Inocência e Transcendência Sobre a Crítica de Haufniensis à Aplicação Da Aufhebung Hegeliana...
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INOCNCIA E TRANSCENDNCIA: SOBRE A CRTICA DE HAUFNIENSIS APLICAO DA AUFHEBUNG HEGELIANA NO MBITO DA TICA.
Ramon Bolvar C. Germano105F297 1369BUniversidade Federal da Paraba (UFPB)
1371BRESUMO: O presente artigo visa exposio e ao esclarecimento de uma das principais crticas que Kierkegaard/Haufniensis dirige contra Hegel em O Conceito de Angstia. Trata-se da distino feita pelo pseudnimo entre a inocncia e o imediato. Lanando mo de algumas passagens centrais da lgica hegeliana (Enciclopdia e Cincia da Lgica) mostramos como Kierkegaard/Haufniensis desenvolve uma crtica direta contra a identificao hegeliana entre inocncia e imediato. Em ltima anlise veremos como essa crtica dirige-se contra a aplicao da Aufhebung hegeliana em um mbito tico e existencial. 1372BPalavras-Chave: Kierkegaard, Hegel, Inocncia, Aufhebung. 1373BABSTRACT: This paper aims to exposure and clarification of one of the main criticisms that Kierkegaard/Haufniensis directed against Hegel in The Concept of Anxiety. This is the distinction made by the pseudonym between innocence and immediate. Drawing on some central passages of Hegelian logic (Encyclopedia and Science of Logic) show how Kierkegaard/Haufniensis develops a direct criticism against the Hegelian identification between innocence and immediate. Ultimately we will see how this criticism is directed against the application of the Hegelian Aufhebung in an ethical and existential context. 1374BKeywords: Kierkegaard, Hegel, Innocence, Aufhebung. 1375BINTRODUO
1376BEm O Conceito de Angstia, S. A. Kierkegaard, sob a pena do pseudnimo
Vigilius Haufniensis, desenvolve um dos momentos centrais de sua polmica contra
Hegel e seus contemporneos dinamarqueses, a exemplo de A. P. Adler e J. L.
Heiberg. No centro de sua crtica, cujo momento inicial apresentado na Introduo
dO Conceito de Angstia, est a ideia de que Hegel e seus representantes tm
confundido duas esferas completamente distintas a do pensamento abstrato ou
297 Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Paraba.
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especulativo e a da existncia. Resulta da, por exemplo, o mal entendido de se
conceber conceitos prprios da tica dentro da Lgica. Um exemplo desta confuso
fornecido pelo conceito de realidade, quando este concebido como uma categoria
abstrata da Lgica. O fato de a realidade ser alcanada j na lgica um dos pontos
de crtica de Haufniensis, mas talvez no o mais importante. Uma outra crtica dirige-
se ao uso da noo de reconciliao (Forsoning) como parte do movimento imanente
da lgica106F298. Para o autor, s se pode falar em reconciliao no mbito da tica e da
religio, jamais no reino da lgica. Nesta linha, no menos importante a crtica
concepo hegeliana de movimento dialtico. Segundo o pseudnimo, na medida em
que a lgica diz respeito ao necessrio, torna-se bastante suspeito introduzir na
lgica as noes de mudana e de movimento caractersticas da realidade efetiva
ou da existncia. O fato que o movimento que se processa na lgica imanente,
embora o prprio conceito de movimento envolva necessariamente uma
transcendncia. Por isso Haufniensis pode afirmar que um movimento imanente
(como o da lgica) no nenhum movimento (KIERKEGAARD, 2010, p. 15). Alm
disso, nas observaes introdutrias do Caput III, o autor dirige duas crticas a Hegel
e aos hegelianos. A primeira visa pretenso de que a Filosofia comea sem
pressuposies107F299. J a segunda tenta mostrar que um equvoco falar em
passagem ou transio (bergang) na Lgica, uma vez que a passagem se insere na
esfera da liberdade histrica; efetivamente real 108F300. Aqui Haufniensis novamente
enfatiza que a verdadeira passagem deve ser transcendente, determinada por uma
mudana qualitativa. Para designar essa mudana Kierkegaard costuma utilizar o
termo salto. Embora Hegel tambm faa uso da mesma palavra para designar uma
mudana qualitativa, segundo o autor de O Conceito de Angstia ele comete o erro
de fazer isso na Lgica ou dentro da imanncia que lhe caracterstica.
