Injustiça e violência

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Artigo PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP Macapá, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 (In)Justiça e violência na Amazônia: o massacre da fazenda Princesa 1 Ed Carlos Sousa Guimarães Universidade Federal do Amapá, Brasil. Doutor em Ciências Sociais – Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor vinculado ao curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amapá. Interesse de pesquisa nas seguintes áreas: sociologia da violência, sociologia do crime e sociologia jurídica. E-mail: [email protected] RESUMO: A partir da análise dos autos do processo criminal que apurou a responsabilidade dos envolvidos na chacina da fazenda Princesa, este trabalho discute a prática da pistolagem no Pará e suas interfaces com o sistema de justiça criminal (polícia civil, ministério público e judiciário). O massacre em questão ocorreu próximo à cidade de Marabá/PA, no ano de 1985, a mando e a soldo de Marlon Pidde, fazendeiro. Os trabalhadores foram amarrados, sofreram torturas, foram queimados e jogados no rio. O fazendeiro foi ao mesmo tempo mandante e executor do crime. Além de contratar pistoleiros para matar os trabalhadores rurais, também participou diretamente da carnificina, ateando fogo a uma das casas dos trabalhadores rurais. Tendo em vista o caso, pretende-se: 1) compreender a violência embutida nos crimes de pistolagem; 2) explicar a complexa construção da impunidade pelas agências penais envolvidas na apuração das mortes por encomenda de posseiros e trabalhadores rurais envolvidos em conflitos pela posse da terra. Palavras-chave: violência, pistolagem, impunidade, Amazônia. ABSTRACT: (In)Justice and violence in the Amazon: the massacre of ‘Princesa’ farm. From the analysis of the cases that established the criminal responsibility of those involved in the massacre of ‘Princesa’ farm, this paper discusses the practice of gunmen system in Pará and its interface with the criminal justice system (civil police, prosecutorial and judicial). The massacre in question occurred near the town of Marabá/PA, in 1985, at the behest and pay of Marlon Pidde, farmer. The workers were tied up, were tortured, burned and their bodies thrown in river. The farmer was both instigator and executor of the crime. Besides hiring gunmen to kill rural workers also participated directly in the carnage, firing one of the houses of rural workers. In view of this case, it is intended: 1) understand the violence embedded in the gunmen's crimes, 2) explain the complex construction of impunity by the agencies involved in the criminal investigation of deaths by ordering and rural workers involved in disputes over ownership of land. 1 Este texto, adaptado para fins de publicação, é parte do último capítulo de minha tese de doutorado “A violência desnuda: justiça penal e pistolagem no Pará”, defendida no ano de 2010 no Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal do Pará (UFPA).

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Artigo PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 (In)JustiaeviolncianaAmaznia:omassacredafazenda Princesa1 Ed Carlos Sousa Guimares UniversidadeFederaldoAmap,Brasil.DoutoremCinciasSociaisUniversidadeFederaldoPar(UFPA).Professor vinculadoaocursodeCinciasSociaisdaUniversidadeFederaldoAmap.Interessedepesquisanasseguintesreas: sociologia da violncia, sociologia do crime e sociologia jurdica. E-mail: [email protected] RESUMO:Apartirdaanlisedosautosdoprocessocriminalque apurouaresponsabilidadedosenvolvidosnachacinadafazenda Princesa, este trabalho discute a prtica da pistolagem no Par e suas interfaces com o sistema de justia criminal (polcia civil, ministrio pblicoejudicirio).Omassacreemquestoocorreuprximo cidade de Marab/PA, no ano de 1985, a mando e a soldo de Marlon Pidde,fazendeiro.Ostrabalhadoresforamamarrados,sofreram torturas,foramqueimadosejogadosnorio.Ofazendeirofoiao mesmotempomandanteeexecutordocrime.Almdecontratar pistoleirosparamatarostrabalhadoresrurais,tambmparticipou diretamentedacarnificina,ateandofogoaumadascasasdos trabalhadoresrurais.Tendoemvistaocaso,pretende-se:1) compreenderaviolnciaembutidanoscrimesdepistolagem;2) explicar a complexa construo da impunidade pelas agncias penais envolvidasnaapuraodasmortesporencomendadeposseirose trabalhadores rurais envolvidos em conflitos pela posse da terra.Palavras-chave: violncia, pistolagem, impunidade, Amaznia. ABSTRACT:(In)JusticeandviolenceintheAmazon:the massacreofPrincesafarm.Fromtheanalysisofthecasesthat establishedthecriminalresponsibilityofthoseinvolvedinthe massacreofPrincesafarm,thispaperdiscussesthepracticeof gunmensysteminParanditsinterfacewiththecriminaljustice system(civilpolice,prosecutorialandjudicial).Themassacrein question occurred near the town of Marab/PA, in 1985, at the behest andpayofMarlonPidde,farmer.Theworkersweretiedup,were