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    Psicologia & Sociedade

    ISSN: 0102-7182

    [email protected]

    Associao Brasileira de Psicologia Social

    Brasil

    Cruz, Llian; Hillesheim, Betina; Guareschi, Neuza Maria de Ftima

    INFNCIA E POLTICAS PBLICAS: UM OLHAR SOBRE AS PRTICAS PSI

    Psicologia & Sociedade, vol. 17, nm. 3, septiembre-diciembre, 2005, pp. 42-49Associao Brasileira de Psicologia Social

    Minas Gerais, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=309326341006

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    Cruz, L., Hillesheim, B. & Guareschi, N. Infncia e Polticas Pblicas: Um Olhar sobre as Prticas Psi.

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    INFNCIA E POLTICAS PBLICAS: UM OLHAR SOBREAS PRTICAS PSI

    Llian Cruz

    Betina Hillesheim

    Universidade de Santa Cruz do Sul

    Neuza Maria de Ftima GuareschiPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    RESUMO: Este artigo objetiva discutir, a partir das formas pelas quais se constituiu a categoria infncia no Brasil, aatual configurao das polticas pblicas voltadas para essa rea, especialmente no que se refere s prticas daPsicologia. Entendemos a infncia como uma construo social, isto , como uma noo datada geogrfica ehistoricamente. Apontamos como a Psicologia se faz presente em temticas, tais como o estabelecimento de padres denormalidade e anormalidade, circunscrevendo etapas evolutivas em relao infncia. Como exemplo, citamos oJuizado de Menores, o Servio de Assistncia do Menor (SAM) e as Fundaes Estaduais do Bem-Estar do Menor(FEBEMs), bem como as atuais entidades de abrigos, j reordenadas a partir do Estatuto da Criana e do Adolescente(ECA). Para finalizar, problematizamos a insero da Psicologia no debate sobre as polticas pblicas, especificamentena rea da infncia denominada vulnervel.

    PALAVRAS-CHAVE: infncia; polticas pblicas; prticas psicolgicas.

    PSYCHOLOGICAL PRACTICES AND PUBLIC POLICIES FOR CHILDHOOD

    ABSTRACT:This paper aims to discuss the current configuration of public policies, especially from the psychologicalpractices, based on the ways the childhood category was created in Brazil. Childhood is understood as a socialconstruction, meaning here a geographic and historical knowledges schedule. By the setting of some disciplinaryapproaches, Psychology is highlighted in themes as such as patterns of normality and abnormality connected toevolution steps with the childhood. As examples the Juizado de Menores, the Servio de Assistncia do Menor (SAM)and the Fundaes Estaduais do Bem - Estar do Menor (FEBEMs) as well as the current shelters reorganized from theEstatuto da Criana e do Adolescente (ECA) can be pointed. So, a problematization about the interplay of the Psychologyon the public policies debate about the way childhoods vulnerability was proposed.KEY WORDS: childhood; public policies; psychological practices.

    Este artigo objetiva discutir, a partir das formas pelasquais se constituiu a categoria infncia no Brasil, a atualconfigurao das polticas pblicas voltadas para essarea, especialmente no que se refere s prticas daPsicologia. Entender a infncia como uma noo datadageogrfica e historicamente - e no uma etapa natural davida implica em trazer para o debate questes relativas famlia, aos vnculos mes/pais/filhos/filhas, escola, maternidade/paternidade, s formas de criao de filhos,etc. Portanto, ao falar em infncia no remetemos a umaabstrao, mas a uma construo discursiva que institui

    determinadas posies no s das crianas, mas tambmda famlia, dos pais, das mes, das instituies escolares,entre outros, instituindo determinados modos de ser eviver a infncia e no outros. Como assinala Bujes (2000), inveno da infncia associam-se formas de intervenosocial, implicadas em prticas de regulao e controle.

    Nesta perspectiva, apontamos que a Psicologia se fazpresente em todas estas temticas, estabelecendo, porexemplo, padres de normalidade e anormalidade,circunscrevendo etapas evolutivas (tanto individuaisquanto do grupo familiar), consolidando as prticasescolares de classificao e ordenao das crianas

    conforme seus desempenhos ou prescrevendodeterminados cuidados que devem ser dispensados scrianas.

    A partir destas consideraes iniciais, voltamo-nospara as polticas sociais pblicas direcionadas rea dainfncia no Brasil, compreendendo que suaimplementao, ao mesmo tempo em que se relaciona como conhecimento que produzido sobre a infncia por umadeterminada construo histrica, tambm produz essainfncia a que se prope conhecer. Dito de outro modo,as polticas pblicas vm constituir determinadas formasde ser criana e de se relacionar com as mesmas.