1377BNo que segue tentaremos nos concentrar em um momento especfico dessa
polmica geral contra Hegel. Trata-se da crtica do vigilante (Vigilius)
identificao hegeliana entre inocncia e imediato. Mostraremos como a crtica de
Haufniensis vai muito alm de uma mera distino entre o imediato e a inocncia,
298 (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p. 13-14) 299 (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p. 89) 300 (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p. 90; 92)
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estendendo-se prpria compreenso e uso de um dos conceitos mais importantes
da filosofia hegeliana, qual seja: o conceito de Aufhebung.
1378BO PONTO DE VISTA DE HEGEL
1379BNo primeiro volume de sua Enciclopdia das Cincias Filosficas, dedicada
Cincia da Lgica, Hegel faz algumas importantes aluses ao mito da queda e aos
conceitos a ele relacionados, tais como os de inocncia, de queda e de pecado
original. Segundo o autor: Parece como adequado considerar o mito da queda logo
no incio da lgica, pois ela diz respeito ao conhecer, e tambm nesse mito se trata
do conhecer, de sua origem e significao (HEGEL, 1995, p. 84).
1380BPara Hegel, o mito do pecado original exprime, antes de tudo, a relao do
conhecimento para com a vida do esprito ou, dito de maneira mais direta, a relao
do esprito para com o conhecimento originrio. Ora, sob o ponto de vista hegeliano,
conhecer a destinao essencial do esprito. Este, com efeito, no permanece um
ser-em-si, mas para-si do contrrio no seria o esprito. Neste sentido, a
narrativa do Gnesis sobre o pecado de Ado manifestaria justamente essa
passagem do esprito, em sua unidade natural imediata, para uma ciso entre
esprito e natureza que liberaria o esprito para ser por si mesmo o que , a saber,
esprito livre. Como indica Hegel:
1381BEm sua imediatez, a vida do esprito aparece primeiro como
inocncia e ingnua confiana. Ora, na essncia do esprito reside [a
exigncia de] que esse estado imediato seja suprassumido, pois a
vida do esprito se diferencia da vida natural e, mais precisamente, da
vida animal porque no permanece em seu ser-em-si, mas para-si.
Depois, esse ponto-de-vista da ciso tem de ser igualmente
suprassumido, e o esprito deve, por si mesmo, retornar unio
(HEGEL, 1995, p., 84).
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1382BAssim, na viso de Hegel, o esprito, antes de torna-se para-si, encontra-se
num estado de unidade natural imediata, cuja destinao essencial a de ser
superado ou suprassumido (Aufhebung). O prprio esprito j traz em si mesmo ou
em sua prpria essncia a necessidade de se por a si mesmo, separando-se do seu
estado natural de unidade imediata. Isso se d, bem o sabe Hegel, porque o esprito
no simplesmente um imediato, mas contm essencialmente em si o momento da
mediao (HEGEL, 1995, p., 85). Neste caso, o imediato est a para ser superado,
o que at bastante plausvel dentro da lgica. A dificuldade surge quando Hegel
identifica este imediato (ou esta unidade natural imediata) com a inocncia (ou
inculpabilidade). A implicao clara: a destinao da inocncia, enquanto
imediatidade, ser tambm a de ser suprassumida ou superada. Temos ento um
equvoco conceitual que ser diretamente criticado por Haufniensis.
1383BNo entender de Hegel, a permanncia na inocncia uma incorreo. Como
ele mesmo afirma incorreto que essa unidade natural imediata [a inocncia] seja
o correto (HEGEL, 1995, p., 85). Significa, como dizamos, que a inocncia est a
para ser superada, ou melhor ainda: que correto que a inocncia no permanea
em si, na medida em que deve se suprassumida ou anulada. Ora, neste caso e
isto que Haufniensis denuncia em Hegel a passagem da inocncia para a no-
inocncia no seria de forma nenhuma culpa ou pecado, mas at mesmo um mrito
do esprito no cumprimento de sua essncia. Precisamente por isso Haufniensis
afirma que antittico dizer que a inocncia deva ser superada, pois (...) a tica
no permite esquecer que a inocncia no pode ser anulada seno pela culpa
(KIERKEGAARD, 2010, p. 38)109F301.
