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11. Implicaturas em Romeu e Julieta: a teoria de Grice e suas implicações para o estudo da Tradução Beatriz Viégas-Faria Doutoranda em Letras, PUCRS Bolsista CNPq Introdução Tenta-se mostrar como a propriedade de calculabilidade das implicaturas conversacionais particularizadas conforme propostas por Grice pode auxiliar o estudioso de Tradução a pensar um problema específico mas complexo da atividade tradutória dentro de uma nova ótica. Além de ilustrar a teoria examinada via diálogos de uma peça consagrada da literatura universal, o trabalho pretende mostrar virtualmente (via algumas amostras) que a tradução adequada de um diálogo com implícitos desse tipo deve necessariamente e rigorosamente obedecer o mesmo cálculo griceano que se pode encontrar no texto original, qual seja, o cálculo inferencial que segue uma lógica não-trivial e que o ouvinte faz acerca da intenção do falante. Este é um estudo informal que visa a ser uma tentativa (e sugestão) de se começar a pensar numa possível formalização de pelo menos parte daquilo que até hoje tem sido visto intuitivamente como o aspecto “intangível” da tradução literária: os meandros dos significados implícitos, por onde o tradutor tem de perambular sozinho, confiando em sua “vocação” e em sua bagagem cultural. Minha vontade é poder, de alguma maneira, dizer a futuros tradutores que eles não precisam perambular sozinhos nas areias movediças que são as significações implícitas do discurso literário. Podemos contar com algumas pedras de bom tamanho, assentadas em solos mais ou menos firmes e que se encontram nos mais recentes estudos da Lingüística – que, por sua vez, trilharam a estrada da Lógica formal. A Pragmática vai aos poucos encontrando seu nicho dentro dos estudos lingüísticos, tateando o caminho da normalização, examinando questões das quais a Sintaxe, mesmo dentro do conceito de estrutura profunda, não consegue dar conta, e que a Semântica que se estabeleceu e normalizou em cima das noções de referência e condições-de-verdade não abrange.

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11. Implicaturas em Romeu e Julieta: a teoria de Grice e suas implicações para o estudo da Tradução

Beatriz Viégas-Faria Doutoranda em Letras, PUCRS

Bolsista CNPq

Introdução

Tenta-se mostrar como a propriedade de calculabilidade das implicaturas

conversacionais particularizadas conforme propostas por Grice pode auxiliar o estudioso de

Tradução a pensar um problema específico mas complexo da atividade tradutória dentro de

uma nova ótica. Além de ilustrar a teoria examinada via diálogos de uma peça consagrada da

literatura universal, o trabalho pretende mostrar virtualmente (via algumas amostras) que a

tradução adequada de um diálogo com implícitos desse tipo deve necessariamente e

rigorosamente obedecer o mesmo cálculo griceano que se pode encontrar no texto original,

qual seja, o cálculo inferencial que segue uma lógica não-trivial e que o ouvinte faz acerca da

intenção do falante.

Este é um estudo informal que visa a ser uma tentativa (e sugestão) de se começar a

pensar numa possível formalização de pelo menos parte daquilo que até hoje tem sido visto

intuitivamente como o aspecto “intangível” da tradução literária: os meandros dos

significados implícitos, por onde o tradutor tem de perambular sozinho, confiando em sua

“vocação” e em sua bagagem cultural. Minha vontade é poder, de alguma maneira, dizer a

futuros tradutores que eles não precisam perambular sozinhos nas areias movediças que são

as significações implícitas do discurso literário. Podemos contar com algumas pedras de bom

tamanho, assentadas em solos mais ou menos firmes e que se encontram nos mais recentes

estudos da Lingüística – que, por sua vez, trilharam a estrada da Lógica formal.

A Pragmática vai aos poucos encontrando seu nicho dentro dos estudos lingüísticos,

tateando o caminho da normalização, examinando questões das quais a Sintaxe, mesmo

dentro do conceito de estrutura profunda, não consegue dar conta, e que a Semântica que se

estabeleceu e normalizou em cima das noções de referência e condições-de-verdade não

abrange.

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Uma vez que exigem o estudo minucioso da Lógica formal, segundo Costa (1984:6),

“os debates teóricos sobre pragmática e semântica são, ainda, praticamente desconhecidos

nas pesquisas acadêmicas, e até os trabalhos de lingüística aplicada, nessa área, têm

escorregado para a linha da semântica argumentativa e da teoria do texto”. Esse estado das

coisas reflete-se nos estudos da Tradução, que vêm tradicionalmente calçando-se em teorias

vinculadas à lingüística do texto, análise do discurso, psicolingüística das questões da leitura,

mais modernamente atendo-se à teoria da recepção e viéses desconstrutivistas para descrever

e justificar um tradutor que escreve a sua leitura do original.

Como John Milton (1993) conclui em sua obra O poder da tradução, “a maioria dos

trabalhos sobre a tradução no Brasil não se interessou por idéias abstratas, mas pela tradução

prática” (p. 172). O autor também considera que “as discussões sobre a tradução poucas

vezes ficam longe dos argumentos tradicionais sobre forma versus conteúdo” (p. 176).

É nesse contexto que estudo a Teoria das Implicaturas de Grice, proposta que veio

tirar do léxico e, portanto, da semântica, o ônus de explicar, por exemplo, ambigüidades

lingüísticas via uma multiplicidade de significados para cada vocábulo. Filósofo da

linguagem, Grice debruçou-se sobre as questões do significado implícito em linguagem

natural, e apresentou uma maneira de dar tratamento lógico a um certo tipo de implícito que

ele denominou “implicatura”.

1- A Teoria das Implicaturas

Paul Grice, em palestra proferida em 1967 e depois em Logic and conversation,

artigo publicado em 1975, apresenta aos estudiosos da linguagem uma maneira de se abordar

os significados implícitos que eventualmente se encontram nos diálogos de pessoas

engajadas em conversação.

Por significado implícito entende-se aquele teor da fala que não se encontra nem se

expressa literalmente nas palavras, nas frases, nas sentenças do Falante. É um significado

que o Ouvinte pode captar – e o faz rápida e naturalmente na maioria das vezes – mas que,

dentro dos estudos lingüísticos, somente a Pragmática seria capaz de explicar, uma vez que

depende do contexto em que as palavras, frases ou sentenças tornam-se enunciados.

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Pode-se definir como sendo o dito aquele significado literal e expresso de modo

explícito pela cadeia de palavras pronunciadas pelo Falante, e pode-se definir como sendo o

não-dito aquele significado que se pode depreender dessa fala porque implícito.

Dentro então de um tema mais abrangente, que seria o dos implícitos lingüísticos, ou

seja, tudo o que não é dito explícita e literalmente num diálogo ou texto mas que se apresenta

como parte integrante desse diálogo ou texto no que tange a sua compreensão, as

implicaturas griceanas seriam aquilo que é não-dito num grau imediatamente abaixo do dito

e examinado exclusivamente em diálogos. Segue-se daí que esse quase-dito conversacional

não depende da interpretação do ouvinte (não pode variar de ouvinte para ouvinte) e pode ser

calculado a partir dos enunciados verdadeiramente ditos no decorrer do diálogo. Em outras

palavras, é nas informações oferecidas pelo contexto do diálogo que se vão encontrar os

subsídios suficientes e necessários para o entendimento, pelo ouvinte, de p + q quando o

falante disse tão-somente p.

A implicatura conversacional seria um tipo de inferência pragmática não-

convencional, pois é suposição contextualmente inferida. (Já a implicatura convencional

depende do significado das palavras do enunciado, ou seja, encontra-se no léxico, e mantém-

se em qualquer contexto.)

