cidadão portu-guês e tenho até cartão único [cartão de ci-dadão]. Aí ele disse que isso para eles não va-lia nada e que se eu ficasse ali enfrentandoele, ele me algemava e me levava para o cala-

bouço. Eu fiquei nervoso, não sabia o que eracalabouço (depois me disseram que era ca-deia), e me calei mas me senti humilhado,porque eu já estou em Portugal há dez anos,e entre visto de trabalho, visto de permanên-cia, visto de residência, até chegar a ser umcidadão português, já vai tempo, e eu conhe-ço bem meus direitos aqui.»

Medo de retaliações«Se ele me chamasse de preto eu não ficavatão ofendido, porque eu sou realmente pre-to. Mas ficando ali a falar ofensa em voz al-ta... Depois eles disseram que iam “meter umpresente” na minha caixa do correio, que amulta ia para minha casa. Além de passarpor mentiroso eu ainda vou ter de pagarmulta.» Quando finalmente saiu da esqua-dra, Marcos foi imediatamente a um co-mando da polícia para apresentar queixa,mas nessa outra esquadra não quiseramaceitá-la, alegando que ele devia ir falar como comandante da esquadra onde ocorrera oincidente. «Mas eu estava cheio de trabalho

e não achei tempo para ir logo. Eu sou cida-dão português e dou até meu contributo naseleições. Eu admirava muito a polícia portu-guesa, comparando com a do meu país,achava que era uma polícia educada, nuncative problema, mas agora fiquei de pé atrás.Eu acho isso abuso de poder.» Apesar de afir-mar conhecer os seus direitos, fica bem cla-ro até que ponto Marcos receou a retaliação.Outra coisa que fica clara é a sobrevivênciade uma certa cultura de poder por parte daautoridade policial – abusos que todos co-nhecemos, sobretudo os condutores, apesardos progressos observados a esse nível gra-ças ao rejuvenescimento dos contingentespoliciais formados noutra mentalidade.

Desconhecimento dos direitos Vanessa Viana, psicóloga, natural do Rio deJaneiro, está em Portugal há sete anos e fa-lou à nm em representação da Casa do Bra-sil. Diz que a Casa recebe queixas de racismoregularmente, algumas dramáticas, como éo caso de brasileiros irregulares a quem sãonegados cuidados nos centros de saúde doserviço nacional que a nossa Constituiçãoconsagrou universal: «Para terem acesso aocartão de utente eles têm de pedir um com-provativo de residência na Junta de Fregue-sia. O problema é que para ter esse compro-vativo são necessárias duas ou três assinatu-ras de pessoas que vivem no seu prédio, oude negociantes do bairro, pessoas, no fundo,que na qualidade de vizinhas, comprovamque o pessoal vive efectivamente na fregue-sia, e isso não é sempre fácil, porque muitosacham que o brasileiro está a pedir as suasassinaturas para fins ilícitos»; crianças quesão alvo de racismo dentro das salas de aula(e também a educação é, segundo a nossa leifundamental, um direito universal), por ve-zes por parte de professores, que entre ou-tras coisas, os acusam de dificultar a vida dosdocentes por não saberem falar portuguêscorrectamente; queixas, também, de mu-lheres brasileiras, vítimas do olhar de quemolha para elas como máquinas sexuais e ape-nas: «As mulheres brasileiras são vistas co-mo muito disponíveis, muito sexuais, muitoobjecto» – e todos participam disso, caso daprópria Rede Globo, que para o lançamentode um novo canal de televisão em Portugalusou a imagem de uma mulher seminua; hátambém inúmeras queixas de assédio sexualpor parte de empregadores, que abusam defuncionárias da limpeza, por exemplo: «Nósdamos apoio jurídico e acompanhamos asqueixas-crime até ao fim, mas as pessoas, so-bretudo as irregulares, sentem-se vulnerá-veis, porque como estão sem papéis achamque não têm direitos», diz Vanessa Viana.

Barreiras discriminatóriasUm dos problemas com que a generalidadedos brasileiros já se confrontou tem que vercom a habitação: se um brasileiro telefona

Boanerges, engenheiro civil, é o exemplo do empreendedorismo brasileiro porcá, ao lançar um negócio inovador na área do desentupimento doméstico.

MarcasO mito da crimi-

nalidade em tornodas minorias é abu-

sado pelas propa-gandas populistas,

que usam osimigrantes comobode expiatório.

