Império e Multidão, Quinze Anos Depois, Entrevista Com Michael Hardt

5
“Império” e “Multidão”, quinze anos depois POR MICHAEL HARDT – ON 30/11/2015CATEGORIAS: ALTERNATIVAS, GEOPOLÍTICA, HOME AUTOR, MUNDO, PÓS- CAPITALISMO,POSTS Michael Hardt, parceiro de Toni Negri em obras que renovaram marxismo, sustenta: novo sujeito político, capaz de superar capitalismo, ainda precisa ser criado Entrevista a Tom Cassauwers, no ISN Blog | Tradução: Inês Castilho Michael Hardt é um filósofo político e teórico de literatura ligado à Universidade Duke e ao Instituto Europeu de Pós-Graduação. Ele é mais conhecido por sua colaboração com Antonio Negri, com quem escreveu a trilogia que inclui Império, (2000), Multidão (2004) e Commons (2009). Seu trabalho tem sido relacionado ao marxismo autônomo. Seu livro mais recente é Declaration, em coautoria com Toni Negri, e refere-se ao Occupy e outros movimentos sociais. Atualmente é editor da South Atlantic Quarterly [revista da Duke University]. Como mudou a sua compreensão do mundo no decorrer do tempo, e o que (ou quem) exigiu as mudanças mais significativas no seu pensamento? Talvez o mais significativo para mim seja uma coisa que não mudou. Quando Toni Negri e eu estávamos escrevendo Império, no final dos anos 1990, nossa primeira intuição era de que os Estados Unidos logo não seriam mais capazes de controlar os negócios globais, que eles não poderiam mais “ficar sozinhos”, agir unilateralmente. Contudo, não pensamos que algum outro Estado-nação, como a China, fosse ocupar aquela posição ou mesmo que uma aliança multilateral entre

description

Império e Multidão, Quinze Anos Depois, Entrevista Com Michael Hardt

Transcript of Império e Multidão, Quinze Anos Depois, Entrevista Com Michael Hardt

Page 1: Império e Multidão, Quinze Anos Depois, Entrevista Com Michael Hardt

“Império” e “Multidão”, quinze anos depois POR MICHAEL HARDT – ON 30/11/2015CATEGORIAS: ALTERNATIVAS, GEOPOLÍTICA, HOME AUTOR, MUNDO, PÓS-CAPITALISMO,POSTS

Michael Hardt, parceiro de Toni Negri em obras que renovaram marxismo,

sustenta: novo sujeito político, capaz de superar capitalismo, ainda precisa ser

criado

Entrevista a Tom Cassauwers, no ISN Blog | Tradução: Inês Castilho

Michael Hardt é um filósofo político e teórico de literatura ligado à Universidade

Duke e ao Instituto Europeu de Pós-Graduação. Ele é mais conhecido por sua

colaboração com Antonio Negri, com quem escreveu a trilogia que

inclui Império, (2000), Multidão (2004) e Commons (2009). Seu trabalho tem

sido relacionado ao marxismo autônomo. Seu livro mais recente é Declaration,

em coautoria com Toni Negri, e refere-se ao Occupy e outros movimentos

sociais. Atualmente é editor da South Atlantic Quarterly [revista da Duke

University].

Como mudou a sua compreensão do mundo no decorrer do tempo, e o que

(ou quem) exigiu as mudanças mais significativas no seu pensamento?

Talvez o mais significativo para mim seja uma coisa que não mudou. Quando

Toni Negri e eu estávamos escrevendo Império, no final dos anos 1990, nossa

primeira intuição era de que os Estados Unidos logo não seriam mais capazes de

controlar os negócios globais, que eles não poderiam mais “ficar sozinhos”, agir

unilateralmente. Contudo, não pensamos que algum outro Estado-nação, como a

China, fosse ocupar aquela posição ou mesmo que uma aliança multilateral entre

Page 2: Império e Multidão, Quinze Anos Depois, Entrevista Com Michael Hardt

Estados-nações dominantes teriam condições de controlar os negócios globais.