O dito, ou seja, a sentença enquanto enunciação, está sujeito à análise de suas

condições-de-verdade, i.e., pode ser verdadeiro ou falso – é uma questão para a Semântica.

Já a inferência só pode ser julgada válida ou inválida, pois tudo que fica implícito pode ser

cancelado (ou esvaziado ou anulado), uma vez que o que não foi dito é perfeitamente

passível de ser negado – questão para ser analisada pela Pragmática.

Grice, com sua teoria das implicaturas, inaugurou uma pragmática que é

complementar à semântica das condições-de-verdade e que veio explicar aquilo que a

intuição do ouvinte registra com relação às intenções do falante. Essa intuição é automática e

não depende de interpretação, por parte do ouvinte, daquilo que o falante enunciou. (Veja-se

que, enquanto a Semântica é a disciplina das condições-de-verdade das proposições, a

Pragmática é a disciplina das condições comunicativas dos enunciados.)

O raciocínio de Grice para chegar à concepção do Princípio da Cooperação (PC) pode

ser ilustrado com o seguinte diálogo ou troca conversacional:

A – Você quer um cafezinho?

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B – Eu tenho úlcera.

No momento em que B aparentemente muda de tópico, como é que a comunicação ainda

assim funciona? E de maneira eficiente? Grice entendeu que a intenção das pessoas é de se

comunicarem, de se entenderem e de se fazerem entender. Se elas acabam por se entender é

porque devem estar seguindo regras naturais de linguagem. Esse conjunto de regras Grice

denominou de máximas conversacionais, que estariam a serviço de um Princípio da

Cooperação ao qual obedecem os interlocutores. E essas regras conversacionais seriam

adquiridas pelo indivíduo concomitantemente à aquisição da linguagem.

O PC de Grice abrange uma série de máximas divididas em quatro categorias:

Qualidade, Quantidade, Relação e Modo. Essas quatro categorias explicariam todos os

implícitos tratáveis por uma teoria pragmática da lingüística. As máximas griceanas, veja-se

bem, estão calcadas na competência comunicativa dos falantes (e, conseqüentemente, em sua

intuição comunicativa). Quando o emissor da mensagem quer que seus implícitos sejam

entendidos; o receptor fica automaticamente convidado a calcular a implicatura que vem

atrelada ao dito.

O Princípio da Cooperação ordena o seguinte:

Faça sua contribuição conversacional tal qual lhe foi solicitado, no estágio

em que ela ocorre, pela direção ou propósito aceito da troca conversacional em que você está

engajado.

Dentro da categoria de Quantidade, observam-se duas máximas:

(1) Faça sua contribuição tão informativa quanto lhe foi solicitado (para os propósitos

vigentes naquele momento da troca conversacional).

(2) Não faça sua contribuição mais informativa que o solicitado.

Esta segunda máxima, de acordo com Grice, é questionável, e seu efeito é assegurado

por outra máxima, que se refere à relevância.

Sob a categoria de Qualidade, defrontamo-nos com uma supermáxima e duas

máximas mais específicas:

(SM) Tente fazer com que sua contribuição seja verdadeira

(1) Não diga aquilo que você acredita ser falso.

(2) Não diga aquilo que você não tem como provar adequadamente.

Para a categoria de Relação, Grice apresenta uma única máxima:

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(M) Seja relevante.

Segundo o autor, a formulação dessa máxima traz em seu bojo uma série de

problemas (por exemplo, como os tópicos de conversação são mudados de uma fala para

outra dentro de um diálogo e como se explica que isso seja perfeitamente normal e

aceitável). Grice adia essa problemática para trabalhos posteriores.

Sob a categoria de Modo, associada não mais àquilo que é dito, mas sim a como é

dito o que se diz, Grice apresenta outra supermáxima, que acolheria em seu escopo máximas

como as quatro abaixo:

(SM) Seja claro.

(1) Evite obscuridade de expressão.

(2) Evite a ambigüidade.

(3) Seja breve (evite prolixidade desnecessária).

(4) Seja ordenado.

Mais adiante em seu artigo Logic and Conversation, Grice vai expor o raciocínio que

fez para mostrar que a observância do PC e das máximas é razoável: “é de se esperar que

qualquer um indivíduo que tenha em mente os objetivos centrais da

conversação/comunicação (ex.: dar e receber informações, influenciar e deixar-se influenciar

por terceiros) tenha também um interesse, dadas as circunstâncias adequadas, em participar

nas trocas conversacionais, que serão proveitosas apenas se se parte da suposição de que

essas trocas estão sendo conduzidas conforme o PC e as máximas. Não tenho certeza de

poder chegar a tal conclusão; de qualquer modo, sinto-me bastante seguro em afirmar que

não posso chegar a essa conclusão antes de conseguir enxergar com maior clareza a natureza

da relevância e das circunstâncias nas quais ela é exigida”. (p. 49)

Grice passa então a discutir a relação entre o PC e as máximas, bem como a relação

entre o PC e a implicatura conversacional, mostrando que um participante de uma troca

conversacional pode optar por não observar uma ou mais máximas. No momento em que

viola uma máxima, o falante estará aparentemente confundindo seu ouvinte. O falante pode

escolher não cooperar com seu interlocutor, e deixaria isso claro ao dizer, por exemplo, “não

posso falar mais nada”. Ou o falante escolhe quebrar uma máxima, obviamente

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desrespeitando-a. Conforme Grice, essa é a situação típica geradora de implicaturas

conversacionais – quando uma máxima é violada.

O autor a seguir passa a fazer aquilo que ele chama de “caracterizar a noção de

implicatura conversacional”. Se alguém diz p e com isso está implicando q, pode-se dizer

que este q foi conversacionalmente implicado quando (1) supõe-se que essa pessoa está

observando as máximas ou pelo menos o PC; (2) supõe-se que ela está ciente de que (ou

pensa que) q é necessário para manter a suposição (1); e (3) essa pessoa pensa (e espera que

seu ouvinte pense que ela pensa) que está dentro da competência de seu ouvinte calcular (ou

entender via intuição) que a suposição (2) é necessária.

Assim, Grice chega à questão do cálculo inferencial – aquele raciocínio a que o

ouvinte tem de proceder para fins de entender uma implicatura conversacional. O cálculo

inferencial seria o seguinte:

(1) Ele disse p.

(2) Não há razão para supor que ele não esteja observando as máximas ou, pelo menos, o PC.

(3) Ele não estaria fazendo isso a menos que pensasse q.

(4) Ele sabe (e sabe que eu sei que ele sabe) que eu posso entender que ele pensar q é uma

suposição necessária.

(5) Ele não fez nada para me impedir de pensar q.

(6) Ele quer que eu pense q ou, pelo menos, está disposto a me deixar pensar q.

(7) Portanto, ele implicou q.

Grice diferencia implicaturas generalizadas de particularizadas com base em que

estas são implicaturas conversacionais que ocorrem quando se diz p numa situação em

particular e em função de características especiais do contexto. Por outro lado, as

implicaturas generalizadas independem do contexto em que p é enunciado. O autor ilustra

esse tipo de implicatura com o seguinte exemplo: “X vai se encontrar com uma mulher hoje

à noite”. O falante estaria normalmente implicando que a mulher em questão não é nem mãe,

nem irmã, nem mulher, nem filha ou neta de X. O problema aqui é que fica difícil vislumbrar

a fronteira exata entre implicatura conversacional generalizada e implicatura convencional

ou não-conversacional, uma observação que o próprio Grice encarrega-se de fazer em seu

artigo.

