IMPLICAÇÕES DA GLOBALIZAÇÃO PARA O ENSINO DE

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Implicações da Globalização para o Ensino de Português Implications of globalization for the teaching of Portuguese Luciano Amaral Oliveira Universidade Estadual de Feira de Santana - Brasil Resumo O objetivo desta comunicação é apontar as implicações que o processo de globalização acarreta para o ensino de português. Inicialmente, aborda-se a relação entre estrangeirismos e identidade nacional, a qual se tornou falaciosamente tensa a partir de um controverso projeto de lei que está sendo discutido hoje no Brasil e que proíbe o uso de palavras estrangeiras em estabelecimentos comerciais. Essa falsa tensão precisa ser desfeita pelo professor de português para ajudar seus alunos a entenderem um fenômeno lexical tão comum quanto o estrangeirismo, intensificado com os contatos mais estreitos entre os países. Em seguida, as implicações da globalização para o ensino de leitura e de escrita são reveladas, destacando-se a necessidade de se adotar uma visão pragmática de língua para melhor ajudar os estudantes a desenvolverem a sua competência de leitura e de escrita.

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Palavras­Chave: Globalização; Ensino de Português; Estrangeirismos; Leitura; Escrita. O objetivo desta comunicação é apontar as implicações que o processo de globalização expressions borrowed from foreign languages. This false tension has to be undone by the very common lexical phenomenon, which has been intensified with the growth of contacts lei que está sendo discutido hoje no Brasil e que proíbe o uso de palavras estrangeiras em

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Implicações da Globalização para o Ensino de Português

Implications of globalization for the teaching of Portuguese

Luciano Amaral Oliveira

Universidade Estadual de Feira de Santana - Brasil

Resumo

O objetivo desta comunicação é apontar as implicações que o processo de globalização

acarreta para o ensino de português. Inicialmente, aborda-se a relação entre estrangeirismos e

identidade nacional, a qual se tornou falaciosamente tensa a partir de um controverso projeto de

lei que está sendo discutido hoje no Brasil e que proíbe o uso de palavras estrangeiras em

estabelecimentos comerciais. Essa falsa tensão precisa ser desfeita pelo professor de português

para ajudar seus alunos a entenderem um fenômeno lexical tão comum quanto o estrangeirismo,

intensificado com os contatos mais estreitos entre os países. Em seguida, as implicações da

globalização para o ensino de leitura e de escrita são reveladas, destacando-se a necessidade de

se adotar uma visão pragmática de língua para melhor ajudar os estudantes a desenvolverem a

sua competência de leitura e de escrita.

Palavras-Chave: Globalização; Ensino de Português; Estrangeirismos; Leitura; Escrita.

Abstract

This text aims at revealing the implications the process of globalization brings to the

teaching of Portuguese. Initially it deals with the relationship between the use of foreign words

and national identity. This relationship has become fallaciously tense because of a controversial

law bill which is discussed in Brazil today and which prohibits companies to use words and

expressions borrowed from foreign languages. This false tension has to be undone by the

Portuguese teacher in order to help his/her students to understand the use of foreign words, a

very common lexical phenomenon, which has been intensified with the growth of contacts

between nations. After that, the implications of globalization to the teaching of reading and of

writing are revealed, highlighting the need of adopting a pragmatic view of language to help

students develop their reading and writing competences.

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Keywords: Globalization; Teaching of Portuguese; Use of Foreign Words; Reading; Writing.

Considerações Iniciais

Globalização é uma das palavras mais pronunciadas e escritas nestes primeiros anos

do século XXI. Tal freqüência de ocorrência se deve às importantes implicações que o

processo de globalização tem para o delineamento do mundo contemporâneo em

diversos aspectos, e.g. tecnológico, social, cultural, econômico, político e lingüístico.

