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INFÂNCIA E MODERNIDADE LITERÁRIA EM JULIO CORTÁZAR
(O olhar a partir das margens)
CÁRCAMO, Silvia (UFRJ)
Uma das operações fundamentais da literatura moderna consistiu eminstalar um
olhar a partir das margens. A estética que possibilita essa mirada
aspiraàcontemplaçãodo mundo desde uma perspectiva diferente, menos convencional e
mais crítica. Julio Cortázar, como outros grandes artistas da modernidade, se valeu da
figura da infância para pensar uma das maneiras possíveis da visão alternativa que está
nas origens da estética moderna.
Quando se cumprem cem anos do nascimento do escritor argentino, em 1914,e
trinta de sua morte, em 1984, é estimulante voltar, a modo de homenagem, a sua obra
para pensar o modo como a noção moderna de infância, incorporada a seu projeto
expressivo, propõe uma visão a partir das margens. Crítico da sociedade de consumo,
dos convencionalismos e automatismos de comportamento, Cortázar representou as
ânsias de mudança da sua época se posicionando energicamente contra o império do
racionalismo. Uma das zonas que escapavam desse mundo autoritário e determinado por
objetivos prefixados era o território da infância.
Como demonstrou Philippe Ariès em L’Enfance et laViefamililialesousl’Ancien
Régime (1960) [Trad. No Brasil, com o título de História social da criança e da família
(1978)], a noção de infância foi uma construção histórica essencial, de enormes
consequências no processo da cultura moderna, a qual precisou da prévia e nítida
diferenciação entre o mundo adulto e o mundo infantil. A complexa operação histórica
descrita por Ariès possibilitou enxergar essa criança que permaneceu “invisível”, e por
tanto, irrepresentável, durante o longo período medieval: na iconografia estudada pelo
historiador, ela era simplesmente um adulto em miniatura. Quanto às representações
literárias, surpreende a ausência do que Ariès chamou o “moderno sentimento da
infância”, que corresponde “à consciência da particularidade infantil, essa
particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem”
(ARIÈS, 1986, p. 156).
Uma mudança fundamental ocorre nos finais do século XVII quando a escola vem
substituir a aprendizagem habitual até então, que se dava pelo convívio com o mundo
dos adultos. Com o colégio “Começou então um longo processo de enclausuramento
das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos
dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.” (ARIÈS, 986, p. 11)
A criação das instituições escolares, a separação por idades, a invenção do livro de
estudo, da literatura infantil, das teorias sobre a infância e o aparecimento de
dispositivos destinados ao mundo infantil fazem parte de um mesmo processo. Em
textos pré-modernos não se escreveram memórias do colégio ou da escola, narrativas
frequentes nas autobiografias modernas. Inexiste antes das mudanças descritas por Ariès
esse “biografema” da infância, para reiterar o termo de Roland Barthes, retomado por
Leonor Arfuch (ARFUCH, 2007, p.151).
O autor de L’Enfance et laViefamililialesousl’Ancien Régime, que publicou seu
livro em 1960, situa as pesquisas sobre a infância e a família no contexto da história das
mentalidades. O historiador sublinha que essa tendência somente se afirma na década de
setenta e salienta como acontecimento significativo a decisão da Sociedade de
Demografia Histórica da França, em 1973, de destinar um número especial da sua
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revista ao tema de “Crianças e sociedade” (ARIÈS,1995, p.160). Nas décadas
subsequentes, a história das mentalidades e os estudos sobre a infância, como parte
dessa orientação, extravasaram o interesse dos especialistas, penetrando, com um
sucesso formidável, no público amplo e na mídia. Lloyd deMause, outro historiador da
infância, prefere pensá-la, a diferença de Ariès, como “um pesadelo do qual começamos
a acordar há pouco tempo” (deMause, 1913, p.1) A história da infância implica, na sua
visão, reconstruir a memória de opressões e atrocidades de que foram vítimas as
crianças, da qual participaram instituições e estruturas como a igreja, a família, a escola
e o Estado.
O impacto do estudo pioneiro de Ariès foi decisivo, mas não imediato, visto que
ele não se situava na tendência dominante da historiografia, representando apenas numa
linha ainda incipiente de conceber a história. O interesse pela infância possibilitou
iluminar zonas antes desconsideradas da vida humana.