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2- O Modelo de Grice Ampliado

Costa (1984) propõe uma reformulação do modelo de Grice discutindo a Relevância

enquanto supermáxima. Diz o autor que “a implicatura surge para harmonizar relações entre

funções diversas do jogo comunicativo” (p. 120) e conclui que “a implicatura é a relevância

pragmática do dito” (p. 129) quando a implicatura acontece por violação de uma ou mais

máximas. A relevância seria “a propriedade pragmática por excelência” (idem). Costa propõe

que se reordenem as máximas, cabendo à relevância o papel de função pragmática. A ela

seria mais propriamente garantida a posição de supermáxima ligada ao princípio geral da

cooperação.

Princípio da Cooperação

Regras Gerais da Conversação

Supermáxima Geral: “Seja o mais relevante possível”

I Categoria da Quantidade

1ª máxima – Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto o requerido (para

o propósito corrente da conversação)

2ª máxima – Não faça sua contribuição mais informativa do que o requerido

II Categoria da Qualidade

Supermáxima: Diga somente o que você sabe

1ª máxima – Não diga o que você sabe ser falso

2ª máxima – Não diga o que você não pode assumir como sabendo

III Categoria de Adequação

Máxima – Só diga algo adequado ao assunto da conversação

IV Categoria de Modo

Supermáxima: Seja claro

1ª máxima – Evite obscuridade

2ª máxima – Evite ambigüidade

3ª máxima – Seja breve (evite prolixidade)

4ª máxima – Seja ordenado

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Quanto à tipologia das implicaturas, Costa (p. 133) apresenta-nos o seguinte resumo:

Tipos de implicaturas

Quanto à natureza pragmática:

1- Convencionais: relação dito-léxico

2- Conversacionais: relação dito-contexto-princípio da cooperação

Quanto ao tipo de causa

1- Standard: respeito às máximas

2- Por quebra: violação das máximas

Quanto ao tipo de contexto

1- Generalizadas: contexto geral (regras lingüísticas)

2- Particularizadas: contexto particular (regras comunicacionais)

Finalmente, apresenta-se o modelo do cálculo conforme Costa (1984) em seu Modelo

de Grice Ampliado, não sem antes o autor discutir a questão do conceito de contexto.

Segundo ele, o contexto “é constituído de um conjunto indeterminado de sentenças

mutuamente conhecidas; na depreensão de uma implicatura, entretanto, apenas algumas são

relevantes, necessárias e determináveis” (p. 150). Na apresentação do cálculo, devem

aparecer tão-somente aquelas indispensáveis para que, partindo do enunciado, o ouvinte

chegue à implicatura. Assim é que as sentenças apresentadas nos exemplos de cálculos serão

sempre um subconjunto de sentenças do contexto. Costa admite que o conceito é elástico,

embora seja “o ponto crucial de uma abordagem pragmática para a significação na

linguagem natural” (idem).

O modelo de cálculo é oferecido por Costa (1984) na seguinte formatação:

(A) = o destinatário

(B) = o remetente

(C) = o contexto (conjunto de proposições potenciais conhecidas por (A) e por (B) ou

que, pelo menos, podem ser aceitas como não-controvertidas.

(E) = Enunciado

(Q) = Implicaturas (inferências pragmáticas do tipo griceano)

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Costa também é o autor que introduz o conceito de “implicaturas encadeadas” dentro desse

modelo reformulado, conforme será visto nos exemplos analisados dos diálogos de R&J.

3- O cálculo ilustrado por diálogos de Romeu e Julieta (originais e traduzidos) Trechos de R&J são analisados a seguir, em termos de cálculo das implicaturas

conversacionais particularizadas do tipo “por quebra” (o objeto deste estudo) mas,

eventualmente, do tipo standard (ou porque é implicatura que ocorre por encadeamento ou

porque fornece dados para o entendimento da continuidade das falas). Os cálculos

apresentados seguem a formulação sugerida por Costa (1984) em seu Modelo de Grice

Ampliado, conforme exposto acima.

[01] Original, p. 1022

ROMEO -- Thou chid’st me oft for loving Rosaline.

FRIAR LAURENCE -- For doting, not for loving, pupil mine.

ROMEO -- And bad’st me bury love.

FRIAR LAURENCE -- Not in a grave, / To lay one in, another out to have.

ROMEO -- I pray thee, chide not. She whom I love now / Doth grace for grace and

love for love allow; / The other did not so.

(A) = Romeu

(B) = Frei Lourenço

(C) = C1 - Romeu estava apaixonado por Rosalina até ontem.

C2 - Rosalina fizera voto de castidade.

C3 - O amor de Romeu por Rosalina era platônico, ideado e idealizado, fantasioso --

só palavras, nenhuma ação.

C4 - Rosalina não correspondia ao amor de Romeu.

C5 - Romeu estava desesperado por sentir um amor não-correspondido.

C6 - Hoje Romeu está apaixonado por Julieta.

C7 - (conhecimento do mundo) Quem baba tem algum problema de saúde.

C8 - (conhecimento do mundo) Sepultam-se os cadáveres sem demora (antes que

apodreçam).

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(E1) = babavas por ela

(Q1) = teu amor por Rosalina era doentio/anormal (por quebra da 1ª máxima

de Qualidade).

CÁLCULO:

Apresenta-se agora o possível cálculo de (A) até chegar à inferência da implicatura Q1:

1- (B) disse (E1)

2- (B) está oferecendo uma informação (babavas/doting) obviamente falsa

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C3, C5, C7}

5- (B), dizendo (E1), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q1)

6- (B) disse (E1) e implicou (Q1)

Na próxima fala com implicatura, temos a alternância de remetente e destinatário:

(A) = Frei Lourenço

(B) = Romeu

(E2) = [E me aconselhava a] sepultar esse amor

(Q2a) = [E o senhor dava a entender o seguinte:] meu amor por Rosalina não tinha

futuro (por quebra da 1ª máxima de Qualidade)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E2)

2- (B) está oferecendo uma informação (sepultar/bury) obviamente falsa

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C2, C4, Q1, C8}

5- (B), dizendo (E2), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q2a)

6- (B) disse (E2) e implicou (Q2a)

IMPLICATURA ENCADEADA:

(Q2b) = [E o senhor me dava a entender o seguinte:] ponha um fim a esse amor sem demora

(por quebra da 1ª máxima de Qualidade)

CÁLCULO:

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1- (B) disse (E2)

2- (B) está oferecendo uma informação (sepultar/bury) obviamente falsa

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C3, C4, C5, Q1, C8, Q2a}

5- (B), dizendo (E2), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q2b)

6- (B) disse (E2) e implicou (Q2b)

Novamente, alternância de remetente e destinatário:

(E3) = Mas não [te aconselhei a sepultar esse amor] em cova tão rasa que, mal

enterrado um corpo, já estás atrás de outro.

(Q3) = Mas não tão rápido (por quebra da 1ª máxima de Qualidade)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E3)

2- (B) está oferecendo uma informação (cova/grave + enterrado um/one in + atrás de

outro/another out) obviamente falsa

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, Q1, Q2a, Q2b, C6}

5- (B), dizendo (E3), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q3)

6- (B) disse (E3) e implicou (Q3)

Pode-se observar que o encadeamento de implicaturas, tanto entre os cálculos

internos, necessários à compreensão de (E2), quanto entre os cálculos apresentados como

razoáveis para os enunciados (E1), (E2) e (E3), explica o encadeamento de metáforas

utilizado nesse diálogo.

[02] Original, p.1014-1015

SERVANT -- (...) I pray, sir, can you read?

ROMEO -- Ay, mine own fortune in my misery.

SERVANT -- Perhaps you have learned it without book: but, I pray, can you read

anything you see?