O geógrafo Milton Santos (2001) nos lembra que a história se desenvolve

concomitantemente ao desenvolvimento das técnicas. Após a invenção da roda há cerca

de 6000 anos, as técnicas humanas impulsionaram a nossa história de maneira

irreversível: Gutenberg criou a prensa de tipos móveis por volta de 1450, abrindo o

caminho para a produção em massa de livros, jornais e revistas; a máquina a vapor,

inventada por Thomas Newcomen em 1705, e o tear mecânico, criado por Edward

Cartwright em 1785, possibilitaram o advento da revolução industrial, transformando

definitivamente a economia do mundo; o avião a jato e o computador contribuíram para

que o contato entre diversas culturas se intensificasse de maneira extraordinária. Não é

por acaso que Santos (2001, p. 25) afirma que, em nossa época, “o que é representativo

do sistema de técnicas atuais é a chegada da técnica da informação, por meio da

cibernética, da informática, da eletrônica”.

É por essa razão que se fala hoje da globalização como se a ela se atribuísse uma

onipresença quase mítica. Se há um problema na economia norte-americana, efeitos são

imediatamente sentidos nas bolsas de valores na Europa e na América Latina. Se um

terremoto ou um ciclone ocorre em um país da Oceania, isso é divulgado em tempo real

para a África e para a Ásia.

As informações circulam a uma velocidade muito alta. Entretanto, essa circulação

não se dá de forma democrática e neutra. O atual momento histórico é marcado pelo

papel despótico da informação, controlada por alguns Estados e por algumas empresas,

como lembra Santos (2001, p. 39):

Estamos diante de um novo ‘encantamento do mundo’, no qual o discurso e a

retórica são o princípio e o fim. Esse imperativo e essa onipresença da informação são

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insidiosos, já que a informação atual tem dois rostos, um pelo qual ela busca instruir, e

um outro, pelo qual ela busca convencer.

Ora, se há algo estreitamente vinculado à informação, esse algo é a linguagem.

Obviamente, ela deve ser considerada em todas as suas formas: a linguagem de

máquina, as artes plásticas, as artes cênicas a língua falada e a língua escrita. Contudo, é

principalmente através dessas duas últimas que Estados e grandes empresas, por meio

dos políticos e das instituições representativas dos interesses das classes dominantes,

constroem seus discursos com a intenção de influenciar as pessoas a quem se dirigem.

Dada essa importância da língua escrita e da língua falada, este texto visa a

contribuir para a discussão acerca das implicações que a globalização tem para o ensino

do português. O assunto tratado aqui se insere no eixo temático “Educação e formação

de jovens e adultos”, dentro do quadro mais amplo proposto como tema geral da

conferência “Educando o cidadão global – globalização, educação e novos métodos de

governação”, organizada pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Subjaz às considerações tecidas neste artigo o conceito interacional de língua,

segundo o qual uma língua não é vista como um mero conjunto de estruturas

gramaticais, mas como um instrumento de interação social. Concebida dessa forma, a

língua é usada no estabelecimento de encontros, no dizer de Oswald Ducrot (1977), nos

quais as pessoas passam a desempenhar papéis socialmente demarcados. Seguindo esse

conceito, o ensino do português deve objetivar preparar o aluno para saber interagir

lingüisticamente em situações de interação social variadas. Nesse sentido, precisa fazer

parte da prática pedagógica dos professores o ato de conscientizar os estudantes acerca

dos fenômenos sociais em que a língua está envolta dentro do processo de globalização.

Três desses fenômenos são objetos de considerações nesse artigo: os

estrangeirismos, a leitura e a escrita. Inicialmente, abordamos os estrangeirismos por

serem a evidência mais clara de que os povos de diferentes nações entram em contato

uns com os outros por meio dos idiomas usados em seus países. Embora sua ocorrência

seja natural a qualquer língua que entre em contato com outra por meio de seus

usuários, os estrangeirismos têm sido alvo de muita polêmica no Brasil nos últimos

anos. Explica-se: o Deputado Aldo Rebelo apresentou ao Congresso Nacional o Projeto

de Lei No 1676 de 1999 visando a regulamentar o uso de estrangeirismos para proteger e

defender a língua portuguesa. Rebelo coloca os estrangeirismos como elementos que

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podem vir a descaracterizar o idioma nacional brasileiro. A posição equivocada do

deputado é analisada aqui sob a perspectiva da globalização, da construção da

identidade nacional e das lacunas lexicais.

