INÁCIA RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA LUA CAMBARÁ, UMA ASSOMBRAÇÃO...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES INÁCIA RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA LUA CAMBARÁ, UMA ASSOMBRAÇÃO BRASILEIRA. LUA CAMBARÁ, A BRASILIAN HAUNT CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

INÁCIA RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA

LUA CAMBARÁ, UMA ASSOMBRAÇÃO BRASILEIRA.

LUA CAMBARÁ, A BRASILIAN HAUNT

CAMPINAS

2018

INÁCIA RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA

LUA CAMBARÁ, UMA ASSOMBRAÇÃO BRASILEIRA.

LUA CAMBARÁ, A BRASILIAN HAUNT.

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas para obtenção do

título de Mestra em Artes da Cena, na área de Teatro,

Dança e Performance.

e

Dissertation presented to the Institute of Arts of the

State University of Campinas in partial fulfillment of

the requirements for the degree of Master in Arts of the

Scene, in the Area of Theater, Dance and Performance.

ORIENTADORA: GRÁCIA MARIA NAVARRO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA INÁCIA

RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA E

ORIENTADA PELA PROFESSORA DOUTORA GRÁCIA

MARIA NAVARRO.

CAMPINAS

2018

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

INÁCIA RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA

ORIENTADOR: GRÁCIA MARIA NAVARRO

MEMBROS:

1. PROF(A). DR(A). GRÁCIA MARIA NAVARRO

2. PROF(A). DR. ADILSON NASCIMENTO DE JESUS

3. PROF(A). DR(A). ISA ETEL KOPELMAN

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade

Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora encontra-se

no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 14/12/2018

Vozes de mundos desconhecidos

O chão que eu piso me conta histórias

Pisei por muito tempo nas cinzas dos meus antepassados

Eu escuto suas histórias com os pés

E eles comunicam para o resto do corpo

O corpo responde aos impulsos que vem do chão

Chicoteia, sacode, suspende.

A voz das minhas avós se juntam a milhares de outras vozes

Ruídos que entram de ouvidos a dentro.

Nos meus pés estão as minhas raízes

Uma pessoa sem raiz, não se equilibra,

Não se sustenta

Atrás das minhas costas há toda uma geração

De mulheres esquecidas pelo tempo e memória

Cujos nomes foram silenciados na boca dos parentes

Até não serem mais lembrados

Mas são elas que me dão força

Eu não sou só eu só

Eu sou a filha, a mãe e a avó.

Puxo com as mãos no ar o que foi esgarçado pelo tempo.

Larissa Santana 13 de março de 2015

AGRADECIMENTOS

Ao Divino Espírito Santo, às Divindades, as Yabás, Oxum, Yansã, Nanã,

Oxalá, aos Encantados, ao povo da Jurema, Salve todo o Juremá. Salve a estrela que

me guia. Salve a força que me sustenta.

Às minhas bisavós (in memoriam) que me mostraram por onde começar, em

especial Rosa Cipriano.

Às minhas avós, Rosa Santana de Lima e Doralice Barros (in memoriam),

pela graça de observá-las tecer histórias com seus gestos, cozinhando ao pé do fogão de

lenha, partilhando generosamente o alimento, costurando bonecas de pano e colchas de

retalhos nas memórias aquecidas nesses encontros e andanças pelo Sertão.

A quem me deu tutano, mas também me deu asas, meus pais, Elisabete

Santana de Lima, José Arnaldo Barros da Silva. A estes que são âncora e balão dentro

de mim.

A meu irmão, Ariston Lavoisier Barros de Santana, pela compreensão em

ver-me ausentar do convívio dos meus.

Aos amigos, Martha Procópio Péclat, José Carlos Prado Péclat e

Chavannes Procópio Péclat, por serem impulsionadores de sonhos, soprando as velas do

meu barco, encorajando-me nessa jornada.

À Grácia Maria Navarro, por acreditar nessa pesquisa, pela partilha e

exemplo de hombridade, compromisso, ética, pela possibilidade de dançarmos juntas nas

mesmas rodas, partilhando outros tipos de saberes. Também pela orientação cuidadosa do

trabalho, respeitando sobretudo a pesquisa e o seu crescimento, obrigada.

Às Caixeiras das Nascentes nas pessoas de Cristina Bueno e Inês Vianna,

por partilharem conosco o estudo de práticas, celebrações e saberes que aprenderam com

mestres e mestras da Cultura Popular, deixando que eu guarnecesse minhas raízes daquilo

que elas precisavam para a minha resiliência de migrante.

À Elias de Lima Lopes, pelas provocações nos laboratórios criativos, por seu

tempo, ouvidos, olhos, sensibilidade, confiança, pela amizade, pelas longas conversas e

café, pelo silêncio da partilha de uma verdadeira amizade, eu agradeço.

À Venúsia Ferraz, por me estender as mãos quando mais precisei e me ajudar

nos dolorosos processos de mudança.

Às amigas, Aline Sampaio, Hariane Eva, pela oportunidade do desabafo para

tomar fôlego nos momentos de dificuldades.

Às amigas, Vera Lúcia Silva, Sthefanie Brito, por compartilharem sua luz

comigo.

À Brisa Vieira, pelo lar, pela família, pelo quintal, pela partilha, que me deu

possibilidade de uma expansão para o universo, convivendo diariamente com a terra, o sol,

a lua, as estrelas, o vento, a chuva, o horizonte.

À Cora, este Erê que me diz coisas tão profundas, quando me diz tão somente:

“Coragem!” e torna a brincar em nosso quintal, como se nada fosse.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, com

quem tive o prazer de ter aulas, pelas provocações e desafios que lançaram ao meu

aprendizado intelectual.

Ao Departamento de Artes Cênicas, nas pessoas de Deyse, Dona Zete, Luís

e Anderson.

Aos funcionários da secretaria de Pós-Graduação, nas pessoas de Neuza,

Letícia e Rodolfo.

À Consuelo Timóteo, por abrir a Casa das Almas com suas narrativas

assombrosas a essa pesquisa e experimentação no cemitério do seu quintal e no castelo

anexo à casa grande.

À rezadeira Dona Francisca, que nutriu meu imaginário, com os causos da

seca de 1970, da linha do trem, das histórias dos retirantes, ciganos, “envurtados”, das

mulheres amaldiçoadas que “correm bicho”, lobisomens, encantados, livros de magia, nas

tardes em que me benzia de mal olhado, ao mesmo tempo em que me ensinava suas rezas.

À Cida, da Ong Mulher Maravilha, pela ponte junto ao Quilombo

Travessão do Caruá, por literalmente me colocar no carro de lotação e providenciar a

minha recepção em sua família.

Ao autodidata Dezinho, ou Seu José Alfredo Vitor da Silva, que compartilhou

histórias dos seus antepassados, de quando fugiram de Palmares na época em que este foi

invadido, embrenhando-se de Moxotó a dentro até parar no Alto Sertão do Pajeú, onde

tiveram a proteção de Lampião para se instalar nas terras do Travessão do Caruá, em que

mora atualmente. Por partilhar histórias, danças, canções. Também à Severina, sua esposa,

por partilhar o aconchego de seu lar.

A José Lopes da Silva, fabuloso artesão e rezador da Serra da Barriguda,

por me deixar vê-lo construir narrativas num tronco de árvore, transformando-o com o seu

fazer em canga para carro de boi, que por sua vez continuaria tecendo outras narrativas.

Também pela reza para “fechar o corpo”, a qual muito me ajudou nessa escrita.

Ao vaqueiro Augusto, por partilhar um pouco da sua rotina de trabalho na casa

do seu patrão, Si Toin, na transferência do gado para outra roça e no adestramento do

cavalo Napoleão.

A Elisabete Santana de Lima, pelo envolvimento com esse processo criativo,

na via mítica, tecendo com a ciência do fazer os figurinos que iam compor os corpos dessas

personagens e por me levar à chã da serra sempre que preciso de Axé, contando-me a cada

passo da subida, onde se escondem as árvores curativas.

A Rosa Santana de Lima, por me contar histórias da minha bisavó, Mãe

Isabel, mestiça de sangue indígena e português e histórias de como morriam os anjinhos de

morte matada no Sertão.

Às artesãs e artesãos de Pernambuco e Paraíba, que encontrei nessa trajetória

e dos quais obtive além dos objetos que compõem a cena, as narrativas que os

acompanham, pela graça de manipular essas narrativas simbólicas, meu muito obrigado.

À Rita Cássia, Rodolfo Ventura e Raielle Mazzarelli, que me auxiliaram

nessa escrita poética, com a captação das imagens, edição e foto-grafia, sem os quais o

registro do processo criativo nesta dissertação não seria tão rico.

À CAPES, que patrocinou essa pesquisa, contribuindo decisivamente para o

desenvolvimento e dedicação exclusiva a esse trabalho. (O presente trabalho foi realizado

com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil

(CAPES) - Código de Financiamento 001).

RESUMO

Esta dissertação resulta de uma pesquisa na linha de Poéticas e Linguagens da Cena, sobre

o processo de criação da personagem Lua, inspirada no conto de Ronaldo Correia Brito,

Lua Cambará, transcrito da tradição oral em 1970. O objetivo central foi descobrir a partir

de um texto literário que evoca imagens arquetípicas do Sertão e do feminino, como

adentrar as camadas da personagem lunar, de modo a traduzir as provocações do conto em

linguagem cênica. Além da criação poética, conto gerou um estudo sobre os atravessamentos

que permeiam o feminino na personagem, tais como a condição de mestiça sertaneja, numa

aproximação em fricção com o contexto da personagem, do qual emergem situações

complexas que envolvem a construção cultural do feminino no século XIX. Ancoro as

reflexões sobre a mestiçagem no pensamento de Serge Gruzinski, Garcia Canclini, Milton

Santos e Larissa Vianna, a fim de compreender a força transgressora de Lua, em relação ao

contexto em que o autor do conto situa tal personagem. A seca no Nordeste, quase uma

entidade atemporal no conto, aparece no palco como uma metáfora, escrita no corpo de

atriz e na cena. Essa metáfora é criada com os silêncios, texturas, projeção de imagens,

canções e no corpo de atriz ao recuperar sensações da pesquisa de campo. Assim as

materialidades retidas na memória e transformadas em metáforas na cena, por meio das

ações, dos objetos, figurinos, encontram-se em consonância com a metodologia de

intercâmbio com o campo no modo artesanal de fazer, o qual envolve uma artesania muito

delicada, irradiada pelos afetos, encontros, vivências com os materiais que compõem os

detalhes dessa encenação desde aqueles mais singelos. A escolha por objetos artesanais

está estreitamente ligada aos trajetos e narrativas simbólicas que constroem a partir do seu

manuseio, por meio das associações com as pessoas, lugares, narrativas que

acompanharam a aquisição desses objetos. A pesquisa parte da literatura, permeando a

cultura popular, celeiro criativo, no qual busco desenvolver a presença de atriz e relação

com o público, bem como o fluxo entre as qualidades que identifiquei na personagem: moça,

guerreira, anciã, elementos que, ao final, compõem a consciência atemporal de Lua na

qualidade de assombração. Ao perceber que os métodos de criação de personagens

conhecidos e experimentados em minha formação não serviriam para este trabalho

específico, no próprio fazer fui criando a metodologia do fazer específica deste processo

criativo, a qual chamei de “Filosofia do Guarnecer”. Esse é um conceito misto inspirado no

guarnecer do Boi do Maranhão, conforme estudado por Marianna Monteiro e na Filosofia

do Teatro, de acordo com Jorge Dubatti. Relaciono as performances culturais rituais e

estéticas com o acontecimento, o que aproximou dos estudos de Illeana Diéguez, Victor

Turner e Richard Schechner, acerca dos conceitos de limen, liminaridade e ritual. Dessa

forma, a Filosofia do Guarnecer orienta a prática artística e o modo de lidar com as

práticas, saberes e celebrações da cultura popular brasileira num ponto de vista proximal,

afetivo e participativo, em que eu me encontrei em termos de horizontalidade, envolvida

nas rodas com os fazedores da cultura popular. Nessa pesquisa, alio teatro com fotografia e

vídeo, compreendendo o registro audiovisual e fotográfico como grafia. As foto-grafias

são recortes da experiência, com as quais reescrevo as cenas para o espectador leitor,

convidando a olhar de novo as metáforas da criação, quando projetadas sobre o corpo da

atriz e no espaço, podem fazer o transporte através das provocações sensoriais.

Palavras-chave: Teatro; Literatura; Cultura Popular; Processo Criativo; Personagem;

Foto-Grafia.

ABSTRACT

This master‟s thesis results from a search on line Poetics and Languages scene on the

process of creating the Lua character, inspired by the tale of Ronaldo Brito Correia, Lua

Cambara, transcript of the oral tradition in 1970. The main objective was to create from a

literary text that evokes archetypal images of the Sertão and the feminine, discovering how

to penetrate the layers of the lunar character, in what way translate the tale provocations in

scenic language and aesthetic creation. Beyond of poetic creation, the tale generated a

study of the crossings that permeate the feminine in the character, such as the condition of

mestiza sertaneja, in an approach in friction with the context of the character, from which

complex situations emerge which involve the cultural construction of the feminine in the

nineteenth century. I anchor the reflections on mestizaje in the thought of Serge Gruzinski,

Garcia Canclini, Milton Santos and Larissa Vianna, in order to understand the transgressor

force of Lua in relation to the context in which the tale's writer situates the character. The

drought in the Northeast, almost a timeless entity in the tale, appears on the scene as a

metaphor, written on the actress's body and on the scene. This metaphor is created with the

silences, textures, projection of images, songs and in the actress body, when recovering

sensations of the field research. So the materialities retained in memory and transformed

into metaphors in the scene, through actions, objects, costumes, are in accordance with the

methodology of exchange with the field in the artisanal way of doing, which involves a

very delicate craftsmanship, radiated by the affections, meetings, experiences with the

materials that compose the details of this staging, from the simplest. The choice of craft

objects is closely linked to the paths and symbolic narratives that build on its handling,

through the associations that I make with the people, places, narratives that accompanied

the acquisition of these objects. The research is part of literature, permeating popular

culture, creative barn, where I seek to develop the presence of actress and relationship with

the public, as well as the flow between the qualities that I identified in the character: girl,

warrior, old woman who end up the ghost, composing Lua as a whole, the timeless

awareness Lua. When realizing that the methods of creation of characters known and

experienced in my formation, would not serve for this specific work, in the own doing I

was creating the methodology of doing, specific of this creative process, which I called

"Philosophy of the Guarner". This is a mixed concept inspired by the garnish of Maranhão

Boi, as studied by Marianna Monteiro and Philosophy Theater according with Jorge

Dubatti. I relate the ritualistic and aesthetic cultural performances with the event, which

approached the studies of Illeana Diéguez, Victor Turner and Richard Schechner, about the

concepts of limen, liminarity and ritual. In this way, the Guarnecer Philosophy guides the

artistic practice and the way of dealing with the practices, knowledge and celebrations of

Brazilian popular culture in a proximal, affective and participative point of view, where I

found myself in terms of horizontality, involved in the wheels with makers of popular

culture. In this research, I combine theater with photography and video, including the

audiovisual and photographic record as spelling. The photographs are a cut-out of the

experience, with which rewrite the scenes for the reader's spectator, inviting to look again

the metaphors of creation, when projected onto the body of the actress and in space, can

make the transport through the sensorial provocations.

Keywords: Theater; Literature; Popular culture; Creative process; Character;

Photography.

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: Imersão em campo, chã da serra, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, município de

Afogados da Ingazeira-PE, dezembro de 2017. Arquivo pessoal da autora.....................................................43

Imagens 2,3,4: Laboratório de personagem, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, município de

Afogados da Ingazeira-PE, janeiro de 2018. Arquivo pessoal da autora................................................... 44,45

Imagem 5: Laboratório de criação, Sítio Catolé, Afogados da Ingazeira-PE. Objetos cênicos confeccionados

à mão. Luzia, Jovina, Catarina, Tereza, Mariquinha, Quitéria, Rosinha. Fevereiro de 2018. Arquivo pessoal

da autora............................................................................................................................................................58

Imagem 6: Castelo Casa das Almas, Sítio das Almas, Rota do Cangaço, Triunfo. Divisa entre os estados de

Pernambuco e Paraíba. Fevereiro de 2018. Arquivo pessoal da autora..........................................................65

Imagens 7, 8, 9, 10 ,11, 12: Experimentação audiovisual Sangangá, Paviartes, sala AC 011 do Instituto de

Artes da Unicamp. Junho de 2017. Captação de imagens de Hariane Eva......................................................67

Imagens 13, 14, 15, 16, 17, 18: Passeio. Pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa Pindorama:

Alessandro Oliveira, Eduardo Cecconello, Ysmaille Ferreira, Inácio Azevedo e passantes Lauro Mota, Hugo

Kojimiura e Victor Santos. Praça da Paz, Unicamp. 18 de outubro de 2016. Fotos de Letizia

Nicoli............................................................................................................................................................80, 81

Imagem 19: Andor de Santa Luzia, Sítio Queimadas- Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco, 13 dezembro de

2017. Arquivo pessoal da autora......................................................................................... ..............................86

Imagem 20: Presépio, Afogados da Ingazeira, Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco, 22 de dezembro de 2017.

Arquivo pessoal da autora................................................................................................... ..............................87

Imagem 21: Barraca de feira, pesquisa de campo, Afogados da Ingazeira, Pernambuco, janeiro de 2018

Arquivo pessoal da autora................................................................................................... ..............................88

Imagem 22: Barraca de feira, pesquisa de campo, Afogados da Ingazeira, Pernambuco, janeiro de 2018.

Arquivo pessoal da autora................................................................................................... ..............................88

Imagem 23: Roça de palma, pesquisa de campo, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Alto Pajeú,

Pernambuco, dezembro de 2017. Arquivo pessoal da autora...........................................................................89

Imagens 24, 25: Captura do registro audiovisual de laboratório criativo realizado em 26 de dezembro de

2017. Arquivo pessoal da autora.................................................................................... ...................................90

Imagem 26: Perneira do vaqueiro, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, julho de 2018. Foto de Raielle

Mazzarelli............................................................................................................ .........................................91

Imagem 27: Figurino base da Cacurucaia Maria, Paviartes, Instituto de Artes, julho de 2018. Foto de

Raielle Mazzareli................................................................................................................. ..............................92

Imagem 28: Caju, barraca de feira, pesquisa de campo, Sertão do Alto Pajeú, Afogados da Ingazeira,

janeiro de 2018. Arquivo pessoal da autora....................................................................... ..............................94

Imagem 29: Pimenta do reino e coloral, barraca de feira, pesquisa de campo, Sertão do Alto Pajeú,

Afogados da Ingazeira, janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal...................................................................95

Imagem 30: Sabugo de milho no terreiro de vó Rosa, Sítio Catolé, Sertão do Alto Pajeú, dezembro de 2017.

Arquivo pessoal da autora................................................................................................... ..............................96

Imagem 31: Flores secas de sombreão, terreiro de vó Rosa, Sítio Catolé, Sertão do Alto Pajeú, dezembro de

2017. Arquivo pessoal da autora......................................................................................... ..............................96

Imagem 32: Pé de sombreão no terreiro de Elisabete Santana, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú,

fevereiro de 2018. Arquivo pessoal da autora...................................................................................................97

Imagens 33, 34: Captura do registro audiovisual do laboratório de criação realizado no Castelo da Casa

das Almas, rota do cangaço, Triunfo, Pernambuco, detalhes da capa de Lua, 16 de janeiro de 2018.

Captação de imagens de Rita Cássia................................................................................................................94

Imagens 35, 36, 37, 38: Casa abandonada (aqui morava Maria) Sítio Barriguda, Alto Sertão do Pajeú,

Afogados da Ingazeira, Pernambuco, dezembro de 2017. Arquivo pessoal da autora...................................99

Imagem 39: Cabra, Paviartes, Instituto de Artes da Unicamp, julho de 2018. Foto de Raielle

Mazzarelli........................................................................................................................................................100

Imagem 40: Laboratório criativo realizado no Castelo da Casa das Almas, rota do Cangaço, Triunfo

Pernambuco, 16 de janeiro de 2018. Foto de registro audiovisual, captação de imagens de Rita

Cassia..............................................................................................................................................................100

Imagem 41: Cenário, ensaio aberto, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, 13 de maio de 2018. Arquivo

pessoal da autora.............................................................................................................................................101

Imagem 42: Pesquisa de campo, restauração de cerca de vara a caminho da chã da serra. Sítio Barro

Branco, Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco. Arquivo pessoal da autora.......................................................102

Imagem 43: Maquiagem de Lua, ensaio aberto, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, 17 de maio de 2018.

Arquivo pessoal da autora...............................................................................................................................103

Imagem 44: Vista do amanhecer. Pesquisa de campo, errância, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú.

Dezembro 2017. Arquivo pessoal da autora...................................................................................................104

Imagem 45: Caatinga, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro 2017.............105

Imagem 46: Atrás a serra, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro de

2017.............................................................................................................................. ...................................106

Imagem 47: Corrida na caatinga, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro de

2017.............................................................................................................................. ...................................106

Imagem 48: Cata-vento, Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017........................107

Imagem 49: Cata-vento, Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017........................107

Imagem 50: Sombra do Cata-vento no chão seco. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro

de 2017.............................................................................................................................. ...............................108

Imagem 51: Tronco seco. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.......................108

Imagem 52: Assombração. Castelo Casa das Almas, Triunfo. Captura do registro audiovisual. Fevereiro de

2018............................................................................................................. ....................................................109

Imagem 53: Fogão de lenha na casa de vó. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual, dezembro de

2017................................................................................................ .................................................................109

Imagem 54: Cemitério Bizantino construído em 1808, Casa das Almas, Triunfo. Captura do Registro

audiovisual, fevereiro de 2018........................................................................................................................110

Imagem 55: Cemitério Bizantino construído em 1808, Casa das Almas, Triunfo. Captura do Registro

audiovisual, fevereiro de 2018........................................................................................................................110

Imagem 56: Sangue que escorre, Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro audiovisual. Fevereiro de

2018.................................................................................................................................................................111

Imagem 57: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro

audiovisual. Fevereiro de 2018.......................................................................................................................111

Imagem 58: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro

audiovisual. Fevereiro de 2018.......................................................................................................................112

Imagem 59: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro

audiovisual. Fevereiro de 2018.......................................................................................................................112

Imagem 60: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro

audiovisual. Fevereiro de 2018.......................................................................................................................113

Imagem 61: Lua, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Fevereiro de 2018.........................113

Imagens 62,63,64,65: Prólogo. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de

Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................116

Imagens 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75: Cacurucaia Maria. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,

sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.........................................................................119, 120

Imagem 76, 77: Narradora. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de

Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................120

Imagens 78,79,80,81,82,83,84, 85: Vaqueiro. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de

2018. Fotos de Raielle Mazzarelli...........................................................................................................121, 122

Imagens 86, 87, 88, 89: Parto. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, AC 04, julho de 2018. Fotos de

Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................123

Imagens 90, 91, 92, 83, 94, 95: Lua moça. Paviartes, Instituto de Artes, julho de 2018, Unicamp. Fotos de

Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................124

Imagem 96: Eles são quantos? Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Foto de

Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................126

Imagens 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103,104,105, 106: Lua guerreira. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,

julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.............................................................................................128

Imagens 107, 108, 109, 110: Confissão de Lua. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de

2018. Fotos de Raielle Mazzarelli............................................................................................... ...........129, 130

Imagens 111, 112: Recusa. Paviartes, Instituto de Artes da Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de

Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................131

Imagem 113: Se eu lhe pedir uma coisa, você faz? Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp. Sala AC 04. Foto

de Raielle Mazzarelli.......................................................................................................... .............................132

Imagens 114, 115: Maldição de Irene, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp. Sala AC 04, julho de 2018.

Fotos de Raielle Mazzarelli.............................................................................................................................132

Imagens 116, 117, 118, 119: Sentença, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018.

Fotos de Raielle Mazzarelli. ...........................................................................................................................133

Imagens 120, 121, 122: Enterro do vaqueiro. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de

2018. Fotos de Raielle Mazzarelli...................................................................................................................134

Imagens 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130: Lua, a pomba gira das escruzilhadas de terra. Paviartes,

Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli ..................................135

Imagem 131: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC

04, julho de 2018. Foto de Raielle Mazzarelli.................................................................................................136

SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO (ou como tudo começou) .................................................18

CAPÍTULO 1: DO PONTO DE VISTA DA ARTISTA ............................30

1.1 Sobre o fazer, a Filosofia do Guarnecer ................................................30

1.2 O mito do corpo-seco: a seca como metáfora na poética da cena ......43

CAPÍTULO 2: LUA CAMBARÁ ...............................................................52

2.1 Lua Cambará, a lua como símbolo cósmico do feminino .....................52

2.2 Uma mestiça de gênio ruim e raça de branco, Lua Cambará uma

revolucionária politicamente incorreta ........................................................58

CAPÍTULO 3: DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..............65

3.1 Procedimentos metodológicos ...............................................................65

3.2 Sobre fazer à mão, artifício e artesania .................................................83

3.3 Condensação de experiências: Teaser de As nove luas de Lua Cambará.

...................................................................................................................105

CAPÍTULO 4: DA ESCRITURA CÊNICA .............................................115

4.1 Da escritura cênica: foto-grafia, um fotograma poético ......................115

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................143

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................142

ANEXOS ...................................................................................................146

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INTRODUÇÃO (ou como tudo começou)

Nesta pesquisa, proponho uma trajetória que parte da literatura em direção à

criação cênica. A cultura popular aparece como intermediária entre esses dois pontos, uma

vez que o conto disparador para a criação cênica, surge da tradição oral, a qual expressa-se

de diversas maneiras na cultura popular nordestina, desde a contação de causos, o repente,

ou mesmo as vivências com mestres e mestras no contexto religioso e/ou festivo. O conto

evoca um sertão remoto, fadado a acontecimentos funestos, no qual as forças que regem o

destino vêm acompanhadas de maldições ancestrais, onde seres em trânsito entre mundos

aparecem para confundir e atormentar os vivos.

A riqueza de imagens desafia o trabalho de atriz, pois além de buscar

qualidades de presença distintas, em fluxo, necessitava recorrer à criação de metáforas na

cena que buscassem acordar no imaginário do espectador um sertão mítico de forma

palpável. Sem a pretensão de esgotar o conto, nem tampouco reproduzi-lo letra por letra,

persisti nesse trabalho em que enfrentei momentos caóticos e vazios criativos, até encontrar

um fio, pelo qual pudesse seguir. Da imersão em loco, surge a provocação do corpo como

tela, poroso, que deixa transparecer as materialidades que contêm, deste corpo mesmo que

carrega o sertão onde quer que vá.

No primeiro capítulo, apresento ao leitor a Filosofia do Guarnecer, conceito

misto que fui desenvolvendo ao longo do trajeto para traduzir em palavras um modo de

criação específico, que despontou neste trabalho, a partir do termo Guarnecer da

brincadeira do Boi do Maranhão, relacionado à Filosofia do Teatro de Jorge Dubatti.

Percebo as características do acontecimento excepcional enumeradas pelo referido autor,

não só nas práticas teatrais, mas também nas performances culturais, práticas e saberes da

cultura popular que tive oportunidade de vivenciar em que identifiquei, nessas ocasiões, a

geração de communitas criada pelo contexto em que se dá o convívio, a transmissão e a

resistência desses movimentos.

Procurei desenvolver como o guarnecer orienta uma postura diante das

manifestações populares, transformando-se no fazer teatral na medida em que as memórias

corporais, guarnecidas em situações de convívio, têm dado vida a essa personagem nas

suas qualidades de presença. Para isso, dialogo com o pensamento de Jorge Dubatti acerca

da Filosofia do Teatro em relação a outros pensadores, para traçar uma linha de raciocínio, a

partir da minha experiência com a cultura popular, acerca da situação de liminaridade que

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acredito decorrer da excepcionalidade comum ao teatro e à cultura popular. Nesses

encontros, vou guarnecendo, corpo, memória, imaginário e raízes que ao retornar à sala de

ensaio, busco recuperar as experiências vividas, através dos sentidos, como aquecimento

para o trabalho, com o trabalho e no trabalho.

A partir do contato dos sentidos com o campo de pesquisa que realizei no

Sertão pernambucano, vivenciando técnicas de comer, sentar, dormir, de estar no tempo,

diferenciadas daquelas a que normalmente nos habituamos nas cidades grandes, expando a

minha percepção corporal para um sentido de corpo como tela, um corpo poroso, que deixa

entrever as materialidades que contém retidas na memória e transformadas em metáforas

na cena, por meio das ações, dos objetos, figurinos. Esse corpo como tela visa a

experienciar a seca, com o mais profundo da observação ativa, afetiva, proximal com o

campo, a fim de entender o que vem a ser encarnar o mito do corpo-seco que dá origem ao

conto.

No segundo capítulo, adentro duas camadas apontadas no conto, primeiramente

um aspecto mítico que me fez criar aproximações com imagens arquetípicas de um

feminino ancestral, cujo elemento de representação primordial é o elemento cósmico da

lua. Na trajetória da personagem, observo “fases” as quais relaciono às imagens

arquetípicas que acessei por meio das vivências em terreiros desde 2010 e das transcrições

dos mitos das Yabás Oxum, Yansã, Nanã. Percebo que o conto possibilita essa relação

quando identifico na personagem fases luminosas, sombrias e intermediárias, num

continum ciclo de impermanência e fluxo.

Outro aspecto é aquele que emerge do contexto em que o autor localiza a

personagem, o qual tomado como meio de investigar as relações sociais estabelecidas na

época proposta, principalmente a recepção da sociedade escravocrata nordestina em fins do

século XIX à figura da mulher livre, mestiça, herdeira, exercer funções de comando. Ao

que, o contexto ficcional em relação ao contexto da época, faz depreender que a

personagem seria uma revolucionária, feminista, politicamente incorreta. Daí, talvez

advém a condenação a que Lua é submetida, colocada na boca de Irene, personagem que

caracteriza o modelo de feminino tido como ideal dentro desse contexto.

No terceiro capítulo, faço uma reflexão sobre a conduta ética que adotei em

relação à cultura popular na minha metodologia de criação, através da Filosofia do

Guarnecer, em que proponho uma metodologia de trabalho, inspirada nos encontros com a

cultura popular, esta compreendida enquanto celeiro criativo que sustenta pontes entre

20

aquele que faz e o público, através dos afetos nas feiras, praças, sítios, trajetos e andanças.

A partir de exercícios iniciais, em que fui acerando a personagem pelas margens até

encontrar um fio condutor, o leitor poderá ter acesso a parte do registro desse processo

criativo, no compartilhamento das foto-grafias, compreendidas aqui como uma forma

sensível de escrita que perdura no tempo mais do que simplesmente um recorte da

experiência.

Refletindo sobre os exercícios realizados, identifico que durante esse trajeto, a

experimentação criativa e a apresentação de tais exercícios foram constantes, durante o

processo criativo, configurando uma metodologia em que o compartilhamento do resultado

estético se dá no próprio processo de construção, ao invés de optar por somente realizá-lo

ao final. Por meio do compartilhamento, mesmo as experimentações incipientes,

apontaram pistas no seu fazer daquilo que viria a ser o exercício cênico As nove luas de

Lua Cambará.

Compartilho então, pistas a partir de três exercícios iniciais, Laboratório,

Oficina e Passeio, os quais culminaram na experimentação audiovisual Sangangá e na

escrita da dramaturgia cênica, com base na escolha de trechos do conto, em que a

perspectiva autoral busca traçar uma trajetória cíclica da personagem. Ao escrever sobre o

processo de construção da personagem, lanço-me nesse abismo que é a escrita, numa

produção textual sensível sobre a experimentação. Privilegio um polo de inteligência

encarnado, em que pretendo situar a escrita de modo a evitar a separação entre sujeito e

objeto, atentando para aquilo que emerge e enquanto conhecimento das experimentações,

nas quais a personagem desenha um trajeto que permite o encontro entre sujeito e campo

de pesquisa no seu fazer.

Como resultado das experimentações criativas em campo, além do exercício

cênico, obtenho um vídeo-arte. Rita Cássia juntamente e Rodolfo Ventura foram

cocriadores desse material, que se integrou à cena, em que as texturas e materialidades do

campo transbordam e são oferecidas às retinas do público, como portal para essa passagem

sensorial ao sertão das minhas andanças.

No quarto capítulo, trago ao conhecimento do leitor o resultado cênico

intitulado As nove luas de Lua Cambará, em que escrevo com as foto-grafias o registro da

experiência cênica, aliado à escrita dramatúrgica inspirada no conto de Ronaldo Correia

Brito, traço uma trajetória autoral de pesquisa e criação em personagem, que resulta em um

trabalho poético e estético.

21

O processo de construção da personagem Lua Cambará trouxe um

levantamento de questões sobre a representação do feminino. Na construção desse aspecto,

procuro explorar qualidades de energia e presença, através das matrizes da cultura popular

brasileira, de modo a tentar dialogar com elas na relação com um sertão mitológico e

arquetípico. A maneira como fui me acercando de tais matrizes, fricciona o eu da atriz com

a alteridade da personagem em um processo que se deu no cumprimento de um ciclo.