    A Infncia como Alvo das Polticas Pblicas

    Ao pensarmos em aes voltadas infncia no Brasil,convm destacarmos que a Roda dos Expostos foi a

    As rodas de expostos tiveram origem na Idade Mdia, na Itlia.Elas surgiram no sculo XII com a apario das confrarias decaridade, que prestavam assistncia aos pobres, aos doentes e aosexpostos. As rodas eram cilindros rotatrios de madeira usados emmosteiros como meio de se enviar objetos, alimentos e mensagensaos seus residentes. Rodava-se o cilindro e as mercadorias iam parao interior da casa, sem que os internos vissem quem as deixara. Afinalidade era a de se evitar o contato dos religiosos enclausuradoscom o mundo exterior, garantindo-lhes a vida contemplativa.Como os mosteiros medievais recebiam crianas doadas por seuspais, para o servio de Deus, muitos pais que abandonavam seusfilhos utilizavam a roda dos mosteiros para nela depositarem o

    beb. Desse uso indevido das rodas dos mosteiros, surgia o uso daroda para receber os expostos, fixada nos muros dos hospitais paracuidar das crianas abandonadas. Assim, o nome da roda provmdeste dispositivo (Marclio, 1999).

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    primeira instituio oficial de assistncia crianaabandonada no pas. A Roda constituiu-se como uma dasinstituies brasileiras de maior durao, tendo sido criadano perodo colonial e sendo extinta apenas na dcada de1950. Importante salientar que esta tinha a inteno demanter o sigilo/segredo do expositor, assim como oanonimato e o destino das crianas (Marclio, 1999;

    Venncio, 1999).Assistir s crianas abandonadas era uma incumbnciaaceita com muita resistncia pelas Cmaras. Desta forma,estas conseguiram fazer aprovar uma lei chamada Leidos Municpios, em 1828, em que abria a possibilidadede eximir algumas Cmaras dessa pesada obrigao.Assim, em toda a cidade onde houvesse umaMisericrdia, a Cmara poderia usar de seus servios paraa instalao da Roda e assistncia aos enjeitados querecebesse (Marclio, 1999, p.60), sendo que a parceria sedaria com a Assemblia Legislativa Provincial. A autoraenfatiza que, com isto, perdia-se o carter caritativo daassistncia, para inaugurar sua fase filantrpica,associando-se o pblico e o privado. Salienta-se que estalei tambm foi feita para incentivar a iniciativa particular aassumir a tarefa de criar as crianas abandonadas,liberando as municipalidades deste servio. Nestemomento, identificamos as primeiras alianas entrecaridade e governo, onde a caridade toma a iniciativa e ogoverno entra com a verba para a manuteno dosestabelecimentos criados. Logo, constatamos que asalianas/parcerias entre Estado e sociedade civil soantigas e atravessam a histria, onde a Igreja catlica marcasignificativa presena.

    Entretanto, no sculo XIX que a infncia comea a

    ganhar visibilidade, sendo definida como objeto de aoe interveno pblicas em todo o Ocidente, uma vez queas preocupaes relativas preservao e reserva demo-de-obra comeam a integrar o cenrio social e poltico(Silva Santos, 2004). Segundo a autora, eram preocupaesde origem europia, que foram trazidas com a vinda daFamlia Real, como os conceitos de trabalho como valor

    positivo e enobrecedor. Estes conceitos contrastaram como trao demeritrio do trabalho brasileiro, associado aosescravos e s pessoas sem valor na escala social. Paratransformar em qualidade o que era percebido como defeito,o poder soberano comeou a interferir nos paradigmas

    scio-familiares. Para tal, acionou um conjunto de saber-poder, como definido por Foucault. Estes se pautaram naintroduo das idias higienistas e eugnicas.

    Assim o perodo compreendido entre o fim do sculoXIX e incio do sculo XX caracteriza-se pela introduodas idias higienistas e eugnicas no pas. Nesta poca,

    embora o monoplio no atendimento a menores aindafosse de entidades privadas, percebe-se o fomento da

    participao do Estado nesse campo. Cabe assinalar aquio uso do termo menores, o qual remete a uma concepode infncia enquanto menoridade e relacionada a questesde responsabilidade penal. Segundo Bulco (2002), a

    preocupao em criar aes voltadas para o atendimento

    de crianas e adolescentes neste momento, vinculava-seespecialmente com a visibilidade de um grande contingentedesta populao vivendo nas ruas das grandes cidades,como resultado de mudanas econmicas e polticas, comoo fim do regime de trabalho escravo e a imigrao detrabalhadores europeus, acompanhados de umestreitamento do mercado de trabalho e um crescimentodesordenado das reas urbanas. Desta forma, oschamados menores tornaram-se um problema do poder

    pblico. As medidas higinicas, visando tirar as crianasdas ruas e intern-las em instituies apropriadas,denominadas casas de correo, tinham como mtodo aeducao pela disciplina do trabalho (Martins & Brito,2001).

    Neste sentido, percebe-se a preocupao com a gestoe a tutela dos chamados perigosos, instituindo-se a noode periculosidade. Deste modo, segundo Foucault (1996),os indivduos passam a ser considerados pela virtualidadede seus comportamentos e no por infraes efetivas. A

    partir desta noo, formam-se uma srie de instituiesnomeadas instituies de seqestro, cuja finalidade fixaros indivduos a aparelhos de normatizao, buscandoenquadr-los e control-los ao nvel de suas virtualidades.Tais formas de organizao e controle da sociedade socaractersticas do que Foucault convencionou chamar de

    sociedade disciplinar, onde um dos pilares desta avigilncia. Desta forma, o discurso do modelo disciplinar fundado na norma, produzindo uma sociedade denormalizao, na qual existe um grupo humano cujos limitesvariam de acordo com os outros. Essa norma serve paraque o indivduo possa balizar seu comportamento pelocomportamento mdio, codificado como normal.