ROMEO -- Ay, if I know the letters and the language.

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SERVANT -- Ye say honestly: rest you merry!

ROMEO -- Stay, fellow; I can read. (...) whither should they come?

SERVANT -- Up...

ROMEO -- Whither?

SERVANT -- To supper; to our house.

ROMEO -- Whose house?

SERVANT -- My master’s.

ROMEO -- Indeed, I should have ask’d you that before.

SERVANT -- Now I’ll tell you without asking: my master is the great rich Capulet

(...).

Para esse excerto de original e tradução, temos de levar em consideração que o

diálogo divide-se, para fins deste estudo, em dois momentos: (i) quando quem faz perguntas

é o Criado e (ii) quando quem faz perguntas é Romeu. Assim, temos:

(A) = Criado

(B) = Romeu

(C) = C1 – Romeu e o Criado não se conhecem

C2 – Romeu é alfabetizado

C3 – O Criado é analfabeto

C4 – O Criado precisa saber o teor de uma lista de convidados

(E1) = Sei ler até mesmo minha própria sorte em meu sofrimento.

(Q1) = Não me incomode agora, que estou sofrendo (por quebra das 2as máximas

de Qualidade e de Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E1)

2- (B) está oferecendo uma resposta (sorte/fortune + sofrimento/misery) para a qual ele não

tem provas e que se apresenta ambígua (lê-se a sorte nas mãos, e sofrimento é má sorte)

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2, C3, C4}

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5- (B), dizendo (E1), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q1)

6- (B) disse (E1) e implicou (Q1)

(E2) = Sim, [sei ler] se conhecer as letras e o idioma.

(Q2) = Sei ler o que sei ler (por quebra da 1ª máxima de Quantidade)

CÁLCULO:

Apresenta-se agora o possível cálculo de (A) até chegar à inferência da implicatura Q2:

1- (B) disse (E2)

2- (B) está oferecendo uma informação (letras/letters + idioma/language) menos informativa

que o requerido

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2, C3, C4, Q1}

5- (B), dizendo (E2), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q2)

6- (B) disse (E2) e implicou (Q2)

e, continuando, temos:

(A) = Romeu

(B) = Criado

(C) = [ver acima]

(E3) = Lá para cima.

(Q3) = Em um lugar mais alto que este (por quebra das 1as máximas de

Quantidade e Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E3)

2- (B) está oferecendo uma informação (cima/up) menos informativa que o requerido e

obscura

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2, C3, C4, Q1, Q2}

5- (B), dizendo (E3), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q3)

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6- (B) disse (E3) e implicou (Q3)

(E4) = em nossa casa

(Q4) = na casa que é minha e de mais alguém (por quebra das 1as máximas de

Quantidade e Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E4)

2- (B) está oferecendo uma informação (nossa/our) menos informativa que o requerido e

obscura

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2, C3, C4, Q1, Q2}

5- (B), dizendo (E4), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q4)

6- (B) disse (E4) e implicou (Q4)

(E5) = Do meu amo.

(Q5) = Da pessoa de quem sou criado (por quebra das 1as máximas de Quantidade e

Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E5)

2- (B) está oferecendo uma informação (meu/my) menos informativa que o requerido e

obscura

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2, C3, C4, Q1, Q2}

5- (B), dizendo (E5), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q5)

6- (B) disse (E5) e implicou (Q5)

(E6) = Agora vou lhe contar sem que me pergunte

(Q6) = Também posso fazer o senhor de bobo (por quebra da 1ª máxima de

Qualidade)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E6)

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2- (B) está oferecendo uma informação a mais que o requerido (sem que me

pergunte/without asking) sabidamente falsa

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {Q1, Q2, Q3, Q4, Q5}

5- (B), dizendo (E6), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q6)

6- (B) disse (E6) e implicou (Q6)

É justo quando Romeu desiste de perguntar onde será a festa que o Criado quebra a

máxima de Adequação e responde então à pergunta que não mais está sendo feita. Isso

representa a repetição da atitude de Romeu um pouco antes – quando o Criado desiste de

perguntar se ele sabe ler e despede-se, Romeu quebra a máxima de Adequação e oferece

resposta não mais desejada: “Fique, amigo. Eu sei ler”. E o Criado continua “dando o troco”

a Romeu, como se pode ver na implicatura que se segue:

(E7) = meu amo é o grande e rico Capuleto

(Q7) = posso ser analfabeto, mas não sou um qualquer, pois sou criado de

personagem importante (por quebra da 2ª máxima de Quantidade)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E7)

2- (B) está oferecendo mais informações que o requerido (grande e rico/great rich)

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2, C3, Q6}

5- (B), dizendo (E7), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q7)

6- (B) disse (E7) e implicou (Q7)

Como se pode ver pelos exemplos acima, são tratadas, a partir de sua calculabilidade,

figuras de linguagem como a metáfora e a ironia.

Diferentemente dos exemplos explorados por Grice (1975) em seu artigo pioneiro,

assim como nos exemplos de que se serviram seus comentadores e críticos, o presente

trabalho diferencia-se dos demais justamente por valer-se de exemplos que, a meu ver,

possuem uma grande vantagem: a continuidade dos diálogos. Quase todos os exemplos que

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aqui ilustram a propriedade de calculabilidade das implicaturas examinadas têm como ser

corroborados em sua validade, pois as falas seguintes vêm garantir que o cálculo inferencial

possível não só foi razoável e possivelmente executado, como também foi corroborado pelo

texto que se segue. Pode-se também dizer que é justamente porque conto com a continuidade

dos diálogos que posso executar os cálculos mais precisos possíveis, pois o texto que se

segue serve de guia para as inferências necessárias no trecho imediatamente anterior. Pode-se

comentar que esta é justamente a função do tradutor: ficar permanentemente atento ao que se

segue dentro do texto, de modo que assim se evitem os “furos” da tradução, ou seja, que se

evite a falta de lógica nos diálogos traduzidos – mesmo que a lógica do original seja a do

nonsense.

No Quarto Ato de R&J deparamos um belo exemplo de diálogo em que o interlocutor

remetente (Julieta) implicita certas coisas e o destinatário (Páris) não tem como alcançar

essas implicaturas porque ele não tem acesso a todos os itens que compõem o contexto do

qual parte o remetente para proferir seus enunciados. É um diálogo relativamente longo, em

que repetidamente, sistematicamente, Julieta, por não poder revelar que já está casada com

Romeu, vale-se constantemente da quebra das máximas de Quantidade e Modo para

preservar as máximas de Qualidade e, portanto, não incorrer em mentiras.

Este é um exemplo de conversação em que o contexto daquilo que é falado não é de

conhecimento mútuo. Analisando-se o diálogo a partir da noção de contexto construído, o

interlocutor que é Páris constrói o contexto da conversação a partir de seu contexto inicial,

este menor que o conjunto de proposições que compõem o contexto inicial do remetente da

mensagem, Julieta, que sabe que, por já ser uma mulher casada, está impedida de casar-se

com Páris conforme o que ficou acordado entre ele e Capuleto.

[04] Original, p. 1035

PARIS – Happily met, my lady and my wife!

JULIET – That may be, sir, when I may be a wife.

PARIS – That may be must be, love, on Thursday next.

JULIET – What must be shall be.

FRIAR LAWRENCE – That’s a certain text.

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PARIS – Come you to make confession to this father?

JULIET – To answer that, I should confess to you.

PARIS – Do not deny to him that you love me.

JULIET – I will confess to you that I love him.

PARIS – So will ye, I am sure, that you love me.

JULIET – If I do so, it will be of more price / Being spoke behind your back than to

your face.