Já dispus a organização da dissertação, apresentei o menu, por assim dizer,

mas o leitor pode estar se perguntando como tudo isso começou afinal, de onde surgiu o

interesse em trabalhar com um texto literário, ao invés de optar por um texto teatral. A

seguir trago o relato para que se possa acompanhar em que nível se deu essa fricção entre

as histórias de vida da atriz e da personagem, como se cruzaram na criação, peço licença

pois terei de voltar um pouco no tempo.

Em 1999, eu e minha família nos mudamos da cidade de Iguaracy, para a zona

rural no Sítio Barro Branco, no Sertão pernambucano. Construímos nossa casa ao lado de

um terreno onde havia ruínas, alguns tijolos de barro e talvez o que poderia ter sido o chão

de uma casa.

Em 2009, estava terminando a faculdade de letras, algo despontou ali quando

cursei as últimas matérias de Literatura Brasileira, com Dona Maria José. Foi o meu

primeiro contato com o conto Lua Cambará. Impactou-me, desde então, a assombração

que passa a vagar. As imagens deste conto começaram a povoar meu imaginário a partir

desse momento, como se estivessem à espreita.

Em 2012, lembrei-me do conto, veio a vontade de trabalhar com ele, mas logo

abandonei essa ideia. Estava frequentando um círculo de Constelação Familiar, em João

Pessoa, quando, certo dia, entre o sono e a vigília, fui acordada por uma voz incisiva que

me disse que Madrinha Rosa precisava que eu fizesse isso. Eu nunca tinha ouvido falar

nessa parenta, entrei em contato com minha mãe, minhas tias, minha vó, juntei as partes

daqui e dali. Madrinha Rosa foi uma bisavó materna que tinha sido esquecida pela família.

Após sua morte, suas coisas foram queimadas, sua casa destruída, nenhuma vela foi acesa,

nem de sete dias, nem de 30 dias, nunca mais se falou nela. O grande erro que ela cometeu

foi romper com o ideal estabelecido para o feminino, da pureza, virgindade e do temor aos

homens: engravidou antes do casamento, a família Cipriano tinha posses, o pai e o irmão

chegaram a lhe ameaçar de morte para que ela abortasse e dissesse de quem era a criança.

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Ela não contou, foi destituída da herança. A filha viveu até os treze anos de idade, quando

um dia foi com a mãe lavar roupa no açude, pisou num ferro, contraiu tétano e morreu. O

desgosto a consumiu, adquiriu um câncer de útero.

Naquela época, no sertão, as pessoas pensavam que o câncer fosse um tipo de

lepra, os parentes passaram a jogá-la de uma casa para outra, sem querer cuidar de suas

feridas, com medo de que fosse contagioso. Meu avô materno, Brás Macena, tratava das

feridas como se fosse qualquer novilha, cabra, ou semelhante, jogava pinho sol na entrada

da sua vagina, para tirar as larvas que lhe roíam o ventre. A casa de Madrinha Rosa foi

derrubada e todos os seus pertences, inclusive os retratos, após sua morte, foram

queimados. Quando cavouquei essa história, descobri que as ruínas na roça ao lado, na casa

do Sítio, eram a antiga casa dela.

Cogitei a possibilidade de trabalhar com as imagens arquetípicas do feminino

que o conto evoca, quem sabe, emprestar o nome de Lua Cambará, para falar de coisas que

há muito tempo não se falava. No primeiro momento, não tive coragem de me afundar

nesse pântano, tive receio de depois não saber lidar como o que transbordaria. A história de

Marinha Rosa, a de Lua e a minha.

Em 2013, passei por uma violência sexual, foi um período de trevas na minha

vida que coincidiu com o término do curso de bacharelado em teatro na Universidade

Federal da Paraíba. Foi quando senti na carne a maldição de ser mulher. Todas as questões

relacionadas, a útero, feminino, masculino, contato físico, maternidade, sangue, foram

motivo de muita revolta em meu ser, eu afundei dentro de mim e quase não quis mais

viver.

A dança popular me trouxe de volta à vida, desde então, ela sempre me ajuda a

fazer o caminho de retorno. Fiz como pesquisa de TCC uma investigação sobre o corpo do

deprimido e como as danças populares brasileiras podiam fazer um aterramento,

conectando o indivíduo de volta ao presente, abrindo e expandindo o corpo ao contato

consigo, com o outro, com o espaço. É claro que diversos fatores me atravessavam nessa

pesquisa, eu mesma era cobaia dessa investigação, juntamente com outras pessoas que já

haviam passado por algum episódio de depressão. Comecei a perceber nas danças do Coco,

Afoxé e Ciranda qualidades energéticas para além do passo, para além da forma.

Em 2015, prestei mestrado pela primeira vez na Universidade Federal da

Bahia, tornei a prestar o exame na Universidade Estadual de Campinas em 2016, quando

fui aprovada com aluna efetiva, mas em 2015 mesmo, tomei coragem! Respirei fundo... e

23

comecei a acerar essa história. Quando digo, acerar, é no sentido de ir pelas bordas,

lentamente em direção ao centro. Como quando a gente entra em água desconhecida, pé

ante pé, testando a fundura da água e a firmeza do chão.

Pois bem, foi assim que comecei acerando. Fiz disciplinas como aluna especial,

nas quais, pela primeira vez, propus uma prática a partir do conto referido. E a pergunta

dentro de mim ecoava: quando era que eu iria ter coragem de sair da margem, do papel de

observadora, para intérprete? Depois de observar, nessa ocasião e numa oficina em que eu

repeti o mesmo exercício, uma força despontou em mim e aí de fato começaram os

trabalhos. Pela primeira vez, comecei um trabalho não pelo corpo, não pelo treinamento,

não pelo texto, mas por canções. Canções de invocação da lua no Santo Daime, que eu

cantei muitas vezes.

Até que comecei a sonhar com a personagem, alguns sonhos eram cenas

prontas, com figurino, texto, iluminação, cenário... Como se eu visse um filme diante de

meus olhos, como se a personagem me dissesse o que queria que fosse feito, como se fosse

coisa viva a direcionar a mim no trabalho e não o contrário, não era eu, a pessoa da atriz a

criar uma personagem, mas uma outra alteridade me dizendo o que queria de mim.

Nesse processo, a criação se deu primeiro num plano do imaginário, para ir

tomando lugar e forma no corpo e aconteceu também de forma concomitante à criação. Ao

olhar para trás, do ponto onde estou, percebo que subestimei esses materiais, por não

encontrar formas de escrever sobre eles e “validar” esse procedimento, que agora entendo

que tem a ver com uma disponibilidade, porosidade e entrega muito grande ao processo

que se iniciava.

Primeiro, sonhei com minha orientadora fazendo pesquisa de campo, em

bordéis. Indo a campo nesse mundo dos sonhos, visitei bordéis de movimento fraco,

conversei com prostitutas velhas de profissão, que me falavam de suas expectativas e

frustrações, contavam-se sobre suas paixões, angústias, sobre como era ruim, beber

sozinhas, encarar ao fim das festas, os copos e as camas vazias, faziam da solidão uma

companheira cotidiana em meio ao vazio, dos corpos. Ainda no sonho, eu encontrava a

orientadora, conversávamos sobre as observações de campo, retornávamos para a sala de

ensaio, levadas por um vento que fazia nossos corpos caminharem em espirais no tempo-

espaço, como se tivéssemos passado por um portal.

Como indicação, a partir dessa “pesquisa de campo”, eu recebia um programa

em que deveria ir vestida de noiva a uma rodoviária ou estação de metrô, para confundir os

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passantes com o texto seguinte: “Oi, você me ajuda a completar minha passagem? É que meu noivo, tá

me esperando hoje para a gente casar, você sabe como eu faço pra chegar em Brasília? Meu noivo, mora lá,

eu tenho que chegar pro casório que acontece agora às 19h, será que esse dinheiro dá pra eu chegar lá?”

A indicação de figurino era um vestido de noiva, sujo de lama vermelha,

rasgado, velho, amarrotado, cheio de galhos, folhas e penas enganchados na roupa e nos

cabelos. (Dou-me conta de que este figurino se materializou depois na cena, o leitor poderá

conferir mais adiante nas foto-grafias que servem de registro ao exercício cênico).

Outro sonho foi com o cenário, tratava-se de uma estrutura que imitava os

galhos secos e retorcidos da caatinga, parafusados de forma que eu pudesse subir neles e

no centro havia um espaço oco na estrutura. No chão, tinha o desenho de uma mandala

sustentando como centro a lua cheia e no entorno diversas fases da lua, nos seus

intermediários crescentes e minguantes e a lua nova. Ao início de cada apresentação, era

sorteada uma lua, a encenação começava daquele ponto.

Neste sonho, entrava em cena a assombração, com um longo kimono de seda

que lhe cobria as mãos e os pés, no rosto, uma máscara grande, as luzes apagavam. Havia

uma troca de figurino, quando as luzes acendiam novamente, esta corria e descia escadas

de uma arquibancada vazia, dizendo o texto da encomenda da morte de Irene, passava

entre o público dizendo-o e correndo entre os espaços da arquibancada. Novamente,

escuro, depois um foco de luz ao centro da cena, as pessoas assistiam do alto.

A personagem se despia, as roupas ficavam penduradas num biombo de

madeira, por onde um feixe de luz passava através do trançado. Ervas cheirosas eram

cozidas e incensavam o ambiente, enquanto me banhava numa bacia, tocava a região

íntima, enfiava os dedos no canal vaginal, tirava de lá uma coloração vermelha semelhante

ao sangue, com a qual me lambuzava e aos poucos lambuzava também algumas pessoas da

plateia, dizendo o texto referente à recusa do amor de Lua por João Índio. Novamente

escuro, quando a luz tornava a acender, eu aparecia entre as estruturas de galhos trançados,

entrando e saindo do oco, subindo, descendo, ficando de cabeça para baixo, enquanto dizia

o texto do delírio de morte.

Ao acordar desse sonho, comecei a “discutir” com a personagem. Indispus-me

a realizar na cena esse sonho, perguntei-lhe o que ela queria dizer com isso, achava

totalmente desnecessário uma cena de masturbação feminina que simulasse a menstruação.

A resposta que surgiu foi num tom de deboche “Ah é, você quer me dizer então que a

masturbação feminina é assunto ultrapassado, superado, me diz por que o clítoris não está

25

nos livros de biologia do ensino fundamental e médio? Por que não há um estudo

aprofundado sobre essa anatomia? Quer dizer que menstruação também é assunto batido e

superado? Então por que você não sai na rua sangrando? Por que tem que dissimular seu

sangue todo mês? Se é tão natural, por que ainda espanta, uma mulher sangrar? O sangue é

por acaso sujo? Como se Lua fosse coisa viva que exige de mim um mergulho profundo

nos tabus relacionados ao feminino, eu vou tateando entre as sombras, tentando ver até

onde tem pé, nessas águas escuras e desconhecidas, nesse rio pantanoso do inconsciente

que vem à tona através do trabalho.

No começo dos laboratórios individuais, senti-me divagando, era um vagar sem

fim, divagar de não saber por onde começar, como seguir, aonde iria chegar, uma angústia

criativa terrível. E de-vagar, de sentir uma progressão tão lenta, impossível, a vontade de

desistir, o vazio, o sentimento de passar horas sem chegar a lugar nenhum e de, às vezes,

encontrar um cisco que se resumia a uma marca que mal preenchia dois segundos de

verdade. Trabalhar sozinha era mais difícil do que eu imaginava. Era aterrador, eu sofria

quando chegava à sala de ensaio. Precisava criar estratégias. Um “círculo de atenção” que

evitasse minha dispersão.

Intercalava alguns exercícios, mas não encontrava uma linha pela qual pudesse

seguir, um ponto em que me apoiar. Foi aí que chamei pessoas para conduzir alguns

laboratórios de criação, dentre elas, a que mais permaneceu guiando alguns laboratórios foi

o Professor Elias de Lima Lopes (UFPB) que estava realizando o doutorado em Coimbra e

veio de passagem por Campinas para realizar coleta de dados para sua pesquisa.

Trabalhamos de agosto a outubro de 2017, em espaços desafiadores, lidando com diversas

variáveis, inicialmente, sem pretensões de chegar à personagem, investigando modos de

andar, trajetórias no espaço, dinâmicas nos planos, exercícios com objetos.

O contato dos pés com materiais variados e principalmente com a terra se

mostrou essencial para o trabalho. Após esses primeiros laboratórios, decidi retornar ao

Sertão, ao meu Sertão, já conhecido em minhas andanças, mas agora com outra perspectiva

de olhar. Fazia dois anos que eu não retornava à terrinha, mas me deu a sensação de que

pareciam dez anos. Perguntava-me: “onde eu estive todo esse tempo?” A sensação que

vivenciei foi de ser estrangeira, de ser de fora, de ter ficado excluída por um tempo.

Meu quarto já não era mais o mesmo, não encontrei no armário, roupas, nem

mesmo a cama, nenhum sentido de propriedade. Apenas o espaço e uma rede, um armário

cheio de coisas que não eram minhas. Minha mãe me trouxe uma trouxa, com os pertences,

26

estavam em seu armário, guardadas como um relicário, empoeiradas do tempo, como se a

minha presença, mesmo no espaço, fosse algo que estivesse esquecido há tempos. Senti-me

como uma sombra no espaço que pouco a pouco vai reabitando e deixando forma e

contorno, quase como se eu já tivesse morrido e viesse fazer uma visita aos vivos.

E os vivos, eram elas, as mulheres da família, eu não, eu era uma sombra, que

vinha mais uma vez nutrir-me dessa seiva, alimentar-me dessa matéria, para retornar à

cidade grande, à vida corrida que eu levava, que me afastava de mim, da minha gente, da

própria sensação de existir. Foi um susto, um baque.

Passei a dormir na rede, durante um mês e meio. A comer o que tivesse, sem

luxo, sem excesso. Comi o que vem da terra, raízes e grãos em sua maioria. Nesse tempo,

refleti sobre os hábitos alimentares sertanejos, ao meu ver, são bem indígenas. Por

exemplo, a base da alimentação, na minha casa, no Sertão, é o milho com ele se faz o

cuscuz, o xerém, a canjica, a pamonha, o bolo, o mingau, a mandioca, que se come cozida,

assada, como farinha, faz-se também o pirão, engrossa-se o caldo do feijão.. Num sentido

metafórico, alimentar-me do que vinha da terra, do básico, fez-me sentir afundar no chão,

na medida em que, se eu sou o que como, então eu virei raiz e grão, criei um corpo grão,

um corpo macaxeira, isso me dava a sensação de estar forte, nutrida, pesada.

Fazíamos as refeições, geralmente sentadas pelos batentes, na minha família,

quase não usamos mesa, só mesmo para pôr as panelas em cima, ou quando é alguma data

festiva e vêm visitas, aí sentamos à mesa e comemos com garfo. O mais comum é minha

avó sentar-se no seu tamborete e nos sentarmos ao seu redor pelos batentes. Às vezes, ela

come com a mão, nós de colher. Então, era certo que duas vezes ao dia, pelo menos, eu

estaria de cócoras perto do chão. Quando vejo os vídeos dos ensaios, percebo que há

muitas partituras de movimento assim, no plano médio – baixo e não é que eu não pudesse

fazer tudo no plano alto, mas simplesmente porque não faz sentido, quando a vivência

física com o “campo” se deu nessa relação espacial e psicofísica.

A percepção do tempo, por exemplo, o tempo como um ente, era ensurdecedor

o silêncio que eu sentia ao meu redor. Na minha casa no Sertão, não tem internet, não pega

sinal de celular, não tem tv a cabo, todos os vizinhos ao redor já morreram, qualquer

possibilidade de escapismo e dispersão, esgotava-se. Eu tinha que forçosamente ouvir

aquele silêncio do tempo que não passava. De sentar-me no alpendre e ver as pessoas

passarem, de ver a barra no dia quebrar, uma sensação de espera constante, à espera do

tempo passar. Em alguns momentos, era uma espécie de calma, em que diante de não

27

termos outras opções, conversávamos eu e minha mãe, horas a fio. Às vezes, apenas

ficávamos uma ao lado da outra, em silêncio, por horas, em outros momentos, a minha

vontade era de gritar, de espernear, de ligar o som bem alto, mas permanecia sentada,

ouvindo o silêncio, sentindo-o me devastar por dentro numa pressa interna que não se

externalizava.

Fui em busca de afundar raízes terra adentro, de deixar o sertão entrar e habitar

por traz das retinas, das meninas dos olhos, de estar porosa a tudo, desde os sons, ou

ausência deles, as cores, cheiros, texturas, técnicas de comer, de dormir, de sentar, de estar

no mundo e na vida, aos estados, sensações, emoções que viessem, aos espaços, das casas,

das feiras, das praças, roças, descampados e caatingas. Esta parte da vivência cotidiana faz

parte da criação poética, em que mesmo nas atividades da rotina, eu estava atenta,

estudando as sensações que me percorriam, as reflexões que esta vivência ia desenhando

no meu pensamento.

Nos percursos que fiz, chamou-me a atenção o labirinto de sensações que me

atravessavam todo sábado quando eu percorria a feira, as cores, cheiros, texturas que

inspiraram a criação das materialidades que compõem a cena. Eu sentia falta de algo que

fosse diferente da roupa de ensaio, ou de qualquer coisa que eu pudesse comprar numa loja

e vestir, algo que tivesse energia vital, vivo, como tudo ao meu redor.

Depois de ouvir minhas lamentações, assim como eu, minha mãe sonhou.

Sonhou com a personagem dizendo como queria o figurino. Conforme as indicações do

sonho, minha mãe teceu. Essa maneira curiosa como ela participou desse processo criativo

despertou o questionamento se Lua não seria mesmo uma assombração, que assombrou o

autor quando escreveu, a mim, quando li, veio em sonho, assombrar minha mãe? A

parceria com minha mãe continuou, após o meu retorno para Campinas, conforme

avançava nos ensaios, sentia falta de alguma coisa, comentava com ela, que pensava,

seguia sua intuição, tecia, sem que eu visse, nem adivinhasse nada, enviava-me pelo

correio. Foi assim que chegou a perneira do vaqueiro, também a roupa da velha.

O interessante é que justamente o primeiro figurino a ser feito foi o da

assombração, o qual usei em minhas experimentações num cemitério bizantino construído

em 1808, na Casa das Almas, na cidade de Triunfo-PE, um dos lugares onde Lampião se

escondeu das volantes da polícia, devido à posição estratégica da casa que fica na divisa

entre Pernambuco e Paraíba.

28

Antes de ir à Triunfo e visitar o Museu do Cangaço e a Casa das Almas, sonhei

com uma espécie de cemitério por onde passavam muitas pessoas indo e vindo, quase

como se houvesse uma estação de trem dentro daquele lugar. Uma moça estava perdida e

me pedia informação, eu lhe dizia que não se preocupasse, pois estava no Museu das

Almas, todos ali eram velhos conhecidos, alguns já tinham tomado o trem, outros não.

Daqueles que viajaram, os retratos estavam ficando apagados, os que ainda se encontravam

ali, no entanto, tinham os retratos muito nítidos, pendurados no saguão principal do museu.

Dizia a moça que se houvesse algum parente entre eles ela poderia localizá-los nos retratos,

neles havia o número do quarto de cada um, mas ela procurava mesmo o trem, então, eu a

deixei na plataforma, ela subiu e partiu.

Eu fiquei por ali, sabia exatamente quem era quem, alguns pararam no tempo,

como se fossem estátuas vivas, tudo ao seu redor tinha parado também, como uma nuvem

que pairasse sobre eles. Esses eram sonâmbulos, não se podia acordá-los e respeitava-se o

seu sono eterno. Eu era uma espécie de zeladora nesse lugar, sentia-me em paz, mas queria

também partir no trem, eu não tinha os bilhetes, portanto não podia embarcar como

clandestina. Foi um sonho curioso, eu me lembrei com bastante nitidez da parede com os

retratos.

Quando estive em Triunfo e vi no mapa da cidade Casa das Almas senti que

precisava conhecer aquele lugar. Ao entrar no referido espaço, que era também um museu

da imigração holandesa na cidade, fui caminhando de casa a dentro, parei diante de uma

parede cheia de retratos, olhei todos aqueles rostos que me eram muito familiares, pois

pareciam os mesmos do sonho. Então, eu perguntei à dona da casa, Consuelo Timóteo,

herdeira do castelo, se poderia realizar algumas filmagens ali, expliquei do que se tratava,

ela consentiu. Quando finalizei o laboratório criativo, Consuelo me contou que nesse Sítio

houve um assassinato. A esposa havia mandado matar o marido, a alma do marido

assassinado teria perseguido seu tio na roça, dizendo que não se sentasse ali, a cerca de 200

metros de onde eu estava, pois era o local onde havia morrido. Entendi porque foi tão

importante passar por ali, lidar com essas narrativas que evocam o fantasmagórico assim

de tão perto.

A meu ver, o grande diferencial desse processo criativo passa por percepções

sutis, numa outra lógica de trabalho, o seu modo artesanal de fazer na construção, nas

relações interpessoais entre as partes envolvidas, mas de uma certa artesania muito

delicada, em que ao final de tudo, como eu posso dizer que eu criei isso sozinha? Se a

29

personagem passeou por nossas cabeças, como se estivéssemos criando em rede? Como eu

posso dizer que o sucesso desse trabalho se deve apenas ao meu empenho, sem incluir essa

rede? Desde a minha prima, que registrou as experimentações, minha mãe que sonhou e se

pôs a tecer, meu pai, que fez comigo diversos trajetos nas brenhas, nos sítios, nas

madrugadas afora?

É um trabalho solo, sim, mas tudo que eu vi, vivi, imaginei, compartilhei até

agora, transborda para além de mim, irradia e é irradiado pelos afetos, encontros, vivências

com os materiais que compõem os detalhes dessa encenação, que entraram de ouvido

adentro, de retina adentro, de pele a dentro, de sonho a dentro, e que se encontra em

constante transformação.

30

CAPÍTULO 1: DO PONTO DE VISTA DA ARTISTA

1.1 Sobre o fazer, a Filosofia do Guarnecer

Tomo emprestado do Boi do Maranhão o termo Guarnecer, relacionado a

nutrir, fortalecer, preparar para festejar. O Guarnecer da brincadeira do Boi do Maranhão

emerge como metáfora na pesquisa, a respeito do posicionamento como pesquisadora

frente às práticas com as quais estou me envolvendo nessa trajetória. A pesquisadora

Marianna Monteiro sobre o guarnecer, afirma que este:

Trata-se literalmente de acumular forças. (...) Ele relaciona-se à fogueira, onde

são aquecidos os instrumentos percussivos – os pandeirões e o tambor onça –,

em torno do qual a multidão vai se aglomerando aos poucos. (...) Em torno da

fogueira, onde está sendo aquecido o couro dos instrumentos percussivos para

afiná-los, os brincantes se confraternizam. (...) No “guarnecer”, assim como em

outros momentos dessa festa, estabelecem-se tessituras relacionais, conviviais,

indissociáveis da expressão artística, caracterizando uma “tecnologia”

sofisticadíssima a serviço de uma arte da inter-relação entre as pessoas.

(MONTEIRO, 2013, pp.142-143)

Realizo, nesta pesquisa, uma adequação do conceito de guarnecer no Boi a uma

forma subjetiva e pessoal que adoto para a minha ética de relacionamento com a cultura

popular na minha prática teatral, com o Guarnecer, proponho uma metodologia de criação

inspirada nos encontros com a cultura popular. O intercâmbio com artistas da cultura

popular e/ou interessados em praticá-la me fez aquecer memórias corporais que têm dado

vida a essa personagem, nas suas qualidades de presença.

Introduzo, para tanto, o pensamento de Jorge Dubatti acerca da Filosofia do

Teatro, a fim de traçar uma linha de raciocínio em que a excepcionalidade que percebo

comum, tanto ao teatro, quanto à cultura popular, leva-me a experimentar momentos de

liminaridade. Nessa reflexão, busco entender o que faz com que o teatro seja teatro, o que

há em comum entre este e a cultura popular e de que forma ela pode apontar para um

treinamento que se dá na vida, no desenvolvimento do olhar de atriz, pesquisadora,

brincante, na prática mesmo desse fazer.

Jorge Dubatti (2017) propõe uma Filosofia do Teatro, um estudo ontológico que

compreende o teatro como um campo que pode falar por si, requerendo para isso o

reconhecimento de sua especificidade, sem precisar se justificar através de outros ramos do

conhecimento humano. O autor parte da reflexão teórica sobre a práxis. É assim que “A

filosofia do teatro nasce da necessidade de questionar e superar as definições oferecidas

31

nos dicionários e manuais de teatrologia mais utilizados.” (P.26) Normalmente, esses

limitam o teatro à escrita dramatúrgica de um autor, espaço físico, à peça teatral, ou a

determinadas vanguardas teatrais. Nas palaras de Dubatti:

A filosofia do teatro afirma que ele é um acontecimento (...) algo que acontece e

que se dá a construção de sentido. Um acontecimento que produz entes em seu

acontecer, vinculado à cultura vigente, à presença aurática dos corpos. (...) O

teatro como acontecimento, é muito mais que o conjunto das práticas discursivas

de um sistema linguístico; ele exerce a estrutura de signos verbais e não verbais,

o texto, a cadeia de significantes aos quais é reduzido para uma suposta

compreensão semiótica. Assim nem tudo é reduzido a linguagem. (Dubatti, 2017,

p.27)

Para esse pensador, o teatro, enquanto acontecimento, requer a instauração de

uma zona de experiência composta por três subacontecimentos que interagem entre si: a

poiesis, o convívio e a expectação. Poiesis conforme a Poética de Aristóteles está

relacionada à fabricação de artefatos característicos do ramo artístico, o que abarca

inicialmente a poesia e por extensão a literatura e consequentemente a arte.

Sendo assim, o teatro como um todo, no instante mesmo em que sucede,

instaura um acontecimento poiético no qual poiesis, convívio e expectação estabelecem

uma obra autônoma, que fala por si a cada vez. Cada acontecimento é único, carecendo

dessa tríade para instaurar a experiência, em que “a materialização de uma performance

cultural implica processos sensoriais e emocionais que ocorrem para/nos seus observadores

(não existe performance sem público, ou seja, sem uma audiência que lhe assista e legitime)”

(Vianna & Teixeira, 2008, p.48). É nesse sentido que “há uma poiesis produtiva, gerada

pelo trabalho dos artistas e outra receptiva. Ambas se estimulam e se fundem no convívio

resultando em uma poiesis convivial”. (DUBATTI, 2017, p.37).

Pensar o teatro como acontecimento autopoiético não significa que a obra

artística seja instantânea, a intervenção humana, embora - idealize e execute a obra, esta,

ao final, responde por si mesma, devido à sua natureza singular. Mesmo em artistas que

tenham uma assinatura, ou construam formas similares de uma obra para outra, verifica-se

uma irrepetibilidade em decorrência das pequenas variações, principalmente quando se

trata de algo que envolve poiesis, convívio e expectação, isso é o que diferencia o teatro e

as performances culturais de outras composições artísticas como o cinema, o vídeo-arte, o

vídeo-dança, em que a geração de poiesis é anterior ao contato do público com a obra, sem

que criadores e expectadores convivam no momento de compartilhamento da obra.

Nas performances culturais, por sua vez, instala-se uma comunidade provisória

32

na qual os sujeitos se encontram em situação de convívio, dessa forma, a apreensão do

acontecimento se dá num intercâmbio de subjetividades, em que a comunicação

estabelecida entre estas vai gerar uma poiesis que é fruto do encontro, da experiência única

e intrasferível.

Na poiesis convivial, as heterogeneidades dos sujeitos, de alguma maneira,

ajudam a provisoriamente sustentar a experiência, na medida em que estas comungam em

situação de convívio. Um ponto de intersecção surge dentre a poiesis produtiva e receptiva,

em que é possível um diálogo que vai além da linguagem falada, mas é perceptível por

outras vias, uma via sensível, que dilui momentaneamente as diferenças na proporção em

que compõe um corpo coletivo, uma persona social. Assim,

(...) na experiência comunicacional, intervêm processos de interlocução e de

interação que criam, alimentam e restabelecem os laços e a sociabilidade entre os

indivíduos e grupos sociais que partilham os mesmos quadros de experiência e

identificam as mesmas ressonâncias históricas de um passo comum. (A.D.

RODRIGUES apud SANTOS, 2014, p.316)

Acerca do convívio, Dubatti chama a atenção para a possibilidade de existir

convívio sem poiesis e sem expectação, por exemplo, num jantar em família. Da mesma

forma, também pode haver teatralidade sem teatro, pois esta se faz presente no

nosso cotidiano e nos rituais de passagem na vida das sociedades. Convívio e teatralidade,

de alguma forma, estão presentes nestes rituais cotidianos enquanto episódios que

estabelecem um espaço tempo de liminaridade.

Schechner amplia o sentido da palavra límen, inicialmente um termo da

arquitetura, segundo o qual um limiar é um espaço intermediário que liga dois espaços,

como uma via de acesso, um corredor ou passagem. Nesse sentido, ao tratar das

performances culturais, tanto as rituais como estéticas, compreendendo como límen um

espaço sutil, que é expandido de forma simbólica e conceitual.

Fazendo um paralelo com o teatro, podemos entender que “um espaço de teatro

vazio é liminar, aberto a todos os tipos de possibilidades – espaço que por meio da

performance poderia tornar-se qualquer lugar”. Assim como “o terreiro de dança de uma

aldeia africana e a construção temporária de um biombo para a wayang kulit (teatro de

sombra) javanesa são ambos, espaços liminares, preparados para serem habitados por

realidades imaginadas) (SCHECHNER, 2012, p. 65).

Ileana Dieguez, concorda que a “el arte y el ritual son generados em zonas de

33

liminalidad donde rigen processos de mutación, de crisis y importantes câmbios”. (Turner

apud Dieguez, 2011, p.32) e por sua vez, invoca a palavra teatralidade, não como sinônimo

de teatro, mas – “noción que busca expressar la configuración escénica de imaginários

sociales, la resignificación de prácticas representacionales em el espacio cotidiano”

(DIEGUEZ, 2011, p.58).

Victor Turner (Turner, 2012), ao estudar situações limítrofes nas quais

acontece a instauração de uma communitas, em que é possível uma cumplicidade coletiva,

ou seja, uma relação sem mediação entre os sujeitos, que por se colocarem

espontaneamente em igualdade é que aparecem mais ainda as distinções individuais, acaba

dando pistas sobre os espaços onde hoje, em nossa sociedade, é possível ainda vivenciar

algum sentimento de pertencimento a uma comunidade, mesmo que temporário.

Nas sociedades contemporâneas, os indivíduos podem vivenciar estados

temporários de comunnitas no lazer, mas também por meio da arte. Richard Schechner

distingue a arte de um modo interessante, para ele “não existe arte onde tudo é

geneticamente determinado, onde não há aprendizagem, onde nenhuma improvisação é

possível, onde o erro e/ou vacilo não pode (m) ocorrer”. (SCHECHNER, 2012, p.58).

É curioso observar que existem práticas humanas que não estão fixas nessas

categorias, mas de certa forma permeiam as fronteiras entre a arte e a religiosidade no

campo da cultura e que, por vezes, fazem parte do calendário de algumas comunidades no

Brasil. Mesmo os limites entre as artes vêm se diluindo de forma que as contaminações dos

gêneros artísticos criam obras híbridas, situadas no espaço do entre, nesse sentido, trata-se

do “reconhecimento da teatralidade como um campo expandido” (DIEGUEZ, 2014, p.128)

que interfere na produção artística a tal ponto que “tornou-se uma das características mais

relevantes da arte contemporânea” (DIEGUEZ, 2014, p.128).

A implicação disso é que a teatralidade, como campo expandido, permite-nos

reconhecer a teatralidade fora do contexto específico da cena, mas no comportamento

humano cotidiano, nos ajuntamentos de gente, nas festividades populares, nos comícios e

protestos, que, muitas vezes, criam “communitas metafóricas en las que participan

decisivamente el linguaje poético y la dimension simbólica” (DIEGUEZ, 2011, p.34),

dessa forma, as fissuras donde emerge a arte contemporânea se espraiam nos territórios de

domínio público.

34

Illeana, ao observar a liminaridade, tanto em práticas cênicas, quanto nas

representações sociais, vincula esta a estados poéticos e metafóricos, na medida em que

cria communitas, chama a atenção para aspectos sociais. Communitas, conforme

empregado por Victor Turner, (em que as hierarquias são suspensas e constituem-se relações

mais intuitivas, espontâneas e de igualdade), tornando-se um espaço de convívio, onde a

experiência se dá de maneira direta e não intermediada.

