Influência da Indústria Cultural na Música Sacra Brasileira
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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO
CURSO DE LICENCIATURA EM MÚSICA
INFLUÊNCIAS DA INDÚSTRIA CULTURAL NA ÉTICA E ESTÉTICA
DA MUSICA CRISTÃ BRASILEIRA
LEONARDO DA SILVA MORALLES
KLEBERSON MARCOS COSTA CALANCA
RAFAEL BELING ROCHA
ENGENHEIRO COELHO - SP
2011
LEONARDO DA SILVA MORALLES
KLEBERSON MARCOS COSTA CALANCA
RAFAEL BELING ROCHA
INFLUÊNCIAS DA INDÚSTRIA CULTURAL NA ÉTICA E ESTÉTICA
DA MUSICA CRISTÃ BRASILEIRA
Paper apresentado para a aprovação na disciplina
de Metodologia de Pesquisa, do curso de
Licenciatura em Musica do Centro Universitário
Adventista de São Paulo, Campus EC, sob a
orientação do Prof. Dr. Adriano de Sales Coelho.
ENGENHEIRO COELHO SP
2011
Sumário
1. Introdução .................................................................................................................................. 4
2. Breve histórico da Música Cristã ................................................................................................ 5
3. Os descaminhos da música sacra ................................................................................................ 8
4. Musica sacra do século XXI e Indústria Cultural .......................................................................13
5. Conclusão .................................................................................................................................16
6. Bibliografia ...............................................................................................................................18
4
1. Introdução
O presente trabalho tem por objetivo discutir as influências da Industria Cultural1 na
estética e na ética da música cristã brasileira do século XXI introduzindo a perspectiva do
pensamento do filósofo e compositor alemão Theodor W. Adorno (1903-1969).
Partindo dos primórdios da historia da igreja cristã, onde a música tinha seu papel
restrito dentro da liturgia, passando pela Reforma, que a popularizou entre todos na
congregação e chegando ao século XXI, onde a influência mercadológica fonográfica acabou
tornando-a em objeto de compra e venda, constata-se que a música cristã em determinados
momentos e ocasiões perdeu seu foco e sua estética original para suprir as necessidades e
interesses da sociedade, à medida que a axiologia desta sociedade se transformava.
Segundo Adorno (1983) o comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem
se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Este conceito aplica-se ao que hoje
vemos e ouvimos dentro da música sacra brasileira. A transição do modelo europeu da música
dos primórdios para o que temos hoje, uma produção musical que há muito perdeu o seu
sentido original, ocorreu por fatores estritamente econômicos e sociais. A linha do filosofo
continua apresentando que o individuo inserido nessa realidade pouco tem a escolher a não
ser se submeter a pressão do meio, uma vez que tudo o que lhe é oferecido já vem pronto e
enlatado. Não há necessidade de digestão do conteúdo musical.
1 A indústria cultural pode ser definida como o conjunto de meios de comunicação como, o cinema, o rádio, a
televisão, os jornais e as revistas, que formam um sistema poderoso para gerar lucros e por serem mais acessíveis
às massas, exercem um tipo de manipulação e controle social, ou seja, ela não só edifica a mercantilização da
cultura, como também é legitimada pela demanda desses produtos.
5
2. Breve histórico da Música Cristã
Este capítulo aborda os fatos mais relevantes da história da música sacra a fim de
estabelecer um panorama das mudanças ocorridas na liturgia do culto cristão. O objetivo não
é o estudo sistemático da história, mas apresentar uma breve visão das transformações que a
música sofreu em decorrência dos acontecimentos que mudaram a sociedade através do
tempo.
O Homem é um ser musical desde seus primórdios. Registros arqueológicos provam
que desde as mais remotas civilizações existiram manifestações musicais, sejam elas de
caráter religioso, militar ou até mesmo para entretenimento. A música como mecanismo de
adoração foi incluída nos rituais do templo do antigo Israel por volta do ano 1000 a.C. "Davi
disse aos chefes dos levitas que constituíssem a seus irmãos, os cantores, para que, com
instrumentos de música, alaúdes, harpas e címbalos se fizessem ouvir e levantassem a voz
com alegria " (1Cr 15,16).
Na época de Cristo já não se cantava da mesma maneira pois o povo de Israel vivia na
diáspora e a música litúrgica havia entrado em decadência, o que não impediu que o povo
cantasse nas sinagogas e nas grandes cerimônias e festas do Templo.