Das posições de Philippe Ariès pode ser inferida a ideia de que não existe infância
sem segredo. Se considerarmos que esse último remete à circulação dos discursos e da
informação à qual um grupo tem acesso e permanece interdita para outros, podemos
pensar que se trata de um assunto da linguagem. Embora o historiador não formule essa
ideia de maneira explícita, o que para ele instauraria a infância seria, precisamente, a
consciência moderna de que há discursos, palavras e enunciados que devem ser vedados
às crianças. Deduz-se que a separação entre o mundo dos adultos e das crianças afeta,
de modo poderoso, o campo da linguagem. Por outro lado, devemos reconhecer que a
infância não existe mais que como memória da infância, uma vez que ela é sempre
narrada ou interpreta por um adulto.
As pesquisas de Ariès encontram derivações interessantes nos estudos que focam
a incidência das transformações descritas pelo historiador no plano estético e
especialmente literário.
René Schérer, autor de Émile perverti (1974), segue de perto a Ariès quando
afirma que o século XVIII “foi o século que inventou a criança” (Schérer, 2009, p. 17).
No capítulo “A invenção da infância: entre as Luzes e o Iluminismo, a criança”,
incluído no livro Infantis, Schérer salienta as duas facetas dessa invenção. Por um lado,
há um aspecto racionalizante, pedagógico e normativo. Toda a sociedade é disciplinada
e “pedagogizada”. Por outro, o “sentimento de infância”, toma “a forma de uma estética
e de uma poesia, assim como de uma religião e de uma mística. Sentimento nascente de
uma emoção sui generis, que a reflexão transformará em filosofia”. (Schérer, 2009, p.
20). A criança é o outro que o adulto deixou atrás. Na infância identifica-se um encanto
que contagia ao homem já feito, despertando o sentimento de “inocência”. A criança
torna-se “fonte de uma iluminação de outra espécie” (Schérer, 2009, p. 22). Ela é o
começo e o fim, desbordando o tempo histórico “no que diz respeito à meta a atingir e
ao ideal” (Schérer, 2009, p. 22).
O crítico mostra numa passagem da obra Sobre poesia ingênua e sentimental
(1795),do poeta romântico Schiller, que a criança começa a representaro ideal de
liberdade.Sem abandonar o ideal do progresso da sua época, Schiller “anuncia já a
nostalgia do “infinito”, cuja encarnação é, nos primeiros românticos, a criança”(Schérer,
2009, p. 22). Segundo Schérer, para outro românticocomo Novalis, a criançaé um ser
misterioso, que traz a mensagem de um mundo desconhecido anterior ao nascimento.
São os enigmas que os artistas interpretam. Schérer lembra,ao final do seu ensaio, que
devemos a Walter Benjamim, “a expressão adequada para caracterizar a consciência
quase visionária que formará uma das dimensões de nossa modernidade: a “iluminação
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profana”, conservação e metamorfose do sagrado”(Schérer, 2009, p. 23).Não é por
acaso que Benjamin tenha prestado tanta atenção ao livro infantil, às recordações da
infância, aos jogos e aos brinquedos.
Afim ao pensamento de Schérer, o crítico espanhol Fernando Cabo Aseguinolaza
demonstra, emInfancia y modernidadliteraria,a íntima conexão da ideia moderna de
infância e o pensamento da modernidade literária, tomando como referencias centrais
Charles Perrault, Giambattista Vico e Jean-Jacques Rousseau. Antes, e como princípio
quase obrigatório para um espanhol, Cabo Aseguinolaza lembra de Lazarillo de Tormes,
o romance essencial da narrativa moderna. Na obra anônima de 1554 o olhar a partir das
margens está duplamente marcado: um adulto rememora a sua vida de menino pobre e
órfão escrevendo uma pseudoautobiografia na qual a criança quase não fala. Mas tão ou
mais importante do que a infância como narração, Cabo propõe pensá-la na sua
dimensão metafórica.
