INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA CONSTRUÇÃO SOCIO-HISTÓRICA DA...
Transcript of INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA CONSTRUÇÃO SOCIO-HISTÓRICA DA...
1
INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA CONSTRUÇÃO SOCIO-HISTÓRICA DA
VIOLÊNCIA E DA EXCLUSÃO
Juliana Biazze Feitosa1
Rafael Braz da Silva2
RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de realizar uma breve análise do desenvolvimento sócio-
histórico da violência e da exclusão do grupo social denominado de infância e adolescência. Num
primeiro momento será apresentado como as noções de infância/adolescência se desenvolveram como
categorias sociais relacionadas ao descaso, à exploração e à relação de classes. Logo em seguida, será
feita uma aproximação com o contexto brasileiro atual mediante a apresentação de alguns dados
oficiais que demonstram os riscos e vulnerabilidades pelas quais estão expostos crianças e
adolescentes e posteriormente, a questão da violência associada a estas categorias sociais será
discutida criticamente. A fim de alcançar este propósito realizamos pesquisa bibliográfica e
documental. Para analisar os dados coletados tomamos como orientação a história inspirada na
vertente marxista. Os resultados alcançados demonstram que é errôneo realizar uma associação direta
entre o aumento da criminalidade e da violência e as crianças e adolescentes, faz-se necessário
reconhecer que as crianças e jovens autores de condutas violentas, também são as principais vítimas de
todos os tipos de violência e que o protagonismo negativo e a sociabilidade violenta, são, na verdade,
resultados de uma perversa associação de variáveis, dentre elas destacamos: o desinteresse social;
ausência de políticas públicas prioritárias; desigualdade social, exclusão e exposição a todos os tipos
de agressão, crueldade e ameaças.
PALAVRAS-CHAVE: infância e adolescência; violência e exclusão; políticas públicas.
INTRODUÇÃO: Na sociedade contemporânea o homem não valoriza os problemas coletivos, o
espaço e os bens públicos (BOARINI, 1992). Impera o individualismo e a busca por interesses
privados, conforme observamos em uma pesquisa de mercado divulgada pelo Estado de São Paulo.
Ela foi realizada em Londres sobre os interesses, comportamentos e valores de pessoas de faixa
etária entre 20 a 35 anos, de 34 países, inclusive o Brasil indica que: “As necessidades são consumir
e competir; o lema é aproveitar as oportunidades; o objetivo é ter sucesso econômico, os símbolos
de sucesso são casa própria, casa na praia, carro importado, viagem ao exterior; os prazeres são
comer, descansar e assistir televisão; podem viver sem: ler, escrever e meditar; o herói é Ayrton
Senna; o fantasma é o desemprego e a aparência é o culto à beleza, magreza e a jovialidade” (O
ESTADO DE SÃO PAULO, 08/09/1996).
1 Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected].
2 Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected].
2
O que podemos inferir dos dados apresentados é que “no individualismo contemporâneo,
a impessoalidade converteu-se em indiferença (...). Tudo é motivo de conflito, desconfiança,
incerteza e perplexidade. Ninguém satisfaz ninguém” (COSTA, 1996, p.5).
O modo de organização capitalista, segundo Silva (2005), produz a alienação do
homem, afastando-o de si mesmo e dos outros homens, na medida em que se perde a
dimensão humana do trabalho com a fragmentação deste e o uso da tecnologia. Para os
trabalhadores as mercadorias ganham vida própria e, por conseguinte, os produtores se tornam
objetos que seguem as regras do mercado. Em uma sociedade marcada pelo individualismo e
competitividade, o estabelecimento de relações de afeto entre as pessoas, baseadas na
cooperação e reciprocidade, torna-se um grande desafio; assim como observamos a
estruturação de uma sociabilidade violenta, ou o uso da violência como mediação e interação,
como recurso social nas interações cotidianas.
Neste cenário, outro grande problema aparece: garantir de fato a proteção integral às
crianças e aos adolescentes. Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecer os
parâmetros para a construção de uma política pública voltada para a infância e a juventude, crianças
e adolescentes brasileiros continuam tendo os seus direitos fundamentais violados pela família,
sociedade e Estado. Ainda compõem o cenário brasileiro adoções irregulares, o extermínio, prisões
arbitrárias, abuso e exploração sexual, o trabalho infantil e os maus-tratos (VOLPI, 2006).
