Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - Julho No 2019 · 2019-08-28 · de possibilidades...

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N o 2 Julho 2019 Revista IBRADIM de Direito Imobiliário

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário

Ano 1 | Julho 2019 | No 2

ISSN 2595-8151

Conselho Editorial

Alexandre Gomide

André Abelha

Ermiro Neto

Ivandro Ristum Trevelim

Marcelo Barbaresco

Marcus Vinícius Motter Borges

Ricardo Campelo

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Revista IBRADIM de Direito ImobiliárioAno 1 | Julho 2019 | No 2 ISSN 2595-8151

Publicação semestral do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Proibida a reprodução parcial ou total sem autorização prévia, ou citação expressa da fonte.Os conceitos emitidos em trabalhos assinados são de responsabilidade de seus autores.

Revista Ibradim de Direito Imobiliário v. 1 (nov. 2018) – São Paulo: Ibradim, 2018.

Semestral v. 2 (jul. 2019) ISSN 2595-8151

1. Direito Imobiliário. 2. Direito Civil. 3. Periódico.

CDU 347.235(05)

Ficha catalográfica: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273

Capa e diagramação: Rosane GuedesRevisão: Roberta Maniglia de R. MatosCoordenador de Publicação e Pesquisa do IBRADIM: Alexandre Junqueira GomideEditor responsável: Ana Maria Coutinho Paixão

Distribuída em todo território nacional por:

Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIMAv. Paulista, 726 conj 1303 – Bela Vista01310-100 São Paulo SP+55 11 [email protected]

Editada por:

PAIXÃO EDITORES LTDA.+55 51 [email protected]

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SUMÁRIO

5 EDITORIAL

7 LEI 13.786/2018 (LEI DOS “DISTRATOS”): ASPECTOS CONTROVERTIDOS DECORRENTES DA EXTINÇÃO DA RELAÇÃO CONTRATUAL NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA Alexandre Junqueira Gomide

29 O CPC/2015 E O DESPEJO LIMINAR POR DENÚNCIA VAZIA NA LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL André Abelha

51 OS ACORDOS RELACIONADOS AO DIREITO DE PREFERÊNCIA NA ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS DOS FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO Christiane Rocha Reis Xavier

85 DA NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA FIGURA DO INCORPORADOR NO ÂMBITO DO ART. 67-A DA LEI 4.591/64 Cristiano O. S. B. Schiller Mariana Jau Rocha

100 AS SOCIEDADES EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO E OS NEGÓCIOS IMOBILIÁRIOS – A CONSTRUÇÃO DE UMA PRÁTICA Felipe de Almeida Mello

120 A TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR COMO INSTRUMENTO INDUTOR DA PROTEÇÃO DE IMÓVEIS TOMBADOS Felipe Varela Hollanda

142 O BEM DE FAMÍLIA FRENTE ÀS GARANTIAS LOCATÍCIAS Fernanda Kelly Inácio Halliwell

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 4 SUMÁRIO No 2 | Julho 2019

165 CIÊNCIA JURÍDICA E SUA FUNÇÃO: DIREITO INTERTEMPORAL E A LEI DOS “DISTRATOS” NO NEGÓCIO JURIDICO IMOBILIÁRIO Marcelo Barbaresco

193 AS CONTRAPARTIDAS URBANÍSTICAS: LIMITES LEGAIS PARA A SUA EXIGÊNCIA PELO PODER PÚBLICO Ricardo de Oliveira Campelo

223 SHOPPING CENTERS – ANOTAÇÕES À RELAÇÃO CONTRATUAL ENTRE EMPREENDEDOR E LOJISTAS Roberto Renault

248 A (DIFÍCIL) OBTENÇÃO DE QUÓRUM NAS ASSEMBLEIAS GERAIS CONDOMINIAIS E A VALIDADE DA CONVERSÃO DA SESSÃO ASSEMBLEAR EM PERMANENTE Sérgio Ulpiano K. I. Itagiba

282 A ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CONTRATO IMOBILIÁRIO E SUAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS Thairiny Jorge Dakil

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EDITORIAL

Como o tempo passa e as coisas se fazem passar. O IBRADIM acaba de fina-lizar seu II Congresso de Direito Imobiliário e, agora, neste momento, através deste físico meio, também materializa a segunda edição de sua Revista Acadêmica.

Um suceder de orgulhos; sequenciais; alegres; de firme e substancial con-teúdo e que tenderiam ao infinito se não finita fosse a vida dos seus humanos iniciais (i.e. seus fundadores). Ledo engano! Como a Vida do inanimado pode e, neste caso, depende de outra animada, sem fim será Seu sucesso; isso posto, certamente muitos por ela se interessarão mais e mais.

E, em sendo assim, se pode afirmar com convicção: Que maravilha! Que coisa espetacular poder dividir e ao dividir multiplicar-se ao infinito.

Dividir, crescer; robustecer-se, encorajar-se para ainda mais aquilatar seu propósito de existir, qual seja, contribuir para o engrandecimento da saudável dialé-tica que compreende, inclusive, trocas de experiências, de conhecimento; das vi-vências de uma Vida em sua localidade e em seu contexto. Isso é, em conformi-dade com suas circunstâncias, como assim coloca Ortega y Gasset. Pois, afinal, somos cada um e cada qual e nossas pessoais circunstâncias, não?

E, tendo por base esta premissa de compartilhar seu acadêmico entendimento, de forma a fazer espraiar, positivamente, as discussões e com isso incentivar os de-bates, variados foram os temas abordados por aqueles que, cedendo parcela do mais precioso1 dedicaram-se a contribuir com todos nós, ávidos leitores desta também inesquecível segunda edição. E assim se afirma mais por conta do que representa em face do vazio de outrora e menos pela vaidade pois, como coloca Thomas Hobbes, no Leviatã, “a felicidade é um contínuo progredir de desejos, de um objeto a outro, uma vez que a consequência do primeiro é o caminho para a realização dos ulteriores.”1 i.e. o tempo, pois ele consubstancia parcela do raro e de nossa finitude.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 6 EDITORIAL No 2 | Julho 2019

Assim e, dentre outros, escreveu-se sobre as assembleias condominiais e a possibilidade de ser permanente de forma que quóruns sejam alcançados; a loca-ção através de plataformas digitais e suas particularidades; especificidades quanto à formatação das sociedades em conta de participação em negócios imobiliários; a função da ciência jurídica quanto ao enfrentamento do tema do direito intertempo-ral, assim como os aspectos contratuais controvertidos na incorporação imobiliária ambos por conta da alcunhada “lei dos distratos” (Lei Federal n. 13.786/2018); o direito de preferência e seu funcionamento quando da alienação de imóveis através de fundos de investimento imobiliário; o direito de construir e a proteção dos imó-veis objeto de tombamento; estudo acerca dos limites às contrapartidas urbanísti-cas quando da aprovação de empreendimentos imobiliários; o incorporador e sua qualificação à luz do artigo 67-A da Lei Federal n. 4591/64.

Percebe-se, portanto, que cada um dos temas e, à originalidade de cada um de seus Autores, está a contribuir com aquilo que poderia ser ainda melhor obser-vado e avaliado neste universo que é o direito enquanto objeto das questões, direta e/ou indiretamente, relacionadas ao assim denominado “imobiliário”. Um oceano de possibilidades que suplicam pelo árduo trabalho de nós que somos, certamente, apaixonados pelo que nos dedicamos a desenvolver e a debater: a expansão das bases da ciência do direito sob a específica lente do “imobiliário”. Grande Missão.

E diga-se mais: quanto empreendedorismo aquilatar em laudas um pensa-mento e, sobretudo, se submeter à leitura e, quiçá, avaliação dos centenas e quase um milhar de associados de nosso IBRADIM – sim, nosso! De uma grandeza que merece aplausos mesmo que silenciosos em essência.

Nós, os associados do IBRADIM, desejamos em corpo único a mesma coisa, ou seja, o seu Sucesso e, portanto, que seja ele desfrutado igualmente por cada um de seus membros, tudo de forma a escudar a si mesmo e, em assim o sendo, zelando tudo e todos por sua perenidade.

Enfim, o segundo número da Revista de uma família que se faz composta por todos nós e que se dedica ao apreender e ao dividir e, vice-versa, em uma cons-tância e alternância que causam admiração e que, neste ato de sua publicização, passa a pertencer ao Mundo.

Como disse o caro Gomide no editorial da primeira edição:“Vida Longa ao IBRADIM e à sua Revista Acadêmica!”

Marcelo BarbarescoAprendiz eterno e Vice Presidente do IBRADIM

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Alexandre Junqueira Gomide1

Introdução

A recém-sancionada Lei 13.786/2018 trouxe substanciais alterações às Leis 4.591/1964 (Incorporação Imobiliária) e 6.766/1979 (Parcelamento do Solo Urba-no). Tais preceitos, certamente, trouxeram impactos relevantes no mercado imobi-liário brasileiro e, por isso, algumas reflexões merecem ser realizadas.

Não obstante a lei trazer diversas alterações à Lei de Incorporações Imobiliárias (4.591/1964), dentre elas, (i) obrigatoriedade de o contrato conter quadro-resumo; (ii) permissão (agora legal) do que se intitula “cláusula de tole-rância”, ou seja, autorização de prorrogação do prazo de entrega do imóvel por até 180 dias corridos da data estipulada no contrato2, o presente artigo pretende tratar tão somente dos aspectos relativos à extinção do contrato de promessa de compra e venda sob a égide da Lei de Incorporação Imobiliária (artigos 43-A e 67-A).1 Mestre e Doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista e Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Portugal. Professor de cur-sos de Pós-Graduação de diversas instituições. Autor de artigos e obras jurídicas, em especial Direito de Arrepen-dimento (Almedina, 2014) e Contratos built to suit: aspectos controvertidos de uma nova modalidade contratual (Revista dos Tribunais, 2017). Colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). Fundador do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Membro efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo. Advogado, parecerista e sócio de Junqueira Gomide & Guedes Advogados (www.junqueiragomide.com.br).2 A cláusula de tolerância foi duramente criticada por Otavio Luiz Rodrigues Junior, que asseverou que a alteração legislativa institucionalizou “a mora de 180 dias dos incorporadores na entrega dos imóveis, retirando-se qual-quer efeito jurídico desse retardo. A lei criou uma espécie de ‘mora à brasileira’, uma mora com termo de graça preestabelecido em favor da parte mais forte”. (RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Retrospectiva 2018: Leis, livros e efemérides do direito civil. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-02/retrospectiva-2018--leis-livros-efemerides-direito-civil?fbclid=IwAR2c6C7GLlj84-ef6FChBrksx-w02zfGvcCiX78Xq0GM_AndW9CCE-7ezaH4. Acesso em 4 jan. 2019.

LEI 13.786/2018 (LEI DOS “DISTRATOS”): ASPECTOS

CONTROVERTIDOS DECORRENTES DA EXTINÇÃO DA RELAÇÃO CONTRATUAL NA

INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 8 No 2 | Julho 2019

Inicialmente, contudo, importante relembrar que os contratos, no Direito Ci-vil brasileiro, são e sempre foram instrumentos jurídicos que vinculam as partes. Os contratantes negociam e assinam contratos porque querem ter a segurança de que seja cumprido o que foi estabelecido nas tratativas e consolidado no instrumento. Muito embora boa parte da doutrina (sobretudo a mais “moderna”) tenha tentado mitigar a importância do princípio pacta sunt servanda, o fato é que não se pode retirar o caráter de obrigatoriedade e vinculação das partes às obrigações estabe-lecidas nos contratos.

Feito esse importante registro, prosseguimos.

1 Extinção da relação contratual na Lei 4.591/1964 e as alterações da Lei 13.786/2018

A Lei 13.786/2018 acresceu os artigos 43-A e 67-A à Lei 4.591/1964. Tais dispositivos passam a regular algumas hipóteses de extinção do contrato de pro-messa de compra e venda de imóveis sob o regime da incorporação imobiliária.

Antes de tratarmos a respeito das alterações trazidas pelo novo texto legal, importante destacar que, desde o ano de 2001, quando editada a Medida Provisó-ria 2.221/2001, convertida na Lei 10.931/2004, que alterou o art. 32 § 2º3 da Lei 4.591/64, foi determinada a irretratabilidade de tal instrumento.

Nesses termos, pode-se dizer que, desde 2001 até a aprovação da Lei 13.786/2018, qualquer pessoa que se dirigisse ao estande de vendas e assinasse um contrato de promessa de compra e venda de unidade alienada sob o regime da incorporação imobiliária não poderia pura e simplesmente se arrepender do contra-to, pleiteando a extinção da relação contratual.

Assim, não obstante entendimentos respeitáveis contrários4, reitere-se que o contrato de compra e venda de imóvel sob a égide da Lei 4.591/1964 não autori-3 Art. 32, § 2o Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra. (Redação dada pela Lei 10.931, de 2004)4 Carlos E. Elias de Oliveira e Bruno Mattos e Silva, por uma série de motivos, dentre eles o “direito à saída hon-rosa do contrato”, defendem que é permitida a resilição unilateral ao adquirente na Lei 4.591/1964, quando há relação de consumo. Segundo os autores “havendo relação de consumo, a vulnerabilidade jurídica, informacional, técnica e econômica do consumidor precisa ser protegida e, nesse sentido, a resilição unilateral imotivada deve ser admitida se o saldo devedor ainda não tiver sido integralmente pago. Se o contrato for textualmente contrá-rio, ele é nulo nessa parte por ofensa aos arts. 473 do CC e 51 do CDC”. (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; MATTOS E

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zava que o adquirente pudesse extinguir de forma unilateral e imotivada, mediante alguma das formas permitidas pela resilição unilateral.

A irretratabilidade dos instrumentos justifica-se uma vez que a incorpora-ção imobiliária somente pode prosperar, evidentemente, caso a coletividade dos adquirentes cumpra suas obrigações. A partir do momento em que uma parte dos adquirentes resolve pura e simplesmente desistir do contrato, o sucesso da incor-poração imobiliária fica comprometido. Ameaçado o recebimento do crédito pro-metido pelos adquirentes, ameaçada estará a obra e, portanto, toda a coletividade dos compradores do empreendimento.

De todo modo, embora a promessa de compra e venda de unidades seja irretratável, isso não significa que o contrato não possa ser extinto. Isso porque, sabemos, o Código Civil dispõe sobre a extinção dos contratos, em geral. Nesses termos, o Código Civil permite a extinção dos contratos por acordo entre as partes (distrato – art. 472) ou, ainda, por resolução quando há (i) descumprimento contra-tual (art. 475) ou (ii) onerosidade excessiva (art. 478).

Pois bem.

Fato é que, infelizmente, os tribunais brasileiros, nos últimos anos, não de-ram a atenção necessária para o fato de que a promessa de compra e venda de unidade no regime da incorporação imobiliária obriga as partes e não pode ser extinta unilateralmente pelo adquirente por mero arrependimento ou outra forma de resilição unilateral, porque irretratável. A Lei 4.591/1964 não permite, a exemplo da Lei 8.245/1991, que o locatário possa denunciar o contrato a qualquer tempo, bastando, para tanto, informar o locador do seu interesse em resilir unilateralmen-te o contrato e pagar a multa proporcional estabelecida pelo art. 4º, da Lei do Inquilinato.

Assim, não obstante a cristalina redação do art. 32, § 2º, da Lei 4.591/1964, os tribunais passaram a conferir interpretação extensiva a esse dispositivo e, não raras vezes, passaram a permitir a extinção do contrato não apenas nas hipóteses de distrato ou resolução; mas, também, em casos em que havia, evidentemente, mero arrependimento ou qualquer outra hipótese que não justificasse o desfazi-mento do vínculo contratual.

SILVA, Bruno. A recente Lei do Distrato (Lei nº 13.786/2018): o novo cenário jurídico dos contratos de aquisição de imóveis em regime de incorporação imobiliária e em loteamento. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/artigo-lei-distrato.pdf. Acesso em 12 jan. 2018). Com a devida vênia, discordamos frontalmente da posição dos autores, ressaltando que a legislação nacional em vigor não pode ser simplesmente desconsiderada porque parte da doutrina discorda de seus termos.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 10 No 2 | Julho 2019

A Súmula n. 1, do Tribunal de Justiça de São Paulo (cuja redação, diga-se, não é das mais técnicas), por exemplo, pode levar o intérprete a imaginar que o adquirente tem a possibilidade de extinguir o contrato de forma unilateral e sem qualquer motivação:

Súmula 1. O Compromissário comprador de imóvel, mesmo inadim-plente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem.

Nesse sentido, atente-se, por exemplo, a caso em que já atuamos e objeto de artigo anteriormente publicado5, em que o magistrado de primeiro grau, na sen-tença, determinou a extinção no contrato de compra e venda com fundamento na Súmula n. 1, do Tribunal de Justiça de São Paulo, consignando o seguinte:

Quanto ao desejo de rescindir o contrato, temos que este é garan-tido a qualquer parte integrante de um acordo, já que ninguém é obrigado a manter-se no cumprimento de um negócio ao qual não mais lhe interessa.

E não apenas magistrados de primeiro grau passaram a entender que o ad-quirente (sobretudo quando consumidor) poderia resilir unilateralmente tais con-tratos. Há uma série de julgados, por exemplo, no Tribunal de Justiça de São Pau-lo, determinando a extinção do vínculo contratual em razão da resilição unilateral manifestada pelo adquirente6. Há julgado, diga-se, confundindo categorias contra-tuais distintas, que autoriza, inclusive, “resilição por inadimplemento contratual dos adquirentes7”.5 GOMIDE, Alexandre Junqueira. Tempos de incertezas. Fim da vinculação das partes aos contratos? https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI231277,11049-Tempos+de+incertezas+Fim+da+vinculacao+das+partes+aos+contratos. Acesso em 15 de maio 2019.6 Defendendo o cabimento da resilição unilateral em razão da Súmula 1 do TJSP, vide: Apelação 1037338-53.2016.8.26.0576; Relator (a): Edson Luiz de Queiróz; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de São José do Rio Preto - 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 20/12/2018; Data de Registro: 20/12/2018. Em outro julgado, asseverou-se que “a lei consumerista autoriza a resilição do compromisso de compra e venda por con-veniência do comprador (artigos 6º, V, 51, II, 53 e 54). No mesmo sentido vem a Súmula 1 desta corte” (TJSP; Apelação 1037516-86.2014.8.26.0506; Relator (a): Galdino Toledo Júnior; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ribeirão Preto - 10ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/11/2018; Data de Registro: 14/12/2018). 7 Nesse sentido, vide APELAÇÃO. Ação de rescisão contratual c.c. restituição de quantias pagas. Compromis-so de compra e venda. Resilição por inadimplemento contratual dos adquirentes. Sentença que rescinde o contrato e condena a ré a restituir 90% do total pago pelos promitentes compradores, bem como valores pagos a título de comissão de corretagem. Reconhecimento da nulidade de cláusulas contratuais. Art. 51, inciso IV,

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário No 2 | Julho 2019 11

Justamente em razão de decisões desarrazoadas como essas é que o mer-cado imobiliário passou a criticar duramente a facilidade com que os adquirentes poderiam extinguir os contratos e ainda obter a restituição de percentual entre 80% e 90% dos valores pagos8.

Dados estatísticos demonstram, por exemplo, que, em 2016, mais de qua-renta mil unidades tiveram as vendas canceladas até novembro, o equivalente a 44% das vendas totais no período9.

A reação do mercado imobiliário foi justamente pleitear uma alteração legis-lativa que pudesse readequar a jurisprudência brasileira que permitia que qualquer adquirente pudesse extinguir o contrato de forma unilateral e sem motivação, ou seja, como se fosse admitida a resilição unilateral para extinção do contrato de promessa de venda regulado pela Lei 4.591/1964.

do CDC. RECURSO DA RÉ. Nulidade das cláusulas contratuais que prevalece, haja vista a abusividade (art. 51, IV, do CPC). Retenção que deve ficar restrita a 20% dos valores pagos pelos compromissários compradores tão somente pelo imóvel. (TJSP; Apelação 1007053-45.2014.8.26.0286; Relator (a): Cristina Medina Mogioni; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itu - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/12/2018; Data de Registro: 13/12/2018),8 APELAÇÃO CÍVEL – COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – RESCISÃO CONTRATUAL – Resolução da avença operada em face do inadimplemento dos compradores – Restituição de 80% (oitenta por cento) dos valores pagos pela aquisição do bem imóvel, em uma única oportunidade, com atualização dos valores a partir de cada desembolso, e com juros moratórios devidos a partir do trânsito em julgado, uma vez que o desfazi-mento do negócio ocorreu por iniciativa dos promitentes compradores – Precedentes do STJ – Súmula 02 do TJSP – Inadmissibilidade da rescisão ocorrer nos termos contratados – Abusividade reconhecida – Inteligência do artigo 51, inciso IV, do CDC – Insurgência contra a cobrança de valores de comissão de corretagem e taxa SATI em contrato de compra e venda de imóvel – Aplicação do artigo 1.040, III, do CPC/15 – Tese firmada pelo C. STJ no julgamento do REsp repetitivo 1.599.511/SP – Comissão de corretagem indevida, havendo valores a serem restituídos – Devolução da SATI, de forma simples – Sentença reformada – APELAÇÃO DOS AUTORES PARCIAL-MENTE PROVIDA”. (TJSP; Apelação 1003940-17.2014.8.26.0114; Relator (a): Dimitrios Zarvos Varellis; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/12/2018; Data de Registro: 18/12/2018)

APELAÇÃO – Ação de Resolução Contratual - Instrumento Particular de Promessa de Venda e Compra de Uni-dade Autônoma – Ação ajuizada pelo compromissário comprador, requerendo a rescisão do negócio de compra e venda e a devolução de 90% das quantias pagas – Sentença de parcial procedência – Inconformismo da ré – Alegação de que a devolução dos valores pagos deve observar os critérios estabelecidos no contrato entabulado entre as partes – Descabimento – Manifesta abusividade da cláusula contratual resolutiva por acarretar em inexistência de montante a ser restituído – Retenção de 10% do valor pago que é suficiente para atender a compensação das despesas efetuadas pela ré – Devolução que deve ocorrer de uma só vez – Inteligência das Súmulas nº 2 e 3 do TJ/SP – Sentença que, todavia, deve ser reformada para estabelecer que os juros de mora incidentes sobre o montante a ser restituído à autora serão contados a partir da data sentença – Recurso parcialmente provido. (TJSP; Apelação 1006218-87.2016.8.26.0609; Relator (a): José Aparício Coelho Prado Neto; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taboão da Serra - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/11/2018; Data de Registro: 10/12/2018).9 BONATELLI, Circe. Brasil destoa de outros países ao permitir distrato de imóveis, mostra estudo. https://eco-nomia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-destoa-de-outros-paises-ao-permitir-distrato-de-imoveis-mostra--estudo,70001652039. Acesso em 15 de maio 2019.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 12 No 2 | Julho 2019

Nesse sentido foi promulgada a Lei 13.786/2018.

A medida atende à boa técnica jurídica? Acreditamos que não. A medida era necessária? Na realidade, parece-nos que a medida era desnecessária a considerar os instrumentos já previstos no Código Civil, que autorizam e regulam a extinção contratual. De todo modo, a partir de uma interpretação inadequada dos tribunais, acreditamos ter sido medida salutar. A lei tem um principal objetivo: realinhar a interpretação do contrato de promessa de venda à irretratabilidade prevista na Lei 4.591/1964.

O que foi alterado, a partir da nova Lei, especificamente a respeito da extin-ção contratual?

1.1 Direito de arrependimento e irretratabilidade do contrato

Como dissemos no início deste artigo, desde 2001, o contrato de compra e venda de imóveis regido pela incorporação imobiliária era, segundo o art. 32, § 2º, da Lei 4.591/1964, irretratável, ou seja, não se admitia que houvesse a extinção imotivada pelas partes.

A partir da Lei 13.786/2018, o adquirente dispõe de uma hipótese legal para extinguir unilateralmente o contrato, sem o pagamento de qualquer multa. Nesses termos, a Lei cria um direito potestativo (direito de arrependimento) em que o ad-quirente pode, sem qualquer motivação, arrepender-se da aquisição realizada, des-de que o faça a partir de carta registrada. Nessa oportunidade, exercido o direito de arrependimento, o adquirente poderá receber de volta a totalidade dos valores pagos, inclusive a comissão de corretagem paga.

O direito de arrependimento, segundo a nova lei, cabe apenas para “os con-tratos firmados em estande de vendas e fora da sede do incorporador ou do estabe-lecimento comercial” (art. 35-A, inciso VIII e art. 67-A, § 10º, da Lei 13.786/2018).

Ultrapassado o prazo de sete dias, a lei é clara (art. 67-A, § 12º) quanto à retomada da regra da irretratabilidade, nos exatos termos do art. 32, § 2º, da Lei 4.591/1964. Assim, nas hipóteses de venda em estande de vendas ou fora da sede do incorporador ou do estabelecimento comercial, a Lei cria uma condição resolu-tiva em favor do adquirente.

Parece salutar tal medida. A compra de imóvel no estande de vendas pode ser realizada sem a necessária reflexão pelo adquirente, principalmente quando se trata da aquisição do primeiro imóvel residencial. O impulso do adquirente muitas

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vezes é inflamado pelo corretor imobiliário. O prazo de sete dias é louvável porque permite ao adquirente, ao retornar à sua residência, avaliar se de fato as obrigações a que se vinculou poderão ser, efetivamente, cumpridas. Na realidade, pensamos que o direito de arrependimento poderia ser ampliado não apenas para as hipóteses de o contrato ter sido celebrado no estande de vendas ou fora da sede do incorpo-rador, mas em qualquer hipótese, desde que o adquirente fosse qualificado como consumidor, nos termos do art. 2º, do Código de Defesa do Consumidor.

O direito de arrependimento conferido na Lei 13.786/2018 foi influenciado pelo art. 49, do Código de Defesa do Consumidor, que somente autoriza o arrepen-dimento em casos de compra realizada “fora do estabelecimento comercial”. Pen-samos que a Lei 13.786/2018 poderia ter aproveitado a oportunidade para conferir sempre, em favor do adquirente vulnerável, a possibilidade de arrependimento. Em nossa opinião, não faz sentido conferir o arrependimento imotivado para o caso de empresas patrimoniais, por exemplo (embora, pela nova Lei, mesmo as empresas adquirentes de imóveis também possam exercer tal direito).

1.2 Distrato

Antes da aprovação da Lei 13.786/2018, o projeto que lhe deu ensejo (PL 1.220/2015) era conhecido como “PL dos Distratos”. O nome não era o mais ade-quado, porque a ideia era tratar, sobretudo, a questão da resolução dos contratos por inadimplemento do adquirente.

O distrato, como nos ensina Carlos Alberto Bittar10, é o acordo por meio do qual as partes põem fim à relação contratual. Segundo Pontes de Miranda11, é trato em sentido contrário, ou seja, contrarius consensus.

É curioso notar que o art. 67-A da Lei 4.591/1964, no mesmo dispositivo, traz as consequências para o distrato e para a resolução. Segundo o caput, seja em caso de distrato, seja resolução por inadimplemento do adquirente, esse “fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente: I - a integralidade da comissão de corretagem; II - a pena convencional, que não poderá exceder a 10 BITTAR, Carlos Alberto. Direito dos contratos e dos atos unilaterais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 163.11 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. v. 25, § 3.078. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959, p. 281.

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25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga”. A retenção de valores, poderá alcançar até 50% dos valores pagos quando a incorporação estiver sujeita ao patri-mônio de afetação (art. 67-A, § 5º).

Alem disso, segundo o art. 67-A, § 2º, “em função do período em que teve disponibilizada a unidade imobiliária, responde ainda o adquirente” pelas “I - quan-tias correspondentes aos impostos reais incidentes sobre o imóvel; II - cotas de condomínio e contribuições devidas a associações de moradores; III - valor corres-pondente à fruição do imóvel equivalente a cinco décimos por cento sobre o valor atualizado do contrato, pro rata die; IV - demais encargos incidentes sobre o imóvel e despesas previstas no contrato”.

Ora, se o distrato é um acordo, qual a razão de as partes se vincularem às bases determinadas na Lei? Não nos parece tecnicamente correto que a lei tenha estabelecido as bases em que as partes ficam sujeitas em caso de acordo. É no mínimo estranho a lei ter disciplinado a consequência jurídica da extinção por reso-lução (descumprimento) e distrato (acordo), no mesmo dispositivo.

Estamos certos de que, a partir do acordo firmado entre as partes, o incor-porador poderia reter, por exemplo, em vez de 25% dos valores pagos, apenas 10%, quando, por exemplo, a extinção do contrato fosse realizada sem grandes prejuízos ao incorporador. Aliás, é justamente isso o que determina o § 13º, do art. 67-A, que autoriza que “poderão as partes, em comum acordo, por meio de instrumento específico de distrato, definir condições diferenciadas das prevista nesta Lei”.

A interpretação correta da lei, evidentemente, é permitir que o incorpora-dor possa firmar distrato em bases mais favoráveis ao adquirente. Vejamos um exemplo.

Adquirente comparece ao estande de vendas, compra imóvel no valor de R$ 1.000.000,00, oferecendo entrada de R$ 100.000,00. É ultrapassado o prazo do di-reito de arrependimento e nada faz. Alguns dias depois (mas já transcorrido o prazo de sete dias), perde o emprego e procura a incorporadora em busca de um acordo. A incorporadora, verificando não haver grandes prejuízos (sobretudo porque há ou-tros interessados no imóvel), pode concordar em devolver, nessa hipótese, 90% do valor pago, ou seja, R$ 90.000,00, fazendo retenção de apenas R$ 10.000,00, não obstante a incorporação imobiliária estar submetida ao patrimônio de afetação, o que permitiria à empresa retenção de R$ 50.000,00. A devolução dos valores, em caso de distrato, também pode ocorrer de forma imediata, não sendo necessário aguardar os prazos estabelecidos nos artigos 67-A, § 4º e 5º. É essa a autorização conferida no § 13º, do art. 67-A.

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Mas vamos além. Vamos imaginar o contrário. Adquirente comparece ao es-tande de vendas, adquire imóvel pelo valor de R$ 1.000.000,00, oferecendo peque-na entrada de R$ 2.000,00 (dois mil reais). Ultrapassado o prazo de sete dias, ele se arrepende da compra e procura a empresa para realizar acordo. O adquirente, nessa hipótese, concorda em receber apenas 35% dos valores pagos (e não 50%, porque a incorporação era submetida ao patrimônio de afetação) uma vez que a entrada oferecida foi pouco expressiva. A concordância do consumidor em tais termos está sujeita à devolução imediata dos valores (e não da forma diferida imposta pelo art. 67-A, § § 5º e 6º), o que é aceito pelo incorporador. Nessa hipótese, com funda-mento no § 13º, o distrato poderia futuramente ser anulado por conter cláusula abusiva? Nesse caso em específico, pensamos que não. Todavia, acreditamos que doutrina e jurisprudência passarão a entender que os limites máximos são aqueles impostos na Lei e, portanto, o distrato poderia ser anulado.

Não obstante o quanto previsto no § 13º, fato é que não nos pareceu tec-nicamente correto que o art. 67-A tenha disciplinado, no mesmo dispositivo, as consequências jurídicas pelo desfazimento do contrato seja em razão de distrato, seja em razão de resolução contratual.

Da mesma forma, a prefixação dos percentuais estabelecidos na Lei 13.786/2018 retira do juiz a possibilidade de análise do caso concreto. Em algumas hipóteses, portanto, a multa a ser paga pelo adquirente pode parecer exagerada. Em outros casos (sobretudo quando o valor pago pelo adquirente é muito baixo), a retenção de valores pode ser irrisória e o prejuízo da incorporadora pelo descumpri-mento do adquirente maior do que o valor retido.

1.3 Resolução

A resolução contratual por inadimplemento tem fundamento no art. 475, do Código Civil12. Segundo Ruy Rosado de Aguiar Júnior13, a resolução é um modo de extinção dos contratos decorrente do exercício de um direito formativo do credor diante do incumprimento do devedor.

A Lei 13.786/2018 estabelece a resolução contratual por culpa do incorpo-rador (art. 43-A) ou por culpa do adquirente (art. 67-A).12 “Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”.13 AGUIAR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2ª ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2004, p. 21.

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O descumprimento contratual do incorporador é verificado, por exemplo, quando a entrega do imóvel ultrapassar 180 dias do prazo estabelecido no contrato, oportunidade em que o adquirente poderá optar por pleitear a resolução do contra-to, com a devolução da integralidade dos valores pagos (art. 43-A, § 1º) ou, caso prefira, por manter hígido o contrato e por ocasião da entrega da unidade, receber indenização de 1% (um por cento) do valor efetivamente pago à incorporadora, para cada mês de atraso, pro rata die, corrigido monetariamente (art. 43-A, § 2º).

Quando o descumprimento contratual é do adquirente, as consequências jurídicas estão previstas no art. 67-A que, como visto, são idênticas àquelas pre-vistas para o distrato amigável. Contudo, diferentemente do distrato, a resolução contratual não requer a concordância do adquirente. Não se trata de acordo entre as partes. A resolução autoriza ao credor a extinção contratual.

A resolução do contrato, na hipótese do art. 67-A, decorre do inadimplemen-to absoluto de obrigação do adquirente. O inadimplemento absoluto do adquirente na promessa de compra e venda sob o regime da incorporação imobiliária requer, nos termos do art. 1º, do Decreto 745/196914, interpelação do comprador por via judicial ou por intermédio do cartório de Registro de Títulos e Documentos. Ultra-passados quinze dias desde a interpelação, estará o adquirente em mora absoluta e, portanto, sujeito às determinações do art. 67-A.

É acertada a decisão de perda integral da comissão de corretagem paga pelo adquirente em caso de resolução por culpa exclusivamente sua (art. 67-A, inciso I). Se o corretor cumpriu a sua obrigação (intermediação imobiliária) e recebeu a comissão devida, ela não pode ser devolvida em caso de descumprimento de obrigação pelo adquirente. Também não faria sentido que o incorporador tivesse prejuízo em razão do descumprimento do adquirente. A jurisprudência, diga-se, já trilhava esse caminho15.14 Art. 1o Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Regis-tro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação. (Redação dada pela Lei 13.097, de 2015).15 COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – Imóvel – Resolução do contrato por impossibilidade econômica – Frustração do financiamento pretendido pelo autor – Inexistência de provas nos autos a permitir que se im-pute a qualquer das partes a culpa pelo insucesso do negócio – Pedido de resolução do contrato corretamente acolhido – Efeito "ex tunc" da sentença resolutória – Devida a devolução por ambas as rés de 75% das parcelas do preço pagas – Condenação solidária que se impõe – Restituição das verbas de intermediação que, contudo, não é devida por força da extinção do contrato – Corretagem atingiu seu escopo, com aproximação útil das partes – Arrependimento/impossibilidade posterior do adquirente que não afasta o direito da intermedia-

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Resta saber, ainda, qual a razão de o legislador ter estipulado multa em per-centual muito mais elevado em caso de existência de patrimônio de afetação. No regime do patrimônio de afetação, como se sabe, “o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes” (art. 31-A, da Lei 4.591/1964).

O patrimônio de afetação é, certamente, uma grande proteção ao adquiren-te16. De todo modo, qual a razão de a multa ser muito maior quando existe o patrimô-nio de afetação? Talvez a intenção do legislador tenha sido incentivar o empresário a submeter a incorporação imobiliária ao patrimônio de afetação por meio da multa maior nesse regime. São conjecturas, mas de outro modo, não conseguimos visua-lizar a justificativa da discrepância da multa quando há o patrimônio de afetação.

1.4 Prazos para devolução dos valores pagos

A Lei 13.786/2018 determina que a devolução dos valores ocorrerá nos se-guintes termos:

a) Sendo a incorporação imobiliária submetida ao patrimônio de afetação: a devolução ocorrerá no prazo máximo de 30 dias após a expedição do habite-se (art. 67-A, § 5º);

b) Não sendo a incorporação imobiliária submetida ao patrimônio de afeta-ção: a devolução ocorrerá após o prazo de 180 dias contado do desfazi-mento do contrato (art. 67-A, § 6º).

Para ambas as hipóteses, havendo a revenda da unidade antes de transcor-rido tais prazos, o valor remanescente e devido ao adquirente será pago em até 30 (trinta) dias da revenda (art. 67-A, § 7º).

Não há dúvidas de que a extinção da relação contratual por resolução (cul-pa do adquirente) implica prejuízos ao incorporador, uma vez que ele deixará de

dora à percepção da respectiva comissão – Danos morais inexistentes no caso em tela – Redistribuição da sucumbência – Recurso provido em parte. (TJSP; Apelação 1013957-22.2015.8.26.0068; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/07/2017; Data de Registro: 24/07/2017).16 Ver mais em: MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Patrimônio de Afetação. Entrevista ao blog do Direito Civil & Imobiliário. http://civileimobiliario.web971.uni5.net/entrevista-prof-des-marco-aurelio-bezerra-de-melo-patrimo-nio-de-afetacao/. Acesso em 15 de maio 2019.

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receber o crédito prometido pelo adquirente. A ausência do crédito prometido e a imediata devolução em razão do descumprimento do adquirente pode trazer riscos à continuidade da obra (sobretudo quando o percentual de adquirentes inadimplen-tes é elevado).

Nesses termos, é razoável a Lei determinar que o adquirente seja reembol-sado somente após prazo que não ponha em risco a continuidade da obra. O prazo de até 180 dias corridos é justificável (para a hipótese de não existir o patrimônio de afetação). É possível imaginar que após a resolução do contrato, em até 180 dias o incorporador encontrará outro pretenso comprador. De todo modo, não sabemos qual a justificativa para que o prazo seja tão mais elástico para a hipótese de a incorporação estar sujeita ao patrimônio de afetação (somente quando finalizada a obra e obtido o habite-se – art. 67-A, § 5º).

Nessa hipótese, se o adquirente comprar o imóvel antes do início das obras, poderá ter de aguardar o reembolso dos valores até o término das obras, que nor-malmente ocorre em 36 meses (ou aproximadamente 1.080 dias).

Destaque-se que, para ambas as hipóteses, os valores a serem restituídos serão, sempre, atualizados pelo índice contratualmente estabelecido para a corre-ção monetária das parcelas estabelecida no preço do imóvel.

A crítica à Lei a respeito do prazo de reembolso é que o art. 67-A, como já exposto anteriormente, consigna no mesmo dispositivo as consequências para a hipótese de distrato (acordo) e resolução (descumprimento). Nesses termos, o prazo para reembolso em caso de distrato e resolução, seria o mesmo. Trata-se, evidentemente, de um contrassenso.

Esse contrassenso, contudo, como já referido anteriormente, é minorado pelo disposto no art. 67-A, § 13º, que autoriza às partes, em comum acordo, definir condições diferenciadas ao distrato. Se há benefícios ao adquirente, a Lei não pode proibir tal consenso.

2 Questões controvertidas e que aguardam posicionamento da doutrina e jurisprudência

2.1 Aplicação do art. 413 do Código Civil e redução dos percentuais de retenção

Acreditamos que a Lei 13.786/2018 não resolverá todos os conflitos referen-tes à extinção dos contratos decorrentes da Lei 4.591/1964. Ademais, erros técni-cos já foram observados por autores renomados, dentre eles Otávio Luiz Rodrigues

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Júnior17 que, referindo-se à Lei 13.786/2018, afirmou que “em assassínio da boa técnica, cria-se uma nova modalidade de cláusula penal com teto prefixado e não vinculada ao inadimplemento (necessariamente) culposo”. Ao final, asseverou que “haverá choro e ranger de dentes para se explicar esse assunto em sala de aula”.