Voltando aos nomes centrais de Cabo Aseguinolaza, o crítico observa que Perrault
levou a tradição oral para a expressão escrita e transformou o conto popular em
literatura para crianças, sem atenuar em nada a violência e a brutalidade de antigas
tradições, instaurando, no entanto, a ingenuidade infantil como cânone estético. O
âmbito do passado e do popular conecta-se à infância, manifestando certa tensão que
deixa em evidência o encontro de tradições em pugna. Dessasoperaçõesderivam-
setraçosessenciais da modernidade estética, que o crítico sintetiza do seguinte modo “La
orientación hacia el pasado, el marco evocativo de la colección, la vinculación con la
palabra femenina, la receptividad hacia lo folklórico y oral prefiguran trazos que serán
recurrentes en la infancia posterior” (CABO ASEGUINOLAZA, 2001, p. 43). Não por
acaso Perrault participa da polêmica entre os clássicos e os modernos, se colocando, nas
suas intervenções, a favor dos modernos. No seu importante escrito
ParallèledesAnciens et desModernes(1690), o escritor relaciona infância da arte e
infância da humanidade. Cremos que um conto como “Bestiario”, o último do livro
homônimo de Cortázar pode ser interpretado a partir dessa transformação de antigas
lendas tenebrosas que chegam ao conto moderno. O ingênuo alia-se a perversão no
mundo infantil, propondo alegorias das relações de poder do universo adulto.
Por outro lado, segundo a interpretação de Cabo Aseguinolaza, o papel decisivo
de Vico na história da modernidade que corresponde à transição do século XVII para o
XVIII consistiu em oferecer uma alternativa ao racionalismo cartesiano. A sua posição
representou um esforço por conciliar elementos heterogêneos, contrários à rígida
linearidade cartesiana. O crítico faz notar que “el asombro ante lo desconocido, la
fantasía como facultad dominante, la facilidad para la prosopopeya, el lenguaje concreto
y onomatopéyico, el carácter fundamentador de las primeras percepciones, son
elementos que desde su atribución a la infancia se trasladan a la explicación de la poesía
y, en términos generales, a la cultura” (CABO AZEGUINOLAZA, 2001: p. 47). Poesia,
mundo primitivo e infância participam de uma trama complexa sobre a qual se funda
um dos grandes mitos da modernidade literária.
Por último, a partir da leitura do prefácio de Emilio ou a educação (1762), Cabo
Aseguinolaza visa salientar que para Rousseau o sujeito adulto constrói a infância
através da memória. O objetivo é forjar uma identidade que não existe previamente,
intervindo com a memória. Como expressa o crítico, “Desde el yo se afianza la idea de
identidad en la cual la infancia desempeña un papel primordial: es la postulación de la
infancia por un sujeto anhelante de un pasado personal sobre el que fundar su
conciencia de sí”(CABO AZEGUINOLAZA, 2001: p. 51). Diante da evidencia da
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proliferação de memórias, autobiografias e da consagração do bildugnsroman que
seguiram-se as Confissões, Cabo Aseguinolaza salienta como um aspecto relevante do
legado de Rousseau a visão narrativa da infância. No entanto, resulta interessante
constatar que o crítico também advertiu sobre o contrario, ao expresar que
“podríapensarse, incluso que laidea de lainfancia solo se realiza plenamente enla medida
en que se desentiende de lanarratividad. Es, en este sentido, también una presencia,
ligada a la mística interior o del niño eterno” CABO AZEGUINOLAZA, 2001: 53).
Cabo Aseguinolaza nos conduz, de esse modo, às próprias contradições e paradoxos que
provoca a noção da infância na modernidade. Se por um lado, a infância se identifica
com um passado que se organiza em narração, por outro ele não pode ser limitado à
ideia de anterioridade”. As contradições parecem inerentes à própria modernidade,
como notou Hans Robert Jauss ao afirmar que os mitos do começo, entre os que se situa
o mito da infância, se desenvolveram na era da Ilustração que intencionava destruir os
mitos. Como comenta o crítico espanhol “Casi al tiempo, esto es, de la visión lineal,
narrativa o teleológica impuesta por la Ilustración, surge la tendencia regresiva al
repliegue. Del mismo modo que la desmitologización ilustrada coincide con una época
marcadamente mitógena.” (CABO ASEGUINOLAZA, 2001, p. 57)
Essas considerações sobre infância e modernidade literária iluminam a dimensão
da memória que se abre com a presença insistente da infância na obra deJulio Cortázar.
Sabemos que abundam personagens infantis e vozes de meninos na sua ficção.