tortured, burned and their bodies thrown in river. The farmer was both instigatorandexecutorofthecrime.Besideshiringgunmentokill rural workers also participated directly in the carnage, firing one of the housesofruralworkers.Inviewofthiscase,itisintended:1) understand the violence embedded in the gunmen's crimes, 2) explain the complex construction of impunity by the agencies involved in the criminalinvestigationofdeathsbyorderingandruralworkers involved in disputes over ownership of land. 1Estetexto,adaptadoparafinsdepublicao,partedoltimocaptulodeminhatesededoutoradoA violnciadesnuda:justiapenalepistolagemnoPar,defendidanoanode2010noProgramadePs-Graduao em Cincias Sociais (PPGCS) da Universidade Federal do Par (UFPA). 110 Guimares PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 Keywords: violence, gunmen system, impunity, Amazon. 1 A violncia desnuda na pistolagem O desgnio deste trabalho consiste em analisar a prtica da pistolagem2 no Par e suas interfaces com o sistema de justia criminal, tendo em vista o assassnio de cinco trabalhadoresrurais,carnificinaqueficouconhecidacomoachacinadafazenda Princesa.Autilizaodopistoleiro3noParcomoumbraoarmadodeproprietriose empresasruraisspodeserentendidasatisfatoriamenteluzdapoltica desenvolvimentistaemodernizadoradoEstadobrasileiropensadaparaaregioa partir da dcada de 60 do sculo passado.AcompreensodaorigemdopistoleironoPartemcomopontodepartidaa ocupaoterritorial,violentaeracionalmentepensadadaAmazniaapartirdos sucessivos governos militares que conquistaram o poder poltico no pas por meio do golpemilitarde1964.Paradoxalmente,opistoleiroresultadodoprocessode modernizao s avessas na regio.Como sabido, no contexto dos governos militares priorizou-se a abertura clere da fronteira amaznica4, sob a lgica integracionista e desenvolvimentista. Tal abertura foi promovida por meios de projetos de infraestrutura, como a construo de rodovias, deimplantaodeprojetosdecolonizaoagrcola,deexpansodosetor agropecurio,pormeiodeincentivosfiscaisecreditcios.AAmazniatambm sofreriagrandestransformaespormeiodeinvestimentopblicoemgrandes projetos, como o Projeto Grande Carajs e a Hidreltrica de Tucuru5. Esse quadro geral de modernizao da regio amaznica aliado demanda por mais terras, resultante da implantao de sistemas extensivos de produo, como a produo bovina em pastagens e a explorao madeireira, por exemplo, fermentaro os conflitos agrrios que no tardaro em se degenerarem em violncia aberta. 2 Neste trabalho entende-se a pistolagem no Par como uma prtica violenta que se estrutura em rede. Participam diretamente dessa rede o mandante do crime, o intermedirio, o pistoleiro e vtimas. Outros atores sociais podem ser mobilizados, como agentes pblicos, para garantir a impunidade do crime. No Par, a violncia presente na pistolagem vazia de sentido e de valores, predominantemente aberta, no eufemizada, apresentando-se nua e crua. Valores morais como a honra e a vingana, portanto, no fazem parte de tais crimes que vitimam posseiros e trabalhadores rurais envolvidos em conflitos agrrios.3 Matador de aluguel, contratado por fazendeiros, grileiros e madeireiros, para ameaar de morte ou assassinar trabalhadores rurais, posseiros, agentes de pastorais ou advogados populares envolvidos em conflitos pela posse da terra ou pelo usufruto de recursos naturais na Amaznia, como o caso de conflitos envolvendo o uso de recursos florestais.4A caractersticacentral dafronteira amaznica aviolncia, a negao das alteridades, a radicalizao dos conflitos. O que central e sociologicamente revelador da realidade social na fronteira no o empreendedor pioneiro, mas a vtima, porque a partir dela que o aspecto trgico da fronteira ganha visibilidade. Aquele que sucumbe na fronteira o ndio, o posseiro, o garimpeiro, entre outros a figura mais importante e reveladora, do ponto de vista metodolgico, para se compreender a fronteira. Cf. MARTINS (1997). 5 O objetivo aqui apenas situar o leitor quanto ao contexto scio-histrico em que surgira a figura do pistoleiro. No de modo algum refazer os caminhos j trilhados pela vasta literatura j consolidada acerca desse contexto. Como tal bibliografia do conhecimento de todos que se dedicam ao estudo da Amaznia, permite-se aqui no cit-la.(In)Justia e violncia na Amaznia111 PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 De fato, o palco para o acirramento dos conflitos agrrios havia sido preparado. E osdiversosatoressociaisjestavamemsuasposies,prontosparaseenfrentar: garimpeiros,colonos,seringueiros,ndios,posseiros,ribeirinhos,fazendeiros, grileiros, empresrios, entre tantos outros agentes, ligados ou no ao Estado.O resultado da aplicao do modelo de desenvolvimento pensado para a regio foi desastrosoparaamplasparcelasdapopulaoamaznicaouparaapopulao migrante que para c afluiu sob a promessa de que na Amaznia existiam terras livres. Do ponto de vista fundirio, tal modelo expropriou a populao nativa, ignorando os sistemasdeapossamentopreexistentes,comoosdepopulaesindgenasenegras, remanescentes de quilombo6; desconsiderou por completo as formas pelas quais tais populaes produziam e estimulou a concentrao e a especulao fundirias.7