Outra crítica à Lei (em especial à possibilidade de a lei autorizar a retenção de até 50% dos valores pagos para a hipótese de a incorporação estar submetida ao patrimônio de afetação) foi exposta por Flávio Tartuce e Marco Aurélio Bezerra de Melo18. Segundo os autores, o patrimônio de afetação “não pode servir para transformar a extinção do contrato em uma fonte de enriquecimento sem causa. Uma pena de perda da metade do que se gastou, acrescida de outros valores, como a própria indenização pela utilização do imóvel, não se sustenta juridicamen-te, em nossa opinião doutrinária”.

Em razão de tais críticas, resta saber se, eventualmente, o Poder Judiciário poderá ou não aplicar a regra geral do art. 413, do Código Civil, permitindo a redu-ção dos limites e percentuais estabelecidos na Lei.

Por primeiro, é necessário que o leitor atente que nem todos os contratos referidos na Lei 4.591/1964 necessariamente devem prever retenções nos per-centuais de 25% ou 50%. A lei é clara ao dizer que, em caso de descumprimento contratual do adquirente, a pena pode ser estabelecida “até o limite de [...]” (art. 67-A, § 5º) ou “não poderá exceder a [...]” (art. 67-A, II). Assim, fica o incorporador livre para estipular, no contrato, o percentual que entender razoável, limitado aos limites impostos pela lei.

Nesses termos, imaginando-se que o incorporador estabeleceu os limites máximos (mas admitidos e permitidos pela Lei), poderia o julgador reduzir a pena imposta ao adquirente?

A questão não é simples. O art. 413, do Código Civil, determina que “a pena-lidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”.17 RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Retrospectiva 2018: Leis, livros e efemérides do direito civil. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-02/retrospectiva-2018-leis-livros-efemerides-direito-civil. Acesso em 11 jan. 2019.18 TARTUCE, Flávio; MELO, Marco Aurélio Bezerra. Primeiras linhas sobre a restituição ao consumidor das quantias pagas ao incorporador na Lei 13.786/2018. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/arti-gos/661995206/primeiras-linhas-sobre-a-restituicao-ao-consumidor-das-quantias-pagas-ao-incorporador-na--lei-13786-2018. Acesso em 11 jan. 2019.

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É fácil imaginar a aplicação do artigo 413, do Código Civil, quando a cláusula penal é estabelecida em patamares manifestamente excessivos e contrários aos ditames da boa-fé. Ocorre que, nos termos da Lei 13.786/2015, é o próprio legis-lador quem estipula os limites de 25% (art. 67-A, inciso II) a 50% (art. 67-A, § 5º). A considerar que foi a própria Lei que impôs tais patamares, a regra do art. 413, do Código Civil, poderia ser aplicada? Isso significaria que o Poder Judiciário estaria reduzindo patamares permitidos pelo Poder Legislativo?

Em princípio, se o incorporador estabeleceu a pena nos limites autorizados pela Lei, o art. 413 não poderia ser aplicado, uma vez que não se verifica penalidade “manifestamente excessiva”, mas, em verdade, em base admitidas por Lei Federal.

Contudo, sabemos que o art. 413 é considerado norma de ordem pública19 e, nesses termos, não nos surpreenderá se em casos extremos o Poder Judiciário reduzir o percentual fixado pela Lei. É o que já defendem, por exemplo, Flávio Tar-tuce e Marco Aurélio Bezerra de Melo20. No mesmo sentido, André Abelha21 afirma que “não se pode afastar a possibilidade de redução, pelo Judiciário, da penalidade contratual pactuada, mesmo que ajustada pelas partes dentro dos limites previstos na Lei 13.786/2018”.

O tema é complexo e merece maior desenvolvimento pela doutrina, antes que a jurisprudência adote um rumo não desejável.

2.2 Aplicação da lei aos contratos firmados antes da lei

Quando editada a Lei, a academia jurídica discutia se os efeitos da extinção contratual decorrentes da Lei 13.786/2018 poderiam ser aplicados aos contratos firmados antes da vigência da lei.19 Referindo-se aos contratos em geral, Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald defendem que a redução determinada no art. 413 é norma de ordem pública, não se permitindo a derrogação por convenção particular (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 536). Esse entendimento também é partilhado por Silvio Venosa (VENOSA, Silvio de Salvo de. Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 175), Paulo Luiz Netto Lôbo (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 310) e Flávio Tartuce (TARTUCE, Flavio. Direito civil: Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. v. 3. 9ª ed. São Paulo: Método, 2014, p. 398), autor este que também assevera a ordem pública do dispositivo, sustentando que por guardar relação direta com o princípio da função social do contrato, deve sempre prevalecer, notadamente quan-do a multa for exagerada ou traduzir onerosidade excessiva à parte.20 TARTUCE, Flávio; MELO, Marco Aurélio Bezerra. Primeiras linhas sobre a restituição ao consumidor das quantias pagas ao incorporador na Lei 13.786/2018. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/arti-gos/661995206/primeiras-linhas-sobre-a-restituicao-ao-consumidor-das-quantias-pagas-ao-incorporador-na--lei-13786-2018. Acesso em 11 jan. 2019.21 ABELHA, André. Lei 13.786/2018: pode o juiz reduzir a cláusula penal? Coletânea IBRADIM Lei dos Distratos. Disponível em www.ibradim.org.br. Acesso em 30 maio 2019.

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Inicialmente, o leitor pode lembrar que, nos termos do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico per-feito e a coisa julgada”. No mesmo sentido, o art. 6º, da Lei de Introdução às nor-mas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942) determina que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.

O conceito de ato jurídico perfeito é asseverado no § 1º, do art. 6º, do mes-mo Decreto-lei, ou seja, “o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. Segundo Maria Helena Diniz22, o ato jurídico perfeito “é o que já se tornou apto para produzir os seus efeitos”. Ainda segundo a autora, “se o contrato estiver em curso de formação, por ocasião da entrada em vigor da nova lei, esta se lhe aplicará na fase pré-contratual, por ter efeito imediato”. No exato e mesmo sentido é a doutrina de Carlos Maximiliano23, para quem “não se confundem contratos em curso e contratos em curso de constituição; só estes a norma hodierna alcança, não aqueles, pois são atos jurídicos perfeitos”.

Assim, em princípio, com fundamento na proteção do ato jurídico perfeito, a nova lei não poderia alcançar os contratos celebrados e eficazes antes da vigência da Lei 13.786/201824.

Essa mesma conclusão também poderia ser aplicada em razão do necessário respeito ao direito adquirido. O direito adquirido, novamente segundo Maria Helena Diniz25, “é o que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular, de modo que nem a lei nem fato posterior possa alterar tal situação jurí-dica, pois há direito concreto, direito subjetivo e não direito potencial ou abstrato”. O exemplo dado pela autora, diga-se, parece ter sido pensado na Lei 13.786/2018. Segundo a autora, “se ‘A’ vier a comprar um apartamento de conformidade com as condições e formalidades impostas pela Lei ‘X’, a edição da norma ‘Y’, modificando aqueles requisitos, não terá eficácia sobre o direito adquirido anteriormente”.

Mas a questão não é tão simples. O direito intertemporal e as regras do art. 6º da Lei impõem estudo dos autores clássicos, dentre eles Gabba, Roubier e 22 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 12ª ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2007, p. 191.23 MAXIMILIANO, Carlos. Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1946.24 Esse entendimento também parece ser o adotado nos termos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 493, cujo relator foi o Min. Moreira Alves (julgada em 25 de junho de 1992) e, mais recentemente, no Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 393.021-4, cujo relator foi o Min. Celso de Mello (julgado em 25 de novembro de 2003).25 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 12ª ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2007, p. 193.

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outros26. Como bem demonstrado por Mário Luiz Delgado, “a proibição à retroativi-dade das leis civis tem sido abrandada pela jurisprudência em diversas situações”27. Ainda segundo o autor, “a retroatividade (e eficácia imediata) da lei posterior será sempre possível, ainda que em caráter excepcional, e depois de submetida à téc-nica de ponderação, quando se puder concluir que é a aplicação retroativa que melhor concretizará o valor justiça”28.

A questão pode ser ainda mais tormentosa ao analisarmos o disposto no art. 2.035, do Código Civil. O dispositivo, diga-se, não foi pensado na Lei 13.786/2018, mas, sim, como bem observado por Fábio Azevedo29, na questão da transição entre o CC/1916 e o CC/2002. De todo modo, o art. 2.035 dispõe:

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, consti-tuídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determi-nada forma de execução.

Como se vê, os efeitos do Código Civil de 2002 podem atingir negócio ju-rídico firmado quando da vigência do Código Civil de 1916. Segundo Pontes de Miranda30, a resolução e o distrato atingem a eficácia do contrato. Essa mesma conclusão é asseverada por Antônio Junqueira de Azevedo31.

Nesses termos, fôssemos aplicar o art. 2.035 do Código Civil à questão aqui debatida, e a considerar que o distrato e a resolução contratual atingem o plano da eficácia, poderíamos dizer que a Lei 13.786/2018 tem aplicação imediata no tocan-te à extinção contratual? A questão não é complexa, mas complexíssima.26 Confira-se mais no livro do Prof. Mário Delgado (DELGADO, Mário. Novo Direito Intertemporal Brasileiro: da retroatividade das leis civis. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014).27 DELGADO, Mário. Novo Direito Intertemporal Brasileiro: da retroatividade das leis civis. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 427.28 DELGADO, Mário. Novo Direito Intertemporal Brasileiro: da retroatividade das leis civis. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 430.29 AZEVEDO, Fábio de Oliveira. Mora e extinção dos contratos: limites intertemporais da Lei 13.786/18. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-11/fabio-azevedo-limites-intertemporais-lei-1378618. Acesso em 14 jan. 2019.30 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo XXV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959. A afirmação de que o distrato encontra-se no plano da eficácia é justificada no § 3.078, p. 281. Já a afirmação de que a resolução se encontra no plano da eficácia é justificada no § 3.091, p. 332.31 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 60-61.

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Ruy Rosado de Aguiar32, por exemplo, em sua brilhante obra sobre a extin-ção dos contratos por incumprimento do devedor, defende que “a resolução não se rege pelo princípio geral único de aplicação da lei vigente ao tempo de formação do contrato, mas se dá do modo mais flexível, a fim de atender às suas particula-ridades”. Segundo o Autor, “a incidência do novo diploma se explica por se tratar de resolução legal, objeto de regulação legislativa com características de ordem pública, cuja alteração alcança os contratos de execução continuada ou diferida”33.

Questão muito próxima foi analisada por Mário Luiz Delgado em brilhante parecer34. Delgado analisou se a Lei 13.465/2017 teria aplicação imediata a todos os contratos de alienação fiduciária de bens imóveis, regidos pela Lei 9.514/1997, ainda que pactuados antes da edição da Lei 13.465/2017. Segundo as conclusões de Mário Delgado, a Lei 13.465/2017 teria aplicação imediata, mesmo aos contra-tos firmados anteriores à referida lei. Dentre seus argumentos, sustentou o Prof. Delgado:

[...] o brocardo tempus regit actum, um dos postulados do direito intertemporal obrigacional, não é absoluto, nem pode atingir todo e qualquer efeito de uma relação obrigacional pretérita, mas apenas os efeitos próprios, decorrentes diretamente do conteúdo da obrigação e da sua execução, abstraindo-se do brocardo todos os chamados efeitos impróprios ou indiretos, decorrentes da falta de execução da obrigação ou provenientes de causas extrínsecas ao vínculo, verifi-cadas em data posterior à formação do contrato. Os doutrinadores de escol nessa matéria, e também os mais citados na jurispru-dência brasileira, são unânimes em afirmar que a constituição em mora obedecerá, em parte, à lei vigente ao tempo da obriga-ção e, em parte, à lei vigente ao tempo da constituição em mora. A lei do tempo em que a obrigação foi contraída regulará os aspec-tos materiais da mora, enquanto as formalidades e procedimentos

32 AGUIAR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2ª ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2004, p. 50-51.33 Esse também parece ser o quanto defende Nancy Andrighi, em artigo publicado em 2003. Segundo a jurista, “A Lei de Introdução ao Código Civil adotou o critério de Roubier ao estabelecer que a lei em vigor terá efeito imedia-to geral atingindo os fatos futuros, sem abranger os fatos pretéritos. Assim, os contratos em curso, como os de execução continuada, apanhados por uma lei nova, são reféns da lei sob cuja vigência foram estabelecidos, ficando à sua mercê”. NANCY ANDRIGHI, Fátima. Aplicação do Novo Código Civil: Direito Intertemporal. Disponí-vel em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9057-9056-1-PB.pdf. Acesso em 12 jan. 2019.34 Versão reduzida do parecer pode ser extraída em DELGADO, Mario Luiz. A purgação da mora nos contratos de alienação fiduciária de bem imóvel. Uma questão de direito intertemporal. Revista de Direito Imobiliário. v. 41, nº 83. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano de publicação.

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serão regidos pela lei vigente ao tempo da inexecução da obrigação. Por isso, em havendo mora, regula-se a purgação pela lei do tempo da mora, e não pela lei da época do contrato, porque diz respeito ao modo de executar o convencionado, não constituindo um efeito direto da estipulação primitiva. Nesse sentido trouxemos os escólios doutrinários de CAMPOS BATALHA, CARLOS MAXIMILIANO, SERPA LOPES, ROUBIER E GABBA.

Fábio de Azevedo35, por sua vez, asseverou que “se o contrato de promessa de compra e venda ou cessão prevê um percentual a título de cláusula penal, pouco importando se inferior ou superior ao fixado pelo art. 67-A, tal estipulação estará constitucionalmente imune à aplicação da nova lei”.

Em conversas via aplicativo, o Prof. José Fernando Simão36 afirmou que “não se pode negar a eficácia à lei nova se a resolução se deu sob a sua égide”. Assim, para Simão, se o inadimplemento contratual e o ato resolutivo ocorrem enquanto vigente a nova Lei, aplicam-se os efeitos e consequências da Lei 13.786/2018, porque tempus regit actum.

A primeira decisão judicial a que se teve conhecimento, oriunda do Tribunal de Justiça de São Paulo37, determinou a aplicação imediata da Lei 13.786/2018, mesmo em contrato firmado antes da sua vigência. Segundo o magistrado,

[...] Ressalto que não vislumbro, de momento, qualquer inconstitu-cionalidade formal ou material para a não aplicação imediata da lei. Inclusive por estar-se diante, no entendimento deste magistrado, de norma de retroatividade média, qual seja, se opera quando a nova lei, sem alcançar os atos ou fatos anteriores, atinge os seus efeitos ainda não ocorridos (efeitos pendentes). Desse modo, embora a lei não alcance a data da assinatura do contrato, a rescisão ou mais tecnicamente, a resilição contratual é efeito pendente, por isso alcançando assim a presente lide.

Contudo, fato é que prevaleceu no Tribunal de Justiça de São Paulo o en-tendimento de que a Lei 13.786/2018 somente se aplica aos contratos firmados a partir da vigência da lei. Nesses termos: 35 AZEVEDO, Fábio de Oliveira. Mora e extinção dos contratos: limites intertemporais da Lei 13.786/18. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-11/fabio-azevedo-limites-intertemporais-lei-1378618. Acesso em 14 jan. 2019.36 Em conversa informal via WhatsApp.37 Processo 1070803-55.2018.8.26.0100, 7ª Vara Cível, TJSP, Juiz Senivaldo dos Reis Junior, j. 10 de janeiro de 2019.

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[...] Uma palavra final sobre a questão da recente L. 13786/18, que disciplinou a resolução dos contratos de compromissos de compra e venda de imóveis loteados e unidades em incorporação imobiliá-ria. A nova legislação altera regras de direito material, em especial os efeitos da resolução de contratos de compromisso de venda e compra de determinados imóveis. Disso decorre que não alcança contratos pretéritos, nem pode retroagir os seus efeitos, pena de violar ato jurídico perfeito e, por consequência, direito adquirido. Em outras palavras, a nova lei se aplica somente aos contratos celebra-dos após 27 de dezembro de 2.018, nunca aos anteriores. (TJSP, Apelação 1004836-48.2018.8.26.0590, j. 21 de janeiro de 2019, rel. Francisco Loureiro)38.

Ao final, destaque-se que esse entendimento, aparentemente, também deve prevalecer no Superior Tribunal de Justiça, a considerar que a 2ª Seção, ao julgar os temas 970 e 971 e a partir de uma questão de ordem suscitada, determi-nou que a lei somente seria aplicada para os novos contratos39.

Conclusão

A iniciativa da Lei 13.786/2018, inegavelmente, foi do empresariado da construção civil, sobretudo em razão da jurisprudência que passou a permitir, de forma irrefletida, a resilição unilateral e imotivada da promessa de venda e compra sob o regime da Lei de Incorporação Imobiliária, em completa afronta ao art. 32, § 2º, da Lei 4.591/1964.

Em razão de a iniciativa ter sido do empresariado, boa parte da doutrina, ainda enquanto tramitava o Projeto de Lei 1.220/2015, passou a criticar a medida, como extremamente protetiva aos incorporadores e contrário aos interesses dos consumidores. Não pensamos dessa maneira.38 Vide, ainda: "[...] a proteção ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada é garantia constitucio-nal que visa à segurança jurídica e patrimonial. Impõe ao Poder Público a obrigação de respeitar situações jurídi-cas já consolidadas, impedindo a edição de leis com efeitos retroativos, salvo se não afetar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada". TJSP, Embargos de Declaração 1042713-08.2016.8.26.0100/50000, j. 13.02.2019, Rel. Alexandre Marcondes. “[...] De rigor ainda anotar que a recentíssima Lei do Distrato (n. 13.786, de 27 de dezembro de 2018), somente se aplica aos contratos firmados posteriormente à sua vigência, de modo que não vislumbro causa para fixação do percentual de devolução nela contido, até mesmo porque se cuida de contrato firmado em fevereiro de 2015 (portanto, há praticamente quatro anos)”. TJSP, Apelação 1006133-29.2015.8.26.0127, Rel. Salles Rossi, j. 24/01/2019.39 Nesse sentido, vide: https://www.conjur.com.br/2019-mar-28/lei-distrato-nao-vale-contratos-anteriores--vigencia. Acesso em 20 maio 2019.

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O principal objetivo da Lei 13.786/2018 foi reafirmar que os contratos devem ser cumpridos (não obstante agora a lei ter conferido direito de arrependimento aos adquirentes em algumas hipóteses). Não há como nenhuma atividade empresarial prosseguir sem a necessária segurança jurídica. Reafirmar que os pactos devem ser cumpridos e trazer as consequências para o descumprimento contratual, em nossa opinião, é medida positiva.

Contudo, de fato, a Lei não observou o rigor técnico em algumas questões, conforme asseveramos neste artigo. Outro exemplo de falta de técnica jurídica da Lei 13.786/2018 (e que não é objeto do presente artigo) foi a opção de afirmar que a ausência do quadro- resumo seria hipótese de “rescisão” por “justa causa” (art. 35-A, § 1º). O termo rescisão foi praticamente abolido do Código Civil e, desde a década de 1950, é criticado pela doutrina40. A opção do legislador deixou a dúvida se a ausência do quadro-resumo seria hipótese de nulidade/anulabilidade do con-trato ou autorizaria a resolução por ausência do dever de informação do fornecedor. Aparentemente deve prevalecer a segunda opção.

Além da falta de técnica da Lei em diversos aspectos, chamou a atenção de órgãos de defesa do consumidor (i) a possibilidade de a Lei conferir a permissão de o incorporador entregar a obra para além do prazo fixado no contrato e (ii) os percentuais da pena na hipótese de resolução por culpa do adquirente que, para muitos, são elevados e desmedidos (sobretudo quando a incorporação está subme-tida ao patrimônio de afetação).

Nesses termos, a considerar a falta de técnica da Lei em alguns aspec-tos e algumas disposições que poderiam ferir direitos dos consumidores, a Lei 13.786/2018 já nasce sob duras críticas e algumas incertezas41.

Estamos ansiosos para saber o posicionamento da doutrina e da jurispru-dência a respeito dos temas aqui debatidos. De todo modo, esperamos que a Lei 40 O emprego do termo rescisão para a hipótese de inadimplemento (e não resolução) foi criticado por Pontes de Miranda como “erro crasso” do legislador (MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 2ª ed. v. 38. § 4.248, p. 337. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962).41 A lei foi duramente criticada, por exemplo, por Heitor José Fidelis Almeida de Souza, que afirmou: “Sem dúvidas, a aprovação da Lei nº 13.786/2018 representou a vitória do lobby político exercido pelas empresas de construção civil no âmbito do Congresso Nacional. O resultado final, inclusive, saiu bem melhor do que a encomenda: as incorporadoras obtiveram alvará legal para cobrar multa contratual de até 50% em caso de desistência por parte do consumidor (independentemente do motivo), lembrando sempre que a proposta inicial do PL 1.220/2015 era de multa de apenas 10% e que a jurisprudência do STJ já havia fixado limite de 25%”. SOUZA, Heitor José Fidelis Almeida de. Direito Imobiliário: bastidores da formulação e promulgação da Lei nº 13.786/2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/direito-imobiliario-bastidores-da--formulacao-e-promulgacao-da-lei-no-13-786-2018-12012019. Acesso em 14 jan. 2018.

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13.786/2018 possa ser um importante instrumento para o desenvolvimento do mercado imobiliário, possibilitando que milhares de brasileiros finalmente possam concretizar o sonho da casa própria42.

Referências Bibliográficas

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LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005.42 Ao final deste artigo, agradeço imensamente à leitura atenta, correção e sugestões de melhoria dos meus amigos Melhim Namem Chalhub, Carlos Elias de Oliveira e Pablo Malheiros.

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1André Abelha2

Resumo

Este artigo analisa o despejo liminar previsto no inciso VIII do §1º do art. 59 da Lei nº 8.245/91, cotejando tal dispositivo com o art. 300 do novo Código de Processo Civil e com o art. 473, parágrafo único do Código Civil. Três questões são abordadas: (i) se, uma vez presentes os requisitos específicos da Lei de Locações, deve o juiz deferir o despejo liminar, ou esta decisão deve também se condicionar aos requisitos do art. 300 do novo Código de Processo Civil; (ii) se a caução a ser prestada pelo locador deve ser sempre por meio de depósito judicial; e (iii) se vultosos investimentos feitos no imóvel pelo inquilino podem constituir razão para obstar o despejo liminar.

Sumário

1 Introdução. 2 A Lei 8.245/91 e o Código Civil. 3 O art. 300 do CPC e o des-pejo liminar. 4 Os requisitos legais do despejo liminar por denúncia vazia na locação não residencial. 4.1 Forma da caução. 4.2 Resilição unilateral eficaz. Conclusão.

1 Este artigo desenvolve estudo originalmente publicado In: CASTRO, Flavia Almeida Viveiros de. (Org.). Temas Atuais em Direito Imobiliário. Rio de Janeiro: Puc-Rio, 2013, 264 p.2 Mestre em Direito Civil pela UERJ. Vice-Presidente e Diretor Administrativo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Professor dos cursos de Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Civil da PUC-Rio, da UERJ, da EMERJ, da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE/RJ, do Instituto Nêmesis, do Damásio, do Instituto Luiz Mario Moutinho e do CERS. Coordenador da coluna Migalhas Edilícias. Painelista em diversos congressos e seminários em Direito Imobiliário. Membro do Conselho Técnico da Federação Internacional Imobiliária/RJ. Autor do livro Abuso do direito no condomínio edilício. Coautor dos livros Direito Imobiliário e Temas Atuais em Direito Imobiliário. E-mail: [email protected].

O CPC/2015 E O DESPEJO LIMINAR POR DENÚNCIA VAZIA

NA LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL1

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1 Introdução

A locação do imóvel urbano, inicialmente regulada pelo Código Civil de 1916, enfrentou, nas décadas seguintes, vários momentos de crise, provocados, prin-cipalmente, por condições econômicas desfavoráveis (especialmente a inflação) e por uma legislação superveniente pulverizada, processualmente ineficaz, e com característica de exacerbado dirigismo contratual.3

Sucedendo o Decreto 24.150/34 (Lei de Luvas e ação renovatória); e as Leis 1.300/50 (primeira Lei de Locações), 4.494/64 (segunda Lei de Locações), 5.334/67 (limitações ao reajustamento dos aluguéis), 6.239/75 (locação para hos-pitais, unidades sanitárias oficiais, estabelecimentos de ensino e saúde) e a Lei 6.649/79 (terceira Lei de Locações), em 1991 promulgou-se a quarta e atual Lei de Locações, 8.245/91, cujo objetivo principal era reduzir o déficit, especialmente residencial, de unidades para locação, estimulando a construção4 e a aquisição de novos imóveis para esse fim.

A fomentação bem-sucedida do mercado locatício nas cidades dependia de um novo sistema legal que ao mesmo tempo: (i) oxigenasse a autonomia pri-vada das partes, sufocada pelos anteriores ordenamentos jurídicos, mantendo na medida certa a proteção do contratante hipossuficiente, em regra o locatário; (ii) reduzisse a insegurança jurídica, mediante a unificação do regime jurídico locatício em uma só lei; e (iii) acelerasse a retomada dos imóveis pelo locador.

A Lei 8.245/91, com as suas diversas inovações legislativas5 e maior clareza textual, eliminou os entraves à correção monetária do aluguel6 e à sua revisão, e

3 Há muito já não se nega importância à restrição da liberdade das partes no estabelecimento do conteúdo contra-tual, desde que ela seja proporcional à hipossuficiência do contratante a proteger. Desde a Consolidação das Leis do Trabalho, e depois com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor e a Lei de Locações, é cada vez mais evidente como a autonomia da vontade não é um princípio contratual absoluto; ele precisa se adaptar aos novos princípios contratuais, notadamente, os da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico, e da função social, que, filtrados constitucionalmente, passam a conceber o contrato, nas palavras de Teresa Negreiros, “como um instrumento a serviço da pessoa, sua dignidade e desenvolvimento”. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 107. Para uma aprofundada análise da evolução da teoria contratual e de sua historicidade, v. ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988.4 Mediante a alteração do art. 8º da Lei 4.380/64, que regulamenta o SFH – Sistema Financeiro da Habitação, passando-se a permitir a concessão de financiamentos para a construção de imóveis destinados à locação.5 Dentre elas: (i) a possibilidade de denúncia vazia em qualquer modalidade de locação, que antes só era admitida para a locação não residencial; (ii) a inoponibilidade da impenhorabilidade do bem de família pelo fiador, em razão do acréscimo do inciso VII ao artigo 3º da Lei 8.009/90; (iii) a possibilidade do locatário ou terceiro garantir a locação com caução de bem móvel; (iv) a redução de cinco para três anos do prazo de carência da ação revisional de aluguel; e (v) regras processuais mais eficientes, incluindo a possibilidade de despejo liminar em determinadas hipóteses.6 No que foi ajudada pela estabilização da economia promovida pelo Plano Real.

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passou a regulamentar, de modo mais abrangente, completo e sistemático, todas as modalidades de locação7 e os institutos a ela inerentes.

Após dezoito anos de vigência da atual lei, em 2009, foi promulgada a Lei 12.112, que alterou diversas normas substantivas e processuais do estatuto locatí-cio. Uma delas, a que interessa para o presente estudo, foi a inclusão do inciso VIII no § 1º do art. 59.

O referido inciso passou a permitir o despejo liminar nas locações não re-sidenciais nas ações que têm por fundamento exclusivo o término do prazo da locação, desde que a ação tenha sido proposta em até trinta dias do termo ou do cumprimento de notificação comunicando o interesse na retomada do imóvel.8

O novo dispositivo abriu uma janela para os locadores de imóveis comerciais, aumentando consideravelmente o seu poder de barganha frente aos inquilinos que não possuem o direito à renovação compulsória do contrato, ou que deixaram esse direito decair, por terem perdido o prazo para ajuizar a ação renovatória.

Essa janela, surgida em um momento de grande aquecimento do mercado imobiliário, em que os valores dos aluguéis experimentaram uma drástica elevação, provocou um considerável número de ações de despejo com tal pedido antecipatório.

Há, porém, algumas questões envolvendo esse tipo de tutela antecipada que merecem uma reflexão cuidadosa, de modo a garantir a correta aplicação da lei. São elas: (i) uma vez presentes os requisitos específicos da Lei de Locações, deve o juiz deferir o despejo liminar, ou esta decisão deve também se condicionar aos requisitos do art. 300 do Código de Processo Civil? (ii) o locador deve prestar a caução sempre por meio de depósito judicial? e (iii) a realização de investimentos vultosos pelo inquilino pode obstar o despejo liminar, por força do disposto no pará-grafo único do art. 473 do Código Civil?

2 A Lei 8.245/91 e o Código Civil

Não se pode negar que o Código Civil, com suas regras e princípios, dialoga permanentemente com as leis especiais, e a Lei de Locações não excepciona essa

7 A Lei 6.649/79, com exceção de uma ou outra norma isolada, regulava de modo específico apenas as locações residenciais.8 Art. 59.(...) § 1º. Conceder-se-á liminar para desocupação em quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por fundamento exclusivo: (...) VIII – o término do prazo da locação não residencial, tendo sido proposta a ação em até 30 (trinta) dias do termo ou do cumprimento de notificação comunicando o intento de retomada.

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regra. Essa integração pode ocorrer pela simples aplicação de regras do Código Civil para suprir as lacunas da lei especial, ou em razão da interpretação da lei especial à luz dos princípios norteadores do diploma civil, como a função social da propriedade9.

Canaris já ensinou que o sistema jurídico, além de unitário e ordenado, é aberto e móvel,10 e por isso sensível à mudança dos valores da sociedade, ainda mais se revelados no Texto Constitucional, que, no caso brasileiro, estabeleceu um novo paradigma, que é o da prevalência das situações existenciais sobre as situações patrimoniais.11

9 Gustavo Tepedino destaca que a função social da propriedade é responsável pelo controle de legitimidade funcional desse direito, e impõe ao titular o dever de respeitar situações jurídicas e interesses não proprie-tários socialmente tutelados, atingidos pelo exercício do domínio. (Os direitos reais no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, t. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 158.). Pietro Perlingieri há muito já professava a função social como fator de legitimidade do direito de propriedade. O titular do domínio só recebe a tutela do ordenamento jurídico na medida em que o seu comportamento está de acordo com os valores vigentes. Se o proprietário não atribui ao seu bem a função que dele se espera, o direito a ele conferido perde a razão de existir. (PERLINGIERI, Pietro. Introduzione alla problematica della proprietà. Napoli: Jovene, 1970, p. 71). Vinte anos após a promulgação da Constituição da República, a doutrina civilista, no início tão indiferente ao texto constitucional, e resistente em interpretar o Código Civil à luz do Texto Maior, e não o inverso, parece finalmente ter se apercebido da verdadeira revolução pela qual passou a propriedade. A propriedade, antes tida como um direito quase absoluto, com seus limites definidos externamente, dentro dos quais o proprietário era livre para exercer o direito como bem lhe aprouvesse, hoje encontra a função social como a sua própria razão de existir, de modo que os direitos dos proprietários serão tutelados se e enquanto exercidos de acordo com esse princípio. (TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade priva-da. In: _____________. Temas de direito civil, Tomo I, 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 323). Em se tratando da propriedade filtrada constitucionalmente, não se pode admitir uma mera redução quantitativa dos poderes proprietários. Agora, a situação proprietária envolve não apenas o titular do domínio, mas terceiros também, e a balança penderá para um lado ou para o outro dependendo de qual solução atenderá melhor, no caso concreto, o fim constitucional. Salvatore Pugliatti expôs que a propriedade não pode ser concebida sob um aspecto unitário. Como relação jurídica complexa, o mais correto seria falar em “propriedades” (PU-GLIATTI, Salvatore. La Proprietà nel Nuovo Diritto. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1964, p. 149), pois o regramento variará conforme o contexto em que a propriedade estiver inserida: o tratamento que se confere à propriedade privada não é o mesmo atribuído à propriedade pública; o mesmo se diga com relação às propriedades urbana e rural. Igualmente, o tratamento varia conforme se analise a propriedade exclusiva, e esta no bojo de uma relação locatícia.10 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. Num sistema aberto, ensina Maria Celina Bodin de Moraes, os princípios funcionam como conexões axiológicas e teleológicas entre o ordenamento jurídico e os sistemas político, social e cultural, e também entre a Constituição e a legislação infraconstitucional. Quanto à unidade e ordem, a autora afirma que os princípios e valores constitucionais devem se estender sobre todo o tecido normativo, sem distin-ção entre público e privado, sob pena de se admitir um “mondo in frammenti”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, n. 65, jul.-set. 1993, p. 24)11 MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho... Ob. cit., p. 23.

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Um dos traços mais marcantes do Código Civil de 2002 é sua grande carga axiológica, especialmente quando interpretado em consonância com os princípios constitucionais.12

Assim, todo e qualquer contrato, seja ele regulamentado por legislação es-pecial ou não, deve atender e se pautar pelos princípios basilares do Código Civil, dentre eles a função social dos contratos, e os seus dois campos de eficácia: o interno, que cuida da repercussão entre os sujeitos que ocupam os polos da relação contratual, e o externo, que opera em verdadeira mão dupla, incidindo tanto na relação entre contratantes, como na relação entre estes e terceiros.13

No entanto, nenhum princípio insculpido no Diploma Civil parece ter tanto destaque e chamar tanta atenção como a boa-fé objetiva, que firmou um padrão de comportamento probo (correto) e leal, que conforma as condutas dos contra-

12 Sobre interpretação teleológica e interpretação axiológica, v. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direi-to. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 471 e ss; ENGISCH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. J. Baptista Machado. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 115 e ss; e PERLIN-GIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil; tradução de Maria Cristina de Cicco. 2a ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 71 e ss. Quanto a este último autor, cite-se o seguinte trecho, no qual se critica a interpretação literal: “O brocardo in claris non fit interpretatio apoia-se do pressuposto que a norma está isolada empiricamente. Mas ela é sempre fruto da sua colocação no âmbito do sistema. A norma nunca está sozinha, ela existe e exerce a sua função unida ao ordenamento e o seu significado muda com o dinamismo do ordenamento ao qual per-tence. O princípio de legalidade não se reduz ao respeito aos princípios fundamentais, implicando, ao revés, a coordenação entre eles e o contextual conhecimento do fato concreto, de maneira a individuar a normativa mais adequada e compatível com os interesses e valores em jogo. Portanto, a interpretação é, por definição, lógico-sistemática e teleológico-axiológica, isto é, destinada à promoção dos novos valores constitucionais. Assim, é preciso banir o ensino do in claris non fit interpretatio, até porque a ocorrência do casus legis será sempre uma hipótese excepcional. (...) Em um ordenamento aberto, os enunciados normativos expressos não são exaustivos em si mesmos; eles devem ser especificados de acordo com o que dispõe a tábua de valores que é a base do ordenamento. A interpretação axiológica representa a superação histórica e cultural da inter-pretação literal. A legalidade constitucional impõe uma interpretação da norma ordinária à luz dos valores cons-titucionalmente relevantes, de forma que limitar-se à letra clara ou ao sentido próprio das palavras (se é que isto é possível) ou à intenção do legislador, passado ou presente, significaria colocar-se fora desta legalidade (...) Se toda norma exprime sempre um princípio, este deve ser confrontado com os princípios fundamentais. Não existe uma previsão legislativa para aquele caso específico, e sim para uma série de casos similares ou matérias análogas. Nesse sentido, a interpretação é sempre analógica. É difícil separar as hipóteses previstas na lei daquelas não previstas; estas últimas seriam dedutíveis somente com base em semelhanças relevantes com hipóteses já previstas. Diante da inesgotável verdade dos casos concretos, a norma representa para o intérprete um modelo a ser seguido, não um comando específico para um específico destinatário. A norma não quer um intérprete servil, mero imitador, mas sim um intérprete racional que saiba seguir o modelo e extrair da figura legal um figura análoga para o caso. (...) Uma interpretação por graus (primeiro, a interpretação literal, depois, se não houver clareza, subsidiariamente, a interpretação lógica) mal se adapta a uma concepção de direito na legalidade constitucional”. Ob. cit., p. 71-76.13 AZEVEDO, Fábio de Oliveira. Direito Civil, Introdução e Teoria Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2ª ed., 2009, p. 109.

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tantes e protege a confiança legítima das partes, fazendo nascer os deveres de cooperação mútua.14

Em linhas gerais pode-se dizer que esse princípio apresenta uma tríplice função: uma hermenêutico-integrativa (art. 113 do Código Civil), uma criadora de deveres jurídicos (art. 422) e uma limitadora do exercício disfuncional de direitos (art. 187), como a vedação ao comportamento contraditório, desleal ou em descon-formidade com a sua função social.

Todavia, o diálogo entre o Código Civil e as legislações especiais não se dá única e exclusivamente através da aplicação dos seus princípios. No caso de omis-são legislativa, por exemplo, a Lei de Locações é expressa quanto à aplicação das normas do Código Civil e do Código de Processo Civil (art. 79)15.

São incontáveis os casos em que a Lei de Locações e o Código Civil se com-plementam. Por exemplo:

(i) não há dúvidas de que o art. 35 da Lei 8.245/91, que prevê o direito de indenização do inquilino pelas benfeitorias, deve ser inter-pretado em conjunto com o art. 96 do Código Civil, que conceitua as benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias. A harmonia é visível;(ii) igualmente não se ousa alegar que o fiador casado pelo regime da comunhão de bens pode prestar fiança em contrato de locação de imóvel urbano sem a anuência da esposa, somente porque a Lei de Locações, quando trata dessa garantia, não exige essa anuência. Se esse fiador casado assinar sozinho o contrato de locação, essa fiança será inevitavelmente nula, por força do art. 1.647, III, do Código Civil.

Assim, é possível concluir, desde já, que o despejo liminar por denúncia vazia previsto no art. 59, § 1º, inciso VIII, da Lei 8.245/91, deve ter o seu cabimento anali-sado não apenas com foco na lei especial, mas à luz do Código Civil e dos princípios e normas nele contidos.16

3 O art. 300 do CPC e o despejo liminar

O art. 300 do Código de Processo Civil prevê que a tutela de urgência será concedida desde que presentes os seguintes requisitos: (i) probabilidade do direito; 14 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 437 e ss. NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 130.15 O art. 79 estabelece que “no que for omissa esta lei aplicam-se as normas do Código Civil e do Código de Processo Civil”.16 Conforme se analisará adiante, o Código de Processo Civil, no tocante ao processo de despejo, aplica-se subsi-diariamente, pelas mesmas razões antes expostas, incluindo o já citado art. 79 da Lei de Locações.

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(ii) perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo; e (iii) inexistência de perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.17

Quando essa regra geral foi trazida pela Lei 8.934/94, que alterou a redação do artigo 273 do CPC/1973, o despejo liminar já não era novidade, pois a Lei de Locações, em seu art. 59, §1º, já previa, desde 1991, a antecipação de tutela em cinco hipóteses específicas.18

Iniciou-se, então, a discussão acerca da possibilidade ou não de se conce-der, nas ações de despejo, a antecipação dos efeitos da tutela, na forma do art. 273 do CPC/1973 (correspondente art. 300 do novo CPC), e fora das hipóteses elencadas no art. 59 da Lei de Locações.