Para nos limitar a seus relatos mais famosos, basta lembrarmos que um conto como
“Bestiario”, já mencionado, recupera antigas e atemorizantes lendas e mitos infantis,
que o conto metafísico “Una flor amarilla” encarna na criança que o adulto foi o tema
do duplo, como modo de realização de um Outro sem dúvida inquietante, e que, por
último, no relato “Final de juego”, o grupo de crianças unidas por segredos, pactos e
regras conformam um mundo compacto de palavras e silêncios, distanciado do mundo
dos adultos.
A propósito de “Bestiario”, num artigo destinado a averiguar o caráter moral de
obra de Cortázar, Julio Matas identifica no conto que dá o título ao livro duas tradições.
Por um lado, a criança que sendo vítima da figura do mal (bruxa, ogro) consegue, por
astúcia, a autodestruição da força maligna. Mas também se pode reconhecer o herói ou a
heroína das lendas que vence o monstro. Ninguém pode deixar de advertir o simbolismo
da porta branca mencionada no início de “Final de juego”. Por ela, as crianças acediam
ao mundo misterioso de rituais e jogos que conduzia à liberdade: “Abríamos
despaciolapuertablanca, y al cerrarla outra será como um viento, uma libertad que nos
tomaba de las manos, de todo elcuerpo y nos lanzabahaciaadelante” (Cortázar, 1966: p.
182) Essa porta branca que aparece no começo do conto é mencionada mais de uma
vez: abrir a porta significa entrar em outra lógica que superando a que rege a vida
cotidiana, encontra-se dominada pelo jogo e pela imaginação.
Mas a presença da infância na obra de Cortázar não se reduz a uma questão
temática ou de uso de arquétipos. Antes de nada, essa noção intervém fortemente na sua
teoria do gênese da criação poética estreitamente relacionada com a memória. Essa
teoria se encontra esboçadaem Territorios(1978), o livro composto por ensaios poéticos
cuja inspiração nasce do prazer e da admiração que provocam no escritor as imagens da
arte –fotografias, quadros, esculturas. Em “Las grandes transparencias”, um dos ensaios
de Territorios, Cortázar escreve estimulado pelo fascínio que as cores luminosas dos
quadros do artista mexicano Leonardo Nierman suscitam no observador. As cores de
Nierman evocam as cores da infância. Uma nota inicial declara que os quadros do
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artista “despiertanenmílamaravilla de lainfancia.” (CORTÁZAR, 1978, p.106)
Memórias pessoais que se remontam a infância começam por eliminar, no entanto, o
uso da primeira pessoa. Um “eu” prefere delegar a enunciação num “ele”, em razão de
que “Lo autobiográfico termina por hartarlo” (CORTÁZAR, 1978, p. 107). Nesse gesto,
Cortázar vem coincidir com autores como Juan Goytisolo e Roland Barthes na
substituição do “eu” pelo “ele” em narrativas autobiográficas, assinalando o caráter não
unitário do sujeito, a sua radical alteridade.O “ele” recomenda entornar os olhos para
que a lembrança, como nos devaneios de que fala Bachelard, encontre as imagens das
experiências infantis. Antes do que episódios de vida, o escritor, inspirado nas imagens
de Nierman, encontra as visões da infância nas percepções visuais. Para que se produza
a emergênciadessasimagens “(...) primero se necesita el niño, ese eleata, ese
presocrático en un feliz y efímero contacto con el mundo que la razón no tardará en
distanciar y clasificar con ayuda de maestras patéticas y parientes sentenciosos”
(CORTÁZAR, 1978, p. 108). Desse modo, Cortázar aproxima o pensamento infantil do
pensamento dos primeiros filósofos gregos que acreditavam na indivisibilidade e
permanência do ser. A visão da criança, um ser surpreendido diante do universo,
aparece como condição do poético. As instituições sociais repressivas, como a escola e
a família, atentam contra a inocência do novo. Basta a leitura de um conto como “La
señorita Cora” para entender a visão de Cortázar sobre a opressão que os adultos
exercem sobre os mais fracos. Entre episódios comuns do biografema de infância, tais
como os jogos infantis, as doenças, as convalescências, os sentimentos de terror e
solidão, intervém a imagem visual predominando como experiência igual ou ainda mais
marcante que qualquer outra recordação. Antes do que no passado, encontra-se no
presente do poeta, “unniño que juegacon lentes e interroga a los astros” (CORTÁZAR,
1978, p.111), como versam as palavras finais do ensaio de Cortázar.