Sob nosso ponto de vista, desta forma, a violência pode ser compreendida como uma
resposta frente à violação de direitos e resultante de uma multiplicidade de fatores que se
interrelacionam. Dentre esses fatores destacamos a ineficiência das políticas públicas, a
exclusão social, a má distribuição de renda, o monopólio de poder e de riquezas e o
enfraquecimento dos laços sociais.
Destacamos que a violência praticada por jovens e os modelos de intervenção para
interrompê-la não são questões que preocupam os brasileiros destas últimas décadas. Na
medida em que recuperamos a história verificamos que desde o final do século XIX a criança
aparece nas estatísticas criminais de São Paulo, estado brasileiro que se destacou inicialmente
no processo de industrialização e os principais motivos que acarretavam suas prisões eram a
vadiagem (20%), embriaguez (17%) e furtos ou roubos (16%). Já neste período, a sociedade e
3
os juristas acreditavam que as casas de correções e a pedagogia do trabalho seriam medidas
necessárias para o enfrentamento deste fenômeno (SANTOS, 2002).
Por todo o exposto, compreender como se constitui contemporaneamente os
fenômenos da violência e da exclusão de grande parcela da população de crianças e jovens no
Brasil, a partir de alguns índices de vulnerabilidade, risco e exclusão é o objetivo desta
exposição. A fim de cumprir com este propósito, localizamos historicamente como alguns
processos e categorias se desenvolveram até chegar ao status quo de violência e desigualdade
que incide sobre este grupo social específico.
METODOLOGIA: O presente estudo tem um caráter histórico, inspirado na vertente
marxista. Observar determinados fatos cujas causas se desejam conhecer, constitui-se como
um desafio na coleta de dados particulares, com vistas a determinadas generalizações
assentadas na “relação verificada entre determinados fatos ou fenômenos” (GIL, 2009. p.11).
Ainda conforme o autor supracitado, ao se escolher o materialismo histórico como
referencial analítico faz-se necessário considerar as mudanças na estrutura social a partir dos
modos de produção e os intercâmbios que serão estabelecidos, ou seja, considera-se a
infraestrutura econômica e a superestrutura política e jurídica como os fatos geradores da
ordem social e se orienta para a interpretação de determinados fenômenos escolhidos para
verificação.
Neste contexto, duas técnicas de pesquisa foram empregadas: a revisão bibliográfica
sobre o tema e a coleta de indicadores referentes às formas de violência que incidem sobre a
infância e juventude. De um lado, a pesquisa bibliográfica fornece as chaves analíticas
adequadas e a fundamentação teórica necessária à circunscrição do problema; de outro os
indicadores socioeconômicos se constituem como um conjunto de informações quantitativas
resultantes “do cruzamento de pelo menos duas variáveis primárias (informações espaciais,
temporais, ambientais, etc.). Não são, portanto, elementos explicativos ou descritivos, mas
informações pontuais no tempo e no espaço, cuja integração e evolução permitem o
acompanhamento dinâmico da realidade” (MAGALHÃES JÚNIOR, 2007. p. 171). O
trabalho de interpretação envolve, justamente, o diálogo estabelecido entre os dados obtidos
de fontes renomadas com a produção teórica sistematizada na revisão bibliográfica.
4
INFÂNCIA E JUVENTUDE COMO CATEGORIAS SOCIAIS
Na sociedade contemporânea predomina a ideia de que a infância e a adolescência sempre
existiram e foram vividas igualmente por todos. No entanto, historiadores, segundo Ariés (2006),
nos mostram que até o século XVIII a criança não era reconhecida como um sujeito que possuía
peculiaridades que a diferenciavam dos adultos, ela era tida como “adulto em miniatura”.
Para Ariés era mais provável que não houvesse lugar para a infância nas sociedades
antigas. Além disso, o número de crianças que morriam prematuramente era tão elevado, que
quando sobreviviam eram diluídas ao mundo adulto. O fato é que até o século XII ela era
desconhecida, ou não representada. Por volta desse período "a criança começaria a sair do
anonimato generalizado no qual vivia, ainda que fosse o século XVI ou, mais precisamente, o
século XVII que daria conta de expressar o lugar que ela vinha ganhando na consciência
social". (ARIÉS, 2006, p. 23).