Para alguns19, não havia razão para limitar o campo de eficácia deste artigo, eis que: (i) a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil é incontestável20; (ii) nada justificava a não aplicação de uma norma superveniente cujo objetivo precí-puo foi o de promover a efetividade processual; e (iii) os arts. 59 da Lei 8.245/91 e o então vigente 273 do CPC têm forte caráter de complementaridade21.17 Para um estudo mais aprofundado dos requisitos para a concessão da tutela antecipada, ver: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Tutela Jurisdicional. Vol. 3, 8ª ed, São Paulo: Saraiva, 2019. MARINONI, ARENHART, MITIDIERO Luiz Guilherme, Sérgio Cruz, Daniel, O Novo Processo Civil. 3ª ed. São Paulo: RT, 2017; WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINE, Eduardo. Curso avançado de processo civil. Vol. 2, 17ª ed. São Paulo: RT, 2018.18 As hipóteses, até hoje previstas nos incisos I a V, são: (a) o descumprimento do mútuo acordo (art. 9º, inciso I), celebrado por escrito e assinado pelas partes e por duas testemunhas, no qual tenha sido ajustado o prazo mínimo de seis meses para desocupação, contado da assinatura do instrumento; (b) o disposto no inciso II do art. 47, havendo prova escrita da rescisão do contrato de trabalho ou sendo ela demonstrada em audiência prévia; (c) o término do prazo da locação para temporada, tendo sido proposta a ação de despejo em até trinta dias após o vencimento do contrato; (d) a morte do locatário sem deixar sucessor legítimo na locação, de acordo com o referido no inciso I do art. 11, permanecendo no imóvel pessoas não autorizadas por lei; e (e) a permanência do sublocatário no imóvel, extinta a locação, celebrada com o locatário.19 Segundo Alexandre Luna da Cunha e Maria Cristina Zainaghi, “a disciplina do CPC/15 acaba com a dúvida sobre o cabimento ou não da tutela antecipada em ação de despejo para além das hipóteses previstas na LI 59, §1º”, e “com a tutela provisória do CPC/2015, o rol da lei de locação deixa de ser taxativo e passa a ser exemplificativo” (Tutela provisória do novo CPC e antecipação de tutela em ação de despejo, apud NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 17ª ed., São Paulo: RT, 2018, p. 998). No mesmo sentido, Gildo dos Santos, ainda na vigência do CPC/73: "A antecipação da tutela, atendidos os requisitos de sua concessão, pode ser deferida em qualquer procedimento... Concluímos que nada impede o deferimento da tutela antecipada em despejo, desde que preenchidos os requisitos legais de sua con-cessão. (CPC, art. 273, incisos I e II). O que não se pode nem se deve é repelir, de modo absoluto, a tutela nas ações locatícias, sem antes verificar se estão presentes os pressupostos para que seja concedida. Afinal, a lei não veda que se atenda a pedido de tutela antecipada em despejo”. (Locação e Despejo: Comentários à Lei n. 8.245/91, 4ª ed., São Paulo: RT, 2001, p. 361-362).20 Até porque, como antes ressaltado, a própria Lei 8.245/91 prevê expressamente, em seu art. 79, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.21 SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato Comentada. Rio de Janeiro: Forense, 11ª ed., 2017, p. 314-315.

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Essa posição foi acolhida pela jurisprudência, restando pacificado no Supe-rior Tribunal de Justiça que “a antecipação de tutela é cabível em todas as ações de conhecimento, inclusive nas ações de despejo”22.

De fato, é de rigor a concessão da antecipação de despejo mesmo fora do rol das hipóteses previstas pela lei especial, desde que, naturalmente, sejam, nesse caso, atendidos os requisitos do Código de Processo Civil.

Mas quando finalmente a questão parecia estabilizada, foi promulgada, em 09 de dezembro de 2009, a Lei 12.112, que promoveu diversas modificações na Lei de Locações, dentre as quais, a inclusão de quatro novas hipóteses de despejo liminar23.

Considerando que nessa época já havia consenso jurisprudencial sobre a matéria, Alexandre Freitas Câmara, ao comentar a Lei 12.112/2009, considerou inócuo o alargamento do rol do parágrafo primeiro do art. 59 da Lei de Locações.24 Se o locador, ao demonstrar a presença dos requisitos da tutela de urgência, já fazia jus à tutela de urgência, ele não precisava se valer da previsão específica da Lei de Locações, nem das cinco hipóteses originalmente constantes do rol, nem dos quatro incisos adicionais trazidos pela nova lei. 25

22 REsp 949.775/SP, Relator Ministro PAULO GALLOTTI, julgado em 30/06/2008. Vale destacar ainda o seguinte acórdão: “PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO. AÇÃO DE DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO DE ALUGUÉIS E OUTROS ENCARGOS. TUTELA ANTECIPADA. CONCESSÃO. POSSIBILIDADE. PRESSUPOSTOS AUTORIZATIVOS. (...) 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em consonância com abalizada doutrina, tem se posicio-nado no sentido de que, presentes os pressupostos legais do art. 273 do CPC, é possível a concessão de tutela antecipada mesmo nas ações de despejo cuja causa de pedir não estejam elencadas no art. 59, § 1º, da Lei 8.245/91 (...) 3. Recurso especial conhecido e improvido”. (REsp 702.205/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 12/09/2006, DJ 09/10/2006, p. 346).23 Eis os novos incisos: “VI – o disposto no inciso IV do art. 9º, havendo a necessidade de se produzir repara-ções urgentes no imóvel, determinadas pelo poder público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário, ou, podendo, ele se recuse a consenti-las; VII – o término do prazo notificatório previsto no parágrafo único do art. 40, sem apresentação de nova garantia apta a manter a segurança inaugural do contrato; VIII – o término do prazo da locação não residencial, tendo sido proposta a ação em até 30 (trinta) dias do termo ou do cumprimento de notificação comunicando o intento de retomada; IX – a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo”. (g.n.)24 O autor vai além e afirma que disposições legais como essa em nada ajudam na atuação concreta do direito, já que criam transtornos e discussões inúteis para a prática forense.25 Nas palavras do autor: “(...) ao meu juízo, é preciso recordar que o sistema do despejo liminar, por ter sido cria-do antes da inserção no sistema do CPC, do poder geral de antecipação de tutela, não pode mais ser interpretado como o foi no momento em que a Lei de Locações começou a vigorar. Em minha opinião, hoje é preciso inserir o despejo liminar na sistemática mais geral da tutela antecipada”. CAMARA, Alexandre Freitas. Comentários à reforma da Lei de Locações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 27. Veja-se que a crítica não se dirige às novas

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Por um lado, é preciso reconhecer que ao elencar novas hipóteses de ca-bimento de despejo liminar, o legislador reviveu a já superada discussão quanto à taxatividade do rol do art. 59 da Lei de Locações.26

Todavia, a nosso sentir, o reconhecimento da inocuidade das quatro novas hipóteses de despejo liminar requereria a admissão, como verdadeira, de uma pre-missa anterior: a de que o preenchimento dos requisitos do art. 59 da Lei 8.245/91 não é suficiente, por si só, para abrir as portas do despejo liminar. 27

É possível encontrar na jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Jus-tiça, decisões que compartilham da mesma visão.28

hipóteses trazidas pelo legislador em si, e sim, ao fato da dispensabilidade dessas previsões, já que se caso o autor de uma demanda de despejo demonstrar a configuração de qualquer uma delas, o magistrado, concederia a liminar, independentemente de sua existência, com fundamento no art. 300 do CPC.26 Embora a jurisprudência tenha mantido o seu rumo. Confira-se, por todas: “LOCAÇÃO. DESPEJO. CONCESSÃO DE LIMINAR. POSSIBILIDADE. ART. 59, § 1º, DA LEI N.º 8.245/94. ROL NÃO-EXAURIENTE. SUPERVENIÊNCIA DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. NORMA PROCESSUAL. INCIDÊNCIA IMEDIATA. DETERMINAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO. APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE. O rol previsto no art. 59, § 1º, da Lei n.º 8.245/94, não é taxativo, podendo o magistrado acionar o disposto no art. 273 do CPC para a concessão da antecipação de tutela em ação de despejo, desde que preenchidos os requisitos para a medida (...) Cuidando-se de norma processual, sua incidência é imediata”. (REsp 1.207.161/AL, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 08/02/2011, DJe 18/02/2011). Sublinhe-se que este acórdão esclarece também (e como não poderia deixar de ser) que as alterações da Lei 12.112/2009 no tocante ao despejo liminar, por serem de natureza processual, aplicam-se aos contratos de aluguel assinados antes de sua entrada em vigor. 27 É precisamente isto o que defende Alexandre Freitas Câmara: “Soaria absurda a ideia de que o juiz, pela mera verificação de não que está presente algum dos casos previstos nos incisos do art. 59, §1º, ficasse automatica-mente obrigado a conceder a tutela antecipada. O juiz não é um autômato, mas um intérprete do ordenamento jurídico, destinado a atuá-lo corretamente, fazendo justiça. Assim, não se pode considerar que a lei tenha criado casos em que o juiz não teria escolha senão deferir a antecipação da tutela, sob pena de se tentar fazer resurgir aquele juiz “boca da lei”, com o qual o direito moderno não pode mais conviver. Incumbe ao juiz sim, interpretadas as normas jurídicas que compõem o sistema, verificar se está ou não diante dos requisitos (todos os necessários, frise-se) para antecipar a tutela e, caso se verifique que realmente todos os requisitos estão presentes, aí sim poderá deferir a medida antecipatória”. CÂMARA, ob. cit., p. 31-32. No mesmo sentido é a lição de Gildo dos Santos, quando afirma: “Curiosa a situação criada pela Lei nº 12.112/2009, em que a liminar pode ser concedida, com prazo de apenas 15 dias para desocupação, sem sequer ouvir-se o locatário. Esta situação, entre algumas outras, há de ser objeto de alteração legislativa, sob pena de serem cometidas graves injustiças, sem respeito ao princípio da finalidade social da lei e ao princípio da dignidade humana, apanágio da atual Carta Magna. Enquanto pertinente alteração legislativa não vier, o Judiciário, por certo, último guardião dos direitos do homem, há de debelar tamanha impropriedade da Lei, quanto a essa liminar. Um dos meios, para tanto, é o magistrado aguardar a contestação do locatário, que, eventualmente, pode conter relevantes questões jurídicas ou mesmo fáticas. Após a defesa, aí, sim, irá deferir a liminar, se for o caso”. (SANTOS, Gildo dos. Locação e despejo. São Paulo: RT, 2011, p. 427/428)28 Por exemplo, mesmo antes do atual CPC: “LOCAÇÃO. AUTORIZAÇÃO DE DESPEJO. IRREPARABILIDADE, OU, AO MENOS, A DIFÍCIL REPARAÇÃO, DO FATO DA DESOCUPAÇÃO MEDIANTE O DESPEJO. LIMINAR DEFERIDA. EFEITO SUSPENSIVO EXCEPCIONAL AO RECURSO ESPECIAL.. tem-se que bem razoável considerar algumas peculiaridades do caso, especialmente: (...) a locação já vir de tempo considerável, iniciada no ano de 1994; (...)

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Dito de outro modo, a sistemática do despejo liminar seria a seguinte:

(i) se a ação tiver por fundamento exclusivo uma das hipóteses pre-vistas nos incisos I a IX do § 1º do art. 59 da Lei de Locações, o locador, para ter o despejo liminar, precisa: (a) preencher os requisi-tos estabelecidos no respectivo inciso; (b) prestar a caução exigida pelo § 1º; e (c) demonstrar o atendimento ao disposto no art. 300 do CPC; ou(ii) se o despejo possuir uma causa petendi diversa, a antecipação da tutela dependeria apenas do atendimento aos itens “b” e “c” aci-ma aludidos.

Contudo, não é preciso muito esforço para concluir que essa interpretação traria uma distorção do sistema, pois, em tese, seria mais difícil obter o despejo antecipado nas hipóteses especificamente previstas pelo legislador especial do que em outras que a Lei 8.245/91, intencionalmente ou não, deixou de prever.

Poder-se-ia argumentar que, a bem da verdade, é mais fácil para o locador obter a liminar nos despejos cujos fundamentos se encaixem nos incisos I a IX em questão, pois havendo uma previsão específica em lei, a probabilidade do direito prevista no art. 300 do CPC fica naturalmente atendida. Ora, mas ainda que se admita isso, a verossimilhança das alegações é apenas um dos requisitos exigidos pela lei processual. O locador teria ainda o obstáculo de convencer o juiz do perigo de dano irreversível ou de difícil reparação, e da inexistência de risco de irreversibi-lidade do prematuro despejo. Um obstáculo praticamente intransponível.

Limitando-se ao objeto deste artigo – que é o estudo da antecipação de tutela na ação de despejo fundada na denúncia vazia da locação não residencial –,

a irreparabilidade, ou, ao menos, a difícil reparação, do fato da desocupação mediante o despejo. Agravo Regi-mental provido para (...) suspender a ordem de despejo”. AgRg na MC 17.783/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/04/2011, DJe 17/05/2011. No mesmo sentido, confira-se: “AGRAVO DE INS-TRUMENTO. AÇÃO DE DESPEJO. LOCAÇÃO COMERCIAL. DENÚNCIA VAZIA. POSTO DE COMBUSTÍVEL. POSTU-LADA LIMINAR PARA DESOCUPAÇAO DO IMÓVEL. TUTELA ANTECIPADA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO AR-TIGO 273 DO CPC. IMPOSSIBILIDADE. Para concessão de medida liminar é necessário que ambos os requisitos do artigo 273 do CPC estejam presentes. INCORRÊNCIA. CASO CONCRETO. NEGADO SEGUIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO.” (Agravo de Instrumento 70045387438, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angelo Maraninchi Giannakos, Julgado em 05/10/2011); “Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE DESPEJO POR DENÚNCIA VAZIA COM PEDIDO LIMINAR - LIMINAR DEFERIDA - LIMINAR DEFERIDA PARA AUTORIZAR O DESPEJO - PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 273 DO CPC E DA NOVA LEI 12.112/09 - CABIMENTO. Presentes os pressupostos exigidos pelo art. 273 do CPC, quais sejam, prova inequívoca da verossimilhança das alegações e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, e os da nova Lei 12.112/09, e tendo a agravada prestado caução idônea, no valor de 03 (três) meses de aluguel, há de ser man-tida a decisão que deferiu a liminar determinando a desocupação do imóvel.” (TJMG, 1.0024.10.100508-0/001, Relator(a): Des.(a) Antônio Bispo, Data de Julgamento: 31/03/2011, Data da publicação da súmula: 06/05/2011).

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sabe-se que raramente a locação está despida de uma das garantias previstas no art. 37 da Lei de Locações.29 Isso, por si só, praticamente afasta o perigo de dano para o locador, que em condições normais poderá recuperar, com os acréscimos legais, o seu crédito, ainda que em momento posterior. Sob esse prisma, o despejo poderia esperar, salvo se o locador conseguir provar alguma situação excepcional.30

E ainda que o senhorio, logrando convencer o juiz do risco de dano, preen-chesse o segundo requisito do art. 300 do CPC, ficaria faltando o terceiro deles: a inexistência de risco de irreversibilidade da tutela pleiteada.

O ordenamento jurídico, a começar pela Constituição Federal, tutela a em-presa, o emprego e o fundo de comércio. Na locação não residencial, o despejo, de uma só tacada, põe fim a tudo isso.

O locatário que se vê compelido a desocupar o imóvel alugado, em regra, precisa encerrar as atividades da empresa (ou minimamente da filial, em se tra-tando de empreendimento de maior porte), demitir empregados e abrir mão do fundo de comércio ali desenvolvido. Todos os contratos firmados pelo locatário são encerrados; as máquinas, as mercadorias, os móveis, as ferramentas, o estoque e demais acessórios são vendidos, transferidos ou simplesmente descartados. Os clientes e fornecedores se vão. Nesse cenário, ou em outro mais otimista, não importa, como garantir a reversibilidade da situação?

O fato é que, em regra, o locador, mais ou menos aflito, pode esperar o fim do processo para retomar o imóvel; e também em regra, a antecipação de tutela nesse tipo de ação, especialmente na locação não residencial, traz prejuízos irrever-síveis para o inquilino. Daí a ponderação feita pelo legislador especial, primeiro pela Lei 8.245/91, e depois pela Lei 12.112/2009, para facilitar (e não para dificultar!), em certos casos, a célere retomada do imóvel.

Testemos, porém, o argumento da presunção legal31; isso é, que o art. 300 do CPC deve sempre ser aplicado ao despejo liminar, sendo que na hipótese dos incisos I a IX do § 1º do art. 59 da Lei de Locações todos os requisitos da norma geral (e não apenas o requisito da verossimilhança, como dito antes) estariam, por presunção, preenchidos. Ora, mas nesse caso a invocação do art. 300, precisamen-

29 Nos termos do art. 37, o locador pode exigir do locatário uma (e apenas uma) das seguintes modalidades de garantia: (a) caução; (b) fiança; (c) seguro de fiança locatícia; ou (d) cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento.30 Como, por exemplo, que a demora na desocupação da sala, do galpão ou da loja traria risco real para a subsis-tência do locador, por ele depender do aluguel para as suas necessidades básicas.31 CAMARA, Alexandre Freitas. Comentários... Ob. cit, p. 33.

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te por conta da presunção, seria inútil, bastando o atendimento às exigências da lei especial para o deferimento da medida pleiteada pelo locador. E argumentar que a presunção é apenas relativa seria fazer um jogo de palavras, pois o locatário, com facilidade, poderia provar o contrário, ou seja, que a demora no despejo não traz risco para o locador, e que o despejo antecipado lhe é desastroso.

Nessa linha, e não importa de que ângulo se analise a questão, inserir o despe-jo liminar na sistemática mais geral da tutela de urgência, nas hipóteses dos incisos I a IX do § 1º do art. 59 da Lei 8.245/91, significaria renegá-lo em sua própria essência.

A conclusão, portanto, a que se chega, é que a sistemática especial do des-pejo antecipado nas hipóteses dos incisos I a IX mencionados é incompatível com o regramento estipulado pelo art. 300 do CPC.

Realmente, doutrina e jurisprudência não parecem encontrar dificuldade para aplicar esse entendimento.

Para Sylvio Capanema, a forma empregada pelo § 1º do art. 59 no verbo conceder conduz à conclusão de que, uma vez presentes os requisitos elencados no dispositivo e no respectivo inciso, a concessão da liminar é medida impositiva.32

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é quase unânime no sentido de que a presença dos requisitos exigidos pela Lei 8.245/91 obriga o juiz a conceder o despejo liminar33,

32 Confira-se: “A tal conclusão chegamos porque o legislador usou a expressão “conceder-se-á a liminar”, colocando o verbo no futuro, o que empresta a norma força cogente, limitando-se, assim, o poder de arbítrio do juiz, ao qual só se permitirá conceder a liminar ou denegá-la, se não configurada, desde logo, a hipótese invocada para a sua concessão”. SOUZA, Sylvio Capanema de. Da Ação de Despejo. Rio de Janeiro: Forense, 3ª ed., 1998, p. 115.33 “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DESPEJO. LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. PRAZO INDETERMINADO. DENUNCIA VAZIA. NOTIFICAÇÃO DO LOCATÁRIO. LIMINAR. ART. 59, VIII DA LEI Nº 8.245/91. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. Tratando-se de despejo por denuncia vazia, no caso de locação não residencial por prazo indeterminado, tendo o Locador procedido a notificação prévia locatário, é devida a concessão da antecipação de tutela para desocupação do imóvel, desde que prestada caução. Provimento liminar do recurso, na forma do art. 557, § 1º - A do CPC”. TJRJ 0055542-52.2010.8.19.0000 - Agravo de Instrumento, Des. Rogerio de Oliveira Souza - Julgamento: 28/10/2010 - Nona Câmara Cível. No mesmo sentido: “Agravo de Instrumento. Despejo. Decisão que indeferiu a liminar, por não estarem presentes os requisitos legais, qual seja, o periculum in mora. Reforma. Na verdade, os requisitos do artigo 59, § 1º, VIII foram preenchidos, sendo requerido nesse agravo que o Juízo determine a prestação de caução. Artigo 557, § 1º-A do CPC. Provimento do recurso para deferir a liminar para desocupação do imóvel, desde que seja efetivado primeiramente o depósito da caução no valor de 03 (três) alugueres, conforme determinado no próprio § 1º do dispositivo ora em comento”. (TJRJ, 0004085-10.2012.8.19.0000 - Agravo de Instrumento, Des. Helda Lima Meireles - Julgamento: 10/04/2012 - Terceira Câmara Cível). Ou ainda: “Agravo de instrumento. Ação de Despejo. Locação não residencial. Decisão que indefere a liminar. Requisitos exigidos pelo art. 59, §1º, inciso VIII da Lei nº 8.245/91 que se mostram presen-tes. Notificação recebida pelo locatário. Depósito da caução. Ação proposta dentro do prazo previsto. Provimento do recurso”. (TJRJ, 0010515-75.2012.8.19.0000 - Agravo de Instrumento, Des. Claudia Telles de Menezes - Jul-gamento: 06/03/2012 - Quinta Câmara Cível).

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e outros Tribunais de Justiça também vêm seguindo essa linha34, aí se incluindo o STJ.35

Não se está, com isso, negando vigência à norma geral processual em todas as ações de despejo. Em nossa opinião, a melhor interpretação é a que segue:

(i) se a ação tiver por fundamento exclusivo uma das hipóteses pre-vistas nos incisos I a IX do § 1º do art. 59 da Lei de Locações, o locador, para ter o despejo liminar, precisa apenas: (a) preencher os requisitos estabelecidos no respectivo inciso; e (b) prestar a caução exigida pelo § 1º do referido dispositivo legal. O art. 300 do CPC é inaplicável; ou(ii) se o despejo possuir uma causa petendi diversa, a antecipação da tutela dependerá do atendimento aos requisitos previstos no art.

34 “Agravo de instrumento. Locação não residencial. Despejo por denúncia vazia. Decisão que indefere liminar. Hipótese em que o ajuizamento da ação se deu dentro do prazo estabelecido pelo art. 59, § 1º, inciso VIII, da Lei nº 8.245/91. Depósito de caução no valor de três alugueres. Cumprimento dos requisitos legais para concessão da liminar. Decisão reformada. Agravo provido.” (TJSP, 0099808-61.2012.8.26.0000, Agravo de Instrumento, Relator(a): Pereira Calças, Órgão julgador: 29ª Câmara de Direito Privado, Data do julgamento: 30/05/2012); “AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. AÇÃO DE DESPEJO. DENÚNCIA VAZIA. ANTECIPA-ÇÃO DE TUTELA. POSSIBILIDADE. I- Possibilidade de concessão de tutela antecipada em ação de despejo, confor-me interpretação do art. 273 do CPC. Demonstrados os requisitos necessários a concessão da tutela pretendida. II- Antecipação de tutela liminar de desocupação obedece ao disposto no art. 59, § 1º, e art. 63, § 1º, ambos da Lei 8.245/91. Concedido prazo de 30 para desocupação voluntária, sob pena de despejo compulsório. Agravo parcialmente provido em decisão monocrática.” (Agravo de Instrumento 70018820860, Décima Sexta Câmara Cível, TJRS, Relator: Ergio Roque Menine, Julgado em 07/03/2007); “instrumento. Ação de despejo. Deferimento de pedido liminar. Possibilidade. Presença dos requisitos legais. 1. Nas ações de despejo, para o deferimento de liminar de desocupação do imóvel não residencial, deve o locador comprovar os requisitos previstos no art. 59, § 1º, incisos VII IX, da lei n. 8245/91. 2. Na hipótese vertente, o agravante preencheu os requisitos legais, razão pela qual deve ser autorizado o despejo liminar. 3. Agravo de instrumento conhecido e provido.” (TJDF, 0024391-67.2011.807.0000, Data de Julgamento : 25/04/2012, Órgão Julgador : 3ª Turma Cível, Relator : Nídia Corrêa Lima); e “AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DESPEJO POR DENUNCIA VAZIA - LOCAÇÃO COMERCIAL - ART. 59 LEI 8.245/91 §1º INCISO VIII. Nos termos do art. 59 da Lei de locações, para o deferimento em ação de despejo, será necessária a prestação de caução e a exclusividade de fundamento exposto na ação de despejo. Prestada a caução equivalente a três meses no valor do aluguel previsto no contrato, e demonstrada a extinção da locação, mediante denúncia vazia, deve-se deferir a liminar para imediata desocupação do imóvel.” (TJMG, 1.0024.10.155088-7/001, Relator(a): Des.(a) Antônio de Pádua, Data de Julgamento: 28/04/2011, Data da pu-blicação da súmula: 19/07/2011). 35 “AÇÃO DE DESPEJO. DENÚNCIA VAZIA. LIMINAR PARA DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL. PRESENÇA DOS REQUI-SITOS NECESSÁRIOS À CONCESSÃO DA MEDIDA LIMINAR. 1. A concessão da liminar prevista pelo art. 59, § 1º, VIII, da Lei 8.245/91 tem por pressupostos (i) o ajuizamento da ação de despejo dentro do prazo de 30 dias após a notificação premonitória do locatário acerca da intenção de retomada do imóvel (art. 57 da Lei 8.245/91) e (ii) a prestação de caução equivalente a três meses de aluguel. 2. Uma vez presentes os pressupostos para a concessão da liminar, não tem o Juiz a discricionariedade de escolher entre concedê-la ou denegá-la, uma vez que essa medida representa a efetivação de um direito potestativo do locador. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA”. Medida Cautelar 17535/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado em 03/12/2010.

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300 do CPC. Não se aplica ao caso o § 1º do art. 59 da Lei de Loca-ções, nem mesmo quanto à caução, salvo se o juiz da causa, com base no seu poder geral de cautela36, determiná-la no caso concreto.

4 Os requisitos legais do despejo liminar por denúncia vazia na locação não residencial

Em se tratando de locação não residencial, para fazer jus ao despejo liminar previsto no inciso VIII do § 1º do art. 59 da Lei 8.245/91,37 o locador deve atender a três requisitos cumulativos: (i) promover a resilição unilateral eficaz do contrato, por meio de notificação dirigida e entregue ao locatário; (ii) propor a ação dentro dos trinta dias subsequentes ao término do prazo para a desocupação voluntária; e (iii) prestar caução no valor equivalente a três meses de aluguel.

O segundo requisito (ajuizamento da ação no prazo legal) não parece capaz de gerar relevante controvérsia, o que, entretanto, não ocorre com os demais. A forma da caução e a eficácia da resilição unilateral merecem maior atenção.

4.1 Forma da caução

O primeiro requisito para a concessão da tutela antecipada em estudo38 é a prestação, pelo locador,39 da caução no valor equivalente a três aluguéis.

A questão a resolver é saber se a caução só pode ser feita por meio de de-pósito judicial, ou seja, em dinheiro, ou se a norma admite outros tipos de caução.40

Como o legislador não foi específico, é possível defender duas distintas posições: (a) a caução pode ser real ou fidejussória, à escolha do credor, desde

36 Vide capítulo 4.1 deste artigo.37 O comentado inciso VIII trata de duas distintas causas de pedir: (a) o despejo em razão do fim do término do contrato pelo simples implemento de seu termo; e (b) o despejo requerido com base na resilição unilateral do contrato (denúncia vazia). Apenas a segunda hipótese é objeto de estudo.38 Nesse sentido confira-se: “subordina-se a concessão da liminar a uma medida de contracautela que é a caução eventualmente revertida em favor do demandado (...)”. FUX, Luiz. Locações: processo e procedimento. Rio de Janeiro: Destaque, 1992, p. 92.39 Não existe, todavia, nenhum impedimento legal a que um terceiro preste essa caução.40 Como sabido, "o objetivo da caução é o de garantir ao locatário o ressarcimento dos prejuízos sofridos, com a execução antecipada do despejo, na hipótese de vir a ser julgada, ao final, improcedente a pretensão”. (TJRJ, 0004239-28.2012.8.19.0000 - Agravo de Instrumento, Des. Maria Henriqueta Lobo - Julgamento: 14/03/2012 - Sétima Câmara Cível).

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que equivalha a no mínimo três aluguéis; ou (b) o juiz, diante das circunstâncias do caso concreto, pode determinar a caução em dinheiro, ou aceitar outra mo-dalidade de caução.

Abra-se um parêntese para dizer que a exigência de caução somente em dinheiro não nos pareceria razoável. Isso somente seria possível se a lei especial, de fato, tivesse exigido essa forma41. Em diversos momentos a Lei de Locações, quando assim quis, elegeu o depósito judicial como único modo capaz de gerar efi-cácia ao ato por ela referido.42 Não foi o caso, porém, do § 1º do art. 59, que deixou a forma em aberto.

Sylvio Capanema, acompanhado por Theotonio Negrão43, entende que a caução pode ser “real ou fidejussória, desde que o bem ofertado, para que sobre ele recaia a garantia, seja de valor igual ou superior a três meses de aluguel, vigente a época do depósito”, e que “o próprio imóvel objeto da ação poderá ser ofertado em caução, desde que dele disponha o locador, comprovadas a sua titularidade e a inexistência de outros ônus reais”.44

Contudo, o entendimento que parece mais correto é que o juiz, utilizando-se do seu poder geral de cautela, pode determinar a caução mais adequada para afas-

41 Soaria absurda a tentativa de se aplicar o art. 38 da própria Lei de Locações, segundo o qual a “caução poderá ser em bens móveis ou imóveis”. O artigo 37 é claro em dizer que somente o locador pode “exigir do locatário” as garantias locatícias, dentre elas a caução. A aplicação desse artigo ao despejo importaria, por exemplo, em exigir do autor da ação o depósito da caução em dinheiro em caderneta de poupança, em vez de conta judicial.42 Como se vê dos seguintes artigos: art. 24 (depósito judicial do aluguel nos casos de habitação coletiva multifa-miliar cuja construção esteja em condições precárias); art. 33 (depósito judicial do preço de venda do imóvel pelo locatário preterido em seu direito de preferência); art. 59, § 3º (depósito judicial do débito para elidir o despejo liminar fundado no inciso IX do § 1º do mesmo artigo); art. 62 (depósito judicial do débito para purgar a mora); e art. 67 (depósito judicial na ação de consignação de aluguel e acessórios da locação).43 NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto F.; BONDIOLI, Luis Guilherme A.; com a colaboração de João Francisco Naves da Fonseca. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. 42ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1.572.44 O autor chama ainda atenção para o seguinte fato: “É importante verificar, ao se prestar a caução e não sendo ela em dinheiro, se o caucionante tem a disponibilidade do bem oferecido”. SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato... ob. cit., p. 259. Neste sentido confira-se a jurisprudência do TJRJ: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESPEJO. LOCAÇÃO NÃO-RESIDENCIAL. DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO LIMINAR DE DESALIJO. Locação comercial por prazo indeterminado, a autorizar o despejo por denúncia vazia, com base no art. 57 da Lei 8.245/91. Requisito da notificação prévia do locatário, com concessão do prazo de 30 dias para desocupação do imóvel, devidamente cumprida pelo locador. Agravado que não desocupou o bem no prazo em questão e se encontra em mora no pagamento dos aluguéis e encargos, ocasionando danos financeiros a agravante. Presença dos requi-sitos do art. 273 do CPC. Possibilidade da agravante oferecer imóvel de sua propriedade para garantir a medida. Precedentes do STJ e do TJRJ. Provimento ao recurso, deferindo a medida liminar postulada na inicial da ação de despejo por denuncia vazia”. 0041278-30.2010.8.19.0000 - Agravo de Instrumento, Des. Vera Maria Soares Van Hombeeck - Julgamento: 25/08/2010 - Primeira Câmara Cível.

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tar o risco de lesão grave ou de difícil reparação para o inquilino. Em outras palavras, a escolha é do juiz, e não do locador.45

4.2 Resilição unilateral eficaz

Como dito anteriormente, em se tratando de locação não residencial vigo-rando por tempo indeterminado, o locador, para ter direito ao despejo liminar do inquilino, deve comprovar, no processo, a denúncia do contrato.46

O direito do locador à denúncia vazia47 está previsto no art. 57 da Lei de Locações. Essa norma estatui que “o contrato de locação por prazo indeterminado pode ser denunciado por escrito, pelo locador, concedidos ao locatário trinta dias para a desocupação”.

Sendo a denúncia uma declaração negocial unilateral, e, portanto, um ne-gócio jurídico, ela deve ser não apenas existente, como válida e eficaz.48 No plano da eficácia, o que interessa ao presente estudo, o negócio jurídico, para produzir efeitos, deve atender aos fatores de eficácia, nomeadamente, o encargo, o termo e a condição.

45 Como se pode depreender do seguinte acórdão do Superior Tribunal de Justiça: “AÇÃO CAUTELAR DE SUS-TAÇÃO DE PROTESTO. CAUÇÃO EM DINHEIRO. SÚMULA Nº 83. PRECEDENTES DA CORTE. 1. A orientação das Turmas que compõem a Segunda Seção é no sentido de que não ofende os artigos 804 e 827 do Código de Processo Civil a exigência de caução em dinheiro ou carta de fiança bancária. (...) 3. Recurso especial não conhe-cido”. REsp 536.758/SP, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 05/02/2004, DJ 05/04/2004, p. 258.46 Vale dizer, esse requisito surge da própria inércia do locador em exigir, nos trinta dias subsequentes ao termo contratual, a devolução do imóvel. Isso porque, de acordo com o art. 56 da Lei de Locações, “o contrato por prazo determinado cessa, de pleno direito, findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso”. A prorrogação por prazo indeterminado só ocorre quando, findo o prazo estipulado, o locatário permanece no imóvel por mais de trinta dias sem oposição do locador (art. 56, parágrafo único). Ou seja, quando o locador exige a saída do inquilino dentro do prazo legal, a liminar na ação de despejo não depende da notificação (denúncia), bastando que a propositura da ação se dê nos trinta dias subsequentes ao término do contrato.47 A denúncia da locação é um direito potestativo, ou formativo, e integra a categoria dos direitos formativos extintivos, pois o locador, com a sua declaração unilateral, põe fim ao vínculo contratual que vigorava por tempo indeterminado (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Tomo III. Rio de Janeiro: Borsói, 1954, p. 32). O direito potestativo dá ao seu titular o poder, conferido por lei, de afetar, com uma decla-ração de vontade, a situação jurídica de outra pessoa independente da vontade desta, que fica em estado de su-jeição. A obrigação está para o direito subjetivo assim como o estado de sujeição está para o direito potestativo.48 Para um estudo sobre a teoria geral do negócio jurídico, com a análise dos elementos de existência, requisitos de validade e fatores de eficácia, ver: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003; BETTI, Emílio. Teoria generale del negozio giuridico. 3ª ed. In: VASSALI, Filippo. Trattato di diritto civile italiano. Turim: UTET, 1960; e ANDRADE. Manuel A. D. Teoria Geral da Relação Jurídica. Vol. I e II. Coimbra: Almedina, 1974.

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O art. 473 do Código Civil estabelece em seu caput que “a resilição unilate-ral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte”.

Vê-se, com isso, que os dois dispositivos legais tratam exatamente da mes-ma hipótese, e ambos ditam a mesmíssima regra: a resilição unilateral se opera mediante denúncia, declarada à outra parte por meio de uma notificação.

O art. 57 regula, ainda, algo de que o Código Civil não trata, e nem poderia tratar, por não ser regra geral aplicável a todos os contratos: o prazo para a deso-cupação do imóvel.

Faz sentido: a Lei de Locações, especial, e aplicável apenas aos contratos de locação, prevê o efeito da resilição unilateral, qual seja, o dever do inquilino devolver o imóvel em trinta dias contados da denúncia.

Assim, se por um lado a lei especial prevê os efeitos da denúncia no caso da locação, o Código Civil prevê uma condição suspensiva dos efeitos dessa denúncia, aplicável a todos os contratos, inclusive o contrato de locação.

Essa condição suspensiva dos efeitos da resilição unilateral encontra-se pre-vista no parágrafo único do art. 473 do CC/2002.49

As três normas jurídicas estão perfeitamente orquestradas: (a) o art. 473, caput, do Código Civil e o art. 57 da Lei de Locações regulam como se dá a resili-ção unilateral, o primeiro nos contratos em geral, e o segundo especificamente no contrato de locação não residencial de imóvel urbano; (b) o mesmo art. 57 estabe-lece ainda o prazo para a desocupação do imóvel pelo inquilino; e (c) o parágrafo único do art. 473 da lei civil estabelece uma condição que impede, enquanto não implementada, a produção dos efeitos da denúncia, modulando, por consequência, a eficácia da extinção da relação locatícia e o início da fluência do prazo de deso-cupação do imóvel.

Caio Mario da Silva Pereira, ao comentar o artigo em questão, ensina que “o critério legal é o de proporcionar à parte prejudicada pela resilição unilateral a obtenção do objetivo previsto no contrato, de acordo com a natureza do contrato e dos investimentos realizados”.50

49 Art. 473. (...) Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimen-tos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. (g.n.).

O art. 125 do mesmo Código ao versar sobre a matéria, a seu turno, ressalta que estando a eficácia sujeita a condição suspensiva, “enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa”.50 PEREIRA,Caio Mário da Silva. Instituições de direito privado, vol. 3, 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 153-154.

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O autor prossegue e afirma que o legislador, em vez de determinar somente o pagamento das perdas e danos sofridas pela parte prejudicada pela dissolução unilateral do pacto, preferiu lhe atribuir uma tutela específica, “transformando o contrato que por natureza poderia ser extinto por vontade de uma das partes, em um contrato comum, valendo essa nova regra pelo prazo compatível com a nature-za e o vulto dos investimentos”, cabendo ao juiz determinar, com a ajuda de perícia técnica, “o prazo em que fica suspenso o direito da parte de resilir unilateralmente o contrato sem qualquer motivação específica”.51

Flavio Tartuce, debruçando-se sobre o tema, afirma, com acerto, que “even-tual despejo por denúncia vazia até pode não ser concedido se o locatário tiver introduzido investimentos consideráveis no imóvel”. O mesmo autor ressalta que “a relação com os efeitos internos da função social dos contratos é explícita, pois se pretende impedir uma situação de injustiça, conservando o contrato por tempo razoável”.52

Inegavelmente, o que a norma pretende é evitar que o locador, em um con-trato que vigora por prazo indeterminado, promova a denúncia de forma abrupta,53 abusiva ou desleal, quando o locatário tiver realizado investimentos vultosos.