Em seguida, o artigo aborda a leitura e a escrita por serem elementos que fazem

circular as informações e os discursos construídos na sociedade por meio dos diversos

gêneros textuais. Pelo fato de essa circulação não se dar de forma neutra, conforme

menciono acima ao citar Santos, os professores responsáveis pela educação de jovens e

adultos devem ajudá-los a conhecer os gêneros textuais mais freqüentes e a se tornarem

conscientes da realidade na qual estão inseridos. Dessa forma, os estudantes podem se

tornar cidadãos críticos e autônomos, como Paulo Freire (1996) sempre idealizou.

Estrangeirismos e Identidade Nacional

Estrangeirismo é o uso de palavras, expressões ou construções sintáticas oriundas de

uma língua estrangeira. Ele é um fenômeno lingüístico natural a qualquer língua falada

por um povo que se relaciona com outros povos que falam línguas diferentes. Ora, se os

estrangeirismos são fenômenos lingüísticos naturais, por que um político brasileiro se

deu ao trabalho de elaborar um projeto de lei para regulamentá-los?

A resposta para essa pergunta reside na questão da identidade nacional. Afinal, a

construção da identidade nacional passa pelo estabelecimento e pela legitimação de um

idioma que se possa identificar como nacional. Rebelo (2001, pp. 181-182) deixa isso

bem claro ao afirmar, na justificação do seu projeto de lei, que “um dos elementos mais

marcantes da nossa identidade nacional reside justamente no fato de termos um imenso

território com uma só língua” e que esse fato, que ele considera um “autêntico milagre

brasileiro”, está “hoje seriamente ameaçado”. Essa suposta ameaça, segundo Rebelo

(2001, p. 181), seria “uma verdadeira descaracterização da língua portuguesa, tal a

invasão indiscriminada e desnecessária de estrangeirismos”.

As palavras do deputado deixam transparecer que ele ignora completamente os fatos

lingüísticos. Em primeiro lugar, nenhum país tem uma só língua, como afirma Rebelo:

existe, é certo, um idioma nacional oficial no Brasil, mas isso não significa que ele seja

a única língua falada no país. No Brasil, não se fala um português só, pois há muitas

formas diferentes de se falar o português. Como lembra Rosa Virgínia Mattos e Silva

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(1995, p. 11), em qualquer língua histórica, há uma necessidade social de unificação

lingüística por causa da realidade heterogênea da língua. Conseqüentemente, isso

significa que não há milagre algum no fato de existir um idioma nacional em face a

tantos dialetos.

Em segundo lugar, os estrangeirismos não representam nenhuma ameaça a um

idioma nacional. Ferdinand de Saussure (1999, p. 31), no começo do século XX, já

lembrava que os empréstimos não são fenômenos freqüentes na vida de uma língua e

afirmava que “o termo emprestado não é considerado mais como tal desde que seja

estudado no seio do sistema; ele existe somente por sua relação e oposição com as

palavras que lhe estão associadas, da mesma forma que qualquer outro signo

autóctone”.

Fazendo-se a ressalva de que os empréstimos se tornaram comuns nas áreas

tecnológicas, de conhecimento específico, com a intensificação do processo de

globalização, podemos afirmar que a posição de Saussure está correta. Quando uma

língua X toma um termo emprestado de uma língua Y, a esse termo são impostas as

características do sistema lingüístico de X, i.e. as regras fonotáticas e, eventualmente, as

regras ortográficas e morfológicas. Para evidenciarmos isso, basta que busquemos

exemplos no português. A palavra estresse, originária do anglicismo stress, sofreu

imediatamente as restrições fonotáticas do português brasileiro, que não permitem que o

som inicial de uma palavra seja /st/, como ocorre em inglês. Assim, os brasileiros

começaram a usar essa palavra acrescentando o som vocálico /i/ ao seu início e

culminaram por também acrescentar esse som ao seu final. Hoje, a palavra já está

totalmente integrada ao sistema lingüístico de português, do ponto de vista ortográfico,

(estresse) e do ponto de vista morfológico (já existem o verbo estressar e o adjetivo

estressante).