As primeiras comunidades cristãs foram além das tradições do
Templo. Agora a música cantada pelos grupos que formaram as primeiras comunidades cristãs recebeu a influência da música de origem grega. Outras
melodias e poesias surgiram (Ef 5.19). Dessa maneira, a liturgia cristã passou
a misturar as culturas musicais vigentes. Os cristãos começaram a cantar os
salmos de Davi ao "modo" das melodias gregas em língua latina. A música das comunidades cristãs passou a mesclar as diversas culturas daquela época.
(LIEVEN, 2006) 2
Fica evidente que já nesta época a música entrava em transição influenciada pelos
fatores sociais, econômicos e culturais greco-romanos e posteriormente seria caracterizada
pelos processos litúrgicos da Igreja Católica. Com a queda do Império Romano por volta do
ano 800 A.D., o mundo ocidental entra no período da Idade Média, onde a Igreja passou a ter
controle de toda a estrutura básica da sociedade. Nisto inclui-se a produção musical que era
predominantemente vinculado ao sacro, apesar da existência da música secular.
Aquilo que é sabido diz em grande medida respeito à música dos
primórdios da igreja cristã. Um aspecto de importância fulcral para a música
litúrgica foi a forte insurreição por parte da vasta maioria dos primeiros
2 Retirado de < http://www.luteranos.com.br/mensagem/artigo_arte_luterana9.html> Acesso em 15 nov. 2011.
6
compositores cristãos contra o uso de instrumentos musicais, porventura em
parte devido a sua associação com o templo pagão – onde seu papel era, ate
certo ponto, apotropaico – , mas também porque, aos olhos dos padres da igreja, os instrumentalistas faziam as suas atuações em contextos imorais
como os festins e o teatro. Esta condenação foi virulenta; observou-se que a
música instrumental foi descrita por São João Crisóstomo como a “pilha de
lixo do diabo” e que Arnóbio de Sicca alegou que ela transformava os homens em “prostitutos” e as mulheres em “meretrizes”. Não será, por conseguinte,
surpreendente a constatação de que só por altura do século XIX, período um
pouco mais liberal, é que os instrumentos, em particular o órgão, apareceram nas igrejas. Neste período havia, todavia, uma tradição firmemente
estabelecida da música litúrgica vocal, que continuou a dominar o culto
cristão. (LORD, et al., 2008 p. 13)
Até o Renascimento, iniciado no século XIII, essa forma continuou sendo padrão.
Uma das características principais do período era que a música se tornou estritamente vocal,
com poucos ou quase nenhum instrumento. Este fator foi decisivo na transição da música
medieval para a renascentista, onde se iniciou o uso de instrumentos musicais na adoração,
com destaque para o órgão.
Logo após, no século XVI, surge a figura de Martinho Lutero e a Reforma. Lutero
propunha a quebra dos rígidos padrões da Igreja, não somente em questões teológicas mas
também na questão musical. O pensamento católico não condizia com os princípios
apresentados por ele. Em carta escrita a Spalatinus, secretário de Frederick I, Lutero escreveu:
"(Nosso) plano é seguir o exemplo dos Profetas e os Pais antigos da Igreja e compor salmos
para as pessoas no vernáculo... de forma que a Palavra de Deus também possa estar entre as
pessoas em forma de música".
Eis o principio musical da reforma: fazer com que a adoração não se limitasse somente
aos momentos dos cultos nas igrejas e se tornasse algo na linguagem do povo criando assim o
conceito do canto congregacional e auxiliasse na pregação do evangelho. Novas tendências e
estilos musicais surgiram neste período e seus maiores representantes foram J. S. Bach, pela
igreja luterana, e G. F. Haendel, pela anglicana.
Desde esses tempos a música sacra tradicional não sofreu alterações significativas
apesar de a música secular ter evoluído por influencia do iluminismo e da secularização da
sociedade. Porem, os critérios estabelecidos no tempo da Reforma nortearam os caminhos da
música sacra pelos séculos seguintes.