Nossa hipótese, ao contrário, era de que uma rede de poderes estava emergindo –

incluindo os Estados-nações dominantes, junto com instituições supranacionais,

corporações, OnGs e outros atores não-estatais – para controlar as relações

globais de maneira contingente e transformadora.

Isso pode ser visto como um desafio para a hipótese “realista” de que os

Estados são os atores centrais da política internacional. Os Estados

certamente continuam importantes, mas nosso questão era que se você foca

apenas nas ações estatais, perde o que realmente está acontecendo.

A premissa básica não mudou. Mas a composição do Império, isto é, a

composição das estruturas do poder global está constantemente em fluxo. As

hierarquias e interações entre Estados, a posição de atores não-estatais, o jugo do

Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial – esses e outros fatores

devem ser continuamente acompanhados e avaliados.

Você tem sido associado principalmente com o marxismo autônomo, e as

pessoas ligadas a essa tendência adotaram recentemente o slogan do século

16, de Thomas Muntzer “omnia sunt communia”, que pode ser traduzido

como “tudo deveria ser comum”. O que pensa dessa sentença e como

explicaria seu sentido?

Vejo demandas relacionadas ao comum emergindo de uma ampla gama de

setores, hoje. No sentido mais básico, o comum nomeia formas de riqueza que

partilhamos e gerimos democraticamente. E isso o torna fundamentalmente

oposto, por um lado, à propriedade privada e, por outro, à propriedade pública

(ou estatal). Um campo de demandas para o comum envolve, por exemplo,

formas imateriais de riqueza tais como conhecimento científico, informação,

produtos culturais, código e similares. Outro campo refere-se à terra e seus

ecossistemas e prevê soluções democráticas para nossas interações

compartilhadas e o cuidado com o meio ambiente. Finalmente, reconheço todos

os recentes movimentos sociais que envolvem acampamentos e ocupações

urbanas, da Praça Tahrir ao Parque Gezi, passando pela Puerta del Sol e o

Zuccotti Park, como desejando (em parte) tornar comum a própria cidade, ou

seja, tornar o espaço urbano aberto a todos e sujeito a formas democráticas de

gestão.

Page 3: Império e Multidão, Quinze Anos Depois, Entrevista Com Michael Hardt

É chave para qualquer dessas discussões do comum enfatizar a necessidade de

democracia nas tomadas de decisão. Em outras palavras, sistemas de acesso

aberto e mecanismos de compartilhamento de riqueza não são espontâneos e

precisam ser gerenciados para durar. Enquanto a propriedade privada estabelece

um monopólio sobre as tomadas de decisão, o comum requer mecanismos

democráticos.

Desde a publicação de Império, o significado que você e Antonio Negri

imprimiram ao conceito de multidão mudou. Você poderia explicar

brevemente o que quer dizer com multidão e traçar a evolução desse

significado, no seu pensamento?

Por multidão entendemos um projeto plural de organização política. Isso pode ser

melhor entendido como uma extensão – ou, de fato, uma pluralização – de três

conceitos tradicionais: o povo, a classe e o partido. Multidão não é realmente

oposto a esses três conceitos, mas, antes, designa versões plurais, internamente

heterogêneas de cada um deles. Frequentemente “o povo”, por exemplo, tem sido

usado para referir-se a uma população relativamente homogênea, com a exclusão

de outros. O termo “povo inglês”, como usado em discursos políticos, por

exemplo, tem designado implícita ou explicitamente uma população branca. De

modo semelhante, o termo “classe trabalhadora” tem servido com frequência

para nomear todos os trabalhadores, mas principalmente homens que trabalham

na indústria.

Finalmente, o partido geralmente se refere a uma forma de organização política

centralizada, unificada e hierarquizada. Multidão pretende reconciliar esses

termos numa chave plural e democrática: um povo que é heterogêneo

internamente e aberto àqueles que estão fora; uma classe que compreende todas

as formas de trabalho, assalariado e não assalariado; e uma forma partido

horizontal e democrática.