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nem dinheiro, nem energia, nem curiosida-de para devaneios. Os trabalhos pesados aque se dedicam ao longo da semana não dei-xam espaço para mais nada. A maioria há-de ir embora sem ter lido um livro de um es-critor português, sem ter visto uma exposi-ção de um artista português, sem ter tomadocontacto com as coisas da cultura de cá, e porvezes nem sequer as mais tradicionais. Dacozinha do apartamento onde alugamquartos a preços módicos e onde conversá-mos, posso ver a varanda a encher-se aospoucos de outros brasileiros, que vivem emquartos alugados noutros andares do mes-mo prédio lisboeta. Parecem gatos, ali che-gados silenciosamente, um por um, atravésda escada de incêndio que une os andares.Todos irregulares, cheios de problemas e derevoltas no estômago. Ali ficarei duranteum momento, a ouvi-los desancar os portu-gueses que os humilham e discriminam – eainda por cima pagam pior do que os espa-

nhóis e são muito mais neuróticos, acusam.Mas, como bem lembra um deles, «se todosos brasileiros a trabalhar em Portugal fize-rem greve ou se forem embora de um diapara o outro, o país pára».

Ambição Jacilene Silva, 39 anos, orgulha-se de nuncater estado ilegal no nosso país e considera-seuma «batalhadeira», como gosta de dizer. É uma mulher de armas, alguém para quemter três trabalhos não é um problema, antesuma oportunidade de subir na vida, porque«há muita gente que nem um trabalho tem»,diz Jacilene com sotaque aportuguesado. Ar-naldo, o filho de 17 anos, fala indiferentemen-te bem português de Portugal ou do Brasil.Quem nada saiba sobre ele não adivinha a in-fância vivida e crescida no Brasil. Jacilenechegou a Portugal em 2001, vinda de Recife.Veio sozinha, numa altura em que a vida eramelhor, lembra: «Ainda havia o escudo, a vi-

da era mais barata e não havia esta crise.»Veio por ambição, porque queria compraruma casa em Portugal, onde já viviam duasirmãs suas. «Eu sabia que o banco aqui emPortugal não ia me emprestar o dinheiro pa-ra eu comprar uma casa, então precisei dejuntar o suficiente para conseguir atingir omeu objectivo.» Vocacionada para o traba-lho comercial (como promotora de produtosem centros comerciais e análogos), o primei-ro trabalho que arranjou foi numa pastelariaem Braga, onde estavam as irmãs. Obtido oprimeiro visto, foi buscar os filhos ao Brasil – primeiro Arnaldo, depois Jessica. Arnaldofoi logo para a escola e andava quarenta mi-nutos a pé diariamente. «Não dava para com-prar passe nem para almoçar na escola», ex-plicou Jacilene. Felizmente, Arnaldo reve-lou-se dócil, compreensivo em relação àscircunstâncias e objectivos da mãe.

Cantadas e preconceitosSempre «à procura de dar passos maiores doque as pernas», Jacilene rumou então comos filhos a Lisboa, onde Arnaldo continuoua ir a pé para a escola e a voltar a casa à horado almoço para comer. Vivências duras, quecontrastavam com as dos colegas. Bom alu-no, dotado para as artes (que preteriu em fa-vor de uma vertente científica que talvez oproteja mais em termos profissionais), Ar-naldo demonstra uma maturidade e um ta-lento para a vida raros nos jovens da sua ida-de. De trabalho em trabalho, nem sempre nasua área, as coisas foram melhorando para abrasileira, que sempre se manteve positiva,apesar das dificuldades em conciliar a acti-vidade profissional frenética com a vida fa-miliar. Agradece à filha Jessica, hoje com 22anos, o apoio de que sempre foi capaz,olhando pelo irmão mais novo e pela casa.Hoje, Jacilene tem uma casa sua, em Alver-ca, e um marido português. Já não tem trêstrabalhos, nem chega a casa depois da meia-noite todos os dias, mas diz que faria tudopara voltar a esses tempos. Jacilene adoe-ceu, tem um cancro de mama e um progra-ma apertado de tratamentos que a circuns-creve ao lugar familiar. Mulher bonita, teminúmeras histórias de tentativas de abusopor parte de alguns portugueses. Homensque lhe «deram cantadas» e lhe ofereceramvidas desafogadas em troco de sexo. Alguns«bem de vida» e casadíssimos, na linha dosmaridos que o mediático episódio das Mãesde Bragança elevou à categoria de vítimasda sensualidade das mulheres brasileiras...José Luís, o marido de Jacilene, conhecebem os julgamentos preconceituosos dequem apontou o dedo ao seu casamentocom a brasileira: «Muitos disseram-me logoque isto não tinha futuro, porque as brasilei-ras são todas interesseiras.» Jacilene nãopensa voltar para o Brasil. Considera Portu-gal um país mais seguro para a sua família egosta de viver no país dos portugueses.«