No Brasil, a chegada da Família Real no inicio do século XIX trouxe consigo os
costumes e a religião da Europa daquele período. A cultura Brasileira era um reflexo da
7
cultura europeia e os primeiros sinais de criação musical eram estritamente ligados à estrutura
catequética. Ou seja, a principal intenção da música, nos primórdios do Brasil, era converter
os gentios em crentes. O povo nativo que vivia no Brasil era panteísta e a música cristã
europeia tinha como papel principal incutir a nova religião e os novos rituais religiosos
católicos. Podemos perceber a nova função da música de evangelização e não servindo apenas
para o culto e adoração.
Em 11 de novembro de 1620 o navio Mayflower atraca no porto de Cape Cod, em
Massachusetts, trazendo os peregrinos ingleses a América. Esse acontecimento marca a
entrada da igreja protestante nas Américas e sua influência na música sacra.
Com o advento do rádio, no final do século XIX, e da televisão, no inicio do século
XX, a música passou a ser transmitida em larga escala facilitando o acesso a esse conteúdo. A
chegada da indústria fonográfica também auxiliou para que a música entrasse nos lares sem a
necessidade de cantores ou instrumentistas. Surgia nos Estados Unidos o termo Gospel
(junção de God e spell), que pode ser traduzido como palavra de Deus, que era interpretada
por um solista e acompanhada de um coral e um pequeno conjunto de músicos, que se
popularizou por toda a América saindo das igrejas e partindo para a música comercial secular.
8
3. Os descaminhos da música sacra
É evidente que a sociedade se transforma. Isso acontece pelos mais diversos fatores:
guerras, epidemias, problemas socioeconômicos, religiosidade, comunicação e acesso a
informação. Ela é feita por pessoas, com suas características próprias e costumes. Portanto,
todas as mudanças ocorridas nesta devem ser de cunho humano, sendo diretamente interligado
com as ações humanas.
Das mais diversas manifestações culturais, a música figura entre as principais. Durante
a história do mundo ela fez parte significativa no desenvolvimento da humanidade. É uma
experiência ambivalente: “a música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do
instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento” 3. Ou seja, não há como
fazer distinção entre a expressão musical, em toda a sua abrangência, e a personalidade
individual do ser humano.
Orientada assim, a sociologia da musica tem uma dupla relação com seu objeto, que será tomado por dentro e por fora. A significação social que
habita a música em si mesma não é idêntica a sua posição e função social. Não
é segura a harmonia entre as duas esferas, e hoje a contradição entre elas é essencial. (ADORNO, 1983 p. 259)
A filosofia musical durante o tempo também se molda a sociedade na qual ela se
encontra. Observa-se tal conceito na função social exercida pela música na pré-história, que
era de alertar inimigos, comemorar a chegada das estações e das chuvas e, primordialmente,
no culto de adoração aos deuses. Mais tarde, com o advento do cristianismo, ela tornou-se
parte integrante e fundamental de todo o sistema litúrgico ocidental.
No início da era cristã, as influências culturais greco-romanas sobre a sociedade era de
forte impacto. Os primeiros cristãos encontraram dificuldades para desenvolverem suas
convicções religiosas, ao passo que necessitavam adaptar-se ás mudanças sociais e religiosas
do Império Romano. E a música se encontrava no meio deste conflito: paganismo e
cristianismo. Ambos buscavam o mesmo papel na música: o cristianismo tentava converter e
o paganismo lutava para que este deixasse de existir.
Os séculos seguintes se estruturaram em torno de tal embate. A Igreja passou a
dominar todo o pensamento que pudesse existir, e o Estado era comandado por ela. A este
3 ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão da audição. In Série Os Pensadores. São Paulo:
Abril, 1983, p. 165.
9
período dá-se o nome de Idade Média. Os moldes da música cristã primária foram definidos
por volta do século XIII e só veio a sofrer alguma alteração significativa três séculos depois,
na Renascença.
Segundo Grout e Palisca (2007), “Lutero [...] acreditava profundamente no poder
educativo e ético da música e desejava que toda a congregação participasse de alguma forma
na música dos serviços religiosos.” O canto congregacional surgia aqui, com a filosofia
luterana, contrapondo-se ao canto católico, somente interpretado por aqueles que lideravam os
cultos ou missas (padres, monges, bispos, etc.). O que aconteceria a partir desta reforma
musical seria de vital importância para entendermos a música cristã atual, por quais caminhos
andou e porque se encontra neste estado.