    A preocupao com a preveno insere-se nestecenrio, o qual busca a vigilncia do que pode ser

    potencialmente perigoso. Um dos fundamentos da idiade preveno neste contexto apia-se na eugenia, com anoo de que a purificao da raa evitaria os caracteres

    nocivos presentes nas raas inferiores, entendidas aquiespecialmente como negros e mestios. Esta preocupaoestava relacionada com o inchao das cidades e os riscosque o aumento da populao urbana ocasionava sade.Com isto, h uma reorganizao da Medicina, que deslocaseu foco da doena para a sade, aumentando sua entradana sociedade, bem como sendo utilizada como apoiotcnico-cientfico ao exerccio do poder do Estado e dediferentes micro-poderes.

    Bulco (2002) refere que a higiene se fez presenteatravs do saber mdico, onde a preocupao erahigienizar os espaos pblicos para poder melhor control-los. Contudo, a limpeza das cidades passava pelos hbitos

    e comportamentos das famlias, tornando urgente ainterveno dos mdicos nesse campo, criando anecessidade de uma educao sanitria para as famlias.

    Foucault (1984) problematiza a concepo de neutralidade dossistemas de conhecimento que para ele esto sempre relacionadoscom a histria da modificao do poder. Assim, as formas deidentificao da loucura, sexualidade, etc., no so homogneasno decorrer da histria, mas esto articuladas emergncia denovas formas de funcionamento da sociedade. Essas idias no so equivalentes, mas complementares. Aprimeira, tendo como pressuposto a sanidade, o controle de doenas

    e epidemias, servindo quase que como padro esttico, comosinnimo de limpo, higidez. J a segunda, caracterizando uma crenanuma raa superior, numa humanidade racial, servindo de fator deincluso ou excluso social pela condio tnica/racial.

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    A preocupao dos mdicos com os altos ndices demortalidade infantil fez com que estes direcionassem ascampanhas para a formao de um novo modelo familiar.

    Neste sentido, aponta-se para a redefinio do papel damulher, uma vez que, atravs do discurso da valorizaodesta, visavam convenc-la da importncia do cuidado

    permanente e direto com os filhos. O discurso cientfico

    foi utilizado para persuadir a mulher de suaresponsabilidade pela felicidade do lar. A estratgia eratomar a mulher como alvo para atingir toda a famlia,especialmente as crianas.

    Para Corazza (2000), a infncia constituiu-se comoprtica discursiva e no-discursiva a partir de novasprticas de biopoder, ligadas aos emergentes mecanismosde governamentalidade das populaes e dos indivduos(p.224).A preocupao com o sujeito infantil, portanto,

    passava a se instituir cada vez mais como um problemaeconmico e poltico, alvo de inquietaes de aesmdicas, morais e pedaggicas.

    Associada interveno da Medicina, o campo doDireito tambm se voltou para a infncia, visto que ogrande nmero de crianas que perambulavam pelas ruas

    passou a ser compreendido como causa do aumento dacriminalidade. Conforme Frota (2003), o primeiro cdigode menores brasileiro data de 1927, sendo destinado aosmenores de 18 anos classificados como em situaoirregular4. Este cdigo delegava aos estados aresponsabilidade pela execuo do atendimento decrianas e adolescentes, caracterizando-se por umainterveno ativa dos mesmos no controle da populaocarente.

    A infncia tornou-se objeto dos juristas, sendo que

    neste perodo o termo menor foi incorporado aovocabulrio corrente (Bulco, 2002; Rizzini & Pilotti,1995).Para Rizzini e Pilotti (1995), no houve nenhum tipo de

    problematizao no que se refere categoria menor, aqual inclua as seguintes classificaes: abandonado,delinqente, desviado e viciado.

    Tambm a psicologia e a pedagogia se organizaramcom o propsito de estabelecer uma nova educao que

    possibilitasse a produo de um novo cidado e oassentamento de uma nova raa: sadia e ativa. Destamaneira, na dcada de 1920 disseminaram-se as campanhase reformas sob a denominao de Movimento da Escola

    Nova. importante salientar que a Escola Novavalorizava o discurso cientfico, especialmente os advindosdos estudos da Psicologia, com o objetivo de melhorconhecer aquela a quem se pretendia ensinar: a criana.Podemos dizer que a psicologia, no Brasil, se insere narea da educao entre 1931 e 1934, tomando as crianascomo objeto psico-mdico-biolgico, passveis de seremmedidas, testadas, ordenadas e denominadas normais eanormais. Pinto (2003) afirma que as mudanas em relaos escolas tiveram uma inteno prioritariamente

    disciplinar. Desta forma, a psicologia, ancorada em estudosexperimentais e de observao de crianas, vinha reforaras noes de variabilidade entre os indivduos e decapacidades individuais diferenciadas. A Psicologiaapresentava-se, portanto, como capaz de delimitar ascausas dos desvios de conduta, atravs do uso de testese da anlise da personalidade infantil, possibilitando aes

    preventivas e de correo das mesmas. Citamos comoexemplo desta prtica o Laboratrio de Biologia Infantil,rgo anexo ao Juizado de Menores, o qual foi propostoem 1935 e passou a funcionar no ano seguinte.