Algo peculiar de se observar, nesse sentido, abrange a conjuntura da cultura

popular brasileira, em que a communitas, gerada pelo encontro, acarreta em experiência no

espaço de tempo em que duram as rodas, os festejos, os cortejos, as rezas. A incrível

persistência da cultura popular em existir, durar, numa sociedade de consumo rápido como

a nossa, é uma militância silenciosa, que diante do esvaziamento de sentido da

contemporaneidade e com a globalização atingindo os interiores mais remotos do Brasil,

encontra espaço e cai no gosto das massas. Assim:

(...) a cultura popular deixa de estar acantonada numa geografia restritiva e

encontra um palco multitudinário, graças às grandes arenas, como os enormes

estádios e as vastas casas de espetáculo e de diversão graças aos efeitos

ubiquitários trazidos por uma aparelhagem tecnotrônica multiplicadora. Sob

certos aspectos, a cultura popular assume uma revanche sobre a cultura de

massas, constitucionalmente destinada a sufocá-la. (SANTOS, 2014, p.320)

Uma questão importante é que os shows de cultura popular, para que possam

agradar às massas, às vezes, exigem um tratamento outro, as manifestações passam por

uma edição a fim de que possam ser apresentadas nos palcos dos estádios e afins.

Exemplos dessa edição são as quadrilhas juninas, em Campina Grande, na Paraíba, e o Boi

Caprichoso e Garantido, em Parintins, no Amazonas, ambos vêm se estilizando a cada ano,

tomando trejeitos de escola de samba. A criação de quadrilódromos, bumbódromos e afins

requer das manifestações um trato mais “espetacular” para serem apresentadas para grandes

multidões, o que leva os fazedores a se empenharem, a cada ano, na confecção de

figurinos e adereços cada vez mais chamativos, assim como no desenvolvimento de

narrativas mais envolventes.

Mesmo ao lidar com matrizes que reivindicam sua permanência como

resistência à globalização e que buscam se diferenciar, na tentativa de escapar do

consumismo cultural, não nos esqueçamos de que as ações de uma comunidade acabam

tendo projeções que se espraiam para além dos limites geográficos. Não se pode isolar uma

manifestação do seu contexto, pretendendo enxergá-la estática no tempo e espaço. As

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performances culturais são moventes e se reinventam, conforme se dá a transmissão entre

seus fazedores, uma vez que elas se reciclam devido à impermanência mesma dos seres

humanos que a geraram. Na medida em que as gerações anteriores vão morrendo, cabe às

vindouras a continuidade, mesmo que se preze por uma fidelidade, haverá, em alguma

instância, uma brecha de inventividade, como consequência, a cultura dura mais do que os

corpos que a praticam.

Como artista, vejo na cultura popular um celeiro criativo muito rico, no qual

venho embarcando mais profissionalmente desde 2009, quando comecei a participar de

grupos parafolclóricos, onde busco exercitar a prática de treinamento de presença e relação

com o público. Cito aqui um exemplo de intercâmbio com a cultura popular, em que atuo

como participante desde 2015, trata-se das Caixeiras das nascentes, grupo de percussão

formado por mulheres. Tal conjunto têm a música como forma de partilha e celebração.

Fundado em 2009 em Campinas/SP, a partir do encontro da artista, arte- educadora e artesã

de Caixa do Divino, Cristina Bueno, com pessoas que tinham o interesse em pesquisar a

cultura brasileira e a Caixa do Divino.

Este grupo busca fazer uma releitura das manifestações populares, através da

memória das integrantes, da prática, aperfeiçoamento e difusão da arte das Caixas do

Divino, tambor pequeno, originário da Festa do Divino do Maranhão. As principais fontes de

pesquisa e inspiração do grupo, são as Caixeiras do Maranhão, as Congadas de Minas e

São Paulo, não só no sentido musical, como também na missão de cantar e tocar para

saudar as festas, as casas, as pessoas, os alimentos e os santos.

A prática de ações da religiosidade e brincadeiras populares acontece no

formato de curso, em que as pessoas interessadas realizam sob a orientação de Cristina

Bueno visando ao aprendizado de toques, cantos e danças do repertório sagrado e profano

de manifestações populares, tais como os cantos de celebração da Festa do Divino Espírito

Santo e a brincadeira do Carimbó das Caixeiras. A dinâmica do grupo varia entre prática

interna e apresentações públicas, sempre com o intuito de partilhar e divulgar saberes

relativos à cultura popular de raízes brasileira: seus cantos, ritmos, danças e brincadeiras de

prazer e entretenimento.

Considero a minha atuação nas Caixeiras das nascentes como parte do

processo criativo, sendo fundamental para o meu guarnecer de atriz. Tal grupo tem sido

uma ponte no meu trabalho para me aproximar de agremiações de cultura popular que se

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reúnem em ocasiões específicas no calendário. Como a Festa do Divino Espírito Santo, em

São Luís do Paraitinga, em que diversos conjuntos de Congada, Moçambique e Vilão se

apresentam e homenageiam o Espírito Santo em cortejos pela cidade. Apresentando-me

como Caixeira, nessas ocasiões, sinto partilhar de um universo simbólico que aquece

memórias, guarnecendo o corpo de estados que surgem através dessas festas e celebrações.

Eloísa Domenici (2009) no seu artigo A pesquisa das danças populares

brasileiras: questões epistemológicas para as artes cênicas, aponta para uma necessidade

de se pensar a produção artística brasileira não mais nos moldes canônicos eurocêntricos,

mas atentando ao léxico próprio das danças populares brasileiras, que tem mais a ver com

estados tônicos do corpo, do que com a noção de coreografia. Nas danças brasileiras, as

dinâmicas corporais são regidas por metáforas: “O aprendizado dos movimentos não está

dissociado das metáforas associadas e se dá simultaneamente, ou seja, a significação e a

técnica emergem no corpo de maneira concomitante e não-dissociada” (DOMENICI, 2009,

p.5). Nesse sentido, acho primordial criar epistemologias próprias para lidar com esse

campo tão extenso e complexo que é a cultura popular, inicio daquilo que me afeta no

modo como se dá a transmissão, o aprendizado e a prática do seu fazer.

Percebo com a experiência nas Caixeiras das Nascentes, a criação de um

público específico, isso me interessa do ponto de vista de artista e admiradora da cultura

popular para pensar inclusive o meu próprio fazer artístico, em que a atuação do grupo nem

se destina a grandes shows de reprodução da cultura popular, nem tampouco se define

como grupo de raiz, mas talvez um espaço entre, um límen, em que se exercita a memória

de encontros com mestres e mestras.

Posso apreender que emergem no fazer artístico das Caixeiras das Nascentes,

práticas mestiças, pois “como a modernização e a democratização abarcam uma pequena

minoria, é possível formar mercados simbólicos em que podem crescer campos culturais

autônomos” (GARCIA CANCLINI, 2006, p.68). Em minha perspectiva, o grupo constrói,

no campo da cultura, uma fenda que demarca um mercado simbólico, por assim dizer

autônomo, trata-se de uma situação bem específica, em que o grupo, apesar da influência na

cultura popular, reinventa-se, misturando tradições com liberdade criativa, criando suas

próprias tradições.

Para a reflexão que venho traçando, faz-se importante levar em consideração o

conceito de performance no contexto das manifestações populares:

37

Em sendo um conceito elástico, ele se refere a um sentido relativo ao

acontecimento, ao ato deliberado de vivenciar e comunicar, ao aqui e agora das

ações humanas, com toda sua carga expressiva e singular de identidades, o que é,

em última instância, o lócus por excelência dessas políticas: o acontecimento do

fato cultural. (VIANNA & TEIXEIRA, 2008, p.42)

Ao relacionar o conceito de performance com acontecimento e este com o fato

cultural, Vianna e Teixeira apontam aproximações em relação ao pensamento que pretendo

desenvolver aqui, no que diz respeito ao ponto de vista sobre a cultura popular em que há

convívio, o qual pode gerar situações de liminaridade e communitas, enquanto instaura um

tempo espaço outro, diferente do cotidiano, muitas vezes, na fronteira entre sagrado e

profano. A importância das manifestações populares, como performances culturais, a meu

ver, é devido ao seu caráter efêmero, o que torna difícil apreender a sua dimensão

imaterial, principalmente porque as tradições, assim como a cultura, são reinventadas no

ato da transmissão e talvez por isso o seu aspecto de originalidade e autenticidade, pois se

trata de um campo simbólico que tem estreita relação com o presente, cuja importância está

no ato de fazer, conforme coloca Vianna e Teixeira:

Um campo de possibilidades simbólicas de uma cultura, circunscrita

socialmente, a qual é também dinâmica e se transforma. Assim, cabe retornar ao

conceito benjaminiano de autenticidade, relacionado ao que acontece aqui e

agora, algo fugaz, intangível e irreproduzível, que só existe em ações humanas,

ou seja, se seres humanos performarem fatos culturais. (VIANNA &

TEIXEIRA,2008, p.48).

Quando Jorge Dubatti enumera as características de um acontecimento

excepcional, “o excepcional como algo prodigioso, que se destaca do mais comum e batido

e oferece uma experiência portentosa e transformadora” (DUBATTI, 2017, p.161), embora

tal autor se refira ao teatro como acontecimento, ao que o torna realmente marcante,

memorável, percebo que vivenciei evivencio até hoje tais sentimentos, quando estou

protagonizando, junto a um grupo de pessoas, as ações da cultura popular, em roda, ou

quando observando e sendo inebriada pela experiência.

Na perspectiva da minha experiência com as manifestações populares, acredito

que elas criam linguagens poéticas e simbólicas as quais me dão a impressão daquilo que

Dubatti enumera como qualidades da excepcionalidade do acontecimento, desse modo, a

minha experiência artística é atravessada pela cultura popular, cultura estética que nutre

meu imaginário e que constitui a origem do meu encontro com a “excepcionalidade” do

acontecimento artístico.

Por exemplo, uma das primeiras lembranças de infância, precisamente aos

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cinco anos de idade e de que ainda trago vivas as sensações físicas desse encontro, foi

assistindo ao Bumba meu Boi em Pernambuco. Lembro-me bem do Jaraguá: a queixada de

um jumento batendo o maxilar, coberto com um pano de chita, por baixo, alguém conduzia

segurando um cabo de vassoura, do qual puxava um fio que fazia a queixada bater uma

contra a outra. Foi a primeira assombração verdadeira para o imaginário infantil.

As procissões de São Sebastião também ficaram vivas na memória. Era um

show de horror, o santo em tamanho real, amarrado em um tronco de árvore, em volta dele,

vários fogos de artificio que soltavam fogo, acompanhado de ladainhas, enquanto tiravam

as flechas do corpo do santo. Tenho poucas lembranças tão vivas, essas, as únicas que

ficaram da primeira infância, foram suficientes para me impressionar até hoje. Uma vez

que na cidade de interior o acesso à produção artística se dava principalmente pela

religiosidade e brincadeiras do circuito junino e carnavalesco, participei ativamente desses

ciclos e neles experienciei momentos de excepcionalidade que se repetiriam em outros

encontros.

Essa percepção se anuncia tanto durante a experiência na forma como guardei

na memória o que foi vivido pelos sentidos, quanto no sentimento de communitas. Dentre

as 17 características do acontecimento excepcional, mencionadas por Dubatti, (2017) faço

referência àquelas que normalmente experimento nessas ocasiões:inexorabilidade do

acontecimento; participação no sagrado; estimulação emocional e intelectual; oportunidade

existencial; percepção temporal alterada; incapturabilidade do acontecimento; sentimento

de altruísmo; contágio; construção autobiográfica; testemunho; sentimento de gratidão;

admiração artística.

A inexorabilidade é possível de ser sentida por meio da observação ou

participação ativa, quando presenciamos um sentimento de completude diante do

acontecimento. O que de certa forma nos transporta para um tempo-espaço ritual, que

conecta ao sagrado no qual os próprios sujeitos fazedores e plateia têm acesso

compartilhado. Na medida em que revolve as emoções e o intelecto, faz com que entremos

num nível de percepção e concentração aguçada, capaz de nos deslocar das preocupações

corriqueiras. Nas palavras de Dubatti, o acontecimento excepcional produz intensidade de

percepção, “captura a atenção (...), agita a memória e os sentimentos, promove emoções,

(...) consegue tamanho envolvimento que faz com que nos concentremos na zona do

acontecimento e nos tira do mundo”. (DUBATTI, 2017, p.167).

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Daí surge o sentimento de sermos privilegiados em ter acesso a esse terreno da

cultura popular, inclusivo, democrático. Nas performances culturais, verifica-se a

pluralidade de linguagens, as estratégias técnicas, estéticas e políticas, o espectador pode

ter a sensação de que os olhos da alma se enchem de vida e colorem a existência. Mesmo

que momentaneamente, elas configuram um momento de respiro na sociedade

contemporânea tão tumultuada, que de tão “simples”, tais performances através de outras

tecnologias, trazem de volta para o corpo, para o tempo presente. É quando surgem

percepções do tipo: não poderia estar arrumando nada melhor para fazer, por que seria uma

perda para mim mesma se eu não estivesse aqui.

A noção de tempo fica alterada, pois o acontecimento parece instaurar um

tempo próprio, altera a “percepção subjetiva do tempo real”, de alguma forma, transporta

para outro tempo. É comum o sentimento de que “poderia passar a noite ali, de que não

sentiria o tempo passar, aproveitaria cada instante, sem me preocupar com as obrigações da

vida cotidiana, sem sentir-me tomada pelo cansaço”.

Falar sobre o acontecimento, descrevê-lo para alguém, parece insuficiente

diante da complexidade que o envolve, é como se o relato diminuísse a experiência e

mesmo a filmagem sobre, já não comunica de fato o que é a sensação de estar lá e

vivenciar com os sentidos. “Adquirimos consciência da nossa impossibilidade de reter a

cultura vivente como vivente, de que o desejo de capturar o incapturável é absurdo.

Quanto maior a

Inexorabilidade, maior o sentimento de perda” (DUBATTI, 2017, p.169).

Motivada por isso, passo a recomendar aos outros para que possam vivenciar por si mesmos.

O contágio gerado pelo acontecimento, muda o estado tônico do corpo e o psíquico,

trazendo outras percepções, alterando também o humor e provocando o desejo de criar

artisticamente, de gerar poiesis.

Ao rever minha própria autobiografia, uma grande parte, ou a maioria dos

acontecimentos excepcionais, vêm sempre permeados pela cultura popular. Quando

participo de rodas de Tambor de Crioula, por exemplo, sinto-me transportada para outro

tempo, como que fosse entrando na terra, desenhando espirais de terra a dentro, como uma

broca até encontrar com os ancestrais no corpo, pelas raízes. Como numa meditação ativa,

não vejo o tempo passar e perco essa dimensão da duração. Esse outro tempo em que

encontro com os ancestrais e em que trago essas energias para dançarem na roda com as

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outras coreiras, faz-me permanecer num estado de alegria, em que continuo cantando,

dançando, vibrando, depois que acaba a roda, num estado interno que permanece pulsando.

Vivenciar esse estado, no corpo, faz-me estar viva na sala de ensaio, em que a dança e o

canto fazem parte do meu aquecimento, no sentido de uma técnica energética e de reviver a

lembrança do encontro.

A lembrança fazendo um convite a revisitar essas memórias inscritas no corpo.

O sentimento de viver misturado com a necessidade de transmitir o testemunho sobre os

contatos vivenciados com essas práticas, através dos sentidos, levam-me a ser grata pelas

oportunidades de estar com mestras, mestres, fazedores e brincantes nesse percurso.

Consequentemente, admiração pela resiliência que estes demonstram, tais

como mestre Júlio do Moçambique de Fagundes-MG, que tive o prazer de conhecer em

2016, quando participei, como Caixeira, da Festa de São Benedito e Nossa Senhora do

Rosário. Mestre Júlio, mesmo num contexto de muita pobreza, fez uma promessa de sete

anos para alimentar os grupos de Congada e Moçambique que se reúnem anualmente em

Fagundes para comemorar a Festa. Nós fomos privilegiadas de participar do lado de dentro

da festa, de partilhar desse alimento, de tocarmos junto com os grupos no cortejo pela cidade

e do desafio de duração (a festa durou aproximadamente 12 horas nas quais

acompanhamos todos os cortejos).

Há ainda o grupo de Bacamarteiros São João da Roça de Carnaíba e Quixaba-

PE, que representam uma tradição de 200 anos no Sertão pernambucano. Com a proibição

do porte de armas, essa tradição ficou ameaçada de continuar, o grupo precisou recorrer à

promotoria de justiça para se organizar, conforme as burocracias. Hoje, todas as armas do

grupo têm registro e a cada apresentação é redigido um ofício para o regimento policial da

cidade, autorizando as “Salvas de Tiros”. O grupo regulamentado pela lei tem orgulho de

exibir os papéis, mas foi preciso uma intervenção de fora, reconhecendo a tradição para

que eles não fossem autuados como portadores ilegais de armas e tivessem suas atividades

proibidas pelo Estado. Alguém de fora do contexto da manifestação precisou dizer que

aquilo era legítimo para que os próprios fazedores pudessem exercer suas práticas. A

habilidade em se adaptar às mudanças determinou a resistência do grupo.

Nesse sentido, o engajamento da cultura popular na contemporaneidade aponta

para uma inserção que tanto é local como glocal, conforme Milton Santos:

41

A cultura popular tem raízes na terra onde se vive, simboliza o homem e seu

entorno, encara a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar e de ali

obter a continuidade, por meio da mudança. Seu quadro e seu limite são as

relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu

alcance é o mundo. (SANTOS, 2014, p.327).

Diante da globalização atual, Milton Santos defende que a perspectiva local

acaba tendo uma projeção maior mesmo nas manifestações culturais mais remotas, seja por

intermédio da mídia, internet ou ainda pela busca do consumo cultural exótico. Nesse

sentido, o local é também global, tornando-se glocal. Seja ao vivo ou in vitro como diz

Dubatti, a projeção da cultura popular nos palcos internacionais promove o acesso e

reconhecimento de práticas que embora editadas para caber nos limites do palco, do vídeo,

do documentário, mesmo esta dissertação, podem, quem sabe, acender o interesse e

promover o contágio levando os indivíduos a loco.

Essa tem sido uma busca constante: o encontro em espaços públicos, na rua, no

terreiro, na praça, em sítio sempre que posso. São nesses encontros com a cultura popular

que venho desenvolvendo um modo de estar na vida e na arte que reúne habilidades de

cantar, dançar, tocar, rezar e festejar ao mesmo tempo, em que o sagrado não é destituído de

corpo e de alegria, assim como o profano tem, em si, uma dimensão de ligação com o

sagrado.

Assim, o treinamento, que envolve o desenvolvimento de uma presença e a

relação com o público, vem principalmente da relação com as brincadeiras e devoção

ancestrais, corporeidades, cantos, habilidades comunicacionais que vêm antes da cena

teatral. Embora haja pontos de intersecção com o fazer teatral em que se destacam a

teatralidade, a linguagem poética, a dimensão simbólica dessas práticas, elas não cabem na

definição de teatro, porque transbordam as molduras do conceito.

No dicionário, guarnecer é “prover do necessário, munir”, mas também

“enfeitar” e “fortalecer”. Aqui, posso definir tal vocábulo como a necessidade de manter a

terra firme sob meus pés, além de guardar no corpo as memórias, de aquecê-las, leva-me a

adquirir vivências, nas quais há cultura popular para fornecê-las ao imaginário, para criar

relações com os grupos e pessoas e, consequentemente, com a cidade, que deixa de ser

cenário, na medida em que é vivida pelos sentidos, constituindo um saber subjetivo,

afetivo, lúdico, empírico.

Na busca por criar conexões com as manifestações populares regionais, da

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minha terra de origem, em terras campineiras, deparei-me com outras que não conhecia e

como se eu fosse muda de planta, que pega de galho, procurei formas de adentrar as raízes

na terra por onde passo. Experimento uma situação de migrante a qual favorece trocas

culturais, ao passo que determina minha permanência no Sudeste. Sobre a situação dos

migrantes, Milton Santos (2006) coloca que a necessidade adaptativa em nova residência é

imprescindível para novas experiências, uma vez que a memória das experiências vividas

deixa de fazer sentido, pois como estão vinculadas a outro meio, criam um embate entre o

“tempo da ação e o tempo da memória” e sem utilidade para o cotidiano os migrantes se

veem obrigados a esquecer, mas,

cabe-lhes o privilégio de não utilizar de maneira pragmática e passiva o prático-

inerte (vindo de outros lugares) de que são portadores. Ultrapassando um

primeiro momento de espanto e atordoamento, o espírito alerta se refaz,

reformulando a ideia de futuro, a partir do entendimento da nova realidade que o

cerca. O entorno vivido é lugar de troca (...) (SANTOS, 2006, p. 228).

Dessa forma, um pouco de lá ainda permanece junto com o daqui,

transformando-se numa identidade movente, em fluxo contínuo, afetada pelas trocas, pelo

convívio, pelas situações de liminaridade, promovidos nas brincadeiras e rituais sagrados,

guarnecendo o corpo daquilo que ele precisa para se sentir vivo, enraizado, pulsante, para

dar sentido às trajetórias, adaptações e mudanças.

O treinamento na cultura popular tem a ver com a experiência de fazer e

vivenciar. Apreende-se o seu jeito de fazer em experiência, em “convívio”. As

características do acontecimento excepcional enumeradas por Dubatti, sinto-as, na

maioria das vezes, nas experiências com a cultura popular como participante dessas

práticas em situações de convívio.

No entanto, um problema que enfrento, ao retomar o trabalho em sala de

ensaio, é a frequente sensação de vazio, devido à intransponibilidade das experiências, a

impossibilidade de instaurar na cena as memórias tais como se deram. Por outro lado, as

experiências na cultura popular vão deixando traços no meu fazer artístico que criam, por

assim dizer, um modo de estar, quase uma filosofia de vida, uma filosofia do guarnecer.

A Filosofia do Guarnecer, na perspectiva desta pesquisa, tem a ver com a

vivência prática, com as manifestações populares em oportunidades de reencontro com

aquelas que já trago no corpo, mas também de descoberta de outras, a partir do local

43

migratório, onde se constrói a identidade de por enquanto. Procuro participar do máximo de

situações que me permitam o intercâmbio com pessoas, grupos e comunidades. Conquisto,

assim, a experiência que o acontecimento gera, além de guarnecer o corpo-memória-

imaginário-raízes de atriz, num ponto de vista proximal, íntimo, afetivo e participativo para

“acordar o batalhão” dentro da atriz e fazer voltar ao espaço mítico dantes.

Portanto, a Filosofia do Guarnecer desponta como uma alternativa a outras

formas de treinamento, desmitificando a condição da cultura popular como algo

acantonado, numa geografia remota, apenas observável do ponto de vista folclórico,

exótico e patrimonializável. Ademais, tal filosofia deixa de prestar ao recorte de passos

simplesmente, mas passa a ser encarada como campo vivo em situação de convívio. Nesse

sentido, guarnecer é um aquecer as memórias que servirão de transformação, transporte e

treinamento subjetivo da pessoa da atriz.

1.2 O mito do corpo-seco: a seca como metáfora na poética da cena

Imagem 1: Imersão em campo, chã da serra, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, município de

Afogados da Ingazeira-PE, dezembro de 2017. Arquivo pessoal da autora.

Há nessa criação, um forte cruzamento entre os relatos orais – recuperados da

memória afetiva das andanças no Sertão, durante a imersão sensorial, com as referências

literárias do conto que inspiraram o trabalho de atriz – atrelado à representação de um

feminino mítico.

Levo ao conhecimento do leitor um trecho da entrevista concedida pelo autor

do conto Lua Cambará, Ronaldo Correia Brito à pesquisadora Nathalia Perry Clark, na

Universidade de Brasília em 09/12/2010, contida nos anexos da dissertação de mestrado de

Nathalia Clark, intitulada Faca- face de um feminino sertanejo: impressões de um

regionalismo contemporâneo em Ronaldo Correia Brito, defendida em 2011 na

44

Universidade de Brasília.

As informações dadas pelo autor, nessa entrevista, foram relevantes para a

minha pesquisa de criação de personagem, norteando questionamentos, como, por

exemplo: O que vem a ser este “mito do corpo seco”? De onde vem? Qual sua ligação com

o conto em questão? Mas, principalmente, o que este mito pode provocar no trabalho de

atriz enquanto busca de estados, qualidades de movimentos, ou mesmo metáforas na

cenografia, figurino, maquiagem?

Eu- Queria que você falasse um pouco sobre a disposição da ordem do livro.

Para mim, Lua Cambará vem como um fechamento mesmo, uma síntese. Ela

vem como uma guerreira, como uma heroína mítica do sertão, como uma

justiceira, mas traz consigo uma fragilidade feminina, sempre presente, ela sofre

de amor... E queria que você falasse sobre a abertura do livro, com “A espera da

volante”, com a personagem que aparece em Galileia também, e o fechamento

com Lua Cambará.

RC- Lua Cambará é a primeira coisa que eu escrevi na vida, meu primeiro

conto. Isso foi em 1970, o que significa que publiquei um conto com 33 anos de

escrita.

Eu- O conto então ficou penando como ela, né...

RC- Sim e eu também... Eu escutei essa história contada inúmeras vezes por meu

pai. É uma história da mitologia sertaneja. É o mito do corpo seco, história de

uma personagem escravocrata do sertão dos Inhamuns. Não posso dizer seu

nome... É uma história que certamente se mistura à mitologia universal. Era uma

escravocrata cruel, perversa, e que contam que quando foi levada para o enterro

de seu corpo, aparecem dois diabos, demônios montados a cavalo e pedem para

ajudar a transportar a morta e desaparecem com ela. Então, as pessoas assustadas

enterram no lugar da morta um tronco de madeira. Então, na verdade, são mitos

arcaíssimos, que são incorporados à mitologia local. A alma penada de Lua

Cambará começa a ficar aparecendo aos tropeiros que se arrancham debaixo de

árvores, às pessoas que à noite estão de viagem. Eu começo o conto dizendo:

“meu pai jurou que viu, é muito forte, se meu pai jurou que viu então não há o

que duvidar, mesmo as pessoas dizendo que ela é mal-assombrada. O mito existe

e Lua Cambará existe, e me persegue até hoje. Tanto que já virou uma ópera-

balé, já virou disco, dois filmes, acabou de ser encenada, e é tão forte, tão real, tão

palpável. (CLARK, 2011, p. 195).

45

Imagens 2,3,4: Laboratório de personagem, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, município de

Afogados da Ingazeira-PE, janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.

O Corpo Seco é uma lenda que no Sertão se confunde nos relatos orais das

aparições de lobisomens ou de envultados. No dicionário Michaelis, a expressão corpo-

seco aparece descrita da seguinte forma: “Espírito esquelético que vaga pelas matas;

Mulher que definha por, supostamente, ter mantido relação sexual com o diabo”.

Nesse mito, pessoas perversas, principalmente com a mãe, ao morrer, tinham

suas almas recusadas por Deus e pelas piores almas do inferno, ao serem depostos na terra,

eram cuspidas por ela. Os cadáveres, que mais pareciam troncos de árvores retorcidos

passavam a assustar os vivos com suas faces descarnadas. Para tornarem a forma humana

habitual, precisavam sugar o sangue dos vivos, espreitando-os em caminhos ermos,

debaixo de árvores, em lugares desabitados. O mito sugere uma advertência, moralizante,

disciplinatória, àqueles que agiam com perversidade para com seus semelhantes,

principalmente a autoridade primordial da mãe, quem sabe como forma de respeitar uma

ordem matriarcal, nem que seja pela imposição do medo da condenação eterna. A

afirmação do autor, de que o mito existe, coloca o conto num patamar de verdade, uma

verdade feita de sujeitos e suas subjetividades, não procura provar que isso se deu de tal

forma, ao contrário, apela à palavra, este verbo jurado, a sua incontestabilidade, algo típico

das narrativas míticas, segundo Mircea Eliade,

O mito define-se pela sua forma de ser: não se deixa abarcar enquanto mito, a

não ser na medida em que revela que qualquer coisa se manifestou plenamente,

sendo esta manifestação, por sua vez, criadora e exemplar, já que também, na

verdade, funda uma estrutura, do real mais que um comportamento humano. Um

mito narra sempre que qualquer coisa se passou realmente, que um

acontecimento teve lugar no sentido estrito da palavra quer se trate da criação do

Mundo, da mais insignificante espécie animal ou vegetal ou de uma instituição.

(ELIADE, 1998, p.10).

46

Resgato da memória uma história semelhante a essa, que ouvi em minhas

andanças no Sertão, no período da pesquisa de campo, de dezembro de 2017 a fevereiro de

2018, da rezadeira Dona Franscisca. O registro aqui é a memória afetiva, as palavras

contadas por ela entraram em meus ouvidos e imaginação de modo muito penetrante. Certo

dia, estava em casa angustiada e fui até a casa de Dona Francisca para que ela me benzesse

com seu raminho de arruda.

Nessa ocasião, após a reza, ela me mostrou seus pés de pimenta, acompanhei,

ajudando-a a jogar milho para as galinhas, ela me mostrou a reforma que estava fazendo

em casa, depois de muitos anos lavando roupa no sol quente, finalmente, ela construía uma

área de serviço em casa, a qual exibia agora com muito orgulho. Como começou a chover,

sentamo-nos no alpendre de casa, aguardando a chuva passar, mas também admirando as

gotas benditas que caiam do céu, enquanto saía um café, perguntei-lhe se ela conhecia

alguma história de assombração. Dentre os diversos causos, o que mais me marcou foi o da

mulher que a mãe amaldiçoou, por que ela era uma filha muito ruim.

Assegurava-me Dona Francisca que a história era real, que tinha acontecido no

tempo em que ela morou perto da barragem, antes de ser expulsa de lá pela construtora,

junto com outros tantos agricultores, felizmente, ela foi indenizada e, com o dinheiro que

recebeu, construíra sua casa ali à beira da linha do trem. O marido dessa mulher,

desconfiado dos sumiços constantes da conjugue, descobriu a maldição da mãe, que a

condenava a correr nas noites sem lua, sete pontes, sete fontes, sete montes. Após isso, ela

retornava descabelada, suja, descalça. Se a história de Dona Francisca é verdadeira, quem

poderá ter certeza?

O meu olhar para essas histórias se direciona noutro sentido, que não é o de

provar cientificamente a existência dos envultados, senão, lidar com esse dado subjetivo na

criação de uma poética. A partir de tal premissa, o convite de Eliade ressoa nessa criação:

Pensemos no mito como comportamento humano e, ao mesmo tempo, como

elemento de civilização, isto é, no mito tal, como se encontra nas sociedades

tradicionais, porque, ao nível da experiência individual, o mito nunca

desapareceu por completo; faz-se sentir nos sonhos, nas fantasias e nostalgias do

homem moderno, e a enorme literatura psicológica habituou-nos a reencontrar a

grande e a pequena mitologia na atividade inconsciente e semi-consciente de

cada indivíduo. (ELIADE, 1998, p.18).

Tomo a licença poética de mesclar histórias ouvidas, com outras imaginadas, na

inventividade de transmitir este dado simbólico e mítico elaborado em minha memória.

Esta conversa me aproximou de Lua, por uma via sensível do contato, ali no alpendre,

47

tomando aquele café, admirando a chuva que acalmava a brasa quente do chão e embalava

aquela história.

Lua Cambará no momento da morte, encarna o mito do corpo seco, presente no

imaginário popular de forma muito particular. Ronaldo Correia Brito narra a “passagem”

(aqui me recordo também do termo límen, como uma via de acesso entre dois espaços), da

personagem para o mundo dos mortos, com uma profusão de imagens que lembram os

filmes de terror, avivando a imaginação, como se eu estivesse vendo a cena acontecer

diante dos meus olhos:

“– Meu avó presenciou tudo. Dizem que Lua se encontra enterrada no Ipu, mas

é mentira. Ali, naquele jazigo de família, com lousa de mármore preto, vindo da Itália, está

enterrado um tronco de mulungu.” (BRITO, 2003, p.166).

Quando o corpo foi deposto na rede alva, de varandas longas, que lembravam os

cabelos da que partia, soprou um vento das labaredas do inferno. Nenhuma chama

se manteve acesa e as portas e janelas não sustentaram as trancas, batendo sem

parar. O vento trouxe punhados de terra, atirados por mãos invisíveis. Meu

bisavô tentou empunhar uma cruz, porém faltou força em suas mãos. Nas

pressas, atravessaram a rede em um pau e partiram a pé, tropeçando no escuro

(BRITO, 2003, p.167).

Os escravos amedrontados com os negros surgidos do éter, em seus ternos

brancos e seus olhos de fogo montados a cavalo, entregam o corpo que seguia para ser

enterrado. Estes, enterram no lugar da morta, um tronco de madeira seco. A alma penada de

Lua passa a aparecer aos viajantes na lua nova à beira das estradas.

A diferença da lenda do corpo-seco para o conto de Lua Cambará, a meu ver,

dá-se pela ausência de um corpo, no caso o de Lua, seu corpo nem chega a ser enterrado,

ele some. O tronco de árvore seco é que ocupa o lugar do cadáver. E aí, uma pergunta

surge no meu trabalho de atriz: a personagem aparece aos viajantes para anunciar a

ausência deste corpo? Para cobrar-lhes o paradeiro de seus ossos com a sua visão

silenciosa? Como interpretar uma personagem que não tem corpo? Como representar a

morte?