O art. 473, parágrafo único, do Código Civil, tem forte inspiração na boa-fé objetiva, mais precisamente na vedação do comportamento contraditório,54 que exige, de acordo com Anderson Schreiber, quatro pressupostos para sua configu-ração: (i) uma conduta inicial (factum proprium); (ii) a legítima confiança da outra

51 Ob. cit. p. 153. 52 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 3, 6. ed., São Paulo: Método, 2011, p. 262.53 Na vigência do Código Civil de 1916 já era possível encontrar casos em que o poder judiciário desprestigiou o rompimento abrupto de uma relação jurídica duradoura. Um caso emblemático foi o do rompimento unilateral do contrato de distribuição, em vigor há trinta anos, dos biscoitos “Tostines”, pela fabricante, após transferência do seu controle societário para o grupo Nestlé. Confira-se a ementa do acórdão do Superior Tribunal de Justiça: “RECURSO ESPECIAL - AÇÃO CAUTELAR E INDENIZATÓRIA - RESCISÃO UNILATERAL DE CONTRATO DE DISTRI-BUIÇÃO DE PRODUTOS - DANOS EMERGENTES, LUCROS CESSANTES E DANOS MORAIS - PEDIDO ILÍQUIDO - SENTENÇA LÍQUIDA - POSSIBILIDADE (...) RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (...) A rescisão contratual, sem aviso prévio, de distribuição de produtos de marca nacionalmente conhecida, sujeita a empresa culposa a inde-nizar os danos experimentados pela empresa prejudicada pela resilição unilateral, mormente pela longa relação contratual existente entre as partes, cuja abrupta diminuição da lucratividade provoca imediatas conseqüências sociais e econômicas”. (REsp 401.704/PR, Rel. Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (desembargador convo-cado do TJAP), Quarta Turma, julgado em 25/08/2009, DJe 02/09/2009).54 No Superior Tribunal de Justiça, confiram-se, dentre outros, os seguintes acórdãos em que a venire con-tra factum proprium foi expressamente citada: REsp 681.856/RS, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. Julgado em 12/06/2007, REsp 1.087.163/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado em 18/08/2011 e AgRegREsp 1.099.550/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. Julgado em 02/03/2010.

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parte na conservação do sentido objetivo desta conduta; (iii) um comportamento contraditório com este sentido objetivo (e, por isto mesmo, violador da confiança); e finalmente, (iv) um dano ou, no mínimo, um potencial dano a partir da contradição.55

Os investimentos do inquilino podem ser concretizados por vários meios: realização de construções e benfeitorias no imóvel56; aquisição de máquinas indus-triais, veículos, móveis, hardware e software57, estoque ou matéria-prima; obtenção de financiamentos; investimentos em treinamento, marketing, marcas e patentes, dentre outros.

Não basta, logicamente, o considerável dispêndio de capital do locatário para que ele possa invocar o parágrafo único do art. 473. A ratio da norma, como dito, é afastar a resilição unilateral abusiva, que surpreenda o locatário, frustrando a legítima expectativa nele criada quanto à possibilidade de ficar no imóvel pelo tempo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.

Caberá então ao inquilino a prova de que o locador concordou, ou de que ao menos tinha (ou deveria ter) ciência da realização dos investimentos, e de sua extensão. Mas ainda que o locatário faça essa prova, a resilição unilateral será eficaz se o senhorio demonstrar que no caso concreto o contexto fático não permitia, ra-

55 SCHEIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 124. Ao tratar das medidas de reparação do comportamento contra-ditório, o autor afirma, com razão, que impedir o dano é, sem sombra de dúvidas, a melhor solução, confira-se: “Ainda que se exija, entre os pressupostos de aplicação do nemo potest venire contra factum proprium, um po-tencial lesivo da contradição, a doutrina estrangeira é unânime em indicar como sua conseqüência ou efeito princi-pal, não a reparação de danos eventualmente derivados da conduta incoerente, mas o próprio impedimento de tal conduta. (...) Mesmo a inserção do venire contra factum proprium no âmbito do abuso de direito a isto se vincula, já que, ao contrário do que ocorre com a figura do ato ilícito em sentido estrito, o ato abusivo serve não apenas a título de reparação, mas também como fonte de uma tutela impeditiva, capaz de prevenir e evitar o dano. E, de fato, é mais eficiente, sob o ponto de vista da composição dos conflitos de interesses e da tutela de confiança, impedir, com anterioridade, o venire contra factum proprium, que impor o posterior ressarcimento dos prejuízos resultantes da conduta incoerente. A norma de proibição do comportamento contraditório tem assim, um caráter primordialmente preventivo, que se confraterniza com as mais festejadas teorias do direito contemporâneo. (...) A confiança, de fato, somente resta eficientemente tutelada, na hipótese de se obstar o comportamento que se dirigia a sua ruptura. (...) Pode-se dizer, portanto, que a sanção primordial à conduta contraditória é a inadmissão ou impedimento do exercício da situação jurídica subjetiva em violação à boa-fé e a ilegítima confiança”. (Ob. cit., p. 155-156). Ver também: MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da Boa-Fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1984; MARTINS-COSTA, Judith. Da Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: RT, 1999.56 No caso das benfeitorias necessárias e úteis, surge interessante questão envolvendo o direito de retenção e indenização do locatário, previsto no art. 35 da Lei de Locações, frente ao despejo liminar, o que, todavia, não é objeto deste estudo.57 Atualmente o investimento em tecnologia poder ser elevadíssimo, mediante a compra de sistemas de automa-ção e controle de processos internos e gestão da informação. Há, por exemplo, salas de servidores e de reunião telepresencial de custo milionário.

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zoavelmente, a criação de uma legítima expectativa de duração da relação locatícia. Isso pode acontecer se o locador tiver alertado o inquilino de que os investimentos planejados seriam feitos por conta e risco deste último, tendo em vista a prorroga-ção do contrato por tempo indeterminado, e a possibilidade de denúncia da locação.

Assim, prorrogada a locação, pelo consentimento tácito do locador (art. 56, parágrafo único, da Lei 8.245/91), e realizados os investimentos pelo inquilino sem que o locador, deles ciente, tenha alertado o inquilino, a denúncia unilateral prevista no art. 57 passa a ter como condição suspensiva a fluência do “prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos”.

Dessa maneira, se na data da notificação promovida pelo locador ainda não houver transcorrido o tempo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos realizados pelo inquilino, a condição suspensiva legal não se implementará. Com isso, a denúncia (notificação para desocupação em trinta dias) prevista no art. 57 não produzirá efeitos; e, consequentemente, o prazo de trinta dias para a desocu-pação não começará a fluir, permitindo ao locatário permanecer no imóvel, imune ao despejo.

Esse raciocínio encontra respaldo na jurisprudência. Já existem decisões judiciais reconhecendo que a ineficácia da resilição unilateral retira do locador o di-reito ao despejo enquanto não implementada a condição suspensiva legal. É o que dá conta um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que invocou o art. 473, parágrafo único, do Código Civil, para negar eficácia à resilição unilateral da outra parte contratante.58 (g.n.)

58 Confira-se: “Em várias ocasiões, decidi, com prestígio da colenda Turma Julgadora à qual eu pertencia até recentemente, que, em contratos vultosos e de vigência por prazos alongados, é indispensável o controle judicial, ainda haja a previsão de rescisão unilateral, o que se dá por força do disposto no parágrafo único do artigo 473 do Código Civil. (...) Não se perca de vista igualmente que a atividade empresarial hoje também implica um regime de cooperação, o que, pois, tem como consectário jurídico um certo dever de evitar medidas extremadas que não se revelem compatíveis com a função social do contrato, sem perder de vista que muitas vezes o fracasso de uma contratação de longa duração é devido mais a estipulações draconianas impostas pela parte com mais poderio econômico ou que até só se justificassem dentro do contexto fático do momento da celebração, sem que ficassem estabelecidos mecanismos ajustadores a novas circunstâncias que sobrevêm no curso da execução do contrato”. TJSP. Seção de Direito Privado. 25ª. Câmara. AI 0109528-86.2011.8.26.0000. Rel. Des. Sebastião Flá-vio. Julgado em 21/09/2011, unânime. Confira-se outro trecho do acórdão: “Embora seja seguro que a agravante seria ressarcida de todo o prejuízo que experimentar em razão da cessação de suas atividades, se for vencedora no futuro, porque é inequívoco o grande poderio econômico da agravada, entretanto não é menos certo que um litígio dessa ordem, no atual contexto da administração da Justiça brasileira, e por também envolver apurações técnicas minuciosas e de vulto para a prova dos prejuízos e dos lucros cessantes, só ensejaria o ressarcimento não antes que duas décadas, o que é inconcebível. Na ponderação entre dois valores, deve prevalecer o que, pela evidência das coisas, se não for prestigiado, seguramente causará consequências gravosas inequívocas, porque implicará a cessação das atividades econômicas da agravante, ao passo que, para a agravada, o retardo em obter

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Nessa esteira, sem uma notificação eficaz, e, por conseguinte, sem o início e a fluência do prazo de desocupação aludido no art. 57 da Lei de Locações, o locador não poderá pedir o despejo liminar, por lhe faltar um dos requisitos do art. 59, § 1º, VIII. A hipótese é não apenas de indeferimento da tutela antecipada, como de improcedência do próprio pedido de despejo.

Conclusão

A Lei de Locações, se por um lado representou grande avanço legislativo em relação às suas antecessoras, de outro não pode prescindir de uma interpretação sistemática, e mais do que isso, axiológica, de acordo com os princípios vigentes no ordenamento jurídico.59

O Código Civil, a Lei 8.245/91 e o Código de Processo Civil devem dialogar sempre. A Constituição Federal elegeu como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana, do qual decorrem, dentre outros, o princípio da solidariedade, que preenche axiologicamente a boa-fé objetiva, permeando todo o sistema jurídico.

A locação de imóvel urbano não escapa da abrangência desse princípio, que opera em todos os momentos da relação, desde a fase pré-contratual, sendo fonte de deveres e de limitação de direitos do locador e do locatário, alcançando a fase pós-contratual. Senhorio e inquilino devem se comportar de acordo com os ditames da boa-fé, com probidade, lealdade e cooperação, em prol da consecução do objetivo contratual, e tutelando-se a legítima expectativa, fundada na confiança. Veda-se, com isso, o comportamento contraditório da contraparte.

Quanto à sistemática especial do despejo antecipado, prevista no art. 59, § 1º, incisos I a IX, parece seguro afirmar que ela é incompatível com o regramento geral estipulado pelo art. 300 do Código de Processo Civil.

o efeito jurídico desejado, não lhe será tão adverso, até porque é uma situação que já vem se protelando há consi-derável tempo, e se a suportou é porque não lhe era tão nociva”. Em outro caso também julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a solução foi a mesma: “Prazo de rescisão - Possibilidade de dilatação - Art 473, parágrafo único, do Novo Código Civil, aplicável ao caso (...) TUTELA ANTECIPADA - Ação de nulidade de cláusula contratual c.c. indenização por danos materiais e lucros cessantes (...) Tese que merece acolhida em face da nova concepção da relação jurídica contratual operada com o novo Código Civil - Existência de prova inequívoca de que a contratante fez investimentos consideráveis em função da relação contratual até então existente - Prazo de rescisão que, assim, se mostra desarrazoado - Possibilidade de dilatação - Art 473, parágrafo único, do Novo Código Civil, aplicável ao caso (...) Deferimento parcial da tutela pleiteada - Recurso provido em parte”. (TJSP, 12ª Câmara de Direito Privado, AI 7.148.853-4, Relator(a): Rui Cascaldi, Julgado em 13/06/2007, unânime).59 Em outras palavras, as normas, especialmente os princípios e cláusulas gerais, não podem ser vistos como meras estruturas formais, neutras e a-históricas, vazias do ponto de vista axiológico, mas que exprimam a tábua de valores eleita pelo constituinte.

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Por essa razão, se a ação de despejo tiver por fundamento exclusivo uma das hipóteses previstas nos incisos I a IX do § 1º do art. 59 da Lei de Locações, o locador, para retomar prematuramente o imóvel, precisa apenas: (a) preencher os requisitos estabelecidos no respectivo inciso; e (b) prestar a caução exigida pelo § 1º, sendo inaplicável a regra do art. 300 do CPC.

Por outro lado, se o despejo possuir uma causa de pedir que não se encaixe nas hipóteses da lei especial, a antecipação da tutela dependerá (somente) do atendimento aos requisitos previstos no art. 300 do Código de Processo Civil. Não se pode, então, aplicar ao caso o § 1º do art. 59 da Lei de Locações.

A fim de obter o despejo liminar previsto no inciso VIII do § 1º do art. 59 em comento, o locador deve, cumulativamente, preencher três requisitos: (i) promover a denúncia eficaz do contrato; (ii) ajuizar a ação nos trinta dias subsequentes ao término do prazo para a desocupação voluntária do imóvel; e (iii) caucionar o juízo em valor equivalente a três meses de aluguel.

Apesar de a caução, no silêncio do art. 59, § 1º, poder ser real ou fidejussó-ria, o juiz, utilizando-se do seu poder geral de cautela, pode determinar a caução que considere ser a mais adequada para afastar o risco de lesão grave ou de difícil reparação para o locatário. A escolha cabe ao juiz, e não ao locador.

Finalmente: se, pelo consentimento tácito do locador (art. 56, parágrafo úni-co, da Lei 8.245/91), a locação antes encerrada pelo advento do termo vier a se prorrogar por tempo indeterminado, e o inquilino realizar investimentos considerá-veis sem que o locador, ciente da situação, tenha alertado o inquilino, a denúncia só produzirá efeitos depois de passado o “prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos” (art. 473, parágrafo único, do Código Civil). Apenas com o imple-mento dessa condição é que o prazo de desocupação do imóvel pelo inquilino co-meçará a correr, quando então, e somente então, abrir-se-ão as portas do despejo.

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Christiane Rocha Reis Xavier1

Resumo

Dentre as características dos Fundos de Investimento Imobiliário, a pos-sibilidade de captar recursos da poupança popular através da negociação de cotas e de receber significativos benefícios tributários destacam-se como as razões pela qual é crescente a utilização desses veículos em parcerias e estru-turas societárias que objetivam a realização e operacionalização de grandes em-preendimentos imobiliários. No entanto, observa-se que determinadas questões devem ser vistas com cautela pelo empreendedor que almejar, com esses con-domínios de investimento, firmar tais parcerias e/ou sociedades, especialmente, se ele deseja preservar, ao longo do tempo e, em caso de alienação do imóvel investido, o direito de preferência. Deve o empreendedor se atentar para o fato de que a parcela detida pelo fundo de investimento no imóvel ou empreen-dimento pode ser alienada sob duas vertentes, quais sejam, de forma direta, através da venda do imóvel para terceiro e, de forma indireta, através da nego-ciação de suas cotas. Nesse cenário, o presente artigo se propôs a identificar, sob a ótica do empreendedor, os riscos envolvidos nessa parceria imobiliária, no que tange à possibilidade de violação do direito de preferência para, então, analisar os acordos e mecanismos possíveis de serem implantados com o fito de resguardar os interesses da parte contratante e/ou impedir a ocorrência de tal ato lesivo e seus efeitos. As análises e conclusões aqui apresentadas foram fundamentadas pelo levantamento de referencial teórico, pesquisa legislativa e análise documental.1 Graduada em Direito pela UNIFEMM e pós-graduada em Direito Imobiliário pela FGV. Atualmente, advoga na área cível e colabora com autores na redação de livros e artigos jurídicos.

OS ACORDOS RELACIONADOS AO DIREITO DE PREFERÊNCIA NA

ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS DOS FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO

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Palavras-chave

Fundos de Investimento Imobiliário (FII), Direito de Preferência, Alienação Direta e Indireta, Acordo de Cotistas, Cláusulas Restritivas.

Abstract

Among real estate investment trust characteristics, the possibility of rais-ing funds from popular savings through quota negotiation and the significant tax benefits are the main reasons for its growing usage in partnerships and corporate structures focusing the development of large real estate undertakings. However, entrepreneurs should see these questions with cautious, especially if they wish to preserve their right of preference over time and in case of real estate disposals. Entrepreneurs must be aware to the fact that these disposals may occur directly, by selling the property to third parties or, indirectly, through quota negotiation. In this scenario, the objective of this work is to identify, by the entrepreneur point of view, the risks of infringement of preference rights, and then, analyze the possible agreements and mechanisms that may be adopted to protect the contracting party interests and/or prevent the occurrence of this harmful act and its effects. The analyses and conclusions presented in this study were reasoned on a theoretical background, legislative research, and documentary analysis.

Keywords

Real Estate Investment Trust, Right of Preference, Direct and Indirect Dis-posal, Quota Holders Agreement, Restrictive Clauses.

Introdução

Os instrumentos tendentes à captação da economia popular, percebe-se, estão cada vez mais sendo utilizados para financiar empreendimentos imobiliários, e uma das maneiras em que se pode acessar tal poupança é através dos Fundos de Investimento Imobiliário.

Os denominados FIIs possuem grande capacidade de captação de recursos, uma vez que, além de se lastrearem em ativos imobiliários – o que, no Brasil, é culturalmente considerado como sinônimo de investimento seguro – eles também possuem muitas outras características que são atrativas aos investidores, dentre

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elas a possibilidade de receber rendimentos isentos de tributos. O mercado imo-biliário, atento aos benefícios que os FIIs podem trazer em termos de captação e rentabilidade, cada vez mais os utiliza em estruturas societárias ou parcerias que objetivam a realização e operacionalização de grandes empreendimentos imobiliá-rios, tais como shopping centers, edifícios corporativos, prédios de logística, até mesmo hospitais2, entre outros.

Ocorre que, quando duas ou mais partes se unem para a realização e ope-racionalização de um empreendimento imobiliário, é de grande importância que seja disciplinado entre elas o que acontecerá com esse negócio, em especial, com o imóvel investido, caso uma das partes pretenda sair da sociedade ou alienar a sua respectiva parcela do patrimônio. No intuito de resguardar os direitos do sócio ou do parceiro remanescente que pretende dar continuidade no negócio, sem que seja compelido a aceitar o ingresso de terceiros, é necessário que seja instituído o direito de preferência.

No entanto, quando essa parceria imobiliária é realizada com um Fundo de Investimento Imobiliário, o empreendedor que deseja ver garantido o seu direito de preferência em caso de alienação do imóvel deve se preocupar com a possibilidade de que a referida alienação aconteça sob duas vertentes, quais sejam, a alienação direta do imóvel e a indireta, através da negociação das cotas do FII.

Em sendo assim, o presente artigo objetiva obter respostas a uma pergunta, qual seja, de que maneira se pode assegurar àquele que deseja ver preservado seu direito de preferência na alienação de imóvel participado com FII, notadamente, quando da possibilidade não apenas de alienação direta, mas, também, da aliena-ção indireta da propriedade?

Na busca da resposta a essa complexa indagação, é preciso analisar outras questões primárias e inter-relacionadas, tais como: o que é um fundo de investi-mento imobiliário? Como são negociadas suas cotas? Quais seriam os riscos que a alienação indistinta de cotas poderia trazer para o empreendedor que se une a um fundo de investimento imobiliário para implementar e operacionalizar um empreen-dimento imobiliário? Pode um fundo celebrar um acordo que verse sobre direito de preferência na alienação do imóvel investido, mas que compreenda também a ven-da indireta, ou seja, que limite a circulação das cotas? Esse acordo teria validade ou eficácia perante os cotistas e terceiros?2 A Unimed Sul Capixaba optou pelo uso de um fundo imobiliário para levantar recursos para a construção e ges-tão de um hospital. <https://www.infomoney.com.br/imoveis/fundos-imobiliarios/noticia/7920102/fundos-imo-biliarios-financiamento-de-hospitais-tem-grande-potencial-e-retorno-interessante>. Acesso em 18 ago. 2015.

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Com o objetivo de responder as questões acima elaboradas, sem, contudo, qualquer pretensão de esgotar o tema, será utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica e legislativa sobre os Fundos de Investimento Imobiliário, o direito de preferência, a validade e eficácia dos contratos, a possibilidade de aplicação analó-gica da legislação empresarial, entre outros temas relacionados.

1 O Mercado de Capitais e o Setor Imobiliário

O financiamento é algo inerente ao desenvolvimento da atividade empre-sarial e pode, basicamente, dar-se através de três formas: por recursos próprios, por subsídios de instituições financeiras ou pela captação de recursos através do mercado de capitais. No mercado imobiliário não é diferente. Sejam construtoras, incorporadoras, loteadoras, empresas de shopping centers, dentre outras, todas buscam recursos objetivando a consecução de seus empreendimentos. É o que se chama de funding.

Entretanto, em determinada época foi constatado que a captação de recur-sos através de financiamentos bancários não era mais viável ou, pelo menos, atra-tiva, em razão dos altos juros praticados. Do mesmo modo a utilização de recursos próprios também era uma medida muitas vezes prejudicada, ora pela própria ine-xistência de caixa do empreendedor, ora pelo estabelecimento de institutos como o patrimônio de afetação3. Diante desses fatos, o acesso à poupança popular, através do mercado de capitais, passou a ser um importante meio para a consecução da atividade imobiliária.

A Comissão de Valores Mobiliários denomina o mercado de capitais como o ambiente onde é viabilizado o fluxo direto de recursos disponíveis de agentes su-peravitários para os agentes deficitários4. Em outras palavras, mercado de capitais é onde se encontra quem possui poupança e busca maior rentabilidade para seus recursos, com aquele que precisa desses recursos para viabilizar seus projetos.3 A criação do Patrimônio de Afetação teve como motivação proteger o consumidor e impedir que o empreende-dor praticasse o que no jargão do mercado se denomina “bicicleta”, ou seja, direcionasse recursos de um empre-endimento para outros. Segundo Luiz Antônio Scavone Junior, “o patrimônio de afetação consiste na separação do terreno e dos direitos da constituição a ele vinculados, do patrimônio do incorporador, que, por opção deste, passa a ser destinado exclusivamente à consecução da própria incorporação em proveito dos futuros adquirentes, garantindo, igualmente, as obrigações exclusivamente ligadas à realização do empreendimento”. SCAVONE JU-NIOR, Luiz Antônio. Direito Imobiliário: Teoria e Prática. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 133.4 CVM. TOP: O mercado de valores mobiliários brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Comissão de Valores Mobiliários, 2014, p. 33.

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Embora o mercado de capitais seja conhecido como mercado da desinter-mediação, haja vista que, como já mencionado, promove o fluxo direto de recursos entre os seus participantes, isso não significa que, de fato, não haja a necessidade da presença de intermediadores nessa operação. Vale esclarecer que o termo ‘de-sintermediação’ se refere ao fato de que a intermediária não realiza, por si, a opera-ção, tal como geralmente acontece no mercado financeiro, onde, por exemplo, os poupadores firmam contrato de poupança com as instituições bancárias e estas, por sua vez, firmam contratos de empréstimos para quem deles necessite.

As citadas instituições intermediárias são as responsáveis por fazer, dentre outros serviços, com que as ordens de compra e de venda dos valores mobiliários aptos à negociação, determinadas pelos seus clientes, encontrem-se e realizem o negócio pretendido. É dever das intermediárias proporcionar “credibilidade, se-gurança e liquidez ao mercado como um todo5”e, para tanto, precisam observar certos deveres e princípios de conduta, bem como possuir amplo e profundo co-nhecimento sobre o mercado em que atuam e sobre as partes negociantes6. Essas intermediárias podem ser corretoras, distribuidoras, bancos de investimentos ou bancos múltiplos com carteira de investimento e, todas essas instituições devem ser registradas no Banco Central do Brasil e na Comissão de Valores Mobiliários7.

O mercado de capitais atua em dois expedientes, quais sejam, no mercado primário e no mercado secundário. No mercado primário, tal qual a própria palavra indica, os valores mobiliários são negociados pela primeira vez e têm os respecti-vos valores captados direcionados à instituição emissora, a exemplo do conhecido procedimento de IPO – Initial Public Offering, que é a primeira oferta pública, seja de ações de empresas que abriram seu capital ou mesmo de cotas de fundos de investimento, a qual será melhor detalhada à frente, neste artigo. Já o mercado secundário é onde os valores mobiliários adquiridos no mercado primário são re-negociados. Tal renegociação se dá entre investidores, e os recursos financeiros obtidos são direcionados aos proprietários dos valores mobiliários revendidos.

Há várias operações no mercado de capitais em que o setor imobiliário parti-cipa. Além da abertura de capital de empresas imobiliárias, é possível, por exemplo, 5 BMF&BOVESPA. Introdução ao Mercado de Capitais, disponível em: http://www3.eliteccvm.com.br/novo/uplo-ad/misc/file/62c57d602a2e086ccaa3055b1c24836c.pdf., p.17. Acesso em 24 ago. 2015.6 CVM. Regulação do Mercado de Valores Mobiliários: Fundamentos e Princípios. Disponível em: http://www.por-taldoinvestidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/galerias/arquivos-historias-interativas/RegulacaoDoMercadoDeValoresMobiliarios.pdf. Acesso em 19 ago. 2015.7 CVM. Portal do Investidor. Disponível em: http://www.portaldoinvestidor.gov.br/menu/primeiros_passos/Enten-dendo_mercado_valores.html. Acesso em 19 ago. 2015.

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emitir debentures e títulos de base imobiliária como os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), securitizar recebíveis e utilizar os Fundos de Investimento Imobi-liário, os quais são, em determinada particularidade, o objeto deste estudo.

2 Os Fundos de Investimento Imobiliário

Instituídos pela Lei 8.668/93, os Fundos de Investimento Imobiliário são, a teor do art. 2º da Instrução Normativa de n. 472, da Comissão de Valores Mobi-liários, “uma comunhão de recursos captados por meio do sistema de distribuição de valores mobiliários e destinados à aplicação em empreendimentos imobiliários”.

Segundo FORTUNA, “o segredo dos fundos de investimento é a ideia do condomínio”8 ou seja, a aplicação de recursos em conjunto, que perfaz uma grande soma disponível para investimentos. A grande capacidade de atração de público e, portanto, de recursos, desses veículos de investimento se dá, primeiramente, em razão do seu modelo jurídico que, em geral9, não faz qualquer distinção entre potenciais investidores, atraindo os de todos os tipos, desde que possam efetuar o pagamento do valor mínimo de investimento. Segundo dados da Bovespa10, há FIIs constituídos cujo investimento mínimo é R$ 1.000,00 (mil reais).

A forma de distribuição de rendimentos dos Fundos de Investimento Imobi-liário também provoca muito interesse e procura por esse segmento de investimen-to, uma vez que muitos desses fundos, principalmente os que exploram a locação de imóveis, realizam tal distribuição com uma periodicidade pequena e estável, muitas vezes mensal. Ainda, a legislação impõe aos FIIs que os lucros sejam se-mestralmente apurados e que 95% desses lucros sejam distribuídos, ou seja, é as-segurado aos investidores que se o fundo auferir lucro, haverá, consequentemente, rendimentos a receber.

Os Fundos de Investimento Imobiliário também oferecem certa diluição no risco do investimento, na medida em que podem investir em diferentes ativos11. A esse respeito, é importante informar que a atividade de um FII não se limita a 8 FORTUNA, Eduardo. Mercado Financeiro: Produtos e Serviços. 18ª ed. Rio de Janeiro: QualityMark, 2011, p. 551.9 Ou seja, nos casos em que não há nenhuma disposição em contrário no seu regulamento.10 http://www.bmfbovespa.com.br/fundos-listados/como-investir-em-fundos-imobiliarios.aspx?idioma=pt-br. Acesso em 18 ago. 2015.11 “As instituições financeiras administradoras dos Fundos são obrigadas a manter, no mínimo, 75% do patrimônio do Fundo em bens e direitos imobiliários, sendo que os 25% restantes deverão estar aplicados em títulos de renda fixa”. Informação BMF BOVESPA, disponível em <http://www.bmfbovespa.com.br/pt-br/perguntas-frequentes--resposta.aspx?idioma=pt-br>. Acesso em 08 ago. 2015.

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apenas à exploração de ativos reais, ou seja, de imóveis para venda, locação ou arrendamento, mas também podem negociar os direitos sobre os imóveis do seu patrimônio ou investir em Letras de Crédito Imobiliário (LCI), cotas de outros Fun-dos de Investimento Imobiliário, certificados de potencial adicional de construção (CEPAC), Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), entre outros ativos listados no art. 45 da Instrução 472 da Comissão de Valores Imobiliários.

O investimento em Fundos de Investimento Imobiliário possui certo aspecto “negativo” no que se refere a liquidez, entendido esta como a possiblidade e cele-ridade de converter o referido investimento em dinheiro ou caixa. Isso porque a Lei 8.668/93, ao caracterizar os FIIs como “condomínios fechados”, estabeleceu não ser permitido o resgate de cotas, de modo que o cotista que desejar se retirar do fundo e recuperar seu investimento deve alienar suas cotas no mercado secundário ou aguardar a liquidação do fundo, que, por sua vez, só pode se dar em razão de ter alcançado seu termo ou, na inexistência de prazo, por decisão assemblear.

De qualquer forma, no que diz respeito a liquidez, em se querendo investir no mercado imobiliário, o investimento em FIIs pode trazer maiores vantagens do que a aquisição de imóveis propriamente ditos. Vale mencionar que o investimento em cotas permite a negociação fracionada, ou seja, o investidor, se quiser ou pre-cisar, pode se desfazer da quantidade de cotas que desejar ou que seja suficiente à sua necessidade, o que não aconteceria tão facilmente se o investimento fosse em imóveis. No mesmo sentido, é importante ressaltar que a transação imobiliária pode ser muito mais delongada do que a negociação de um valor mobiliário, uma vez que requer inúmeras diligências e cautelas.

Um grande atrativo é o tratamento tributário, o qual pode ser concedido aos cotistas e ao fundo que observar as exigências legais. A esse respeito, os Fundos de Investimento Imobiliário podem obter isenção do Imposto de Renda12 sobre seus rendimentos e ganhos de capital, desde que apurem seus lucros semestralmente e distribuam 95% do que for auferido. Entretanto, o art. 2º da Lei 9.779/99 alerta que o fundo será tributado tal qual uma pessoa jurídica, se ele investir em “empreen-dimento imobiliário que tenha como incorporador, construtor ou sócio, quotista que possua, isoladamente ou em conjunto com pessoa a ele ligada, mais de vinte e cinco por cento das quotas”.12 “O ambiente do Fundo Imobiliário é isento de impostos, tais como PIS, COFINS e Imposto de Renda, este último só incidindo sobre as receitas financeiras obtidas com as aplicações em renda fixa do saldo de caixa do fundo (compensáveis quando da distribuição de resultados aos cotistas)”. http://www.fundoimobiliario.com.br/leis.htm. Acesso em 21 jul. 2015.

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O cotista, pessoa física, também receberá os rendimentos distribuídos pelos Fundos de Investimento Imobiliário isentos de Imposto de Renda, desde que obser-vados os requisitos do art. 3º da Lei 11.033/2005, quais sejam: o cotista não deve possuir mais de 10% das cotas do fundo nem outro percentual que represente o direito de receber mais de 10% dos rendimentos auferidos; as quotas do respectivo fundo devem ser negociadas exclusivamente em bolsa de valores ou no mercado de balcão organizado e, por fim, o fundo deve possuir, no mínimo, 50 quotistas.

O benefício tributário que o fundo pode auferir é extremamente atrativo à captação de investidores e relevante para o exercício de sua atividade imobiliária, pois aumenta muito a competitividade desses veículos no mercado. Para exemplifi-car a relevância do benefício tributário, enquanto um Fundo de Investimento Imobi-liário seria isento de tributação nos rendimentos auferidos através da exploração da atividade de locação de imóveis, uma pessoa física, exercendo a mesma atividade, pode arcar com uma carga tributária no percentual de até 27,5%, e uma pessoa jurídica, cujo objeto social seja investimento em imóveis e esteja sob a sistemática do lucro presumido, suportará uma tributação variável entre 11,33% e 14,53%, conforme observou OKAZUKA13.

Tal benefício é de fato tão expressivo que, conforme observado por MAR-TINS14, apud OKAZUKA, houve uma época em que os Fundos de Investimento Imo-biliário “passaram a ser utilizados por diversas empresas do setor imobiliário como um veículo para suas próprias atividades, e não como um veículo de captação do mercado financeiro e de capitais” 15. Observou-se que as empresas imobiliárias constituíam um fundo imobiliário e passavam a exercer atividade imobiliária através do fundo criado. Dessa maneira as empresas mantinham as receitas auferidas na estrutura do fundo e arcavam com muito menos impostos do que se exercessem a atividade através da sua própria pessoa jurídica. Conforme ressalvou o referido Autor16, fora justamente para impedir esse uso simulado dos FIIs pelas empresas imobiliárias que a legislação foi alterada para obrigar a distribuição de lucros e impor limites de concentração de cotas para o investidor e empreendedor.

De todas as características dos FIIs acima mencionadas, conclui-se que a possibilidade de se obter certas isenções tributárias, que, como visto, podem ser 13 OKAZUKA, Mário. A Utilização dos Fundos de Investimento Imobiliários como Veículos na Gestão de Ativos das Empresas. Dissertação de mestrado apresentada perante a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, 2015, p. 53.14 MARTINS, Ricardo L. Tributação da Renda Imobiliária. São Paulo: Quartier Latin, 2011.15 OKAZUKA, Mário. Op cit., p. 53.16 OKASUKA, Mário. Op. cit., p. 53-54.

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concedidas ao Fundo e aos seus cotistas desde que observados os requisitos legais, é um dos fatores que mais influenciam tanto o investidor quanto o empreendedor, quando da tomada de decisão de investimento ou de realizar e operacionalizar um empreendimento imobiliário através de um FII. Por essa razão é que, na grande maioria das vezes, são estruturados fundos pulverizados e negociados em bolsa para a realização e operacionalização de grandes empreendimentos imobiliários.

A estrutura tem demonstrado resultados e possui números positivos: segun-do os dados17 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), já se encontravam regis-trados no referido órgão regulador, no ano de 2015, 260 Fundos de Investimento Imobiliários, que possuem, ao todo, 83 bilhões de reais em ativos, algo expressivo para o mercado.

2.1 A Constituição de um Fundo de Investimento Imobiliário

Um Fundo de Investimento Imobiliário pode ser constituído por diversas for-mas estruturais, a depender do seu objetivo negocial. Há estruturas exclusivas, fechadas, arquitetadas por um investidor ou grupo específico, criados muitas vezes por questões de proteção e gestão patrimonial ou planejamento tributário. Mas, também, há Fundos de Investimento Imobiliários tão pulverizados que são conheci-dos até mesmo como fundos de varejo, são os FIIs listados em bolsa.

A primeira e, diga-se, principal, figura que surge quando o assunto é Fundo de Investimento Imobiliário é o seu Administrador. Isso porque os FIIs não pos-suem personalidade jurídica18, de modo que, para atuar na esfera negocial, eles necessitam de representação, ou seja, que seu administrador atue por ele. Esse administrador necessariamente será uma das pessoas jurídicas19 listadas no art. 28 da Instrução Normativa 472/CVM, que não somente presta todos os serviços relacionados ao funcionamento e manutenção do fundo como pode, se preciso for, realizar a contratação – em nome do fundo – de terceiros para o auxiliarem nas funções a ele cabidas. Importa inferir que é o administrador a pessoa autorizada 17 Segundo informações da Superintendência de Relações com Investidores Institucionais, obtidas no sítio de in-ternet: http://www.portaldoinvestidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/SemanaENEF/2015/ Apresentacoes/2015_03_10-RJ-EncontrocomInvestidores-FII-DavidMenegon.pdf. Acesso em 03 ago. 2015.18 Art. 1º da Lei 8.668/93.19 A teor do art. 28 da Instrução Normativa CVM 472, podem ser administrador dos FIIs os bancos comerciais, bancos múltiplos com carteira de investimento ou carteira de crédito imobiliário, bancos de investimento, socie-dades corretoras ou sociedades distribuidoras de valores mobiliários, sociedades de crédito imobiliário, caixas econômicas e companhias hipotecárias.

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pela CVM para exercer um papel de verdadeira fidúcia para com o Fundo e seus cotistas. É ele, o administrador, quem abre e movimenta contas bancárias do fun-do, representa-o em juízo e exerce os direitos inerentes à propriedade dos bens e direitos do patrimônio do fundo, podendo inclusive adquirir e alienar livremente os respectivos títulos, conforme autorizado pela Lei 8.668/93.

O primeiro ato que o administrador deve realizar, para a constituição de um fundo de investimento imobiliário, é a elaboração e aprovação do seu regulamento, assim como seu respectivo registro no Cartório de Títulos e Documentos. O regu-lamento é o conjunto de regras e normas que vai reger o fundo e a sua relação com seus cotistas, com o administrador, o gestor, o parceiro empreendedor, enfim, é o documento que regerá a atuação do fundo, o relacionamento entre as partes envolvidas e onde estarão estipulados os respectivos limites, direitos e obrigações.

Oportuno destacar que o regulamento tem natureza contratual e vincula as partes. O próprio administrador deve pautar a sua atuação nos limites definidos no regulamento, bem como fiscalizar e intervir ao constatar algum ato contrário ao estipulado no referido documento constitutivo. Para tanto, é dever do administrador assegurar que todos os cotistas tenham amplo e irrestrito conhecimento de todas as informações contidas no Regulamento, para, então, consignar a adesão dos mesmos cotistas em documento específico. A respeito, FORTUNA afirma que “todo cotista, ao adquirir cotas de um fundo de investimento aberto ou fechado, deve atestar, mediante termo próprio, que recebeu o seu regulamento e, se for o caso, o seu prospecto de divulgação”20.

Sobre a natureza jurídica do regulamento, GAGGINI afirma que esse do-cumento possui elementos de muitos contratos típicos, tais como o contrato de mandato; entretanto é, em certa medida, atípico, uma vez que “possuidor de ca-racterísticas peculiares, que são ajustadas às necessidades do administrador em função de sua atividade de gestão do fundo de investimento e em que se verifica a justaposição de elementos de vários contratos tradicionais”21.

Nos artigos 10 da Lei 8.668/93 e 15 da Instrução Normativa de n. 472, constam uma lista de matérias as quais, obrigatoriamente, devem constar no regu-lamento. Em síntese, pode-se afirmar que devem constar no referido documento todas as matérias que tenham importância para o funcionamento e a consecução dos objetivos do fundo e dos demais que participarão da relação, bem como todas 20 FORTUNA, Eduardo. Mercado Financeiro: Produtos e Serviços. 18ª ed. Rio de Janeiro: QualityMark, 2011, p. 576.21 GAGGINI, Fernando Schwarz. Fundos de Investimento no Direito Brasileiro. São Paulo: LEUD, 2001, p. 65.

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as matérias que tenham capacidade de influenciar o investidor a realizar, ou não, um investimento em um Fundo de Investimento Imobiliário.

Elaborado o regulamento, o Administrador, em observação à nova redação da Instrução Normativa 472, deverá solicitar à Comissão de Valores Mobiliários – que é o órgão responsável por fiscalizar e controlar as atividades que envolvem nego-ciação de valores mobiliários – a autorização para constituição e funcionamento do fundo, qual será concedida, automaticamente, no prazo de até 10 (dez) dias úteis.

Por fim, importa inferir que o Fundo de Investimento deve possuir denomi-nação em que conste o termo “Fundos de Investimento Imobiliário”, sendo vedado utilizar, conforme observou CARVALHO, “quaisquer termos ou expressões que indu-zam a interpretação equivocada, no que tange a objetivos, política de investimento ou tratamento tributário específico” 22..