Esse exemplo serve para comentarmos a diferença que algumas pessoas fazem entre

estrangeirismos e empréstimos. O primeiro termo se refere às palavras tomadas

emprestadas de outras línguas e que ainda não sofreram mudanças ortográficas e

mantêm a mesma grafia que possuem na língua original. Assim, de acordo com essa

distinção, exemplos de estrangeirismos no português brasileiro são as palavras show,

sale, cooper, mouse, overbooking e check-in. Já as palavras estresse, blecaute,

hambúrguer, espaguete, deletar e aspirina são exemplos de empréstimos.

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Na verdade, o empréstimo pode ser visto como o estágio final de incorporação do

estrangeirismo ao sistema da língua que o toma emprestado. Logo, stress seria um

estrangeirismo e estresse, um empréstimo. Entretanto, se lembrarmos as palavras de

Saussure acima e se observarmos que os falantes de uma língua impõem, de imediato,

as regras fonotáticas de sua língua aos estrangeirismos, podemos desconsiderar qualquer

diferença entre empréstimos e estrangeirismos.

Mas, resta esclarecermos uma coisa: por que uma língua toma de empréstimo termos

de outras línguas? Eles são tomados emprestados por duas razões lingüísticas, sendo

uma de natureza estrutural e outra de natureza pragmática: as lacunas lexicais e o estilo.

Em um outro trabalho (Oliveira, 2005), deixo claro que a maior motivação para a

presença de estrangeirismos em uma língua é a existência de lacunas lexicais, que são

fatos de natureza estrutural.

Ao contrário do que pensava o semanticista Jost Trier (citado por Ullmann, 1964), o

léxico de uma língua não é completamente recoberto pelas esferas conceituais, ou

esferas de significação, como também são chamadas: há lacunas no léxico. Isso

significa que, às vezes, inexistem palavras para expressar determinados conceitos,

significados, idéias.

As lacunas lexicais surgem com o desenvolvimento das técnicas nas diversas áreas

do conhecimento, o que tem sido muito comum com a globalização. Na área de

informática, por exemplo, muitos termos são de origem do inglês porque os Estados

Unidos são o país que lidera o mundo no que diz respeito às técnicas nessa área. Na área

de música, muitos termos usados no Brasil são de origem italiana. Isso se deve ao fato

de os músicos italianos terem influenciado a música mundial durante uma boa parte da

nossa história.

Quando há uma lacuna em seu léxico, a língua tem à sua disposição dois recursos: o

neologismo e o empréstimo. Às vezes, ela lança mão dos dois. É o que aconteceu

quando chegou ao Brasil um alimento feito com pão e uma salsicha dentro: criou-se o

termo cachorro-quente, que hoje convive com hot-dog, devidamente adequado às

imposições fonotáticas do português.

Pode acontecer a situação em que não há uma lacuna lexical, mas opta-se por um

termo oriundo de uma língua estrangeira por uma questão estilística. É o caso da famosa

expressão “sale – 50% off”, colocada em vitrines de lojas dirigidas às classes altas no

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Brasil e que virou cavalo de batalha para pessoas que compartilham a visão equivocada

do Deputado Aldo Rebelo. A explicação para casos como esse reside na estilística: ao

usarem essa expressão em vez de liquidação ou bota fora, por exemplo, as lojas estão

deixando claro a que público se direcionam: as pessoas com mais probabilidades de

saberem inglês, ou seja, as que pertencem às classes A e B.

Percebe-se que os estrangeirismos não oferecem nenhum perigo à língua portuguesa.