O escritor propõe, ao modo infantil “mirar o entorno como através de um
caleidoscópio” ou observar pelo vidro das bolinhas de gude, na busca de visões que
levem a experiências visuais únicas, como acontecia na sua experiência do menino
solitário que ele foi, quando se produzia certo distanciamento e estranhamento do
mundo do costume e do hábito.
A infância, para Cortázar, não está no passado: ela permanece no adulto. Essa
criança não desaparece nem no escritor que acreditou na possibilidade utópica de um
Homem Novo. Pelo contrario, quando “élentróenuntiempo tumultuoso y se
supolatinoamericano, no lohizocon desprecio nidespecho, sucorazónguardóel prestigio
de lasirisaciones y resonancias” (CORTÁZAR, 1978, p. 111) Radica no artista a figura
do monstro desajustado, em permanente trânsito entre a infância e a adultez; e essa
consciência expressa-se já no título do ensaio confissão intitulado “Del sentimiento de
no estar del todo”, segundo o qual Siempre seré como un niño para tantas cosas, pero uno de esos niños que
desde el comienzo llevan consigo al adulto, de manera que cuando el
monstruito llega verdaderamente a adulto ocurre que a su vez este lleva
consigo al niño, y nel mezzo del caminse da una coexistencia pocas veces
pacífica de por lo menos dos aperturas al mundo. (CORTÁZAR, 1984 : p.
30).
Essa ideia de não concordar com um modelo programado do humanoconduz a
pensar no monstro provocador, que saindo da ordem estabelecida é umadulto-criança e
uma criança-adulto. Monstruoso, precisamente, porque evoca a metamorfose e a
indecisão, sinalizando a possibilidade da mudança e do inesperado. A infância inspira a
forma de pequenos textos, entre os que resultam emblemáticos “Camello declarado
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indeseable” e “Discurso deloso”. No primeiro, a personificação de um animal
particularmente simpático às crianças é reiteradamente barrado na fronteira e “declarado
indeseable” pelos homens que representam um Estado (sem identificação exata). Mas
essa fábula, que parece tão infantil, deriva numa denúncia contundente contra uma
ordem mundial que proíbe a circulação livre de amplos setores provenientes das regiões
pobres do planeta. Com tristeza infinita, o camelo volta a seu oásis “Come um poco de
pasto, y despuésapoyaelhocico em la arena. Va cerrando los ojos mientras se pone el
sol. De su nariz brota una burbuja que dura un segundo más que él.” (CORTÁZAR,
1992: p. 97). Essa dimensão alegórica combina-se com recursos de uma linguagem
simples, de sintaxe paratática, quase de conto para crianças. Já o “Discurso deloso” nos
coloca diante de um grande paradoxo porque o urso fabuloso que vive nas tubulações
dos prédios, na realidade, não fala. Ele observa, como as crianças, o mundo absurdo dos
adultos, sem entender as suas convenções. Ambos parecem escritos para crianças
capazes de rir dos convencionalismos ou se lamentar por uma ordem errada de
sociedade. Mas o leitor construído nos textos é o leitor adulto, especialmente jovem.
Como já notou o crítico Nicolás Rosa, Cortázar formou uma geração de leitores jovens
que passaram de não ler nada a ler toda e qualquer literatura.