PARIS – Poor soul, thy face is much abus’d.

JULIET – The tears have got small victory by that; / For it was bad enough before

their spite.

PARIS – Thou wrong’st it more than tears with that report.

JULIET – That is no slander, sir, which is a truth; / And what I spake I spake it to my

face.

PARIS – Thy face is mine, and thou hast slander’d it.

JULIET – It may be so, for it is not mine own.

A análise da primeira implicatura, compreendida por Páris, é a seguinte:

(A) = Páris

(B) = Julieta

(C) = C1 – Julieta e Páris estão oficialmente noivos

C2 – Julieta e Páris têm casamento marcado para quinta-feira

C3 -- (conhecimento do mundo) Casamentos, a princípio, acontecem por amor

(E1) = O que tiver de ser será.

(Q1a) = O futuro possivelmente contém eventos marcados no presente (por quebra

da 1ª máxima de Quantidade e da 2ª máxima de Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E1)

2- (B) está oferecendo informações (tiver de ser + será/must be + shall be) obviamente

redundantes e não-suficientes

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe {C1, C2}

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5- (B), dizendo (E1), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q1a)

6- (B) disse (E1) e implicou (Q1a)

IMPLICATURA ENCADEADA:

(Q1b) = Se nosso casamento está marcado para quinta-feira, possivelmente serei

sua esposa na quinta-feira (uma implicatura standard, que vai do genérico

para o específico, conforme o contexto a que tem acesso o destinatário, e

torna (Q1a) o mais relevante possível)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E1)

2- (B) está cooperando

3- (B) sabe C {C1, C2, Q1a}

4- (B), dizendo (E1), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q1b)

5- (B) disse (E1) e implicou (Q1b)

Nota-se que, ao fazer uso de uma tautologia, Julieta não quebra as máximas de

Qualidade. Tampouco está ela quebrando a máxima de Adequação, já que mantém, por

implicatura, o tópico da conversação, i.e., ela ser esposa de alguém na quinta-feira.

No entanto, deparamos, na leitura do texto, uma segunda implicatura que se infere a

partir do enunciado, esta desconhecida de Páris mas igualmente pretendida por Julieta – e

compreendida por Frei Lourenço, o que se demonstra nos cálculos abaixo.

Diferentemente das implicaturas encadeadas, conforme exemplificadas por Costa

(1984), a implicatura em questão é concomitante à primeira, que foi uma inferência de Páris.

Páris, por ignorar dados relevantes ao contexto conhecido de Julieta e Frei Lourenço

(contexto (C) abaixo), não tem como inferir a segunda implicatura. Prova de que Páris

compreendeu apenas a primeira implicatura vem em seguida no texto, quando ele diz a

Julieta: “Não ocultes dele [Frei Lourenço] que me tens amor”. Somente com o contexto

fornecido por Q1 + C3, acima apresentados, poderia Páris chegar a esse enunciado que

contém a afirmação do amor de Julieta por sua pessoa.

Julieta, por sua vez, sacrifica máximas de outras categorias no intuito de preservar as

máximas de Qualidade, conforme fica implícito na fala de Frei Lourenço.

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IMPLICATURA CONCOMITANTE:

(D) = Frei Lourenço

(B) = Julieta

(C) = C1 – Julieta e Páris estão oficialmente noivos

C2 – Julieta e Páris têm casamento marcado para quinta-feira

C3 -- (conhecimento do mundo) Casamentos, em princípio, acontecem por amor

C4 – Julieta e Romeu estão secretamente casados

C5 – Páris desconhece C4

C6 – C4 não pode ser revelado a Páris.

(E1) = O que tiver de ser será.

(Q2a) = Não se pode prever o futuro (por quebra da 1ª máxima de Quantidade e da

2ª máxima de Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E1)

2- (B) está oferecendo uma informação (tiver de ser + será/must be + shall be) obviamente

redundante e não-suficiente

3- (B) está cooperando

4- (B) sabe C {C1, C2, C4, C5, C6} e sabe que é possível inferir (Q1) a partir de (E1)

5- (B), dizendo (E1), só estará sendo relevante se pretender que (D) pense (Q2a)

6- (B) disse (E1) e implicou (Q1) e (Q2a) concomitantemente

IMPLICATURA ENCADEADA (do genérico para o específico):

(Q2b) = Não se pode prever o que acontecerá na quinta-feira (uma implicatura

standard, que serve para tornar (Q2a) o mais relevante possível)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E1)

2- (B) está cooperando

3- (B) sabe C {C1, C2, C4, C5, C6, Q2a} e sabe que é possível inferir (Q1) a partir de (E1)

4- (B), dizendo (E1), só estará sendo relevante se pretender que (D) pense (Q2b)

5- (B) disse (E1) e implicou (Q1) e (Q2b) concomitantemente

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Essa simultaneidade de implicaturas, portanto, é a inferência que Frei Lourenço

prontamente depreende da fala de Julieta, o que nos prova sua existência, ou melhor,

autoriza-nos a supor que ela existe, sendo que no contexto necessário à inferência de (Q2b)

está embutido o conhecimento da implicatura (Q1) como sendo a única acessível a Páris. Em

outras palavras, Julieta e Frei Lourenço têm consciência de que Páris estará autorizado a

inferir (Q1) a partir da fala de Julieta ao mesmo tempo em que o Frei pode depreender (Q2b)

e a possibilidade de (Q1) a partir do mesmo enunciado – e pode assim concluir que esta foi

justamente a intenção de Julieta enquanto remetente no ato comunicativo: a simultaneidade

de implicaturas.

A própria fala de Frei Lourenço nos fornece esse dado não no dito, mas também por

implicatura e, o que é mais, numa fala que por sua vez também permite implicaturas

concomitantes (uma que Páris pode inferir e outra que Julieta pode inferir ao mesmo tempo

em que sabe que a inferência de Páris será outra).

(A) = Páris

(B) = Frei Lourenço

(C) = C1 – Julieta e Páris estão oficialmente noivos

C2 – Julieta e Páris têm casamento marcado para quinta-feira

C3 – Julieta disse “O que tiver de ser será” e implicou “Se nosso casamento está

marcado para quinta-feira, possivelmente serei sua esposa na quinta-feira”

(E2) = Palavras muito bem postas

(Q1) = Com palavras sábias/inquestionáveis, Julieta está deixando implícito que o

casamento está confirmado (por quebra da 1ª máxima de Quantidade)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E2)

2- (B) está oferecendo uma informação (palavras bem postas/certain text) incompleta para o

seu ato comunicativo

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe {C1, C2, C3}

5- (B), dizendo (E2), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q1)

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6- (B) disse (E2) e implicou (Q1)

IMPLICATURA CONCOMITANTE:

(D) = Julieta

(B) = Frei Lourenço

(C) = C1 – Julieta e Páris estão oficialmente noivos

C2 – Julieta e Páris têm casamento marcado para quinta-feira

C3 – Julieta e Romeu casaram-se secretamente

C4 – Frei Lourenço sabe do casamento secreto

C5 – Frei Lourenço sabe que Páris não sabe do casamento secreto

C6 – Frei Lourenço sabe que Páris não pode saber do casamento secreto

(E2) = Palavras muito bem postas

(Q2) = Com palavras sábias/inquestionáveis, me deste a entender o processo que

usaste para não cair numa mentira, fazendo com que Páris entenda uma

coisa e eu, outra (por quebra da 1ª máxima de Quantidade)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E2)

2- (B) está oferecendo uma informação (palavras bem postas/certain text) incompleta para o

seu ato comunicativo

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe C {C1, C2, C3, C4, C5, C6} e sabe que é possível inferir (Q1) a partir de (E2)

5- (B), dizendo (E2), só estará sendo relevante se pretender que (D) pense (Q2)

6- (B) disse (E2) e implicou (Q1) e (Q2) concomitantemente

Também temos, neste mesmo trecho de R&J, um exemplo impressionante de quebra

da 1ª máxima de Qualidade: “meu rosto certamente não é meu”/“it is not mine own”.