ConformesepodeinferirdaliteraturasobreamodernizaodaAmaznia promovidapelosgovernosmilitares,nadisputapelocontroledapossedaterrana regio amaznica, o pistoleiro foi o instrumento perfeito para remover os obstculos quesepunhamnocaminhodeproprietriosruraisindividuaiseempresas agropecurias que procuraram se instalar na regio. Nessesentido,omatadordegentefoiuminstrumentoprticoeobjetivo,no sujeito a prazos e ritos, logo, perfeito para a eliminao rpida daqueles que resistiram violncia assptica, burocratizada e legal promovida pelo Estado brasileiro na regio com vistas a sua modernizao. Com efeito, o matador de aluguel ser a manifestao mais aberta de uma prtica cotidiana da expropriao da populao nativa encabeada pelo Estado. Isto , o uso do pistoleiro por proprietrios rurais e empresas agropecurias a partir da dcada de 1960 no entra em contradio com o quadro mais geral de violncia monopolizada e empregada pelo Estado contra amplas parcelas da populao rural na Amaznia.8

A pistolagem no Par uma prtica social violenta que se constri, desenvolve-se e se mantm a partir de uma rede de poder complexa e dinmica. As pontas extremas e visveis dessa rede so constitudas com a participao de, pelo menos, trs agentes sociais:(a)omandante,ouautorintelectual;(b)opistoleiro,isto,oexecutorda ordem de matar; (c) o marcado para morrer.Muitocomumenteapistolagemcontacomaparticipaodointermedirioou corretordamorte9,oqualjuntamentecomopistoleirodevemcontribuirparaa invisibilidade jurdica do autor intelectual do crime. Ao corretor da morte cabe a tarefa deagenciaracontrataodosmatadores,acertandocomelestodososdetalhesda morte encomendada, inclusive, no que diz respeito logstica necessria para o xito do empreendimento criminoso. 6 Ver BERNO DE ALMEIDA (1989).7Oresultadomaisimediatodessemodelodemodernizaoededesenvolvimentofoiumaexplosode conflitualidades. Muitos desses conflitos degringolaram facilmente em violncia desnuda. Nesse sentido, Costa demonstra existir uma estreita relao entre o volume de incentivos fiscais destinados s empresas latifundirias e a freqncia dos conflitos fatais no Par. Cf. COSTA (2000, p. 60-61). 8 Sobre a relao entre a pistolagem no Par, os conflitos agrrios e o Estado ver, entre outros, COSTA (2000); IANNI (1978); EMMI (1995); LOUREIRO (1997); LOUREIRO & GUIMARES (2007); TRECCANI (2001). 9AexpressoutilizadanoRelatriofinaldaCPIdapistolagem,publicadaem1994.Ver,BRASIL. CONGRESSO. CMARA DOS DEPUTADOS (1994, p. 45).112 Guimares PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 Pertenceaessarededepoder,parentesepessoasligadas,dealgummodo,aos ameaados de morte e vtimas, alm do prprio sistema penal que sob o dispositivo da seletividade10 tendea manterintactasas relaes assimtricas de podervivenciadas entre os envolvidos nos crimes por encomenda. Aeficinciadapistolagemenquantocrimequepermaneceimpunerepousa justamente na fragmentao das aes delituosas, j que tal prtica procura isolar o autorintelectualdoexecutordaordemdematar.Issodeterminanteparao acobertamentoeaimunizaodomandantedocrime.Masnos.Osmandantes jamais seriam eclipsados se no contassem com algica seletiva do sistema penal, como mais adiante ser exposto. Outra caracterstica scio-jurdica da prtica de pistolagem no Par envolvendo o controle da posse da terra e dos recursos naturais repousa no fato de que ele um crime mediante paga. Da a pistolagem ser designada de crime mercenrio, em que a vida das pessoas negociada por uma determinada quantia de dinheiro. Em relao ao intermedirio,opagamentopeloagenciamentopodeserfeitotantosobaformade dinheiroquantosoboutrapromessaderecompensa.Opagamentoaopistoleiro, todavia, sempre em dinheiro. Por conta dessacaracterstica, a relao que o pistoleiro estabelece em relao vtimadecompletaneutralidadeedistanciamento.Narededepistolagemnoh espao para sentimentos: o pistoleiro no sente pena ou dio de quem executado. O matador de aluguel, nessa esteira de raciocnio, cumpre de modo impessoal o servio que acertado. comum, alis, encontrar nas fontes documentais o acerto de morte sendo chamado pelos pistoleiros como empreitada ou empreita. interessantechamaratenoparaacomparaoentreaprticadamortepor encomenda e a empreita. A empreitada um instituto do direito civil, no qual um agente contrata os servios do empreiteiro e o remunera para tanto. A relao entre os dois regida por um contrato e este, por sua vez, tem respaldo em estatutos legais. O pagamento em dinheiro a garantia que o empreiteiro executar o servio de acordo comasordensdocontratante.Arelaoaquiformal,impessoaleregidapela racionalidade legal.Na pistolagem, tambm h um contrato firmado entre o mandante e o pistoleiro.Tal qual no contrato de empreitada, um servio