    Este Laboratrio tinha como objetivo auxiliar o Juizadonas funes de abrigar e distribuir as crianas quenecessitavam de proteo e assistncia pelas diversasinstituies disponveis. Assim, destinava-se a forneceras bases cientficas para o tratamento mdico-pedaggicoda infncia abandonada e delinqente (Oliveira, 2001,

    p.238). Ou seja, acreditava-se que o mesmo modelocientfico - de classificao - poderia transformar oaparelho assistencial, solucionando o problema dainfncia. Neste sentido, a psicologia apresentava-secomo um dos instrumentos capazes de determinar ascausas do desvio do menor. Assim, a investigao dosinteresses e do senso tico de crianas e jovens seriafeita mediante o uso de testes, objetivando no sclassificar, mas resgatar o desviante, enquadrando-o normatividade dos registros da mo-de-obra infanto-

    juvenil (Oliveira, 2001, p.240). Desta forma, os saberescientficos, especificamente o pensamento psicolgico,legitimou atitudes de excluso e desqualificao decrianas e jovens pobres e delinqentes, uma vez que fez(ou ainda faz) recair a teraputica sobre o indivduo

    desviante, esvaziando discusses quanto aos aspectossociais que compe o desvio.

    Martins e Brito (2003) apontam que a funo primordialna vigncia da Doutrina da Situao Irregular era a

    produo de relatrios tcnicos, nos quais enfocavam aetiologia da infrao e as causas da suposta

    desagregao familiar5 destes sujeitos. Os laudosdaquele perodo reproduziam o padro das elites sociaisno que diz respeito famlia, trabalho e moradia. Assim, afamlia era encarada como um pilar para a recuperao dos

    jovens denominados infratores. Contudo, o modelohegemnico espelhava-se na famlia nuclear burguesa,

    sendo que, por exemplo, no caso de um jovem no contarcom a presena do pai na famlia, esta j era consideradacomo desagregada ou desestruturada. Evidencia-se queo fator determinante que permitia incluir (ou excluir) estes

    jovens em certas medidas de re-socializao era a origemscio-econmica de suas famlias.

    Dentre os esforos para definir polticas sistemticasde interveno, com o intuito de recuperar e reintegrar

    4Duas categorias de crianas e adolescentes eram consideradas como

    em situao irregular: 1) delinqentes, isto , aqueles que haviam

    cometido algum ato infracional; e 2) abandonados, ou seja, aquelesque eventualmente se encontravam sem moradia fixa ou cujos res-ponsveis legais tivessem condutas tidas como contrrias moralou aos bons costumes.

    5 Utilizamos aqui o termo largamente empregado nos campos daPsicologia, do Servio Social, da Pedagogia, entre outros, para sereferir a famlias que no correspondem ao modelo hegemnico, oque seria causa, no entender de determinados tericos, de proble-mas/transtornos/desvios diversos em relao a seus membros. Tal

    termo costuma ser usado de forma naturalizada, isto , parte-se dacompreenso que existe um modelo familiar ideal, o qual deve ne-cessariamente ser desta forma para que seus membros possam terum desenvolvimento tido como saudvel e normal.

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    os jovens ao meio social, foi fundado o Servio deAssistncia do Menor (SAM), em 1942. Junto a estesurgem os reformatrios, que abrigavam sob regimedisciplinar menores delinqentes. A estrutura dosreformatrios era anloga ao sistema penitencirio(Martins & Brito, 2001). Assim, a disciplina e o trabalhoeram os meios empregados para corrigir condutas que

    respondiam a defeitos morais. Os idealizadores edefensores do SAM acreditavam que o modelo repressivo,bem como a conteno, faria extinguir a criminalidade.Entretanto, as crianas e adolescentes autores de atosinfracionais que chegassem ao Juizado eram consideradosdelinqentes natos, indivduos de m ndole e dotadosde alto grau de periculosidade. As instituies corretivas,sob o manto de uma proposta pedaggica adaptacionista,ou, mais tarde, reabilitadora, apenas institucionalizavam aexplorao da mo-de-obra de crianas e adolescentes

    pobres, inviabilizados pela lei (p.246).Com o Golpe Militar de 1964, o SAM foi extinto,

    instrumentalizando-se de fato a interveno pblica sobreas crianas e adolescentes, atravs da Poltica do Bem-Estar do Menor (PNBEM) e, posteriormente, o Cdigo deMenores. A partir do pressuposto de que o menor comconduta anti-social era considerado como um serdoente que necessitava de tratamento, a aocorretiva da FUNABEM fundamentou-se em mtodosteraputicos - pedaggicos desenvolvidos com afinalidade de possibilitar a reeducao e a reintegraodo menor sociedade. A FUNABEM voltava-se para autilizao de polticas de preveno capazes de evitar queo menor incorresse no processo que levaria marginalizao, medida que a marginalidade representava

    um fator de risco para a ordem e paz social. Assim, atravsda FUNABEM, o infrator teria acesso a um modeloeducativo no-repressivo. Acreditava-se que o tratamentobiopsicossocial reverteria a cultura da violncia quese propagava pelos subrbios com os conflitos entregangues e com isso contribuiria para acabar com amarginalidade, formando jovens responsveis para a vidaem sociedade (Passetti, 1999).