Nas experimentações que tenho realizado, a morte vem sendo construída na

forma de uma instalação feita com o próprio figurino da personagem, despido do corpo da

atriz. Essa instalação é, ao mesmo tempo, um lugar do sagrado na cena, mas também do

terrível. As peças que vão sendo vestidas pouco a pouco presentificam na cena a

48

personagem em sua fase de assombração.

Na tenra infância, Lua Cambará mama o sangue-leite nos peitos da mãe morta

por inanição. A menina é resgatada por um vaqueiro que a leva ao pai, Coronel da fazenda,

que “fica com a encomenda, mas não a manda batizar”: “ – É filha da Negra Maria,

moradeira dos extremos de vossa terra. Vinham na direção de vossa casa. A mãe morreu de

fome. A filha mamou sangue nos peitos da morta. Tem gênio ruim e raça de branco”

(BRITO, 2003, p. 146). Na minha percepção, o autor arquiteta uma metáfora na narrativa

que recupera um imaginário muito forte dos relatos da seca no Nordeste.

Relatos semelhantes a esse trecho do conto, ouvi dos antigos da região do Sítio

Catolé, no Sertão do Alto Pajeú, a 380 Km da capital pernambucana, Recife, em dezembro

de 2017, durante a realização dos laboratórios de personagem, naquela região. As histórias

sobre as secas, envolvem as migrações dos retirantes, em que a viagem é um penar pelo

mundo afora, na qual se está sujeito a acontecimentos funestos. Dentre os relatos que ouvi,

um em especial me chamou a tenção. Contam que, no ano de 1877, houve uma grande

seca, a qual ficou conhecida como a seca de 70, retirantes passavam, vindo em caravanas,

dentre estes havia uma mulher sozinha com a filha, ela estancou à beira da estrada, sem

forças para prosseguir. Veio um retirante sozinho, ela lhe pediu um pouco de farinha, pois

estava faminta e não aguentava mais andar, ele negou, disse que logo atrás vinha uma

caravana de pessoas, que ela pedisse a eles. Passaram-se dois dias, a mulher não aguentou,

morreu de fome. Quando a caravana passou, a menina mamava o sangue, no peito da mãe já

morta. Os retirantes da caravana pegaram a criança e seguiram seu caminho, o paradeiro

desta é incerto, quem me contou essa história disse que talvez ainda morasse em alguma

das cidades circunvizinhas, mas como a história é triste, seria de mal gosto eu bater à porta

da possível mulher que mamou sangue nos peitos da mãe e perguntar a ela coisa tão

ofensiva.

Essa imagem no conto, em que Lua nutre-se do sangue da mãe, não deixa de

ter lá sua beleza, embora terrível, parece ressuscitar memórias presentes no imaginário

coletivo do povo nordestino. Na verdade, é isso que todos os fetos fazem, enquanto estão

na barriga, nutrem-se através do sangue, o que torna a imagem tão dolorosa é porque, na

circunstância ficcional, as últimas forças de Maria se vão, no ato de amamentar, como um

sacrifício ingênuo contra o qual ela nem teria tido forças de agir, falando mais alto o senso

de sobrevivência da infante.

49

Quando comentava com as pessoas do local, acerca dessa passagem do conto, a

recepção era seguida de relatos como este, que vinham à tona carregados de um certo

desgosto como se fosse uma história assombrada na memória dos habitantes,

principalmente dos mais velhos. O meu interesse em retratar essa passagem do conto soava

como se eu estivesse expondo uma ferida de quem viveu a seca, como minha avó, por

exemplo, que passou momentos de tanta dificuldade, que chegou a perder alguns filhos,

abortados em decorrência da fome que sentiu. Nesse sentido, o conto ficcional, ao mesmo

tempo em que trata de uma lenda, traça, na narrativa, pontos de contato entre mito e relato.

Nesse sentido, eleger o corpo-seco como um estado, como possibilidade de

investigação, levou-me a procurar entender o processo climático da seca, primeiro por uma

via sensível, pela observação no meu corpo, no espaço e no tempo em que permaneci no

sertão. Durante minha imersão criativa, no período de dezembro de 2017 a fevereiro de

2018, estive muito atenta a todos os estímulos e um deles, que certamente marcou os

laboratórios de personagem, foi a sensação térmica, a percepção do clima em suas micro

alterações. Depois, por um entendimento social, estatístico, da seca como uma instituição,

que serve a interesses políticos, portanto à manutenção de privilégios. Na indústria da seca,

com o voto de cabresto, as promessas de pipas d‟água são moedas de troca, mas não

resolvem as condições que dificultam a sobrevivência no semiárido nordestino. Nessa

escuta atenta das sensações que permearam meu corpo nos laboratórios de criação, percebi

o clima como uma força que governa o cotidiano dos sertanejos. Observei, por exemplo, que

é costume olhar o céu, quando amanhece, ao entardecer e à noite quando a lua sai, à

procura de sinais de chuva. No final de janeiro a começo de fevereiro de 2018, tornou a

chover na região, que não registrava uma precipitação capaz de formar barro na terra e

juntar água nos reservatórios há pelo menos sete anos.

A instauração da chuva proporcionou alterações perceptíveis pelos sentidos de

um modo que eu não estava mais habituada a reparar, depois do afastamento geográfico do

sertão por um período prolongado de seis anos, morando na região litorânea da Paraíba e,

mais recentemente, nos últimos quatro anos no Sudeste brasileiro. Sensações como a

densidade do ar, temperatura, fluxo dos ventos, umidade, luminosidade da lua, formação das

nuvens no céu, cheiro do ar, observação das formigas, mariposas, besouros, sapos e

pássaros, fizeram parte do meu cotidiano nos três meses de imersão em que permaneci no

sertão.

50

Comentários do tipo “parece que vai chover na passagem da lua nova”, termo

que incorporei às improvisações que realizei nos laboratórios na fala da personagem

Cacurucaia Maria, convidaram a essa vivência, por meio da observação ativa. O que me

levou a entender que se sente a chuva com diversas percepções táteis, olfativas, paladares,

visuais, intuitivas, sutis, que compõem uma percepção diferenciada como um todo, pela

experiência e observação.

Não se trata de profetizar, pois o tempo é algo que está imbuído no cotidiano

das pessoas e que a vida nas cidades grandes não favorece tanto esse contato. Percebi que

essa habilidade é um treino, uma escuta muito sensível do entorno, a qual é preciso se estar

aberto, poroso. Ao ponto que quando caiu uma forte chuva eu já a sentia de longe, se

aproximando pouco a pouco e como se esperasse há muito, muito tempo, esse encontro.

Não me detive, lancei-me no temporal, apreciando com os sentidos o toque gelado da

chuva, o gosto, o cheiro, os pés descalços na lama, até o corpo inteiro estremecer de frio.

Essa sensação, guardei-a como uma das partituras de movimento.

Para além da técnica, acho fundamental uma escuta global, tal habilidade carece

de um treino mais do que a propriocepção comum ao trabalho do ator. A vivência descrita

acima serve como exercício que proporcionou ampliar a escuta de atriz, trazendo

percepções diferenciadas, que venho tentando exercitar no trabalho de atriz, na sala de

ensaio e na troca com o público. Também a mesma vivência de percepção do clima no

corpo, com os sentidos, fez-me pensar numa possibilidade para a construção do cenário na

qual este não está fora do corpo da atriz, mas no próprio corpo. Surgiu a ideia do corpo

como tela. Tela no sentido de pintura, daquilo que se projeta no corpo, das materialidades

que compõem a caatinga e o sertão em suas cores, texturas, profundidades. É então que o

corpo de atriz, no espaço, é canal sensível de acesso a essas materialidades, como se fosse

portador de um mundo que não cabe em si, como se a alma da personagem fosse maior que

o corpo da atriz, trasbordando por meio dessas materialidades na cena.

As fotografias realizadas no período de dezembro a janeiro despontaram como

possibilidade de composição de parte do cenário, através de projeções. Também as

filmagens das experimentações em campo, foram compiladas e editadas por Rodolfo

Ventura e deram origem a um teaser que finaliza e sintetiza a saga de Lua em andanças

sertanejas. Aplicando esse pensamento do corpo como tela, em que o estado de corpo-seco

é uma avidez, uma busca que compõe poéticas na cena, ao lidar com dados estatísticos,

51

ficcionais e da memória coletiva do povo do lugar, as imagens captadas pela câmera da

pesquisadora transformam-se em metáforas e transbordam aquilo que não cabe em mim.

As notícias sobre as secas ajudaram a formar, no imaginário sulista, a figura do

Nordeste e do povo sertanejo, assim, por meio da literatura regionalista, das entrevistas e

relatos, criou-se um arquétipo da sofrência que ainda rende muita audiência nos programas

de televisão, reforçando um preconceito de origem e de classe, criando barreiras para o

entendimento das manipulações que os governos, a literatura, a mídia, têm feito desde

muito tempo. Será possível uma atriz sertaneja ter outro olhar sobre esses estereótipos?

52

CAPÍTULO 2: LUA CAMBARÁ

2.1 Lua Cambará, a lua como símbolo cósmico do

feminino

No conto Lua Cambará, notei que a lua tem uma importância muito grande em

vários trechos, marcando não só a passagem do tempo, mas anunciando eventos

desastrosos. Logo no início, o enunciado “Eram os três dias em que a lua morre, o vento da

noite tarde, já soprava com força” (BRITO, 2003, p.142), comunica-se ao leitor que algo

está para acontecer, a partir de dados que convocam os sentidos, a escuridão, o barulho do

vento, criando um clima de suspense que evoca da imaginação toda sorte de seres

sobrenaturais.

O conto de Ronaldo Correia Brito, suscita uma relação com mitos primais, em

que a lenda brasileira aponta para ressonâncias das antigas religiões pagãs, em que a lua

aparece como símbolo mítico da representação feminina, onde Lua encarna uma imagem

arquetípica lunar, nas suas diversas fases, “voltando sempre ao mesmo ponto nas noites

que não têm lua”. Talvez o que me encante nessa narrativa tenha a ver com aquilo que

Serge Gruzinski percebe como estratégia de criação nas obras híbridas, em que “a força

subversiva da fábula está ligada aos mundos primordiais que ela não para de ressuscitar.”

(GRUZINSKI, 2001, p.156).

Quando o conto enuncia que a personagem “tinha um ciclo lunar e variava a

cada lua” (BRITO, 2003, p. 147), traz a provocação de que esta personagem teria

comportamentos diferentes, conforme as fases da lua, encarnando a inconstância, o fluxo,

próprio da natureza, como eu poderia no trabalho de atriz criar essas dinâmicas?

Além dessas duas questões, outra também bastante fulcral para a pesquisa é

que Lua Cambará me faz pensar nos vários atravessamentos que perpassam o feminino,

inclusive sobre o próprio conceito deste. Um feminino que não é o oposto de masculino,

que não está limitado a questões biológicas, que não é politicamente correto, mas que tem a

sua força no conjunto e no fluxo de suas qualidades, que integram o aspecto sombrio ao

aspecto luminoso sem dualidades. Um feminino que tanto é terrível e sanguinário, quanto

onírico, etéreo e fantasmagórico.

Sendo a mulher e o feminino não uma diferença do homem, mas o gênero

53

como uma invenção e produto social, cultural, religioso, em que “A representação do

gênero é a sua construção _ e num sentido mais comum pode-se dizer que toda a arte e

cultura erudita ocidental são um registro da história dessa construção” (CLARK apud

LAURETIS in HOLLANDA, 1994, p. 49).

Por essa perspectiva, busquei entender a personagem por um aspecto tríplice,

lunar, mas ao invés de relacionar com a mitologia grega (com Perséfone-Deméter-Hécate

nos aspectos de virgem-mãe-anciã, por exemplo) pretendi uma relação mais próxima com a

cultura afro-brasileira, optando por um ponto de vista que privilegia mitologias abaixo da

linha do Equador, diaspóricas, negras. Tomo a liberdade de substituir o aspecto de mãe

pelo da guerreira, motivada pela trajetória da personagem, a quem enxergo como uma

personagem tríplice em que despontam as características da moça-guerreira-anciã.

Como espaço de reflexão, a escrita dessa dissertação e a poética de criação da

personagem me fazem querer dar voz às negações históricas, sociais, simbólicas, pelas

quais o feminino padece, principalmente aquele com o qual me identifico, na minha

situação de migrante nordestina.

Observo em Lua Cambará as qualidades de uma deidade tríplice de moça-

guerreira-anciã, o que me leva a realizar uma aproximação na mitologia Yorubá com três

divindades, que vejo neste trabalho de criação cênica, como polaridades do caráter da

personagem. São elas: Oxum, Yansã, Nanã.

Baseio-me em comparações, a partir da narrativa do conto e dos mitos

compilados por Reginaldo Prandi na obra Mitologia dos Orixás entre outras referências.

Sendo que a identificação mais direta é com o mito de Oyá, a mulher búfalo, por uma

semelhança de estados entre a personagem e a deidade no que diz respeito à imagem

arquetípica da guerreira em suas atitudes.

Quanto às outras Yabás, Oxum e Nanã, a identificação com as imagens

arquetípicas da moça e da anciã se dão em outro sentido. Com a moça, pelo encontro de

Lua Cambará com as águas escuras de um açude, onde a personagem tem a sua

feminilidade revelada por tais águas, seu encanto, seu segredo, guardado por Oxum, cujo

elemento simbólico se situa nas águas doces. Com a anciã, Lua Cambará vive a polaridade

inversa, que seria o oposto da sabedoria, a insanidade, a loucura, no encontro com a morte,

tabu regido por Nanã.

Se fosse falar nos termos usados nas casas de santo, diria que a personagem,

54

incorpora Yansã, uma qualidade de Yansã que come com Oxum e Nanã. O cruzamento

com a mitologia Yorubá parte de uma compreensão desses arquétipos como forças vivas

nas ações, comportamento, elementos, temperamento, energia, vibração. Uma concepção de

um comportamento que se transforma em ação, em gestos simbólicos.

Trazer Lua Cambará para perto de Yansã foi uma tentativa de compreender a

dinâmica do seu aspecto tríplice na qualidade de guerreira. Os trechos a seguir orientaram

essa aproximação:

Ouviu-se um ruído estranho, como das profundezas da terra se abrindo. E viram

Lua Cambará se erguer no suspiro de morte do pai, se alçando em filha herdeira,

de punhal na cintura. (...) Juntou um exército louco e mestiço, zumbis sem medo,

arrastados por uma força de mulher. (...) Calçava perneira, vestia gibão e

montava cavalo feito homem. Mas a fêmea escapava de dentro de todas as amarras

do couro. (...) Interpôs com o seu chicote, mulher avultada entre machos. (...)

Queimou a palma da mão aberta como quem pronuncia uma sentença. (BRITO,

2003, p. 149; 151; 153; 157)

Em um dos mitos de Yansã, na parte três da obra literária de Judith Gleason

(2006), Oya, Um Louvor à Deusa Africana é possível encontrar a seguinte narrativa: A

mulher- búfalo e os caçadores, com o subtema: Quando a mulher búfalo vira Oya.

Ela relata ainda que, “esta versão inglesa da história segue o formato oracular

no qual foi originalmente recitada pelo divinador iorubá Awotunde Aworinde, em junho de

1970, em Osohogbo”. Aqui, mais uma vez, a criação se depara com materiais que vêm da

oralidade, como o próprio conto que investiguei, como se Lua estivesse sendo tecida pela rede

desses afetos, que me atravessaram quer imageticamente, quer se transformando em ações, em

poética, em linguagem na cena.

Nessa narrativa, o caçador descobre o segredo de Yansã, esconde a sua pele de

búfala em casa, chantageando-a para que esta se case com ele e assim possa mantê-la por

perto. Ela aceita a condição, contanto que o caçador não fale às outras mulheres as

circunstâncias nas quais se conheceram, uma vez que este tinha um casamento poligâmico..

Com o nascimento do primogênito, e logo em seguida de mais oito crianças, as outras

esposas enciumadas da fertilidade de Yansã, embebedam o marido e fazem-no contar onde

tinha encontrado aquela mulher, pois Yansã era estrangeira naquela terra e não tinha

ninguém que a conhecesse dantes. De posse do segredo, elas tentam expor-lhe, insultando-a

com adjetivações depreciativas, o que termina revelando a força destrutiva da guerreira. Vejamos a

seguir na transcrição que faço do mito compilado em Judith Gleason:

55

Vermelha, Vermelha, venha assim que estiver pronta – elas escarneceram. /

Iremos na frente/ vá no seu tempo, Vermelha/ Continue ruminando o seu alimento. / O seu

disfarce está seguro/ Lá entre as vigas/ Por isso, considere-se afortunada. Mulher

Vermelha! /Ai!Ai! Seu estômago revirou com a surpresa. / Assim que as co-esposas saíram

de vista, / Ela mandou que as crianças saíssem de casa, / Pegou uma bolsa feita de rato

gigante/ E foi buscar água. / Subiu até o lugar dos guardados sob as vigas do telhado, /

pegou a trouxa que continha o disfarce/ E começou a encharcá-lo. /Vestiu-o aos

pouquinhos,/ (...) Ela pulou e correu pela cidade/ (...) Correu para a primeira esposa,/

matou-a/ Correu para a segunda esposa,/ matou-a/ e também a terceira./ (...) e saiu na

direção do marido./ Ele a viu chegando./ Aquele búfalo na distância _ instintivamente ele

soube./ Ai!Ai! Minhas esposas arruinaram a minha vida! /Ela o teria matado de imediato,

/ mas ele começou a louvá-la. /Nobre búfalo. /Nada o faz parar.

/ Você faz o seu caminho pelas moitas. / Nenhum arbusto é denso o suficiente

para você./ Lutador, por favor, não mate o caçador/ pelo prazer de matar. (GLEASON,

2006, p.206)

Em um dos mitos de Yansã, compilado por Reginaldo Prandi (2001) em seu

livro, Mitologia dos Orixás, encontramos na narrativa a descrição do momento em que Oiá

se transforma em búfalo, após ser ridicularizada pelas outras esposas de Ogum: “Ela vestiu

a pele e esperou que as mulheres retornassem e então saiu bufando, dando chifradas em

todas, abrindo-lhes a barriga” (PRANDI, 2001, p.298-299).

Lua Cambará, assim como os mitos transcritos acima, é um conto que nasce na

oralidade. Sua história contada nos alpendres das casas, pelos tocadores de gado no sertão

dos Inhamuns, no Ceará, permanece viva de alguma forma no imaginário do povo até que

em 1970, Ronaldo Correia Brito transcreve a narrativa do mito para a literatura. Sua

inventividade, ao compilar relados ouvidos, vividos e imaginados, cria em Lua Cambará

uma espécie de força subversora ligada aos mitos primais que ela faz ressurgir, acendendo

uma relação com temas recuperados das mitologias pela literatura.

Pensar na personagem como uma “colagem”, uma figura híbrida, traz em si a

união das facetas da moça, guerreira e anciã, não como forças estanques, mas acordando no

meu imaginário um sentido multidimensional, fluido, levando-me a fazer relações de

aproximação com outros mitos, que, a meu ver, iam sendo encarnados por ela no seu ciclo.

Tenho a impressão de que essa alma penada que passa a vagar “sem princípio, meio e fim”

acorda algo muito antigo, tão antigo quanto a sua própria existência de personagem.

Também este cruzamento preza pela construção de uma linguagem inspirada

na lógica presente nos rituais de terreiro, enquanto instauração de um acontecimento, uma

teatralidade que transporta para um tempo mítico, por meio das ações rituais desenroladas

56

ali. Diante do conto Lua Cambará, em processo criativo, em fricção com a personagem,

perguntei-me o que esta gostaria de dizer com tal encenação, como consequência, recebi

como resposta um desejo de recomeçar a escrita por um trecho que aparentemente tem

pouca relevância dentro do arco dramático no conto. É o momento, na minha perspectiva,

em que a narrativa constrói o gatilho que depois dá força para Lua duelar com seu primo e

parentes e tomar posse de sua herança:

“Do outro lado, a casa do Monte Alverne, onde morreram sete filhas fêmeas todas

chamadas Maria, por capricho, até nascer um filho homem, Francisco Francelino

do Cambará, este que irá morrer, com um tiro no coração”. (BRITO, 2003,

p.151).

Senti a necessidade de dar corpo, na cena, a essas personagens, a esses corpos

ausentes, que assim como Lua, poderiam ser reveladas pelas sombras da lua nova, as quais

convidam toda sorte de espíritos a se apresentarem em nossa imaginação.

Em minhas andanças pelo Nordeste, veio a inspiração das bonecas de pano,

portadoras de memórias e narrativas, no seu fazer que transcendem o próprio material de

que são feitas. Confesso que fui atravessada por uma memória afetiva na aquisição dessas

obras, além da própria motivação extraída do conto de presentificar os corpos ausentes das

Marias, acrescida ainda da revolta ante a uma reportagem que li.

As bonecas que adquiri são de autoria de uma artesã idosa de João Pessoa, que

estava prestes a desistir de fazê-las, porque “as pessoas não se interessam mais em ter

boneca de pano”. Sua fala ressalta a desvalorização de suas obras, que, muitas vezes, ficam

empoeiradas nas prateleiras, o que caracteriza uma sociedade de consumo rápido e

industrializado. Pois cada boneca, feita totalmente à mão, cujas feições são bordadas,

demora um tempo que ao ser cobrado pela artesã, juntamente com os pequeninos retalhos

que compõem a roupa, os cabelos, “encarece” o produto na visão de alguns consumidores,

que preferem adquirir bonecas de plástico.

Chamou-me a atenção o acabamento das bonecas: os fios que costuraram o

recheio eram grossos e os nós todos à mostra, como se elas tivessem sido costuradas com

um fio único, tendo uma coesão interna, que embora deixasse entrever os nós, também

possibilitava ver as “falhas” na construção daquele feminino em que a beleza da obra, a

meu ver, resultava justamente de que o bordado luminoso convivia com os nós na pele

mesmo das bonecas. Era como se, nesse objeto, estivessem contadas todas as contradições

57

e incongruências da construção de um feminino.

Ao me deparar com tais bonecas, imediatamente, lembrei-me da minha avó

paterna, Doralice Barros, descendente de negros da etnia Banto, exímia costureira e artesã,

que fazia bonecas semelhantes, objeto mais desejado da minha primeira infância, e colchas

de retalho com o que juntava de suas costuras. Um pouco antes de sua “passagem”, ela me

presenteou com uma colcha de retalhos, a qual me aquece nas noites frias do Sertão

quando me recolho do mundo e habito no tempo.

Dei a essas bonecas nomes de matriarcas que morreram na região rural de

Afogados da Ingazeira, no Alto Sertão do Pajeú, em Pernambuco, achei importante nomeá-

las, homenageando-as, presentificando não só os corpos ausentes do conto, mas os troncos

familiares das contemporâneas da minha avó materna, Rosa Santana de Lima, daquelas que

morreram esquecidas em sua miséria e daquelas que, porventura, não chegaram a nascer,

num trânsito com o invisível, entre ficção e realidade, na criação cênica, como forma

também de denuncia e metáfora poética.

Uma das bonecas chamei de Tereza, em Tereza recupero na ação, o meu

incômodo em relação ao que aconteceu com os restos mortais de Saartijie 1 antes de serem

devidamente enterrados, na fala da Cacurucaia Maria:

Qual foi a outra? Os velórios foram ficando tão ligeiros... Eu esqueci? Não,

foram sete! (Reconta, dizendo o nome delas baixinho) Foi Teresa! É por isso que eu não

lembro! Teresa foi levar a lavagem dos porco e parece que eles tavam com a fome de

setenta, parece que fazia setenta ano que eles não comia. (Deixa cair Teresa) Acharo

Tereza só os pedaços... o caixão de Teresa ficou tampado, nem tinha retrato pra gente vê...

(Tapa o rosto de Teresa e recolhe com cuidado).

Na boneca de pano, que é sempre menina, mas velha também, cujas costuras

aparecem na pele, com seus nós à mostra, cujas pontas soltas deixam vir à tona o estofo de

que são formadas é uma metáfora singela daquilo que está escancarado na pele de mulher.

1 Saatije Baartman, conhecida como Vênus hotentote, após sua autópsia em 1815, teve durante 194 anos a

vagina, cérebro e ossos expostos no “Museu do Homem” em Paris, ao lado do cérebro de Descartes, para

servir de contraponto ao atributo da intelectualidade do homem branco. Na visão dos pensadores da época, as

partes genitais de Saartijie reforçavam o aspecto inferior da raça africana, para eles, uma prova de que as

“fêmeas” eram altamente sexualizadas, uma estratégia de rebaixar a raça, relevando os abusos. Só em 2002, o

governo Francês “aceitou” devolver os restos para serem devidamente enterrados na Cidade do Cabo, na

África do Sul, onde finalmente passou pelos rituais funerários. Fonte: New York Times, Sunday, May, 2002

France Returns Old Remains to homeland. In https://flashbak.com/saartjie-baartman-the-hottentot-venus-

who-aroused-the-victorians-50638/ Acesso em 25/03/2018. Saartjie Baartman: The Hottentot Venus Who

Aroused The Victorians by Paul Sorene on January 6, 2016.

58

Presentificar os corpos ausentes com um objeto cênico, em que convivem na textura da

pele, o bordado, os nós, numa conjuntura estética, na qual o mesmo fio que segura o estofo

deixa ver as pontas soltas e finaliza com nós palpáveis, parece-me uma boa metáfora desse

feminino que é luz, sombra, penumbra num só, em que as forças que dormitam na

personagem são desencadeadas pelo fio condutor da narrativa, fazendo emergir a moça, a

guerreira e anciã.

Imagem 5: Laboratório de criação realizado. Sítio Catolé, Afogados da Ingazeira-PE.

Objetos cênicos, confeccionados à mão. Luzia, Jovina, Catarina, Tereza, Mariquinha, Quitéria, Rosinha.

Fevereiro de 2018. Foto: arquivo pessoal da autora.

Percebo então que Lua, enquanto personagem, como esta imagem arquetípica

relacionada ao fluxo, inconstância, mas também ao retorno, aos ciclos, pode ser um recurso

poético de retorno a temas ligados à representação do feminino, desse feminino tríade, nas

suas contradições, na penumbra que revela, mas também esconde, na luz que ofusca e nas

sombras que desenterram os corpos ausentes, como no mito do corpo seco.

Quanta inventividade essa artesã que me permitiu com tão singela figura, ao

ponto de desencadear com um simples objeto memória, associações e poiesis.

2.2 Uma mestiça de gênio ruim e raça de branco, Lua

Cambará uma revolucionária politicamente incorreta

Acerca dos atravessamentos que compõem a personagem central do conto Lua

Cambará, proponho refletir sobre o contexto social da personagem, o qual traz

apontamentos importantes para pensar a situação da mulher mestiça nordestina, sertaneja

59

no final do século XIX.

As tensões que marcaram a construção e representação do feminino, nessa

conjuntura histórica, foram grandemente marcadas pela herança patriarcal machista.

Conforme irei demostrar, Lua Cambará transgride as normas do patriarcalismo, numa

narrativa que remonta a um sertão longínquo, escravocrata.

Ao emergir como transgressora revolucionária, a mestiça de “gênio ruim e raça

de branco”, acorda fantasmas ainda recentes. Sobre esse trecho do conto, pus-me a pensar o

que significaria a expressão “gênio ruim e raça de branco”. A ruindade seria herdada da

parte negra do seu sangue? Mas isso não explicaria o instinto sanguinário da personagem.

Lua Cambará é uma figura instável devido à mestiçagem do seu sangue?

Se não explica o instinto sanguinário, a descrição compartilha da opinião que

se tinha dos indivíduos mestiços no Brasil colônia.

A visão de letrados e autoridades coloniais sobre os mulatos, (...) girava em torno

de uma série de adjetivos e comportamentos identificados como atributos dos

mestiços: presunção, vileza, soberba, desonra, ilegitimidade e ociosidade”

(VIANNA, 2007, p.85).

Associado à herança do sangue materno, o “gênio ruim”, conforme incutido no

senso comum e “comprovado” pelos “cientistas sociais”, que consideravam na época o

negro como uma subespécie, parente dos primatas, tornava o mestiço um tipo de mula,

infértil, em que estavam depositadas as piores qualidades de ambos os lados, em que,

quanto maior o percentual de sangue negro, mais inferior o tipo humano.

Lua Cambará renega o sangue negro da ascendência materna, rompendo o

cordão umbilical com a mãe, representado pelo rosário que carregava no pescoço, rompe

assim com um símbolo religioso e cultural,2 para assumir o lado branco e se apossar da

herança.

Por ser mestiça, considerada filha ilegítima, teria a “mácula” atribuída ao

sangue mulato. Única herdeira do coronel Pedro Francelino do Cambará, Lua é odiada e

repudiada pelo tio e primo, que não reconhecem a bastarda, filha da negra Maria, como

2 Conforme Larissa Vianna (2007), nas irmandades de pardos, o rosário dos pretos foi durante muito tempo

uma prática religiosa comum dos negros e mestiços que se tornaram devotos de Nossa Senhora do Rosário,

conquistando por seu “bom comportamento” o direito de construir suas igrejas, uma vez que não podiam

entrar nas dos brancos, a organização dessas irmandades, na sociedade colonial, foi uma forma de se

organizar dentro dos parâmetros permitidos pelo catolicismo, ao passo que passaram a ser temidas e

controladas.

60

legítima herdeira. No momento da morte do coronel, quando este expressa que a reconhece

como herdeira, alertando-a sobre o tio e o sobrinho, pretenso herdeiro, filho varão que

deteria a legitimidade do direito à herança, estabelecem-se as condições para o drama se

instalar:

Meu irmão não te reconhece como minha herdeira. Ele vai querer cortar sua

cabeça, tão logo eu feche os olhos. És o filho homem que não tive. Prova a

coragem que tens defendendo o que é teu. Encara o lado do teu pai e renega o

sangue de tua mãe, do teu povo escravo que só faz te rebaixar. (BRITO, 2003,

p.148).

Nessa fala, o coronel dá a entender que Lua, na falta de um filho homem, seria

a única alternativa para que as posses não fossem repassadas para o irmão. Os homicídios

dos parentes, na narrativa, seriam a única alternativa de Lua Cambará, algo que

aparentemente não causa maiores problemas, visto que a personagem não possuía em seu

caráter a culpa católica, pois fora criada “sem crença”, sem a “benção do batismo”, que

considerando o contexto, em finais do século XIX, é de se pensar que benção mesmo era

não ter sido batizado.

Ao meu ver, a novidade, em Lua Cambará é que, além de romper com o ideal

da época e de trazer à tona questões relativas ao feminino, à mulher mestiça, contemplando

as contradições e ambiguidades no contexto do conto, traz para a posição de protagonista

essa personagem, se compararmos com outros contos regionalistas, nos quais o

protagonista é normalmente o sertanejo.

No conto, Lua precisa empunhar a faca, degolar seus parentes para usufruir de

um direito que, àquela época, já era concedido por motivos legais. Vibro pela valentia da

personagem, que o meu ver, de maneira simbólica ataca conceitos usados para justificar

princípios discriminatórios. Uma primeira leitura pode apontar para o reforço da

degenerescência da mestiça, por não considerar os laços consanguíneos que a ligam ao tio

e primo, mas proponho enxergar de outra maneira. Ela mata o que não lhe reconhece como

semelhante, como igual, ela mata a negação, este é um dos primeiros aspectos que me

fazem enxergar a personagem com traços esboçados de feminismo e revolução.

O drama que se constrói, a partir dessa situação, lembra-me expressões como

“matar um leão por dia”, as quais, não raro, são ouvidas na rua, no vocabulário das

populações onde a luta pela sobrevivência diária toma a forma de um monstro,

aproximando a personagem de pessoas reais e de um tempo presente. Transcrito da

61

tradição oral, do imaginário popular, transformado em conto regionalista, protagonizado

pela figura da mulher sertaneja, as passagens lembram histórias antigas, contadas pelos

mais velhos no sertão, que constroem na literatura uma personagem que sintetiza diversos

atravessamentos.

Além de mestiça, a personagem ainda é bastarda, concebida de um estupro. No

século XIX, os filhos mestiços podiam ser libertados pelos seus senhores e pais, mas a

grande maioria não era fruto de relacionamentos amorosos que resultaram em casamentos.

Em alguns casos, eram inseridos no testamento dos pais, quando estes não tinham filhos

naturais, ou, se tivessem, os bastardos não recebiam a mesma proporção que os legítimos.

Os filhos das escravas nasciam, tendo de lidar com sua situação humilhante de serem frutos

do acaso, do abuso sexual de seus senhores.