Procedemos à análise do cálculo inferencial:

(A) = Julieta

(B) = Páris

(C) = C1 – Páris e Julieta têm casamento marcado para quinta-feira

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C2 – O corpo da mulher pertence ao marido com exclusividade

(E3) = Teu rosto a mim pertence

(Q3) = Sendo minha noiva, já és minha com exclusividade (por quebra da 1ª

máxima de Qualidade)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E3)

2- (B) ofereceu uma informação obviamente falsa (Teu rosto a mim pertence/Thy face is

mine)

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2}

5- (B), dizendo (E3), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q3)

6- (B) disse (E3) e implicou (Q3)

Quando ocorre a alternância de interlocutores, temos:

(A) = Páris

(B) = Julieta

(C) = C1 – Páris e Julieta têm casamento marcado para quinta-feira

C2 – O corpo da mulher pertence ao marido com exclusividade

C3 – Julieta já é casada com Romeu

C4 – Páris desconhece C3

C5 – Páris não pode saber C3

(E4) = meu rosto certamente não é meu

(Q4) = eu já pertenço exclusivamente a alguém (por quebra da 1ª máxima de

Qualidade)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E4)

2- (B) ofereceu uma informação obviamente falsa (não é meu/not mine own)

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2, C3, C4, C5}

5- (B), dizendo (E4), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q4)

6- (B) disse (E4) e implicou (Q4)

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Por dedução, dado o contexto a que ele tem acesso, Páris sente-se autorizado a inferir

que esse “alguém” da implicatura de Julieta é ele mesmo, Páris, o noivo de casamento com

data marcada. Isso analisa-se em uma implicatura encadeada:

IMPLICATURA ENCADEADA:

(Q5) = eu já pertenço exclusivamente ao senhor (uma implicatura standard, que

torna Q4 o mais relevante possível)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E4)

2- (B) está cooperando

3- (B) sabe que (A) sabe C {C1, C2}

4- (B), dizendo (E4), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q5)

5- (B) disse (E4) e implicou (Q5)

IMPLICATURA CONCOMITANTE:

(D) = Frei Lourenço

(B) = Julieta

(C) = [o mesmo acima]

(E4) = meu rosto certamente não é meu

(Q6) = eu já pertenço exclusivamente a Romeu

CÁLCULO:

1- (B) disse (E4)

2- (B) ofereceu uma informação obviamente falsa (não é meu/not mine own)

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (D) sabe C {C1, C2, C3, C4, C5} e sabe que é possível para (A) inferir (Q5)

a partir de (E4)

5- (B), dizendo (E4), só estará sendo relevante se pretender que (D) pense (Q5) e (Q6)

6- (B) disse (E4) e implicou (Q5) e (Q6) concomitantemente

Para esse exemplo não temos uma fala de Frei Lourenço que venha corroborar essa

implicatura. Portanto, não há um dito do Frei para que dele tire-se uma implicatura do tipo

“entendi, Julieta, o que fizeste para não mentir, para deixar Páris inferir algo diferente de já

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seres casada e para me autorizar a inferir que estás fazendo referência velada a Romeu”.

Mais adiante, na peça de Shakespeare, deparamos um diálogo curto entre Julieta e

Capuleto, seu pai, quando então a protagonista da peça procede à mesma ginástica lingüística

(indicadora de sua ginástica mental) observada no exemplo acima. Julieta fala de modo que

em nenhum de seus enunciados possa ser detectada uma mentira, i.e., ela preserva a todo

custo as máximas de Qualidade, observando, além disso, a máxima de Adequação, e o

referido custo é o desrespeito às máximas de Quantidade e Modo, sendo que, nesta última

categoria, ela infringe obrigatoriamente a 2ª máxima (Evite ambigüidade). Isso é

conseqüência da própria ambigüidade moral por que está passando a personagem: impedida

pelas circunstâncias a divulgar que é mulher casada, ainda precisa fazer-se passar por noiva

de Páris, já que o pai impôs-lhe o noivo, e ela não pode contar ao pai irado sobre seu

casamento proibido e secreto. Personagem de elevados valores cristãos, que tem em Frei

Lourenço seu confessor, Julieta não ousa mentir e, ao mesmo tempo, está impedida de

declarar a verdade. Recorre então seu discurso à afirmação de generalidades – que se prestam

a interpretações várias, dependendo do contexto.

[05] Original, p. 1036

NURSE – See where she comes from shrift with merry look.

Enter Juliet.

CAPULET – How now, my headstrong! where have you been gadding?

JULIET – Where I have learn’d me to repent the sin / Of disobedient opposition / To

you and your behest; and am enjoin’d / By holy Lawrence to fall prostrate here, / And beg

your pardon: -- pardon, I beseech you! / Henceforth I am ever rul’d by you.

CAPULET – Send for the county; go tell him of this: / I’ll have this knot knit up to-

morrow morning.

JULIET – I met the youthful lord at Lawrence’ cell; / And gave him what becomed

love I might, / Not stepping o’er the bounds of modesty.

CAPULET – Why, I am glad on’t; this is well, -- stand up. – This is as’t should be.

(...)

JULIET – Nurse, will you go with me (...)?

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No exemplo oferecido acima para ilustrar implicaturas concomitantes e seus cálculos,

temos a situação em que Capuleto, o pai de Julieta, não sabe que a filha é apaixonada por

Romeu e com este casou-se secretamente, enquanto esses dados são do conhecimento da ama

de Julieta. Veja-se então as implicaturas:

(A) = Capuleto

(B) = Julieta

(C) = C1 – Julieta e Páris estão oficialmente noivos

C2 – Julieta e Páris têm casamento marcado para quinta-feira

C3 – Julieta e Páris encontraram-se

(E) = ofereci-lhe todo o amor que fui capaz de lhe entregar

(Q1) = ofereci-lhe todo o amor que uma noiva é capaz de entregar ao futuro marido

(por quebra da 1ª máxima de Quantidade e da 2ª máxima de Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E)

2- (B) está oferecendo uma informação (todo amor que fui capaz/what becomed love I

might) ambígua e não ofereceu todas as informações necessárias

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe que (A) sabe {C1, C2,C3}

5- (B), dizendo (E), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q1)

6- (B) disse (E) e implicou (Q1)

IMPLICATURA CONCOMITANTE

(D) = Ama

(B) = Julieta

(C) = C1 – Julieta e Páris estão oficialmente noivos

C2 – Julieta e Páris têm casamento marcado para quinta-feira

C3 – Julieta e Páris encontraram-se

C4 – Julieta é apaixonada por Romeu

C5 – Romeu e Julieta casaram-se secretamente

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C6 – Capuleto não sabe C4 nem C5

(E) = ofereci-lhe todo o amor que fui capaz de lhe entregar

(Q2) = ofereci-lhe amor nenhum (por quebra da 2ª máxima de Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E)

2- (B) está oferecendo uma informação (todo amor que fui capaz/what becomed love I

might) ambígua

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe C {C1, C2, C3, C4, C5, C6} e sabe que é possível inferir (Q1) a partir de (E)

5- (B), dizendo (E), só estará sendo relevante se pretender que (D) pense (Q2)

6- (B) disse (E) e implicou (Q1) e (Q2) concomitantemente

No exemplo acima, quanto à implicatura depreendida por Capuleto a partir do

enunciado de Julieta, pode-se calcular uma implicatura encadeada, qual seja: “já confirmei

com Páris o casamento na quinta-feira”, dado o acesso que Capuleto tem ao contexto {C1,

C2, C3, Q1}. Isso confirma-se na fala seguinte de Capuleto: “Ora, isso muito me apraz (...)