    A partir do processo de abertura poltica, a PNBEMcomeou a sofrer severas crticas, sendo a FUNABEMidentificada como uma escola do crime.Tornava-se visvela eficincia do Estado na produo de menores

    abandonados, menores de rua, menores em situao derisco, mediante polticas/prticas de excluso social. Paramodificar essa imagem, o discurso teraputico comeoua ser substitudo pelo dapreveno(Ayres, 2001).

    Concomitantemente, os especialistas da rea socialganhavam visibilidade. Segundo Coimbra (1995), atravsde seus saberes, muitos destes desqualificaram a vida decrianas pobres, interferindo (ou at determinando) emseus destinos, na medida em que apontavam para umaestreita conexo entre a criminalidade e a pobreza. Adiferena que a penalizao - nas dcadas de 1970 e 80 -era sustentada pelo discurso dos especialistas, o qualatestava o fracasso da famlia no atendimento prole. A

    autora salienta que, nos anos 1970, as prticaspsicolgicas eclodiram no pas de forma distanciada doschamados novos movimentos sociais, fortalecendo as

    subjetividades hegemnicas produzidas no perodo.Coimbra e Leito (2003) lembram que, na Doutrina deSegurana Nacional, tudo que escapasse s formas deinteriorizao naturalizadas era considerado perigoso, e,assim, deveria ser banido. Desta forma, duas categoriassobre a juventude foram produzidas: a do subversivo e ado drogado. Tas categorias escapavam ao modelo de

    famlia sadia e estruturada e com sonhos de ascensosocial, sendo que as prticas psi ajudaram a fortalecer ascrenas nos modelos e nas homogeneidades.

    Ayres (2001) salienta que a prtica de desqualificaorealizada pelos tcnicos do Juizado (psiclogos eassistentes sociais) legitimava os motivos da famliaquanto desistncia do ptrio poder6, supondo a pobrezacomo natural e imutvel, bem como associada incapacidade para assistir os filhos. Para Silva (1998), o

    princpio da destituio do ptrio poder6 afirmou-se nesteperodo e que a sentena de abandono retirou a crianada responsabilidade dos pais, da comunidade e dasociedade, transferindo-a para o Estado. Essa condio

    jurdica da criana justificou sua internao at os 18 anos a institucionalizao propriamente dita e configurou acategoria de crianas denominadafilhos do Governo.

    Considerando-se tais questes, bem como adivulgao e a repercusso dos dados da prpriaFUNABEM (a cada dois brasileiros menores de 19 anos,

    pelo menos um encontrava-se em situao de carncia)outra estratgia de assistncia populao infanto-juvenilfoi sendo gestada (Pinheiro, 2001). Durante as dcadasde 1960 e 70, foram elaborados diferentes projetos dealterao do Cdigo de Menores, sendo que estes sedividiam em duas posies no que se refere Declarao

    Universal dos Direitos da Criana, aprovada PelaAssemblia Geral das Naes Unidas, em 1959: umafavorvel incluso de seus dez princpios na legislao

    brasileira e outra contrria a esta incluso. O Cdigo deMenores de 1979 representou a posio contrria incluso dos princpios formulados pela Declarao dosDireitos da Criana de 1959, baseando-se na mesmadoutrina da situao irregular que pautava o cdigoanterior (Frota, 2003)7. A autora aponta que, neste Cdigo,no h distino entre crianas e adolescentes (todos soagrupados sob a categoria menor), sendo que os mesmosno so definidos como sujeitos de direitos, no havendo

    meno a deveres do Estado ou da sociedade, nempenalidades previs tas para quem cometer atos deviolncias contra crianas e adolescentes. Soconsideradas infraes somente aspectos referentes divulgao de dados e imagens, freqncia a determinadoslugares ou o descumprimento de deveres relativos ao ptrio

    poder por parte dos responsveis legais.Na dcada de 1980, as discusses sobre a temtica da

    infncia e juventude tiveram influncia direta dasnormativas internacionais. Em 1985, com a edio das

    6 Deve-se assinalar que, a partir do Novo Cdigo Civil (2002), estaexpresso foi substituda por destituio do poder familiar.7

    Volpi (1994) tambm se refere a duas vises antagnicas em rela-o ao trabalho com a infncia marginalizada, at o final da dcadade 1970. Uma de carter repressivo e assistencialista e outra, quesurgia dos movimentos populares, em defesa dos direitos dos jo-vens.