A orfandade da personagem Lua Cambará, na ficção de Ronaldo Correia Brito,

permite fazer um contraponto à realidade da época em que se passa o conto. Para uma

criança nessas condições, restava o “outro extremo social” das sinhazinhas,

o labor era a sina das meninas que nasciam pobres, fossem elas escravas, libertas,

“ingênuas” ou livres. A partir dos 4 ou 5 anos de idade, começavam a auxiliar nas

lidas domésticas, com os animais (galinhas, vacas, porcos) e no cuidado de

outras crianças. Nas cidades, também saíam a vender mercadorias junto dos

adultos, auxiliavam na lavagem de roupas das famílias de mais posses ou eram

postas para pedir esmolas. Algumas aprendiam ofícios considerados

especializados, tais como a tecelagem e a costura, os relativos aos partos e

benzeduras e as habilidades para produzir quitutes que seriam vendidos em

tabuleiros ou barraquinhas nas ruas. Nas propriedades agrícolas, a mão de obra

infantil feminina era utilizada, sobretudo, em atividades que exigiam habilidade

manual e menor força física. (AREND, 2012, pp.67-68).

Meninas pobres que nasciam de mães escravas no sertão, possivelmente,

trabalhariam nas plantações de algodão ou poderiam ser criadas como “enjeitadas”. A

situação de Lua Cambará não é a da sinhá, nem a da escrava, visto que o pai “reconhece a

encomenda, mas não manda batizar”, criando uma situação intermediária, semelhante à de

enjeitada, mas gozando de alguns poucos privilégios, permitindo que Lua fosse criada “sem

crença”, “como homem”, montando a cavalo, calçando perneira e gibão, tal qual um

vaqueiro, sem precisar pensar na confecção do enxoval, antes de completar 15 anos, como

costumeiramente acontecia com as filhas legítimas.

A narrativa remonta a uma ordem social em que a mulher era educada para

exercer as funções de dona de casa, esposa e mãe, num contexto em que, apesar de

62

localizado no século XIX, poderia muito bem falar de uma luta que se estende aos dias de

hoje. Quando renuncia aos papéis atribuídos ao feminino, tornando-se senhora soberana

sobre terras, animais e homens, mostra-se, segundo meu ponto de vista, uma transgressora

revolucionária, porque não assume os papéis atribuídos culturalmente pelo machismo à

mulher, retomando a uma ordem matriarcal, ajudando-me a refletir inclusive acerca das

tensões da construção e representação do feminino na minha própria condição de mestiça

brasileira.

Queria falar do feminino já há um tempo, mas não de um feminino qualquer,

não de um feminino resignado, submisso, obediente, não das funções atribuídas

socialmente e culturalmente pelo patriarcado machista. Isso não dava conta da

complexidade acerca da construção do gênero. Nesse entremeio, apareceu Lua, um nome

que empresto para falar das problemáticas levantadas por esse conto, o qual me leva a

ponderar que aproximações são possíveis entre mito, representação e contexto social na

criação de uma poética, procedimentos de tradução cênica e encenação, incluindo-se o

próprio conceito de feminino que desejo adotar na pesquisa. Um feminino que não é o

oposto de masculino, que não está limitado a questões biológicas, que não é politicamente

correto, que tem a sua força.

Lua Cambará ter sido criada “sem crença”, pagã, de certa forma, contribui para

o não adestramento da personagem ao modelo vigente de feminino, distanciando-a de uma

identificação com a Virgem Maria e a expressão da subserviência maternal de Maria em

suas atividades cotidianas. Começo a pensar, então, que a maldição que Lua Cambará

sofre, é simbólica, de uma mulher que encarna as qualidades associadas à natureza do

feminino, sob uma que escapa a essas denominações e mais poderia se aproximar das

cangaceiras do que da esposa e mãe devotadas. Essa passagem do conto permite observar

um confronto entre a ausência de modelos e a observância destes em que o autor nos

apresenta Irene em contraponto a Lua:

Irene moía o milho. Repetia um ofício milenar, aprendido de outra mulher como

ela, que também aprendera de outra, substituindo o grão a ser triturado, o milho

pelo trigo, celebrando o trabalho nos mesmos movimentos de mãos, braços e

tronco. Gestos arcaicos, que a tornavam igual a milhões, semente de um saber

que se tornava ciência pela repetição. As pedras atritadas salmodiavam uma

cantinela monótona, lembrando a dos bilros nas almofadas e a do fuso fiando o

algodão cru. A tarde sucedia a manhã e de noite não havia sol. Assim, sempre

tinha sido e assim sempre seria. O mundo se alimentava dessa ordem simples e a

vida de Irene entrava nessa ordem. Havia a casa para cuidar, redes para tecer e o

marido que chegava sem ser esperado. (BRITO, 2003, pp.155-156).

63

Na trama do conto, o autor vai criando situações que, por meio das imagens

narradas, vão suscitando uma tensão e disputa entre as duas, pelas atenções do vaqueiro

João Índio, até o ponto em que Lua, após confessar o “desaforo” na frente da vaqueirama

da fazenda, vê-se repudiada pelo vaqueiro, ardendo em rancores, manda matar Irene, como

se fosse uma cabra, já que ele não seria dela, que também não fosse da outra. Irene

aproveita-se do instante do seu próprio sacrifício para selar a maldição, ainda com o sangue

escorrendo de sua garganta, rogando “às forças do mundo, o mais terrível dos fins” para a

rival. Coisa que se cumpre mais a frente. A punição dos deuses vem no momento de

passagem para a morte, em meio as mais terríveis agonias, Lua Cambará se dá conta de seu

destino. No instante de sua morte, Irene condena a rival:

Eu rogo às forças do mundo que essa mulher tenha o mais terrível dos fins. Que

morra com as entranhas queimando e que a morte seja apenas o começo do seu

penar. Que nem o céu, nem a terra e nem o inferno a queiram. Que ela vague

para sempre. (BRITO, 2003, p.158).

Irene é a mulher cuja vida entra numa ordem simples, natural e monótona, é a

mulher que pila o milho, espera o marido, repetindo ofícios milenares. Lua Cambará é

aquela que não domina as sutilezas da sedução, confundindo o gesto de prender com o de

acariciar, para quem reter e subjugar é como amar. É engraçado como a noção de amor para

a personagem se parece com o usufruto que se fazia do corpo das mulheres no regime do

patriarcalismo medieval. O que é condenado nela, tornando-se alvo da maldição de Irene,

seria o comportamento “masculino” como manifestação “incorreta” no gênero feminino?

Mas afinal, o que é condenado em Lua Cambará? Uma mulher que fizesse as

atividades desempenhadas pela personagem, tais como andar a cavalo vestida de couro e

gibão, açoitando negros, derrubando bois pelo sertão, provavelmente, causaria

estranhamento entre os vaqueiros, cuja relação de codependência, com os donos do gado,

foi na literatura regionalista e nos diários de viagem, romantizada, ridicularizada e talvez

incompreendida em sua profundidade.

Ainda hoje no sertão de Pernambuco, no Alto Pajeú, as mulheres que se

dedicam à vaquejada como esporte encontram resistência pelos apreciadores do gênero e

pelos vaqueiros, que custam a admitir a habilidade das vaqueiras, diminuindo sua

importância como vaqueiras de esteira somente, embora a técnica para derrubar o boi não

seja tão distinta quando no mato, na caatinga, exigindo cuidados adicionais em relação à

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vegetação e obstáculos no caminho, mas que não impedem a utilização da técnica

apreendida nas esteiras. Felizmente, esse é um espaço em que, gradativamente, as mulheres

veem conquistando e ajudando a quebrar os estereótipos sobre as suas capacidades e

habilidades.

Penso que a trajetória de Lua Cambará representa qualidades de mestiça, que

porto e identifico com um tipo de brasileiro em que qualidades intensificadas pela negação

do patriarcado machista se materializam em transgressões de gênero. Emerge, nessa

personagem, uma transgressora revolucionária, por não aceitar as normas de um

patriarcado machista num sertão remoto, longínquo, atemporal, glocal, conforme Milton

Santos, aquilo que diz respeito a algo que tanto é local como global, está no mundo e para

ele se projeta. Como sertaneja, percebo que o sertão está dentro de mim como uma ânsia,

eu o carrego comigo onde quer que eu vá.

A bastarda, concebida de um estupro, mestiça de “gênio ruim e raça de branco”

traz à tona os atravessamentos que perpassam a manipulação violenta do feminino e a

própria construção do gênero. Incorreta e deslocada, a personagem acorda os fantasmas das

tensões em que se deu a mestiçagem no Brasil.

Pois Lua Cambará mata esse feminino resignado, que se conforma com as

atividades atribuídas desde os primórdios da civilização ocidental colonizada, qual o lugar

desse feminino anárquico? Audácia e irreverência fazem da personagem uma feminista

para a época e contexto em que se situa. Ronaldo Correia Brito cria uma personagem

atemporal que, apesar de localizada num contexto específico, faz ponte com o tempo

presente e com as lutas atuais, faz pensar na trajetória das mulheres nesse contexto que se

diferenciam dos padrões difundidos pela Igreja, Estado e instituições familiares, embutidas

no cotidiano da sociedade da época, e que, de tempos em tempos, ameaçam retornar,

assombrando a nós mulheres, artistas, que nadam contra a corrent

65

CAPÍTULO 3: DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

3.1 Procedimentos metodológicos

Imagem 6: Castelo Casa das Almas, Sítio das Almas, Rota do Cangaço, Triunfo. Divisa entre os estados de

Pernambuco e Paraíba. Fevereiro de 2018. Foto: arquivo pessoal da autora.3.1 Sangangá: Exercícios

iniciais

O conto Lua Cambará de Ronaldo Correia Brito vem permeando meu

imaginário desde 2009, eu sentia um forte desejo de fazê-lo se materializar na cena. No

entanto, a escolha em investigar caminhos de composição artística, a partir do conto, é

recente, o desejo precisou ir maturando dentro de mim até que, em 2015, pudesse dar início

às experimentações criativas.

O processo de construção da personagem Lua Cambará trouxe um

levantamento acerca das questões sobre a representação do feminino, na construção desse

feminino procuro explorar qualidades de energia e presença, através das matrizes da

cultura popular brasileira para a construção poética da cena de modo a dialogar com um

sertão mitológico.

Nesse tópico do trabalho, compartilho impressões a partir de três exercícios

iniciais: Laboratório, Oficina e Passeio, os quais culminaram na experimentação

audiovisual Sangangá e num esboço da dramaturgia cênica, baseado na escolha de

66

momentos chave, em que a perspectiva autoral busca traçar uma trajetória cíclica da

personagem. Ao escrever sobre o processo de construção da personagem, lanço-me nesse

abismo que é a escrita numa escrita sensível sobre a experimentação.

Ao privilegiar uma sensibilidade encarnada no corpo, direciono a escrita,

evitando a separação entre sujeito/objeto, atentando para aquilo que emerge das

experimentações, em que a pessoa da atriz caminha em direção à personagem, percorrendo

um trajeto, que não é linear, que transporta para a fricção desses dois polos na construção

cênica.

Reflito em rede, os três exercícios iniciais e como culminaram na

experimentação audiovisual Sangangá (primeiro exercício que realizei, de fato, na primeira

pessoa, como intérprete solista) na mesma medida em que vou tecendo a reflexão sobre

como Sangangá, despontaria no exercício cênico As nove luas de Lua Cambará, que é um

resultado triplo das experimentações criativas na pesquisa de campo, do registro

audiovisual dessas experimentações, da escrita de um texto dramatúrgico na cena.

Ofereço uma imagem ao leitor, que acredito, desenha o trajeto dessa reflexão:

faço uma trança com os três exercícios iniciais, o conjunto deles chamo Sangangá, os fios

soltos dessa trança irão se desdobrar novamente em três outros , que juntos formam o

resultado poético dessa criação.

Sangangá é síntese da dramaturgia cênica, mas também arrasta em sua

composição pistas dos exercícios criativos anteriores, desenvolvidos sobre três

perspectivas diferentes, constituindo modos de me aproximar da personagem, (como aluna

proponente de uma ação numa disciplina de mestrado, como facilitadora de oficina, e como

atriz-pesquisadora) até chegar à configuração atual.

Sangangá é um neologismo que emprego aqui aproveitando o contexto mestiço

da personagem, para realizar uma mestiçagem estética e poética de duas palavras do dialeto

nordestino, „Sangangu‟ e „Mangangá‟. Sangangu seria algo como confusão, desordem.

Mangangá é uma palavra que denomina um tipo de peixe marítimo cuja espinha dorsal

lembra a de um escorpião, mas apelida também um tipo de besouro, preto, roliço e voador.

Sangangá, portanto é um vento que passa deixando barulho.

Nessa experimentação, trabalhei com três motivações (motivo + ações)

retiradas do conto: o instante em que a assombração passa a vagar, o momento em que Lua

67

encomenda a morte de Irene e o grito da mãe que Lua Cambará arranca da garganta.

Imagens: 7, 8, 9, 10, 11, 12: Experimentação audiovisual Sangangá, Paviartes, sala AC 011 do Instituto de

Artes da Unicamp. Junho de 2017. Captação de imagens de Hariane Eva.

Aqui,

a metáfora tem um papel privilegiado, por integrar os sentidos à progressão

intelectual. Pode-se até dizer que ela se situa exatamente a meio caminho entre o

lugar ocupado pelo sentido na vida social e sua integração no ato de

conhecimento. (...) importa encontrar instrumentos adequados, dentre os quais se

conta a metáfora. (MAFFESOLI, 1998, pp.21-22).

Nesse sentido, a exploração dos elementos cênicos, tais como os objetos, a

maquiagem, o figurino, está relacionada a uma percepção de estados, sensações,

imaginação, durante a execução dos movimentos e na produção de imagens, na construção

de metáforas concretas no corpo e com o corpo, por meio das ações que vão se

descortinando. Esse exercício de observação ativa, em fluxo, difere de um modo cotidiano

68

de percepção, aproxima-se de uma meditação consciente que visa a entender de onde vêm

os impulsos, procurando no corpo a sua expressão.

Desenvolvi algumas ações com uma rede de pesca conhecida como tarrafa

pelos pescadores, principalmente levando em conta a utilização desse elemento como

objeto cênico e sonoro. Na extremidade aberta da tarrafa, há pedaços de chumbo que, ao

rolarem pelo chão de madeira, produzem um barulho que lembra correntes sendo arrastadas

ou as ondas do mar. Ao ser lançada com força, a referida rede também produz uma espécie

de zumbido em contato com o ar. Era um objeto que me dava possibilidades sonoras, de

movimento e de vestimenta. A tarrafa cabe como uma metáfora da trama que envolve a

personagem: do seu penar sem início, meio e fim, em que os nós da trama que a compõem

são imagens que remetem, para mim, aos pontos chave na narrativa.

O trajeto que me levou à experimentação com a tarrafa se iniciou com o

manuseio de um lençol de algodão de tear manual. Nessas ocasiões, eu cantava uma

música das Catadeiras de Mangaba de Sergipe, com versos em quadrinhas, que

terminavam sempre com “Adeus amor”, pensando na recusa do personagem João Índio ao

amor de Lua, experimentava movimentos de forrar e desforrar a cama, de lançar, puxar,

cobrir-me, descobrir-me. Os movimentos de lançar e puxar fizeram-me ter vontade de

possuir uma rede de pesca. A assombração aparece sendo carregada na rede, era um

trabalho solo, não ia ter ninguém para me carregar. Manusear a rede de pesca parecia

viável, com ela se pode carregar, arrastar, lançar e puxar, achei que poderia ser interessante

investigar esse objeto.

Procurei aprender a lançar a rede como os pescadores fazem. Ela abre no ar,

como uma teia de aranha, antes de cair no chão. Esse jeito de lançar, revelou-se no meu

fazer uma técnica corporal muito sofisticada, apesar de considerar o movimento

cenicamente interessante, a minha execução falha desse tipo de lançamento me levou a

outros caminhos.

O jeito que achei no meu corpo, de fazer esse tipo de lançamento, foi ficar

com a base aberta, com um pé na frente do outro, os joelhos semiflexionados, enrolar uma

parte da rede da mão ao cotovelo esquerdo, abri-la com a mão direita, por baixo, pôr uma

parte dela por cima do ombro, fazer uma torção de tronco para a esquerda e lançar para a

direita, com o auxílio da mão direita para abrir a rede. De cada dez lançamentos que eu

fazia, em um ou dois a rede caia aberta.

69

Esse movimento de lançar a rede, criou um tipo de partitura corporal que

depois apareceu noutros momentos. Também experimentava com a rede, entrar nela, girar

até ela se abrir em teia, lançá-la e puxá-la, em diversas direções.

A maquiagem composta de duas cores, o preto e o branco, cores que habitam a

personagem como forças contrárias e em atrito constante. A boca, de onde Lua arranca o

grito que era da mãe, é negra, os olhos também, mas a testa e o queixo são brancos, altivos. A

inspiração para a maquiagem veio do conto e do clip de Ney Matogrosso, Sangue Latino,

exibido pela TV Cultura, numa reapresentação do Programa Siempre em Domingos, da

antiga TV Tupi, nessa música, há versos como os seguintes que me inspiraram muito para

essa experimentação em vídeo:

(...) Rompi tratados /Traí os ritos/ Quebrei a lança /Lancei-me no espaço/ Um

grito, um desabafo/ E o que me importa/ É não estar vencido/ Minha vida, meus

mortos/ Meus caminhos tortos/ Meu Sangue Latino/ Minh'alma cativa.

Por mais que a personagem seja livre, tenha herdado poder sobre terras,

animais e homens, arrasta a sua sina de alma penada. É cativa de seu destino, da sua sina

de mestiça, mesmo subvertendo as regras do patriarcado, a heroína politicamente incorreta

permanece a vagar em caminhos.

Em relação ao conto, esta contradição aparece assim descrita: “Do sangue

branco herdou a vontade de poder, a desobediência às leis de Deus. Da mãe, recebeu o

rosário que carregava no pescoço. Tentava negar seu sangue negro, mas a cor não

deixava”. (BRITO, 2003, p.147).

A ambiguidade e a contradição da personagem está inscrita na pele de Lua,

assim como a pessoa da atriz, em que a cor da pele anula a presença em determinados

lugares brancos ou negros. O híbrido, o mestiço é então um “problema epistemológico”,

como diz Milton Santos, é aquele que não é nem uma coisa nem outra, embora seja ambas,

como se permanecesse suspenso, o seu posicionamento no mundo depende da categoria

com a qual se identifica, enquanto ainda não é possível aquela em que ele se acha, a de

ambíguo, contraditório, limítrofe, sem raça definida.

As cores da maquiagem formam uma máscara que revela a identidade caótica

da personagem. As linhas que delimitam os territórios negro e branco no rosto, vão, aos

poucos, borrando suas fronteiras, então se constrói o entre, como uma fenda que a lágrima

abre na máscara e dá espaço para surgir a verdadeira identidade, esta que é mestiça,

70

borrada.

O corpo manchado de lama, carrega a mácula do seu nascimento, uma

concepção de um estupro e a decisão em negar o sangue materno, aprisiona a personagem

numa promessa feita no leito de morte do pai, essa mancha a acompanha ao longo da sua

trajetória. Ainda pequena, mama o sangue nos peitos da mãe morta, mais tarde, renega esse

mesmo sangue escravo do qual se alimentou, ao negar a mãe, nega toda a possibilidade de

reconciliação com o afeto. Expostas, na pele, no rosto, no corpo seminu suas mazelas.

Ao encomendar a morte de Irene, “como se faz com as cabras em dia de

sábado”, a sentença de uma, passa a ser a da outra. Não é Irene simplesmente que a

personagem deseja matar, mas um tipo de construção do feminino de que não pode

suportar a existência, como se matasse em si a própria sombra. Em Sangangá, executei a

ação de cortar a mão com uma adaga, aproximando o corte da chama da vela, enquanto

pronunciava a frase dita pela personagem ao capataz. Essa ação que aparece no conto

descrita assim: “queimou a palma da mão aberta, como quem pronuncia uma sentença”,

não tinha relação com a autoflagelação por meio do corte no vinco da mão, porém nesse

exercício, associo o corte da adaga aos espinhos que Lua deixa rasgar suas carnes na

corrida desembestada na caatinga.

Após a experimentação, retomei a leitura do conto na passagem da morte de

Irene, me dei conta de que Lua Cambará sofre a maldição lançada por ela quase

simultaneamente à sua morte, passando a repetir a sentença infinitas vezes, enquanto corre

na caatinga, deixando os espinhos rasgarem seu corpo, abrindo cortes que sangravam sem

cessar. Em minha perspectiva, nesse gesto de cortar-se, a personagem revive a culpa da

morte que encomenda para a outra, como se Irene fosse o duplo de Lua sendo, portanto,

impossível matar um aspecto do feminino em si, sem que os outros não sintam as

consequências da quebra, principalmente porque eu compreendo a personagem numa

dimensão tríplice. Na dualidade, é que eu percebo residir a verdadeira maldição de Lua, a

opção de um aspecto, em detrimento de outros, cria ocasião para se instalar o desequilíbrio

na personagem:

O capataz nunca a tinha visto de olhos baixos, até o dia em que pronunciou a

sentença fatal. Também não viu quando ela precipitou-se correndo, no

emaranhado de espinhos e galhos secos da caatinga, urrando feito animal ferido,

os cabelos enganchando-se nas unhas de gato e gitiranas, perdendo a sanidade e a

beleza no assomo de loucura. (...) – Com a mesma compaixão com que sangro

uma cabra, eu te sangro – repetia Lua, (...) já perdera a conta das vezes que

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repetia a sentença que também era sua. Não tinha como escapar. (...) Parecia uma

eternidade aquela corrida. Os espinhos da mata cravavam-se no corpo opulento de

Lua, abrindo feridas que não paravam de sangrar. (BRITO, 2003, pp.155- 158).

Ao refletir sobre as escolhas poéticas, nesse exercício criativo, em que o

registro audiovisual é um recorte da experiência, percebo influências das pistas que

despontaram nos exercícios anteriores. Até chegar a uma perspectiva autoral audiovisual,

passei por três momentos decisivos, Laboratório, Oficina e Passeio.

O primeiro exercício se deu na disciplina Laboratório de Criação, oferecida no

segundo semestre de 2015, no programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, na

Unicamp, em que tive a oportunidade de desenvolver uma aproximação com a personagem

Lua Cambará, como aluna proponente de uma ação, com o auxílio dos colegas da

disciplina para serem os intérpretes, em que a partir das indicações propostas ao conjunto

de alunos, cheguei a alguns apontamentos iniciais que passaram a fazer parte das

investigações criativas.

O segundo exercício aconteceu numa oficina que ministrei de 21 a 23 de

setembro de 2016, no Festival de Artes do Instituto de Artes, na Universidade Estadual de

Campinas, intitulada Laboratório de criação: composição de partituras a partir do conto

Lua Cambará e dos arquétipos de Oxum, Yansã e Nanã. Como facilitadora da oficina,

observei e testei os materiais selecionados para o primeiro exercício (fragmentos extraídos

do conto e imagens relacionadas aos arquétipos da moça, guerreira e anciã), acrescidos de

fotografias de idosas e do poema Mãe Preta, de Patativa do Assaré.

Nesse exercício, precisei criar um ambiente de confiança e de participação para

as pessoas que vieram fizeram a oficina se soltarem mais, criando livremente a partir

desses materiais. Nos primeiros dias, senti que o formato de oficina fez com que ficassem

esperando repetir alguma coreografia, visto que a maioria era de alunas da dança, ao invés de

criarem mais espontaneamente, agregando a voz ao movimento, por exemplo, ou

desconstruindo passos aprendidos anteriormente. Busquei quebrar essa expectativa, para

que não houvesse apenas uma imitação de movimentos, para isso, direcionei improvisações

criativas, a partir dos materiais, ora participando junto da investigação, ora observando

ativamente.

O terceiro exercício, por sua vez, foi no dia 18 de outubro de 2016, por volta

das 18h, na lua cheia, em que munida pelos exercícios anteriores, parti para uma

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experimentação como atriz pesquisadora juntamente com pesquisadores do grupo de

pesquisa Pindorama3, propus um passeio à Praça da Paz, na Unicamp, a fim de investigar a

primeira imagem do conto Lua Cambará, em que o cortejo de vultos passa a vagar

carregando a morta na rede.

Nos dois primeiros exercícios, trabalhei com fragmentos do conto e imagens

relacionadas aos arquétipos de Oxum, Yansã e Nanã com a intenção de que esses estímulos

pudessem gerar ignição criativa de materiais cênicos. No Laboratório, dei algumas

indicações de movimento e de vetores no espaço, usando a classificação dos fatores de

movimento do sistema Laban/Bartenieff, os quais relaciono com as danças desses orixás.

Já no segundo exercício, na Oficina que direcionei como facilitadora, busquei que a

identificação com os arquétipos fosse mais orgânica.

Nessa ocasião, o modo como inseri as imagens quebrou o andamento do

trabalho e fez com que os participantes da Oficina entrassem num fluxo mental,

bloqueando impulsos espontâneos no corpo. Isso se repetiu outras vezes, nos laboratórios

em duplas que realizei, após os três primeiros exercícios. Então, passei a questionar a

utilização de imagens como estímulo para a composição. Um problema que apareceu foi de

que maneira inserir imagens sem ficar presa à forma, mas dançar a sua essência, fazendo

com que possa acordar respostas motoras, imagéticas e ações, trazendo para o corpo uma

imaginação ativa que seja capaz de acionar tanto o trabalho de criação exterior quanto

interior da personagem, em que aquelas imagens possam ser ignição criativa sem limitar as

possibilidades de investigação.

A fim de responder a esse questionamento, de como trabalhar em fluxo com as

imagens nos laboratórios individuais, criei uma ambiência com algumas imagens

disponíveis na internet, as quais imprimi e dispus na sala de ensaio, em formato circular,

em que me coloquei dentro da roda com as figuras em torno, procurava gingar/jogar com

cada uma, colocando-me permeável a esses estímulos, tanto aqueles que convidam a

movimentos mais introspectivos, quanto a uma agilidade e expansão ou a um peso e

densidade mais intensos. Atualmente, não uso mais as imagens, elas encontram-se agora

3 O grupo nasceu e faz parte da Universidade Estadual de Campinas desde 2010. É formado por

pesquisadoras e pesquisadores do teatro, da dança e da performance, vinculados ou oriundos de pesquisas de

iniciação científica, mestrado e doutorado dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Artes da Cena

da UNICAMP. O escopo de pesquisas do grupo vai desde a espetacularidade popular brasileira, até à

produção teatral na contemporaneidade. O Pindorama tem se tornado um grupo cada vez mais afeito aos

diálogos entre linguagens artísticas, tendo flertado com o cinema, a música e as artes visuais performativas.

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diluídas nas ações da personagem.

Nos três dias de Oficina, optei por iniciar e finalizar os trabalhos com cantos em

roda, dentre eles, o Toré, Cocos de Pernambuco, Afoxés. Nessa ocasião, participava

ativamente na roda dos inícios e fechamentos, não só direcionando, mas procurando unir

vozes e corpos como um só corpo instrumento, no sentido de que a voz pudesse ser um

instrumento musical com o corpo, de modo a expandir a percepção sobre o espaço, mas

também construir juntos, sensações de acolhimento, de silêncios e vibração.

A partir dessa Oficina, uma metodologia de trabalho foi se construindo nos

laboratórios em sala de ensaio, onde cantos de tradição coletivos criam uma organização e

percepção espacial diferente, cantá-los faz parte da poética que estou criando e do meu

guarnecer. Adotei como marcador, para iniciar o trabalho, a prática de cantar alguns Torés

da etnia Kapinawá, Cantos Rojão da etnia Kariri Xocó, Ladainhas para o Divino Espírito

Santo e para Nossa Senhora da Guia, que aprendi com as Caixeiras das Nascentes,

enquanto vou tirando da mala, os objetos, os figurinos, aprontando o espaço. O que esses

cantos têm em comum é que são cantados em situação de convívio e no coletivo, em rodas,

ou batalhões.

É quando peço minha licença, toco meu tambor nas quatro direções, saudando

a Rosa dos Ventos, o espaço, as outras dimensões, as personagens. Digo para mim mesma,

estou aqui, para as personagens vocês estão aí, olá, como vão? Vamos dançar? Curioso,

cantar canções coletivas e criar essa sensação de que não jogo sozinha, trouxe-me mais

concentração no trabalho, presença, no sentido de conscientizar-me do estou aqui e agora

com vocês. Mesmo que se trate de um trabalho solo, pensar nas personagens como colegas

de trabalho, que eu saúdo com reverência, com respeito, por tudo que me fazem sentir e

viver, como “encantados” que vêm do astral, do invisível para estar ali comigo naquele

momento, fez-me ter também respeito pelo trabalho, pelo combinado, aquietando o vazio,

a vontade de ir embora, de abandonar o que estava fazendo, enfim a todas as formas de

evasão que experimentei de início.

Pensar nas personagens como “encantados”, também me fez conectar com

memórias vividas e narradas dos meus ancestrais na sua ligação com as entidades que

baixam nos terreiros, como Boiadeiro (Gonçalo-Marcolino/ vô Balbino), Preta-velha

(Cacurucaia Maria/ avós), Orixá (Yansã de Balé, Oxum Apará, Nanã Bruku) e Pomba-

74

Gira (Sete-Saia, Maria Mulambo, Maria Navalha), num tensionamento entre memória,

imaginação, observação, mito, criação artística, na elaboração de uma “colagem de

espelhos”.

Cantar esses cantos foi algo que despontou no primeiro exercício, no

Laboratório, dei-me conta de que Lua Cambará podia cantar, ao direcionar e assistir o

trabalho dos colegas na disciplina ofertada pelo curso do mestrado, em que propus uma

ação inicial de investigação e aproximação com a personagem. Então, a partir daí, passei a

investigar cantos da cultura popular brasileira. Experimentei cantar nos laboratórios

individuais cantos de invocação da lua no Santo Daime, das Catadeiras de Mangaba de

Sergipe, aboios do Boi do Maranhão, do Cavalo Marinho de Bayeux, de vaqueiros do

Sertão pernambucano, Incelências e cantos em Yorubá de matriz afro brasileira. Dessas

experimentações, alguns cantos se acomodaram no meu guarnecer, outros migraram

também para a cena, ao passo que agora é como se o processo não fizesse sentido sem eles.

Como parte da metodologia de trabalho, procurei desenvolver as habilidades de

cantar, tocar, dançar, concomitantemente. Inspiro-me na lógica da cultura popular na qual

essas habilidades são integradas no fazer artístico, em contraponto a um jeito de fazer

aprendido na academia, no curso de graduação em teatro, em que as aulas de corpo e voz,

que tive em minha formação, eram separadas. Compreendo essa didática, que separa, como

geradora de um condicionamento no estilo de montagem em série, em que cada peça é feita

em separado na construção de um ator máquina.

Mesmo procedimentos de ensaios em grupos de teatro aderem a uma

lógica semelhante, na qual o trabalho se desenvolve em etapas, alonga-se o corpo,

aquece-se o corpo, aquece-se a voz, para então relacionar-se com o espaço, com as

pessoas, entrar em trabalho por meio de improvisações, depois, fixando o material,

esse é um modus operandi bem comum no teatro. Felizmente, não é o único, podemos

encontrar diversas abordagens. Apesar da tentativa, pude verificar o quanto eu mesma

estou condicionada a esse modo operacional, nem sei se consegui escapar daquilo que

eu mesma critico aqui, estou nessa busca, pode ser que leve ainda mais tempo para me

desautomatizar.

Enquanto artista da cena, vejo-me diante de uma grande encruzilhada:

como posso amalgamar ambos os saberes, popular e acadêmico, sem segmentar corpo

e voz no fazer artístico? É por isso que procuro desenvolver a minha maneira de

desconstruir essa lógica através da Filosofia do Guarnecer cantando, dançando,

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tocando, brincando em vivências práticas em loco com a cultura popular, nutrindo-me,

nessas ocasiões, para desenvolver tais habilidades e, quem sabe, poder criar um jeito

outro de lidar com o trabalho de criação artística.

Quanto ao espaço cênico, no Laboratório realizado na disciplina da pós, em uma

das improvisações feita pelas colegas da turma, ficaram pistas que despontavam para a

possibilidade de utilização cênica de lugares cotidianos, numa poética de criação com o

espaço, fazendo emergir de espaços cotidianos uma teatralidade que passava despercebida.

O que mais tarde me encorajou a realizar o Passeio na Praça da Paz, assim como me fez

aventurar-se em espaços que não eram próprios para ensaiar, como as quadras da FEF

(Faculdade de Educação Física da Unicamp). A falta de locais disponíveis somada à

vontade de fazer e o desafio de concentração foram exercícios valiosos que me

impulsionaram a mais tarde realizar as experimentações na pesquisa de campo no Sertão.

Nesse período, não havia salas disponíveis no Barracão das cênicas para

trabalhar, isso me forçou a sair bastante da minha zona de conforto. Os espaços em que

passei a ensaiar na Unicamp, exigiam de mim um estado de atenção muito grande, tanto

nas quadras abandonadas da FEF, de segunda e terça, como no palquinho do Centro de

Convenções da Unicamp, às quartas feiras, sempre havia gente jogando bola no entorno.

Bolas e funcionários atravessando o espaço da cena, sem pedir licença, nem desculpa.