Como consequência da transferência da música para as pessoas comuns, que passaram
a fazer parte da adoração, ela tornou-se de uso popular, próxima da realidade humana. O
Concílio de Trento, um dos muitos da Contrarreforma, questionara de forma veemente a
popularização musical dentro da própria igreja, sendo tal questionamento surgido já nesta
época. A preocupação com a mistura entre o sacro e o profano era genuína. Em carta dirigida
aos clérigos sobre a questão musical em 1555, o papa alerta que deveria “banir-se da igreja
qualquer música que contenha, quer no canto, quer no órgão, coisas que sejam lascivas ou
impuras” 4
A estética da musica litúrgica católica do século XVI consistia no canto policoral
tendo como compositor mais importante Giovanni Pierluigi Palestrina (1525 – 1594) que
chegou a ser considerado o “salvador da música católica”. Lord (2008) afirma que Palestrina
“forjou um estilo que ainda é considerado o modelo para o contraponto diatônico rigoroso”.
4 Concílio de Trento – Cânone sobre a música a utilizar na missa. A. Theiner, Acta [...] Concili tridentini [...], 2,
1874, 122, trad. In Gustav Reese, Music in the Renaissance, p 449.
10
Figura 1 - PALESTRINA. Missa Papae Macelli - Kyrie
Uma das características principais do canto litúrgico católico era a língua latina. Em
contrapartida, a música da Reforma era baseada no vernáculo e de caráter homofônico.
Enquanto outros reformadores se mostraram hostis à música, LUTERO atribuiu-lhe um lugar
central na vida da Igreja e dos crentes (nas suas palavras, “deleitou-o e libertou-o de grandes
fadigas”). (MICHELS, 2007 p. 331)
Além disso, foram arranjados a quatro vozes por nenhuma outra razão senão o meu desejo de que a juventude, a qual afinal de contas deve e precisa
ser educada na música e em outras artes dignas, tenha algo com que se livre
das canções de amor e dos cantos carnais para, em lugar destes, aprender algo sadio, de modo que o bem seja assimilado com vontade pelos jovens, como
lhes compete. Também não sou da opinião de que, pelo Evangelho, todas as
artes devam ser massacradas e desaparecer, como pretendem alguns pseudo espirituais.
5 (LUTERO, 2000, p.481)
5 Obs.: Obras selecionadas de Martinho Lutero, Sinodal, p 481 - Die Vorrade dês Wittenberg Gesangbuches von
1524 – Vorrede Martini Luther, WA 35,474s. Tradução: Ilson Kayser.
11
Figura 2 - LUTERO - Ein feste Burg ist unser Gott
A música luterana tinha como função promover a educação da juventude exercendo a
função didática da religião e foi principal diferencial entre as vertentes católica e protestante.
As novas igrejas estavam se “despindo” de imagens. A liturgia era centralizada no estudo e na interpretação das Escrituras. Nesse contexto
eclesiástico a música tinha um papel significativo no pensamento de diversos
reformadores. A música substituía a função didática anteriormente ocupada pela pintura. (SILVA, 2008, p. 39)
A partir deste ponto o molde da musica sacra se definiu mantendo-se praticamente o
mesmo até os nossos dias. O que mudou durante todos esses anos não teve grande
significância para a música em si e sim para a sociedade em que ela se encontrava. As
influencias filosóficas, especialmente do Iluminismo, fizeram com que a produção musical
secular se desenvolvesse com notável destaque e influenciasse toda a produção musical sacra
do período.
É, antes de mais, na musica sacra católica do Classicismo que se
reflete a visão otimista da época, para além das doutrinas da fé cristã. Tal fato amplia o horizonte do compositor de musica sacra e o seu estilo. Nesse
aspecto, as missas de Mozart não se diferenciam de suas óperas na atitude
musical. [...] Este processo de paródia (como em Bach), responde à tradição da música sacra e, ao mesmo tempo, ao íntegro sentimento de vida do
Classicismo. O homem está impregnado de ideias, a sua existência e o mundo
12
são animados por uma harmonia religiosa, não no sentido eclesiástico, mas no
de um humanismo supra confessional cujo fim não é a atitude cristã própria
mas antes a sua consubstanciação. Apenas quando, no Romantismo, se perde este idealismo e a confiança na coerência do mundo, surge a crítica ao prazer
de viver e ao caráter profano da musica sacra do Classicismo. (MICHELS,
2007 p. 389)
Adorno (1983) reconhece que todas essas recriminações fazem parte do progresso,
tanto do ponto de vista social como sob o aspecto estético específico6. A sociedade sempre se
conectará a universalidade, o que fará sentir-se parte de uma coletividade7. É interessante
notar que a sociedade, no que se refere a tudo que é sacro, tende a reconhecer quando foi
longe demais. Quando as influências seculares atingem um grau elevado de mudança, que
torne o culto sagrado irreconhecível de suas origens, sempre há uma intervenção que leva ao
retorno a antiguidade. Assim como ocorrera antes no Concilio de Trento, no século XIX
pretendia-se banir da igreja tudo o que fazia lembrar a ópera. O fascínio da canção da moda,
do que é melodioso, e de todas as variantes da banalidade, exerce a sua influencia sobre o
período inicial da burguesia8.