Ao longo dos séculos XV e XVI e, mais precisamente, durante o século XVII, foram
surgindo representações de crianças na pintura e literatura. O retrato refletia o espaço que a
criança ganhava na consciência social e o surgimento de um sentimento novo da sociedade
para com ela. Foi nesse século também que os retratos de família "tenderam a se organizar em
torno da criança, que se tornou o centro da composição" (ARIÉS, 2006, p. 65).
Oliveira (1989) assinala que a partir do século XVII, a sociedade passa a consolidar essa
trajetória da infância, reconhecendo, primordialmente, a condição da criança das classes
dominantes, ou seja, daquelas que passavam a existir como objeto de conhecimento, afeto e a ser
pensada a partir de alguns referenciais, tais como: improdutividade, irresponsabilidade, fragilidade,
dependência, inocência, ternura, vulnerabilidade, alheamento à problemática das relações sociais e
políticas etc. Contudo, a referida autora mostra que a arte também começava a representar a
existência de crianças reais, históricas, com determinadas feições, com vestimentas específicas e
com identidades particulares, que se diferenciavam do ideal de infância burguesa.
Ao tomar como base a constituição histórica dos fatos, Boarini e Borges (1998)
afirmam que a infância idealizada pela burguesia não foi vivida pela criança da camada
popular. A prática precoce do trabalho que ela realiza fora da família para garantir sua
sobrevivência e, muitas vezes, a de sua família, rompe com a concepção de fragilidade,
5
dependência e improdutividade e lhe aproxima da condição de “menor”. Vale destacar que o
referido termo durante a vigência do SAM representava à infância perigosa, que ameaçava a
sociedade e portava um defeito moral-patológico (ROSSATO, 2008). Com a criação da
FUNABEM o termo ganha novos contornos, eram nomeados de “menores” as crianças e
adolescentes “provenientes das periferias das grandes cidades, filhos de famílias
desestruturadas, de pais desempregados, na maioria migrantes, e sem noções elementares da
vida em sociedade” (PASSETTI, 2002, p. 357).
Conforme Leite (1997), a infância torna-se visível quando o trabalho deixa de ser domiciliar
e interfere na capacidade das famílias administrarem seus filhos pequenos. As péssimas condições
de vida da família de trabalhadores permitem que seus filhos se transformem em “menores”.
Passetti (2002, p.349) ressalta que “a dureza da vida daqueles que moravam na periferia, em quartos
de aluguel, barracos, cortiços ou favelas, levou-os a abandonar cada vez mais seus filhos”. Ainda
segundo o autor, a família ao vivenciar uma condição de extrema miséria acreditava que sob a tutela
do Estado seus filhos estariam mais protegidos.
Tais afirmações nos estimulam a retomar, ainda que brevemente, a história no período
do advento do sistema de produção capitalista. Em seu clássico estudo, Marx (1969) assinala
que o inchaço populacional nas cidades foi impulsionado pela expropriação e expulsão de
uma parte da população rural (camponeses), no período de transição do sistema feudal para o
sistema capitalista.
No feudalismo, as famílias camponesas produziam os meios de subsistência e as
matérias- primas e posteriormente consumiam grande parte da produção. As velhas
instituições feudais davam-lhes garantias de existência. Com o fortalecimento do capitalismo
e consequentemente com a expropriação, essas garantias foram perdidas e o que era
produzido por essas famílias tornaram-se mercadorias, separando-as, desta forma, de seus
meios de produção. Este processo é chamado por Marx (1969) de acumulação primitiva, que
nada mais é do que a separação entre o produtor e os meios de produção.
Com este processo, o que restou aos camponeses foi apenas vender suas próprias forças de
trabalho para a indústria urbana, pois seus corpos eram os únicos bens que passaram a possuir. De
produtores de sua subsistência se transformaram em operários assalariados (MARX, 1969).