tambm contratado. H clusulas a seremrespeitadasporambasaspartes.Aempreitadeverserexecutadacom eficinciaepresteza,sendoapromessadepagamentoemdinheiroaforaque impulsiona o ato de matar. A propsito, o dinheiro a ficha simblica por excelncia da modernidade e seu poderdedesencaixeestexatamenteemseconstituiremummeiodetrocaque desconsidera ou nega o contedo dos bens ou servios, permitindo aos participantes 10 A seletividade penal consiste em um dispositivo de poder prprio de sociedades hierarquizadas edesiguais. Tal dispositivo estrutura o funcionamento do sistema de justia criminal e possibilita o exerccio do poder de modo arbitrrio e seletivo sobre os setores vulnerveis, contribuindo para a delimitao de espaos sociais e para adisciplinarizaodeindivduosqueapresentemcomportamentosdesviantes.Osistemapenal,assim,est estruturalmenteorganizadoparareproduzirasassimetriassociais,sejamelasdeclasse,gnerooutnica, criminalizando os indivduos pertencentes aos estratos sociais mais dbeis e imunizando as aes criminosas de segmentos poderosos (Cf. FOUCAULT, 2010; BARATTA, 2002; WACQUANT, 2007; ZAFFARONI, 2001). (In)Justia e violncia na Amaznia113 PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 que dele se utilizam a neutralizao de questionamentos ticos ou morais (GIDDENS, 1991, p. 30). O pagamento em dinheiro por parte do mandante ao pistoleiro a ficha simblica queoautorizaeoimpulsionaacumprirracionalmente,isto,damelhorforma possveledemodoimpessoal,aordemdematar.Odinheironeutralizaqualquer possibilidade em se falar de vingana, honra, valentia quando se trata da pistolagem no Par. A violncia na pistolagem , pois, desnuda.Nas fontes documentais possvel conferir o clima de aterrorizante normalidade em queumamorteencomendadaporfazendeiros.OdepoimentodeSebastioda Terezona, matador de aluguel, ilustra essa assertiva. O pistoleiro, por ocasio de sua priso, mencionou na J ustia a contratao de seguranas pelos fazendeiros Salim e CarlosChamiernosidosde1980.Conformeosautos,essesfazendeirosao contrataremSebastiodaTeresonaordenaramaelequeseporventuraposseiros viessem ocupar sua propriedade, o pistoleiro poderia abat-los (cf. processo criminal n 0696/89, fls. 161). Esses dois senhores foram os proprietrios da fazenda Pastorisa, localondenoanode1995foramassassinadostrsposseiros,eventoqueficou conhecido como a chacina da Pastorisa (cf. processo criminal n 006/96). O pistoleiro relata: [...]QuenafazendaPauPreto,depropriedadedoSr.Aziz Mutran recebia ordens expressas de retirar os posseiros, se no sasse (sic!) por bem que era para mat-los, e se matassem ele seriaoresponsvelequenareferidafazendasmorreuum posseiroqueforamorto por Goiano, que no este que est preso [...] Que na fazenda Tona de propriedade do Sr. Salim e CarlosChami,aordememrelaoaosposseiroseramas mesmas que se no fossem retirados por bem era para mat-los que houvedoishomicdios e que nesta poca o interrogado era gerentehdoismeses[...](Processocriminaln0696/89,fls. 162. Os grifos so meus). Aordemdematarporpartedosmandantesdireta,semrodeios,semqualquer ponderao de cunho moral. O que mandantes desejam o controle e o usufruto sobre aterraerecursosnaturais.Epistoleirosalmejamopagamentoemdinheiro.A violncia que ganha corpo na pistolagem, neste contexto, banal. Quem assassinado, por exemplo, nas redes da pistolagem no um inimigo do pistoleiro ou do mandante. A vtima somente um estranho e, como tal, pode ser eliminado fisicamente. Ela no temumrosto,umahistriadevida,umafamliaaosolhosdoscontratantesdos assassinatos.O executor do crime, por sua vez, cumpre um servio, uma ordem que tem origem em outrem, que por vezes, nunca chega a conhecer.De fato, aqueles que so assassinados nas redes de pistolagem muito se assemelham aos estranhos a que Bauman (1998) se refere. Os estranhos devem ser eliminados, pois esto fora de uma ordem dada, no se ajustam em lugar algum. So pessoas fora dolugar.Dessamaneira,constri-seosonhodeumaorganizaosocialpura, assptica, livre de pessoas indesejveis. 114 Guimares PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 Essa estraneidade atribuda s vtimas nas redes de pistolagem que permitir que elasprpriassejamresponsveisporsuamorte.Afirmar-se-,ento,queomorto estava envolvido em vrios conflitos; ou que fizera muitos inimigos em vida; enfim, o marcadoparamorrersempreumindesejvel,umestranhoqueperturbaaordem estabelecida e que acabou por construir a sua prpria cova. O marcado para morrer , enfim, transformado em um outsider11 (ELIAS & SCOTSON, 2000) nas redes de pistolagem. E essa condio determinante para que sua morte seja naturalizada. Aviolnciaqueirrompenasredesdepistolagem,dessamaneira,desnuda.O termo em questo no tem status de conceito, logo, no pretende explicar a pistolagem no Par sob qualquer aspecto. Trata-se apenas de um exagero, ao estilo weberiano ou atentandoparaaafirmaodeBourdieu(2000)dequeaspalavrastmpodere colaboram para a construo da realidade social, o termo um marcador