Mendelssohn, no ano de 1829, suscitou um movimento de entusiasmo histórico de
sentimentalismo romântico em relação a música sacra e ao passado da Alemanha em geral. As
obras de J. S. Bach foram resgatadas após a execução da Paixão Segundo São Mateus o que
influenciou Brahms na composição do Deutsches Requiem, em 1868, sem ser, no entanto,
uma obra litúrgica. O próprio Brahms escolheu os textos e concebeu a obra segundo uma
arquitetura cíclica. (MICHELS, 2007 p. 436)
A musica sacra nos séculos XX e XXI é marcada pela influência do Negro Spirtual
americano. Os negros dos estados do Sul entoavam seus cantos espirituais nos ofícios
religiosos e apresentavam-lhes antigos costumes africanos como as palmas e batidas de ritmos
com os pés em ostinato, das chamadas danças de grupos frente à igreja e a participação ativa
na liturgia. (MICHELS, 2007 p. 541)
Conclui-se que “a musica não é um objeto de museu. Ela deve mover-se, deve viver. E
vive de um perigo sempre enfrentado, incessantemente ultrapassado, incessantemente
renovado, onde uns sucumbem, onde outros triunfam. Pois ela participa da crueldade da
natureza, assim como deu sua magnificência”. (BARRAUD, 1968)
6 In O Fetichismo na Música, Textos Escolhidos 7 Id Adorno & Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 18. 8 Id. P. 169
13
4. Musica sacra do século XXI e Indústria Cultural
Pode-se dizer que a sociedade passa por um período de revolução no pensamento
epistemológico moderno. E dentro dessa atmosfera de mudanças a música sacra proclama
pelo regresso a sua função de adoração e pregação do Evangelho. Nota-se que, no
decorrer de sua história, a música sacra atendeu as influências da sociedade perdendo, de
certa forma, o seu foco. As influências da estética secular trouxeram discussões
interessantes dentro das organizações cristãs, gerando, em alguns casos, divisão e a
criação de novos valores.
Aos comparar as noções musicais passadas com o estado atual da música, é possível
ver a grande metamorfose. Hoje, é muito difícil e complexo definir os padrões de uma
música, considerada “sacra” ou “religiosa”. A miscelânea de culturas e povos,
principalmente no Brasil, ofusca e mistura gostos e padrões musicais. Há muitos exemplos
atuais, em diversas áreas da música. É comum ouvir-se nas rádios grandes sucessos se
tornarem música “gospel”, como se fosse possível tornar uma música totalmente
secularizada, em sua essência original, em louvor para a adoração dos crentes.
Um exemplo notável observa-se na música intitulada “Eu Sou de Jesus”, do cantor e
compositor Lázaro. É bem sabido que este cantor teve sua vida musical criada nos
ambientes do Olodum e que, por muito tempo, participou deste grupo. Após a sua
conversão se tornou um cantor gospel e com isso trouxe os ritmos baianos do Pelourinho e
os mesclou á adoração. Para o público em geral, a música acima citada foi de imediata
assimilação, pois usou um grande sucesso do grupo (“I Miss Her”), muito famosa nos
carnavais de Salvador e apenas trocou a letra, inserindo a suposta “religiosidade” na
canção. Essa é uma atitude certamente questionável e, segundo os padrões definidos por
Adorno, é essa a movimentação principal da Indústria Cultural sobre a música: torná-la
mercantil, de rápida digestão e de pouca reflexão.