Nos momentos autobiográficos das inúmeras entrevistas que Cortázar concedeu
ao longo da sua vida, o biografema da infância emerge ligado a sua paixão pela leitura,
pela escrita e pela literatura. Em conversa com Ernesto González Bermejo para o livro
intitulado Revelaciones de um cronopio, o escritor se lembra da sua extrema
sensibilidade que o levava ao sofrimento durante a infância. A dor pela dor dos outros,
incluídos os animais, emergiria mais tarde na sua ficção. Relacionando experiência
infantil e literatura, Cortázar declara
Un niño con esa hipersensibilidad queda muy marcado. Entonces es bastante
lógico que cuando empecé a escribir, ya al final de la adolescencia, en la
primera juventud, todas esas capas que aparentemente habían quedado atrás
volvieran en forma de personajes, de semi confesiones, como es el caso del
cuento “Los venenos” y como es el caso de “Bestiario”. El fondo de
sensibilidad de la niña Isabel de “Bestiario” es el mío, y el niño de “Los
venenos” soy yo. En general los niños que circulan por mis cuentos me
representan de alguna manera. (GONZÁLEZ BERMEJO, 1979, p. 58)
Os meninos do universo narrativo de Cortázar sofrem pelos outros e por si
próprios. Por um lado, a infância se representa na literatura do escritor argentino como
narração: ambientes com crianças vivendo em famílias com pais, mães e tios narram
histórias ou são personagens de relatos. Por outro, o valor da infância não acontece no
plano narrativo. Seguindo a teoria de Cabo Aseguinolaza poderíamos pensar que está
pulsando nos textos uma nostalgia da origem, um modelo que estaria na pureza da
infância, como o mundo não contaminado e revelado quando são anulados os
condicionamentos do costume, dos hábitos e da ideologia. Não insistiremos, mais uma
vez, no valor do jogo (e do jogo como prática sagrada) em Cortázar.
O horizonte de leituras e preferências de Cortázar tem sido objeto de atenção por
parte da crítica. Segundo o próprio relato do escritor foi em 1932, numa livraria de
Buenos Aires, quando ele descobre o livro Opio, de Jean Cocteau, e com ele as
possibilidades do surrealismo. Mas o surrealismo de Cortázar se encontra mediatizado
pelas ideias e propostas da denominada “Nova esquerda”, que vigorou a partir dos anos
sessenta. Hernán Vidal estudou o modo como as principais reflexões desta corrente de
pensamento penetraram na poética de Cortázar. Em “Julio Cortázar y
lanuevaizquierda”, o referido crítico situa a obra de Cortázar em relação com o espírito
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da esquerda, que consolidou suas posições teóricas do período de após-guerra. Para
Vidal segmentos filosóficos do movimento beatnik dos anos cinquenta, o budismo zen,
o surrealismo, o anarquismo, a psicanálise e o marxismo se aliaram para produzir o
modo cortaziano de observar o mundo. Um desses dispositivos foi o olhar da criança.
Uma das referências declaradas de Cortázar está no pensamento de Gaston
Bachelard. O filósofo insiste na ideia de que “Por alguns traços, a infância dura toda a
vida inteira. É ela que vem animar amplos setores da vida adulta”, (BACHELARD,
1988, p. 20). Ao invés do que sucede com a “vida de acontecimentos”–da qual se ocupa
a psicanálise–, e na qual acontece o trauma, “a vida sem acontecimentos” corresponde
aos “devaneios da infância” (BACHELARD, 1988, p. 123), à infância feliz, ao mundo
das imagens que fazem compreender “a utilidade do inútil (BACHELARD, 1988, p.
110)”. Cortázar insistiu sempre na inutilidade do inútil para pensar o mundo como algo
mais do que um grande engrenagem econômico e utilitário. As férias nunca seriam as
férias programadas: era necessária a aventura para encontrar o novo.
Bachelard afirma que “É preciso viver, por vezes é muito bom viver, com a
criança que fomos. Isso nos dá uma consciência de raiz. Toda a árvore do ser se
reconforta. Os poetas nos ajudarão a reencontrar em nós essa infância viva, essa
infância permanente, durável, imóvel.” (BACHELARD, 1988, p. 21) As imagens dos
primeiros anos, formadas a partir do contato lúdico e material com o mundo,
permanecem no adulto e explicam a criação poética. Apoiado na psicologia profunda de
Jung, o filósofo refere-se às imagens, sublinhando que “Como os arquétipos do fogo, da
água e da luz, a infância que é uma água, que é um fogo, que se torna uma luz,
determina uma superabundância de arquétipos fundamentais.” (BACHELARD, 1988, p.
119) Embora a psicanálise de Freud tenha servido para interpretar a obra de Cortázar,
não seria difícil encontrar marcas profundas da visão de Jung.