tis e voluntariosas, «só faltava levarem-meao colo até ao lugar que eu procurava. O sim-ples facto de ser brasileiro dava-me um esta-tuto. Já com os africanos era diferente, co-mo continua sendo hoje, aliás». Boanerges,que antes de chefiar as cerca de meia cente-na de pessoas que trabalham actualmentena sua empresa, andou ele próprio a desen-tupir canos, conhece bem os preconceitosde quem acha, por exemplo, que um brancoalto e loiro de olhos azuis é mais capaz doque um preto baixinho, ignorando este últi-mo e dirigindo-se ao primeiro, apesar de sero preto baixinho o técnico-chefe. Gente as-sim, mas que nalgum momento precisa demandar desentupir qualquer coisa.

Mercados paralelosAdailson, 38 anos, e Jucimara (nomes fictí-cios), 34, são de Goiás e vieram para Portugalhá cerca de um ano. Atrás de uma vida melhor,

deixaram os três filhos no Brasil e vieram co-lher alfaces numa quinta nas proximidadesde Lisboa. Viviam num contentor insalubre enão podiam ficar doentes. Um dia, Jucimaraadoeceu e a patroa não aceitou que ela paras-se de trabalhar durante uma tarde, afirmandoque ela podia morrer mas as alfaces tinhamde ser colhidas, porque não se podia falhar ohorário das entregas. Humilhado, o casal de-cidiu tentar a sorte em Lisboa. Ele arranjoutrabalho nas obras, seis dias de labuta para re-ceber setecentos euros/mês, ela nas limpezas– três empregos para conseguir juntar cercade quinhentos euros ao fim do mês. Trabalhoilegal, sem contratos nem regalias sociais, aque de qualquer modo os brasileiros não aspi-ram, porque isso os obrigaria a fazer descon-tos para a Segurança Social, e isso é que nãopode ser, disseram, porque os 150 euros dedescontos por pessoa fazem muita falta. Umaparte do que ganham é enviado para o Brasil,para os filhos, vagamente entregues aos cui-dados de uma avó. O que resta serve para co-mer e para pagar trezentos euros do quartode casal que alugam num apartamento nocentro de Lisboa. Marineide (nome fictício),33 anos, vinda do Paraná, chegou há meses,depois de numa primeira tentativa ter sidobarrada em Amesterdão, onde fez escala efoi deportada para o Brasil. Bem sucedida dasegunda vez, num voo directo para Lisboa,arranjou sem demoras trabalho num caféonde só trabalham brasileiros, e está à pro-cura de um segundo emprego. O seu objec-tivo é trabalhar como cabeleireira e juntardinheiro para pagar dívidas que contraiu noBrasil. Wellington (nome fictício) trabalhana quinta próxima de Lisboa onde se co-lhem alfaces. Vive num contentor cedidopelos patrões, tal como um tio e um outro ra-paz brasileiro. Está a juntar dinheiro paralançar um negócio no Brasil e não tem mar-gem para pagar rendas de casa. Diz que aofim do mês consegue ganhar 850 euros.

Visões da sombraNenhum destes brasileiros irregulares gos-tava de ser português. Não têm aspiraçõesde cidadania e todos tem o mesmo objectivo:voltar para o Brasil. Acham os portugueses,especialmente os homens mais velhos,«muito brutos», dizem que tratam mal asmulheres, e que são muito mais machistasdo que os homens brasileiros. Mas conce-dem: há excepções, claro, e concordam queas generalizações são perigosas e sempre in-justas. Ainda assim, preferem os portugue-ses mais jovens, que consideram mais sim-páticos e gentis. Sentem-se discriminadosporque trabalham muito mais do que qual-quer português que conheçam. Para todoseles, Portugal tem uma única qualidade, in-discutível e consensual: o valor da moeda.Tudo o resto lhes interessa pouco ou mes-mo nada. Aos fins-de-semana juntam-se pa-ra «beber cervejinhae trocar ideia». Não há

IlegaisMuitos não querem

contratos nem rega-lias sociais,porqueisso os obrigaria a

fazer descontos,e elesprecisam do dinhei-

ro para enviar àsfamílias no Brasil.

Jacilene Silva, 39 anos, com os três filhos. Chegou a Portugal em 2001 e não pensaregressar ao Brasil.

Vanessa Viana, psicóloga, confirma que à Casa do Brasil chegam queixas de racismo, algumas dramáticas.