Afinal, é o português que se apropria deles e os obriga a se submeterem às

características de seu sistema lingüístico. O contrário não acontece. Evidência disso é o

fato de nenhum brasileiro que não estuda sobre esse fenômeno se lembrar da origem

estrangeira de palavras como brinde, estilística, barraca, boliche, abordagem, futebol e

esporte.

O Deputado Aldo Rebelo (2001, p. 181) lembra que “uma das formas de dominação

de um povo sobre outro se dá pela imposição da língua”. Ele acredita que, “com a

marcha acelerada da globalização, o fenômeno parece estar se repetindo” no Brasil, mas

não de modo violento. Essa crença equivocada de Rebelo precisa ser levada à sala de

aula para que os professores de português abordem a questão dos estrangeirismos e o

papel da língua na construção da identidade nacional. Cabe aos professores de

português levar os alunos a perceberem que nossa identidade não está nem um pouco

ameaçada pela presença de estrangeirismos na nossa língua.

Finalizo esta seção lembrando as palavras do sociólogo Zygmunt Bauman (2005, p.

83), as quais nos lembram que a faca da identidade pode ser brandida na direção dos

mais fortes e dos mais fracos:

Pôde-se ver a faca da identidade brandida nas duas direções e cortando dos dois

lados nos períodos de “construção nacional”: em defesa de línguas, memórias, costumes

e hábitos locais, menores contra “os da capital”, que promoviam a homogeneidade e

exigiam uniformidade – assim como na “cruzada cultural” organizada pelos defensores

da unidade nacional.

De que lado corta a faca da identidade nacional brandida por Aldo Rebelo? Que os

professores de português levem seus alunos a refletirem sobre isso. A leitura e a escrita

são instrumentos à disposição dos estudantes para realizarem essa reflexão. É desses

dois fenômenos sociais que trata a próxima seção.

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Leitura, Escrita e Globalização

Um dos símbolos do processo de globalização é a Internet. Ela facilitou

enormemente a comunicação, principalmente por meio do e-mail e de serviços de

comunicação em tempo real como as salas de bate-papo e programas de comunicação

como o Microsoft Service Network, popularmente conhecido como MSN. Ela trouxe

consigo o internetês, um conjunto de expressões comumente encontradas nas conversas

em salas de bate-papo e no MSN. Expressões como vc, blz, tb, kd, naum e aki são

exemplos de internetês.

No Brasil, o internetês tem sido alvo de debates entre professores de português

preocupados com a sua influência na produção textual dos estudantes. Alguns

professores temem que ele prejudique a capacidade redacional de jovens e adultos por

afetar os seus conhecimentos acerca da grafia das palavras.

Entretanto, se os professores pensarem na escrita e na leitura como atividades

pragmáticas, atividades que não têm um caráter exclusivamente lingüístico, eles

perceberão que o internetês não representa nenhuma ameaça para a produção escrita dos

estudantes. É possível, sim, que haja alguma interferência pontual da mesma forma que

a fala causa uma ou outra interferência na escrita. Mas isso não é nada anormal e deve

ser tratado na sala de aula de forma tranqüila. Afinal, assim como não se fala da mesma

forma que se escreve, também não se escreve e não se fala sempre da mesma forma em

todas as situações sociais. E isso deve ser informado e esclarecido aos estudantes para

que eles se conscientizem dos fatores que contribuem para a leitura e para a produção

textual.

A globalização contribui para aumentar a velocidade com que os discursos e as

informações circulam, e os jovens e adultos que estão sendo escolarizados precisam

aprender a lidar com esses discursos e com essas informações de maneira crítica. Por

isso, os professores precisam se lembrar de que a leitura e a escrita não são atividades

exclusivamente lingüísticas e que elas requerem, grosso modo, três tipos de

conhecimentos: lingüísticos, enciclopédicos e textuais.

A necessidade dos conhecimentos lingüísticos é óbvia. Sem se saber uma língua,

torna-se impossível ler ou escrever textos naquela língua. Entretanto, o que não é óbvio

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para muitos professores de português no Brasil é a necessidade de se possuírem os

outros dois tipos de conhecimentos.