Certa vez na FEF, ensaiava respondendo às provocações do diretor paraibano Elias de

Lima, sob o chão de cimento grosso, quando a quentura do chão tirou a pele dos pés e das

costas das minhas mãos. Às vezes, para variar o chão, ensaiávamos no bosque, ao lado das

quadras esportivas, sobre a terra, que apesar do desnível, era mais agradável ao contato.

O desrespeito das pessoas que atravessam a cena em busca das bolas perdidas,

de início me aborrecia, pensei em agir com a mesma grosseria, mas foi incrível como um

pouco de humor resolveu metade das distrações, no Centro de Convenções, pelo menos,

sem precisar de maiores aborrecimentos. A insistência em ensaiar nesse local me fez lidar

com os funcionários que atravessavam o espaço com um jogo: se eles atravessassem a cena

iam ter que dançar comigo, a música que eu estivesse dançando na hora, resultado, eles

começaram a evitar passar pelo meio, começaram a passar pelas bordas.

Colho dessa experiência a possibilidade de ensaiar em qualquer espaço. É claro

que num local preparado para a cena, o trabalho tem um tipo de qualidade, mas as nuances

que outros espaços acrescentam como “treinamento de presença”, digamos assim, são

76

bastante válidas para o meu percurso, na falta de um espaço ideal, eu não deixei de

produzir, eu não deixei de ensaiar, eu não deixei de treinar, de criar sentidos. Isso me

fortaleceu na pessoa de atriz, porque me permitiu abrir para outras possibilidades, como as

dimensões ampliadas de verticalidade e horizontalidade, que podem trazer-me a sensação

de ser engolida pelo espaço, o que me força a ampliar a presença física.

Em uma dessas ocasiões, em que estive no bosque, por exemplo, a camada

anciã da personagem começou a surgir, creio que em decorrência de uma forte relação com

o espaço, de estar com pés sobre a terra, pisando raízes de árvores, até que, de um ponto da

Jurema, começou um pequeno esboço da Cacurucaia Maria, sob o olhar atento e as

provocações pertinentes de Elias de Lima.

Essa experiência com outros espaços, para além da sala de ensaio, deu-me

como possibilidade pontos de vista distintos, primeiramente como aluna proponente da

ação, depois como atriz no Passeio, em que a ação com o espaço sai dos corredores do

Instituto de Artes, para uma praça pública próxima aos departamentos de química, biologia

e engenharia de alimentos, porém ainda dentro dos contornos da Universidade.

Compreendo esse avanço territorial ultrapassou que Instituto de Artes como uma

necessidade de obter outros olhares, diferentes daqueles já habituados com intervenções

artísticas, além disso têm coisas desse trabalho que não caberiam na sala de ensaio.

Na intenção de vivenciar outras perspectivas sobre o trabalho é que se deu o

Passeio. A praça como lugar de passagem, onde eu poderia experimentar um estado de

transeunte em que Lua também passa a vagar, juntamente com os colegas do Pindorama,

caminhando por caminhos de terra, fazendo trajetos cíclicos. Ao Passeio, seguiram-se

outras experiências de contato com esse estado de errância do vagar.

Ainda sobre o primeiro exercício, a improvisação de um dos grupos, realizada

na sala de aula, despontou para o grito mudo em Sangangá, essa é uma ação que surgiu

também a partir de imagens trabalhadas no Laboratório e que tornaram nessa

experimentação como inspiração poética daquilo que é inominável. O grito que Lua arranca

da garganta era o grito da mãe “extraído de suas entranhas”, dentre as diversas

possibilidades acordadas por essa motivação retirada do conto, uma delas é a expressão do

grito mudo. Este, deu lugar a uma metáfora que escrevi com a ação de tirar da boca fios

vermelhos, fios que são usados normalmente para tecer ou costurar. Essa ação, para mim,

provoca uma associação com aquilo que a gente cala, gerações a fio, os segredos, os tabus,

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os silêncios que são rompidos simbolicamente com a metáfora da ação.

Tornei a investigar essa ação nas experimentações que fiz no Castelo da Casa

das Almas, antes em Sangangá desenhada apenas com o grito mudo, ao que foi acrescido o

fio vermelho. Deixei-me guiar pela intuição, sentia que era algo que, apesar de não

entender, não podia simplesmente descartar, pois nem tudo passa pelo crivo da razão

quando estamos em processo criativo, há coisas que só depois vão assentando. Dessa

forma, persisti nessa ação no exercício As nove luas de Lua Cambará.

Como provocações para o trabalho, na Oficina, vieram conversas e reflexões

que mudaram o modo como eu enxergava a pesquisa sobre a criação da personagem Lua

Cambará. As dificuldades por parte dos participantes em adentrar nos exercícios que

visavam à identificação com as imagens arquetípicas da moça e uma preferência unânime

em vivenciar o arquétipo da guerreira, fizeram-me pensar sobre qual representação do

feminino estava tratando e sobre os atravessamentos que perpassam a construção do

gênero.

Os retornos problematizaram questões acerca da construção do gênero nos

corpos, nessa construção, foi quase unânime, nas falas, a identificação da necessidade de

exclusão de alguns aspectos como proteção pessoal, aqueles como a fragilidade,

sensibilidade, feminilidade, vistos de forma pejorativa. Acredito que o mais danoso seria a

construção de um feminino unilateral, em que os aspectos negados criam outras

dicotomias, escanteando outras inteligências nas quais atuam as forças sensíveis, por assim

dizer.

A discussão acalorada, ao final da oficina, convidou à possibilidade de

trabalhar com a personagem de Lua Cambará que, na minha leitura, recupera imagens

arquetípicas das mitologias matriarcais, em que o elemento cósmico da lua evoca um

aspecto tríplice que une sombra, luz e penumbra, uma vingadora sanguinária, uma

revolucionária para o contexto do conto, uma assombração que tanto provoca medo como

desejo de entrega, sem criar dualidades na escolha desse ponto de vista. É o que tentei

fazer nas experimentações em primeira pessoa como atriz, no Passeio, em Sangangá e nas

nove luas de Lua Cambará: unir os aspectos aparentemente opostos, mas complementares

na personagem através dos signos cênicos.

Ao lidar com o material extraído do conto nas experiências com o Laboratório

e Oficina, outras perspectivas de cena colaboraram para desconstruir imagens prévias, à

78

medida em que pude vislumbrar outros modos de compor, diferentes daqueles que

imaginava quando propus os exercícios. Puderam ser experimentadas partituras vocais,

sonoras e de movimento, apontando uma metodologia de trabalho e abordagem do conto.

A partir dessas experiências, realizei trocas com outros artistas, em que eu direcionei as

investigações como proponente e trocas em que fui direcionada como atriz, laboratórios

individuais, laboratórios com testemunhas, nos quais, munida e avivada pelo coletivo,

tornei ao material aberta para investigar ações de modo a criar numa via de mão dupla

entre coletivo e a singularidade.

Lidar com a dificuldade de se auto dirigir foi um caminho áspero e que apontou

numa primeira instância a três soluções mais imediatas: Convidar uma atriz para ser a

intérprete; convidar alguém para dirigir minha atuação; deter-me na escrita dramatúrgica

da peça, deixando para a posteridade a montagem. Inicialmente, a pesquisa trata das

problemáticas que envolvem a criação de personagem enquanto trabalho de atriz, aliada à

criação de uma dramaturgia, a partir de um conto da oralidade. Estar em primeira pessoa

direcionando o trabalho e executando, foi uma batalha, ao que eu optei por uma resolução

plausível, chamando provocadores de laboratórios até o momento em que encontrei um fio

pelo qual pudesse seguir.

Tais provocadores leram o conto e propuseram exercícios, a partir de suas

impressões sobre o que julgavam fundamental desenvolver como atriz, para que pudesse

encarnar as qualidades de Lua. Trabalhei com propostas diferentes que trouxeram pontos

de vista bem distintos, alguns bastante enriquecedores, outras proposições ao contrário, não

convergiam com a poética que venho buscando, nem por isso, diminuo a experiência, pois

também por meio desses encontros, entendendo o que não era o trabalho é que fui

encontrando pistas do que poderia ser.

Dentre as dificuldades de dirigir o próprio trabalho, a primeira, nesse sentido,

foi no Passeio, em que coordenei os integrantes do grupo Pindorama. Essa ação envolveu

alguns preparos, mas não realizamos ensaios para o acontecimento, a não ser com o músico,

pois havia me organizado para cantar algumas canções que vinham fazendo parte do meu

imaginário: os Cantos da lua, de Cristina Tati, (em que trabalhei com duas canções de

invocação da lua no Santo Daime) Carcará, conforme cantado por Sandra Belê e Senhora

Santana, das Lavadeiras de Almenara. O preparo também se deu no sentido de

providenciar os elementos cênicos da ação, a rede de varanda, flores, velas, espadas de São

Jorge, incensos, água de cheiro. Queria que o cortejo tivesse cheiro, deixasse rastros, tivesse

79

luz própria, itinerante.

A ação que propus ao grupo era simples, investigar a primeira imagem que

aparece no conto: o cortejo de vultos que passa a vagar, carregando a morta na rede. Meus

colegas transportavam a rede transpassada por um cabo de madeira de uma ponta a outra,

enquanto isso, eu deixava atrás de nós um caminho de flores brancas, como se Lua

Cambará passasse a vagar, debulhando sua própria coroa fúnebre. Para providenciar o

corpo, nós colocamos todos os nossos pertences enrolados num edredom e amarramos a

rede com uma corda de sisal, parecia um corpo que seguia para o enterro e sobre o qual

pretendia-se precaver. Vestidos de branco, caminhamos aproximadamente três horas,

lentamente, por caminhos de terra à espera da lua, o seu surgimento no céu marcaria o

momento de iniciar os cantos.

A rede foi um tema que retornou em Sangangá, não mais conforme descrito no

conto, e sim como metáfora no figurino e objeto cênico, posteriormente, essa metáfora

seria o próprio figurino de Lua. O tema da rede, como esse elemento que carrega, que

arrasta, que transporta, retorna não mais fora do corpo da atriz ou como elemento

sobreposto, mas vestindo-o, dessa forma, o invólucro que envolve o corpo da assombração,

ao invés de acontecer numa relação passiva como no conto, sendo carregada, é ele quem

sai carregando galhos, folhas, terra pelos caminhos, traçando trajetos.

No Passeio, a reação das pessoas na praça parecia distante do acontecimento

como se fosse algo rotineiro, apesar de estarmos afastados do Instituto de Artes, com

exceção de uma senhora e três rapazes, que se aproximaram tentando entender o que estava

acontecendo. Os rapazes, por sua vez, resolveram participar da ação junto conosco e nos

acompanharam por todo o percurso. Parece que além de sair do Instituto de Artes é preciso

sair dos portões da universidade.

No Passeio, comecei a entender por que, canções vêm habitar meu imaginário

quando procuro me aproximar da personagem. No intuito de cumprir o roteiro da ação, que

era cantar, assim que a lua se mostrasse no horizonte, acender as velas e partir deixando os

rastros das flores no espaço, vi-me diante de algo que poderia não ter fim, perdi a noção do

tempo e nossa caminhada durou mais do que o previsto. Lua Cambará canta, já que a terra,

o céu e o inferno não quiseram lhe aceitar, ela passa a vagar sem fim, então ela canta para a

lua, para se embalar, para buscar conforto ao seu destino de alma penada a vagar.

É importante situar que apesar desta pesquisa centrar-se na criação de

personagem em que eu atuei como atriz, não se trata de um projeto endógeno e

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autossuficiente. Cada pessoa que tem contribuído para que a pesquisa aconteça é muito

importante. Mãos que talvez não apareçam no produto final, mas que têm deixado sua

marca, suas provocações, têm me feito refletir sobre as experimentações durante esse

processo de criação.

81

Imagens 13, 14, 15, 16, 17, 18: Passeio. Pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa Pindorama:

Alessandro Oliveira, Eduardo Cecconello, Ysmaille Ferreira, Inácio Azevedo e passantes Lauro Mota,

Hugo Kojimiura e Victor Santos. Praça da paz, Unicamp. 18 de outubro de 2016. Fotos de Letizia Nicoli.

Uso as imagens aqui, num sentido de foto-grafias, no sentido de escritura poética

semelhante às pinturas rupestres ou aos hieróglifos, cujos significados vão além da forma,

como uma linguagem, dotada de signos e não somente como um recorte de uma partitura

de movimento. Elas são o registro da experiência, mas também escritas no tempo, rastros

do processo o qual vai chegando a um ponto de acomodação. Apresento a seguir uma

tabela que sintetiza os exercícios até aqui rememorados, salientando quais pistas tirei de

cada um deles para a criação:

82

TABELA 1- EXERCÍCIOS DE CRIAÇÃO

Os encontros, dados nos três primeiros exercícios, culminaram na criação da

experimentação audiovisual Sangangá em que contei com colaboradores para a realização

e espectadores convidados para a sua „estreia‟ virtual. O público que assistiu ao trabalho

foi composto de alguns colegas do programa de pós-graduação e do grupo de pesquisa

Pindorama, seus apontamentos fizeram-me repensar o trabalho numa regravação, de modo

a me aprofundar nas ações e na utilização dos objetos, em repensar a maquiagem,

encontrar uma edição que favorecesse a linguagem.

Com a experimentação que fiz em Sangangá, ficou mais claro sobre quais

Data Exercício Materiais Contexto Função Metodologia Resultados

11/11/15

Laboratório

de Criação.

Imagens, fragmentos

do conto, vetores.

Alunos da pós-

graduação. Aluna proponente

de uma ação na

disciplina

Indicação de

Vetores (Laban)

Improvisação

Lua canta

Laboratórios

coletivos e

individuais

21- 23/

09/16

Oficina Feia.

Fragmentos do conto,

Poema, Imagens,

fotografias, canções e

danças

Alunos da

Unicamp dos

cursos de dança,

música, Pós e

amadores.

Facilitadora da

oficina.

Roda, cantar e

dançar junto,

improvisação

individual e em

grupo.

A roda não tem

início, meio e fim.

Buscar organicidade

da roda.

Como

trabalhar com

imagens?

18/10/16

Passeio

1ª aparição do cortejo

de vultos no conto

Atriz em

colaboração com

membros do

Pindorama

Atriz

pesquisadora do

Pindorama

Passeio –

performance

Ação com duração no

tempo

22/06/17

Aula

performance

Imagens, fotografias,

fragmentos do conto,

cantos e danças

populares

Alunos da Pós-

graduação

Aluna proponente

de uma ação na

disciplina

Roda, cantar e

dançar junto,

improvisação em

grupos.

Instauração de uma

vivência

06/07/17

Sangangá

Imagem da Santa de

Los Muertos,

fragmentos do conto,

2 objetos cênicos,

aboio do Boi do

Maranhão.

Atriz (1ª vez

encarando a

personagem na1ª

pessoa, solista)

Atriz

Improvisação

sobre os materiais.

Lua se corta.

Proposição de vídeo

arte.

83

fragmentos do conto eu gostaria de me debruçar na criação, principalmente o que faltava

contemplar. Nesse sentido, tracei uma mandala que marca os momentos que considerei

importantes construir na cena, a partir desses primeiros esboços. A mandala também

sintetizava numa imagem, a minha sensação sobre a narrativa do conto, cíclica, em rede,

foi por meio dessa visualização que posteriormente criei um roteiro textual de ações e um

esboço do texto da personagem.

Marquei os momentos mais relevantes da narrativa como se fossem fases da

lua, em que as 9 luas de Lua Cambará, não constituem uma trajetória retilínea, mas

circular, onde um momento contém a semente do outro, sem que precisem estar

encadeados. Após a realização de Sangangá, esse gráfico serviu como ponto de orientação

para a criação das cenas.

A ideia quando desenhei a mandala das 9 luas, era recuperar dos sonhos que

tive com a personagem, a possibilidade de iniciar o espetáculo de qualquer ponto, como se as

cenas fossem independentes, porém articuladas entre si. Assim o espetáculo nunca seria o

mesmo, abarcando as diversas possiblidades apontadas a partir do texto, absorvendo na

própria estrutura de execução aquilo que não tem começo, meio ou fim, como é a própria

trajetória da personagem. Essa é uma lógica possível, mas percebo que as possibilidades

acordadas vão se afunilando e encontrando na linguagem dramatúrgica uma poética

específica.

3.2 Sobre fazer à mão, artifício e artesania

Richard Snennett (1943) propõe uma visão equilibrada em suas considerações

sobre o artífice e o processo de construção de peças artesanais, para ele: “o pensamento e o

sentimento estão contidos no processo de fazer”. No capricho que leva o ser humano a

produzir obras acabadas, bem-feitas, por meio de um impulso básico, derivado do

desenvolvimento de habilidade manuais, “as pessoas podem aprender sobre si mesmas,

através das coisas que fazem”, por meio da imaginação atrelada à prática corporal, numa

espécie de saber alcançado com a mão, “através do toque e do movimento”.

Posso dizer que, nesse sentido, o presente trabalho se aproxima muito mais do

artesanato, por incorporar no seu fazer uma lógica que vem das rodas, da convivência, da

geração de communitas. Resulta de uma trança entre diversos materiais que derivam desses

84

contextos, afetivos, proximais, participativos, em que a propriocepção de artista foi

atravessada por relatos e objetos portadores de memórias que guarneceram o corpo,

imaginário e raízes da pessoa, antes de virarem materialidade na cena.

Nos caminhos pelos quais andei, nos trajetos no campo de pesquisa, deparei-

me com peças artesanais, desde o litoral paraibano até o Sertão pernambucano, passando

pela Rota do Cangaço, na cidade de Triunfo e no Quilombo do Travessão do Caruá, no

município de Carnaíba em Pernambuco. A relação com esse tipo de fazer transbordou na

criação, perpassando desde a concepção de figurino, maquiagem, adereços, na encenação,

no trabalho de atriz, em que identifico algo de artesanal, quase “caseiro”, no modo como

fui construindo esse exercício cênico, privilegiando um ponto de vista intuitivo, afetivo e

aproximativo no decorrer do processo criativo e nas relações interpessoais que tracei nesse

percurso.

Nesses trajetos, inspirei-me a partir de diversos materiais com que tive contato

por meio dos sentidos: as cores e cheiros dos temperos, nas barracas da feira, as texturas

das peneiras e bonecas de palha, das bonecas de pano feitas à mão, das bonecas de EVA,

de pinturas e esculturas de artistas locais, dos cintos e bainhas de couro bordados à mão, de

canga para carro de boi talhada no tronco de madeira inteiriço, dos crochês, fitas, babados,

da textura das pedras, sabugos de milho, cerca de vara e arame farpado, dos troncos de

árvores secos, das casas de vara trançada com barro, dos potes de barro e canecos de

alumínio, dos cacos de telha, da textura e perfume das flores de Jurema Preta, das flores do

Mandacaru, de Pau Brasil e Sombreão, da textura e cheiro da lama, do gosto e cheiro de

água de pote, de terra molhada em fim de tarde, de feijão da roça catado à mão, com

farinha feita na casa de farinha, de peixe na folha de bananeira, cozido na brasa do fogão à

lenha, do barulho de folhas secas no chão, do vento, de chuva, de trovão, de silêncio, do

cacarejar de uma galinha, e do berrar de uma cabra, do cantar ensurdecedor de sapos, nas

primeiras chuvas, do cheiro de água de açude, do nascer e pôr do sol em seu esplendor, do

nascer da lua e das suas passagens, do cantarolar de um vaqueiro em fim de tarde, ou de um

rádio que embala a solidão.

Tudo isso se converte em imagem, sensação e materialidades nas cores, texturas

de figurino, de cenário, da construção do espaço cênico que tem uma ligação direta com o

fazer, este fazer da artesania, daquilo que a indústria não vende que só se faz à mão. Ao

primar por isso, neste trabalho, fortaleço ainda mais o sentido da Filosofia do Guarnecer,

85

dessa forma ela vai ganhando estrutura, vai ganhando osso e corpo a partir dos encontros.

Por exemplo, a confecção dos figurinos acompanhou pari passo o processo

criativo, em parceria com a artista e artesã Elisabete Santana de Lima, da qual tenho o

privilégio de ser filha, esta que é liderança comunitária no Sítio Barro Branco,

representante das agricultoras do Alto Sertão do Pajeú de Afogados da Ingazeira, em

Pernambuco, na Rede Mulher Nordeste. A partir das experimentações realizadas no

campo de pesquisa, no Sertão Pernambucano, houve empatia junto ao processo criativo por

parte dessa artesã e então os figurinos têm sido confeccionados à medida que os ensaios

vêm acontecendo. Mesmo depois que retornei do campo de pesquisa, estamos nos

comunicando, venho compartilhando inspirações e descobertas a partir dos ensaios e

Elisabete Santana, por meio desses relatos, vem tecendo, peça a peça desse espetáculo.

As bonecas foram algo que me chamaram bastante a atenção por onde caminhei

em meus trajetos. Fazer uma boneca, parece-me, tem a ver com contar histórias, com tecer

imaginários e criar narrativas. Nas conversas que tive com diversas artesãs nas feiras em

Pernambuco e Paraíba, era notável o carinho, o respeito e a existência dessas narrativas

simbólicas que criavam um vínculo dessas artistas com suas obras. As bonecas que agora

fazem parte da cena introdutória do espetáculo, por exemplo, adquiri em uma feira de

artesanato, em que uma senhora aposentada colocou-as à venda. A finalização delas

chamou-me a atenção: eram bordadas, mas todas as linhas que costuravam seus corpos

apareciam, assim sem acabamento, os nós estavam expostos na superfície evidente da pele

das bonecas.

Isso me levou a incorporá-las na cena, de modo a tornar presentes os corpos

ausentes das primas da personagem, que morrem assassinadas antes de nascer o filho

varão, de modo a criar ações simbólicas a propósitos que vão além do que está escrito no

texto, como tratar mesmo que indiretamente, do feminicídio.

Essa é uma escrita sensível do fazer à mão, que também é o ofício da artista em

cena, criar artifícios, construir relações, instaurar communitas metafórica, nesse sentido, eu

sigo, buscando coesão e fluxo entre as ideias, conceitos, técnicas, procedimentos e artifício

para assim, fazer algo que faça sentido para a subjetividade da pessoa da atriz, mas que

também gere sentidos, estéticos, poéticos e artísticos com a linguagem que estou

desenvolvendo. Nesse tópico, apresento as texturas que encontrei na pesquisa de campo e

como estas estão sendo traduzidas na cena.

86

Imagem 19: Andor de Santa Luzia, Sítio Queimadas- Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco,

13 dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.

O andor de Santa Luzia, enfeitado pelas moças do Sítio das Queimadas, moças

bem jovens, caboclas de seus 14 anos, cabelos compridos como os da Santa, para quem

cantavam com devoção um hino composto pelos moradores do local. O andor levado com

muito carinho, em cujos pés as pessoas faziam pedidos escritos em papel, colocavam

ofertas em dinheiro, doavam bodes, carneiros e bois para serem leiloados para a novena em

sua homenagem. Presenciar isso me trouxe uma sensação de reverência ao feminino, ali

representado pela imagem da Santa, aos pedidos de visão aguçada, inteligência e

iluminação que, naquele momento, eu também fazia, tocada por essa devoção coletiva.

As cores da vestimenta da santa atravessaram meus olhos por uma via

sinestésica. Não soube nomear a princípio. Fui lendo com a retina as informações da

imagem: o vermelho e o verde, cores complementares, ação e passividade, oferta e

sacrifício. O prato dourado na mão, os olhos no prato, embora o semblante calmo. Havia

algo do duplo feminino que existe também em Lua-Irene ali. Uma espécie de coragem e

entrega, visto que a história dessa santa, conforme contam é a da moça que arranca os

próprios olhos e oferece num prato, ao rapaz que a cortejava para o casamento, fissurado

por seus olhos, os “culpados” por lhe desencaminhar a vida, quando ela desejava seguir em

87

castidade. O trágico, terrível, angélico na mesma imagem, uma possibilidade de construção

da moça-guerreira-anciã que também aparece em Lua.

Imagem 20: Presépio, Afogados da Ingazeira, Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco,

22 de dezembro de 2017. Foto de arquivo pessoal.

Estive observando um tempo qual era a relação das pessoas com o presépio

feito em cerâmica em tamanho real, exposto no centro da cidade. Aquelas que passavam,

paravam, tiravam fotos, impressionadas com tanto capricho, elogiavam o artesão e o

presépio daquele ano. Alguns passantes paravam, observavam atentamente pareciam

desenvolver um diálogo ali. O presépio permaneceu intacto até o dia de reis, 6 de janeiro,

ninguém profanou as imagens. Talvez porque a maioria que passava por ali se reconhecia

naquela devoção católica cristã. Interessou-me, em tal observação, a instauração desse

sagrado. Essa instalação na rua que comunicava uma narrativa conhecida da população e

com a qual se relacionavam diretamente através de seus objetos.

As bonecas, a seguir, serviam para limpar as cinzas do fogão de lenha,

poderiam ser simplesmente vassourinhas, mas alguém teve o cuidado de pôr olhos, boca,

cinto, pulseira, bracinhos, perninhas, cabelos, de forma personalizada. Existe algo nessa

construção de um tecer o feminino, de expressar uma narrativa pelo próprio fazer. Sempre

que eu ia à feira, parava nessa barraca, a imagem dessas bonecas me provocou bastante os

sentidos.

88

Imagem 21: Barraca de feira, pesquisa de campo, Afogados da Ingazeira, Pernambuco,

janeiro de 2018. Foto de arquivo pessoal.

A palha áspera, ali penteada, tão caprichosamente ornada, comunicava um

imaginário no objeto. As bonecas tinham uma função clara, limpar as cinzas. No meu

imaginário, criei uma relação com Nanã, a Yabá anciã da terra, revolvendo as memórias, as

cinzas através do contato com o feminino. É difícil pôr isso no papel porque essas

associações não foram claras, num primeiro momento, eu não sabia por que gostava de

passar naquela barraca, onde se vendiam coisas de palha, eu queria aquilo na cena, mas não

sabia como.

Imagem 22: Barraca de feira, pesquisa de campo, Afogados da Ingazeira, Pernambuco,

janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.

89

Imagem 23: Roça de palma, pesquisa de campo, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Alto Pajeú,

Pernambuco, dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.

O contato visual e tátil com a aspereza da palha foi algo que eu busquei

experimentar nos laboratórios criativos, mais tarde, isso se transformou numa necessidade

tátil, sonora, ocular, na cena e não pude mais ignorá-la, pois ela passou a ser primordial

para a execução do trabalho.

90

Imagens 24, 25: Captura do registro audiovisual de laboratório criativo realizado

em 26 de dezembro de 2017. Fotos do arquivo pessoal.

Realizei esse laboratório na caatinga, no Sítio Barro Branco, a caminho da chã

da serra, ele teve duração aproximada de 6 horas. Contei com o registro de Rita Cássia, que

me acompanhou em todos os laboratórios criativos no Sertão. Levamos água, rapadura e o

cachorro. Iniciamos cedo, às 6 da manhã até por volta de 12:40. As imagens 24 e 25,

capturam um momento, aproximadamente às 11:00, ao som ensurdecedor das cigarras e

dos chocalhos das vacas, o sol a pino. Desde as 3:00 da manhã, estava em estado de alerta,

a essa altura, sentia-me rendida pela fome, sede, cansaço, mas aproveitei esse estado para

experimentar uma partitura de movimento criada anteriormente, inspirada nos movimentos

de dois animais: ornitorrinco mais jacaré, acrescida de todo o cansaço, eu só pude rastejar

mesmo.

Conforme rastejava pelo chão, observei que o capim seco, antes onde era o

pasto na cheia, enganchava-se agora na minha roupa, eu sapateava na tentativa de me

levantar, a bota escorregava na palha seca do capim, fiquei um tempo sapateando sobre a

palha, vencida pela fraqueza do sol quente do meio dia. Os chocalhos das vacas, ao longe,

procurando pasto e o barulho ensurdecedor das cigarras era tudo que podíamos ouvir. Era

um dia parado de vento e muito quente.

Atualmente, essa caminhada rastejante está na cena como o momento em que

Irene, sangrando, sentindo as forças deixarem o corpo, lança a maldição sobre Lua. Nesse

laboratório, surgiu a ação de cuspir, pois eu me senti enojada de rastejar pelo chão onde as

91

vacas passavam defecando. Próximo, eu coloquei a caveira da cabra, ela ainda cheirava

mal, algumas moscas sentavam nela, aproveitei essa ação na cena como o fechamento da

maldição, Irene cospe na adaga que lhe sangra. Esse contato tão próximo à palha do capim

provoca sensações táteis incômodas de aspereza, coceira, mas curiosamente eu senti falta

dessas sensações no meu retorno à sala de ensaio, tão limpa e tão estéril.

O figurino da Cacurucaia, a fase anciã de Lua, parecia inadequado, tinha algo

estranho, que não funcionava, ou que funcionava em parte, o cenário também parecia

infértil, esterilizado. Relatando esse incômodo à Elisabete Santana, em relação ao figurino

provisório, que eu estava usando, que apesar de trazer-me uma memória afetiva, pois

tratava-se de uma camisolinha feita por uma costureira que eu adquiri na barraca da feira,

muito semelhante às camisolinhas que minha avó paterna usava, parecia realista demais

para o trabalho. Além disso, esse algo que faltava me parece que era aquele primeiro

lampejo que me deu ao ver as bonecas de palha na feira. Como eu podia carregar a

caatinga comigo? A rudeza da palha?

Minha mãe teceu, a resposta veio depois pelo correio, a palha veio a fazer parte

de modo muito simbólico na vestimenta de dois personagens que são quem vêm escavar a

terra para os segredos aparecerem, a velha, a Cacurucaia Maria, cujo figurino passou a ser

a base para todos os outros, e o vaqueiro ao qual é acrescido uma boiada inteira.

Imagem 26: Perneira do vaqueiro, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,

julho de 2018. Foto de Raielle Mazzarelli.

No figurino do personagem Gonçalo Marcolino, um elemento muito

92

importante é a perneira, que diferente da vestimenta típica do vaqueiro sertanejo, a qual

normalmente é feita de couro de boi, para a proteger dos espinhos e garranchos da

caatinga. Como eu precisava de algo que recuperasse a sensação de estar na caatinga, esta

foi feita de modo a presentificá-la. Foi desse modo que Elisabete Santana teceu a perneira

do vaqueiro, com um material que ao contato me provocou sensação semelhante à palha do

capim, feita de barbante de sisal trançada, é uma espécie de cinto que eu afivelo por cima

do figurino base, nas costas, vários chocalhos de ferro, semelhantes aos que vi durante a

pesquisa de campo sendo utilizados pelos Tabaqueiros4.

Ele tem um peso, uma sonoridade e textura, próprios. Traz um peso ao quadril

que me faz modificar a postura, conforme me movimento, controlo a execução da

sonoridade dos chocalhos coordenado com os passos da dança do vaqueiro, a qual tem sua

base no coco, este é seu guarnecer, sua vibração: uma dança que acorda a terra, espalha e

confunde os caminhos. Sem esperar, ela teceu exatamente aquilo que faltava no vaqueiro,

qual foi minha surpresa quando chegou pelo correio. Foi como receber parte do corpo

mesmo do vaqueiro, as pernas e a boiada!

Imagem 27: Figurino base da Cacurucaia Maria, Paviartes, Instituto de Artes,

julho de 2018. Foto de Raielle Mazzareli.

4 Mascarados que saem no carnaval na cidade de Afogados da Ingazeira, estalando chicotes, correndo com

chocalhos nas costas, fazendo barulho, pedindo dinheiro aos passantes, roubando beijos das moças, sua

identidade é secreta, podem ser desde uma dona de casa, uma figura pública, ou um brincante. Quanto mais

chocalhos, mais carnavais a figura já brincou, dessa forma que se mede o status de um Tabaqueiro dentro do

grupo de brincadores.

93

Já o figurino da Cacurucaia Maria, que é a base de todos os outros, chegou

depois de diversas experimentações. Da forma como chegamos a essa base, acredito que

recupero algo das bonecas de palha, com as texturas com as quais ele foi feito, de algodão

cru, cetim e tule alaranjado, na cor de palha, esse tom pálido, areia, que fui colorindo com

os outros personagens. Sinto que ele funcionou como a roupa dos filhos de santo, nos

terreiros, antes de baixar os Orixás, em cuja base se acrescenta laços, volumes, com outros

tecidos e cores. Para finalizar o figurino da Cacuruaia, sobre esta base é acrescentada uma

rede de varandas, feita em tear, também areia. A rede foi um elemento que fez parte do

meu treinamento com a rede de pesca, do meu cotidiano na pesquisa de campo e que

depois seria uma metáfora da mãe, do útero feminino que acolheu Lua, formando a capa

sobre o figurino base. Ao me desfazer da capa, no caso a rede, desenvolvo uma ação que

atravessou toda a experiência em campo.