6
No início do capitalismo, transformam-se em operários e mão de obra barata, crianças
e mulheres. Engels, nos anos de 1842 a 1844, ao retratar a situação da classe operária na
Inglaterra, mostra que crianças e mulheres eram submetidas a um regime de trabalho de doze
horas e meia e que recebiam uma remuneração muito inferior a dos homens adultos. Crianças
órfãs eram levadas das casas dos pobres para as fábricas. Comumente as crianças trabalhavam
na fabricação de pregos e rodas dentárias. As consequências dessa exploração chegavam ao
extremo de provocar suas mortes (ENGELS, 2008). Até este período não havia a necessidade
de conceber esta criança como um sujeito diferenciado do homem adulto.
Vale ressaltar que o cenário descrito por Engels se altera no rastro da Revolução Industrial,
momento em que os trabalhadores explorados pelo capitalismo se unem e passam a reivindicar
melhores condições de saúde, habitação, educação, renda e trabalho (FALEIROS, 1980).
O elevado índice de adoecimento e mortalidade em função do trabalho, somado ao
movimento operário em prol de melhores condições, possibilitou o surgimento das políticas
sociais, afinal era necessário garantir o mínimo aos que garantem a acumulação de capital e,
por conseguinte, a manutenção do capitalismo. Posteriormente foi se imprimindo a ideia de
que era necessário formar uma família privada (até para conter a proliferação de doenças e
pestes) e cuidar das crianças.
Ozella (2003) caminha na mesma perspectiva ao afirmar que a categoria adolescência
pode ser entendida como um período de latência social construído em uma sociedade
capitalista, gerada pela necessidade de preparo técnico, à espera para o ingresso no trabalho e
para justificar o distanciamento do trabalho de um determinado grupo social. Compreendê-la
desta forma, implica desconstruir a ideia (hegemônica e defendida pela psicologia positivista
e idealista) de universalização e naturalização dos conflitos e crises adolescentes e reafirmar
as determinações históricas e culturais.
AS CRIANÇAS E JOVENS NO BRASIL
A exposição realizada até aqui reforça a concepção de que a infância e adolescência
estão intimamente associadas à relação de classes. Gozar dos referenciais de infância
idealizados pelo capitalismo está condicionado à situação material dessa criança. O retrato da
7
infância e da juventude atual indica que uma parcela significativa de crianças e adolescentes
estão à margem desses ideais, como exporemos a seguir.
No relatório intitulado Situação Mundial da Infância 2011 - Adolescência: uma fase de
oportunidades, o Fundo das Nações Unidas para a Infância [Unicef] (2011) destaca os desafios que
o adolescente enfrenta em relação à saúde, educação, proteção e participação e explora os riscos e
vulnerabilidades desse estágio crucial da vida. O documento expõe que a população mundial de
adolescentes se aproxima de 1,2 bilhões, representando aproximadamente 20 por cento da
população mundial e indica que os países avançaram, no que se refere à proteção da infância,
considerando a redução de 33% na taxa global de mortalidade de menores de 5 anos e a eliminação
quase total das diferenças de gênero nas matrículas na escola primária em diversas regiões dos
países em desenvolvimento. Todavia, o relatório evidencia que mais de 70 milhões da população
mundial de adolescentes em idade de frequentar os anos finais do ensino fundamental estão fora da
escola, sendo a África, região do Saara, a mais afetada e que no Brasil 81 mil adolescentes, entre 15
e 19 anos de idade, foram assassinados.
No estudo da Unicef (2011), também foi possível verificar que adolescentes de
diversos países estão expostos ao trabalho ilegal, envolvimento com o tráfico de drogas e com
grupos armados, a riscos de acidentes e lesões não intencionais, problemas nutricionais e de
exploração sexual que conduz ao HIV, a outras infecções sexualmente transmissíveis,
gravidez e complicações no parto.
Em consonância com o estudo produzido pela Unicef em 2011, o Censo demográfico
de 2010 realizado no Brasil indica que 130 mil famílias são chefiadas por crianças no Brasil
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA [IBGE], 2011). Somente
no ano de 2010, 3.716 crianças e adolescentes foram resgatados do trabalho ilegal em todo o
país, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego – MTE. A síntese de indicadores
sociais revelou que, embora tenha melhorado nos últimos dez anos, o nível de pobreza da
infância e adolescência no país ainda é elevado. A maioria das crianças e adolescentes de até
17 anos vivia, em 2008, em situação de pobreza, totalizando 44,7% (IBGE, 2011).