Como já afirmou o filósofo Arthur Schopenhauer (2005, p. 32), “a primeira regra do

bom estilo, que por si só já é quase suficiente, é a de ter algo a dizer” (grifos do autor).

“Ter algo a dizer” significa possuir conhecimentos enciclopédicos ou conhecimentos

prévios de mundo.

Muitas vezes, os estudantes têm dificuldades para entender ou para produzir textos

por não estarem familiarizados com os temas, ou seja, por não possuírem determinados

conhecimentos enciclopédicos. Contudo, há professores que acreditam que o problema

reside na falta de conhecimentos lingüísticos desses estudantes e os fazem praticar

exercícios voltados para a estrutura da língua. O resultado disso é que os estudantes não

superam as dificuldades que possuem para ler e, principalmente, para a escrever.

É exatamente por causa da importância dos conhecimentos enciclopédicos para a

leitura e para a escrita que os professores precisam estar informados sobre o papel dos

esquemas mentais na compreensão e na produção de textos. Como lembra Leonor

Lencastre (2003), a experiência, o conhecimento e os conceitos que os leitores trazem

para o ato da leitura são fatores determinantes para o processo de compreensão. Eu

acrescento que esses fatores também são determinantes para o processo de produção

textual.

Os conhecimentos enciclopédicos e os conhecimentos lingüísticos estão

estreitamente relacionados a dois elementos de textualidade, i.e. elementos que fazem

com que um texto seja um texto: a coerência e a coesão, respectivamente. A coerência

textual diz respeito à construção semântica do texto e é o resultado da interação entre

leitor e texto. A coesão textual é a sintaxe do texto, manifestação lingüística da

coerência.

Não entrarei em detalhes sobre esses dois elementos. Focarei a atenção nos cinco

elementos de textualidade relacionados aos usuários da língua e ao contexto de

produção e de recepção dos textos. Refiro-me aos elementos pragmáticos de

textualidade, propostos por Robert-Alain de Beaugrande e Wolfgang Ulrich Dressler

(1997): intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e

intertextualidade.

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A intencionalidade diz respeito às intenções do produtor textual. Todos os textos

produzidos têm um objetivo pré-estabelecido pelos seus autores e os estudantes

precisam ser alertados a respeito disso para ficarem conscientes de que as informações e

os discursos que circulam são neutros nem ingênuos. Nesse sentido, vale a pena repetir

aqui algumas palavras de Milton Santos (2001, p. 39) citadas nas Considerações Iniciais

deste artigo: “a informação atual tem dois rostos, um pelo qual ela busca instruir, e um

outro, pelo qual ela busca convencer”.

O convencimento objetivado por quem faz circular informações e discursos depende

fundamentalmente da atenção que os produtores textuais dão a quem se dirigem.

Depende de outro elemento de textualidade: a aceitabilidade, que diz respeito às

expectativas dos leitores. Não levar considerar o público-alvo pode levar o escritor a

não alcançar seus objetivos já que não poderá decidir a respeito de qual linguagem usar

(formal, informal, simples, rebuscada, direta, etc.) e nem sobre quais e quantas

informações deverá incluir e não incluir no texto.

Chaïn Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (1999, p. 22), ao refletirem sobre como

um orador pode ser bem-sucedido na sua argumentação, nos oferecem uma conclusão

que se alinha ao que foi escrito no parágrafo anterior com respeito à relação entre

intencionalidade e aceitabilidade:

A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão próximo quanto

o possível da realidade. Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância

ou de um concurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis

conseqüências.

Proximamente relacionada à intencionalidade e à aceitabilidade, a situacionalidade é

um elemento extremamente importante para a leitura e para a produção de textos.

Beaugrande e Dressler (1997) nos informam que esse elemento de textualidade diz

respeito às circunstâncias em que um texto é produzido e lido, as quais influenciam

profundamente o escritor e o leitor. Os alunos precisam estar cientes de que o ambiente

formado pelas pessoas, pelo local e pelo momento, ou seja, o contexto, no qual um texto

é produzido e lido desempenha um papel fundamental nos atos de produção e de

recepção textual.