2.2 A Circulação e Negociação de Cotas

Como já analisado, quando um Fundo de Investimento Imobiliário está sendo estruturado há uma série de questões que o administrador deve, minuciosamente, observar para que possa elaborar um regulamento que, de fato, espelhe o fundo de investimento em questão. Nota-se que um dos mais importantes encargos seja o de definir quais serão os objetivos negociais que esse condomínio de investimento irá perquirir, ou seja, quais serão os recursos financeiros necessários ao intento e como será realizada a respectiva captação.

Realizada a análise acima, o valor total apurado e necessário para a conse-cução do projeto será dividido em cotas, cujo valor unitário também será atribuído pelo Administrador a partir do grau de pulverização de cotas e do perfil do público investidor alvo que se deseja para esse fundo. Essas cotas serão negociadas e os valores obtidos serão direcionados ao fundo, que os aplicará conforme seus obje-tivos, formando seu patrimônio23. Independentemente da estrutura ou do objetivo negocial, todos os FIIs realizam esse procedimento que corresponde ou guarda se-melhanças com o processo de integralização de capital social em uma sociedade.

O cotista, ao adquirir as referidas cotas, promoverá seu ingresso nesse con-domínio de investimento, passando a possuir direitos políticos e de recebimento 22 CARVALHO, Mário Tavernard Martins de. Regime Jurídico dos Fundos de Investimento. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 87.23 Art. 10, Instrução Normativa CVM 472/2008.

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das receitas advindas da exploração do patrimônio comum. É importante ressaltar que o investimento não confere a esses cotistas qualquer poder de gestão sobre o fundo, nem direitos reais sobre os imóveis que serão adquiridos pelo fundo.

Pela análise das características do investimento acima mencionadas, tem-se que as cotas dos fundos de investimento imobiliário são valores mobiliários, haja vista que implementados todos os elementos que os define. A respeito, MATTOS FILHO conceitua valor mobiliário como “o investimento oferecido ao público, sobre o qual o investidor não tem controle direto, cuja aplicação é feita em dinheiro, bens ou serviço, na expectativa de lucro”24. Muito embora seja plenamente possível identifi-car o investimento em fundos de investimento no conceito acima transcrito, que é datado de 1985, somente em 2001 houve alteração do art. 2º da Lei 6.385/76 para incluir as cotas de fundos de investimento no rol de valores mobiliários.

Dessa vista, as cotas dos Fundos de Investimento Imobiliários, na condição de valores mobiliários, podem, portanto, ser negociadas de modo privado ou públi-co, sendo que a forma pública de negociação pode ser resultado de um esforço de colocação junto ao público em geral ou de um esforço restrito.

Através da Lei 6.385/76, pode-se observar que as cotas dos FIIs têm sua distribuição pública caracterizada quando houver “venda, promessa de venda, ofer-ta à venda ou subscrição, assim como a aceitação de pedido de venda ou subscri-ção” como resultado de um esforço de colocação, entendido este como a prática de alguma das condutas identificadas no § 3º do art. 19 da retromencionada lei, dentre elas a utilização de anúncios destinados ao público, captação de adquirentes por corretores ou a negociação feita em estabelecimento aberto ao público.

Denomina-se distribuição pública de cotas com esforço restrito, conforme previsto no art. 53 da Instrução Normativa 472/2008 CVM, quando o fundo é desti-nado, exclusivamente, a investidores qualificados. Insta aduzir que essa negociação não deixa de ser pública, contudo, é direcionada àqueles que preenchem os requi-sitos insertos no art. 9º B da Instrução Normativa 554/2014 CVM. Observa-se que a CVM faz algumas concessões a esse tipo de fundo, as quais são justificadas na presunção de que o investidor qualificado possui suficiente conhecimento sobre o mercado financeiro para identificar o risco envolvido e decidir sobre o investimento. Vale mencionar que a CVM, nesse caso, entende ser desnecessário manter a mes-ma fiscalização e controle que ela, enquanto órgão regulamentador, fiscalizador e 24 MATTOS FILHO, Ary. Oswaldo. O Conceito de Valor Mobiliário. RAE-Revista de Administração de Empresas, v. 25, n. 2, 1985, p. 47, disponível em http://rae.fgv.br/rae/vol25-num2-1985/conceito-valor-mobiliario. Acesso em 18 ago. 2015.

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sancionador da negociação de valores mobiliários, proporciona aos investidores que não sejam conceituados como qualificados.

As negociações privadas, por sua vez, são “aquelas realizadas diretamente entre os interessados, compradores e vendedores, sem a presença dos intermediá-rios que compõem o sistema de distribuição a que se refere o artigo 15 da Lei nº 6.385/76”25. Observa-se que a legislação específica dos Fundos de Investimento Imobiliário não disciplina a negociação privada de cotas, contudo, a Instrução Nor-mativa da CVM 555/2014 – instrução que regulamenta os fundos de investimento em geral – prevê, em seu art. 14, tanto a possibilidade de cessão de cotas quanto, também, dos direitos de subscrição, a exemplo do direito de preferência dos cotis-tas já existentes no fundo, quando houver novas emissões.

Em termos gerais e a teor da Instrução Normativa da CVM 472/2008, as cotas dos Fundos de Investimento Imobiliário devem ser nominativas e escritu-rais, o que significa que a propriedade das cotas provar-se-á através do livro de “Registro dos Cotistas” ou pela titularidade da conta de depósito. A compra ou integralização das cotas, pelo cotista, pode ser à vista ou a prazo e deve se dar em moeda nacional. Também é permitido que a integralização das cotas se dê em imóveis ou direitos sobre imóveis, desde que autorizado no respectivo regulamen-to e acompanhados do respectivo laudo de avaliação. No caso de FIIs destinados a investidores qualificados, a integralização de cotas também poderá se dar em títulos e valores mobiliários e, no caso de imóveis, poderá ser dispensado o men-cionado laudo de avaliação.

Por fim, é preciso ratificar que os Fundos de Investimento Imobiliário são constituídos como condomínios fechados, razão pela qual não é possível ao cotista solicitar o resgate do seu investimento, restando-lhe apenas a alternativa de vender as cotas no mercado secundário, ou aguardar a liquidação do fundo.

2.3 O Poder de Controle no Fundo de Investimento Imobiliário

A expressão “Poder de Controle”, comumente utilizada no âmbito das so-ciedades anônimas, não consta na Lei 8.668/93, nem na Instrução Normativa CVM 472/2008, contudo, entende-se que a situação fática que a define pode ser tam-bém observada nos Fundos de Investimento Imobiliários.25 Deliberação CVM 20/85, disponível em http://www.cnb.org.br/CNBV/deliberacoes/dlb20-1985.htm. Acesso em 08 ago. 2015.

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A partir do conceito de acionista controlador, inserto no art. 116 da Lei 6.404/7626, pode-se inferir que, o que se denomina poder de controle na sociedade anônima é, de fato, o poder de eleger a maioria dos administradores, dirigir as atividades sociais e orientar órgãos da empresa, atribuído a um acionista ou grupo que, isoladamente ou em conjunto, detém a maioria dos votos na assembleia geral.

Os Fundos Imobiliários também possuem a assembleia como órgão delibe-rativo. Muito embora seja o Administrador, conforme já analisado, quem constitui e administra o fundo, bem como detém, a princípio, a prerrogativa de inserir ou impor suas intenções ao elaborar o regulamento, é possível concluir que é através da as-sembleia que, de fato, o poder de controle é exercido em um fundo de investimento imobiliário. Tal conclusão se dá através da observação das matérias listadas no art. 18 da Instrução Normativa CVM 472/2008, as quais demonstram a amplitude da competência deste órgão deliberativo. A exemplo, pode a assembleia alterar o referido regulamento do fundo, votar pela destituição ou substituição do adminis-trador desse mesmo fundo e até mesmo impor a dissolução e liquidação do fundo. Nesse sentido, CARVALHO afirmou que “os cotistas, reunidos em assembleia, são quem efetivamente possuem as prerrogativas que envolvem as principais questões relacionadas ao fundo” 27.

É importante mencionar que a assembleia geral de cotistas pode ser con-vocada tanto pelo administrador, quanto pelo cotista, que, para tanto, deve deter no mínimo 5% do total das cotas subscritas, a teor do art. 19 da Instrução Nor-mativa CVM 472/2008. Já a instalação da assembleia se dá, conforme autoriza-do pelo art. 70 da Instrução Normativa CVM 555, com a presença de qualquer número de cotistas.

Segundo o art. 20 da Instrução Normativa CVM 472/2008, cada cota cor-responde a um voto. Nesse ponto, importa observar que a legislação não impõe qualquer limitação à concentração de cotas por um mesmo investidor, apenas a desestimula quando prevê consequências tributárias aos cotistas pessoas físicas que ultrapassarem 10% das cotas e também ao próprio fundo, caso o incorpora-dor, construtor ou sócio de algum imóvel pertencente ao Fundo se torne quotista 26 Art. 116/ Lei 6.404/76 Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pes-soas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. 27 CARVALHO, Mário Tavernard Martins de. Regime Jurídico dos Fundos de Investimento. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 92.

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e possua, isoladamente ou em conjunto com pessoa a ele ligada, mais de 25% das quotas emitidas28.

Tal qual nas sociedades anônimas, na assembleia geral de cotistas do FII também vigora o princípio da maioria. Contudo, algumas matérias dependem de determinado percentual para aprovação – 25% a 50% a depender do número de co-tistas – conforme consta nos incisos I e II do parágrafo primeiro do art. 20 da Instru-ção Normativa CVM 472/2008. Com exceção das referidas matérias que impõem quórum de 25% a 50% das cotas emitidas, é possível inferir que não é necessário, nos Fundos de Investimento Imobiliários de varejo, ou seja, aqueles bastante pul-verizados, possuir grande percentual de cotas para alcançar a maioria presente nas assembleias, uma vez que o quórum de presença nessas assembleias é bastante baixo. A esse respeito, a Superintendência de Relações com Investidores Institu-cionais (SIN) realizou uma pesquisa analisando as duas últimas assembleias de “17 fundos com mais de 500 cotistas, contemplando 12 administradores diferentes”. O resultado obtido foi de uma média de “10 cotistas por fundo, representando em média 3,4% do patrimônio líquido do fundo”29.

Dessa vista, uma vez que o índice de presença nas assembleias é bastante baixo e que é possível ao cotista que detenha, no mínimo, 5% das cotas convocar uma assembleia, conclui-se que muitos assuntos possam ser tratados e modifica-dos conforme os interesses de um ou de poucos cotistas. Nesse cenário, torna-se muito importante ao investidor analisar questões sobre o exercício e a manutenção do poder de controle no fundo de investimento ao qual pretende se associar.

3 O Direito de Preferência na Alienação do Bem de Propriedade do FII

Conforme já analisado, o Fundo de Investimento Imobiliário não é apenas um veículo de captação de recursos financeiros, como também pode ser um lucrati-vo instrumento na operacionalização de atividades imobiliárias, o que justifica sua crescente utilização em parcerias de grandes empreendimentos imobiliários.

Não se pode negar que a parceria que visa construir e operacionalizar um empreendimento imobiliário contém um certo elemento pessoal ou uma dose do que é chamado no direito empresarial de “affectio societatis”. Em sendo assim, é de grande importância que seja disciplinado entre as partes envolvidas o que acon-28 Lei 9.779/99.29 CVM. Edital de Audiência Pública SDM n. 07/2014, fls. 09.

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tecerá com o negócio, caso uma delas pretenda alienar a sua respectiva parcela detida. É necessário, portanto, que se oportunize àquele parceiro ou sócio remanes-cente planejar como pretende dar continuidade ao negócio, antes de ser impelido a aceitar a inclusão de qualquer terceiro estranho no empreendimento.

A solução encontrada pelo direito é a instituição do Direito de Preferência que, nas palavras de WAINER, é “o direito legal ou contratual de alguém ser preferi-do na celebração de certo negócio jurídico, nos mesmos termos e condições em que ele foi ajustado com terceira pessoa”30. Adequando o referido conceito à hipótese deste estudo, seria o direito do empreendedor, que se associa a um FII na participa-ção de um empreendimento imobiliário, de lhe ser oferecido e tido como preferido quando este fundo pretender alienar a sua fração no imóvel.

Segundo a mencionada autora WAINER31, o direito de preferência pode ser dividido em dois tipos ou espécies, quais sejam, legal e convencional. Por direito de preferência legal entende-se aqueles instituídos em lei, dos quais é exemplo o direi-to de preferência do locatário em adquirir o imóvel locado, previsto na Lei 8.245/91. Já o direito de preferência contratual ou convencional é aquele estabelecido pela vontade das partes através de um contrato autônomo ou cláusula acessória inserta em um determinado instrumento.

Muito embora exista a possibilidade de que a parceria entre um FII e um empreendedor se dê sob uma forma associativa ou de organização a qual tenha regulação própria sobre o direito de preferência na alienação direta do imóvel – a exemplo do Condomínio Pró Indiviso – tratar-se-á, aqui, do direito de preferência convencional ou contratual, ou seja, daquele que se convencionou estabelecer para “possibilitar um melhor desempenho da função social da propriedade, evitando-se litígios e desavenças e funcionar como meio de defesa face à introdução de estra-nhos”, conforme definiu a retro mencionada autora WAINER ao analisar as funções socioeconômicas do direito de preferência.

3.1 O Direito de Preferência como um Negócio Jurídico

O acordo que institui o direito de preferência é conceitualmente um negócio jurídico o qual se dá quando “particulares regulam por si os próprios interesses, havendo uma composição de vontades, cujo conteúdo deve ser lícito. Constitui um 30 LGOW, Carla Wainer Chálréo. Direito de Preferência. São Paulo: Atlas, 2013, p. 03.31 LGOW, Carla Wainer Chálréo. Op. cit., p. 94.

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ato destinado à produção de efeitos jurídicos desejados pelos envolvidos e tutelados pela norma jurídica”32, conforme leciona TARTUCE.

Referido autor, TARTUCE33, utilizando-se da conhecida teoria da Escada Pon-teana, elaborada pelo jurista Pontes de Miranda, afirma que o negócio jurídico é dividido em três planos, quais sejam, plano da existência, plano da validade e plano da eficácia. Para analisar a existência do negócio jurídico, segundo a referida teoria, são considerados seus requisitos mínimos, tais como a identificação das partes e do objeto, observação da forma e da vontade das partes, principio fundamental dos contratos. Como afirmam STOLZE e PAMPLONA, “presentes estes quatros elemen-tos, podemos afirmar, sem a menor sombra de dúvida, que o contrato, como negócio jurídico, existe no campo da realidade fática”. 34

Para a análise da validade do negócio deve ser observada a coexistência de determinadas qualidades nos requisitos mínimos de existência acima menciona-dos, ou seja, as partes devem ser capazes e legitimadas para o ato, o objeto deve ser lícito, possível, determinado ou determinável e a forma deve ser a prescrita ou não defesa em lei, atributos esses insertos no art. 104 do Código Civil35. De igual forma, a vontade manifestada deve ser livre.

Por fim, a eficácia é observada através da constatação de que o ato de fato produz, ou é capaz de produzir, os efeitos esperados entre as partes e a terceiros, muito embora haja contratos que podem ter sua eficácia limitada em razão de constar, no instrumento, elementos acidentais ou suspensivos no que concerne a termos, condições, modo ou encargos36.

Observando e identificando os mencionados pressupostos de existência e validade dos negócios jurídicos, serão analisados e propostos, neste estudo, instrumentos que, acredita-se, possa assegurar, no trato negocial com os Fun-dos de Investimento Imobiliário, o suscitado direito de preferência no âmbito da alienação direta e indireta do imóvel, e, por fim, buscar-se-á verificar se são eficazes.32 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 01. 7ª ed. São Paulo: Método, 2011.33 TARTUCE, Flávio. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. 3, 10a edição. São Paulo: Método, 2015, p. 14.34 GLAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Vol. 4, Contratos, tomo I, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 58.35 Código Civil, Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, deter-minado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei. 36 GLAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op cit., p. 60.

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3.2 O Direito de Preferência e a Alienação Direta do Imóvel

O direito de preferência, no que se refere à hipótese de alienação direta do imóvel participado, pode ser formalizado, como já mencionado, em um instrumento autônomo ou sob a forma de cláusula acessória inclusa em algum outro instrumen-to firmado pelos interessados, no caso, o Fundo de Investimento Imobiliário e o empreendedor preferente.

Nesse instrumento contratual deve constar a identificação do imóvel e a for-ma como será exercida essa preferência, definindo prazo e modo de comunicação da intenção de alienar sua fração do imóvel.

No que tange à capacidade e legitimidade das partes, esse acordo deverá ser firmado entre o Empreendedor e o Administrador do fundo, que é quem, con-forme já analisado, representa o fundo e, por autorização expressa da Lei 8.668/93, exerce os direitos inerentes à propriedade dos bens e direitos do patrimônio do fundo, podendo inclusive adquirir e alienar livremente os respectivos títulos. Ainda, a retromencionada Lei, em seu art. 9º, prevê expressamente que “a alienação dos imóveis pertencentes ao patrimônio do fundo será efetivada diretamente pela insti-tuição administradora”.

Quanto aos demais requisitos para a validade do ato, é imperioso afirmar que não há nada na legislação atinente aos Fundos de Investimento Imobiliário que vede a consolidação desse tipo de acordo. Ademais, ressalte-se que apenas o ato de preferir alguém na realização de um negócio que poderia ser realizado, nas mesmas condições, com um terceiro, não traz qualquer prejuízo ao próprio fundo ou aos seus cotistas, o que, caso contrário, poderia implicar na caracterização de algum conflito de interesse. Em suma, identificado que as referidas partes são capazes e legítimas e que o objeto, por sua vez, é lícito, possível e determinado, é possível firmar tal acordo que, como visto, não é vedado em lei. Contudo, no que se refere à eficácia deste acordo, ou seja, se serão atingidos os efeitos esperados pelo empreendedor preferente, é importante que seja dada especial atenção a algumas questões.

Uma dessas questões se refere ao fato de que os FIIs, como já analisado, podem explorar e exercer atividade imobiliária. Ocorre que muitas dessas ativida-des possuem regramento legal próprio que instituem o direito de preferência em favor de alguma das partes relacionadas, a exemplo do direito de preferência do locatário na locação.

Em sendo assim, caso o objeto negocial da relação entre o FII e Empreende-dor seja relacionado ao exercício de alguma atividade que possua disciplina acer-

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ca do direito de preferência, é importante avaliar a possibilidade e viabilidade de se consignar a anuência dos terceiros envolvidos (locatários ou arrendatários, por exemplo) no instrumento que formalizará o direito de preferência convencional do empreendedor. Mesmo efeito se atingiria ao consignar, nos instrumentos contra-tuais respectivos, a atividade imobiliária exercida pelo FII, a renúncia ao direito de preferência dos contratantes (locatários, arrendatários e outros). Ambas as medi-das são possíveis haja vista se tratar de direito de ordem patrimonial disponível e são aptas a evitar futuros questionamentos entre os direitos de preferência legal e convencional envolvidos.

A inclusão de menção ao direito de preferência do empreendedor no re-gulamento do Fundo também pode ser medida assecuratória importante, no que se refere à eficácia perante terceiros. Isso porque, muito embora os cotistas não tenham ingerência direta nas atividades do fundo, nem possuam qualquer direito real sobre os imóveis investidos, eles têm, além de direitos políticos, o direito de crédito, ou melhor, o direito de obter o retorno do seu investimento quando da liquidação do fundo.

Considerando, portanto, o referido direito de crédito, é importante que se estabeleça, no regulamento, que o pagamento aos cotistas, quando da liquidação do fundo, não se dará através da dação em pagamento e sim através do produto da venda do imóvel, oportunidade em que será observado o direito de preferência estabelecido com o empreendedor. Tal inserção no regulamento vincula as partes e inibe medidas que obriguem tanto o pagamento através da dação, quanto o fra-cionamento do imóvel patrimônio do fundo. Lado outro, trata-se de medida que não causa qualquer prejuízo aos cotistas, uma vez que não viola o mencionado direito de crédito, nem impede que o imóvel seja negociado com terceiro que apresente melhor oferta.

É importante avaliar, também, a inclusão, ou não, de cláusula no regula-mento que obriga a convocação de assembleia para decidir sobre a venda do ati-vo investido. Muito embora essa disposição impeça que o administrador negocie direta e rapidamente o imóvel, ela pode representar uma segurança ao direito de preferência do empreendedor sob dois aspectos: 1) caso o empreendedor seja cotista do fundo, a necessidade de deliberação da assembleia para a venda do ativo lhe servirá como comunicação da intenção de venda do ativo, ou seja, trará empecilho à realização de negócios com terceiros sem a ciência do empreendedor preferente; 2) caso o empreendedor seja cotista e possua o poder de controle na assembleia, conforme estudado no item 2.3, poderá ele avaliar e decidir sobre a

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venda do imóvel, considerando, subjetivamente, o momento do negócio e a sua capacidade de realizá-lo.

Ainda, com o objetivo de atribuir maior solidez às medidas acima propostas, é possível estabelecer que o regulamento seja apenas alterado se atingido um de-terminado quórum – que esteja implicitamente relacionado ao poder de controle e/ou ao percentual de cotas detido pelo empreendedor preferente – favorável a tanto. Sendo assim, a depender desse quórum exigido, será sempre necessário o voto e consentimento do empreendedor preferente e/ou daquele que mantém o poder de controle para alteração do regulamento, o que traz maior segurança no que se refere à permanência e vigência de todas as medidas nele incutidas que visem resguardar o seu direito de preferência. O estabelecimento de quóruns altos para alteração do regulamento é medida que não viola o art. 20 da Instrução Normativa CVM 472, uma vez que a referida norma determina que, para tal intento, deve-se observar um percentual mínimo, nada se referindo a percentuais máximos.

Outra questão que é necessário suscitar, ainda com foco na eficácia do acor-do, trata do fato de que o direito de preferência, oriundo apenas da vontade con-tratual, não tem caráter de direito real, nem goza, consequentemente, de eficácia real, recebendo amparo somente na seara obrigacional. Isso significa que, caso o empreendedor preferente obtenha conhecimento de que o FII pretende alienar a parcela no imóvel para um terceiro, poderá ele impedir a realização do negócio com o ajuizamento de uma medida judicial cautelar, requerendo, na ação principal, que lhe seja dada a preferência, com o depósito do respectivo preço. Todavia, caso o empreendedor preferente só obtenha conhecimento do negócio depois de con-cretizado, seu acordo não terá eficácia perante o terceiro comprador, restando ao empreendedor apenas a ação indenizatória.

Apenas a título de informação, diante do referido caráter puramente obri-gacional do mero contrato de preferência, a reflexão acerca da forma associativa ou de organização condominial que regerá a relação fundo/empreendedor ganha relevância e pode trazer o elemento de eficácia real ausente no contrato. Isso por-que, conforme já citado, em certas formas organizacionais, a exemplo do Con-domínio Pró Indiviso, a observação do direito de preferência é obrigação legal e, portanto, dotada de eficácia real, que tem inclusive prioridade sobre a preferência legal do locatário37. Nesse caso, se ocorrer a alienação do imóvel pelo fundo, sem ser oportunizada a preferência do empreendedor, na qualidade de condômino de 37 LGOW, Carla Wainer Chálréo. Direito de Preferência. São Paulo: Atlas, 2013, p. 94.

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imóvel indiviso, é possível, segundo WAINER38, recorrer à declaração judicial sobre a nulidade do ato e promover a execução específica do acordo, observado o prazo decadencial.

Em síntese, o direito de preferência na alienação direta de imóvel de pro-priedade do FII pode ser implementado através da elaboração de um contrato au-tônomo ou por cláusula acessória inclusa em algum outro instrumento contratual, observando-se a legitimidade do administrador para representar o Fundo de In-vestimento na ocasião. Para que surtam os efeitos esperados pelo empreendedor preferente poderá ser útil ou necessária a consignação da anuência de terceiros e/ou a inserção de disposições a respeito no regulamento do FII.

3.3 O Direito de Preferência e a Alienação Indireta do Imóvel

Sob a ótica do empreendedor que se associa aos Fundos de Investimento Imo-biliário para, em conjunto, concretizar e operacionalizar um empreendimento imobiliá-rio, a simples possibilidade da livre negociação e circulação das cotas do fundo pode representar um elemento de risco ao direito de preferência que se visa resguardar nessa operação: trata-se da possibilidade de alienação indireta do imóvel participado.

A respeito, é possível inferir que, se nenhuma medida restritiva à circulação das cotas do Fundo de Investimento Imobiliário for implementada, qualquer pessoa, seja física ou jurídica, até mesmo um concorrente do empreendedor parceiro ou da administradora do fundo, poderá ingressar nesse condomínio. Risco maior se encontra na possibilidade de que ocorra o que se denomina no meio societário de tomada hostil de controle, que ocorre quando um investidor adquire no mercado sig-nificativa quantidade de cotas que lhe atribua o poder de controle do fundo poden-do, como já analisado, impor seus interesses ou até mesmo aprovar matérias que podem ser determinantes à continuidade do fundo e/ou da sua atividade, como, por exemplo, aprovar alterações no regulamento ou a venda do ativo explorado.

Entende-se que tal situação representa a alienação indireta do imóvel, uma vez que o cotista que se tornar controlador, além de se tornar o maior beneficiário da exploração do bem, também poderá dar-lhe, através da assembleia, o desti-38 Ementa: DIREITO DE PREFERÊNCIA. Ação declaratória de direito de preferência e adjudicação compulsória. Compra e venda. Condomínio. Condôminos que vendem seu quinhão a terceiros. Bem imóvel indiviso. Condômina não notificada para o exercício do direito de preferência, nos termos do art. 504 do CC. Preço da venda deposita-do em juízo. Adjudicação do quinhão pela autora. Compra e venda declarada nula. Sentença mantida. RECURSO DESPROVIDO. JSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Relator(a): Alexandre Marcondes, Apelação/Promessa de Com-pra e Venda 0016276-35.2012.8.26.0019, Data do julgamento 21/07/2015.

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no que bem entender. Ao analisarem a questão, COMPARATO e SALOMÃO FILHO afirmaram que “o controle sobre a atividade empresarial implica, necessariamente, o controle de bens empresariais e vice-versa” e concluem, citando o autor Claude Champaud, que “controlar uma empresa significa poder dispor dos bens que lhe são destinados, de tal sorte que o controlador se torna senhor da sua atividade econômica” 39. Imperioso observar que os retrocitados autores estão se referindo às consequências da tomada do controle na sociedade anônima, entretanto, a mes-ma situação pode ocorrer na assembleia de um fundo de investimento imobiliário, podendo o titular do poder de controle determinar o uso e destino dos bens perten-centes ao fundo conforme seus interesses.

Diante do analisado, conclui-se que o empreendedor que deseja preservar, ao longo do tempo, e, em caso de alienação, o direito de preferência no imóvel adquirido em parceria com um FII, deve fazer com que tal direito também abarque a alienação de cotas. Conforme analisado no Capítulo 2, item 2.2, as cotas são valores mobiliários que, por sua vez, são passíveis de avaliação e negociação, tanto sob a forma pública quanto privada. Desta vista, em sendo possível a cessão da cota através de termo particular, pode-se concluir que também há a possibilidade de se instituir um acordo de preferência nesse negócio.

Importa afirmar que a Instrução Normativa CVM 472/2008 autoriza, em seu art. 15, parágrafo primeiro, o estabelecimento do direito de preferência quando houver novas emissões de cotas. A hipótese que a citada IN referencia trata-se de uma obrigação – se instituída em regulamento – do fundo para com o cotista, a qual impõe que o fundo, quando for emitir novas cotas, deva oferecer primeiro aos cotistas já registrados no fundo, antes de disponibilizá-las no mercado. Essa disposição visa oferecer ao cotista a possibilidade de manter o seu percentual de cotas, evitando sua diluição no condomínio. Entretanto, não há, nas normas legais atinentes aos Fundos de Investimento Imobiliários, qualquer disposição acerca do direito de preferência no âmbito do mercado secundário.

Constatada a lacuna na lei, o direito autoriza o uso das suas demais fontes, dentre elas a analogia40. Para tanto, VENOSA afirma ser necessária a procura e observação de “institutos que têm semelhança com a situação sob enfoque”, de-39 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 106.40 Decreto-Lei 4.657/42 Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm. Acesso em 20 ago. 2015.

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vendo-se identificar, portanto, “uma razão de identidade entre a norma encontrada, ou o conjunto de normas, e o caso contemplado” 41.

Em sendo assim, não obstante ter a lei definido que os Fundos de Investi-mento Imobiliário têm natureza jurídica de condomínio42, entende-se que as dis-posições legais acerca do mencionado instituto, constantes no Código Civil, não correspondem às especificidades do tema negociação e circulação de cotas. Nessa seara, uma vez que a questão envolve a alienação de valores mobiliários no merca-do de capitais, tem-se que é totalmente cabível e/ou adequado, por aplicação ana-lógica, a utilização de institutos previstos na legislação das Sociedades por Ações.

Ademais, como observado por CARVALHO, há muitas semelhanças entre uma sociedade e um fundo de investimento, uma vez que estariam preenchidos três requisitos essenciais a teor do art. 981 do Código Civil43, quais sejam: “a) contribuição em bens e serviços, b) desempenho de atividade econômica e c) divi-são, entre os sócios, dos resultados auferidos” 44. FREITAS, também analisando a proximidade e semelhança dos fundos de investimento às sociedades empresárias, concluiu que “se estivermos diante de uma organização relativa a um patrimônio, es-taremos diante de uma organização associativa, isto é, saímos do campo puramente de direito real e adentramos o do societário” 45.

A Lei das Sociedades por Ações, Lei 6.404/76, em seu art. 11846, prevê a possibilidade dos acionistas regularem, entre si, matérias que envolvam, dentre outros assuntos, o direito de preferência e a negociação das ações. Para tanto, os acionistas elaboram um instrumento denominado Acordo de Acionistas, que, segundo BARBI FILHO trata-se de um “negócio jurídico de direito privado, um con-trato típico e nominado” e “parassocial, na medida em que existe em função da sociedade, mas é celebrado sem a interveniência da mesma” 47. O referido art. 118 41 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2014, p. 23.42 Lei 8.668/93: Art. 2º O Fundo será constituído sob a forma de condomínio fechado, proibido o resgate de quotas, com prazo de duração determinado ou indeterminado.43 Art. 981 Código Civil. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.44 CARVALHO, Mário Tavernard Martins de. Regime Jurídico dos Fundos de Investimento. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 192.45 FREITAS, Ricardo dos Anjos. Natureza Jurídica dos Fundos de Investimento. São Paulo: Quartier Latin, 2005.46 Art. 118. Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle deverão ser observados pela companhia quando arquivados na sua sede. 47 BARBI FILHO, Celso. Acordo de Acionistas. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 77.

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da Lei 6.404/76 elenca determinados assuntos que podem ser objeto do acordo de acionistas, contudo, o autor COELHO entende que o rol é exemplificativo, pois “os acionistas podem livremente entabular as tratativas que reputarem oportunas à adequada composição de seus interesses” 48.

Assim como os acionistas nas sociedades anônimas, os cotistas, ao adqui-rirem cotas nos Fundos de Investimento Imobiliário, tornam-se titulares de direitos patrimoniais e políticos e deles podem não somente dispor, como estabelecer a forma de exercê-los através do entabulamento de um negócio jurídico. Sobre a possibilidade de existência e utilização, pelos cotistas de um fundo de inves-timento, de um instrumento semelhante ao acordo de acionistas, CARVALHO49 ainda observa que a ausência na lei especial torna o acordo de cotistas apenas um contrato atípico, contudo não proibido, assim como ocorre nas sociedades limita-das, onde o acordo de cotistas já possui o uso consolidado, mesmo não havendo previsão na lei civil.

Entende-se, portanto, que através do estabelecimento de um Acordo de Cotistas entre os investidores do Fundo de Investimento Imobiliário é que poderá o empreendedor preferente – que também seja cotista neste fundo – regular seu direito de preferência na alienação de cotas no mercado secundário. Referido acor-do deverá observar os requisitos do negócio jurídico, ou seja, os pressupostos de existência, validade e eficácia já mencionados quando da análise da elaboração do contrato de preferência para alienação direta do imóvel no item 3.1 deste capítu-lo. Nesse sentido, no que se refere a capacidade e legitimidade, observa-se que apenas os investidores devidamente registrados no livro de Registro de Cotistas poderão firmar o referido acordo. Acerca dos demais requisitos do negócio jurídi-co, entende-se que o estabelecimento de um Acordo de Cotistas nos fundos de investimento imobiliário é ato totalmente lícito, possível e determinável, uma vez que, conforme já analisado, não há disposição legal que vede tal composição de interesses que, diga-se, envolve apenas direitos disponíveis.

Através do art. 118 da Lei das Sociedades por Ações pode-se concluir que a eficácia e/ou oponibilidade a terceiros do Acordo de Acionistas é dependente do arquivamento do instrumento na sede da sociedade. Acontece que, uma vez que o Fundo de Investimento Imobiliário não possui sede, a maneira possível de atingir e 48 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2: direito de empresa. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 347.49 CARVALHO, Mário Tavernard Martins de. Regime Jurídico dos Fundos de Investimento. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 100.

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vincular terceiros acredita-se, seria disponibilizar o Acordo de Cotistas através da administradora do fundo e, também, incluir menção à sua existência no regulamen-to, por ser este o documento cujo teor todos que se tornem cotistas deste fundo devem declarar possuir conhecimento e plena adesão, conforme analisado no item 2.1 do capítulo 2.

Importa ressaltar que, para que seja possível o exercício do direito de prefe-rência formalizado em um acordo de cotistas de um fundo de investimento imobi-liário, o respectivo regulamento não poderá ter disposição que proíba a negociação privada de cotas. Contudo, essa é uma medida que deve ser analisada com cautela, haja vista que impor que as cotas só poderão ser negociadas de modo privado – haja vista o acordo de preferência – afetaria mais a liquidez do investimento do que agregaria segurança ao cotista preferente. Dessa vista, uma vez que há maneiras de se impedir a concretização da negociação pública realizada em contrariedade ao regulamento, interessante seria o regulamento autorizar que as cotas sejam nego-ciadas de ambas as formas, pública e privada. Tal medida possibilita aos cotistas a utilização dos meios do mercado de bolsa para negociarem suas cotas, caso o cotista preferente não exerça sua preferência e as adquira privadamente.

Importa aduzir que a eficácia dessa operação encontra-se amparada em três pilares, quais sejam: i) no estabelecimento de um negócio jurídico válido; ii) na qualidade vinculativa do regulamento e iii) na observação dos deveres do admi-nistrador. A respeito, caso haja alienação de cotas sem observação da preferência – que foi instituída em acordo de cotistas mencionado e/ou previsto em regula-mento – deve o administrador observar a violação do regulamento e não registrar a transferência das cotas no livro de cotistas, deveres esses insculpidos no art. 32, III a, e XI da Instrução Normativa CVM 472/200850.

Para tanto, a autora ROCHA afirma ser dever do administrador realizar ou implantar uma espécie de sistema de controle interno ou compliance no fundo que, dentre muitas outras funções, o possibilite “identificar e avaliar fatores in-ternos e externos que possam afetar adversamente a realização dos objetivos da instituição”51. Segundo a autora, deve, o administrador, sobretudo acompanhar as atividades desenvolvidas pelo FII, verificando se estão, ou não, sendo observados 50 Art. 32. O administrador do fundo deve: (...) III – manter, às suas expensas, atualizados e em perfeita ordem: a) os registros de cotistas e de transferência de cotas; (...) XI – observar as disposições constantes do regulamento e do prospecto, bem como as deliberações da assembleia geral.51 ROCHA, Tatiana Nogueira. Fundos de Investimento e o Papel do Administrador: a indústria dos fundos no mercado brasileiro e a liberdade para agir, os poderes e obrigações dos seus administradores. São Paulo: Textonovo, 2003.

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e cumpridos o regulamento e as demais leis aplicáveis, sendo também da sua com-petência assegurar que qualquer desvio a esse respeito seja corrigido.

Entende-se que a operação acima detalhada pode ser um meio possível de assegurar o direito de preferência do empreendedor e evitar a alienação indireta do imóvel, contudo, acredita-se que não seja uma medida viável em se tratando de um Fundo de Investimento Imobiliário que vise se beneficiar com as isenções tributárias concedidas pelas Leis 9.779/99 e 8.668/93 aos cotistas e ao próprio fundo. Isso porque, como já mencionado, a lei impõe, para a concessão de isenção tributária ao fundo e aos cotistas, que a negociação das cotas seja realizada exclusivamente em bolsa e que haja observância dos limites de concentração de cotas para o cotista e o empreendedor do imóvel investido. Em síntese, ao fundo que deseja obter e man-ter o benefício tributário que a lei oferece é vedado realizar negociações privadas, ou seja, não poderá haver ou ao menos fazer-se cumprir o acordo de preferência na alienação de cotas tal como acima proposto.

Cumpre destacar que o benefício tributário é, conforme analisado no item 2.1 do capítulo 2, questão de bastante relevo, que pode impactar tanto a captação de investidores como a própria atividade imobiliária exercida através do fundo. Des-se modo, poder-se-ia concluir que, em tese, a medida proposta acima poderia ser viável apenas quando a rentabilidade projetada para o empreendimento for maior que a carga tributária a ser suportada ou que este fundo seja direcionado a institui-ções que já possuam isenção tributária.

3.3.1 Inclusão de Poison Pills no Regulamento

Não sendo possível fazer prevalecer o acordo de preferência na aliena-ção de cotas em um fundo que deseja ser beneficiado tributariamente, torna-se de grande relevância o estudo sobre outras formas que possam impedir ou, ao menos, inibir, que o ingresso no condomínio seja feito de forma indistinta ou prejudicial aos interesses do empreendedor. Mais importante, deve-se pensar no estabelecimento de medidas que impeçam que terceiros, que por ventura se tor-nem cotistas, possam agir em conflito de interesses tanto diante dos direitos do empreendedor preferente, quanto aos objetivos negociais do fundo ou do próprio empreendimento investido.

Verifica-se que a CVM já reconhecia a possibilidade de ocorrer o conflito de interesses entre as pessoas relacionadas em um fundo de investimento imobiliário, quando, na Instrução Normativa 472, replicou o art. 12, VII da Lei 8.668/93 que

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trata da vedação do administrador em realizar atos que caracterizem conflitos de interesses entre administrador e fundo ou empreendedor e fundo. Contudo, atenta ao fato de que também eram possíveis – e igualmente nefastas – as situações de conflito entre o fundo e o gestor – um de seus principais prestadores de serviço – e, também, entre o fundo e cotistas relevantes, a CVM recentemente alterou o art. 35 da Instrução Normativa 472 para incluir o gestor e os cotistas na citada vedação. Ainda, as recentes alterações na IN 472 demonstram que foi adotado o princípio da limitação do voto abusivo, quando em seu art. 24 se lê que o “cotista deve exercer o direito de voto no interesse do fundo”.

Entretanto, importa ressaltar que, no que tange a atuação do cotista, a cita-da alteração da IN 472 se deu no sentido de só restar caracterizada a situação de conflito de interesses se envolver o cotista relevante, entendido este como aquele que detenha mais de 10% (dez por cento) das cotas. Verifica-se que, nesse ponto, a alteração da norma não trouxe maior segurança ao empreendedor, pois, conforme já apurado no item 2.3 do capítulo 2, o quórum de comparecimento nas assem-bleias tem uma média de 3,4% do patrimônio líquido, o que significa dizer que um cotista que possua bem menos de 10% das cotas pode representar risco e conse-guir aprovar matérias conforme seu interesse sem, a teor da norma, caracterizar o conflito de interesse. Mais efetivo seria se a instrução normativa tivesse sido alte-rada para também descrever as condutas que caracterizam o conflito de interesses para o gestor e o cotista em geral, tal como fez para o administrador.