As coisas assim ficam como deveriam ser”.

Ilustramos a seguir, o que sucede quando a tradução acata a significação do dito mas

não observa a inferência necessária à apreensão do significado total do enunciado. A

tradução não segue o cálculo griceano que existe no texto original simplesmente porque

inexiste implicatura a ser calculada na fala em questão, a que sofreu amputação do implícito.

[06] Original, p. 1024

NURSE – Is it good-den?

MERCUTIO – ‘Tis no less, I tell you; for the bawdy hand of the dial is now upon the

prick of noon.

NURSE – Out upon you! what a man are you!

Tradução, p. 67-68

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AMA – Já é boa tarde?

MERCÚCIO – Nada menos que tarde, lhe asseguro; pois a mão obscena que é a

sombra do ponteiro do relógio de sol encontra-se agora sobre o pau que traça o meio-dia.

AMA – Passa fora! Mas que tipo de homem és tu?

Tradução exclusivamente do dito:

AMA – Já é boa tarde?

MERCÚCIO – Nada menos que tarde, lhe asseguro; pois o ponteiro indecente do

relógio de sol encontra-se agora sobre a marca do meio-dia.

AMA – Passa fora! Mas que tipo de homem és tu?

Consideremos primeiramente o cálculo inferencial que se aplica, segundo o Modelo

Ampliado de Grice conforme Costa (1984), a original e tradução:

(A) = Ama

(B) = Mercúcio

(C) = C1 – Os interlocutores são desconhecidos um do outro

C2 – A Ama aproximou-se para pedir informações

(E) = a mão obscena que é a sombra do ponteiro do relógio de sol encontra-se

agora sobre o pau que traça o meio-dia

(Q) = há uma mão sobre um pênis (por quebra da 2ª máxima de Quantidade e da 2ª

máxima de Modo)

CÁLCULO:

1- (B) disse (E)

2- (B) está oferecendo mais informações (hand/mão e ponteiro + prick/pau) que o requisitado

e ambíguas

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe C {C1, C2}

5- (B), dizendo (E), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q)

6- (B) disse (E) e implicou (Q)

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Retirada essa implicatura da fala de Mercúcio, o que se segue é que o leitor de

Shakespeare assim traduzido vai automaticamente procurar na fala seguinte da Ama uma

implicatura para o que ela diz, pois ali fica gritante na interlocução uma mudança de tópico,

no mínimo um descompasso entre a fala de Mercúcio, que diz as horas referindo-se ao

relógio de sol, e a reação da Ama. O leitor verá que essa reação da Ama às palavras de

Mercúcio terá sido exagerada, mesmo descabida, ante uma fala que no máximo está, de

maneira inoportuna, adjetivando como indecente um ponteiro de relógio.

Vejamos agora um exemplo de tradução que peca por não ter sido capaz de passar ao

leitor o duplo sentido que há numa fala de Sansão, na Cena I do Primeiro Ato, mas que,

mesmo assim, não deixa “furo” para a fluência do texto.

[08] Original, p. 1011-1012

SAMPSON – Me they shall feel while I am able to stand: and ‘tis known I am a

pretty piece of flesh.

GREGORY – ‘Tis well thou art not fish; if thou hadst, thou hadst been poor-John. –

Draw thy tool; here comes two of the house of the Montagues.

SAMPSON – My naked weapon is out: quarrel, I will back thee.

GREGORY – How! turn thy back and run?

Tradução, p. 9

SANSÃO – Pois a mim elas vão sentir, enquanto eu for capaz de me agüentar teso; e

é público e notório que sou um belo exemplar de macho.

GREGÓRIO – E ainda bem que de macho humano, pois, se fosse de bovino, estarias

mais para boi que para touro. – Empunha tua ferramenta; aí vêm vindo dois da casa dos

Montéquio.

SANSÃO – Minha arma já está desembainhada; vai em frente, briga com eles, que te

dou cobertura.

GREGÓRIO – Como? Viras as costas e foges?

Na fala “Minha arma já está desembainhada”, perde-se a segunda leitura de “My

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naked weapon is out”, leitura esta, obscena, que já se anunciara na ordem de Gregório:

“Draw thy tool”. Tanto “weapon” como “tool” têm a leitura possível de “pênis”, bastante

usada na obra de Shakespeare, não só em R&J. Isso corrobora-se tanto em Macrone

(1997:204;206-207) como em outras traduções de R&J para o português brasileiro.

Tem-se, assim, aparentemente, mais uma vez confirmada a idéia de que a tradução

adequada de um texto deve necessariamente seguir um cálculo griceano para a inferência que

está presente no original, caso contrário esse tipo de implícito perde-se no texto traduzido.

Sendo este o caso do exemplo acima, então por que a tradução ora em estudo não

apresenta lacunas na continuidade do diálogo? Simplesmente porque a tradução, de modo

consistente, continua ignorando o segundo sentido, obsceno, que carregam as expressões que

justamente o corroboram, entre elas, “I will back thee” (“te dou cobertura”, mas também

“monto em ti”).

O que acontece então nesse exemplo é que o original carrega uma implicatura por

quebra da 2ª máxima de Modo, “Evite ambigüidade”, enquanto a tradução desta autora não

sustenta a leitura ambígua que perpassa as falas do original “Draw thy tool”, “My naked

weapon is out” e “I will back thee”. Não há implicaturas a serem calculadas na tradução,

embora o texto seja fluente, coeso e coerente. Em resumo, a tradução não está adequada – ela

deveria ser capaz de submeter-se a uma análise do tipo griceano, tendo a oferecer material

implicitado do mesmo calibre que o do original, ou seja, calculável da mesma forma –

porque a implicatura existe no original de modo comprovável.

Por outro lado, vale a pena apontar, no trecho acima, um ótimo exemplo de como

uma metáfora pode ser trabalhada na tradução, apresentando-se numa analogia diferente

daquela de que se vale o original, mas, ainda assim, levando à mesma implicatura. Observe-

se:

(A) = Sansão

(B) = Gregório

(C) = C1 – Os dois vinham conversando sobre a masculinidade de Sansão

C2 – Gregório insiste em pôr em dúvida a virilidade de Sansão

(E) = ainda bem que [és um belo exemplar] de macho humano, pois, se fosse de

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bovino, estarias mais para boi que para touro

(Q) = te dizes macho, mas ages como um castrado (por quebra da 1ª máxima de

Qualidade)

Em inglês, (E) = ‘Tis well thou art not fish; if thou hadst, thou hadst been poor-John,

onde “poor-John” significa peixe defumado. Temos, mais uma vez, Shakespeare empregando

a imagem de um peixe defumado (que teve seus órgãos reprodutores masculinos retirados)

para insinuar que o homem a que se refere a expressão metafórica não age exatamente como

um macho naquilo que se convencionou chamar “atitudes de homem”. A tradução opta por

uma metáfora que se mantém no reino animal, mas se permite ser bovina em vez de

pisciforme para chegar à mesma implicatura do original. É uma figura de linguagem

comumente usada no português e prontamente apreendida por seus leitores.