para o fato de queaviolnciapresentenoscrimesdeencomendavaziadevalores, predominantementeaberta,noeufemizada,queseapresentanuaecrua,diferente, portanto, da violncia simblica, esta ltima violncia doce, sutil, insensvel e invisvel aos olhos e corpos dos dominados ou da violncia dotada de sentido e valores morais comohonra,vinganaevalentia,captadaporBarreira(1998)eCavalcante(2003) quando estudaram a pistolagem praticada em cidades e em reas rurais do Nordeste brasileiro. Os crimes de pistolagem so, assim, calculados e executados da forma mais rpida possvel. Os tiros que so dados so geralmente queima-roupa, no permitindo que a vtima esboce reao. Os projteis tendem a atingir cabea, peito e a nuca, por motivos bvios. No hlocais especiais para que o crime ocorra. Os matadores de aluguel, igualmente,noescolhemdeterminadoshorriosparaexecutaremosservios.A execuo das mortes por encomenda pode ocorrer mesmo durante o dia. Nas fontes documentais, comum encontrar a descrio do assassinato por meio de emboscada, dificultando a defesa por parte do marcado para morrer. Uma ltima caracterstica da pistolagem que nunca se v nas fontes consultadas refernciaamulherespuxandoogatilho.Emboracadavezmaishajauma criminalizaoqueincidesobreasmulheres,emsetratandodoscrimespor encomenda so sempre homens que executam a ordem de matar. As mulheres podem at estar presentes nas redes de pistolagem, mas devem agir nos bastidores. 2 O massacre impune12 11Nota-senasfontesdocumentaisqueasvtimasdapistolagemsoconstrudascomorepresentantesda desordememoposioaosproprietriosrurais,construdosnosautospenaiscomoumgruposocialj estabelecido, portanto, representantes de uma ordem social j consolidada. Trabalhadores rurais e posseiros que questionamodireitodepropriedadenosopercebidoscomoagentessociaisquereivindicamdireitose exercitam a cidadania, mas como indivduos que ameaam a ordem e promovem o caos social.12 Conforme a perspectiva terica que aqui se adota, um equvoco reduzir a questo da impunidade s situaes de condenao, absolvio ou priso temporria dos acusados de crimes por encomenda no Par. A sentena condenatriaouabsolutria,porexemplo,umaaovistosadoJ udicirioparaaqualsevoltamtodosos olhares. H, todavia, discretas aes e sutis omisses que no devem passar despercebidas, pois nelas tambm repousa a seletividade penal. A impunidade nos crimes de mando , dessa maneira, constituda de pequenos atos e midas omisses. Prazos legais so desrespeitados, como o que determina o prazo de dez ou trinta dias para a (In)Justia e violncia na Amaznia115 PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 NachacinadafazendaPrincesa,ocorridaem27desetembrode1985,cinco trabalhadores rurais tombaram por terra. Foram eles: Manoel Barbosa da Costa, J os BarbosadaCosta,EzequielPereiradaCosta,J osPereiradeOliveiraeFrancisco OliveiradaSilva.Osautosrevelamqueasvtimasforamamarradas,torturadase queimadas. Os cadveres foram jogados no rio Itacainas. O local da carnificina foi a fazenda Califrnia III (no passado conhecida como princesa), localizada prximo cidade deMarab/PA, cujo dono era MarlonPidde, garimpeiro quefez fortuna em Serra Pelada, tornando-se, posteriormente, fazendeiro na regio. Nota-se um carter sacrificial e ritualstico na chacina da fazenda Princesa, como queemumatentativadepotencializaroterroreomedoprpriosdetalprtica. Castigoscorporaisps-morteforamaplicadosnasvtimas.Ostrabalhadoresforam amarrados, sofreram torturas, foram queimados e jogados no rio. No foi suficiente a suspenso das vidas das vtimas; foi necessrio submet-las ao suplcio. Esse conjunto detorturasconstituiu-seematosexemplaresedisciplinadores,espciederecado macabro aos demais trabalhadores rurais envolvidos em conflitos agrrios.A agncia policial demorou consideravelmente para instaurar o inqurito policial. A portariainstaurandotalprocedimentododia07deoutubrode1985,quaseduas semanas aps o massacre.Poder-se-ia justificar a demora na instaurao do procedimento administrativo com a distncia entre a fazenda onde ocorreu a carnificina e a cidade de Marab, que era cerca de 100 quilmetros. Entretanto, consta nos autos que a testemunha Luiz Pereira Arruda, lavrador, no dia do evento criminoso, teve contato com outro trabalhador que lherelatouamortedostrabalhadoresnafazendaPrincesa.Segundoessaltima testemunha ela havia passado no rio Itacainas e avistou quatro corpos, amarrados a umapedra.DoisdessescorposeramosfilhosdeLuizArruda.Constaque, imediatamente,LuizprocurouadelegaciadeMarabpararegistraroocorrido (processo criminal n 084/89, vol. I, fls. 20). Como se conclui, nada foi feito nesse mesmo dia para investigar o assassinato dos lavradores. Essa informao confirmada em um depoimento de outra testemunha. Segundo Belizrio Vasconcelos [...] a denncia do crime fora feita quase de imediato, porm s feita a diligncia quando houve provas concretas da violncia e do crime, isto , quando apareceu os corpos no rio [...] (processo criminal n 