Dessa vista, tem-se que, mesmo após alteração da instrução normativa per-siste o risco do empreendedor de ter que se submeter aos interesses pessoais dos demais cotistas. Diante de constatado “risco” e fragilidade da norma, torna-se imperiosa a implementação de determinadas medidas que visem a inibir que ocorra tanto a aquisição hostil das cotas do fundo, como o voto realizado em conflito de interesses.

Investidores de Sociedades Anônimas com ações muito pulverizadas enfren-taram o mesmo problema e, com vistas a “impedir ou limitar os efeitos do aumento de participação de eventuais acionistas além do nível que o acionista controlador (ou acionistas controladores) considera(m) como seguro para sua permanência no poder”52, passaram a incutir nos seus estatutos algumas cláusulas restritivas, co-nhecidas como “poison pills” ou pílulas de veneno.52 D’AGOSTINI, Daniel Corrêa. Oferta Pública de Ações como Mecanismo de Proteção à Dispersão Acionária: A Realidade Brasileira da Poison Pill. Monografia (Graduação). Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007, p. 33.

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Tem-se que o mesmo expediente pode ser adotado nos Fundos de Investi-mentos. Conforme já amplamente analisado neste estudo, entende-se que qual-quer obrigação que não caracterize violação dos limites da lei, uma vez incutida no regulamento de um fundo de investimento imobiliário, obriga e vincula os investido-res. Em sendo assim, infere-se que a inserção de determinadas cláusulas restritivas no regulamento, sobretudo se amparadas na proteção do interesse geral, ou seja, dos cotistas e/ou do próprio fundo, pode ser medida efetiva em prol da manutenção da atividade exercida e do empreendimento conforme se projetou.

Um exemplo de cláusula nesse sentido é a “cláusula de identificação do cotista conflitado”, encontrada nos regulamentos dos fundos BB PROGRESSIVO II FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – FII53, administrado pela Votorantim Asset Management Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. e CIBRA-SEC CRÉDITOS SECURITIZADOS FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – FII54, administrado pela Oliveira Trust Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários S.A. Trata-se de cláusula que identifica, no regulamento, uma determinada pessoa como cotista conflitado e estipula determinadas consequências, como por exemplo res-trição ao voto, caso ela integre o quadro de cotistas.

Outra cláusula que se apresenta importante em face à problemática levanta-da neste artigo é a “cláusula de limitação de concentração de cotas”. A imposição de limites ao investidor no ato da aquisição de cotas se justifica, primeiramente, no interesse geral, pois se relaciona à manutenção da isenção tributária recebida, mas também abarca os interesses do empreendedor, uma vez que oferece meios de resguardar o poder de controle neste fundo. Exemplo dessa cláusula se en-contra no regulamento do FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – FII EDIDÍCIO ALMIRANTE BARROSO55, proprietário de imóveis locados para agências bancárias da Caixa Econômica Federal e administrado pela Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária. Referido regulamento limita a concentração de cotas a 1% para cada cotista, abrindo exceção apenas para a sua locatária Caixa Econômica, que pode adquirir até 25% das cotas.53 O regulamento do fundo BB PROGRESSIVO II FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – FII está disponível em: http://www.ourinvest.com.br/images/arquivos/fundos/documentos/FII-BB_Progressivo_II-Regulamento--Pubicacao_20121025.pdf. Acesso em 22 ago. 2015.54 Regulamento integral do fundo CIBRASEC CRÉDITOS SECURITIZADOS FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – FII, disponibilizado em http://www.bmfbovespa.com.br/pt-br/mercados/download/Prospecto-Cibrasec-FII.pdf. Acesso em 22 ago. 2015.55 Regulamento integral do FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – FII EDIDÍCIO ALMIRANTE BARROSO, dis-ponibilizado em: http://www.bmfbovespa.com.br/sig/FormConsultaPdfDocumentoFundos.asp?strSigla=FAMB-&strData=2013-04-12T19:21:18.383. Acesso em 22 ago. 2015.

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Conclui-se que as cláusulas citadas acima podem atender aos anseios do empreendedor que visa a impedir ou, ao menos, a inibir, que terceiros possam im-por ao Fundo de Investimento Imobiliário interesses contrários ao objetivo negocial do próprio fundo e/ou de seus parceiros ou sócios. Vale mencionar, ainda, que a Co-missão de Valores Mobiliários não faz objeção a inclusão de cláusulas restritivas – no regulamento, haja vista que, primeiramente, todas as cláusulas exemplificativas acima citadas foram encontradas em regulamentos que já passaram pelo crivo do referido órgão e ainda estão vigentes. Segundo, conforme se depreende do trecho do Voto CMN 426/197856 abaixo transcrito, não é objetivo ou competência da CVM exercer julgamento de valor sobre as ofertas registradas e sim fiscalizar e exigir que as condições do investimento sejam amplamente divulgadas e que a oferta seja bastante clara na identificação dos seus riscos:

A diretiva seguida pela CVM é a de não exercer julgamento de va-lor, zelando apenas pelo fornecimento adequado de informações por parte das companhias ao público investidor. Este, com base em ele-mentos colocados à sua disposição, tomará a decisão de adquirir ou não os valores mobiliários por elas emitidos. (...) A diretriz básica que orienta esta opção é a de exigir o encaminhamento de certas informações para registro junto ao Órgão regulador; que, por sua vez, estabelece sistemas diretos e indiretos para fazer com que tais informações estejam disponíveis publicamente. (...) O propósito da regulação específica sobre o registro é o de prover uma certa prote-ção ao investidor, inclusive através da verificação da legitimidade da emissão de valores mobiliários e da legalidade dos atos societários que deram origem, sem, porém, impedir o mercado de funcionar ade-quadamente, contrabalançando os direitos do investidor e as obriga-ções dos emissores e demais agentes do mercado.

4 Considerações Finais

Através do presente estudo pode-se concluir que os Fundos de Investi-mento Imobiliários podem, de fato, representar um eficiente e vantajoso meio de captação de recursos para o mercado imobiliário, haja vista que cada vez mais investidores estão alocando sua poupança nesses veículos, atraídos pela possibilidade de a) descentralizar seus investimentos em vários ativos de base 56 Trecho extraído do processo CVM RJ-2007-13400, disponível em http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0004/5732-0.pdf. Acesso em 22 ago, 2015.

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imobiliária e ainda assim manter certa liquidez; b) receber rendimentos isentos de tributos; c) contar com uma administração especializada no segmento e d) ainda, poder exercer o poder político e/ou de controle nesse condomínio. A estrutu-ra, seriedade, fiscalização e regulamentação oferecida pelo mercado de capitais vêm complementar o rol de razões pelas quais se pode considerar a aplicação em FIIs um seguro investimento.

Verificou-se que os Fundos de Investimentos Imobiliários também podem ser um rentável meio de operacionalizar atividades imobiliárias, haja vista que lhe é possibilitado auferir os respectivos rendimentos sem a carga tributária que uma pessoa física ou jurídica suportaria ao exercer a mesma atividade. Diante de tal fato, cada vez mais se vê os denominados FIIs integrando parcerias ou estruturas societárias em grandes empreendimentos de renda recorrente, tais como, os que exploram a locação, a exemplo dos shoppings.

Todavia, foram identificadas algumas questões que podem representar risco ao empreendedor que pretende firmar as mencionadas parcerias e/ou sociedades com esses condomínios de investimento, especialmente, se este empreendedor deseja preservar, ao longo do tempo e, em caso de alienação do empreendimento participado, o direito de preferência. Nesse sentido, através da análise do conceito de poder de controle e da abrangência das matérias de competência da assem-bleia, verificou-se que a alienação indistinta de cotas pode realmente significar uma porta aberta neste empreendimento para qualquer um que adquira significativa quantidade de cotas.

Em sendo assim, buscou-se, através do presente artigo, identificar meios de inibir a violação do direito de preferência desse empreendedor, tanto quando da intenção do fundo de alienar a propriedade diretamente, quanto pela via indireta, através da negociação de cotas.

Verificou-se, portanto, que o direito de preferência a ser observado quando da alienação direta do imóvel poderá ser estabelecido em um instrumento contra-tual autônomo ou como cláusula acessória inclusa em outros contratos firmados entre as partes relacionadas. Entretanto, uma vez que referido contrato não pos-suirá eficácia real, foram suscitadas determinadas medidas complementares que deve o empreendedor implementar, quais sejam: 1) tornar-se cotista do fundo; 2) fazer constar no regulamento do fundo menção sobre a existência de acordo de direito de preferência na alienação do imóvel; 3) prever, no regulamento, a impos-sibilidade do imóvel ser dado em pagamento aos cotistas no caso de liquidação

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do fundo, sem, anteriormente, ter-se observado a preferência do empreendedor; 4) estabelecer quóruns altos para alteração do regulamento. Em complemento, sem, contudo, explorar o tema, aventou-se a hipótese de se atentar para a figura associativa ou organizacional que se originará da parceria formada pelo fundo e o empreendedor, uma vez que, a depender dessa, a observação do direito de pre-ferência na venda direta do imóvel pode se tornar uma obrigação legal, dotada, portanto, de eficácia real.

No que se refere ao risco de alienação indireta do imóvel, verificou-se ser possível o estabelecimento de um Acordo de Cotistas que regulamente o direito de preferência na alienação de cotas. Contudo, restou observado que o exercício de tal direito, pelo empreendedor, configurará alienação privada de cotas e isso impedirá que os cotistas e o próprio fundo tenham seus rendimentos isentos de impostos, podendo impactar profundamente a captação de investidores e a própria ativida-de desenvolvida pelo fundo, senão até mesmo inviabilizá-la. Concluiu-se, portanto, que a alienação privada de cotas não é medida viável, a menos que o fundo seja direcionado a instituições que já possuam isenção tributária, ou que a rentabilidade projetada para o empreendimento em questão seja tão elevada que compense suportar a carga tributária.

Se, por outro lado, observado que a concessão do benefício tributário ao fun-do é o que interessa ao empreendedor, as cotas só poderão ser negociadas publica-mente, o que trará dificuldades para fazer prevalecer seu direito de preferência. As consequências observadas nessa situação de negociação exclusivamente pública das cotas envolvem a possibilidade de inclusão e influência de qualquer pessoa nesse condomínio de investimento, ou seja, no empreendimento.

No intuito de neutralizar as investidas desse terceiro não desejado pelo em-preendedor, aventou-se ser possível a inclusão, no regulamento, de cláusulas que permitam identificar potenciais cotistas que possam ser considerados conflitados com o fundo e/ou com o empreendedor e/ou em razão da atividade exercida pelo fundo, impondo a tais cotistas determinadas consequências, como, por exemplo, restrição de voto. De igual forma, observou-se que a inserção de cláusula que li-mite a concentração de cotas atende tanto ao interesse geral do fundo, quanto do empreendedor que visa manter seu poder de controle. Concluiu-se, por fim, que a possibilidade de inclusão de tais cláusulas, ainda que restritivas de direitos, ampa-ra-se na defesa dos interesses comuns e, principalmente, na qualidade vinculativa do regulamento.

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Sítios Eletrônicos

www.anbima.com.brwww.bmfbovespa.com.brwww.cvm.gov.brwww.tjsp.jus.brwww.portaldoinvestidor.gov.brwww.fundoimobiliario.com.br

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário No 2 | Julho 2019 85

Cristiano O. S. B. Schiller1

Mariana Jau Rocha2

Resumo

O artigo 67-A da Lei 4.591/64 previu que o distrato de contrato de promessa de compra e venda celebrada entre o adquirente e, “exclusivamente”, o incorpora-dor imobiliário, asseguraria às partes o direito de exigir, respectivamente, a resti-tuição e retenção das quantias transacionadas, em percentuais determinados por aquele artigo, o que, em uma interpretação literal, excluiria do escopo do referido artigo o distrato celebrado entre adquirente de unidade imobiliária futura e o “pro-prietário-outorgante”, que aliena ao primeiro uma unidade futura, a ser recebida em permuta pela venda do terreno ao incorporador e que resulta de incorporação imobiliária, indicando a necessidade de interpretação extensiva do artigo 67-A, em consonância com a totalidade do ordenamento jurídico.

Palavras-chave

Art. 67-A; distrato; incorporação imobiliária; incorporador; interpretação ex-tensiva; interpretação literal; promessa de compra e venda; proprietário; restituição.

Abstract

The article 67-A of Law 4.591/64 sets forth that the termination of a purcha-se and sale commitment agreement entered into between purchaser and, “exclusi-1 Mestre em Construction Law & Dispute Resolution pela King’s College London. Pós-graduado em Direito Civil--Constitucional pela UERJ. Bacharel em direito pela PUC-Rio. Advogado. E-mail: [email protected] Bacharelanda em direito pela UERJ. E-mail: [email protected]

DA NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA FIGURA DO

INCORPORADOR NO ÂMBITO DO ART. 67-A DA LEI 4.591/64

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vely”, real estate developer, ensures the parties the right to demand, respectively, the restitution and retention of the transacted amounts, according to the percen-tage established in that article, what, in a literal interpretation, would exclude from the scope of that article the termination executed between purchaser of a future real estate and the “proprietor-grantor”, who sells to the first a future real estate, which was received as an exchange for having transferred the land to the real es-tate developer and results from a real estate development, indicating the necessity, therefore, of an extensive interpretation of article 67-A, in accordance with the whole legal system.

Keywords

Article 67-A; termination; real estate development; developer; extensive interpretation; literal interpretation; purchase and sale commitment agreement; proprietor; restitution.

Sumário

1 Introdução; 2 Da alteração legislativa; 3 Da superação da interpreta-ção literal e necessidade de interpretação extensiva; 4 Conclusão; Referências Bibliográficas.

1 Introdução

O presente trabalho visa, conforme já explicita o título, debater a necessida-de de interpretação extensiva da figura do incorporador objeto do art. 67-A da Lei 4.591/64.

O referido art. 67-A foi introduzido na Lei 4.591/64 por força da publicação, em 27/12/2018, da Lei 13.786/2018, cunhada, informalmente, como “Lei do Dis-trato”, por tratar, majoritariamente, do término antecipado do contrato de aquisição de unidade futura objeto de empreendimento desenvolvido sob o regime da incor-poração imobiliária ou objeto de loteamento3.3 Nos termos do objeto da Lei 13.786/2018, esta altera leis para “disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano”;

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Focar-se-á aqui na primeira hipótese acima referida, isto é, de término an-tecipado causado ou motivado, pelo adquirente de unidades imobiliárias objeto de incorporação imobiliária, sendo esta regida pelo Título II da Lei 4.591/64.

A primeira parte do caput do artigo 67-A4 dispõe que:

Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimple-mento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restitui-ção das quantias que houver pago diretamente ao incorporador (…) (grifo nosso).

A discussão objeto do título deste artigo surge à tona quando se verifica que outra figura que deveria ter sido igualmente cotejada no referido artigo foi ig-norada – ou, esquecida? − pelo legislador, nomeadamente, o proprietário do ter-reno objeto da incorporação, na medida em que este costuma figurar, na qualidade de permutante5, como promitente-vendedor, a terceiros adquirentes, de unidades imobiliárias futuras que receberá do incorporador, estando sujeito, dessa forma, tal como o incorporador, aos efeitos do término antecipado do contrato de aquisição de unidades futuras.

A figura do proprietário-permutante-outorgante, acima descrita, será dora-vante designada e referida, em determinados trechos, para melhor compreensão, como “proprietário-outorgante”.

Em outras palavras, se o artigo introduzido na legislação visa assegurar ao adquirente a restituição das parcelas que houver pago ao incorporador, em meca-nismo de defesa desse adquirente-consumidor e, ao mesmo tempo, de segurança jurídica para o incorporador, deveria também contemplar a hipótese de restituição de valores pagos ao proprietário do imóvel que atua como promitente vendedor de 4 “Art. 67-A. Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabe-lecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente:

I - a integralidade da comissão de corretagem;II - a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga. (…)”

5 O permutante deve ser aqui entendido não apenas como o proprietário que celebra instrumento de permuta − propriamente dito − com o adquirente-incorporador, mas também o proprietário que aliena o imóvel e, a título de pagamento do preço, recebe unidades futuras em pagamento, com ou sem retenção de fração ideal. Quando o presente artigo se referir ao proprietário, estar-se-á referindo ao proprietário-permutante-outorgante, ou melhor, o proprietário do imóvel objeto da incorporação que recebe unidades imobiliárias futuras a título de pagamento pela alienação do terreno ao incorporador e as aliena para terceiros adquirentes.

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unidades futuras a serem desenvolvidas pelo incorporador, isto é, o proprietário-ou-torgante, conforme será exposto no decorrer deste artigo.

Esta ausência não pode ser interpretada como sendo propositada, seja por-que não se mostra lógica, seja porque criaria iniquidade não admitida pelo ordena-mento, de modo que uma interpretação sistemática do art. 67-A da Lei 4.591/64 leva, automaticamente, à extensão da figura do incorporador, de modo que esta passe a abarcar também o proprietário-outorgante.

2 Da alteração legislativa

A Lei 13.786/2018 inseriu o art. 67-A, que prevê uma multa compensatória (ou “retenção”) de 25% (vinte e cinco por cento) a 50% (cinquenta por cento) do valor até então pago pelo adquirente em caso de término antecipado do contrato de aquisição de unidade futura objeto de incorporação imobiliária, assim como o direito à retenção da comissão de corretagem.

A jurisprudência dos tribunais pátrios já refletia entendimento consolidado no sentido de que a referida multa não deveria ultrapassar 30% (trinta por cento) dos valores pagos pelo adquirente, estabelecendo multas, usualmente, entre 10% (dez por cento) e 25% (vinte e cinco por cento)6 7.6 A título meramente exemplificativo: “AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. RESOLUÇÃO. RETENÇÃO. PERCENTUAL DE 10%. RAZOABILIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO DE ACORDO COM A JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL SUPERIOR. SÚMULA 83 DO STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A jurisprudência desta Corte de Justiça, nas hipó-teses de rescisão de contrato de promessa de compra e venda de imóvel por inadimplemento do comprador, tem admitido a flutuação do percentual de retenção pelo vendedor entre 10% e 25% do total da quantia paga. 2. Em se tratando de resolução pelo comprador de promessa de compra e venda de imóvel em construção, ainda não entregue no momento da formalização do distrato, bem como em se tratando de comprador adimplente ao longo de toda a vigência do contrato, entende-se razoável o percentual de 10% a título de retenção pela cons-trutora dos valores pagos, não se distanciando do admitido por esta Corte Superior. 3. É abusiva a disposição contratual que estabelece, em caso de resolução do contrato de compromisso de compra e venda de imóvel pelo comprador, a restituição dos valores pagos de forma parcelada. 4. Agravo interno não provido. (STJ - AgRg no AREsp: 807880 DF 2015/0279559-6, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 19/04/2016, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/04/2016). Grifo nosso. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/339907216/agravo-regimental-no-agravo-em-recurso-especial-agrg-no-aresp-807880--df-2015-0279559-6/certidao-de-julgamento-339907253?ref=serp. Acesso em 02 mar. 2019.7 Essa matéria já foi objeto de súmula do STJ em 2016, ainda que não tenha fixado percentuais de devolução parcial: “Súmula 543 - Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel subme-tido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento”.

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A despeito do entendimento consolidado, a inserção do art. 67-A tem dupla relevância no mercado imobiliário: (i) se, por um lado, assegura ao adquirente de unidade imobiliária futura o direito de ver restituída parte da quantia paga à outra parte (o “incorporador”), em percentual de, pelo menos, 75% (setenta e cinco por cento) ou, se a incorporação for afetada, de 50% (cinquenta por cento), (ii) por ou-tro lado, assegura ao vendedor que ele terá direito de reter percentuais de até 25% (vinte e cinco por cento), ou, conforme a incorporação seja afetada, de até 50% (cinquenta por cento) da quantia recebida até então.

Com a referida inclusão legislativa, sem entrar no mérito dos possíveis ma-lefícios do dirigismo estatal na atividade privada, dar-se-á segurança jurídica às duas principais partes do negócio jurídico de que terão direito a, respectivamente, receber e reter a quantia acordada contratualmente, e, por sua vez, ao mercado imobiliário como um todo.

Questiona-se, neste artigo, se é possível que o proprietário do imóvel, na qualidade de permutante e contratante de promessa de compra e venda de futura unidade imobiliária (o proprietário-outorgante) localizada na mesma incorporação desenvolvida pelo Incorporador, efetue a retenção nos percentuais previstos em lei ou, por outro lado, se o adquirente teria direito à restituição de parte da quantia paga ao proprietário-outorgante nos percentuais antes referidos.

Isso se dá porque o proprietário do terreno também realiza a alienação de unidades imobiliárias futuras que resultam da incorporação imobiliária, em situação análoga ao incorporador, seja pela alienação das unidades futuras que lhe caberão por força da incorporação, seja através de cláusula de mandato, através da qual são outorgados poderes de incorporação ao construtor ou corretor, esta última na forma do § 1° do art. 31 da Lei 4.591/648.

Destarte, a dúvida acerca da possibilidade de retenção pelo proprietário do imóvel − ou, sob outro aspecto, restituição pelo adquirente − é pertinente na medida em que o art. 67-A é expresso ao prever que se trata de hipótese de des-8 “Art. 31. A iniciativa e a responsabilidade das incorporações imobiliárias caberão ao incorporador, que so-mente poderá ser:

(…)b) o construtor (Decreto número 23.569, de 11-12-33, e 3.995, de 31 de dezembro de 1941, e Decreto-lei

número 8.620, de 10 de janeiro de 1946) ou corretor de imóveis (Lei nº 4.116, de 27-8-62).(…)§ 1º No caso da alínea b, o incorporador será investido, pelo proprietário de terreno, o promitente comprador

e cessionário dêste ou o promitente cessionário, de mandato outorgado por instrumento público, onde se faça menção expressa desta Lei e se transcreva o disposto no § 4º, do art. 35, para concluir todos os negócios tendentes à alienação das frações ideais de terreno, mas se obrigará pessoalmente pelos atos que praticar na qualidade de incorporador. (…)”

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fazimento de contrato celebrado “exclusivamente” com o incorporador, excluindo, portanto, em tese, todas as demais hipóteses de distrato de contratos de compra de unidade futura que não tenham sido celebradas com o incorporador.

Isto é, em uma análise literal da lei, o proprietário do imóvel, seja na qualida-de de permutante e outorgante de futuras unidades imobiliárias, não poderia reter nenhum valor, já que apenas o incorporador poderia fazê-lo. Sob outro aspecto, ainda mais prejudicial ao adquirente, poder-se-ia entender que o proprietário-ou-torgante poderia reter percentuais superiores àqueles previstos no art. 67-A, pois poder-se-ia alegar que este, por não se enquadrar na figura de incorporador ou fornecedor9, não estaria sujeito às regras aplicáveis a estes últimos, notadamente ao regramento da Lei 4.591/64, incluindo, portanto, o art. 67-A.

Conforme será argumentado ao longo deste artigo, o disposto no art. 67-A, se interpretado de forma literal, criaria uma situação díspar entre incorporador e proprietário- outorgante, bem como excluiria o próprio direito do adquirente de demandar a restituição de 75% (setenta e cinco por cento) dos valores pagos ao proprietário do terreno, situação esta que, evidentemente, não merece tutela jurí-dica do ordenamento, exigindo, assim, interpretação extensiva, à luz de todo o or-denamento e em conformidade com os princípios jurídicos vigentes, assegurando, por um lado, igualdade de tratamento ao proprietário-outorgante e, por outro lado, protegendo o adquirente-consumidor.

3 Da superação da interpretação literal e necessidade de interpretação extensiva

Sem qualquer intenção de adentrar com profundidade ao tema da herme-nêutica jurídica, é consenso doutrinário que a interpretação literal e mecânica, realizada de forma exclusiva e apartada das demais técnicas interpretativas, não merece mais prosperar.

Conforme ensina Miguel Reale, “interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um dos seus dispositivos”10.9 Nos termos do art. 3° do CDC (Lei 8.078/90) “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, monta-gem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”10 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 289.

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Ainda nas palavras desse autor:

(…) o trabalho do intérprete, longe de reduzir-se a uma passiva adaptação a um texto, representa um trabalho construtivo de natu-reza axiológica, não só por se ter de captar o significado do preceito, correlacionando-o com outros da lei, mas também porque se deve ter presentes os da mesma espécie existentes em outras leis: a sistemática jurídica, além de ser lógico-formal, como se sustentava antes, é também axiológica ou valorativa.11

Para o doutrinador italiano Pietro Perlingieri, a interpretação axiológico-siste-mática representa a superação histórica e cultural da intepretação literal12. Nesse sentido, afirma que:

(…) a legalidade constitucional impõe uma interpretação da norma ordinária ou de grau inferior, à luz dos interesses e dos valores cons-titucionalmente relevantes, de maneira que limitar-se à letra clara ou ao sentido próprio das palavras (é possível?) ou à intenção do legislador, passado ou presente, significaria colocar-se fora desta legalidade.13

Não existem normas, portanto, que não tenham como pressuposto o sistema e que ao mesmo tempo não concorram a formá-lo; não existem normas que sejam inteligíveis no seu efetivo alcance se não insertas como partes integrantes, em uma totalidade formal (siste-ma legislativo) e substancial (sistema social). Este resultado postula a superação da exegese considerada como investigação e individua-ção do significado literal do texto.14

Gustavo Tepedino, seguindo os ensinamentos de Perlingieri, advoga pela superação da técnica da subsunção para interpretação e aplicação das normas jurídicas, adotando em seu lugar processo unitário de interpretação e qualificação do fato, confrontando-as com o inteiro ordenamento jurídico15.11 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 291.12 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 73.13 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 74.14 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 78.15 TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos. In: ______________; FACHIN, Luiz Edson (co-ords.). O Direito e o Tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas. Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 404.

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Tendo como premissa que a interpretação literal não deve ser usada como método primário e/ou isolado de interpretação e aplicação da lei, defende-se aqui que a interpretação literal do art. 67-A deve ser refutada, especialmente porque a leitura literal do trecho “celebrado exclusivamente com o incorporador” contido na letra da lei resultaria na impossibilidade de o proprietário-outorgante efetuar a retenção dos valores pagos pelo adquirente distratante, e mais importante, de o adquirente-distratante não poder fazer jus à restituição, na forma da lei, das parcelas pagas ao proprietário do imóvel, o que violaria princípios constitucionais basilares.

Em outras palavras, a interpretação ipsi litteris do artigo em comento levaria a resultados iníquos e, por sua vez, não tuteláveis, assim, pelo ordenamento, tais quais: (i) impossibilidade de o adquirente que prometeu adquirir, do proprietário- outorgante, unidades imobiliárias futuras resultantes de incorporação imobiliária (por mandato ou não), fazer jus à proteção legal objeto do art. 67-A, a qual lhe assegura o direito à restituição de, pelo menos, 75% (setenta e cinco por cento) dos valores pagos ao proprietário-outorgante; (ii) diferenciação, não justificável, de regime jurídicos entre o proprietário-outorgante e o incorporador, sobretudo se levado em consideração que o proprietário tende a ser parte mais frágil do que o incorporador, não se explicando, assim, proteção maior ao incorporador do que ao proprietário-outorgante.

No primeiro caso mencionado acima, a exclusão do direito de o adquirente poder pleitear a restituição de, pelo menos, 75% (setenta e cinco por cento) dos va-lores pagos ao proprietário-outorgante parece inadmissível, pois criaria um regime diferenciado dentro da Lei 4.591/64, tida como protetiva do adquirente-consumi-dor, o que seria contraditório ao próprio espírito da Lei 4.591/64 e do ordenamento jurídico como um todo, tendo aquela o objetivo maior de proteger o adquirente, antecipando o regime de proteção do consumidor que viria a ser tipificado tão so-mente 26 (vinte e seis) anos depois, através do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90)16.16 Nesse sentido dispõe Melhim Chalhub: “Aspecto de particular relevância é o sistema de proteção ao adqui-rente introduzido pela Lei das Incorporações. Esse sistema é precursor do sistema de proteção e defesa do consumidor, contido no CDC, pois, trinta anos antes da formulação do CDC, a Lei n. 4.591/64 já positivava no direito brasileiro um sistema de proteção do adquirente de imóveis em construção e fixava a responsabilidade do incorporador e demais profissionais envolvidos no negócio estruturado nos mesmos princípios que vieram a orientar o referido Código, isto é, os princípios da boa-fé, no seu sentido objetivo, e da função social do contrato, com eficazes mecanismos de compensação e vulnerabilidade da posição contratual do adquirente.” (Da Incorpo-ração Imobiliária. 4ª ed. São Paulo: Forense, 2017, p. 3-4).

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Tal situação é ainda mais patente naqueles casos, que são bastante usuais, em que o adquirente comparece ao stand de vendas do incorporador e realiza a compra de unidade do proprietário-outorgante tal como se estivesse comprando unidade imobiliária do próprio incorporador, através da mesma empresa de correta-gem, mesmo instrumento de compra e venda, mesmas cláusulas contratuais, mes-ma tabela de vendas, etc. Isso é, na prática, não haveria diferença perceptível para o consumidor, para além dos meandros jurídicos, na compra de unidade imobiliária que pertenceria ao incorporador ou ao proprietário-outorgante.

No entanto, poder-se-ia conceber, em cenário alternativo, a venda pelo proprietário-outorgante fora dessa estrutura de vendas do incorporador, de for-ma claramente segregada, com diferentes condições de compra, que permiti-riam ao proprietário-outorgante prever percentuais de retenção diversos daque-les fixados por lei, justamente porque a Lei 4.591/64 prevê, em leitura literal, a exclusão do proprietário-outorgante do escopo daquele artigo, o que poderia ser considerado prejudicial ao adquirente e, portanto, contra interesses socialmente relevantes.

No segundo caso antes mencionado, que se dá pelo espectro do proprie-tário-outorgante, vendedor de unidades imobiliárias futuras, parece igualmente injustificável que ao incorporador seja concedido o direito de reter de 25% (vinte e cinco por cento) a 50% (cinquenta por cento) do valor até então pago pelo ad-quirente, enquanto ao proprietário do terreno, seja este permutante ou outorgan-te de unidades futuras, seja negado tal direito, especialmente se considerando que o proprietário-outorgante tende a ser parte mais frágil que o incorporador, que naturalmente é dotado de estrutura e experiência da qual aquele usualmente não desfruta.

Em face do disposto nos parágrafos anteriores, percebe-se que a interpre-tação literal do art. 67-A deve ser rechaçada sob o espectro de quaisquer das par-tes envolvidas na incorporação imobiliária, isto é, do consumidor-adquirente ou do proprietário-outorgante, na medida em que esta seria prejudicial a ambos, criando regime diferenciado − não justificável − em favor, primordialmente, do incorpo-rador, em clara contradição aos princípios constitucionais da boa-fé, igualdade e solidariedade, entre outros.

Ainda que a vontade do legislador perca relevância após a promulgação da lei, haja vista que a norma deve ser interpretada de acordo com o sistema jurídico como um todo, levando em consideração os princípios vigentes − e não de acordo

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com a intenção do legislador17 −, é válido, para melhor compreensão desta inclu-são legislativa no projeto de lei, recorrer aos fundamentos constantes do projeto que levou à promulgação da Lei 13.786/2018, a fim de se compreender qual teria sido o fundamento da inclusão da expressão “exclusivamente com o incorporador”.

Neste sentido, verifica-se que foi através da Emenda 2918 ao PLC 68/201819 que se inseriu a referida expressão, tendo o legislador justificado a sua inclusão para distinguir a compra financiada diretamente com a construtora/incorporadora ou com o loteador, daquela em que a aquisição é feita mediante financiamento bancário, visando tal emenda, assim, excluir a aplicação da hipótese de distrato ao contrato de mútuo celebrado com o agente financeiro.

Verifica-se que tal alteração não tem fundamento, seja porque o financia-mento com o agente financeiro é realizado, usualmente, através de compra e venda com alienação fiduciária em garantia, não havendo que se falar em desfazimento deste negócio jurídico, e sim em execução da garantia, seja porque o distrato de mútuo realizado com o agente financeiro não seria regulado pela Lei 4.591/64.

Ainda, neste aspecto, cabe mencionar que a própria alteração legislativa foi realizada em um contexto socioeconômico de grave crise econômica, particu-larmente no setor da construção civil, em que o número de distratos expandiu de 17 Nesse sentido, dispõe Perlingieri: “Extraem-se as normas da interpretação da lei, e não da imposição das pre-ferências pessoais do jurista à sociedade, não importando quanto seja nobre a sua intenção.” (Perlingieri, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 62). Ainda nessa linha, Paulo Nader explica: “A teoria subjetiva, subordinando o intérprete ao pensamento do legislador, impedia os processos de aperfeiçoamento da ordem jurídica, que são possíveis apenas mediante o permanente trabalho de adaptação dos textos legislativos às exigências hodiernas. A teoria objetiva não determina o abandono dos planos do legislador. A liberdade concedida ao intérprete tem como limite os princípios contidos no texto. Despreza a mens legislatoris em favor do sentido objetivo dos tex-tos jurídicos, que têm significado próprio, implícito em suas expressões. Quando o legislador elabora um texto normativo, não pode pressentir a infinidade de situações que serão alcançadas no futuro, pela abstratividade da lei. A pesquisa da intencionalidade do legislador conduziria o aplicador do Direito fatalmente a um subjetivismo indesejável.” (NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 260).18 Justificação contida na Emenda 29: “O Escopo principal do PLC 68/2018 é trazer maior segurança jurídica à relação entre o Consumidor e as Construtoras e Incorporadoras, disciplinando a eventual resolução do contrato e as penalidades dela advindas. Para tanto, faz-se necessária a devida clareza de redação quanto à sua abran-gência, sob pena de a lei vir a ser aplicada não somente àquelas partes, mas também às instituições financeiras, forçando-as a aceitar a resolução de contratos financeiros de mútuo. A Emenda ora proposta visa, portanto, ofe-recer maior segurança jurídica à norma, ao deixar explícita a distinção entre a compra parcelada diretamente com a construtora/incorporadora (Lei n. 4.591/64) ou com o loteador (Lei n. 6.766/1979) e a situação de aquisição feita mediante financiamento bancário.” Inteiro teor da Emenda 29 em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7889095&disposition=inline. Acesso em 01 mar. 2019.19 Dados do PLC 68/2018 em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/133613. Acesso em 01 mar. 2019.

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forma alarmante20, seja porque os adquirentes perderam seu poder de compra, seja porque os adquirentes distratavam o negócio realizado para adquirir outro imóvel em condições mais benéficas, dado os significativos descontos que passaram a ser oferecidos pelas incorporadoras. Desta feita, um dos objetivos da Lei 13.786/2018, que introduziu o art. 67-A, foi fomentar o mercado imobiliário, garantindo uma maior segurança jurídica às negociações, especialmente no que tange à redução dos litígios que englobam inadimplementos contratuais.

Assim sendo, não parece coerente restringir a aplicação do art. 67-A ao incorporador, excluindo o proprietário-outorgante, que acabou sendo alvo da cri-se imobiliária e constitui figura relevante na consecução de empreendimentos imobiliários.

A despeito da intenção do legislador não ser fundamento para interpretação da lei, conforme exposto acima, é evidente que não foi intenção do legislador criar regime diferenciado e iníquo entre incorporador e proprietário do terreno, razão esta pela qual é reforçada a necessidade de ser concedida interpretação extensiva ao art. 67-A, estendendo-se a aplicação deste artigo às hipóteses de desfazimento do contrato de compra e venda de unidade imobiliária futura que seja celebrado entre adquirente e proprietário-outorgante.

Desta feita, entende-se que não merece prosperar a interpretação ipsi lit-teris do artigo em comento, seja porque esse tipo de interpretação, quando rea-lizada isoladamente e de forma desconectada de outros métodos hermenêuticos, mostra-se descabida21, seja porque tal interpretação levaria a resultados iníquos, restando evidente que a interpretação adequada do art. 67-A é que este se aplique também ao desfazimento de contratos celebrados não apenas com o incorporador, mas também com o proprietário-outorgante.

Tal distinção de direitos que uma interpretação literal criaria entre o proprie-tário-outorgante e o incorporador não seria, ademais, justificável também em face da responsabilidade que é comumente imputada ao proprietário-outorgante, isto é, o proprietário que não atua como incorporador, mas em muitos casos, em decor-rência de decisão judicial, acaba respondendo pelos riscos do negócio, que seriam, ou, ao menos, deveriam ser, exclusivos do incorporador.20 “De acordo com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), entre fevereiro de 2017 e fevereiro de 2018, registrou-se [sic.] 33,3 mil distratos, equivalente a 29,7% das vendas no período.”. Disponível em: https://www.dci.com.br/colunistas/artigo/a-nova-lei-do-distrato-imobiliario-1.773987. Acesso em 02 mai. 2019.21

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Nesse sentido, existe precedente judicial no sentido de que todos aqueles que participam do contrato de incorporação respondem solidariamente pelos deve-res assumidos com o consumidor, no caso de relação jurídica tutelada pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme julgado referido abaixo do Distrito Federal:

(...) Tanto a construtora quando a incorporadora, a vendedora e a corretora têm legitimidade para figurar no polo passivo da ação que objetiva reparação por danos decorrentes do atraso na entrega do imóvel e ressarcimento de comissão de corretagem. (...)(TJ-DF – APC: 20140110263160, Relator: JOÃO EGMONT, Data de Julgamento: 22/07/2015, 2ª Turma Cível, Data de Publicação: Publi-cado no DJE: 28/07/2015. Pág.: 118) 22

Verifica-se, inclusive, ainda que isolada, doutrina nessa linha, defendendo a responsabilidade do proprietário-outorgante pelos riscos da incorporação. O argu-mento defendido parte da premissa de que se o proprietário-outorgante participou do negócio e vislumbrou benefícios, deve, portanto, arcar com os ônus eventuais, respondendo, assim, se frustrado o empreendimento, perante os adquirentes23. Essa não é, contudo, a opinião dos autores deste artigo, nem da doutrina tradicional24.

Dessa forma, não parece lógico, portanto, que o proprietário possa ser ca-racterizado como incorporador, para fins de responsabilização deste perante consu-midores, mas que lhe seja negado o direito de usufruir das prerrogativas concedidas ao incorporador no art. 67-A.

Novamente, cabe notar, ainda, que a não aplicação do art. 67-A para os ca-sos de celebração de contratos de alienação de unidades futuras por proprietários de imóvel objeto de incorporação imobiliária, implicaria em prejuízo maior ao consu-midor, que é a parte verdadeiramente fragilizada dessa relação negocial, pois este ficaria impedido de reaver a maior parte – 50% a 75% (cinquenta a setenta e cinco por cento) – do valor pago ao proprietário-outorgante de unidade futura.22 Disponível em: https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/213617656/apelacao-civel-apc-20140110263160? ref=serp. Acesso em 11 fev. 2019.23 Vide, neste sentido: BUSHATSKY, Jaques. Observações sobre a responsabilidade do proprietário do terreno, que o permuta por futuras unidades a serem erigidas no local, perante os adquirentes de unidades destinadas ao incorporador, prometidas à venda e não entregues. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2738, 30 dez. 2010. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/18147>. Acesso em: 23 fev. 2019. 24 A doutrina tradicional, aqui representada por Arnaldo Rizzardo, defende que o proprietário apenas seria respon-sável juntamente com o incorporador caso seja feita a venda de unidades anteriormente ao registro da incorpo-ração, mas que após o registro do memorial de incorporação, a responsabilidade seria exclusiva do incorporador (RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 425).