De acordo com o Ministério da Saúde, nos anos de 2008 e 2009, foram registrados
pelos serviços de urgência e emergência quase nove mil casos de violência, com predomínio
de vítimas do sexo masculino, principalmente entre crianças, adolescentes e adultos jovens.
8
Os atos de violência foram praticados em sua grande maioria nos domicílios e nas escolas
(BRASIL, 2010, p. 130).
Os dados revelam que a violência contra crianças e adolescentes é praticada de várias
maneiras por diferentes autores/atores e em distintos lugares. Cabe ressaltar que, na análise
das situações concretas, verifica-se que os diferentes tipos de violência se sobrepõem uns aos
outros e que essas experiências de violências podem interferir diretamente no
desenvolvimento da criança e do adolescente, fenômenos que serão analisados a seguir.
Antes, é necessário reforçar que a situação dramática apontada nos parágrafos
anteriores não diz respeito, apenas, à infância e adolescência e nem sempre ocorreu da mesma
forma. Os últimos cinquenta anos foram marcados por inúmeras mudanças, tais como: novas
formas de acumulação de capital, expansão da industrialização e da tecnologia, surgimento de
novos processos de trabalho, novas configurações das fronteiras do Estado-Nação, entre
outros. Tais acontecimentos acabaram por afetar também a expressão dos conflitos sociais e
políticos, assim como, a capacidade de resposta diante dos mesmos, interferindo diretamente
nos padrões de delinquência, violência e garantia de direitos humanos (ADORNO, 2002).
Neste período, de acordo com o autor supracitado, houve um crescimento da violência
urbana, em especial dos crimes contra o patrimônio e contra a pessoa, a emergência do crime
organizado em torno do tráfico de drogas internacional, as graves violações de direitos
humanos e a explosão de conflitos nas relações interpessoais. Com este aumento da violência
urbana, outro fenômeno adquire centralidade na vida social e reforça os dados do Ministério
da Saúde apresentados anteriormente: a associação entre juventude e violência.
O que queremos dizer com a associação do binômio juventude/violência foi justamente esta
conjunção entre as diferentes formas de transgressão do comportamento socialmente aceito com a
categoria infanto-juvenil: os jovens se tornam – especialmente na mídia e no “senso comum” – cada
vez mais os autores, portanto responsáveis, pelos crimes de alto potencial ofensivo. Nos discursos
mais recorrentes tem-se a impressão de que os adolescentes são capazes de qualquer coisa, o que
colabora com o aumento da angústia social face aos jovens e a violência.
A representação da infância e adolescência como um período de inocência, ou sua
aceitação sociojurídica como um grupo peculiar de pessoas em desenvolvimento – portanto,
detentoras de primazia na proteção preferência nas políticas públicas como o Estatuto da
9
Criança e do Adolescente preconiza – se transmutam, ou retrocedem, à concepção de um
grupo social “gerador” do perigo e portador de um caráter eminentemente violento. Muitos
adultos se perguntam: “como será o comportamento destes jovens futuramente”?
A tensão e o medo social aumentam tanto quanto mais incidentes violentos acontecem
na vida social e que são divulgados/condicionados às crianças e jovens. É como se a
“violência juvenil”, especialmente cometida por jovens pobres e de periferia, tivesse se
convertido em um fenômeno estrutural que se alastra dos bairros ditos perigosos para outros
locais e instituições. Tal situação de angústia produz discursos que misturam fenômenos de
naturezas distintas. Por isso a necessidade de elaborar distinções conceituais que permitam
analisar os fenômenos da violência e da juventude.
Isto necessariamente remete a outro elemento: a crescente observação de uma
violência institucional, que os jovens suportam das instituições e seus agentes através dos
diferentes tratamentos dados, como por exemplo, composição das classes escolares,
chantagem e ameaças através de palavras desdenhosas e preconceituosas de professores nas
escolas, atos racistas ou injustos cometidos pela polícia ou por outros serviços públicos, etc.
Portanto, o que consideramos como diferentes formas de violência e de exclusão, sejam elas
cometidas ou sofridas por crianças e jovens, é preciso considerar “que os jovens são muito mais
vulneráveis – e, portanto, vítimas – do que vitimizadores” (MORAES, 2005, p. 07).