084/89, vol. I, fls. 151). Fatosgravesatinentesatividadepolicialsoreferidosaqui.Mesmotomando conhecimento do crime no mesmo dia de sua prtica, a polcia s decidiu investigar aps o aparecimento dos corpos, contrariando o que determina o Cdigo de Processo Penal Brasileiro: concluso do inqurito policial se o indiciado estiver preso ou solto, respectivamente; ou aquele que prescreve queo Ministrio Pblico deveoferecer a dennciaem cinco dias estandoo acusado preso; processosficam engavetados ou se perdem nos escaninhos da J ustia; promotores e juzes julgam-se suspeitos para atuarem no feito; as investigaes policiais socaracterizadas pela desdia e nem por isso so questionadas, entre tantas outras pinceladas de infraes que somadas umas s outras do vida ao horrendo quadro de barbrie, violncia e impunidade que caracteriza apistolagem e a seletividade da justia penal no Par. Da a argumentao de que o massacre da fazenda princesa permanece impune, pois apesar de o mandante do crime ter sido preso vinte anos depois da ocorrncia da chacina verificam-se nos autos flagrantes violaes aos direitos humanos e aos direitos fundamentais das vtimas e de seus parentes, alm da inobservncia legalidade processual.116 Guimares PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 Art. 6oLogoquetiverconhecimentodaprticadainfrao penal, a autoridade policial dever: I - dirigir-se ao local, providenciando para que no se alterem o estadoeconservaodascoisas,atachegadadosperitos criminais (BRASIL. Decreto Lei n 3.689, de 03 de outubro de 1941). [...] A desdia policial foi determinante para a fuga de Marlon Pidde e do gerente da fazenda,envolvidosnacarnificina.Apesardisso,nenhumaautoridade,judicialou ministerial,requereuaapuraodetaisirregularidades.Soinfraeslatentes cometidas pela agncia policial que foram imunizadas (processo criminal n 084/89, vol I, fls. 151, verso). Como dito, foi preciso que os corpos dos trabalhadores em estado de decomposio fossemencontradosparadesencadearaaopolicial.Aprimeiradiligncia empreendida pela agncia policial ocorreu somente no dia 05 de outubro, por conta do registrodeeventocriminosofeitopelosparentesdosmortos.Ospoliciais,ento, deslocaram-se para o local do crime e l se depararam com [...] corpos boiando, todos elesamarradoscomcordadenaylonecompedrasamarradasemsuaspontas aprofundado no [...] rio [...] (processo criminal n 084/89, vol. I, fls. 28). Nesse processo, mais uma vez, constata-se o uso de uma pr-noo que permeia a viso de mundo dos prticos do direito sobre os conflitos agrrios e sobre a populao ruralsemacessoaterra.Essapopulaofiltradanosdocumentosjurdicos, reiteradamente,comoinvasoreseseusatosdeocupaodereasruraisso etiquetados como invaso (Cf. processo criminal n 084/89, vol. I, fls. 88, 99, 103, 151, entre outras).Tais palavras so colocadas na boca, inclusive, das testemunhas. Como se sabe, asdeclaraesdaspessoasconvocadascomotestemunhas,vtimasoucomo informantes a falar sobre o evento criminoso no so transcritas do modo como so pronunciadas para os autos. E nem podem. Testemunhas, vtimas e informantes so seres estranhos ao campo do direito. por meio da boca dos operadores do direito, agentesautorizadosaatuaremnomundojurdico,queosprofanospodemse manifestar(BOURDIEU,2004).Portanto,taismanifestaessofremediese,no raro, distores.O delegado Rodrigues de Almeida, no dia 08 de outubro de 1985, pediu a priso preventiva de trs indiciados: o fazendeiro Marlon Pidde, o gerente da fazenda J os de Souza Gomes e de Lourival Santos Rocha. Com exceo do ltimo, os demais haviam seevadidodaregio.MarlonpermanecerianacondiodefugitivodaJ ustiapor cerca de vinte anos. O crime de pistolagem sob anlise apresenta uma peculiaridade. O fazendeiro foi ao mesmo tempo mandante e executor do crime. Alm de contratar pistoleiros para matar os trabalhadores rurais, tambm participou diretamente da carnificina, ateando fogo a umadascasasdostrabalhadoresrurais.AparticipaodiretadeMarlonPiddefoi apontadapordiversastestemunhas,oquepossibilitoudesdelogoqueaagncia policial requisitasse a autoridade judicial sua priso preventiva. A J ustia somente se (In)Justia e violncia na Amaznia117 PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 manifestaria em 22 de outubro de 1985. Nessa data, decretou a custdia preventiva dos envolvidos, inclusive, dos pistoleiros (Cf. processo criminal n 084/89, vol. I, fls. 57). Aqui, mais uma vez, constata-se a faceta instrumental da violncia embutida nos crimesporencomenda.Omandantealmdeencomendaramortedetrabalhadores rurais,tambmparticipoudacarnificina.Querdizer,MarlonPiddenosesentiu intimidado pela lei, pela J ustia, pelo sistema penal. Por isso no ficou sombra dos pistoleiros.Porqueficaria,seahistriadajustiapenaldoPartemsidoada impunidade na apurao da responsabilidade criminal dos envolvidos nos assassnios de trabalhadores rurais? Marlon Pidde calculou suas aes brutais tendo emvista a certeza de que ficaria impune.Embora tenha sido