Com a redução dos preços dos computadores ocasionada pelo aumento da produção

desses produtos, um número cada vez maior de pessoas passa a ter acesso a informações

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por meio da Internet. Isso traz uma conseqüência interessante: o público leitor em

potencial dos textos publicados na grande rede mundial aumenta consideravelmente.

Entretanto, isso de nada muda a interferência desses três elementos de textualidade na

produção dos textos que são divulgados pela Internet: quem os redige continua tendo

objetivos específicos em mente e deve estar atento às expectativas de quem lerá seus

textos e onde os possíveis leitores estarão no ato da leitura; os leitores continuam

formando nichos específicos, com interesses bem delineados, os quais os levam a visitar

determinados sítios e não outros.

O quarto elemento pragmático de textualidade, a informatividade, segundo

Beaugrande e Dressler (1997, p. 201), diz respeito ao grau de novidade ou de

imprevisibilidade que um texto tem para seus receptores. Isso implica que um texto com

informações pouco previsíveis é mais informativo do que um texto com informações

previsíveis. Por essa razão, esses autores alertam para a necessidade de se manter um

nível equilibrado de informatividade no texto: não se deve colocar excessivas

informações previsíveis nem informações novas em excesso. Um texto com um bom

grau de informatividade deve informar o suficiente ao leitor, a menos que o escritor

deliberadamente não queira fazer isso, o que revela a relação próxima entre todos os

elementos de textualidade.

O último elemento de textualidade é a intertextualidade, que, de acordo ainda com

Beaugrande e Dressler (1997, p. 249), diz respeito à relação de dependência

estabelecida entre os processos de produção e de recepção de um texto determinado e o

conhecimento que os participantes da interação comunicativa têm de outros textos

anteriores a ele relacionados. Esse é um elemento interessante e que provoca uma

pergunta: o que será que nós falamos e escrevemos que é verdadeiramente de nossa

própria criação? O senso comum é o intertexto universal, sempre anterior e relacionado

a muitas das coisas que falamos e escrevemos.

Os estudantes precisam estar cientes do que é a intertextualidade para não correrem

o risco de realizarem plágio de forma desavisada. E isso é uma preocupação que devem

ter os professores de português no Brasil, pois, com o acesso cada vez maior à Internet,

muitos alunos fazem pesquisa da seguinte forma: buscam por textos sobre o tema

pesquisado, copia-os e cola-os, apresentando-os como de sua autoria. Nas

universidades, isso é feito de forma deliberada por alguns estudantes, mas no Ensino

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Fundamental e no Ensino Médio falta aos alunos orientação por parte dos professores a

esse respeito.

Note-se que a informatividade e a intertextualidade nos remetem ao hipertexto, um

gênero textual resultante do processo de globalização que atingiu a indústria da

informação. O hipertexto é um texto-base que possui links que direcionam os leitores a

outros textos. Percebe-se que o hipertexto é uma analogia cibernética de uma mistura

feita com a informatividade e a intertextualidade: ao encontrarem informações novas no

texto, o leitor aciona um link que o remete a outro texto. Isso deve ser aproveitado pelos

professores de português para ajudar os alunos a entenderem a presença de textos

anteriores em qualquer texto que eles leiam ou produzam.

Esses cinco elementos pragmáticos de textualidade deixam claro que a leitura e a

escrita vão muito mais além dos elementos estritamente lingüísticos. Eles se unem aos

elementos semântico-lingüísticos, i.e. a coerência e a coesão, para fazerem circular

informações e discursos em formas concretas de textos, os chamados gêneros textuais.