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Destarte, diante de todo o exposto, mostra-se imperioso que o art. 67-A seja lido e interpretado de forma extensiva, de modo a abarcar também o proprie-tário do imóvel objeto de incorporação imobiliária que celebra contrato de promes-sa de compra e venda de unidade imobiliária futura com terceiros adquirentes (o proprietário-outorgante).

Mais uma vez fazendo uso das palavras de Miguel Reale:

(…) o que se chama interpretação extensiva é exatamente o re-sultado do trabalho criador do intérprete, ao acrescer algo de novo àquilo que, a rigor, a lei deveria normalmente enunciar, à vista das novas circunstâncias, quando a elasticidade do texto normativo comportar o acréscimo. Desse modo, graças a um trabalho de ex-tensão, revela-se algo de implícito na significação do preceito, sem quebra de sua estrutura.25

E, nas palavras de Maria Helena Diniz:

A interpretação extensiva desenvolve-se em torno de um preceito normativo, para nele compreender casos que não estão expressos em sua letra, mas que nela se encontram, virtualmente, incluídos, conferindo, assim, à norma o mais amplo raio de ação possível, to-davia sempre dentro do seu sentido literal. Não se acrescenta coisa alguma, mas se dá às palavras contidas no dispositivo normativo o seu significado. Conclui-se tão-somente que o alcance da lei é mais amplo do que indicam seus termos. Ao se interpretar, p. ex., a norma “o proprietário tem direito de pedir o prédio para seu uso”, constante da Lei do Inquilinato, deve-se incluir o usufrutuário entre os que podem pedir o prédio para uso próprio, porque a finalidade do preceito é beneficiar os que têm sobre a coisa um direito real. O fato já está contido na norma, mas as suas palavras não o alcançaram. É um meio de reintegração do sentido literal contido na norma, esta-belecendo apenas as legítimas fronteiras do texto normativo, que é distendido somente para compreender a complexidade da matéria que lhe cabe regulamentar26.

Verifica-se, do próprio exemplo fornecido acima pela autora, a inclusão de fi-gura jurídica não contemplada nas palavras da lei, mas que, dado o sentido e função daquela norma, faz-se necessário realizar interpretação extensiva para incluí-la, tal como é a situação aqui defendida, por força da qual, repisa-se, a figura do incor-25 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 293.26 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 429.

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porador deve ser estendida para abranger também o proprietário-outorgante que celebra contrato de promessa de compra e venda de unidade imobiliária futura com terceiros adquirentes, conforme exposto ao longo deste artigo.

Conclusão

Diante de todo o exposto, pode-se concluir, em síntese, o seguinte:

(i) O legislador foi infeliz ao inserir a expressão “celebrado exclusivamen-te com o incorporador” no art. 67-A, na medida em que a intenção deste, nos termos da Emenda 29 ao PLC 68/2018, foi excluir a incidência do referido artigo aos contratos de financiamento imobiliário firmados entre adquirentes de unidades imobiliárias e agentes financeiros, tendo, por consequência − em uma interpreta-ção exclusivamente literal − excluído as hipóteses de contratos de aquisição de unidade imobiliária futura celebrados entre adquirente e proprietário-outorgante;

(ii) A interpretação literal, quando realizada de forma isolada e em disso-nância com a totalidade do ordenamento jurídico, não é admitida como técnica hermenêutica;

(iii) A despeito do conhecimento da intenção do legislador ao introduzir a referida expressão no caput do art. 67-A – que não foi, claramente, de excluir do escopo da norma a realização de distrato entre o adquirente e o proprietário-outor-gante −, tal intenção deve ser ignorada, tendo como irrelevante o seu contexto, autoria e intuito, favorecendo, ao invés, interpretação sistêmica, consoante com a axiologia do ordenamento jurídico, que é uno e indivisível, em atendimento, portan-to, aos princípios constitucionais da dignidade humana e solidariedade e, por sua vez, a todos os princípios daí decorrentes, incluindo-se, dentre eles, aqueles de equidade e proteção do consumidor;

(iv) O art. 67-A demanda, portanto, interpretação que abranja, também, a figura do proprietário de imóvel − objeto de incorporação imobiliária − que aliena a terceiros unidades imobiliárias futuras (o proprietário-outorgante), na medida em que uma análise literal deste artigo levaria à violação de princípios basilares do ordenamento, prejudicando não apenas o referido proprietário-outorgante, como também e, principalmente, o promitente-comprador de unidades imobiliárias futu-ras, que se veria impedido de exigir o distrato da promessa de compra e venda nos termos do art. 67-A, situação essa não merecedora de tutela pelo ordenamento jurídico; e

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(v) A interpretação mais adequada do art. 67-A, em consonância com a axiologia do ordenamento jurídico, é aquela que assegura, por um lado, ao adqui-rente de unidade imobiliária futura o direito de demandar a restituição das quantias pagas na forma do referido artigo e, por outro, ao proprietário-outorgante o direito de realizar a retenção das quantias recebidas na forma daquele artigo.

Referências Bibliográficas

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Felipe de Almeida Mello1

Resumo

O presente artigo discorre, adotando-se uma abordagem teórico-prática, acerca da utilização das sociedades em conta de participação, mais conhecidas pelo acrônimo SCP, no dia-a-dia dos negócios imobiliários. Assim sendo, o artigo aborda questões relacionadas à sua natureza contratual, ao seu objeto, aos sujeitos que compõem uma sociedade em conta de participação – os sócios participantes e ostensivos, à sua ausência de personalidade jurídica, às obrigações de cada sócio no âmbito deste tipo de sociedade, entre outras questões relacionadas à sua im-portância no desenvolvimento de negócios imobiliários.

Palavras-chave

Sociedade em Conta de Participação; Natureza Contratual; Características; Negócios Imobiliários; Utilização.

Abstract

This article deals with, adopting a theoretical-practical approach, the use of the sociedades em conta de participação (special partnership), better known by the acronym SCP in Portuguese, in the day-to-day of real estate businesses. 1 Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Empresarial. Professor da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, Escola Superior de Advocacia – ESA da OAB/SP e da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Advogado e Sócio de Barbaresco, Bidoia e Mello Advogados.

AS SOCIEDADES EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO E OS NEGÓCIOS

IMOBILIÁRIOS – A CONSTRUÇÃO DE UMA PRÁTICA

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In this sense, the article addresses issues related to its contractual nature, its purpose, the subjects of a SCP – the participating and ostensive partners, its lack of the character of a legal entity, the obligations of each partner under this type of partnership, among other issues related to its importance in the development of real estate businesses.

Keywords

Special partnership; Contractual nature; Characteristics; Real estate busi-nesses; Use.

Sumário

Introdução; 1 Histórico e Base Legal; 2 Natureza Jurídica e Finalidade nos Negócios Imobiliários; 3 Aspectos Tributário e Contábil; 4 Aspectos Processuais; 5 Aplicação Prática nos Negócios Imobiliários; 5.1 Aspectos gerais; 5.2 A aplicação prática das sociedades em conta de participação nos negócios imobiliários; 5.2.1 Da delimitação do objeto social; 5.2.2 Da participação dos sócios na sociedade em conta de participação; 5.2.3 Da instituição de comitês; Conclusão; Referências Bibliográficas.

Introdução

A sociedade em conta de participação, mais conhecida no dia-a-dia do mun-do dos negócios pelo acrônimo “SCP”, já há muito existente em nosso ordenamen-to jurídico, vem ganhando, em virtude de suas características intrínsecas e de sua maleabilidade, uma maior importância no mundo empresarial, notadamente, nos negócios imobiliários que será o foco do presente artigo.

As sociedades em conta de participação, como veremos com mais detalhes adiante, constituem “(...) moderno instrumento de captação de recursos financeiros para o desenvolvimento econômico, tendo, além disso, amplas e úteis aplicações, dentro do moderno campo do direito comercial”2. Encontram-se atualmente disci-plinadas pelos artigos 991 a 996 do Código Civil e possuem características próprias tanto pelo seu caráter de sociedade secreta, a despeito da recente necessidade de 2 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol. 1. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 306.

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registro dessas sociedades perante o CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoas Jurí-dicas, quanto por sua ausência de personalidade jurídica. Falta-lhe até mesmo uma insígnia que as identifique perante terceiros3, uma vez que apenas a denominação social do sócio ostensivo descortina-se para o público em geral.

A despeito do termo “sociedade” em sua denominação, o seu contato e vínculo com o mundo exterior se dão apenas por intermédio da figura do sócio ostensivo, como mencionado acima, permanecendo os demais integrantes, deno-minados como sócios participantes, ocultos para o público em geral. Assim sendo, uma das suas características essenciais não é o fato de poderem ser secretas, mas sim de que apenas o sócio ostensivo obriga-se, de forma única e exclusiva, perante terceiros.

Amador Paes de Almeida4 advoga que o sócio ostensivo sempre terá que ser pessoa física. A despeito desta posição, entendemos que o artigo 991 do Código Civil não restringiu a figura do sócio ostensivo às pessoas físicas. Muito pelo contrá-rio, quis o legislador permitir que tanto pessoas físicas como jurídicas possam ser sócias ostensivas ou participantes, o que mais se verifica no dia-a-dia empresarial.

Vale mencionar também que poderá haver mais de um sócio ostensivo. Nesse caso, as partes deverão disciplinar, no documento constitutivo da socie-dade em conta de participação, as obrigações de cada um dos sócios ostensivos com relação ao exercício do objeto social e as relações deles perante os sócios participantes5.

Um tema que provoca acalorados debates, no mundo acadêmico, é o que se refere à sua natureza jurídica. Uma parte da doutrina entende tratar-se as socieda-des em conta de participação de autênticas sociedades, um tipo societário distinto, regulamentado pelo Código Civil6. De outro lado, há uma parcela da doutrina que entende tratar-se de um contrato de investimento comum, que o legislador, de forma inapropriada, denominou de sociedade7.3 GALIZZI, Gustavo Oliva. Sociedade em conta de participação. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008, p. 18.4 PAES DE ALMEIDA, Amador. Manual das sociedades comerciais. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 121.5 ATTIE, Paulo. Sociedades em conta de participação – aspectos societários e fiscais. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI56894,31047-sociedades+em+conta+de+participacao+aspectos+societarios+e+fiscais>. Acesso em: 30 abr. 2019.6 FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis. Sociedade em conta de participação. In: FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis; PROENÇA, José Marcelo Martins (coords.). Direito societário: tipos societários. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 155.7 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Vol. 2. 5ª ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil e alterações da LSA. São Paulo: Saraiva, 2002.

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Não obstante toda a polêmica existente no meio acadêmico acerca de sua natureza jurídica, a verdade é que, em virtude de seu sigilo, desburocratização e caráter contratual, que privilegia a autonomia privada das partes envolvidas, a so-ciedade em conta de participação vem ganhando cada vez mais espaço e uso como modo de exploração empresarial, sendo muito utilizada nos negócios imobiliários para a constituição, desenvolvimento e exploração de apart-hotéis8, shopping cen-ters, empreendimentos residenciais, não-residenciais e de uso misto.

1 Histórico e Base Legal

A origem das sociedades em conta de participação remonta à Itália do final da Idade Média, quando da criação das corporações de ofício e do aumento das ati-vidades mercantis, principalmente, entre Veneza, Florença e Gênova9, sendo que as origens das sociedades em conta de participação e das sociedades em comandita simples estão interligadas derivando ambas dos contratos de commenda.

Reporta-nos Gustavo Oliva Galizzi10 que, como grande parte do comércio era realizado por vias marítimas, a comenda veio a adquirir feições originais de um contrato comercial marítimo. Em tal operação existiam duas partes distintas: de um lado, os comendadores (commendator), ou que seriam hoje denominados investidores, ou seja, pessoas que realizavam os aportes de capital em dinheiro ou em mercadorias, participando, ao final, dos resultados obtidos, e de outro lado, estavam os tratadores ou negociantes (tractator), capitães dos navios e que eram responsáveis pela gestão e efetivação da transação.

Ao longo dos anos e com o aprimoramento das atividades mercantis, a es-trutura inicial do contrato de commenda sofreu alterações, de modo que o tractator passou também a contribuir com o seu próprio capital, saindo da figura única de gerente para também a de proprietário do negócio, e permanecendo o commenda-tor como mero partícipe11.

Contudo, em vista da proibição canônica da usura e como o comércio era malvisto entre a nobreza da época, o contrato de commenda desenvolveu algumas 8 MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 35.9 FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis. Sociedade em conta de participação. In: FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis; PROENÇA, José Marcelo Martins (coords.). Direito societário: tipos societários. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 161.10 Op. cit., p. 21 e 22.11 GALIZZI, op. cit., p. 23.

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variantes que o diferenciava das demais formas contratuais tradicionais que era o sigilo. Assim sendo, alguns contratos de commenda eram objeto de registro nas corporações de ofício, tornando-se, portanto, públicos. Outros, por conta de suas especificidades, permaneceram em sigilo ou ocultos do público vindo a tornar-se fontes das atuais sociedades em conta de participação.

A partir da Itália, o instituto se difundiu por toda a Europa, passando a fazer parte do código comercial napoleônico de 1807 (artigos 47 a 50), do código espa-nhol de 1829 e do português de 1833.

Por intermédio da influência dos diplomas ibéricos, foi incluída, no Código Comercial brasileiro de 1850, uma seção que tratava da sociedade em conta de participação (artigos 325 a 328), passando a ser, portanto, a primeira forma de positivação deste instituto no ordenamento jurídico brasileiro.

Atualmente, após décadas de insegurança jurídica, uma vez que o aludido Código Comercial trazia informações escassas sobre o seu funcionamento, as so-ciedades em conta de participação são hoje regidas pelo Código Civil cujos artigos 991 a 996 determinam as suas diretrizes gerais no que tange à sua constituição, as relações entre os sócios, formação do fundo social e sua dissolução.

Além das disposições do Código Civil, as sociedades em conta de partici-pação também são regidas, no que tange às questões tributárias, pelas Instruções Normativas RFB 1.863/201812 e 1.700/201713.

2 Natureza Jurídica e Finalidade nos Negócios Imobiliários

Apesar de existirem no ordenamento jurídico brasileiro há mais de 150 anos e de contarem com uma crescente utilização no dia-a-dia empresarial, o tema rela-cionado à natureza jurídica das sociedades em conta de participação sempre sus-cita acalorados debates no mundo acadêmico. Extensos capítulos foram escritos a respeito de sua natureza jurídica: societária ou contratual? Uma autêntica socie-dade ou uma espécie de contrato? A controvérsia acerca de sua natureza jurídica existe e é o que veremos adiante.12 BRASIL. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Instrução Normativa RFB 1.863, de 27 de dezembro de 2018. Dispõe sobre o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=97729>. Acesso em: 16 abr. 2019.13 BRASIL. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Instrução Normativa RFB 1.700, de 14 de março de 2017. Dis-põe sobre a determinação e o pagamento do imposto sobre a renda e da contribuição social sobre o lucro líquido das pessoas jurídicas e disciplina o tratamento tributário da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins no que se refere às alterações introduzidas pela Lei nº. 12.973, de 13 de maio de 2014. Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=81268>. Acesso em: 16 abr. 2019.

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Para Gustavo Oliva Galizzi14 não há qualquer dúvida quanto à natureza jurí-dica do ato constitutivo da sociedade em conta de participação, que tem natureza contratual. Para esse autor o que se debate é “(...) a essência legal da organização empresarial em si, fruto do acordo de vontades dos sócios fundadores”.

Enquanto em Portugal, por exemplo, o instituto denomina-se “contrato de associação em participação”, sendo classificado, portanto, como um contrato, no Brasil, Galizzi15 reporta-nos que a doutrina majoritariamente entende que a socieda-de em conta de participação possui caráter societário.

Advoga essa corrente majoritária que a configuração de uma sociedade em conta de participação possui três elementos, presentes de forma simultânea nesse instituto, que confirmariam o seu caráter societário: (a) a obrigação dos sócios de contribuir, com bens ou serviços, para o exercício da atividade comum; (b) a partici-pação dos sócios nos resultados; e (c) a presença da affectio societatis.

Para Maria Eugenia Finkelstein16, a sociedade em conta de participação “é a única sociedade empresária que não possui personalidade jurídica, por expressa determinação legal”. Para esta autora, a sociedade em conta de participação é uma sociedade regular, embora de fato, uma vez que essa sociedade não é objeto de registro obrigatório.

Rubens Requião17 tem a sociedade em conta de participação como uma espécie de sociedade cuja uma das características é a de não ter razão social ou firma. Informa também que tem prevalecido no direito brasileiro a sua qualificação societária.

Para essa corrente doutrinária, a sociedade em conta de participação é uma sociedade sem personalidade jurídica, um ente despersonalizado, que não precisa ser registrado em qualquer órgão, sendo que a não-aquisição de personalidade jurídica, uma exceção à regra de se atribuir personalidade jurídica às sociedades, é um dos diferenciais mais marcantes em relação aos outros tipos societários. Pelo fato de não possuir personalidade jurídica, a sociedade em conta de participação, por consequência, não tem legitimidade ad causam ou ad processum.14 Op. cit., p. 27.15 Op. cit., p. 27.16 FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis. Sociedade em conta de participação. In: FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis; PROENÇA, José Marcelo Martins (coord.). Direito societário: tipos societários. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 155.17 Op. cit., p. 305.

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Por outro lado, entre os doutrinadores que a consideram uma espécie de con-trato temos, além de Gustavo Oliva Galizzi, Fábio Ulhoa Coelho18. Para este último é incorreto definir as sociedades em conta de participação como uma sociedade em-presária. A conta de participação “(...) não passa de um contrato de investimento comum, que o legislador, impropriamente, denominou sociedade”. A falta de perso-nalidade jurídica e a sua natureza secreta a afastam da sociedade empresária típica. A sociedade em conta de participação não possui necessariamente capital social, liqui-da-se pela medida judicial de prestação de contas e não possui um nome empresarial.

A sociedade em conta de participação, nas palavras de Gladston Mamede19, é “um contrato de sociedade, por meio do qual duas ou mais partes obrigam-se a contribuir, em bens e/ou serviços, além de atuar conjuntamente para a realização de certo objeto, definindo a forma de distribuição dos resultados sociais”.

Dessa maneira, a sociedade em conta de participação tem o escopo de estabelecer negócios com terceiros, sem apresentar-se, contudo, como uma so-ciedade. Não se trata de uma verdadeira sociedade20.

À sociedade em conta de participação falta-lhe patrimônio próprio e a perso-nalização, características essas essenciais de toda sociedade personificada. Apenas o sócio ostensivo aparece perante terceiros, sendo que os denominados sócios par-ticipantes fornecem os recursos, dinheiro ou bens, com o intuito de que estes sejam aplicados em uma determinada operação de interesse de todos os participantes.

A nosso ver, não obstante os posicionamentos majoritários em sentido oposto, entendemos que as sociedades em conta de participação possuem na-tureza contratual, por faltar-lhes os requisitos básicos necessários a que sejam consideradas sociedades empresárias típicas. A conta de participação não reúne os pressupostos necessários à sua classificação como sociedade, tratando-se de um mero contrato de participação ou de investimento.

Dentre as principais finalidades desse contrato está a “(...) obtenção de ca-pital de risco para um dado empreendimento, proporcionando-se ao emprestador uma participação nos lucros ou prejuízos consequentes”21.

A finalidade da sociedade em conta de participação nos negócios imobi-liários é a de unir o sócio ostensivo, geralmente responsável pela administração 18 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Vol. 2. 5ª ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil e alterações da LSA. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 476.19 Op. cit., p. 33.20 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 11ª ed. rev. aum. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 105.21 BORBA, José Edwaldo Tavares. Op. cit,. p. 107.

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da sociedade e pelo desenvolvimento do empreendimento em si, e o sócio parti-cipante, responsável por aportar o capital necessário para o desenvolvimento do empreendimento, que não tem poder para administrar a sociedade nem tampouco responde perante terceiros, sendo que suas obrigações e direitos encontram-se estabelecidos no contrato de constituição da sociedade celebrado entre as partes.

Para fins ilustrativo, em uma incorporação imobiliária, por exemplo, o sócio ostensivo costuma ser a construtora ou a incorporadora, responsável pelo geren-ciamento das obras civis, e o sócio participante, o proprietário do imóvel utilizado para a construção do empreendimento ou o responsável por aportar recursos para viabilizá-lo sob o ponto de vista econômico-financeiro.

A sociedade em conta de participação tem sido utilizada também com bas-tante frequência em negócios relacionados ao setor hoteleiro. Nesses casos, o sócio participante (ou investidor) passa a fazer parte de uma sociedade em conta de par-ticipação na qual a incorporadora ou construtora figurará como sócia ostensiva, os sócios participantes serão os adquirentes das unidades autônomas que comporão o empreendimento hoteleiro, sendo que, em muitos casos, a sociedade proprietária da marca da bandeira hoteleira, na qualidade de administradora do hotel a ser erigido no imóvel, passa a fazer parte também da sociedade como sócia participante.

Em tais negócios deverá constar do documento constitutivo da sociedade em conta de participação previsão quanto: (i) à administração do futuro empreen-dimento hoteleiro; (ii) à destinação e repartição das eventuais receitas oriundas da exploração do futuro empreendimento hoteleiro; (iii) à forma e periodicidade de utilização da unidade imobiliária hoteleira pelo adquirente (sócio participante); entre outras disposições.

Dessa maneira, a sociedade em conta de participação terá como finalidade congregar os investidores, nessa hipótese adquirentes de unidades autônomas, a fim de que o empreendimento seja erigido e as futuras unidades autônomas sejam objeto de locação conjunta (“pool”) com o intuito primordial de se obter lucro.

3 Aspectos Tributários e Contábil

Fábio Ulhôa Coelho22 reporta-nos que as sociedades em conta de partici-pação, para fins tributários, eram consideradas também despersonalizadas, não sendo, portanto, tributadas. Assim, “(...) a modalidade de investimento comum 22 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 5. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil e alte-rações da LSA. São Paulo: Saraiva, v. 2, 2002, p. 477.

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apresentava, em relação às sociedades empresárias, uma vantagem, do ponto de vista do planejamento fiscal”.

Contudo, o Decreto-Lei 2.303, de 21 de novembro de 198623, alterou a legis-lação tributária e determinou que as sociedades em conta de participação equipara-vam-se, para fins da legislação do imposto de renda, às pessoas jurídicas, in verbis:

Art. 7º Equiparam-se a pessoas jurídicas, para os efeitos da legisla-ção do imposto de renda, as sociedades em conta de participação.Parágrafo único. Na apuração dos resultados dessas sociedades, assim como na tributação dos lucros apurados e dos distribuídos, serão observadas as normas aplicáveis às demais pessoas jurídicas.

Dessa maneira, as sociedades em conta de participação passaram a ser tri-butadas como pessoas jurídicas, o que determinou, por consequência, o seu quase desaparecimento do mundo dos negócios por alguns anos24.

Anos mais tarde, em vista do disposto no artigo 7º do Decreto-Lei 2.303/86, que equiparara as sociedades em conta de participação às pessoas jurídicas em geral, o Decreto 3.000/9925, por sua vez, evidenciou o caráter autônomo dessa sociedade em relação a seu sócio ostensivo, para fins de apuração e recolhimento do IRPJ, uma vez que a escrituração das operações da sociedade em conta de participação poderia, a depender da opção do sócio ostensivo, ser efetuada nos livros deste ou em livros próprios desde que quando fossem ser utilizados os livros do sócio ostensivo, os registros contábeis fossem realizados de modo a evidenciar os lançamentos relativos à sociedade em conta de participação.

Atualmente, no que diz respeito ao tratamento tributário aplicável às so-ciedades em conta de participação, a matéria encontra-se normatizada no De-creto 9.580/201826 e, no âmbito administrativo, nas Instruções Normativas RFB 1.863/2018 e 1.700/2017.23 BRASIL. Decreto-Lei 2.303, de 21 de novembro de 1986. Altera a legislação tributária federal, e dá outras pro-vidências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 nov. 1986. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del2303.htm>. Acesso em: 16 abr. 2019.24 FINKELSTEIN, Maria Eugenia. Direito empresarial. Vol. 20. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 58.25 BRASIL. Decreto 3.000, de 26 de março de 1999. Regulamenta a tributação, fiscalização, arrecadação e admi-nistração do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 29 mar. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del2303.htm>. Acesso em: 16 abr. 2019.26 BRASIL. Decreto 9.580, de 22 de novembro de 2018. Regulamenta a tributação, a fiscalização, a arrecadação e a administração do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 23 nov. 2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9580.htm>. Acesso em: 16 abr. 2019.

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Podemos vislumbrar, pelo disposto na legislação tributária, que a tributa-ção dos resultados das sociedades em conta de participação deve ser realizada em nome do sócio ostensivo, competindo a este a responsabilidade pela apura-ção e declaração dos resultados da sociedade, assim como, pelo recolhimento dos tributos devidos.

Diferentemente do quanto praticado quando da vigência do Decreto 3.000/99, a contabilidade da sociedade em conta de participação e seus lança-mentos contábeis não apresentam mais uma forma simplificada27. A escrituração das operações das sociedades em conta de participação deverá ser efetuada em livros próprios, ou seja, de forma individualizada, ainda que vinculada ao do sócio ostensivo, nos termos do artigo 269 do Decreto 9.580/2018.

No que se refere à inscrição da sociedade em conta de participação no CNPJ – Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, a Instrução Normativa RFB 1.470/201428 revogou dispositivo constante da Instrução Normativa SRF 179/8729 que dispensa-va a inscrição das sociedades em conta de participação no CNPJ.

Assim sendo, desde então, a exigência comum a todas as pessoas jurídicas – e equiparadas – foi estendida também às sociedades em conta de participação. A Instrução Normativa RFB 1.863/2018, que dispõe atualmente sobre o CNPJ, trata da inscrição das sociedades em conta de participação, disciplinando que estas são obrigadas a se inscrever no CNPJ, de forma vinculada aos sócios ostensivos.

Muitos se perguntam se a obrigatoriedade de inscrição das sociedades em conta de participação no CNPJ não acabaria com o seu aspecto sigiloso. Entende-mos que não vis-à-vis o quanto previsto na legislação tributária atualmente em vi-gor. Em termos práticos, o acesso do público em geral aos dados de uma sociedade inscrita no CNPJ se dá por meio de consulta ao seu “Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral” e respectivo “Quadro de Sócios e Administradores – QSA”, dis-poníveis na página da Secretaria da Receita Federal do Brasil na Internet, documen-tos dos quais não constam informações, nos casos das sociedades em conta de participação, acerca da sua composição societária mas tão somente acerca de seu 27 FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis. Sociedade em conta de participação. In: FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis; PRO-ENÇA, José Marcelo Martins (coord.). Direito societário: tipos societários. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 165.28 BRASIL. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Instrução Normativa RFB 1.470, de 30 de maio de 2014. Dis-põe sobre o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=52901&visao=anotado>. Acesso em: 17 abr. 2019.29 BRASIL. Secretaria da Receita Federal. Instrução Normativa SRF 179, de 30 de dezembro de 1987. Dispõe sobre as normas de tributação das sociedades em conta de participação. Disponível em: <http://www.normas-legais.com.br/legislacao/instrucao-normativa-in-srf-179-1987.htm>. Acesso em: 17 abr. 2019.

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sócio ostensivo. Ou seja, a privacidade dos sócios participantes continuará sendo mantida vez que por dever legal compete ao Fisco Federal manter tais informações em sigilo, nos termos do quanto previsto no artigo 198 da Lei 5.172/66 – Código Tributário Nacional30, in verbis:

Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. (grifo nosso)§ 1o Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes:I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça;II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Admi-nistração Pública, desde que seja comprovada a instauração regu-lar de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a infor-mação, por prática de infração administrativa.

Dessarte, em vista do quanto estabelecido no Código Tributário Nacional, as informações relativas à participação do sócio na sociedade em conta de participa-ção deverão, como regra geral, ser mantidas sob sigilo pela Secretaria da Receita Federal, apenas podendo ser objeto de divulgação nos casos expressamente en-quadrados nas hipóteses dos incisos I e II acima.

Para que seja realizada a inscrição no CNPJ deverá ser encaminhada à Se-cretaria da Receita Federal do Brasil cópia do documento que comprove a existên-cia da sociedade em conta de participação assinado entre os sócios ostensivo e participante. Tal documento será utilizado apenas para a efetivação da inscrição no CNPJ sendo que as informações relativas à composição da sociedade em conta de participação deverão ser protegidas por sigilo fiscal.

4 Aspectos Processuais

Assunto de peculiaridade ímpar é o que se refere ao tratamento processual dado às sociedades em conta de participação em decorrência de sua ausência de 30 BRASIL. Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o sistema tributário nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 27 out. 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172Compilado.htm>. Acesso em: 13 mai. 2019.

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personalidade jurídica. Nesse sentido, reporta-nos Maria Eugenia Reis Finkelstein que “(...) tem-se como pacífico o fato de que a sociedade em conta de participação pode ocupar o polo passivo da relação processual”31. De acordo com o disposto no artigo 75, IX, do Código de Processo Civil de 2015, a sociedade sem personalidade jurídica será representada em juízo pela pessoa a quem couber a administração de seus bens, ou seja, o sócio ostensivo.

Note-se que a questão da citação da sociedade em conta de participação, contudo, é de difícil solução. Inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça – STJ que não há que se falar em citação de sociedade em conta de participação, vejamos:

SOCIEDADE EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO. EMBARGOS DE DECLA-RAÇÃO. DISSOLUÇÃO. NOMEAÇÃO DE LIQUIDANTE. CITAÇÃO DA SOCIEDADE CONSTITUÍDA. INDENIZAÇÃO.(...)2. Não há que se falar em citação da sociedade em conta de partici-pação, que não tem personalidade jurídica, nem existência perante terceiros. (grifo nosso)(Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 474704/PR, 3ª T., Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 17-12-2002)32

Obviamente que cada um dos participantes de uma sociedade em conta de participação pode propor ação judicial, de forma individualizada, em nome próprio:

COMERCIAL. SOCIEDADE EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO. RELAÇÕES INTERNAS.Os participantes da sociedade em conta de participação podem, individualmente e em nome próprio, propor ações em Juízo para di-rimir controvérsias sobre as respectivas relações internas. Recurso especial conhecido e provido.(Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 85240/RJ, 3ª T., Rel. Ministro Ari Pargendler, j. 19-11-1999).

É pacífica também a possibilidade do sócio participante poder propor ação de prestação de contas em face do sócio ostensivo. Nesse sentido, assim decidiu o STJ acerca do assunto:31 _____________. Sociedade em conta de participação. In: FINKELSTEIN, Maria Eugenia Reis; PROENÇA, José Marcelo Martins (coords.). Direito societário: tipos societários. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 166. 32 NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto Ferreira; BONDIOLI, Luís Guilherme Aidar; FONSECA, João Fran-cisco Naves. Código Civil e legislação civil em vigor. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 373.

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SOCIEDADE EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO – PEDIDO DE PRESTA-ÇÃO DE CONTAS FORMULADO PELO SÓCIO OCULTO. AS CONTAS DEVERÃO SER PEDIDAS AO SÓCIO OSTENSIVO QUE ADMINISTRA OS FUNDOS COMUNS. SENDO AQUELE UMA PESSOA JURÍDICA, ESTA ACHA-SE OBRIGADA À PRESTAÇÃO DE CONTAS.(Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 23502/SP, 3ª T., Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, j. 13-9-1993).

No campo falimentar, não sendo a sociedade em conta de participação dota-da de personalidade jurídica não há que se cogitar em sua falência. Os seus sócios podem falir, não a sociedade33.

De acordo com o Código Civil, a falência do sócio ostensivo acarreta a dis-solução da sociedade e a liquidação da respectiva conta cujo saldo constituirá cré-ditos de natureza quirografária a serem habilitados no processo falimentar. Trata-se de solução coerente com a definição de que as contribuições dos sócios ostensivo e participante constituem patrimônio especial, dentro do patrimônio geral do sócio ostensivo, objeto da conta de participação relativa aos negócios sociais.

Dessa maneira, caberá ao sócio participante habilitar-se no processo de falência do sócio ostensivo, caso haja saldo positivo a seu favor, decorrente da liquidação da conta de metade.

Assim sendo, se o sócio ostensivo, incorporador ou construtor, responsável pela construção de um empreendimento imobiliário, falir, ao sócio participante ca-berá apenas e tão somente habilitar-se no processo de falência, como anteriormen-te mencionado, uma vez que a falência do sócio ostensivo acarreta a dissolução da sociedade e a liquidação da respectiva conta. Por seu turno, aos adquirentes das futuras unidades autônomas, caso a incorporação não tenha sido submetida pelo incorporador ao regime da afetação, nos termos do disposto na Lei 10.931/200434, haverá dois caminhos a serem seguidos pelos aludidos adquirentes: (i) habilitarem os seus créditos frente ao juízo universal da falência; ou (ii) criarem uma comissão com a finalidade de darem prosseguimento às obras do empreendimento mediante a contratação de uma nova incorporadora ou construtora.33 GALIZZI, Gustavo Oliva. Op. cit., p. 175.34 BRASIL. Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobi-liárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei no 911, de 1o de outubro de 1969, as Leis no 4.591, de 16 de dezembro de 1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 03 ago. 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.931.htm>. Acesso em: 15 mai. 2019.

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Na hipótese de falência do sócio participante, a manutenção da sociedade em conta de participação dependerá de decisão do síndico da massa falida, que po-derá optar pela sua manutenção ou extinção, e neste caso, havendo outros sócios participantes, a sociedade continuará em relação a esses35.

A extinção da sociedade em conta de participação se dá quando termina o seu objeto, o negócio para o qual foi constituída, devendo, na ocasião, o sócio os-tensivo prestar contas aos sócios participantes. Caso não seja realizada a prestação de contas pelo sócio ostensivo, o sócio participante poderá exigi-la pela via judicial, limitando-se à exibição de documentos que sejam relacionados à participação do requerente no negócio, tais como livros-diário, livros-razão e balanços contábeis.

Nos termos do artigo 996 do Código Civil, aplica-se à sociedade em conta de participação, subsidiariamente e no que com ela for compatível, as normas que regem as sociedades simples. A sua liquidação rege-se pelas normas relativas à prestação de contas, na forma da lei processual. Caso haja mais de um sócio osten-sivo, as respectivas contas serão prestadas e julgadas no mesmo processo.

5 Aplicação Prática nos Negócios Imobiliários

5.1 Aspectos gerais

As sociedades em conta de participação, como mencionamos acima, vêm sendo cada vez mais utilizadas em diversos segmentos da economia, inclusive na estruturação de negócios imobiliários.

Tais sociedades, a despeito do termo “sociedade” trazido em sua denomi-nação, possuem natureza contratual, o que, no dia-a-dia dos negócios imobiliários, admite uma extensa liberdade de contratar para as partes envolvidas – sócios os-tensivo e participante.

Diferentemente das estruturas societárias, consubstanciadas pelas socie-dades personificadas, regidas por extensos e complexos diplomas jurídicos, como o Código Civil e a Lei das Sociedades por Ações – Lei 6.404/76, as sociedades em conta de participação, não personificadas, possuem a maleabilidade neces-sária à estruturação de negócios imobiliários nos quais admite-se uma estrutura mais enxuta e menos formal em comparação àquelas existentes nas sociedades personificadas.35 ATTIE, Paulo. Op. cit.

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Assim sendo, tendo em mente os ensinamentos de Marcelo Barbaresco36, avaliaremos neste capítulo “(...) questões relacionadas aos contornos considerados como limítrofes e que os contratantes possuem ao estabelecerem as bases dos negócios jurídicos, ou seja, os limites da autonomia privada e que devem ser obser-vados quando das tratativas e das respectivas estruturações que dela decorrerem”.

Apenas para rememorarmos alguns conceitos trazidos nos capítulos anterio-res, as sociedades em conta de participação possuem algumas características que as distinguem das demais sociedades, de modo que por muitos, em vista dessa diversidade, são tratadas não como sociedades, mas sim como contratos de par-ceria, de investimento ou algo similar. No entanto, para fins práticos, que é o que se pretende explorar neste capítulo, os principais pontos que destacamos com relação a tal sociedade são os seguintes:

O objeto da SCP é exercido apenas pelo sócio ostensivo

O objeto é exercido no nome do sócio ostensivo e sob sua própria e exclusiva responsabilidade

Pode haver mais de um sócio ostensivo – pessoa jurídica ou física em uma SCP

Apenas o sócio ostensivo se relaciona com terceiros

Sócios participantes investem e participam dos resultados da SCP

Participação nos resultados, conforme definido no documento constitutivo da SCP

Constituição da SCP independe de formalidades podendo ser constituída inclusive por contrato verbal

Não possui personalidade jurídica

Natureza contratual privada e sigilosa

Contabilidade segregada da do sócio ostensivo

Novos sócios apenas podem ser admitidos se houver concordância dos demais ou previsão expressa no contrato social

Dessa forma, abordaremos, no presente capítulo, as principais “disposições contratualmente estruturais e costumeiramente aplicáveis quando do nascimento destes negócios jurídicos imobiliários e que operam como disposições ‘privadas normativas’ que se dirigem à essência do poder central do negócio objeto do acor-do associativo”, consoante os ensinamentos de Marcelo Barbaresco.37

36 BARBARESCO, Marcelo. Compropriedade e sociedade: estrutura, segurança e limites da autonomia privada. São Paulo: Almedina Brasil, 2017, p. 159.37 BARBARESCO, Marcelo. Op. cit., p. 162.

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5.2 A aplicação prática das sociedades em conta de participação nos negócios imobiliários

Como vimos anteriormente, as sociedades em conta de participação pos-suem inúmeras vantagens para aqueles que as utilizam no desenvolvimento de negócios imobiliários, ora pela ausência de necessidade de registro em órgãos pú-blicos, ora pela sua maleabilidade e sigilo quanto à participação dos sócios partici-pantes, uma vez que apenas o sócio ostensivo revela-se perante terceiros.

Quando da concepção de uma sociedade em conta de participação para a consecução de um empreendimento imobiliário, determinadas disposições con-tratuais, de caráter essencialmente normativo, que regrarão as relações entre os sócios ostensivos e os participantes, poderão ser inseridas no instrumento de cons-tituição da sociedade em conta de participação.

A seguir, descrevemos algumas das principais disposições que, a nosso ver, deverão ser observadas quando da elaboração dos documentos de constituição de uma sociedade em conta de participação vis-à-vis a sua aplicação nos negócios imobiliários:

5.2.1 Da delimitação do objeto social

As partes, sócios ostensivo e participante, deverão estabelecer e delimitar, de forma clara e precisa, a qual negócio imobiliário a sociedade em conta de parti-cipação se refere.