logo requerida a priso preventiva do fazendeiro, a mesma no pde ser executada. Foi uma medida incua, j que foi tomada quase duas semanas aps o evento criminoso. Como Marlon Pidde havia participado da execuo do crime, noesperouserpresopelapolciaefugiudoEstado.Comoemoutroscasos, dificilmente, a J ustia se empenha no cumprimento dos decretos de priso preventiva por ela mesma expedidos.A denncia penal, elaborada pela agncia ministerial, de 23 de janeiro de 1986. O promotor denunciou o fazendeiro Marlon Pidde, seu irmo J oo Pidde, J os Gomes de Souza e Lourival Santos da Rocha. Mais tarde, o prprio Marlon Pidde revelaria em juzo que no possua nenhumirmo, mas quatroirms. Esse fantasma indiciado pelapolciacivil,apresentadocomoco-autordocrimepeloMinistrioPblicoe pronunciado pelo J udicirio ilustra muito bemo despreparo dasagncias penais na investigao e processamento do crime em questo. Ainstruoprocessualteveincionoanode1986.AJ ustiaconsumiu impressionantescincoanosouvindoastestemunhas.Em06deabrilde1992, finalmente,oMinistrioPblicorequisitouagnciajudicialapronnciados acusados, isto , pediu ao juiz que presidia o feito que os rus fossem julgados pelo Tribunal do J ri (cf. processo criminal n 084/89, vol. I, fls. 280). Enganam-se os que pensam que a denncia foi logo recebida pela J ustia paraense. Por motivos no justificados, a juza da comarca de Marab s pronunciou os quatro acusados em 20 de dezembro de 1995. Mais de trs anos foram necessrios, contados do oferecimento da denncia, para o J udicirio se manifestar. A juza tentou justificar o injustificvel argumentando que o processo havia sido bastante tumultuado, o que explicaria a demora na prestao jurisdicional (cf. processo criminal n 084/89, vol. I, fls. 301 e segs.). OacusadoMarlonPiddepermaneceuforagidodurantetodaafasedeinstruo processual, isto , por cerca de vinte anos. Apenas Lourival Santos da Rocha esteve, no princpio, disposio da J ustia, por se tratar do ru mais vulnervel s malhas do sistema penal. Mais tarde obteve na J ustia a revogao da priso preventiva. Nessa mesma data em que os rus foram pronunciados, a juza decretou a priso preventiva de todos eles. Mesmo tendo mais um mandado de restrio da liberdade decretado, Marlon continuaria completamente livre at ser preso em So Paulo no ano de 2006, pela polcia federal.118 Guimares PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 A fuga de Marlon Pidde e a no execuo dos mandados de priso preventiva contra eledecretadosspodeencontrarexplicaonaseletividadedosistemapenal.A propsito, h uma declarao nos autos em que uma testemunha esclarece na J ustia queMarlonsempreresidiuemGoinia.Declarou,ainda,queagentespoliciais paraenses foram at a casa do acusado em Goinia, mas no efetuaram sua priso: Que a testemunha declara que Marlon, mesmo antes do crime, sempreresidiuemGoiniaeltempropriedade;quea testemunhaafirmaqueduranteoperodoemqueMarlon encontrava-seforagido,vriasvezesforaprocuradoemsua residncia e que l conversavam com ele e depois iam embora; que sabe que foram policiais de Marab at Goinia e chegaram afalarcomMarlonenoefetuaramsuapriso(processo criminal n 084/89, vol. I, fls. 219, verso). Marlon Pidde s foi preso em 14 de maro de 2006 em So Paulo, por um agente da polciafederal.Portavaumacarteiradeidentidadefalsa,apresentando-secomo Marlom Lopes da Silva (cf. processo criminal n 084/89, vol. II, fls. 591). Em seis deabrilde2006,oadvogadodomandantedachacinaingressounaJ ustia peticionando a extino da punibilidade devido prescrio. O pedido no foi deferido (cf. processo criminal n 084/89, vol. II, fls. 597 e segs.). No ano de 2005, o processo foi desmembrado em relao ao co-re J os Gomes de Souza, j que os demais acusados encontravam-se foragidos. Em 2007, mais uma vez, oadvogadodofazendeirofezusodosrecursosjurdicos:ingressounoSuperior Tribunal de J ustia com um recurso pedindo a anulao da sentena de pronncia, mas teve seu recurso negado.As ltimas movimentaes do processo datam do dia 11 de maro de 2009. Nessa data,ojuizCsarLinsnegououtropedidoderevogaodaprisopreventivado mandantedachacina,bemcomodosdemaisacusados.Oprocessoaguardava designaodedataparajulgamento.Havia,ainda,nosautos,umpedidode desaforamentodojulgamento.Comoemoutroscasos,adefesadosrus instrumentalizaosistemaderecursosjurdicoscomvistasadificultarobom andamento do processo. UmdosaspectosquechamaatenonoprocessamentodachacinaPrincesao pouco empenho da J ustia em julgar o mandante do crime. Mais de vinte anos depois da chacina, a J ustia paraense realizava na Comarca de Santa Izabel do Par a primeira audincia de qualificao e interrogatrio de Marlon Pidde. No interrogatrio, Pidde negou todas as acusaes.Em sntese, eis o balano do processocriminal em questo: os pistoleiros nunca foramdevidamenteinvestigados,apesardealgumastestemunhasmencionaremnos autosascaractersticasfsicasdosmesmos.OsmembrosdoMinistrioPblicodo Parqueatuaramnofeitoaolongodeduasdcadas,igualmente,nuncase empenharam