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    Re gras Mni ma s da s Na es Un id as pa ra aAdministrao da Justia da Infncia e da Juventude -Regras de Beijing-Pequim-, so estabelecidas exignciasprocedimentais, com o objetivo de diminuir a arbitrariedadena aplicao de medidas aos infratores juvenis. Odocumento normativo de maior relevncia, nesse mbito, a Conveno sobre Direitos da Crianade 1989, que

    incorpora a Doutrina da Proteo Integral8

    .Como resultado de toda essa articulao, foisancionado o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA),o qual estabeleceu o caminho para a interveno popularnas polticas de assistncia, traando as diretrizes da

    poltica de atendimento: criao de conselhos municipais,estaduais e nacionais dos direitos da criana e doadolescente, rgos deliberativos e controladores dasaes em todos os nveis, assegurando-se a participao

    popular paritria por meio de organizaes representativas,segundo leis federal, estaduais e municipais. Inicia-se aquiuma nova fase, desinstitucionalizadora, caracterizada pelaimplementao de uma nova poltica que ampliaquantitativa e qualitativamente a participao dasociedade na elaborao, deliberao, gesto e controledas polticas para a infncia, o que fundamental para agarantia da implementao da Lei (Brasil, 1990).

    Tendo traado at aqui a trajetria das polticaspblicas direcionadas infncia em nosso pas, dasprticas higienistas-eugnicas formulao do ECA,considerado um avano na constituio deste espao,cabe discutirmos, a seguir, algumas implicaes disto paraas prticas psi. Como estas compreendem/ descrevem/

    produzem a categoria infncia, em especial a infnciapobre?

    Prticas Psicolgicas e Polticas Pblicas para aInfncia

    Ao analisar o perodo de 1985 e 1994 (transio entreo Cdigo de Menores e o ECA), Ayres (2002) conclui quea posio do psiclogo como especialista perito ratificada, na medida em que seus discursos autorizados

    pela cientificidade acabam por conferir uma essncia sformas alternativas de convivncia familiar, pelodeslocamento do foco de questes sociais para osaspectos individuais. As questes sociais sodescontextualizadas, sendo que o discurso dos

    especialistas fragmenta o sujeito em dois plos distintos,ainda que tangenciados: indivduo e sociedade. A prticapsi hegemnica sustenta-se, assim, em determinadasferramentas tericas que produzem a naturalizao daperda do vnculo familiar em famlias pobres. Nas

    palavras de Gomes e Nascimento (2003): tal como osmdicos-higienistas e os juristas do incio do sculo,alguns dos atuais tcnicos recomendam medidasdisciplinares aos desviantes e o fazem apoiados em umsaber cientfico, tido como inquestionvel (p. 323).

    Lembremos que as relaes de poder so mltiplas eatravessam a produo do conhecimento, no havendo

    poder sem a constituio de um campo de saber (Foucault,1996). Os saberes so compreendidos como dispositivospolticos articulados com as estruturas sociais. Os efeitosde verdade no podem ser concebidos dissociados do

    poder e dos mecanismos de poder, visto que, como alertaFoucault (2003), esses mecanismos tanto tornam possveisas produes de verdade, quanto essas tm efeitos de

    poder, entrelaando-se, assim, verdade/poder, saber/poder. Voltando-nos para as prticas psi direcionadas rea da infncia, podemos perceber que psicologia endereada uma solicitao dicotomizada: individual/social; normal/patolgico; famlia estruturada/desestruturada. Deste modo, as prticas psi apiam-sefortemente em concepes naturalistas do conhecimento,calcadas na objetividade e neutralidade. O discursocientfico vem produzir subjetividades desqualificadas famlias incompetentes e negligentes colocando ossujeitos em uma posio de tutela em relao aoconhecimento dos especialistas, em especial do campoda Psicologia. As prticas psi, ao constiturem uma infnciatida como ideal, desejvel, normal, produzem assim umaverdade sobre determinados modos de ser e viver ainfncia.

    Entendemos ainda que, embora o ECA incorpore umasrie de questionamentos em relao s polticas sociais

    para a infncia9, podemos dizer que perdura uma noocompensatria no que se refere s crianas e adolescentes

    pobres, ou seja, estes so compreendidos como carentese em situao de risco. Constri-se, assim, uma infnciadita normal em oposio a uma infncia de risco, o quese entrelaa com a noo de uma essncia infantil, vistacomo natural e, portanto, fixa e imutvel. Deste modo, namedida em que se pretende igualar infncias desiguais tomando-se aqui a classe social como foco de anlise sua lgica formulada dentro de princpios cientficosque historicamente caracterizam as crianas a partir de ummodelo hegemnico, integrando-se aos valores

    defendidos pelo liberalismo.Os fins protetores da lei parecem estar sendo exercidosatravs de maior controle social, contudo, apenas quandoh visibilidade. Neste sentido, embora dirigido a todas ascrianas, apenas as pobres chegam ao conselho tutelarvtimas de maus-tratos e negligncia familiar, o que leva a

    pensar que, na inexistncia de carncia material, no se dvisibilidade a esta questo. Mesmo que o ECA afirme quea criana no possa ser retirada de sua famlia por motivoscio-econmico, no cotidiano o quesito pobreza aindadetermina os motivos de abrigamentos. Em umlevantamento recente feito em um abrigo governamental

    8 As discusses para a formulao desta transcorreram por uma dca-da, desencadeadas a partir de 1979, Ano Internacional da Criana,com o objetivo de atualizar a Declarao Universal dos Direitos daCriana, de 1959. A Doutrina afirma o valor intrnseco da crianacomo ser humano; a necessidade de especial respeito sua condiode pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infncia eda juventude, como portadoras da continuidade do seu povo, da suafamlia e da espcie humana e o reconhecimento de suavulnerabilidade, o que torna as crianas e os adolescentes merecedo-

    res de proteo integral por parte da famlia, da sociedade e doEstado, o qual dever atuar atravs de polticas especficas para oatendimento, promoo e a defesa de seus direitos (Gomes da Costa,1993).