Dormir na rede, fez-me desenvolver outra relação com o espaço e o corpo no

acordar e estar no mundo. Percebi que ao final de um mês e meio, período em que realizei

a pesquisa de campo, senti-me naturalmente mais alongada, as dores na lombar diminuíram

consideravelmente, como se dormindo na rede eu tivesse recuperado os espaços entre as

vértebras, a ação da gravidade parece que agiu sobre elas descomprimindo, atenuando a

sensação de estar com a coluna soterrada, as vértebras enterradas uma na outra, sem

espaço, nem dobra. Já ao acordar, eu segurava nas bordas da rede e me punha de cócoras.

Essa era a primeira ação do meu dia.

Percebi que a dificuldade que antes eu estava sentindo de ficar de cócoras, era

o uso do corpo, que, em Campinas, colocava-me numa relação com o espaço na qual

raramente eu ficava de cócoras. Achei curioso como o uso do corpo influencia numa

determinada corporeidade, num jeito de estar na vida, nas relações que se estabelecem.

Será que a falta de profundidade que eu sentia nas relações pessoais eram, de alguma

forma, influenciadas pelas técnicas de uso do corpo no cotidiano das pessoas e na sua

relação com o mundo? São reflexões filosóficas que a reconexão com o Sertão foi

apontando no estar em campo.

O lençol em tear manual, a rede no Passeio, a exploração de movimentos com a

tarrafa, a rede de varanda diluída como metáfora nos figurinos, enfim, todos esses

elementos feitos à mão, mesmo os que participaram do treinamento e não estão mais em

cena, consistiram nesse trabalho numa relação diferenciada com os objetos, figurinos,

94

adereços, ao lidar com materiais feitos por artesãos, eu lido com histórias vivas, que vivem

na cena, junto comigo de forma paralela àquilo que está sendo contato, a história de como

aquilo foi feito, está implícita a cada vez que eu toco esses materiais em cena, a minha

relação afetiva com eles me provoca sensações, lembranças, memórias de coisas que não

estão ditas.

A construção de cada personagem se deu através de diversos estímulos, desde

aqueles acordados, através dos sonhos e pesadelos que tive, alguns com temas recorrentes

como, por exemplo, cemitério. Sonhei durante a pesquisa de campo, nos dois meses e

meio, quase todas as noites com o tema da morte. Mudava as circunstâncias, no entanto, o

tema se repetia. Além disso, também houve forte influência das provocações sensoriais na

criação. Um exemplo disso, é também o figurino de Lua na sua fase de assombração, que

aparece aos tropeiros nas estradas.

De estímulos cruzados, tais como os pesadelos, os estímulos sensoriais da

pesquisa de campo, as histórias que ouvi sobre os lobisomens e envurtados do imaginário

popular sertanejo com estímulos do próprio conto, Elisabete Santana teceu a capa de Lua, o

vestido e a saia, juntas tecemos a cabeça de Lua,mas se eu contar, talvez o leitor não

acredite, essas ideias foram fortemente influenciadas pelo sentido olfativo.

E foi na feira que alguns dos primeiros estímulos apareceu, eu já tinha uma

intuição de alguma coisa, por conta dos experimentos que já tinha feito, mas a

concretização dessa intuição em materialidade se deu ainda no Sertão. Foi o primeiro

figurino a ficar pronto, apesar de ser o último que visto em cena, certamente, foi o mais

experimentado, porque passeou mais que todos os outros encantados dessa peça.

95

Imagem 28: Caju, barraca de feira, pesquisa de campo, Sertão do Alto Pajeú,

Afogados da Ingazeira, janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.

O caju é fruta nativa lá no sertão, adstringente, tem um cheiro que ao se sentir é

mais agradável que o sabor, mesmo não gostando muito da fruta, como fazia tempo que

não comia, pois no Sudeste é iguaria, deu até saudade. O cheiro eu senti de longe, fui

conferir. Perto dali, outro cheiro me fisgou, foi o da pimenta do reino, um tempero bastante

usado na culinária sertaneja. Fiquei admirando os cajus, a pimenta, o coloral, essas iguarias

me encantaram. Eu queria algo assim com jeito de caju, pimenta e coloral para Lua. Colhi

essa provocação, como quem colhe fruta no pé, então ajuntei com outras que encontrei no

terreiro da casa da minha vó e da minha mãe.

Imagem 29: pimenta do reino e coloral, barraca de feira, pesquisa de campo, Sertão do Alto Pajeú, Afogados

da Ingazeira, janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.

Esse estado de atenção e observação por meio dos sentidos em situação de

convívio levou-me a estar muito porosa, sensível, aberta a todos os estímulos visuais,

sonoros, olfativos, intuitivos, imagéticos na criação. De modo a perceber essas angústias as

quais não conseguia nomear, não entendia como transformar em palavra o que era em si,

sensação, até que as sensações pudessem encontrar forma na materialidade que compõe a

cena. Saber sentir e guardar as sensações no corpo, na memória, sem utilizar do recurso do

gravador, do diário de bordo e recuperar na criação essas sensações parecia arriscado, mas

eu quis experimentar um estado de apreender integrado ao fazer.

96

Imagem 30: Sabugo de milho no terreiro de vó Rosa, Sítio Catolé, Sertão do Alto

Pajeú, dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.

Imagem 31: Flores secas de sombreão por cima da areia, terreiro de vó Rosa, Sítio Catolé,

Sertão do Alto Pajeú, dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.

97

Imagem 32: Pé de sombreão no terreiro de Elisabete Santana, Sítio Bsrro Branco, Alto Sertão do

Pajeú, fevereiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.

Mas, como eu poderia juntar essas lindezas aos sentidos, num elemento que

presentificasse a cor do caju, a cor da pimenta do reino, a textura das flores secas no

terreiro de minha avó, o amontoado dos sabugos de milho, o ajuntado das flores de

sombreão? Como é que Lua-Larissa poderia levar a sua casa consigo? Portar a própria casa

no corpo, com as cores e as texturas das coisas que estavam me provocando? Essas eram

algumas das questões que eu levantei numa conversa no alpendre em fim de tarde com

minha mãe. Foi quando ela sonhou com a personagem, dizendo a ela como deveria fazer o

figurino para que eu pudesse portar tudo aquilo no corpo. Muito inusitado esse modo de

criação. Eu comecei a pensar que talvez a assombração do conto fosse real, tivesse deixado

de passear em meus sonhos, invadido os sonhos da mãe, como coisa viva, que ao invés de

ser criada, faz o criador se adaptar às suas exigências e descobrir-se sendo criado numa

outra alteridade.

Ela teceu, durante alguns dias, o figurino que mais tarde eu usaria em minhas

experimentações na Casa das Almas. Primeiro foi a capa, depois a cabeça, depois o

vestido, agora já não é mais vestido, é saia. Na concepção da artista, a capa representa a

casa, a casa do conto, com suas 114 portas e janelas, seu telhado em telhas de barro.

98

Imagens 33, 34: Captura do registro audiovisual do laboratório de criação realizado no Castelo da Casa das

Almas, rota do Cangaço, Triunfo, Pernambuco, detalhes da capa de Lua, 16 de janeiro de 2018.

Captação de imagens de Rita Cássia.

Para isso, Elisabete fez uma gola em crochê, que representa o telhado, uma

trama feita à mão com vários nozinhos, que é a rede, mas também as portas e janelas, com

tiras que cruzam no peito como guias de filha de santo, mas cujas contas são feitas de

lágrimas de Nossa Senhora, sabugos de milho e tiras que arrastam no chão, contendo os

sabugos de milho que colhi no terreiro da minha avó.

Parte desse figurino, no caso o adereço de cabeça, encontrei quando fui visitar

com meu pai, um artesão que trabalhava com couro, madeira e metal, na Serra da

Barriguda, município de Iguaracy-PE, na zona rural, ele estava trabalhando na construção

de uma canga para carro de boi. No caminho, vi uma casa de taipa, feita com cipós e barro

trançado em ruínas. Pedi a meu pai que parasse a moto, eu desci, entrei na casa, olhei

através de suas janelas, fui até a cozinha, restos de cinzas num fogão de lenha também

ruindo, entrei e sai dos cômodos, tentando vivenciar os trajetos possíveis naquele espaço.

Na porta da cozinha, tinha uma cabra morta. Estranho é que nenhum bicho

tocou em sua carcaça, os cachorros, que por ali andavam guardando um rebanho de cabras

que repousava na sombra de uma algaroba, não arrastaram sua carniça, nem mesmo os

urubus, que certamente se fartariam, pois havia 7 anos que não chovia na região. Talvez ela

tivesse sido picada por cobra, por isso secou e nenhum bicho mexeu. Eu me agachei junto

99

à carcaça e falei para ela, a morte: “licença dona morte que roeu os ossos, eu vou levar a

cabeça”. Assim, aquela cabeça começou a fazer parte do figurino, eu só entenderia o

sentido disso mais tarde.

Imagens 35, 36, 37, 38: Casa abandonada (aqui morava Maria) Sítio Barriguda, Alto Sertão do Pajeú,

Afogados da Ingazeira, Pernambuco, dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.

Quando a personagem encomenda a morte de Irene, como se se tratasse de uma

cabra, fez sentido para mim que o símbolo dessa maldição fosse aquela cabeça que morreu

de veneno de cobra provavelmente. Eu tratei dela com banhos, defumações, rezas, e sol,

para sair o mal cheiro e assim poder manuseá-la, mas, curiosamente, durante o período em

que estive realizando a pesquisa de campo e principalmente depois de apossar-me da

cabeça da cabra, sonhei constantemente com cemitérios, indo buscar defuntas de outras

épocas em suas covas, trazendo-as pela mão para dormir ao meu lado.

100

Imagem 39: Cabra, Paviartes, Instituto de Artes da Unicamp, julho de 2018. Foto de Raielle Mazzarelli.

Imagem 40: Laboratório criativo realizado no Castelo da Casa das Almas, rota do Cangaço, Triunfo,

Pernambuco, 16 de janeiro de 2018. Foto de registro audiovisual, captação de imagens de Rita Cassia.

Assim que traduzimos as cores dos temperos, frutos, flores da terra não apenas

no figurino, mas também no cenário, como parte da textura que compõe o exercício cênico,

em que as folhas, flores e galhos secos foram incorporados na cena, uma vez que os

caminhos por onde passei, os lugares em que experimentei, ensaiei, dificilmente eram

lisos, encerados, pelo contrário, tinham texturas próprias, seja no bosque lateral da

Faculdade de Educação Física na Unicamp, no terreiro da casa de amigos, no Sertão, por

onde passei com Lua, o contato com a terra esteve lá de alguma forma.

101

Imagem 41: Cenário, ensaio aberto, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,

13 de maio de 2018. Foto do registro pessoal.

De modo que agora é como se faltasse tudo, quando ensaio sem as folhas no

chão, elas são metáforas desses caminhos por onde passei, sem elas é como se não

houvesse caminhos, apenas a esterilidade do chão, que me parece quase cirúrgico quando

ignoro essa necessidade.

Não é atoa que abro essa dissertação dedicando-a ao chão por onde pisei e as

histórias que ouvi com pés, dos meus antepassados e daqueles que transitaram por ali.

Ouvir com os pés, bagunçar o sentido lógico dos sentidos, desarticulados dos órgãos aos

quais estão relacionados move imageticamente uma habilidade de ouvir inclusive o não

dito, o secreto. É assim que ouvir o chão com os pés, deixar que esse fale ao corpo,

expressando as histórias que entram, feito raiz nos buracos do corpo em direção a terra,

move estruturas internas, fazendo com que o entendimento da metáfora se dê por outra via.

Bagunçar esses caminhos é para essa proposta, um convite a esse tipo de escuta.

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Imagem 42: Pesquisa de campo, restauração de cerca de vara a caminho da chã da serra.

Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco. Foto do arquivo pessoal.

Os troncos que encontrei, a caminho da chã da serra – o ponto mais alto da

serra que há atrás da casa de minha mãe no Sertão – provocaram meus sentidos, queria, de

alguma forma, traduzir essa sensação. Mais tarde, me aventurei em alguns traçados

inspirados nesses encontros com a natureza rústica do Sertão, os quais vieram a compor a

caracterização de Lua, em que eu traço no rosto a lua, os troncos, as varas, o vermelho do

coloral. Fez sentido para mim, percebo diferença quando não me pinto. Encenar As nove

luas de Lua Cambará é uma guerra, de perseverar e acreditar na criação, na intuição, nas

histórias não ditas ali, que podem parecer muito simples, mas exigem de mim um

mergulho profundo num mundo mítico e sensorial ao qual eu preciso estar muito porosa.

A ideia do corpo como tela, que deixa entrever essas materialidades na cena,

foi algo de que me dei conta depois, quando comecei a escrever sobre a criação e percebi

essa necessidade de portar em cena elementos que me lembrassem das sensações da

pesquisa de campo e que pudessem, de alguma forma, transparecer como tela fina esses

contatos e, quem sabe, levar o público a mergulhar nessas imagens também.

Foram muitas madrugadas até aqui, em que eu pressenti um estado

assombração, de errâncias, em muitas delas, eu vi o sol nascer, a escuridão tornar-se

alaranjada, por mais clichê que possa parecer, nos espetáculos que tratam de temáticas que

levam à associação com o sertão e que, frequentemente, usam essa cor como recurso de

103

iluminação, eu não tive como fugir de tanta beleza que me invadia a cada amanhecer, em

que divaguei, fosse para escrever ou para me jogar nas experimentações dos laboratórios

criativos no Sertão. A este hábito, de amanhecer com o sol, seguido de conversas ao pé do

fogão de lenha na casa da minha avó, ou na cozinha, na casa da minha mãe, de anoitecer

com a lua, com as histórias de malassombros nas estradas, nas roças, eu tirei uma profunda

observação do entorno, deu lugar no meu ser à sensação de fazer parte, de estar conectada

a esse ciclo.

Imagem 43: Maquiagem de Lua, ensaio aberto, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, 17 de maio

de 2018. Foto do arquivo pessoal.

“E de tanto ouvir, também juro que vi!” Eu vi os lobisomens arrastarem suas

correntes nas estradas, uivarem para a lua, eu vi as almas que ficaram pelos caminhos, que

perambulam nos cemitérios, eu vi a cara da morte, eu vi! Vi os envurtados, que vigiam as

roças, para ninguém roubar as melancias, vi o homem da cerca, que carrega a pedra nas

costas, até hoje, sem decidir onde é, afinal, o limite do seu terreno, ele anda sem fim, até o

inferno, depois volta. Vi a mulher amaldiçoada, que corre bicho nas noites de lua, que

some sem o marido ter notícia, vi-a correr as sete pontes, sete fontes, sete montes, depois,

voltar ao convívio do marido como se nada fosse. Vi as crianças que morreram de fome

104

nas estradas, abortadas, filhas da desnutrição, da seca, da miséria. Vi os ciganos

amaldiçoarem, cuspindo em cima da carne que roubaram no terreiro do meu avô. Vi a alma

que correu atrás daquele homem no Sítio das Almas. Eu vi todos eles. Eu vi vovó vir me

buscar para ensaiar, eu vi vovô tanger gado junto comigo, eu vi o malassombro de Lua,

observar-me na casa de dona Quitéria, nos ensaios, que medo, Lua existe! No final de tudo,

vou cantar para a lua, para Lua subir.

Como eu escapo disso tudo?

Imagem 44: Vista do amanhecer. Pesquisa de campo, errância, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú.

Dezembro 2017. Foto do arquivo pessoal.

Esse mundo vasto e profundo.

105

3.3 Condensação de experiências: Teaser de As nove

luas de Lua Cambará.

Este vídeo-arte, intitulado Quem vem Lá? é resultado da edição de cerca de 25

gigabytes de filmagens das experimentações nos laboratórios criativos no Sertão, para as

quais convidei Rodolfo Ventura, aluno do curso de midialogia da Unicamp, a fim de

realizar a edição desse material, com o meu consentimento para ser co-criador, conferindo

na edição a sua leitura sobre o conto, editando o material, a partir daquilo que lhe

atravessava. Tal material compõe agora um resultado paralelo ao exercício de criação

cênica, que faz parte da última cena, quando a assombração sai a vagar em que, de maneira

sensorial, através das texturas dessas imagens, convido o espectador a embarcar nesse

universo por meio das retinas, das meninas dos olhos.

As imagens dessas andanças no Sertão resultaram em texturas provocantes,

compartilho com o leitor frames desse vídeo-arte:

Imagem 45: Caatinga, Sítio Barro Branco, captura do registro audiovisual. Dezembro 2017.

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Imagem 46: Atrás a serra. Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.

Imagem 47: Corrida na caatinga. Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.

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Imagem 48: Cata-vento, Sítio Catolé, captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.

Imagem 49: Cata-vento, Sítio Catolé, captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.

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Imagem 50: Sombra do Cata-vento no chão seco. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual.

Dezembro de 2017.

Imagem 51: Tronco seco. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.

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Imagem 52: Assombração. Castelo Casa das Almas, Triunfo. Captura do registro audiovisual.

Fevereiro de 2018.

Imagem 53: Fogão de lenha na casa de vó. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual,

dezembro de 2017.

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Imagem 54: Cemitério Bizantino construído em 1808, Casa das Almas, Triunfo. Captura do Registro

audiovisual, fevereiro de 2018.

Imagem 55: Cemitério Bizantino, construído em 1808, Casa das Almas, Triunfo. Captura do Registro

audiovisual, fevereiro de 2018.

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Imagem 56: Sangue que escorre. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro audiovisual.

Fevereiro de 2018.

Imagem 57: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro

audiovisual. Fevereiro de 2018.

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Imagem 58: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro

audiovisual. Fevereiro de 2018.

Imagem 59: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro

audiovisual. Fevereiro de 2018.

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Imagem 60: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro

audiovisual. Fevereiro de 2018. audiovisual. Fevereiro de 2018.

Imagem 61: Lua, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Fevereiro de 2018.

“É a Lua que fia o Tempo, é ela que tece as existências humanas e as deusas do

destino são as Fiandeiras.” (ELIADE, 1998, p.178).

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Ficha técnica

Quem vem lá?

Inspiração livre no conto Lua Cambará

de Ronaldo Correia Brito

Direção:

Larissa Santana

Captação de imagens:

Rita Cássia

Edição e arte do vídeo:

Rodolfo Ventura

115

CAPÍTULO 4: DA ESCRITURA CÊNICA

4.1 Da escritura cênica: foto-grafia, um fotograma

poético

Como forma de registro da escritura cênica, optei pela fotografia, por

compreendê-la como uma forma de escrita, uma grafia poética e sensível, que recorta os

instantes vividos da experiência cênica e que, ao mesmo tempo em que possibilita o

registro palpável ao leitor, que porventura não tenha visto o exercício cênico, “traduz” para

o papel uma memória.

Assim, apresento esses encantados, saudando os quatros cantos da Rosa dos

Ventos, como faço no meu Guarnecer de atriz, quem chegou comigo até aqui, saberá que

Lua é ser que ronda, Lua existe! E entrar nesse universo é com licença e com- o-

sentimento, para afundar pouco a pouco nas imagens e nos textos que desenvolvi a partir

do conto que me assombrava desde quando o li em 2009, neste ano, quando finalmente

concretizo as angústias criativas em dança, gesto e palavra, completo um ciclo de 9 anos.

“Ela virava bicho nas noites de lua, ela se encantava, se envurtava, minha

filha... ela corria! Corria bicho... foi uma maldição... ela corria 7 monte, 7 ponte, 7 fonte.

Mas como pode? Isso existe? Existe sim, minha filha... só os cachorros é que viam, a gente

só escutava aquele barulho de corrente sendo arrastada, só dava pra ver o vurto... ela

sumia, depois voltava. Tem no livro, de São Cipriano, mas não se pode fazer devoção

nesse livro não, tem oração para o bem e para o mal... esse livro não se compra, a gente

ganha”. Fevereiro de 2018. Conversa com a rezadeira Dona Francisca, extraída da minha

memória em minhas andanças no Sertão, uma vez que não usei gravador, nem caderno, por

opção, para que o único intermédio fosse o contato, o afeto, e a memória, esse trecho é já

um ponto atravessado pela oralidade e seu modo de transmissão. Com a evocação

imagética dessa conversa adentro As nove luas de Lua Cambará.

Prólogo

Aqui, começo a caminhar em direção à personagem, da Larissa que dormiu na

rede na pesquisa de campo, que sonhou esses pesadelos, para a personagem que tem

constantemente o mesmo sonho. Entro em giro, até enrolar sobre mim mesma como um

116

novelo, no tempo de uma canção de ninar, saio da posição fetal, de dentro da rede, no

acordar, no susto dos pesadelos que são meus, mas também são de Lua.

(Em giro, cantando) Sai Jaraguá, de cima do telhado, sai Jaraguá, de cima do

telhado... deixa essa menina dormir sono sossegado, deixa essa menina dormir sono

sossegado... (vai enrolando pouco a pouco até deitar-se em posição fetal e gradativamente

diminuindo o canto, até permanecer como se estivesse no balancinho da rede, finalmente,

suspirar em sono profundo, bola para um lado em súbito e abre a rede, formando

gradativamente o corpo da velha) Sempre esse mesmo sonho... sendo embalada pela mãe,

carregada na rede pra casa do pai...

Imagens 62,63,64,65: Prólogo. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04.

Julho de 2018, Fotos de Raielle Mazzarelli.

Cena 1 (lua nova)

Cacurucaia negra Maria: (Cacurucaia acende o candeeiro) Quem tá lá?

Quem tá lá? (suspende a chama, olha na direção do horizonte) Faz ano que ninguém cruza

o batente da minha porta. (Desconfiada, apoia o candeeiro sobre uma mesinha). Se eu

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soubesse que tu vinha eu tinha mandado barrê o terrêro... eu tinha me preparado... tinha

penteado os cabelos... Pode armar a rede debaixo desse juazeiro. Que lua é hoje? É que

Lua volta sempre ao mesmo ponto nas noites que não têm lua. Lua nunca morre igual... Tá

vendo ali? (apontando) do outro lado do rio, é a casa do Monte Alverne, foi onde morrero

sete fia, tudo feme, (desembrulha uma trouxa de onde caem sete bonecas de pano) até

nascer um fio, home! Francisco Francelino do Cambará! Esse que vai morrer com um tiro

no peito! Tudo aconteceu no tempo de um pesadelo. Durou o tempo da roda da desgraça

dar mais um giro. (Vai recolhendo uma a uma).

A premera foi Luzia. Fizero uma promessa pra o primeiro filho ser home, mas

nasceu Luzia... (Imita a voz da tia) Luzia! Oh Luzia! Vai panhá água na cacimba!

Ninguém sabe como foi, ninguém viu. (Deixa cair a boneca) Acharo Luzia emborcada na

cacimba... Enterraro ela toda vestida de azul, por causa da promessa pra Nossa Senhora.

Onde já se viu? Defunto pagar promessa?

Adepois foi Juvina. Juvina era danada! Eita menina danada! Ela tava

aprendendo a bordar a barra du‟a saia. Acharo uma cobra enrolada em Jovina... e parece

que a cobra tava no balaio das costura... (vai conferir)

Quitéria. (Se ri, imitando Quitéria) Quitéria era bem gordinha! A mãe dizia

que Quitéria era tão gulosa que comeu sozinha uma bacia de cuscuz! Eu me lembro de

Quitéria no caixão. (Imita a morta) Quitéria morreu assim! Inchada...

Rosinha era uma belezinha! Rosinha era bem alvinha. Mãe Bárbara, uma

parteira experiente num tratá do umbigo da menina?

Mariquinha era bem miudinha. A mãe disse que uma cobra mamou o leite da

menina... a cobra! num deixô nadinha pra ela, antes de sete dia já era semente pra terra.

Qual foi a outra? Os velórios foram ficando tão ligeiros... Eu esqueci? Não,

foram sete! (Reconta, dizendo o nome delas baixinho). Foi Teresa! É por isso que eu não

lembro! Teresa foi um dia levar a lavagem dos porco e parece que os porco tavam com a

fome de setenta, parece que fazia setenta ano que eles não comia. (Deixa cair Teresa).

Acharo Tereza só os pedaços... o caixão de Teresa ficou tampado, nem tinha retrato pra

gente vê... (Tapa o rosto de Teresa e recolhe com cuidado).

Catarina, ela tomou chá de cabacinha! O caixão de Catarina era desse

tamainho. (Mede com um palmo o tamanho do caixão) Eu inda tentei segurar na alcinha

do caixão de Catarina, num dexaro. (Coloca Catarina junto das outras, forma uma rede

com o tecido da trouxa).

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O coração do inocente é assim como a terra estrumada que a gente pranta a

semente, a merma nasce corada, lutrida, muntcho viçoça. Na nossa infança ditosa quando

o amô e a simpatia toma conta da criança, essa sodosa lembrança vai bate na cova fria.

Quem pela infança passô o meu dito considera, eu quero com muito amô, dizê, mãe preta

quem era! (Ri seriamente, embala as bonecas, formando a imagem da Pietá) Dorme, dorme

menininha, já chegou a escuridão, a treva da noite iscura está cheia de papão, dorme o

teu sono inucente com Jesus e com Maria, até chegar novamente o clarão do novo dia, no

teu sonho terás beijos da rosa e do bugari, que os isprito bem fazejo te defenda do saci.

(Enrola o tecido formando uma trouxa que embrulhada, agora é corpo rejeitado da que

fora abortada)

Nesses ano, tudo eu nunca vi uma frô, uma frôzinha sequer, aquele monte de

cruiz uma do lado da outra, (aponta para as cadeiras onde o público está sentado) tudo na

merma cova, será possível? Que ninguém se alembro, ou fizeram questão de esquecer! Só

eu que num esqueço! Que passo por aqui todo dia e me deparo com essas cruz! (Põe a

trouxa nas costas) Olhe, me faça um favor! Me livre de algo que eu carrego desni que eu

nasci! Tome! Num carece sentir ternura não! Eu também num vô senti! (Põe a trouxa no

chão).

Afundar nesse mito do Sertão, faz-me desencavar muitas histórias sobre os

funerais dos anjinhos, os retratos da época vitoriana, que ainda há nos álbuns de família da

minha avó, das crianças que morreram em poucos dias, de fome, de doença, de fraqueza,

cujos caixões eram caixas de sapato. Tão pequeninos. Faz-me acordar o medo e o pavor de

gestar, do parto, do filho não nascido. Essa passagem, no conto original, é muito

insignificante, resulta em uma linha simplesmente, na qual se diz que “morreram sete

filhas, todas fêmeas, todas chamadas Maria, até nascer Francisco Francelino do Cambará”.

Em fricção com a personagem e movida pelo arquétipo de Nanã, eu entro, atravesso esses

pântanos que fazem parte do meu mito familiar, mas também de muitas outras histórias

contadas no Sertão.

Essa cena sempre me traz um pesar, já senti fortes arrepios, beliscões, que

foram me dando a sensação de que não estou sozinha em cena. Como se acessasse uma

espécie de porosidade comum, tanto ao fazer artístico quanto ao mediúnico, por assim

dizer, em que percebo energias que não são deste mundo, são os seres do interior da terra, a

primeira ancestral familiar (aquela cabocla raptada de sua tribo, “pêga no mato”) que vem

contar comigo essas histórias do feminicídio.

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Imagens 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75: Cacurucaia Maria. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala

AC 04, julho de 2018, Fotos de Raielle Mazzarelli

Cena 2 (quarto crescente):

Narradora/ Lua: Minhas primas... morreram todas, eu não tive com quem

brincar de carrapeta, mas olhe, num sinta ternura não! Porque eu mesma num sinto! (Vai

até o fundo, senta-se, dirige-se ao espectador). Tu viesse por onde? Se tu viesse por lá,

deve de tê visto a casa de Maria, uma casa de cipó trançado e barro, Maria morava ali.

Apois, o finado vaqueiro Gonçalo Marcolino, dizia que ela teve uma fia bastarda cum‟o

Coronel Pedro Francelino do Cambará. Gonçalo ia um dia tangendo o gado, quando deu

de cara com Maria. Foi ele quem trouxe a criança pra cá.

Imagem 76, 77: Narradora. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018,

Fotos de Raielle Mazzarelli.

Vaqueiro: (Vai pondo o figurino, o último é o chapéu, aboia entrando em giro,

dança pelo espaço, espalhando os caminhos, revolvendo com os pés as folhas secas no

chão, até se deparar com Maria) Maria! Ô Cumadre Maria! (se aproxima e logo se afasta).

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Ela já tava gelada! E essa menina mamando sangue no peito da mãe! Oxe! Que

desgraceira Maria! (Tira o chapéu, trazendo-o junto ao peito. Canta um aboio enquanto

recolhe algumas folhas secas e joga sobre a rede, que representa o corpo de Maria, nesse

momento). Eu venho de tão longe, me dá um desespero... O mundo é tão, grande, eh boi...

ohoi boiada! As vezes tenho medo... Em busca de lugar, veredas e lajedos, eh mundo

traiçoeiro... eh boi, ohoi saudade! (Ajoelha-se para pegar a criança, galopa em direção à

casa grande, depõe o embrulho, embaixo da mesa, que nesse momento representa o

alpendre da casa grande). Coroné! Oh Coroné! Ói! É fia da nega Maria, moradeira dos

extremos de vossa terra, vinham na direção de vossa casa, a mãe morreu de fome, a filha

mamou sangue nos peitos da morta. Enterrei a mãe, salvei o rosário e botei no pescoço da

fia. Todo mundo sabe coroné, que o sinhô andava rondando o terrêro de Maria... e essa

menina num nega não! Tem gênio ruim e raça de branco! Veja lá o que faz patrão...

(Retira-se em galope até o outro extremo da cena, já se desfazendo da roupa, como se

chegasse a sua casa e falasse à mulher). O coronel ficou com a encomenda, mas num

mandou batizar! Há de ser por isso...

122

Imagens 78,79, 80, 81, 82, 83, 84, 85: Vaqueiro. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, julho de 2018,

Fotos de Raielle Mazzarelli.

Narradora/Lua:

(As referências para a passagem desse tempo na voz de narradora são baseadas

em diversos animais, enquanto vai falando o texto, Lua vai crescendo, mas relembra o

momento do parto, quando mamou o sangue-leite nos peitos de sua mãe. O crescimento de

Lua é um engatinhar de gato, caminhar de gorila, escramuçar de bezerro novo). Ela

cresceu sem crença. Uma força de homem, um mando no braço igual ao pai. Do seu

sangue branco, herdou a vontade de poder, a desobediência as leis divinas. Do sangue

negro recebeu o rosário, que era o cordão umbilical com a mãe. Ela nasceu numa noite de

lua, tinha um ciclo lunar e variava a cada lua. Seu nome não foi dado em vão.

(Canção do Parto – canção em Yorubá para a divindade Oxum – Vou puxando

o figurino de Lua de debaixo das coxas, enrolando-o e trazendo-o ao peito, até vestir

finalmente a roupa, ao vestir, já não é mais a criança que mamou o sangue, no peito da

mãe, é a moça cujas “regras” se iniciam, entrando em giro, ao parar, é Lua a moça que vai

ao encontro do pai, após visitar dois tabus relacionados ao feminino, o parto e o sangue

menstrual). Orumilá mamã, Orumilá mamã, Oiá dê Oxum bambiô, a Oxum, Carolé, com

mamã ansiô, a té um di figu iabáomirô, iaôberé, ferigodô.

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Imagens 86, 87, 88, 89: Parto. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, AC 04, julho de 2018.

Fotos de Raielle Mazzarelli.

Essa é uma passagem de transição, da criança que nasce, entra em contato com

o sangue da mãe, com o leite-sangue de seus peitos para o desabrochar da moça.

Gradativamente, a Lua que narra, que relembra a mãe, dá espaço a fim de que a

personagem encarne e fale por si. A narradora é também lua, mas é como se fosse uma

espécie de consciência que tudo vê. Uma consciência que passeia nos tempos, antes mesmo

de a personagem ser. Aqui, eu brinco com a imagem arquetípica de Oxum, a moça que se

olha no espelho, compreendo essa passagem como um momento em que a personagem

entra num processo de reconhecimento e projeção da sua imagem, na progressão de moça-

mulher, mas que também tem a ver com a forma como esse processo criativo se iniciou, a

partir de imagens em meus sonhos que foram sendo corporificadas na sala de ensaio, de

texturas que foram se soprepondo na pesquisa de campo e criando o corpo de Lua. Observo

nisso a dualidade do espelho, em que há tanto o reconhecimento dessa imagem quanto o

estranhamento. Uma colagem de mil pedaços conhecidos, negados, obscuros, traslúcidos,

recolho os cacos, giro, busco me reconhecer nos traços, nos fulcros das mãos, eu quase

124

posso entrar, trespassar o rasgo do espelho. Ao girar, girar, girar, eu borro a imagem, só

o que permanece nítido é o espelho.

Imagens 90, 91, 92, 93, 94, 95: Lua moça. Paviartes, Instituto de Artes, AC 04, julho de 2018, Unicamp.

Fotos de Raielle Mazzarelli.