[...] proporciona, sim, entretenimento, atrativo e prazer, porém, apenas
para ao mesmo tempo recusar os valores que concede. [...] tal música contribui
ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. [...] A música de
entretenimento serve ainda – e apenas – como fundo. Se ninguém mais é
capaz de falar realmente, é óbvio também que ninguém é capaz de ouvir.
(ADORNO, 1983, p. 166)
14
Sim, vive-se a cultura do espetáculo, onde tudo é grandioso e deve mexer com os
sentidos, fazer emocionar, e deixar a razão de lado. A experiência sinestésica da fé altera
os valores musicais de maneira quase que rebelde. Suprir as necessidades da cultura
massiva tornou-se papel da música dentro das igrejas. As pessoas não tem mais que se
moldarem aos valores de uma determinada religião; ocorre justamente o contrário.
Podemos ver tal fato ocorrendo nas igrejas neopentecostais que adotaram a Teologia da
Prosperidade, onde o lema é: traga seu dinheiro e leve o seu Deus. Aqui vemos o ponto
crucial onde as atuações das forças da Indústria Cultural agem de maneira mais incisiva. A
fé tornou-se vendável, e com ela, o louvor.
Dentro deste campo pode-se citar outra canção. “Quem Avisa Amigo é” fala
diretamente sobre a questão do dízimo, de maneira muito coloquial. A cantora Rose
Nascimento, uma das muitas do meio evangélico, mostra na poesia da música os
princípios das ofertas e dízimos nas igrejas9, um tanto errôneos: os seus problemas, muitas
vezes, estão acontecendo porque o dízimo não foi entregue e, para que receba a bênção
plena, esse dinheiro deve ir para a igreja. No meio desse caminho, o sentido genuíno se
perde. A união entre uma poesia pobre, falha, com um ritmo altamente apelativo, cria uma
faixa de ruído intransponível.
Retornando aos caminhos tomados por Adorno (1983), o autor ressalta que “a nova
etapa da consciência musical das massas se define pela negação e rejeição do prazer no
próprio prazer”, ou seja, a momentaneidade do espetáculo musical, criado a para encher os
olhos e os ouvidos e para aumentar cada vez mais os lucros das gravadoras, passa assim
que esta música ligeira também é consumida. O prazer anula-se nele mesmo.
O prazer do momento e da fachada de variedade transforma-se em pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, cuja exigência está
incluída na audição adequada e justa; sem grande oposição, o ouvinte se
converte em simples comprador e consumidor passivo. (ADORNO, 1983, p.
168)
Inúmeros são os exemplos que podem ser dados desta situação. Os grandes shows
evangelizadores que crescem a cada dia são a mostra real e prática da estandardização10
da
música gospel. Mover massas e fazê-las comprar é o objetivo e propósito musical hoje.
São raros os casos em que a preocupação genuína com a conversão pela música, como o
9 Igrejas, aqui, se referem às igrejas neopentecostais, onde há manifestações espirituais como dom de línguas,
pentecostes, revelações, exorcismo de espíritos, etc. 10
Estandardização é a definição de padrões dentro de alguma área, que deve ser seguido sem muitos
questionamentos.
15
era com Lutero, se mostra evidente. Abandonar os padrões, agora considerados
ultrapassados, fora de moda, é sempre mais simples do que discutir, sintetizar e alterar as
questões que unem música, pregação de Palavra e fé.
Toda arte ligeira e agradável tornou-se mera aparência e ilusão. [...] A ilusória convicção da superioridade da música ligeira em relação à séria tem
como fundamento precisamente essa passividade das massas, que colocam o
consumo da música ligeira em oposição às necessidades objetivas daqueles
que as consomem. (ADORNO, 1983, p. 168-169)
A filosofia da Indústria Cultural não passa de criar falsas necessidades que nunca se
suprem por completo. E a mistura deste conceito com a música em si tem criado este
grande pandemônio de ritmos, princípios e confusões. Os grilhões desta cadeia estão a
aprisionar cada vez mais os futuros caminhos pelos quais a música percorrerá.
16
5. Conclusão
No decorrer de sua história, a música sacra atendeu as influências da sociedade
negando, em certo ponto, sua origem e princípios. As influências da estética secular
trouxeram discussões interessantes dentro das organizações cristãs, gerando, em alguns
casos, divisão e reforma. Barraud (1968) mostra que “é raro um reformador não se apoiar,
de inicio, sobre o que quer reformar; mas pode acontecer também que, remontando ao
passado, encontre nele uma tradição perdida, usando para criar uma nova”. Essa questão
do retorno da música as suas origens mostra que nem tudo está perdido: a tendência é a
regressão assim que se chega ao limite do caos.