em requisitar investigaes sobre os matadores de aluguel. O mesmo se afirme em relao aos juzes que estiveram na conduo do processo. A priso de Pidde, aps vinte anos da prtica da chacina, s atesta a seletividade das agncias penais. Enquanto que os dois outros acusados estiveram em algum momento (In)Justia e violncia na Amaznia119 PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 disposio do sistema penal, o mandante do crime, mesmo tendo contra si inmeros mandados de priso preventiva decretados, permaneceu livre por cerca de vinte anos, inclusive, constituindo umaempresa em So Paulo. Sua priso tambm ps a nu a desdia e as trapalhadas das agncias penais no trato com os casos envolvendo a morte de trabalhadores rurais: J oo Pidde, um dos acusados, era um fantasma, conforme depoimento do prprio mandante.Nos autos no h nenhuma determinao judicial ou pedido de diligncias por parte daagnciaministerialdeterminandoainvestigaoadministrativaecriminalda conivncia da polcia civil paraense com a carnificina. Por que a policia demorou tanto parainvestigarocaso,violandoosprazosfixadosemlei?Porquenuncahouve empenho em executar os mandados de priso preventiva expedidos pela J ustia? Os policiais de Marab/PA estiveram, realmente, em Goinia, conversando com Marlon Pidde?Algumas perguntas, dentre tantas, podem ser feitas tambm em relao agncia judicial e ministerial: por que o pedido de pronncia dos rus elaborado pela agncia ministerial no ano 1992 s foi apreciado em 1995 pela J ustia? O Ministrio Pblico, por sua vez, no poderia ter questionado a morosidade do J udicirio paraense?As agncias penais, na apurao dos crimes de pistolagem no Par, so regidas pela lgica da irresponsabilidade organizada, isto , tais agncias acabam por imunizar as aesumasdasoutras,demodoquenenhumainstituioresponsabilizadapela impunidade.Taisaessojustamenteaquelasquepoderiamvirasofrer questionamentosjurdicos,casohouvesseumarelaodeefetivafiscalizaoe controle entre a polcia, o Ministrio Pblico e o J udicirio, em especial da agncia ministerial sobre as atividades policiais e judiciais.Issoparticularmentevlidoquandosepensaasrelaesentrepromotoresde justiaemagistradosqueatuamnosfeitoscriminaisaquiestudados.Emnenhum documento dos autos vem-se os promotores de justia questionando a injustificada paralisaodosprocessosnaJ ustiaouademoraemoPoderJ udiciriorecebera denncia penal.Comefeito,aagnciajudicialeseusjuzesparecemnoprecisarprestarcontas acerca dos servios que prestam populao. Ao ocupar o topo da pirmide formada pelas instituies que compem o sistema penal, o J udicirio aparentemente imune a qualquer crtica. Os promotores paraenses mantm uma relao de subservincia com asautoridadesjudiciais,conformesedepreendedosautos.Apassividadedos promotores de justia, no entanto, no explica tudo. A lgica parece ser esta tambm: oMinistrioPbliconoquestionaosatosdejuzes,paraqueesses,igualmente, imunizem as aes de desdia por parte da agncia ministerial.As divergncias entre as agncias ministerial e judicial concernente conduo dos casos de pistolagem que poderiam pr em risco a existncia do sistema penal so banidas, uma vez que os profissionais da lei esto fortemente integrados por meio de instncias hierarquizadas (BOURDIEU, 2004, p. 214).Todas essas infraes novm tona. Soviolaes subterrneas, latentes, no-oficiais. E, assim, devem permanecer, pois como lembra Zaffaroni (2001, p. 26), se todos os crimes fossem investigados, processados e sentenciados, certamente ningum 120 Guimares PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 escapariadacriminalizao.Inevitavelmente,osprpriosoperadoresdodireito como juzes e promotores de justia que atuam na apurao dos crimes de pistolagem noParteriamsuascondutasfiltradasemalgummomentocomoinfraes administrativas ou como delitos penais.TodososabsurdospresentesnodeslindedachacinadafazendaPrincesapelo sistema penal paraense so coerentes com o dispositivo da seletividade que tende a permitir a criminalizao sobre os setores mais vulnerveis da sociedade. Nessa esteira de raciocnio, possvel sustentar que a justia penal est estruturada de uma forma a impediralegalidadeprocessualnassituaesemquesetratadecriminalizaras pessoas mais afluentes da sociedade.Referncias bibliogrficas BARATTA, Alessandro. 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Caso: chacina Ub Processo criminal n 0696/89 Comarca de So J oo do Araguaia/PA (e atualizaes doprocessonostiodoTJ E/PAnoseguinteendereo: ). 122 Guimares PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAPMacap, n. 3, p. 109-122, dez. 2010 Acusados: J os Edmundo Vergolino, Valdir Pereira de Arajo, Raimundo Nonato de Souza e Sebastio Pereira Dias. Vtimas: J oo Evangelista Vilarina, Francisco Pereira Alves, J anurio Ferreira Lima, Luis Carlos Pereira Souza, Francisca de tal, J os Pereira da Silva, Valdemar Alves de Almeida, Nelson Ribeiro. Artigo recebido em 09 de novembro de 2010. Aprovado em 30 de dezembro de 2010.