Os chamados movimentos sem líderes dos últimos anos estão certamente

trilhando esse terreno, mas nenhum deles chegou ainda a criar formas de

organização efetivas e duradouras. A multidão não é espontânea e o termo não

foi cunhado para nomear alguma coisa que já existe. Ele antes designa as linhas

de um projeto a ser construído.

Page 4: Império e Multidão, Quinze Anos Depois, Entrevista Com Michael Hardt

Nos últimos anos temos visto uma interação crescente entre movimentos

sociais e partidos políticos na Europa — por exemplo o Podemos, na

Espanha. Como vê estes partidos-movimentos evoluindo nos próximos anos?

Vejo o Podemos como uma aposta ou um experimento que irá medir em que

extensão projetos eleitorais podem ajudar movimentos sociais a florescer. Por um

lado, é verdade que o Podemos nasceu, em muitos aspectos, do movimento 15M,

ou seja, dos acampamentos realizados nas principais cidades espanholas no verão

de 2011, e das muitas formas de ativismo que se seguiram, tais como as “marés”

em educação e saúde. (As vitórias eleitorais do governo municipal, em 2015, do

Barcelona em comum e Agora Madri são demonstrações importantes do poder

desses movimentos na política eleitoral.) Por outro lado, o Podemos também tem

algumas estruturas centralizadas dos partidos políticos tradicionais.

A aposta, então, é dupla. Primeiro, é simplesmente que os movimentos sociais

podem levar o Podemos a uma posição de poder nas eleições nacionais. Segundo,

a aposta é que um partido eleitoral como Podemos não pode representar os

movimentos — mas, ao contrário, criar espaço para eles florescerem. Nenhum

desses resultados está assegurado, mas a aposta certamente me parece valer os

riscos.

Qual a sua opinião sobre o PKK dos curdos e a sociedade que eles criaram

no norte da Síria? Um grupo que adotou a linguagem da autonomia e da

democracia direta, nascido a partir um background mais tradicional de

política marxista-leninista.

Como tantos outros, me senti inspirado pela defesa de Kobane em 2014-15 pelas

forças curdas contra o Estado Islâmico. Mas heroísmo e façanhas militares me

interessam menos que inovações políticas, tanto na Turquia como em Rojava

(norte da Síria). Um dos mais significativos desenvolvimentos, a meu ver, teve

lugar em nível teórico uma década atrás, quando o movimento curdo mudou seu

objetivo de “liberação nacional” para “autonomia democrática”. A mudança

conceitual de soberania para autonomia é extremamente importante. (A relação

entre esses dois conceitos poderia ser objeto de um estudo muito interessante em

teoria política.) E ainda mais importante é como a noção de autonomia

democrática é articulada, na prática. As comunidades curdas têm de fato

experimentado novas formas democráticas. Por exemplo, para combater

desigualdade de gênero, cada posto da estrutura de governo de Rojava precisa ser

ocupado por um homem e uma mulher como co-responsáveis. Esse tipo de

Page 5: Império e Multidão, Quinze Anos Depois, Entrevista Com Michael Hardt

experiência faz do movimento curdo, um dos principais pioneiros, hoje, em

novas formas de democracia.

Como acadêmico, você tem sido bastante ativo politicamente. O que pensa

da relação entre academia e ativismo político? Os acadêmicos teriam certa

responsabilidade quanto ao engajamento político, por causa da sua posição

relativamente privilegiada?

Não acho que “responsabilidade” seja o conceito correto para pensar sobre isso.

E uma vez que acadêmicos em geral não são mais capazes de engajamento

político que outras pessoas, então não ajudaria em nada considerá-los

responsáveis.

Na verdade, penso que é importante romper com a suposição-padrão de uma

divisão entre teoria e prática, pela qual intelectuais são autores de teoria e

ativistas comprometidos com a prática. A meu ver, algumas das teorizações mais

inovadoras, hoje, surgem coletivamente em movimentos. Acadêmicos têm muito

a aprender, não só com o que os ativistas fazem, mas também com o que eles

pensam e os saberes que produzem.