    9

    Podemos apontar, entre outros avanos, o reconhecimento dascrianas e adolescentes como sujeitos de direitos e a substituio dotermo menor por crianas e adolescentes, buscando umadescriminalizao da infncia e juventude pobres.

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    Psicologia & Sociedade, 17 (3), 42-49; set-dez: 2005.

    47

    da Fundao de Proteo Especial, constatou-se que 78%dos motivos de ingressos referiam-se a negligncia dos

    pais (Santos, 2004). Considerando que 22% das famliasvivem com renda per capita inferior a do salrio mnimo10

    , como as famlias poderiam assegurar os direitos deacesso sade, educao, alimentao, esporte e lazer,conforme disposto no artigo 4? Quem est sendo

    negligente? A famlia ou o Estado? Para Fajardo (2002), oECA parece expressar este limite ao positivar comofundamentais muitos direitos econmicos, sociais eculturais, sem ter-se preocupado em normatizar ascondies de fato para sua garantia material. Assim, oestatuto limita-se a afirmar direitos e a atribuirresponsabilidades, distribudas entre a famlia, a sociedadee o Estado. Portanto, no entra na lgica do possvel,apenas enfatiza os direitos da criana como prioridadeabsoluta.

    Alm disto, ao afirmar as crianas como seres emdesenvolvimento, a infncia tomada a partir da ticaadulta, isto , como uma etapa de vida a ser superada eque necessita proteo integral, na medida em que compreendida como frgil e incapaz. Coimbra e Nascimento(2004) referem que, apesar dos inegveis avanosrepresentados pelo ECA, a prpria definio de crianase adolescentes como sujeitos de direitos tidos comoinerentes pessoa humana, isto , universais, relaciona-se tambm a uma proposta liberal (principalmente a partirdo pressuposto da igualdade), que os caracteriza como

    portadores de uma determinada essncia. Ao tratar osconceitos infncia e famlia como universais, o ECAdesconsidera outras formas de ver e viver a infncia, assimcomo outros modos de sociabilidade.

    Para ilustrar, trazemos a discusso de Fonseca (1999),que critica as prticas profissionais calcadas em modelosfamiliares (usualmente importados) que pouco auxiliam aentender a realidade de grupos populares no Brasil. Nessesgrupos, por exemplo, as redes de ajuda mtua e aslealdades duradouras se explicam atravs do sangue. Aautora sugere que descolonizemos o olhar para reconhecerque numa mesma sociedade complexa, podem coexistirdiversas configuraes familiares cada uma com umalgica interna. Como exemplo, podemos trazer a chamadacirculao de crianas em famlias brasileiras (Fonseca,1995). Esta se refere a uma tradio histrica conforme a

    qual as crianas transitam entre diferentes mes, tais comoav, madrinha, me biolgica e at vizinha. A partir disto,poder-se-ia imaginar que o ECA, ao tratar de modalidadesde famlia substituta (seo III, art. 28-52), contemplasseestes casos. No h, porm, nenhuma referncia a tal

    prtica. As sesses que versam sobre guarda e tutelaocupam pouco espao no texto do estatuto, havendo umaevidente valorizao do tema referente adoo plena(Fonseca, 2004).

    Outro exemplo refere-se s questes que envolvemcrianas e adolescentes autores de atos infracionais. EmPorto Alegre, a FEBEM deixou de existir em 2000. O

    atendimento foi dividido, novamente, em duas categorias:a Fundao de Proteo Especial (FPE), que se volta paraas crianas e os adolescentes que precisam de proteo ea Fundao de Atendimento Scio-educativo (FASE), aque compete os adolescentes em conflito com a lei. Este um campo de permanente tenso. Tenso que se acirraquando acontece uma rebelio na FEBEM de So Paulo,

    por exemplo, retornando propostas de retrocesso legal,como a reduo da idade penal, bem como a defesa de umsistema prisional para adolescentes semelhantes aos dosadultos.

    No que diz respeito aplicao de medidas scio-educativas, estas no so atribuies do Conselho Tutelar,mas permaneceram como competncia do Juizado daInfncia e Juventude. Alm desta diviso de origem,

    podemos lembrar a distino histrica entre as categoriasmenor e criana e nos interrogarmos se a criao deum Juizado especfico para examinar os processos deadolescentes em conflito com a lei (como o caso dePorto Alegre) no uma forma de perpetuao da clssicadiviso entre as crianas que precisam de proteo e asque precisam de correo, uma vez que remete o jovemautor de ato infracional para um atendimento jurdicodiferenciado. Junto a isto, nos deparamos com o fato deque o adolescente infrator ainda aquele pertencente aum grupo social especfico, originrio das favelas, ao

    passo que adolescente da classe mdia/alta, quandocomete delitos, tem destino singular, tanto no que se refere cobertura da mdia sobre o assunto, quanto aplicaodas penas.