1384BCom o conceito hegeliano, a culpa fica, por assim dizer, anulada. Com efeito,
ao identificar a inocncia com o imediato, Hegel corta a ligao entre inocncia e
culpa. Sair da unidade natural imediata que enquanto tal est a para ser superada
no parece constituir culpa nenhuma, mas antes uma passagem necessria e
essencial do prprio esprito. Eis a o equvoco: se a inocncia no perdida pela
culpa, ento no inocncia alguma!110F302 Com isso Haufniensis pode acusar Hegel de
301 Kierkegaard utiliza repetidas vezes o vocbulo ophves, equivalente ao alemo aufgehoben. Trata-se de uma referncia direta Aufhebung hegeliana (Ophvelse em dinamarqus). 302 A anlise dos vocbulos aqui envolvidos poder nos auxiliar no esclarecimento desta questo. Em
nossa lngua a relao entre inocncia e culpa no fica to clara no prprio vocbulo, pois perdemos
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confundir duas cincias distintas, pois o conceito de imediatidade tem seu lugar na
Lgica, mas o conceito de inocncia na tica (KIERKEGAARD, 2010, p. 38). Ora, em
Hegel, a perca da inocncia no parece inserir-se no mbito da tica, mas
permanece como uma passagem dentro da imanncia lgica.
1385BA CRTICA DE HAUFNIENSIS
1386BO cerne da crtica de Haufniensis, portanto, est na determinao da
diferena entre a inocncia e o imediato:
1387BA inocncia no , portanto, como o imediato, algo que deva ser
superado [ophves], cuja determinao a de ser superado, algo
que propriamente no existe e que, apenas na medida em que
superado, primeiramente e s ento existe como o que era antes de
ter sido superado, sendo agora superado. A imediatidade no
superada pela mediatidade, mas, assim que a mediatidade aparece,
elevou no mesmo instante a imediatidade111F303.
em nosso uso cotidiano a referncia etimolgica da palavra inocncia. No dinamarqus de Kierkegaard assim como no alemo de Hegel a relao torna-se mais clara dentro do prprio vocbulo: tanto Uskyldighed quanto Unschuld fazem referncia literal culpa (Skyld em dinamarqus e Schuld em alemo). Por isso, ao falar-se em inocncia, deve-se entender nessas lnguas algo como inculpabilidade, ou melhor, falta ou ausncia de culpa. Significa que o ponto de referncia deve ser o
conceito de culpa. Ao falar-se em inocncia, no devemos pensar em uma ingenuidade ou, como diz Hegel, em uma ingnua confiana, mas antes em uma ausncia de culpa. No uso cotidiano de nossa lngua, comum no repararmos que, tambm em portugus, a nfase deve ser dada na culpa.
Innocentia no latim (donde inocncia), tem a raiz em noceo (fazer mal, prejudicar, cometer uma falta), cujo particpio nocens/entis (1. Prejudicial, pernicioso; 2. Culpado, criminoso), de onde deriva
nocentia (culpabilidade, maldade). In, com se sabe, o prefixo negativo que nos compostos indica a ausncia ou no existncia da coisa significada pela palavra simples (DICIONRIO LATIM-PORTUGUS, 2001, p. 339). Sem esta referncia culpa, a inocncia deixa de ser aquilo que realmente . 303 Dado o papel central desta passagem, unido sua dificuldade de traduo, optamos por traduzi-la
ns mesmos a partir do texto original e de trs tradues auxiliares. No original aparece assim: Uskyldigheden er derfor ikke som det Umiddelbare Noget, der maa ophves, hvis Bestemmelse er at ophves, Noget der egentlig ikke er til, men selv, idet det er ophvet, frst derved og frst da bliver til som det, der var frend det blev ophvet og nu er ophvet. Umiddelbarheden ophves ikke ved
Middelbarheden, men idetMiddelbarheden kommer frem, har den i samme ieblik hvet