Ao tratar dos relatos de infância como recuperação adulta de experiências da vida
da criança, Bachelard também salienta que imaginação e memória permanecem
indissoluvelmente unidas, sugerindo que a memória, nesse caso, inventa. O filósofo
esclarece que os devaneios recuperam as “imagens amadas da infância”, e por
consequência, nos conectam com recordações felizes e não com a memória traumática,
da qual o autor de A poética do devaneio prefere tomar distância. Para Bachelard,
emerge nesse sonho diurno a memória feliz da infância, assim como no sonho noturno
se manifesta o trauma. Na visão proposta por Bachelard, o tempo linear e sucessivo
resulta seriamente afetado, uma vez que a infância não está situada para o filósofo no
tempo passado. Ela faz parte, como para Cortázar, do tempo presente, e determina as
projeções do futuro. Nada de espiritualista existe no pensamento de Bachelard; pelo
contrário, devemos reconhecer uma visão profundamente materialista: na experiência da
criança que brinca com barro, que se deleita com o fogo e com sua explosão de cores,
com a água, se realiza uma aprendizagem a partir da matéria elementar do mundo.
Coincidiendo com ou como parte das comemorações de 2014, junto com Carles
Álvarez, Aurora Bernárdez, ex-esposa e herdeira da obra do autor de Rayuelae de tantos
contos e ensaios memoráveis, editouo maravilhoso livro Cortázar, de la A ala Z. Un
álbum biográfico. Fotografias do escritor, das cartas recebidas e enviadas, de lugares e
objetos ligados ao seu contexto vital, ou que evocam a sua obra, desenhos e textos da
sua autoria compõem essa obra de fragmentos e de diálogos interartísticos. A primeira
palavra, “Abuela”, reproduz um fragmento de Libro de Manuel. Imediatamenteembaixo
de umabelafotografia da suaavó, o texto refere-sea recordação da infância: “...la abuela
sacaba el mantel Blanco y tendía la mesa bajo el emparrado, cerca de los jazmines, y
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alguien encendía lalámpara y era un rumor de cubiertos y platos en bandejas, unas
charlas en la cocina, la tía que iba hasta el callejón de la puerta blanca para llamar alos
chicos que jugaban con los amigos en el jardín de adelante o en la vereda” (Cortázar,
2014, p. 9). Surpreendentemente, no romance mais questionado pela crítica por aspirar a
uma intenção política explícita, Cortázar aludea “porta branca” de “Final de Juego”,
introduzindo o simbolismo da liberdade ligada à experiência infantil. Nesse paraíso
evocado através da avó e da casa familiar, o escritor gestava seu universo imagético. A
revolução era o caminho para a fundação do homem novo, mas ela também deveria
incorporar a visão de um jogo, da instabilidade, da não conformidade com a ordem
estabelecida.
No verbete “Niños”, contemplamos uma fotografia de Cortázar, com um bebe
pequeno. Acompanhando à imagem, o texto do escritor, quem foi “um filho sem filhos”,
para usar a expressão com que Enrique Vila-Matas caracterizou a autores como Kafka,
foi extraído de Conversacionescon Cortázar, de Ernesto González Bermejo.
Reproduzimos, para acabar, um fragmento a modo de síntese “[a losniños] no trato de
imponerles mi estructura de entrada. Y el niño lo comprende perfectamente. Como lo
comprenden los gatos y los perros.” (Cortázar, 2014: p.194)
Pensadores como Octavio Paz e Antoine Compagnonsalientaran nos artistas da
modernidade a revolta contra a própria modernidade. Se a modernidade significou os
valores da razão e do progresso, também provocou a reação contrária a esses mesmos
valores. O caso de Cortázar é exemplar: seu pensamento libertário questionou a ordem
estabelecida, o conformismo, as limitações da sociedade de consumo, propondo um
olhar diferente, e esse olhar atento ao presente, mas também ao passado e ao futuro,
voltou-se reiteradamente às visões infantis como alternativas válidas.
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9
Silvia Cárcamo- Licenciada em Letras pela Universidade Nacional de Rosario (Argentina), Mestre e
Doutora em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estágios de pesquisa na
Universidade Autônoma de Barcelona (1991 e 2009). Professora nos cursos de Graduação em Letras na
UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. Co-organizadora de Narrativa espanhola
contemporânea (Niterói, UFF, 2012) Publicou em periódicos nacionais e estrangeiros artigos sobre
literatura hispano-americana e espanhola contemporâneas, especialmente referidos às problemáticas da
memória, da História e das subjetividades na contemporaneidade.
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