    A partir disto, consideramos que, embora o ECApossibilite um prisma diferente sobre a infncia em relao

    s leis que o antecederam, esta continua sendocompreendida no singular, delineando modos de viver,sentir e agir e posicionando crianas e adultos comosujeitos em suas comunidades, a partir da determinaode direitos e deveres para uns(as) e outros(as). Nestesentido, Vianna (2002) alerta para a tenso entre a tradiouniversalizante dos direitos humanos e as diferenas entreos sujeitos, em termos de classe social e refernciasculturais11.

    10

    Dados extrados do VII Encontro Nacional de Articulao doConselho Nacional dos Direitos da Criana CONANDA, 2004.Painel intitulado: Infncia brasileira: breves comentrios sobre ocontexto atual, apresentado por Renato Roseno.

    11 Segundo Vianna (2002), a tenso entre o universal da infnciacomo valor e o especfico cultural ou social das infncias concre-tas tem sido tematizada em relatrios internacionais, como os pro-

    duzidos pelo European Centre Childhood Programme, que relatamo resultado de encontros entre representantes de 16 pases duranteos anos 1987, 1990, 1992 e 1993, buscando chegar a princpioscomuns de anlise e de ao a partir das diferentes realidades nacio-nais retratadas, ou em publicaes realizadas, como o peridicoChilldhood A Global of Child Research, que dedica parte de suasedies a temas como o choque cultural entre crianas de minoriastnicas ou imigrantes e as regulaes nacionais s quais esto legal-mente submetidas (p.302). A autora cita os trabalhos de SharonStephens, que tm chamado a ateno para o fato de que, porserem tomadas tambm como smbolos de futuro e objetos de pol-ticas culturais, as crianas permanecem na encruzilhada de projetosculturais divergentes. A natureza de seus sentidos, linguagens, redessociais, vises de mundo e futuro material base de debates sobrepureza tnica, iden tidade nacional , auto-expresso minoritria eautogesto, de modo que discutir critrios culturais de definio deinfncia significa necessariamente problematizar a questo das fron-teiras no mundo contemporneo e, conseqentemente, colocar emdiscusso o prprio conceito de cultura (p. 302).

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    Cruz, L., Hillesheim, B. & Guareschi, N. Infncia e Polticas Pblicas: Um Olhar sobre as Prticas Psi.

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    A doutrina de proteo integral clara em relao aseu destinatrio - a criana e o adolescente -, mas no emrelao ao seu mtodo nem aos objetivos - como e porque agir. Pode-se apontar a ambigidade do estatuto, vistoque, ao mesmo tempo em que conceitua a criana e oadolescente como sujeitos de direito, o que pressupeuma nfase na autonomia, tambm se apia em um enfoque

    intervencionista, tutelar (Fajardo, 2002).Analisar o ECA significa, portanto, perguntar sobre ainfncia que este produz e sobre os efeitos das prticas

    propostas/prescritas pelo mesmo. Nesta perspectiva,entendemos que diferentes prticas engendram objetossempre diversos, sendo necessrio desnaturalizarquaisquer noes totalizantes sobre a infncia que se

    pretendam permanentes e universais, provocando-se,assim, um contnuo questionamento sobre as relaesentre saber, poder e verdade.

    Para finalizar, gostaramos de dizer que asproblematizaes trazidas aqui so um desafio para ocampo psi.Concordamos com Coimbra e Leito (2003)quando concebem o campo das intervenes como umterritrio assumido como poltico, onde as lutas socotidianas. Apostamos na proposta transdisciplinar, ondeseja possvel a contaminao com outros saberes,criando outros territrios, outras possibilidades e outrasverdades, entendendo-se aqui que as verdades sosempre provisrias.

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    Llian Cruz Psicloga, docente do Departamento de Psicologia(UNISC), doutora em Psicologia (PUCRS). Endereo: UNISC,Av. Indep endnci a, 2293, Prdio 35, sl . 352 7, 96815-900. E-mail: [email protected]

    Be tin a Hille she im Psi cloga, doc ent e do Depar tam ent o dePs icolo gia (UNISC) , dou tor and a em Psicolo gia (PUCRS) . E-mail: [email protected]

    Neuza Maria de Ftima Guareschi Professora/pesquisadorado Programa de Ps-graduao em Psicologia (PUCRS),

    Coordenadora do grupo de pesquisa Estudos Culturais,Iden tidades/Diferenas e Teorias Contemporneas. Endereo:

    PUCRS, Av. Ipiranga, 6681, Prdio 11, sl. 930, 90619-900. E-mail: [email protected]

    Lilian Cruz, Betina Hillesheim e Neuza Maria de Ftima

    Guareschi

    Infncia e Polticas Pblicas: Um Olhar sobre as Prticas Psi

    Recebido: 29/05/20051 reviso: 30/09/20052 reviso: 24/11/2005

    Aceite final: 01/12/2005