CÁLCULO:

1- (B) disse (E)

2- (B) está oferecendo uma informação (bovino + boi [e não touro]/fish + poor-John)

obviamente falsa

3- (B) ainda assim deve estar cooperando

4- (B) sabe C {C1, C2}

5- (B), dizendo (E), só estará sendo relevante se pretender que (A) pense (Q)

6- (B) disse (E) e implicou (Q)

Neste exemplo, infelizmente, não temos uma continuidade nas falas que nos

comprove que essa implicatura foi depreendida do significado do enunciado, pois que a

conversa entre os dois é interrompida pela chegada de “dois da casa dos Montéquio”. O

diálogo carece de uma continuidade que lhe dê o aval de que a implicatura foi realmente

compreendida pelo destinatário.

Consideramos os exemplos acima necessários e suficientes para ilustrar a capacidade

descritiva e explanatória da Teoria das Implicaturas de Grice no que vem a ser o melhor

tratamento que a Lingüística tem a oferecer, qual seja, dentro da Pragmática, para a questão

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de um tipo específico de implícito encontrado em diálogos humanos: a implicatura

conversacional particularizada por quebra de máximas griceanas. Procurou-se mostrar

também que, para original e tradução, o cálculo inferencial de uma implicatura deve ser o

mesmo.

4- Avaliação do potencial de aplicação

A questão teórica ilustrou-se com diálogos de R&J, devidamente analisados em seus

cálculos inferenciais, o que veio corroborar a primeira de nossas hipóteses: o Princípio da

Cooperação é sempre respeitado, mesmo quando aparentemente quebram-se uma ou mais

máximas conversacionais, e um construto teórico chamada “cálculo inferencial” mostra-se

válido para demonstrar esse fenômeno pragmático. O que autoriza uma inferência do tipo

implicatura particularizada por quebra é não só o enunciado do falante, mas também o

contexto em que este é dito. Acredita-se que o presente trabalho mostrou que o cálculo

inferencial vale-se de uma lógica dedutiva e não-trivial para relacionar enunciado,

conhecimento do contexto e regras conversacionais, o que descreve e explica, dentro de uma

teoria de base pragmática, como o interlocutor daquele falante depreende o não-dito, como

ele compreende o implícito, como ele infere a implicatura. Em suma, o cálculo inferencial,

conforme apresentado por Costa (1984) e aqui empregado para análise de diálogos de R&J,

provou ser modelagem adequada para dar tratamento a implicaturas griceanas dentro de

diálogos ficcionais.

Acrescentou-se ao Modelo Ampliado a noção de implicaturas concomitantes,

conforme ficou visto que houve situações de diálogos em que há mais de dois interlocutores

atuando e, para um mesmo enunciado, acontecem implicaturas diferentes – em função de

serem diferentes os conjuntos de proposições que formam o contexto de cada interlocutor.

Fica aqui a observação de que isso ajuda a ilustrar como a noção de conhecimento mútuo é

falha para uma teoria da comunicação humana. O conhecimento nesses casos é apenas

parcialmente mútuo, e isso fica evidente nos exemplos em que inserimos implicaturas

concomitantes (no exemplo [04], Julieta sabe que Páris não sabe que ela casou com Romeu,

e Frei Lourenço sabe que Julieta sabe que Páris não sabe). Daí a importância da

reformulação do modelo griceano por Costa (1984), quando então retira-se do modelo

clássico do cálculo inferencial o passo que está vinculado à idéia de conhecimento mútuo,

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substituindo-o por outro passo, onde fica expressa a idéia de contexto do ouvinte, ou seja, o

contexto do interlocutor que está (teoricamente) realizando o cálculo.

Corroborou-se também nossa segunda hipótese: a teoria griceana é potencialmente

capaz de descrever e explicar como foi feita uma tradução pragmaticamente adequada de

uma conversação entre personagens de uma obra de ficção. Essa potencialidade de aplicação

é tão rica que, conforme ficou visto neste estudo, o cálculo inferencial aplicado a diálogos

ficcionais pode apontar equívocos de uma tradução e poderia até mesmo apontar uma

solução tradutória para uma fala do original. Isto porque, a partir do dito (seja no original,

seja na tradução) a inferência (o não-dito) a que deve chegar o ouvinte-personagem dentro do

texto de ficção deve ser a mesma e, para isso, as mesmas quebras de máximas

conversacionais devem se manter na tradução e, conseqüentemente, o mesmo cálculo para

aquela implicatura particularizada. Do contrário, a tradução terá perdido um implícito

existente no original.

Chamo a atenção para dois pontos cruciais: a importância deste estudo não se dar

dentro de uma teoria da tradução e a importância deste estudo trabalhar diálogos de R&J.

Nosso foco aqui não é avaliar uma tradução de R&J, embora reconheça-se que isso ocorre

marginal e inevitavelmente. Nosso foco tampouco é o de avaliar uma teoria tradutória.

Estamos avaliando, isto sim, um tratamento de inferências pragmáticas que nos oferece uma

teoria recente da lingüística, avaliação esta que se conseguiu via diálogos selecionados de

R&J e que traz implicações para o inexplorado campo da tradução do não-dito. Digo

inexplorado no sentido de que não dispomos de uma abordagem para essa questão que seja

menos empírica e de maior rigor científico, mais sistemática e – por que não? –

eventualmente formalizável.

5- Conseqüências para a tradução

Acredito que o presente trabalho mostrou valor suficiente para ser inserido na seara

dos estudos da Tradução, na medida em que a literatura que vem tratando de Teoria da

Tradução não contempla em termos teóricos a questão do não-dito. Todos os teóricos da

tradução concordam em que o não-dito tem de ser traduzido; isso é ponto pacífico. No

entanto, inúmeros autores limitam-se a explanar tal ponto com exemplos e mais exemplos,

todos pontuais, de traduções em poesia.

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Num esforço para oferecer aos estudiosos da tradução uma explicação teórica que se

encontra dentro da área da Lingüística para uma questão delicada da atividade tradutora, qual

seja, a tradução dos implícitos, este trabalho deteve-se sobre o estudo das implicaturas

conversacionais segundo Grice, estudo este que se dá dentro do campo da Pragmática. Minha

investigação, dentro de um objetivo secundário, complementar à parte teórica, propôs-se a

ilustrar como o modelo griceano ampliado tem potencial para auxiliar no entendimento de

uma tradução como a de R&J e, conseqüentemente, de qualquer outro texto literário que faça

uso de diálogos. Meu estudo pretendeu encontrar sua importância na medida em que tenha

contribuído de alguma forma para minorar a angústia do tradutor frente ao dilema “traduzir

literalmente versus recriar livremente” e na medida em que tenha contribuído de alguma

forma para o avanço de estudos lingüísticos que encontram sua aplicação dentro do campo

da Tradução.

Acredito que a Teoria das Implicaturas de Grice pode vir a constituir-se num

embasamento teórico, juntamente com estudos aprofundados em Lógica, para uma possível

teoria da tradução que se proponha a sistematizar, de maneira especializada, a tradução de

implícitos na literatura de ficção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Jorge Campos da. A relevância da pragmática na pragmática da

relevância: a lógica não-trivial da linguagem natural. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1984. 188 p. GRICE, H.P. “Logic and conversation”, in: COLE e MORGAN (eds.). Syntax

and semantics. v.3. Speech Acts. New York: Academic, 1975. p. 41-58. MACRONE, M. Naughty Shakespeare. New York: Cader, 1997. MILTON, John. O poder da tradução. São Paulo: Ars Poetica, 1993. 195 p. SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Transl. Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1998. 166 p. ________. The complete works of William Shakespeare. New York - Avenel, New Jersey: Gramercy Books, 1975. p. 1010-1044. SPERBER, D. e WILSON, D. Relevance: communication and cognition. Cambridge: Harvard University, 1986. 326 p.