É preciso olhar a verdade de frente. A verdade é que a musica sacra teve uma evolução
fulminante, que sistemas novos derrotaram violentamente velhos conceitos. A influência
da Indústria Cultural na musica sacra do século XXI transformou-a em produto de compra
e venda, de meio de obtenção de lucro tanto para gravadoras, como para algumas igrejas.
Entretanto, nem tudo são trevas. Existem atualmente alguns compositores que
decidiram não se ater a esta corrente; aqueles que, dentro de sua produção musical, têm
buscado retomar aqueles antigos princípios e moldes para definir os seus próprios
paradigmas musicais. É possível destacar, entre eles, o nome de Eric Whitacre.
Compositor moderno que em suas composições usa moldes da polifonia coral
renascentista, extraindo dela sua beleza e encantamento porem sem tornar-se arcaico.
Destaca-se, entre suas musicas, “Lux Aurumque”, que retrata, quase de forma visual, a
gloria e a grandeza que envolveu o nascimento de Cristo. As inúmeras dissonâncias na
musica são a prova de que a canção visita o passado e traz dele a essência musical que
tanto se esquece nos dias de hoje.
Ora, não há, jamais houve solução de continuidade na evolução da
musica. As tendências mais avançadas da produção atual são provenientes de uma espécie de lei natural que levou muitos progressivamente a desagregação
de uma linguagem e, a partir de certo momento, a tentativas diversas, seja de
insuflar-lhe uma nova juventude, seja de enriquecê-la com elementos novos, seja de substitui-la por sistemas suficientemente coerentes para se acreditarem
aptos a visar à sua sucessão. (BARRAUD, 1968, p. 158).
É preciso revisitar conceitos. Voltar-se ás origens, pois é nelas que se encontram o
firme alicerce da música. Toda a manifestação de arte que é superficial se torna pura
aparência e cria ilusões (ADORNO, p. 168). É preciso questionar veementemente os
17
rumos que a música toma, antes que o indesejável ocorra. Negar a problemática não é
viável, pois não traz solução alguma. Tomar atitudes é o que se faz necessário neste
momento tão crucial. O ser pensante quem em todos existe deve prevalecer, com sua
razão e pensamentos próprios, capaz de discernir o certo do errado, o bom do mau gosto.
Como dito, o comportamento valorativo do ser humano deve ser empírico. Olhar e
aprender, absorver experiências passadas. Deve-se evitar “a liquidação do indivíduo” que,
inevitavelmente, “constitui o sinal característico da época musical em que vivemos”. (Id.,
p. 170). Cabe escolher entre aceitar que tudo aconteça e assistir passivamente ou lutar para
que os padrões e valores voltem aos seus lugares originais.
18
6. Bibliografia
ADORNO, Theodor W. Ideias Para a Sociologia da Música. In: Série"Os Pensadores" -
Textos Escolhidos. 2. ed. Trad. SCHWARZ, Roberto. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
—. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Série"Os Pensadores" - Textos
Escolhidos. 2. ed. Trad. BARAÚNA, João Luiz. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
BARRAUD, Henry. Para Compreender a Música de Hoje.1. ed. São Paulo: Perspectiva,
1968.
DA SILVA, Hudson Pereira. Teologia e Arte: A Terminante Proibição da Utilização de
Imagens nas Igrejas Pós-Reforma. Rio de Janeiro: Faculdade Batista do Rio de Janeiro, 2008.
GROUT, Donald J. e PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa:
Gradiva, 1988.
LIEVEN, Guilherme. Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil: música, história e
adoração. Disponível em
<http://www.luteranos.com.br/mensagem/artigo_arte_luterana9.html>. Acesso em: 15 nov.
2011.
LORD, Maria e SNELSON, John. História da Música: Da Antiguidade aos Nossos Dias.
Eslovênia: H. F. Ullmann, 2008.
MICHELS, Ulrich. Atlas de Música. Trad. CARDO, Antonio Manuel. Lisboa: Gradiva,
2007.
SILVEIRA, Luis Gustavo Guadalupe. Uma Introdução a Crítica de Adorno a Música
Popular. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia/UFU, acesso em 2011.