Umiddelbarheden (SKS, 4, 343). Na traduo de Gisela Perlet para o alemo ler-se Deshalb ist die Unschuld nicht wie das Unmittelbare Etwas, das aufgehoben werden muss, dessen Bestimmung es ist,
aufgehoben zu werden, sondern ein Etwas, das eigentlich nicht existiert und erst dadurch, dass es
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1388BO que aqui destacado num tom filosfico ligeiramente truncado
justamente a compreenso do imediato e, em ltima anlise, da Aufhebung112F304
enquanto determinao fundamental da lgica hegeliana. O que Haufniensis quer
pontuar no diferente daquilo que o prprio Hegel defende em sua lgica, a saber:
que a passagem do imediato para o mediado se d por um movimento de
suprassuno ou superao (Aufhebung) no qual o superado ao mesmo tempo
mantido ou conservado. Sendo assim, a imediatidade no aniquilada pela
mediatidade, mas antes assimilada ou mantida no mediado. Como escreve Hegel: o
superado algo ao mesmo tempo conservado, que apenas perdeu sua imediatidade,
mas, por isso, no foi aniquilado (HEGEL, 2011, p. 98). O movimento, portanto, se
d no interior da imanncia lgica, de modo que a Aufhebung determina uma
unidade entre os opostos. Por isso Hegel pode afirmar que Algo apenas superado
ao entrar em unidade com o seu oposto (HEGEL, 2011, p. 98)
1389BO que Haufniensis pretende evitar precisamente esta unidade entre opostos
no que se refere inocncia. Interessa-lhe que com a passagem da inocncia para a
culpa um novo estado seja instaurado, no dentro de uma imanncia lgica, mas por
uma transcendncia que pe uma nova qualidade, completamente diferente da
anterior. Segundo ele:
1390BA supresso [Ophvelse113F305] do imediato , pois, um movimento
imanente imediatidade, ou um movimento imanente
aufgehoben wird, und erst dann, wenn aufgehoben ist, selbst als dasjenige entsteht, das existierte,
bevor es aufgehoben wurde, und das jetzt aufgehoben ist (KIERKEGAARD, 2012, p. 44). Conferir tambm a traduo para o ingls de Reider Thomte em KIERKEGAARD, 1980, p. 26. lvaro Valls traduziu a passagem como segue: A inocncia no , portanto, como o imediato, algo que deva ser anulado, cuja destinao ser anulado, algo que para falar propriamente no existe, e que s vem a existir pelo fato de ser anulado, isto , vem a existir como aquilo que existia antes de ser anulado e
que, agora, est anulado. A imediatidade no suprimida pela mediatidade, mas, assim que esta aparece, eliminou no mesmo instante a imediatidade (KIERKEGAARD, 2010, p. 39). A nosso ver, e com a devida humildade, no parece uma boa escolha a traduo de hvet por eliminou. Na verdade, parece que Haufniensis quer dizer justamente o contrrio: que a imediatidade no eliminada pela mediatidade, mas, assim que a mediatidade aparece, a imediatidade eleva-se junto
com ela, embora como algo superado. 304 Nesta passagem em especial, deparamo-nos com uma dificuldade familiar aos estudiosos de Hegel.
Trata-se da dupla acepo da expresso alem Aufhebung. O prprio Hegel j destacava em sua Cincia da Lgica que Superar [Aufhebung] tem na lngua [alem] o sentido duplo, pois significa tanto conservar, manter, quanto ao mesmo tempo deixar de ser, terminar algo (HEGEL, 2011, p. 98). 305 Aufhebung em alemo.
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mediatidade em sentido inverso, pelo qual esta pressupe a
imediatidade. A inocncia algo que se anula por uma
transcendncia, justamente porque ela algo (ao contrrio, a
expresso mais correta para o imediato a que Hegel usa para o
puro ser, nada), e, por isso, quando a inocncia anulada por uma
transcendncia, surge da algo de completamente diferente,
enquanto que a mediatidade precisamente a imediatidade
(KIERKEGAARD, 2010, pp. 39-40).