Cena 3 (lua crescente):

Narradora/ Lua:

(Gira, cai de joelhos no chão, levanta, vai caminhando pé ante pé, até a mesa,

que agora representa o leito de morte do pai. No caminho tem folhas secas e galhos, estes

viram obstáculos ao silêncio total. Ao posicionar-se lateralmente à mesa, dirige-se ao

125

público) A primeira e última vez que eu entrei naquele quarto, foi quando ele disse assim:

(abaixa o ouvido em direção à mesa, como que para ouvir a voz do moribundo e trazê-la

gradativamente à boca no jeito de se expressar) Meu irmão e teu primo, não te reconhece

como herdeira, eles vão querer cortar tua cabeça, assim que eu fechar meus olhos.

(Levanta a cabeça, olha além do público, buscando aqueles que aguardam a morte do

Coronel, titubeia). És o filho homem que eu não tive. Prova a coragem que tens,

defendendo o que é teu! (Vai aumentando o volume da voz, relembrando os trejeitos de

falar do pai.) Encara o lado do teu pai e renega o sangue negro de tua mãe! De teu povo

escravo que só faz te rebaixar! (Aqui, já com muito desdém no jeito de falar, titubeia, olha

o rosário pendurado no pescoço).

Esse é o momento em que a personagem precisa tomar uma decisão, é um

impasse, na medida em que ela tem o reconhecimento da paternidade do coronel, há uma

exigência de cortar os laços com a mãe, mesmo que tais laços sejam simbólicos. Na

criação, isso me gerou um problema: como eu faço isso? Na minha encenação, será que lua

quer mesmo cortar esses laços, ou restaurá-los? Ainda estou tentando descobrir.

A indicação no conto é de que Lua quebra o rosário, apesar de achar a imagem

interessante, impactante, optei por realizar esse rompimento de outra forma. A partir desse

problema, eu, na minha condição de mestiça, como faria para extirpar de mim o que é

indisfarçável? Aqui, baseio-me no mito de Yansã, quando ela tem a sua pele roubada por

Ogum, recupero uma das partituras de movimento que realizei nos laboratórios conduzidos

por Elias de Lima Lopes, nos quais eu brinquei com o chicotear. Disso, resultaram

movimentos de sacudimento de cabeça, ombros, pernas, quadril. Certa vez, fazendo esses

movimentos o rosário saiu do pescoço, ele foi arremessado.

Por ora, tenho respondido a tal problema dessa forma, o rosário, que simboliza

o cordão umbilical com a mãe, é arremessado para fora do contato com o corpo da

personagem, então esse laço é rompido, através de movimentos bruscos, violentos. A

negação desse feminino ancestral, da mãe, é algo muito forte no conto, pedia de mim,

como atriz, algo que, de certa forma, correspondesse a essa força. É assim que ao som do

Run de Yansã, dou entrada à transição da moça para a guerreira, para a fase luminosa de

Lua.

126

Imagem 96: Eles são quantos? Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018.

Foto de Raielle Mazzarelle.

Cena 4 (lua cheia):

Lua: Eles são quantos? Aguarde o meu sinal... hoje mesmo ou morro ou acabo

com eles! Hei! Hei, Hei, Hei, Hei! (Lua empunha sua espingarda de fogo, dá o seu brado,

convocando seus cabras para a guerra).

Narradora/ Lua: Nas planícies do Jaguaribe, entre os dois montes, no sol

quente do meio dia. De um lado, a casa do Monte Carmo, onde reina Lua Cambará,

Idelfonso Roldão, o capataz e João Índio, o mais valente. Quase 120 homens

arrebanhados no grito. Exército louco e mestiço, zumbis sem medo, arrastados por uma

força de mulher. Do outro lado, a casa do Monte Alverne, cento e vinte parentes

arregimentados pelo ódio à bastarda usurpadora, falando em honra, tradição, direitos...

No meio dos inimigos, o rio Jaguaribe, limpo das últimas cheias, correndo para o mar,

com uma única certeza: a de que ninguém o atravessaria duas vezes, ninguém! No céu, os

urubus, que pressentem desgraça, sobrevoavam aguardando seu dia. E as ipueiras claras,

vermelhas dentro em pouco, do sangue inútil dos mortos.

Lua:

(Encantação do rio, lua derrama o seu sangue menstrual sobre as águas).

Rio Jaguaribe, que corres entre as pedras de saboeiro, que corres para o

mar... eu te conjuro! Que tu fiques vermelho do sangue dos meus inimigos! (Quebra prato,

Run de Yansã, o tecido então vira a guerra, até que num mergulho, Lua sai do outro lado

da margem).

127

128

Imagens 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106: Lua guerreira. Paviartes, Instituto de Artes,

Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.

Resta alguém vivo? (o tecido passa a ser o sangue que Lua lava do corpo, em

movimentos de esfregá-lo freneticamente pela pele). Pois então mande derrubar as cercas,

ocupem a casa do Monte Alverne, juntem o gado e ponham abaixo o seu cruzeiro. De hoje

em diante só existe um dono nessas terras! Eu! (Junta o tecido nas mãos em forma de

rodilha e bate no chão, semelhante ao movimento das lavadeiras, ajunta-o todo em uma

mão, corre, salta em cima da mesa, ocupando o espaço que representa o alpendre da casa

grande, lança o tecido de lá de cima, enquanto grita eu.

Nesse exercício, achei importante que o espaço do alpendre fosse em um nível

mais alto que o chão, de onde pudesse gritar, EU, lançando o tecido-sangue, alpendre

abaixo. Sobre o sangue dos mortos é que Lua pôde se tornar herdeira, é sobre esse sangue

que ela se assenta. Queria fazer uma cena em que a personagem tomasse um banho de

sangue, mas confesso que por sugestão da minha mãe, Elisabete Santana, que fez a

concepção de figurino, acatei a seguinte solução: ela acreditou que fazer esse banho

simbólico, com um tecido vermelho furta-cor, poderia ser mais interessante do que a ideia

da cuia, em que eu pensava tomar um banho com suco de beterraba. Eu acatei e confiei.

Revendo as fotos do ensaio com luz, percebo que ela tinha razão. O sangue era algo que

precisava aparecer de alguma forma, eu sentia como uma necessidade de tocar no tabu do

sangue feminino, como uma força que torna as mulheres misteriosas, perigosas, capazes de

matar, porque vivem no corpo o ciclo constante de vida-morte-vida a cada mês.

A imagem arquetípica da guerreira em Yansã tem forte ligação com o elemento

fogo, a tempestade, as emoções tempestivas, a energia da raiva e como dançar tudo isso?

Como ser trovão, tempestade, fogo, brisa, ao mesmo tempo, ser sangue, ser guerra, tudo

sozinha? Como lidar com tamanhas forças do feminino que é também sanguinário,

129

vingativo? Sigo buscando, encontrei essa forma de expressar isso. Certamente, há outras e

dentro de uma peça, de uma cena, cabem muitas outras. Nessa passagem, Lua é cheia,

cheia de si, cheia de coragem, de desejo de vingança, de tomar o que é seu nem que seja à

força.

Cena 5 (quarto minguante)

Narradora/Lua: (De cima do alpendre, bem assentada, Lua contempla as

terras até topar o olhar com João Índio, escolhendo alguém entre a plateia a quem mirar, o

sentimento de finalmente ocupar aquele lugar vai dando espaço a um amargor que a

condição de carrasca lhe dá. O semblante vai mudando, a herança começa a pesar sobre

seus ombros).

As crueldades em limites, os açoites recrudescidos dos negros, não calavam os

desejos no corpo e a ternura por um homem, João Índio, destemido e fiel a uma mulher,

Irene, com que dividia a pobreza e uma jura de amor. A confissão viria um dia numa

tarde, na frente de todos os vaqueiros, como um desaforo. (Arma a postura da perseguição

ao boi.) Corriam atrás de um boi desgarrado, menos por necessidade da presa, que pelo

orgulho de dominá-la. Ninguém se comparava a João, sustentando o cavalo sob os

joelhos, o peito aberto, as mãos livres para o ofício da derruba. Lua procurava estar ao

seu lado, foi ela quem susteve a cauda do boi, tentando passa-la à mão do Índio. João

recusou a gentileza, como se rejeitasse o amor de Lua. Ele deixou o bicho escapar,

perseguindo-o e derrubando-o sem qualquer ajuda. Lua não precisava de consentimentos

para possuir o que desejava.

130

Imagens 107, 108, 109, 110: Confissão de Lua. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de

2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.

Lua:

(Erguendo-se). Tua força só basta pra derrubar um boi ao chão. A minha

derruba qualquer homem ou mulher. Queres me desafiar?

Lua/narradora:

(Descendo e assumindo a postura de João)

João calou, não por medo. Sua patroa calçava perneira, vestia gibão e

montava a cavalo feito homem, mas a fêmea escapava de dentro de todas as amarras do

couro. Só não entrava no seu peito! Que procurasse outro, do mesmo quilate. Idelfonso

Roldão, seu capataz, aguardava um sinal pra ser seu escravo!

131

Imagens 111, 112: Recusa. Paviartes, Instituto de Artes da Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.

Cena 6 (lua minguante, ou o sacrifício de Irene)

A semente dessa cena despontou em Sangangá, dei prosseguimento na

exploração desse mote em As nove luas de Lua Cambará, aqui, nessa passagem, recupero

as partituras que foram realizadas durante o período de experimentação nos laboratórios

criativos da pesquisa em campo, na caatinga do Alto Sertão do Pajeú, procuro reviver as

sensações de quando estive lá, sob o sol escaldante do meio dia em minhas carreiras e

devaneios na caatinga.

Se ele não será meu, que também não seja dela! (Num ímpeto, sai da mesa em

direção aonde está a adaga, num jogo de sedução e perigo busca convencer o capataz a

atender seu pedido) Idelfonso! Idelfonso! Se eu lhe pedir um favor, você faz? Vai com dois

homens, dos melhores. Eu quero que você vá lá, faça com ela como se faz com as cabras

em dia de sábado! Quando passares a faca pelo seu pescoço, eu quero que diga assim:

Com a mesma compaixão com que eu sangro uma cabra, eu te sangro! (Ao terminar essa

frase, ela tem passado a faca na palma da mão e lambido o sangue do corte) Agora vá!

(Aqui assume a postura de Idelfonso, o gestual, o tom nojento de ser, caminha até a

marcação do rio, no centro da cena ao fundo).

132

Imagem 113: Se eu lhe pedir uma coisa, você faz? Paviartes, Instituto de Artes,

Unicamp. Sala AC 04. Foto de Raielle Mazzarelli.

Lua/ Idelfonso:

(Apontando a faca para Irene) Teu marido? (...) Volta logo? (...) Tens alguma

oração pra fazer? Mandaram que eu dissesse um recado: com a mesma compaixão com

que sangro uma cabra, eu te sangro! (Avança, dando três golpes no ar, ao final do

terceiro golpe, cai de joelhos, suplicante, na postura de Irene).

Lua/ Irene:

Eu? Não... eu vivo de alma limpa! (Abre os braços em tom de entrega ao

sacrifício) Eu rogo as forças do mundo, que essa mulher tenha o mais terrível dos fins!

Que ela morra com as entranhas queimando! E que a morte seja apenas o começo do seu

penar! (Virando-se para olhar o céu) Quem nem o céu, nem a terra, nem o inferno a

queiram, que ela fique a vagar eternamente. (Dá seu último suspiro e assume a postura de

narradora).

Imagens 114, 115: Maldição de Irene, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp. Sala AC 04,

julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli

Narradora/ Lua:

133

Irene pensou que seria bom se o sangue se misturasse às águas do rio Jaguaribe e

corresse até o mar, assim, mesmo morta poderia visitar as praias do mundo, na

companhia de João, trazido na força dos gritos, para morrer o seu lado. Quem vem lá?

Quem vem lá? É Lua, é Lua, é Lua... Cambará! (Levanta-se lentamente do chão, do leito

de morte, Irene/Lua/ Irene gradativamente inicia uma corrida em círculo, ao passar pela

caveira da cabra, Lua repete a sentença de encomenda da morte de Irene). Com a mesma

compaixão com que sangro uma cabra eu te sangro, Irene! Com a mesma compaixão com

que sangro uma cabra, eu te sangro Irene! Eu te sangro Irene! Eu te sangro! (Ora,

sussurrando, ora, grunhindo, ora gritando).

(Corre em círculos até cair, na queda pergunta ao capataz) Idelfonso, e João? Escapou?

(Lua recolhe a roupa do vaqueiro, enquanto canta, leva o figurino deste ao centro da cena,

cruza as mangas da camisa e fica velando o morto).

Imagens 116, 117, 118, 119: Sentença, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04,

julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.

Vaqueiro, abra a porteira do curral e vem ver meu boi sair pra viajar... Abra a porteira

pra ele, que é pra poder caminhar! Lá vai meu boi, meu boi, e ele vai andando devagar,

vai trotar um passo miúdo que é pra poder caminhar... (Entra em giro, abrindo a porteira,

a alma de João, o boi, vai embora da fazenda de porteira afora).

134

Imagens 120, 121, 122: Enterro do vaqueiro. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,

sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.

Pergunto-me, nessa criação, quem é que amaldiçoa Lua? É o escritor do conto,

que adere a um ponto de vista de julgamento sobre o padrão ideal de feminino? Era o

pensamento da época (1970) em que foi transcrita a narrativa? Um feminino sacrifica

outro, um feminino que, em alguns aspectos, identifica-se com o masculino e nega a

herança materna. Lua pede o sacrifício de Irene, como se esta fosse uma cabra, mas padece

desse mesmo sacrifício, pois a sentença que atinge Irene também a maltrata. Então, quem é

Irene no conto? Seria aquilo que Lua nega e por “matar” em si esse aspecto do feminino

torna-se, assim, amaldiçoada e impossibilitada de vivenciar o amor romântico com o

masculino? É muito forte isso. Mesmo a maldição que Irene lança sobre Lua, torna

impossível conciliar as duas facetas. A meu ver, Irene e Lua são a mesma pessoa em

conflito.

Na medida em que uma nega a outra, é como se o espelho se partisse, o passivo

e o ativo no feminino que é Lua iniciam um processo de autodestruição. Irene praticamente

amaldiçoa Lua a sangrar até a morte e condena esse aspecto sombrio a não ter um lugar

onde possa se acomodar. A única possibilidade de conciliação talvez seja a consciência

135

atemporal de Lua, que vem e procura restaurar o laço partido com a mãe, com o aspecto

masculino, com a ancestralidade, com as memórias.

Cena 7 (lua nova)

Narradora/ Lua:

(Entra em giro, bate cabeça para a assombração, na medida em que vai

vestindo, vai narrando). Meu pai jurou que viu, no tempo em que dividia suas horas com os

cuidados com a terra herdada do avô e ofício de boiadeiro, tocando rebanho de gado

pelas estradas. Dele ouvi o relato, repetido nas noites sem lua e de tanto ouvir, também

juro que vi.

Imagens 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130: Lua, a pomba gira das escruzilhadas de terra.

Fotos de Raielle Mazzarelli, julho de 2018, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp.

136

Eram os três dias em que a lua morre, o vento da noite, tarde, já soprava com força. Um

cortejo de amortalhados passava ao longe, homens e mulheres pressentidos nos vultos,

numa rede alva, atravessada por um pau, carregada por dois negros montados a cavalo,

ela! É Lua Cambará que segue seu destino de alma penada! Gritaram no meio das

sombras. E aonde vão? Atreveu-se meu pai a perguntar. Vamos pelo mundo a vagar, a

vagar, a vagar... (Canta, caminhando em círculos pela cena).

Quem vem lá? Perguntavam.

Quem vem lá? Perguntam até hoje.

É Lua Cambará

(Vai tirando flores do figurino e passa onde estão o corpo do vaqueiro, da velha, busca as

meninas na trouxa, em baixo do alpendre, traz para o centro da cena, em cada um desses

pontos vai deixando solenemente uma flor).

Sua história, sua morte

Pena e sorte, ai de mim.

Uma assombração que passa

Sem princípio, meio e fim.

(Arranca lentamente da boca um fio vermelho deposita-o por cima da trouxa com o coro

das meninas).

Imagem 131: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,

julho de 2018. Foto de Raielle Mazzarelli.

“Ela arrancou da garganta o grito que era da mãe”. Lua Cambará – Ronaldo

Correia Brito. Lua Cambará, a Pomba-Gira das estradas que aparecia nos caminhos dos

137

tropeiros, quando levavam o gado de um lugar ao outro, só ela quem pode unir as pontas

das histórias e restaurar os laços rompidos. Retorno à lua nova, o ciclo se cumpre.

138

139

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lua existe.

Quem vem lá? É Lua, é Lua, Cambará... lobisowoman, é vurto, é Pomba-

Gira que anda, que assombra, Lua Cambará, a Pomba-Gira das

encruzilhadas de terra. “E para onde vão? Vamos pelo mundo a vagar”.

A revirar a terra, os mortos, os caminhos tortos.

O modo artesanal com que construí relações, ao longo desse processo, levou-

me a uma metodologia de criação que compreende um ponto de vista proximal, afetivo e

participativo com as manifestações, saberes, práticas, religiosidade e ações da cultura

popular a que eu nomeei esse modo de estar em campo de pesquisa e experiência de

Filosofia do Guarnecer.

Nas oportunidades que tive de desenvolver o meu guarnecer de atriz, nas

vivências com a cultura popular, durante esse trajeto, continuei observando momentos em

que experimentei excepcionalidades típicas de um acontecimento gerador de liminaridade

e communitas, que me trouxeram um profundo sentimento de pertencimento às rodas e

celebrações e contato com as raízes, com os ancestrais no fazer dessas rodas.

A opção por materiais artesanais, feitos à mão, determinou também um modo

de estar no trabalho que tem estreita relação com a comunidade familiar, característica

daqueles que são fazedores da cultura popular. Posso dizer que como uma artista,

pesquisadora, amante da cultura popular, eu consegui aglutinar pessoas de modo

semelhante ao que acontece nos ajuntamentos de gente, voltados à prática e a saberes

populares, apesar de não ser nascida num círculo que zela por uma tradição específica,

como os parentes do Leitão da Carapuça ou do Brejo de Dentro, os quais pertencem a

comunidades quilombolas do Sertão, que desde cedo nutrem através do burburinho das

cozinhas, do convívio, da partilha, as suas resistências, assim como a transmissão da

tradição nas rodas de coco.

Apesar disso, no meu fazer e no processo artístico percebo que agreguei a

família e os amigos, criando em rede e também resgatando no meu guarnecer aqueles que,

de alguma forma, praticavam ações ligadas a este fazer, como as memórias dos ancestrais

mais próximos, no corpo e através dele, como por exemplo, meu avô Balbino da Silva, que

140

era vaqueiro de profissão e dançador de coco, embora o meu conhecimento dele seja

póstumo, intermediado por retratos desbotados e causos de família. Ou mesmo as

memórias das ancestrais femininas maternas mais próximas, intermediadas pelas

lembranças da minha avó Rosa Santana, cujas recordações se cruzam diretamente com os

temas da peça. Assim, todo o processo de construção da personagem foi atravessado pela

oralidade nos trajetos, afetos e relações que desenvolvi ao longo deste, mesmo em se

tratando de um trabalho solo, porém nutrido desses afetos, em que a confiança na rede, na

comunidade criadora permitiu o desenvolvimento de parcerias que possibilitaram a co-

criação e o desenvolvimento de um procedimento de trabalho específico de estar em

campo.

Assim, este trabalho agrega múltiplas narrativas nas materialidades que o

compõe, de forma que sinto que este trabalho é meu, mas é nosso também. Eu não danço

só, eu não ando só, eu não sou só, eu só, eu sou eu, a mãe, a avó. Nessa artesania delicada,

feita de relações, narrativas, afetos, a personagem passeou por várias cabeças.

Tudo o que eu sonhei, vi, vivi, imaginei, criei até aqui é irradiado pelos afetos,

encontros, vivências com os materiais que compõem os detalhes dessa encenação, que

entraram de ouvido a dentro, de retina a dentro, de pele a dentro. Pude depreender até aqui

a abordagem da personagem Lua Cambará em camadas justapostas, mitológica,

sociológica e poética.

Como metodologia de criação da personagem, sugerida por esse procedimento

da Filosofia do Guarnecer, intercalei procedimentos de laboratórios em que fui proponente,

em oficina e sala de aula; com laboratórios nos quais atuei. Intercalando ainda o trabalho

interno, sozinha, com provocações de colaboradores. Intercalando o trabalho fechado com

as diversas aberturas de processo, realizando, constantemente, o compartilhamento do

material com colegas convidados. Durante o processo mesmo, variando dinâmicas de

experimentações em espaços abertos e fechados.

As reflexões apontadas no texto me permitiram uma aproximação com a

personagem na situação de trajeto em que a subjetividade de atriz se encontra com a

subjetividade da personagem por uma via arquetípica, sociológica e criativa. Creio que uma

personagem tão complexa quando Lua Cambará fornece material bastante rico para o

trabalho de atriz, sem a pretensão de deter qualquer verdade irrefutável sobre a

141

personagem, nem esgotar o assunto, deixo decantar as experiências culminadas até aqui,

ciente de que ainda há muito caminho a percorrer.

142

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146

ANEXOS

147

A- MAPAS DE PERNAMBUCO

Fonte: Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco. Disponível em

https://3.bp.blogspot.com/CtvzQz4NhWM/Tsp1KRcBhrI/AAAAAAAAKFQ/K92_oIczmdU/s1600/mapa-

municipios-pernambuco.jpg Acesso em 08 de agosto de 2018.

148

Fonte: Ministério Público de Pernambuco, disponível em

http://www.mppe.mp.br/mppe/institucional/nucleos-e-gts/gt-racismo/fique-por-dentro-gt-

racismo/comunidades-tradicionais-gt-racismo Acesso em 08 agosto de 2018.

149

B- MAPA DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO LEITÃO DA CARAPUÇA E TRAVESSÃO

Fonte: GRES- Gerência Regional de Saúde de Afogados da Ingazeira – PE. Leitão da Carapuça.

Mapeamento de 1997.

150

Fonte: GRES- Gerência Regional de Saúde de Afogados da Ingazeira – PE. Travessão. Mapeamento de 1997.

151

C- MITO DE OYÁ

Na parte três da obra literária Oya, Um Louvor àDeusa Africana, a autora Judith

Gleason (2006, p. 206) traz a seguinte narrativa: A mulher-búfalo e os caçadores, com o

sub-tema: Quando a mulher búfalo vira Oya, na história abaixo citada, ela relata ainda que,

“esta versão inglesa da história segue o formato oracular no qual foi originalmente recitada

pelo divinador iorubá Awotunde Aworinde, em junho de 1970, em Osohogbo”.

“COMO O BÚFALO FOI LEVADO PELO CAÇADOR”

1 Saudações! Queremos agora louvar Osa Ogunda

um sinal que explica o nascimento de Oya.

“Osa-Ogum pode lutar” é o nome de um remédio

que o capacitará a suplantar seus inimigos.

Eeeeee! Você vê o caminho que Ifá tomou para ser chamado dessa forma?

2 Pequeno Redemoinho (o herbalista) sentado como cobertura –

Que Luar! Foi o nome do divinador

que jogou Ifá para o Chefe dos Caçadores

no dia em que ele saiu para buscar uma esposa

para brilhar radiantemente para ele.

3 Se você está na espreita, sacrifique,

disse o divinador, os seguintes itens:

inhames que possam brotar

um pequeno pote de vinho de milho-guiné

quatro galinhas, quatro pombos

e quatro sacos de búzios.

4 Tendo completado o sacrifício, ele saiu à noitinha para caçar,

passou fora a noite toda, mas nada avistou,

ficou no alto da sua plataforma nas árvores, esperando.

Chegou o amanhecer, e o caçador decidiu esperar um pouco mais

até que houvesse luz suficiente,

para voltar a casa com facilidade.

5 Então, de repente, ele viu uma fêmea se aproximando.

Ela olhou para a direita

ela olhou para a esquerda

não viu ninguém

e seguiu seu caminho, majestosamente.

Quando chegou perto da base de um cupinzeiro,

para grande surpresa do caçador, ela começou a remover

a própria pele –

despiu os braços

despiu as pernas

e o lado da cabeça.

Ele a observou fazer uma trouxa de tudo aquilo

e empurrá-la para dentro do formigueiro. Então,

ela olhou para a direita

152

ela olhou para a esquerda

não viu ninguém

e se transformou numa bela mulher.

6 Na sua plataforma de espreita o caçador ficou sentado,

olhando.

7 Quando estava vestida com roupas humanas

Essa bela mulher voltou para o cupinzeiro

pegou seu recipiente de sementes de alfarrobeira

e seguiu para o mercado.

8 O caçador esperou até que ela estivesse fora de vista

e deslizou de seu poleiro

e foi furtivamente até o local onde ela escondera sua pele,

pegou a trouxa e foi para casa.

9 Então o Caçador foi ao mercado para comprar

a especiaria de sementes de alfarrobeira.

Irú, três shillings, por favor,

disse para a mulher.

Eu não posso pagar agora

mas certamente você não se incomodará

de parar no seu caminho de volta para casa

para pegar o dinheiro

10 Quando a noitinha chegou, ela rumou para a floresta

onde o caçador vivia, clamando:

Irú, irú, alguém aqui

comprou do meu irú no mercado?

O caçador veio até a porta e disse que tinha sido ele.

11 Eu vim para apanhar o dinheiro, disse ela.

Muito bem, mas não quer entrar um momento?

Aqui, continuou ele, coma alguma coisa antes de continuar

a sua viagem.

E ele ofereceu um pouco de inhame.

E ele ofereceu um pouco de bebida

que tinha sacrificado para Ifá.

12 Tendo comido do inhame e bebido um pouco de vinho

a bela mulher sentiu-se muito cansada e sonolenta.

Quando acordou já estava muito escuro

para que ela saísse sem que houvesse comentários

(dos intrometidos).

13 Quando chegou ao local onde escondera sua pele,

a bela mulher viu que ela não estava ali.

Ai! Ai! O que aconteceu?

Eu olhei para a direita

Eu olhei para a esquerda

E não vi ninguém.

Quem então a teria pego?

Deve ter sido o homem

que comprou as minhas especiarias

Sem pagar. Será melhor voltar

E ter uma conversa com ele!

153

14 Quando chegou na casa do caçador, ela implorou:

Por favor, devolva as minhas coisas

daquele lugar (sem querer dizer o nome).

Eu não vi nada seu.

Mas você viu. Por favor, eu lhe peço.

Tenha piedade de mim, eu lhe imploro!

Então, case-se comigo, disse o caçador.

Eu casarei, disse a bela mulher,

mas você deve prometer

que irá observar os meus tabus.

Nunca mencione para as outras esposas

onde me encontrou e nem o que

tomou de mim.

Isso é tudo? Está bem, eu prometo.

disse o caçador.

15 E assim foi. O tempo passou

e eles também.

Ela teve o primeiro filho,

depois o segundo, o terceiro, o quarto...

O tempo passou, até que um dia

o caçador viu os feijões vermelhos

amadurecendo no campo

e pediu às suas mulheres que saíssem

para colhê-los.

16 Agora, suas esposas mais velhas

não paravam de perguntar

de onde aquela mulher tinha vindo.

Não tinham visto parentes dela,

nenhuma, nenhuma vez

a tinham visitado, e nem

ela tinha ido vê-los.

Que tipo de coisa era essa?

O caçador persistia na recusa de contar.

17 Contudo, uma noite

elas o dobraram com comida

elas o dobraram com bebida

até que ele não conseguiu mais se conter.

Senhor, estimado marido, pai

da casa, você

nos deve isso. É

apropriado que nós saibamos

o tipo de caráter a quem

somos forçadas a nos associar.

Viemos de famílias boas

(aparentemente ela não)

mas qualquer que seja a linhagem dela

nós precisamos saber.

Não acha que chegou o momento de nos dizer?

18 Não podem deixar essa pobre mulher sozinha?

154

O que ela é para vocês? – rugiu em meio a sua bebedeira.

Não é elaaa aquelaaa fêmeaaaa de mulherrr.

Eu a vi tirando suas roupas na floresta

naquele dia em que comprei irú dela

e ela veio pegar o dinheiro?

Por isso me casei com esse búfalo

alguém em que possa confiar

alguém para brilhar por mim.

O que vocês mulheres miseráveis sabem

A respeito dos segredos da floresta?

Por que um caçador não poderia se casar com um animal?

Agora, estão satisfeitas?

Deixem-me em paz. Estou cansado.

19 E-heh, elas se regozijaram; foi uma boa coisa.

o que você contou para nós, não foi?

20 Quando a época estava boa para a colheita dos feijões

o caçador saiu para passar a noite nos campos

As mulheres deveriam ir até ele

na manhã seguinte.

Assim que as esposas do caçador levantaram,

pararam na porta dela.

Está pronta?

Ainda não, ela respondeu, pois estava ocupada com as crianças.

Apresse-se, gritaram as mulheres. O sol já saiu.

Vai ser um dia quente.

Por favor, tenham paciência, ela replicou, estarei pronta em

um minuto.

Vermelha, Vermelha, venha assim que estiver pronta – elas

escarneceram.

Iremos na frente

vá no seu tempo, Vermelha

Continue ruminando o seu alimento.

O seu disfarce está seguro

Lá entre as vigas

Por isso considere-se afortunada.

Mulher Vermelha!

21 Ai!Ai! Seu estômago revirou

com a surpresa.

Assim que as co-esposas saíram de vista,

Ela mandou que as crianças saíssem de casa,

Pegou uma bolsa feita de rato gigante

E foi buscar água.

Subiu até o lugar dos guardados sob as vigas do telhado,

pegou a trouxa que continha o disfarce

E começou a encharcá-lo.

Vestiu-o aos pouquinhos,

A perna

A coxa

O braço

155

Agora! Ela pulou e correu pela cidade

sem tocar ou machucar nenhuma pessoa.

Ela correu direto para os campos.

22 Correu para a primeira esposa,

matou-a

Correu para a segunda esposa,

matou-a

e também a terceira.

Então viu os filhos vindo pelo caminho.

Ao ver o búfalo eles começaram a correr.

Por favor, não! Vejam...

(afastando o disfarce do rosto)

Sou a mãe de vocês!

Não, é não, você é um búfalo,

gritaram as crianças. Deixe-nos!

Por favor, volte para a floresta.

23 Claro que vou,

mas primeiro

(Quebrando um pequeno pedaço do chifre da sua cabeça)

quero dar isso a vocês.

Quando quiserem que eu faça alguma coisa para vocês peçam a ele.

Chamem na maneira correta, chamem por Oya

pois esse é o meu nome

e eu sempre responderei.

Se alguém usar de malícia contra vocês

contem para mim.

Se quiserem alguma coisa –

dinheiro, esposas, filhos –

é só me chamar, chamem por Oya, Oya.

Adeus!

24 Dizendo isso, ela puxou o disfarce para cima do rosto

e saiu na direção do marido.

Ele a viu chegando. Aquele búfalo na distância –

instintivamente ele soube.

Ai!Ai! Minhas esposas arruinaram a minha vida!

25 Ela o teria matado de imediato,

mas ele começou a louvá-la.

26 Nobre búfalo.

Nada o faz parar.

Você faz o seu caminho pelas moitas.

Nenhum arbusto é denso o suficiente para você.

Lutador, por favor não mate o caçador

pelo prazer de matar.

Foi ele que o alimentou com Inhame.

Foi ele quem lhe deu vinho de milho-guiné para beber.

Por favor, poupe o caçador que o tratou.

Fêmea lutadora!

27 E ela teve pena

Neste dia eu vou embora para sempre

156

mas deixarei um chifre com meus filhos.

Você também pode me chamar

Se precisar de mim

Se souber como

Sabendo quem eu sou

Este som – Oya!

Esta forma – o Búfalo!

Este poder –

E, então, desapareceu.

28 É por isso que os divinadores chamam essa estrada de Ifá

Osa „gun le já

Quer dizer: “Ele usou o remédio mágico para a tingir o seu propósito.”

Quer dizer. “Folha de búfalo, seja vitorioso.”

Remédios-pode-lutar

Filhos da fêmea

Filho de Oya

Aqui está a explicação.

Saudações pelo sacrifício prescrito e realizado.

157

D- NO CAMINHO DO ROÇADO

Elisabete Santana de Lima. Artesã, liderança comunitária, representante das agricultoras do Sertão do Alto

Pajeú de Pernambuco na Rede Mulher Nordeste. Figurinista de As nove luas de Lua Cambará.

Sítio Barro Branco, dezembro de 2017.

Larissa Santana. Atriz, dançarina, pesquisadora, amante da cultura popular. Chã da serra,

Sítio Barro Branco, dezembro de 2017.

158

É na pedreira onde o pássaro cantava... Chã da serra, Sítio Barro Branco.

Angico. Ciência. Salve a Jurema Sagrada, Salve todo o Juremá. Dezembro 2017.

Sítio Barro Branco, cerca de vara, cabra de Seu Romão. Dezembro 2017.

159

Cemitério Bizantino, Casa das Almas, Triunfo-PE. Fevereiro de 2017. Foto de Rita Cássia.

Corrida na caatinga. Dezembro de 2017.

EU VAGO, COMO LUA...