Nota-se que temos de um lado a criminalização de crianças e adolescentes perante a
manifestação de comportamentos violentos; de outro, o reconhecimento que este mesmo grupo
também é a principal vítima da violência e do descaso público e institucional. Os dois lados de uma
mesma história da qual somos todos responsáveis; e na qual o último fenômeno – o sofrimento da
violência, da privação e do descaso – parece ser o elemento estruturante do primeiro – o
comportamento violento – que se constitui como uma variável dependente, portanto, no âmbito das
relações sociais estabelecidas, constituem-se as práticas de violência e indisciplina como norma e
como elemento cotidiano das interações sociais em diferentes grupos.
Neste ponto, a cultura da violência se desenvolve no universo juvenil e o recurso à
violência surge “como forma de obter ganho material ou simbólico; e de resolução de
conflitos em disputas interpessoais” (ZALUAR, 1992. p. 112). A relação social constitui-se
cada vez mais por estilos violentos de interação. Como complemento, o comportamento
10
antissocial do jovem estabelecido no contato com diferentes esferas e grupos sociais se orienta
muitas vezes como uma reação social contra o preconceito e o descaso. É a expressão mais
forte do sentimento de exclusão perante a sociedade, suas instituições e políticas públicas.
Na atuação institucional, as relações de poder estabelecidas pelo estado e sociedade ocorrem
mediante a “afirmação de poderes legitimados por uma determinada norma social, o que lhe confere
uma forma de controle social: a violência configura-se como um dispositivo de controle contínuo”
(SANTOS, 2001. p. 107). A autoridade do estado e as normas sociais se põem, com frequência,
através da violência institucional; ao mesmo tempo em que os campos político e social permanecem
omissos, também não possuem os interesses e não apresentam as estruturas mínimas para enfrentar
os desafios impostos pelas atuais condições de muitas crianças e jovens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O processo de criminalização, entendido como “avaliação
social de indivíduos em várias categorias socioeconômicas e atribuição de status a esses
indivíduos” (COELHO, 1978. p. 49), ocorre com frequência de forma imperceptível e
perversa, como por exemplo, a atuação violenta da polícia nos bairros pobres. A
criminalização permanece oculta quando se apresenta travestida com uma aparência de
política pública, mas quando escrutinada, percebe-se que opera somente em determinados
locais e para determinados grupos sociais. Ela também é perversa, pois não se apresenta com
o intuito de promover avanços na estrutura de atendimento desta população e obscurece a
atuação estatal, que não promove saídas efetivas à anomia na qual se encontra o universo das
crianças e jovens pobres de todo o Brasil.
Nota-se que as políticas públicas brasileiras voltadas aos grupos marginalizados, em
especial aos jovens pobres e de periferia, adquirem um caráter policialesco e repressivo. Elas
operam também para omitir e silenciar, portanto, o principal elemento dos problemas
apresentados: a violência e a pobreza – categorias que não podem ser associadas
obrigatoriamente – são resultados da desigualdade e da omissão do poder público e da
sociedade. Esta dicotomia é a manifestação estrutural dos dois lados da mesma história que
apresentamos anteriormente: o comportamento violento de um lado e a privação e o descaso
por outro. Talvez o contexto dos nossos jovens e a da nossa história de desinteresse e privação
não seja tão diferente daqueles jovens de Winston Parva apresentados por Norbert Elias:
11
Tal como os outros, eles se sentiam inseguros de seu valor, sua função e seu papel na
sociedade; não tinham certeza do que os outros pensavam a seu respeito, nem do que pensar
sobre si mesmos. No caso destes adolescentes maus rudes do loteamento, as angústias e
inseguranças comuns da adolescência acerca da própria identidade eram agravadas pela
instabilidade familiar e pela baixa estima em que suas famílias costumavam ser tidas. [...]
sempre tinham sido e continuavam a ser outsiders rejeitados (ELIAS, 2004. p. 144-145).
Tanto os “jovens outsiders” ingleses da segunda metade do século XX como os
“nossos outsiders” apresentam um comportamento “violento e desordeiro dos jovens de status
inferior, que desde cedo são instigados, através da rejeição e do desdém, a provocar e
aborrecer aqueles por quem eram rejeitados e desdenhosamente tratados” (ELIAS, 2004. p.
164).