1391BDe fato Hegel identifica o imediato com o nada, o que no de se estranhar
se levarmos em conta que na Doutrina do Ser o ser puro e o puro nada so o
mesmo. O nada, diz ele, o imediato (HEGEL, 2011, p. 98) e tudo est em
ordem dentro da lgica. Entretanto, no tocante inocncia, preciso que ela seja
algo, uma qualidade ou um estado que pode muito bem perdurar 114F306, de modo que
a passagem para a culpa no se d na imanncia da Aufhebung como a passagem
do imediato para o mediado , mas seja posta por uma transcendncia. Do contrrio
a inocncia seria perdida por si mesma, como se na essncia da inocncia residisse a
exigncia de que esse estado fosse superado, anulando-se assim o conceito de culpa
e, com ele, o prprio conceito de inocncia. Com escreve J. Stewart ao tratar desta
questo: Imediatidade e mediatidade so categorias imanentes, mas culpa algo
transcendente inocncia, uma vez que vem de fora e introduz um estado
qualitativamente novo (STEWART, 2003, p. 416) 115F307.
1392BCom isso Kierkegaard/Haufniensis denuncia o mal-entendido da interpretao
hegeliana mostrando, dentre outras coisas, que tambm ali se repete o que ele j
havia denunciado desde a introduo de seu livro116F308: uma total confuso entre as
cincias, na qual Lgica, Metafsica, tica, Dogmtica, etc., se misturam e confundem
306 Cf. KIERKEGAARD, 2010, p. 40. 307 Immediacy and mediation are immanent categories, but guilt is something transcendent to innocence since it comes from the outside and introduces a qualitatively new state. 308 Na Introduo de O Conceito de Angstia o autor problematiza e critica direta e indiretamente algumas concepes hegelianas importantes dizemos hegelianas porque vez por outra o alvo visado ali menos o prprio Hegel do que os hegelianos dinamarqueses da poca. Basta lembrarmo-nos da crtica insero da realidade no mbito da lgica ou da crtica identidade entre f e
imediato que resulta da confuso entre Lgica e Dogmtica (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p. 12). Na
mesma esteira aparece a distino entre mediao e reconciliao, a crtica s pretenses do movimento imanente da Lgica e confuso entre o negativo e o mal, onde Lgica e tica se
confundem, etc., etc. (Id., Ibid., pp. 14-16).
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de maneira equvoca. Tambm ao identificar inocncia e imediato, Hegel acaba
confundindo Lgica e tica, caindo assim, como diria Kierkegaard, numa contradio
quase que cmica. Por isso o auge de sua crtica no tem um tom filosfico tcnico,
mas antes um tom irnico, que quer pegar pelas costas, como que desprevenido,
quele que est no erro. Ora, como no perceber a indireta irnica lanada por
Haufniensis contra Hegel quando escreve que aquele que perdeu a inocncia da
nica maneira pela qual pode ser perdida, isto , pela culpa, e no talvez como
gostaria de t-la perdido, no ter decerto a ideia de elogiar sua prpria perfeio
custa da inocncia (KIERKEGAARD, 2010, p. 40). Quem tiver sensibilidade irnica
para perceber esta indireta, ento que a perceba.
1393BCONCLUSO
1394BO fato de Hegel confundir Lgica e tica revela-se de maneira bastante
evidente em uma de suas concluses centrais. Curioso, no entanto, notar que
Kierkegaard no faz referncia alguma a essa concluso, como se no a tivesse
notado ou mesmo a tivesse negligenciado de propsito.
1395BPara Hegel, a concluso do mito revela o que h nele de essencial, a saber: a
referncia ao conhecer como algo divino, como o trao divino do homem. Segundo
ele:
1396BCom a expulso do paraso, o mito ainda no est concludo.
Adiante diz ainda: Deus falou: Veja s: Ado se tornou como um de
ns, pois sabe o que bom e [o que ] mau. O conhecer aqui
designado como o divino; e no, como antes, como o que no deve
ser. Nisso est tambm a refutao desses falatrios de que a
filosofia s pertence finitude do esprito: a filosofia conhecer, e s
pelo conhecer que se realizou a vocao original do homem: ser a
imagem de Deus (HEGEL, 1995, P. 85).