Os professores de português precisam apresentar aos seus alunos o maior número

possível de gêneros textuais e alertá-los para a relação deles para com os elementos de

textualidade. Por exemplo, uma carta pessoal e uma carta de apresentação a uma

empresa exigem não apenas conteúdos distintos, mas também escolhas lexicais e

gramaticais adequadas para seus leitores. Além disso, os professores precisam ajudar os

estudantes a se tornarem conscientes de que cada gênero textual tem suas características

próprias e que não se escreve da mesma forma em todas as situações. Nesse sentido,

comparar textos escritos no MSN com reportagens jornalísticas e cartas de

apresentação, por exemplo, é um ótimo exercício para desenvolver a conscientização

dos estudantes acerca dessas questões.

A Internet fez surgir fenômenos lingüísticos interessantes como o internetês e novos

gêneros textuais como o hipertexto e os chats. Os professores de português precisam

lidar com esses fenômenos em sala de aula para esclarecer dois pontos. O primeiro é a

idéia de que o internetês vai atrapalhar a produção escrita dos estudantes. Basta que os

professores ajudem os estudantes a se conscientizarem de que o internetês é adequado

para as salas de bate-papo, os torpedos, alguns bilhetes e alguns e-mails, mas que é

inadequado para outras situações e gêneros textuais. O segundo ponto, estreitamente

relacionado com o primeiro, é o fato de que os gêneros produzidos fora da Internet

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podem circular na Internet sem necessariamente perder suas características. Uma carta

de apresentação pode ser redigida no corpo de um e-mail mantendo todas suas

características formais e sua linguagem, por exemplo. Nesse caso, o e-mail funciona

como um suporte que veicula um texto, da mesma forma que é um jornal ou uma

revista.

Conclusões finais

Diante do exposto até aqui, fica claro que o processo de globalização produz

fenômenos que têm implicações diretas para o ensino de português. Afinal, é a

linguagem que não apenas faz interface entre as pessoas e as outras pessoas e o mundo,

mas também e principalmente constrói o mundo.

O processo de globalização intensificou as relações entre os povos por meio da

Internet, favorecendo as trocas lexicais entre as línguas. Conseqüentemente, os

empréstimos lingüísticos se tornaram mais freqüentes em áreas específicas de

conhecimento. Isso é um fenômeno que enriquece o léxico do português, contrariamente

ao que pensa o Deputado Aldo Rebelo, para quem os estrangeirismos representam uma

invasão colonialista que pode fazer desaparecer a língua portuguesa.

Vimos que as idéias do deputado revelam sua falta de informação no que diz

respeito aos fenômenos lingüísticos. Isso serve de alerta: os professores de português

precisam informar os jovens e adultos que vão à escola acerca dos estrangeirismos e da

posição equivocada do deputado para que eles percebam o fato de que as línguas variam

no tempo e no espaço, independentemente da vontade dos políticos ou qualquer outra

pessoa. O mito da homogeneidade lingüística precisa ser desconstruído na escola.

No que diz respeito à leitura e à escrita, vimos que o advento da Internet possibilitou

uma maior circulação de informações e de discursos, embora isso ainda não seja a regra

geral no Brasil devido à exclusão social de que é vítima a maior parte da população.

Essa exclusão não é só a digital, como alguns políticos querem fazer o povo brasileiro

acreditar, mas é uma exclusão em todos os níveis: habitacional, alimentar e educacional.

Por essa razão, os professores de português devem aproveitar tudo que a globalização

lhes oferece, i.e. a Internet e todos os fenômenos lingüísticos por ela provocados, para

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ajudar os estudantes a se tornarem mais alertas e críticos com relação às informações e

aos discursos a que estão expostos.

O desenvolvimento da capacidade leitora e da capacidade redacional dos estudantes

nunca foi tão importante quanto nesses tempos de globalização, que nos bombardeia

com informações e discursos a todo o momento. A globalização é um fenômeno

irreversível. Portanto, resta aos professores e estudantes tirar dela o máximo de

benefícios que puderem.

Nota sobre o Autor

Luciano Amaral Oliveira é Professor Titular de Linguistica na Universidade Estadual

de Feira de Santana no Brasi. Doutorado em Letras e Linguistica pela Universidade

Federal da Bahia e autor do livro Manual de Semantica (Editora Vozes).

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