Por todo o exposto, verifica-se que, assim como no início do século XX, a violência
praticada por jovens continua sendo entendida como um problema do indivíduo, de sua
família e do meio onde coabitam. Portanto, não sendo uma construção coletiva e social, a
defesa se faz em prol do afastamento daqueles que denunciam e evidenciam as contradições
sociais.
Diante deste cenário, pretendemos com o referido estudo ressaltar a necessidade de
encontrarmos outras respostas para enfrentar à violência infanto-juvenil, que certamente
transcendem a prática do encarceramento. Sob o nosso ponto de vista, esta tarefa cabe a toda
sociedade, principalmente aos órgãos de controle social e que executam a política pública de
atenção à infância e adolescência.
REFERÊNCIAS
ADORNO, S. Crime e violência na sociedade brasileira contemporânea. Jornal de Psicologia –PSI, n
1. p. 7-8, abril/junho, 2002.
ARIÉS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
BOARINI, M. L. Apontamentos. Maringá: Eduem, 1992.
BOARINI, M. L; BORGES, R. F. Demanda infantil por serviços de saúde mental: sinal de crise.
Revista Estudos em Psicologia. Natal: vol.3, n.1, 15-30, 1998.
BRASIL. Ministério da Saúde. Viva: vigilância de violências e acidentes, 2008 e 2009. Brasília, 2010
[Acesso em: 13 de agosto 2011]. Disponível em
http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/viva_2008_2009_30_11_2010.pdf.
12
COELHO, E. A criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade, In
Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro. FGV. Vol. 12. nº.2, 1978. (págs. 139 –161).
COSTA, J.F. A devoração da esperança no próximo. Folha de São Paulo. 22 set. 1996. Caderno
Mais, p.8
ELIAS, N. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
FALEIROS, V. de P. A política social do estado capitalista: as funções da previdência e assistência
sociais. São Paulo: Malheiros Editores, 1980.
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA [Unicef]. Situação mundial da infância 2011:
adolescência: uma fase de oportunidades. Brasília: 2011 [Acesso em 01 de abril 2011]. Disponível
em: www.Unicef.org/brazil/pt/resources_10342.htm.
GIL, Antônio Carlos Gil. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. São Paulo: Atlas, 2009.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA [IBGE]. Censo demográfico 2010.
Brasília: 2011 [Acesso em 25 março 2011]. Disponível em: www.ibge.gov.br/censo
LEITE, M. L. M. A infância no século XIX segundo memórias e livros de viagens. In:
FREITAS, M. C. (Org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.
MAGALHÃES JÚNIOR, A. P. Indicadores ambientais e recursos hídricos: realidade e
perspectivas para o Brasil a partir da experiência francesa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
MARX, K. A chamada acumulação primitiva. In: MARX, K. O capital. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1969.
MORAES, P.R.B. Juventude, medo e violência. Ciclo de Conferências Direito e Psicanálise, 2005
O ESTADO DE SÃO PAULO/C4. Jovens valorizam prazeres simples e a família. 08 de set.1996.
OLIVEIRA, M. L. B. de. Infância e historicidade. 1989. Tese de Doutorado (Doutorado em Filosofia
da Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1989.
OZELLA, S (org). Adolescências construídas: a visão da psicologia sócio-histórica. São Paulo:
Cortez, 2003.
PASSETTI, E. Crianças carentes e políticas públicas. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das
crianças no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2002.
ROSSATO, G. E. Infância abandonada e estado de bem - estar no Brasil: De menor marginalizado a
meninos e meninas de rua. Revista Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, v. 20, p. 17-24,
2008.
13
SANTOS, J. V. T dos. A Violência na escola: conflitualidade e ações civilizatórias. Revista
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.27, n.1, p. 105-122, jan./jun. 2001.
SANTOS, M. A. C. dos. Criança e criminalidade no início do século. In: DEL PRIORE, M. (Org.).
História das crianças no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2002. p. 210-230.
SILVA, J. C da. Educação e alienação em Marx: contribuições teórico metodológicas para pensar a
história da educação. Revista HISTEDBR On-line. Campinas, n.19, p.101 - 110, set. 2005
VOLPI, M. O adolescente e o ato infracional. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
ZALUAR, Alba. Violência na escola. São Paulo: Cortez, 1992.