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1397BMalgrado Hegel ter falado em favor da filosofia, o que pode agradar a muitas
cabeas filosficas, parece que ele erra na nfase, quer dizer, enfatiza ou atribui
importncia ao objeto errado. Com efeito, no difcil de notar que o mito no pe
sua nfase apenas no conhecer, mas antes em um conhecer especfico, isto , no
conhecimento do bem e do mau. Ali, no o mero conhecer que designado como
o divino, mas o conhecer o bem e o mau. Como isso a confuso feita por Hegel
ganha nitidez. Ao tratar o mito dentro da lgica, ele, coerentemente justia seja
feita elimina a referncia ao bem e ao mau, ficando apenas com o conhecer. Da o
mal-entendido: o mito no deveria ter sido tratado na Lgica, justamente porque o
conhecer que ele quer manifestar um conhecer tico, e no lgico; no um
conhecer qualquer ou um conhecer do conhecer, mas o conhecimento do bem e do
mau, onde a nfase, vale repetir, deve ser posta nestes ltimos.
1398BSendo assim, a inocncia um estado no qual esse conhecimento ainda
no se fez presente. Neste caso, como sugere o pseudnimo-autor, inocncia
ignorncia117F309. Deixando a coisa assim, sem mais explicaes, essa afirmao
poderia muito bem ser tomada por Hegel tambm para ele inocncia ignorncia.
No entanto, com a ressalva que acabamos de fazer de que o conhecer que importa
sobre o bem e o mal fica claro que aqui a ignorncia significa inscincia tica, e
no lgica. Para Haufniensis, estar na ignorncia significa no estar na culpa, e no
simplesmente no estar no conhecimento em geral.
1399BA partir de ento a verdadeira dificuldade aparece: trata-se de saber como se
perde a inocncia, como se passa da inocncia culpa, ou como se d a queda no
pecado (Syndefald)118F310. A investigao psicolgica de Haufniensis seguir rumo a
essa questo, mas com a importante advertncia de que o pecado no encontra
lugar em cincia alguma. Trata-se ento de investigar psicolgica ou
antropologicamente a possibilidade do pecado, de modo que a ambigidade
essencial da questo seja mantida e no se queira explanar o circulo em uma linha
reta. Que o conceito de angstia, essencialmente ambguo, constitui a categoria
309 Ou inocncia inscincia. Em dinamarqus:Uskyldighed er Uvidenhed; em alemo: Unschuld ist Unwissenheit. 310 Nos termos da passagem da inocncia para o pecado est implcito o problema da passagem da
liberdade para a no-liberdade. No experimento terico das Migalhas Filosficas, a referncia liberdade e no-liberdade (como pecado) aparece de maneira mais explcita (Cf. nota 10 em
KIERKEGAARD, 2008, p. 36-37).
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primordial que se mantm dentro daquela ambigidade fundamental e que,
enquanto tal, esclarece a possibilidade do pecado entenda-se tambm
possibilidade da liberdade o que se poder analisar em outra ocasio.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 1401BDICIONRIO LATIM-PORTUGS. Editorao eletrnica: Fbio Frohwein de Salles Moniz, Porto: Porto Editora, 2001.
1402BHEGEL, G. W. F. Enciclopdia das Cincias Filosficas em compndio. Traduo de Paulo Meneses, So Paulo: Edies Loyola, 1995.
1403BHEGEL, G. W. F. Cincia da Lgica (excertos). Seleo e traduo de Marco Aurlio Werle, So Paulo: Barcarolla, 2011.
1871BKIERKEGAARD, S. A. Der Begriff Angst. Traduo de Gisela Perlet e posfcio de Uta Eichler, Stuttgart: Reclam, 2012.
1404BKIERKEGAARD, S. A. O Conceito de Angstia. Traduo de lvaro Valls, Petrpolis RS: Vozes; So Paulo: Editora Universitria So Francisco), 2010.
1405BKIERKEGAARD, S. A. Migalhas Filosficas ou um bocadinho da filosofia de Johannes Clmacus. Traduo de lvaro Luiz Montenegro Valls e Ernani Reichmann, Petrpolis RS: Vozes, 2008.
1406BKIERKEGAARD, S. A. The Concept of Anxiety. Traduo com introduo e notas de Reidar Thomte em colaborao com Albert B. Anderson. New Jersey: Princeton University Press, 1980.
1407BSTEWART, Jon. Kierkegaards Relations to Hegel Reconsidered. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.