Assim sendo, os sócios deverão definir, no documento constitutivo da socie-dade em conta de participação, o maior número possível de elementos, tais quais:

(i) o bem imóvel ou o negócio imobiliário em questão;

(ii) as características do empreendimento ou suas premissas fundamentais; e

(iii) a inserção deste imóvel ou negócio em outros e suas interfaces com ou-tros empreendimentos, tais como, shopping centers, empreendimentos residenciais, não-residenciais, entre outros.

Dessa maneira, importante que o documento constitutivo traga informações sobre o empreendimento imobiliário objeto da sociedade em conta de participação – loteamento, incorporação imobiliária e/ou shopping center, o número da matrícula do imóvel, por exemplo, com o intuito de delimitar ao máximo o seu objeto, assim como, as informações disponíveis sobre o empreendimento que pretende se erigir no imóvel.

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5.2.2 Da participação dos sócios na sociedade em conta de participação

Primordial que sejam definidos os percentuais de participação dos sócios, ostensivo e participante, na sociedade em conta de participação.

A inclusão de tais percentuais é importante para que sejam definidas as participações dos sócios nos resultados, assim como, nos custos e nas despesas da sociedade em conta de participação.

Os custos e despesas incluem aquelas necessárias, a título meramente ilustrativo, ao registro da incorporação imobiliária; à contratação das empresas de publicidade que farão as campanhas de divulgação do empreendimento; à contra-tação de consultores jurídicos e de contadores; pagamento de tarifas bancárias, entre outras relativas ao desenvolvimento do empreendimento objeto da sociedade em conta de participação.

5.2.3 Da instituição de comitês

Comitês poderão ser instituídos, no âmbito das sociedades em conta de par-ticipação, tais quais os conselhos de administração ou os comitês nas sociedades personificadas.

Tais comitês têm a finalidade primordial de distribuir entre pessoas qualifica-das em determinados assuntos (fiscais, contábeis, obras, auditoria, etc.) a decisão acerca de certos assuntos da sociedade em conta de participação.

Recomendamos que os comitês adotem, por analogia, a forma de funcionamen-to dos conselhos de administração, tais quais os existentes nas sociedades por ações.

Dessa forma, importante que o documento constitutivo descreva, de forma detalhada, os seguintes pontos, sem prejuízo de outros a serem objeto de discus-são entre os sócios quando da formação da sociedade em conta de participação: (i) a forma de funcionamento do comitê; (ii) a sua competência que poderá ser, entre tantas outras, a de decidir sobre assuntos estratégicos da sociedade como, por exemplo, a aquisição de um novo imóvel ou a alteração das características iniciais do empreendimento; (iii) o número de membros e a forma de sua eleição ou substituição, sendo que, nesses casos, recomendamos que participem de tais comitês pessoas que conheçam, com a profundidade necessária, o mercado imo-biliário sob os mais diversos ângulos – administradores, engenheiros, advogados, entre outros; e (iv) se o comitê possuirá um presidente e, se este, terá voto de minerva (desempate) nas suas deliberações.

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Conclusão

A despeito de toda a polêmica envolvendo a natureza jurídica das socieda-des em conta de participação, temos que essas possuem caráter contratual, o que privilegia a autonomia das partes com relação ao estabelecimento das disposições que regulam as relações entre os sócios ostensivos e participantes, tornando-as os veículos ideais para a instituição, o desenvolvimento e a exploração de empreendi-mentos imobiliários em geral.

Pudemos demonstrar neste artigo a possibilidade de utilização da socieda-de em conta de participação no âmbito empresarial, notadamente, nas atividades imobiliárias.

Sem sombra de dúvidas as sociedades em conta de participação, compa-rativamente às sociedades personificadas, afastam uma série de inconvenientes e burocracias relacionadas à constituição e manutenção destas, assim como, outras formas de fomento da atividade empresarial existentes no mercado. As sociedades em conta de participação possibilitam ao empreendedor reduzir, de forma drástica, os gastos com os custos inerentes às sociedades personificadas e libera os seus sócios, ostensivos e participantes, do forte vínculo que se estabelecem entre os sócios de uma sociedade personificada.

A sua maleabilidade permite formas de parceria mais adequadas a em-preendimentos que demandam maior flexibilidade na sua estrutura e celeridade na constituição.

Dessa maneira, indubitavelmente, afigura-se o velho instituto das socieda-des em conta de participação, por conta do seu recente renascimento nas relações empresariais, meio propicio para a captação de recursos financeiros necessários ao desenvolvimento dos mais variados empreendimentos imobiliários, desde os mais simples até as estruturações mais complexas.

Referências Bibliográficas

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Felipe Varela Hollanda1

Resumo

O presente artigo (“Artigo”) pretende, inicialmente, conceituar juridicamente tanto o instituto da transferência do direito de construir (“TDC”) quanto o instituto do tombamento e, em seguida, apresentar o arcabouço normativo que rege tais instrumentos. Em seguida, serão analisadas as legislações municipais das cidades de Curitiba/PR, São Paulo/SP e Porto Alegre/RS, apontando-se as suas qualidades e seus defeitos. Por fim, o Trabalho trará quais critérios, limites e obrigações trazidas por tais normas poderiam e deveriam ser replicadas nos municípios que possuem a TDC como ferramenta de política urbana.

Palavras-chave

Transferência do direito de construir – tombamento de imóveis – políticas urbanas.

Abstract

This article (“Article”) will initially provide the legal concepts regarding build-ing rights transfer and historical and cultural real estate protection in Brazil, as well as introduce to us the legal basis for its application. Following that, laws and regula-tions from Curitiba/PR, São Paulo/SP and Porto Alegre/RS’s Municipalities will be 1 É formado pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, em 2012, e pós-graduado em Direito Imobiliário pelo GVLaw, em 2018. Atualmente é advogado especializado em consultivo imobiliário no escritório Amaral e Nicolau Advogados.

A TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR COMO INSTRUMENTO

INDUTOR DA PROTEÇÃO DE IMÓVEIS TOMBADOS

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analyzed, regarding its qualities and flaws. Finally, this Article will show which crite-ria, limits and obligations brought by such laws should be replicated in other cities that have building rights transfer laws as a tool for urban policy.

Keywords

Building rights transfer – historical and cultural real estate protection – urban policies.

Sumário

1 Introdução; 2 O tombamento de imóveis no Brasil; 3 Um breve histórico da TDC; 4 A TDC nos municípios de São Paulo-SP, Curitiba-PR e Porto Alegre-RS após o Estatuto da Cidade; 4.1 A TDC em Curitiba-PR; 4.2 A TDC em São Paulo-SP; 4.2 A TDC em Porto Alegre-RS; 5 As medidas adotadas são eficazes?; Conclusão; Referências bibliográficas.

Introdução

Ao longo do século XX, o Brasil vivenciou um crescimento exponencial das aglomerações urbanas, resultando na formação não planejada de diversas metró-poles espalhadas pelo país. Essa explosão geográfica e demográfica levou ao cres-cimento desordenado da maioria das cidades, sem qualquer planejamento urbanís-tico2. Foi somente a partir de meados da década de 80 e após a promulgação da Constituição Federal de 1988 que o Estado passou a de fato preocupar-se com esta situação, estabelecendo que municípios com determinada população instituíssem uma política urbana e promulgassem um plano diretor.

A partir desse momento, e com a entrada em vigor do Estatuto da Cida-de, em 2001, diversos instrumentos de política urbana tiveram a sua aplicação intensificada, tais como as operações urbanas consorciadas, o IPTU progressivo, o parcelamento ou edificação compulsórios, os certificados de potencial adicional de construção, dentre outros. Um desses instrumentos foi a transferência do direito de construir, cuja aplicação será analisada no presente artigo, especificamente para as cidades de Curitiba-PR, São Paulo-SP e Porto Alegre-RS.2 Entre as capitais dos estados, as únicas criadas de forma planejada foram Brasília-DF, fundada em 1960, e Palmas-TO, fundada em 1989.

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Ao longo daquele mesmo século, foi implementado, no Brasil, arcabouço legislativo com o objetivo de proteger imóveis que possuíssem determinado valor histórico e cultural, por meio do instituto do tombamento. Com o seu advento, pudemos, pela primeira vez, utilizar-nos de uma restrição ao direito de propriedade como forma de preservação de bens cuja conservação era essencial para que man-tivéssemos acesa a história e cultura de outrora, fundamentais para a memória de determinadas comunidades.

Em que pese o conceito do tombamento ser interessante, por outro lado, os proprietários de imóveis aterrorizam-se até hoje com a possibilidade de que seus imóveis sejam tombados. Caso isso ocorra, estariam impedidos de aliená-los para um empreendedor que quisesse erigir um edifício nele e nos imóveis contíguos, por exemplo. Também teriam muito mais dificuldade em realizar pequenas reformas, já que dependeriam da aprovação do órgão que realizou o tombamento.

Dentro desse contexto, este artigo irá mostrar como a transferência do direi-to de construir vem sendo aplicada para imóveis tombados, como forma de instru-mento urbanístico que, além de equilibrar a demanda e a oferta de potencial cons-trutivo, abranda os possíveis prejuízos aos proprietários sujeitos ao tombamento.

2 O tombamento de imóveis no Brasil

A história do tombamento no Brasil inicia-se na década de 30 do século passado, quando, com a promulgação da Constituição Federal de 1934, foi estabe-lecida pela primeira vez a necessidade de a propriedade cumprir com a sua função social3. Além disso, também previu-se como competência da União a proteção ao patrimônio histórico e artístico4 do Brasil, algo que não existia anteriormente.

A partir desse momento, foram iniciadas diversas discussões parlamenta-res, com o propósito de se promulgar uma lei que regesse o tombamento de bens, termo este derivado de Portugal, onde bens com valor histórico e cultural eram inscritos em seus respectivos “Livros de Tombo”.3 CF/34, Art. 113, Inciso 17: É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o inte-resse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.4 CF/34, Art 148: Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual.

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Em um segundo momento, o governo federal iniciou discussões para a cria-ção de um instituto que fosse responsável por aplicar tal previsão constitucional, dando origem ao “Serviço do Patrimonio Historico e Artístico Nacional”5.

Após o golpe que deu origem ao Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, o governo federal aproveitou o fato de que as discussões legislativas já estavam em fase final e, em 30 de novembro de 1937, editou o Decreto-Lei n. 25. Tal norma ficou conhecida como a “Lei de Tombamento” e é, até hoje, o disposi-tivo legal que rege o tombamento no país, à parte as inúmeras leis estaduais e municipais sobre o tema.

Desde a sua promulgação, há quase 81 anos, as únicas alterações significa-tivas em seu texto foram realizadas com a entrada em vigor do Código de Processo Civil em 2015, que revogou integralmente o seu art. 22, ao excluir o direito de preferência da União, Estados e Municípios – nessa ordem – para a aquisição de imóveis tombados que estejam sendo alienados entre particulares6. Com isso, não há mais a necessidade de o proprietário de imóvel tombado oferecer seu imóvel aos entes públicos, quando da sua negociação com terceiros, tornando-se este livremente alienável.

Na Constituição Federal Brasileira de 1988, o art. 216 especificou o que poderia ser considerado patrimônio cultural brasileiro, e tem a seguinte redação:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de nature-za material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, por-tadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:(...)

5 Lei Federal n. 378/37, Art. 46: Fica creado o Serviço do Patrimonio Historico e Artístico Nacional, com a finali-dade de promover, em todo o Paiz e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimonio historico e artístico nacional.6 Decreto-Lei n. 25/37, Art. 22: Em face da alienação onerosa de bens tombados, pertencentes a pessôas naturais ou a pessôas jurídicas de direito privado, a União, os Estados e os municípios terão, nesta ordem, o direito de preferência.

§ 1º Tal alienação não será permitida, sem que prèviamente sejam os bens oferecidos, pelo mesmo preço, à União, bem como ao Estado e ao município em que se encontrarem. O proprietário deverá notificar os titulares do direito de preferência a usá-lo, dentro de trinta dias, sob pena de perdê-lo.

§ 2º É nula alienação realizada com violação do disposto no parágrafo anterior, ficando qualquer dos titulares do direito de preferência habilitado a sequestrar a coisa e a impôr a multa de vinte por cento do seu valor ao transmitente e ao adquirente, que serão por ela solidariamente responsáveis. A nulidade será pronunciada, na forma da lei, pelo juiz que conceder o sequestro, o qual só será levantado depois de paga a multa e se qualquer dos titulares do direito de preferência não tiver adquirido a coisa no prazo de trinta dias.

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IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artís-tico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras for-mas de acautelamento e preservação.

Conceituando-o juridicamente, o tombamento é ato administrativo rea-lizado por determinados órgãos do poder público – podendo ser feito concor-rentemente por uma ou mais das três esferas, federal, estadual e municipal7 –, com o objetivo de resguardar bens imóveis ou móveis com valores históricos, culturais ou artísticos, sem que ocorra a transferência de sua titularidade ao ente público.

Ao impor tal ato aos proprietários, restringe-se o seu direito de propriedade com o objetivo de cumprir a sua função social. Caso não tivéssemos tal dispositivo, estaríamos totalmente sujeitos à destruição e deterioração de todo e qualquer bem de propriedade privada que tivesse valor histórico, cultural ou artístico para a popu-lação ou para a conservação da memória de cidades, por exemplo.

Quanto aos bens imóveis, objeto do presente artigo, outra solução para a preservação de tais valores seria a desapropriação, pelos entes públicos, de tais propriedades, por meio do correspondente pagamento a seus respectivos proprie-tários. Porém, é mais do que sabido que, assim como em outros lugares do mundo, o Estado brasileiro não possui recursos suficientes para desapropriar e indenizar todos os donos de tais imóveis. E, mesmo que o tombamento de bens privados não venha acompanhado de desapropriação, outro problema existente é a falta de recursos dos próprios proprietários.

Ora, de nada adianta inscrever determinado imóvel no Livro de Tombo e realizar a averbação de seu tombamento na matrícula se não houver mecanismos que incentivem o proprietário a preservá-lo. Também não adianta apenas impor multas ou requerer indenizações em caso de não preservação e manutenção, 7 Há, também, a possibilidade de que o tombamento seja feito por órgão internacional, qual seja, a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, fundada em 4 de novembro de 1946 e com sede em Paris, França. Como exemplo de sítio público tombado no Brasil por tal entidade, temos o Cais do Valongo, no Município do Rio de Janeiro-RJ, que sofre com a falta de ações estatais, conforme a seguinte notícia: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/tombado-pela-unesco-cais-do-valongo-aguarda--acoes-de-conservacao. Acesso em 3 de agosto de 2018.

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pois o proprietário não possui recursos infinitos para cuidar do bem da forma como o ente público entende como necessário, especialmente face às restrições de seu uso e aproveitamento.

É por tal razão que uma das soluções para aumentar a quantidade de imóveis tombados que estejam de fato bem mantidos e preservados é a utilização de ins-trumentos urbanísticos, como a TDC relativa a tais bens, cujo histórico e aplicação serão desenvolvidos no próximo capítulo.

3 Um breve histórico da TDC

A Transferência do Direito de Construir, embora hodiernamente já seja ins-tituto devidamente normatizado por diversos municípios do país, tem aplicação recente.

Sua origem está na separação entre o direito de propriedade e o direito de construir, que surge em meados da década de 70 do século passado nas doutrinas urbanísticas italiana – por meio da consolidação do princípio da inedificabilidade dos terrenos8 – e francesa – através do desenvolvimento do “plafond legal de densité” (em tradução própria, “parâmetro legal de densidade”), pelo qual o proprietário poderia, em decorrência de seu direito de propriedade, utilizar o direito de construir nela com coeficiente de aproveitamento “1” – ou seja, apenas poderia construir a quantidade de metros quadrados correspondente à área do terreno.

A partir dessa divisão, começa a surgir uma série de mecanismos mundo afora através dos quais é permitido ao ente público alienar o direito de construir a entes particulares. No caso de Paris, era responsabilidade das comunas, equiva-lente menor dos municípios brasileiros, comercializar o direito de construir aos pro-prietários que quisessem edificar acima do coeficiente de aproveitamento máximo estabelecido por lei.

Já a comercialização do direito de construir em decorrência de imóvel com restrições urbanísticas surge na Cidade de Chicago, nos Estados Unidos, também na década de 70 do século passado. A configuração da urbanização de tais cidades americanas, com os prédios comerciais localizados em geral em seu centro e a zona residencial localizada fora dele, parecia tornar mais inteligível a sua compara-ção e futura aplicação em municípios brasileiros.8 Conforme a Lei Federal Italiana n. 10, de 28/01/1977, o pressuposto era de que não era possível ao proprietário usufruir do direito de construir sobre a sua propriedade sem autorização expressa dos entes públicos.

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Na Cidade de Chicago, diversos imóveis possuíam restrições urbanísticas em decorrência de sua caracterização enquanto patrimônio histórico ou cultural (uma espécie de tombamento, sem esta denominação), especificamente em re-giões centrais, onde a densidade e o coeficiente de aproveitamento dos terrenos eram altos.

Assim, foi desenvolvido o instituto do “space adrift” (tradução própria para “espaço flutuante”), pelo qual os proprietários dos imóveis com tais restrições po-diam comercializar, por meio de uma plataforma gerida e organizada pelo municí-pio, o potencial construtivo excedente. Com isso, por uma das primeiras vezes na história dava-se um incentivo econômico para que o proprietário de tais bens os preservasse.

Foi a partir da discussão acima que foi realizado seminário no Brasil, em 1976, com o nome de “Solo Criado”. Nele, urbanistas americanos vieram ao Brasil explicar o seu conceito, baseado na experiência de Chicago.

Um dos palestrantes, o americano John Costonis9, assim explicitou à época (tradução própria):

O valor de uma propriedade imobiliária é, em grande parte, devido ao direito de nela construir. Mas se o edifício for tombado como monumento histórico, esse direito é perdido (...). Talvez, se reformu-lássemos o nosso conceito de propriedade, fosse possível enfrentar esse conflito aparentemente sem solução hoje em dia. Imaginemos que o prédio na frente desta fotografia é um marco histórico, com direito de construção não utilizado, representado em verde. Imagi-nemos que, quando este edifício fosse tombado como monumento histórico, permitíssemos a transferência dos direitos de construir no local para o terreno adjacente, concedendo, assim, que o ter-reno contíguo possa acumular a densidade a que teria o direito o primeiro terreno. O pagamento que o dono do monumento histórico iria receber por esses direitos transferidos representaria uma com-pensação adequada. O construtor que compra esses direitos estaria comprando um bem com determinado valor. Os custos para a cidade seriam, simplesmente, os custos para regulamentar a transferência. Poderemos, assim, conservar o nosso monumento sem prejuízo para ninguém em particular.10

9 Professor americano nascido em Boston, Massachusetts, em 1936, formado pela Universidade de Harvard. Atualmente é professor emérito na Universidade de Direito da Louisiana (Louisiana State University).10 Solo Criado, Carta de Embu, p. 83. Consultada em 03 ago. 2018 em https://edisciplinas.usp.br/.

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Ora, me parece que a explicação acima consegue resumir exatamente como a aplicação da TDC para imóveis tombados tem efeitos economicamente vantajo-sos diferentes partes: (i) para o Estado, ao tornar desnecessário que este gaste recursos com a desapropriação de imóvel tombado, para fins de preservação (à ex-ceção da concorrência da TDC com outros institutos de política urbanística, cuja ex-plicação veremos no próximo capítulo); (ii) para o proprietário do imóvel tombado, ao permitir a este que receba recursos financeiros em decorrência das limitações administrativas aplicadas a seu imóvel; (iii) para o empreendedor que adquire o potencial construtivo, já que permitirá a este que construa mais metros quadrados no imóvel receptor, aumentando a sua expectativa de lucro com o empreendimen-to; e (iv) para a sociedade, que se beneficia pela presença de imóveis tombados devidamente mantidos e conservados.

Seguindo adiante com o desenvolvimento da TDC no Brasil, tivemos, com o Município de Curitiba, a primeira aplicação desse instrumento, já no início da déca-da de 80 do século passado. Lá, através da promulgação da Lei Ordinária Municipal n. 6.337, de 1982, foi implementado o instituto da Transferência do Potencial Cons-trutivo, com o objeto de proteger imóveis privados ou públicos classificados como “Unidades de Interesse de Preservação – UIPs”, especificamente para resguardar o patrimônio histórico da cidade11, desde que utilizassem os recursos obtidos para conservar e restaurar as suas instalações.

Em seguida, tivemos, com a Constituição Federal de 1988, o principal pano de fundo nacional para que institutos urbanísticos como a TDC pudessem ser utili-zados pelos municípios. Assim, o art. 182 dispôs o seguinte:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Po-der Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento bá-sico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” (grifos nossos).

11 Os primeiros imóveis no Município de Curitiba-PR que conseguiram obter recursos em decorrência da Trans-ferência do Potencial Construtivo foram a sede Central da Universidade Federal do Estado do Paraná, a sede da Casa Garibaldi e a Catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Luz.

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Com isso, a Constituição obrigou os municípios com mais de vinte mil habi-tantes a desenvolverem um plano diretor, de modo a regrar a política de desenvol-vimento e de expansão urbana de cada cidade.

Infelizmente, foi só a partir da promulgação do denominado “Estatuto da Cidade”12 que se especificaram os mecanismos urbanísticos que deveriam e pode-riam ser utilizados nos respectivos planos diretores e nas legislações municipais. Quanto à TDC, sua regra principal está descrita no art. 35:

Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorren-te, quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de:I – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histó-rico, ambiental, paisagístico, social ou cultural;III – servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de inte-resse social.§ 1º A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte dele, para os fins previs-tos nos incisos I a III do caput.§ 2º A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições relati-vas à aplicação da transferência do direito de construir. (grifos nossos).

Com a entrada em vigor do Estatuto e devido à previsão expressa possibili-tando a utilização do mecanismo da TDC, restou evidente que a criação das regras específicas para a TDC a partir dali era apenas questão de vontade das Câmaras Municipais país afora.

Ainda, o Estatuto foi mais longe, ao deixar clara a possibilidade de entes pri-vados alienarem, mediante escritura pública, o direito de construir, quando aplicável qualquer das hipóteses adiante descritas: (i) quando perder parte de sua área para a implementação de equipamentos públicos ou comunitários; (ii) quando o imóvel for tombado; (iii) quando o imóvel for utilizado para programas de regularização fundiária, para habitação de interesse social.

Feita a contextualização do instituto, a partir do próximo capítulo, analisare-mos como a TDC vem sendo utilizada, desde a promulgação do Estatuto da Cidade, nos municípios de Curitiba-PR, Porto Alegre-RS e São Paulo-SP.12 Lei Federal n. 10.257/2001.

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4 A TDC nos municípios de São Paulo-SP, Curitiba-PR e Porto Alegre-RS após o Estatuto da Cidade

De forma a realizar uma análise comparativa da aplicação e da legislação da TDC nos municípios brasileiros, foram escolhidos os três municípios mencionados acima.

A cidade de Curitiba-PR foi escolhida por ter sido, como já dito, pioneira em sua aplicação desde meados da década de 80 do século passado. A cidade de São Paulo-SP foi escolhida por ter aplicado, nos últimos anos, uma série de outros instrumentos urbanísticos, além da TDC, que foi objeto de restrição em 2016 após a intensificação de seu uso por empreendedores locais. Já a cidade de Porto Ale-gre-RS foi escolhida por apresentar legislação incipiente e peculiar em relação aos demais municípios.

Ou seja, as três cidades encontram-se, atualmente, em estágios diferentes no que concerne à utilização da TDC como ferramenta de criação de valor para propriedades tombadas. Iniciaremos com o Município de Curitiba-PR, cujo pano de fundo já foi descrito no capítulo anterior.

4.1 A TDC em Curitiba-PR

Após mais de uma década aplicando a TDC com base na legislação desen-volvida a partir do conceito de “Solo Criado”, o Município de Curitiba-PR promulgou a Lei Municipal n. 9.803, de 3 de janeiro de 2000, com o objetivo de ampliar o escopo de sua utilização na cidade. Uma de suas principais novidades foi admitir, em seu art. 3º, a transferência de potencial construtivo mediante convênios ou con-sórcios entre Curitiba e outros municípios que compõem a Região Metropolitana de Curitiba. Com isso, atendia-se a um dos principais usos da TDC naquela cidade: a proteção e preservação dos mananciais que abastecem a região.

Outra novidade foi a exigência de que constasse, quando da averbação da transferência do potencial construtivo na matrícula do imóvel cedente, as condições de proteção, preservação e conservação, quando fosse o caso. Tal obrigatoriedade evidencia o cuidado com o atendimento aos fins da TDC para imóveis tombados, ao tornar públicos os requisitos que tais imóveis deverão respeitar e vincular eventuais futuros adquirentes de tais bens, para que não venham alegar desconhecimento em relação aos compromissos assumidos pelos antigos proprietários em relação à manutenção e conservação do imóvel.

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Com a entrada em vigor do novo Plano Diretor de Curitiba-PR13, já é possível depreender o nível de importância que o município dá à TDC. Em primeiro lugar, rei-tera-se a possibilidade de realização de convênio ou consórcio entre os municípios da Região Metropolitana de Curitiba, com o objetivo de proteger e preservar os mananciais. Ainda, define-se, de antemão, as macrozonas da cidade cujos imóveis lá localizados poderão ceder ou receber potencial construtivo, de forma a limitar a sua utilização.

Além da restrição descrita acima, o referido plano diretor também im-pôs, de forma inédita, valores máximos de potencial construtivo que poderão ser acrescidos ao coeficiente de aproveitamento do imóvel receptor, a depender de sua localização. Desse modo, imóveis localizados em determinadas áreas14 ape-nas poderão aproveitar a transferência de potencial construtivo até determinado valor, de forma a não comprometer a infraestrutura urbana em sua região. Tal critério é urbanisticamente coerente, ao impedir que sejam construídos edifí-cios com nível de adensamento incompatível com a região onde estes se local-izarão, por meio da transferência desmedida de potencial construtivo para aquele empreendimento.

Quanto à transferência de potencial construtivo derivado de imóveis tomba-dos, o Decreto Municipal n. 1.850/2012 também estabeleceu critérios peculiares à legislação sobre o assunto no país. O primeiro diz respeito a um dos requisitos para a emissão da Certidão de Concessão de Potencial Construtivo:

Art. 3º, § 1º: A emissão da Certidão de Concessão de Potencial Construtivo dependerá do projeto de restauro da Unidade de Inte-resse de Preservação e expedição do alvará respectivo.

Tendo em vista o disposto acima, o ato administrativo da prefeitura, que au-toriza a transferência de potencial construtivo, não depende, apenas, da averbação 13 Lei Municipal n. 14.771/2015.14 Lei Municipal n. 14.771/2015, Art. 154: Os acréscimos máximos ao coeficiente de aproveitamento indicados na legislação de zoneamento, uso e ocupação do solo pela transferência do direito de construir serão proporcionais a infraestrutura existente, conforme o indicado abaixo:

a) eixos estruturantes: até 2 (dois);b) eixos de adensamento: até 2 (dois);c) áreas de ocupação mista: até 2 (dois);d) áreas com predominância de ocupação residencial de baixa densidade: até 1 (um);e) áreas com predominância de ocupação residencial de alta e média densidade: até 2 (dois);f ) áreas de ocupação controlada: até 1 (um);g) áreas com destinação específica: até 1 (um).

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do tombamento na matrícula. Depende, também, da apresentação à prefeitura, pelo proprietário do imóvel cedente, de projeto de restauro do imóvel, e expedição de seu respectivo alvará de aprovação. Dessa forma, vincula-se a concessão mu-nicipal ao início do cumprimento da lei pelo proprietário.

Caso assim não o fosse, esse poderia obter os recursos derivados da alien-ação do direito de construir apenas pelo fato de seu imóvel ser tombado, sem que devesse de fato realizar obras para restaurar o que fosse necessário.

Ainda, há disposição que autoriza uma primeira transferência de até 35% (trinta e cinco por cento) da totalidade do potencial construtivo, exatamente para o início das obras de restauro.

O segundo requisito trazido pela municipalidade de Curitiba-PR é consequên-cia natural do descrito acima, e está previsto no art. 5º da mesma norma:

Art. 5º, § 3º: A transferência da totalidade do potencial construtivo, somente será autorizada após a expedição do Certificado de Vistoria de Conclusão de Obras – CVCO referente ao restauro da UIP que originou o potencial.

De acordo com esse critério, o esgotamento da totalidade do potencial con-strutivo de determinado imóvel apenas poderá ser realizado após o término das obras de restauro, por meio da expedição do respectivo Certificado de Vistoria de Conclusão de Obras. Dessa forma, não basta a aprovação do projeto de restauro, para que seja permitido ao proprietário iniciar a transferência do potencial. É ne-cessário, também, que este termine a obra, de forma a poder alienar a totalidade do direito de construir.

Um último ponto da legislação municipal de Curitiba-PR merece atenção e, quem sabe, replicação em outros lugares. Em 2016, a Prefeitura sancionou a Lei n. 14.794/2016, que dispõe sobre a proteção do Patrimônio Cultural do município, instituindo o FUNPAC – Fundo de Proteção ao Patrimônio Cultural. Ao tratar de imóveis tombados, a lei traz uma série de incentivos a seus proprietários, de forma a auxiliá-los a cumprir com a lei – tais como a redução do IPTU incidente sobre o imóvel e o enquadramento em leis de incentivo a cultura. Quanto à TDC, o art. 44 assim dispôs:

Art. 44. O potencial concedido poderá ser restabelecido a cada 15 (quinze) anos, condicionada a boa conservação ou mediante apre-sentação de alvará de restauro do imóvel de valor cultural, nos ter-mos do regulamento próprio.

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Tal regra, além de inovadora, permite um contraponto a todos os requisi-tos já mencionados. Ora, toda e qualquer obra de manutenção ou conservação de imóvel não tem, por seu caráter intrínseco, prazo de validade indeterminado. Ainda mais quando nos referimos a imóveis tombados que, majoritariamente, são antigos e demandam conservação diária.

A depender de sua utilização – seja uma igreja, como local de encontro de fieis, seja um teatro restaurado, como local de realização de eventos artísticos –, podem estar mais sujeitos a deterioração do que imóveis que não sejam tombados. Por isso, seria incoerente que o incentivo objeto da TDC pudesse ser aplicado ape-nas uma vez, de forma a trazer recursos para apenas uma única obra de restauro do imóvel, que perdurasse por toda a sua vida útil.

Nesse sentido, concluímos que a legislação relativa à TDC em Curitiba-PR é criteriosa e didática, ao estabelecer parâmetros urbanísticos para a imposição de restrições à TDC – por exemplo, os limites de aumento no coeficiente de apro-veitamento, a depender da macrozona onde se localiza a propriedade –, e foca-da em cumprir com seu fim, qual seja, a conservação e preservação dos imóveis tombados.

4.2 A TDC em São Paulo-SP

A Transferência do Direito de Construir em São Paulo-SP foi prevista pela primeira vez, surpreendentemente, em 1984, alguns anos após os debates que levaram à publicação da Carta de Embu.

De acordo com a Lei Municipal n. 9.725, de 2 de julho de 198415, foi autori-zado a imóveis tombados transferir, mediante instrumento público, 60% (sessenta por cento) de seu potencial construtivo, desde que o imóvel receptor se localizasse no entorno do bem tombado e apenas em determinadas regiões da cidade.

Entretanto, talvez devido à falta de previsão expressa nos planos diretores estratégicos anteriores, talvez devido às restrições descritas acima, o instituto não foi utilizado, caindo em desuso durante quase duas décadas.

Em 2002, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo-SP, embora tenha trazido à baila diversos instrumentos jurídicos de política urbana, foi tímido em relação à 15 Lei Municipal n. 9.725/1984, Art.1º: O potencial construtivo dos imóveis de caráter histórico ou de excepcional valor artístico, cultural ou paisagístico, preservados por lei municipal, poderá ser transferido, por seus proprietá-rios, mediante instrumento público, obedecidas as disposições desta lei.

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transferência do direito de construir. Basicamente, foram replicados os dispositivos previstos no Estatuto da Cidade, e incluídos os critérios para cálculo dos valores de potencial construtivo passíveis de transferência.

Nada específico foi previsto em relação aos imóveis tombados, e apenas foi declarado que os proprietários de tais bens poderiam transferir a totalidade da diferença entre o potencial construtivo existente e o potencial construtivo máximo, respeitadas as disposições legais específicas às Operações Urbanas Consorciadas em que eventualmente se localizavam tais imóveis.

Em 2015, o cenário se alterou completamente. Com a entrada em vigor do novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo-SP16, surgiu um arcabouço normativo mais contundente para a TDC. Nele, foi ampliado o escopo da utilização da TDC, ao incluir a possibilidade de seu uso em propriedades particulares de interesse ambiental, situados em zonas de proteção ambiental definidas por lei.

Ademais, foram estabelecidos dois limites inéditos: (i) caso o potencial cons-trutivo passível de transferência de um imóvel ultrapasse 50.000,00m² (cinquenta mil metros quadrados), o excedente apenas poderá ser alienado gradativamente, por meio de 10 (dez) parcelas anuais; e (ii) a expedição da Certidão de Transferên-cia de Potencial Construtivo de imóveis tombados depende da anuência prévia do órgão municipal de preservação (CONPRESP).

Entretanto, tais limites não criaram nenhum impedimento maior à utilização desse instrumento urbanístico17, e os empreendedores paulistanos passaram a ad-quirir o potencial construtivo de proprietários de imóveis tombados, com o objetivo de aumentar o coeficiente de aproveitamento de futuros empreendimentos. Nessa toada, foi promulgado o Decreto Municipal n. 57.536/2016, por meio do qual foi regulado o procedimento administrativo para a transferência do direito de construir em casos nos quais não há doação do imóvel cedente.

Contudo, a Lei de Uso e Ocupação do Solo18 trouxe, na seção relativa às Zonas Especiais de Preservação Cultural – ou seja, nas quais se localizam imóveis 16 Lei Municipal n. 16.050 de 31 de julho de 2014.17 A única limitação principal foi estabelecida em 13 de outubro de 2015, por meio da Resolução n. 23/2015 do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – CON-PRESP, que esclareceu os procedimentos necessários para a obtenção, pelo proprietário de imóvel tombado, da anuência do referido conselho, para fins de cumprir o requisito para a emissão da certidão de transferência de potencial construtivo passível de transferência.18 Em cumprimento ao Plano Diretor Estratégico de 2015, foi promulgada a Lei Municipal n. 16.402/2016, regu-lando o uso e a ocupação do solo no município de São Paulo-SP.

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tombados –, dois pontos sensíveis, no que concerne à TDC. A primeira diz respeito ao estabelecimento de determinados “Fatores de Incentivo”19, quando do cálculo da quantidade de potencial construtivo passível de transferência. Resumidamente, quanto maior o imóvel tombado, menor o fator de incentivo para multiplicar pela quantidade de potencial construtivo de determinada propriedade. O segundo ponto refere-se à restrição disposta no parágrafo 5º do art. 24, abaixo transcrita, para melhor compreensão:

Art. 24, § 5º: O valor pecuniário correspondente à totalidade do po-tencial construtivo transferido no período referente aos últimos 12 (doze) meses em relação às transferências do direito de construir sem doação nos termos do art. 124 da Lei 16.050, de 31 de julho de 2014 - PDE, não poderá exceder a 5% (cinco por cento) do valor total arrecadado no FUNDURB no mesmo período, considerando a data do pedido da certidão de transferência de potencial construtivo.

Além de possuir certa complexidade, tal dispositivo parece ter sido inserido na lei fora de contexto. Contudo, é necessário explicar o cenário deste sistema. Conforme já dito no capítulo 3 acima, a TDC é instrumento pelo qual determinado proprietário de imóvel pode, após a anuência do Estado, capitalizar seu patrimônio por meio de alienação de potencial construtivo, de forma a compensar eventuais perdas devido a restrições a seu direito de propriedade.

Dessa forma, quando a transação é feita entre particulares, o Município nada recebe. Até a entrada em vigor do atual Plano Diretor Estratégico de São Paulo-SP, o instrumento urbanístico correntemente utilizado pelo empreendedor, de forma a aumentar o coeficiente de aproveitamento em seu terreno, era, além da outorga 19 Lei Municipal n. 16.402/2016, Art. 24: Na emissão de novas declarações de potencial construtivo passível de transferência de imóveis enquadrados como ZEPEC, nos termos do art. 125 da Lei nº13.430, de 31 de julho de 2014 - PDE, serão aplicados os seguintes Fatores de Incentivo (Fi):

I - 1,2 (um inteiro e dois décimos) para imóveis com área de lote de até 500m² (quinhentos metros quadrados);II - 1,0 (um inteiro) para imóveis com área de lote superior a 500m² (quinhentos metros quadrados) até 2.000m²

(dois mil metros quadrados);III - 0,9 (nove décimos) para imóveis com área de lote superior a 2.000m² (dois mil metros quadrados) até

5.000m² (cinco mil metros quadrados);IV - 0,7 (sete décimos) para imóveis com área de lote superior a 5.000m² (cinco mil metros quadrados) até

10.000m² (dez mil metros quadrados);V - 0,5 (cinco décimos) para imóveis com área de lote superior a 10.000m² (dez mil metros quadrados) até

20.000m² (vinte mil metros quadrados);VI - 0,2 (dois décimos) para imóveis com área de lote superior a 20.000m² (vinte mil metros quadrados) até

50.000m² (cinquenta mil metros quadrados);VII - 0,1 (um décimo) para imóveis com área de lote superior a 50.000m² (cinquenta mil metros quadrados).

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onerosa para áreas fora de operações urbanas consorciadas, a aquisição, perante a Prefeitura Municipal, dos chamados “CEPACs”, os “Certificados de Potencial Adi-cional de Construção”.

Tais títulos têm preço definido pela prefeitura municipal, que utiliza tais re-cursos para investir nas regiões das Operações Urbanas Consorciadas, por exem-plo. Com o crescimento na utilização da TDC entre particulares, foi gerada uma concorrência economicamente desvantajosa à prefeitura, que passou a ter menor demanda na aquisição dos CEPACs.

Consequentemente, foi estabelecido um limite à transferência anual do po-tencial construtivo no município de São Paulo-SP: o valor arrecadado nos últimos 12 (doze) meses não pode ser superior a 5,0% (cinco por cento) do valor arrecada-do pelo FUNDURB – Fundo de Desenvolvimento Urbano, que é justamente o ente responsável por compilar os valores arrecadados a título de venda dos CEPACs supracitados e da outorga onerosa. Caso seja superado, as autorizações para trans-ferência do potencial construtivo ficam suspensas, até reestabelecer a proporção descrita acima.

4.3 A TDC em Porto Alegre-RS

O Município de Porto Alegre-RS é o que contém, entre os três que são objeto deste artigo, a legislação mais incipiente a respeito da TDC. Prevista inicialmente em capítulo específico do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre20, e alterado pela Lei Complementar Municipal n. 646/2010, limitou-se a estabelecer os limites de sua aplicação.

Um exemplo é a necessidade de bom estado de conservação do imóvel tombado, mediante laudo técnico expedido pela Secretaria Municipal de Cultura, e a obrigatoriedade de a transferência de potencial construtivo ocorrer em imóveis localizados na mesma “Macrozona”, à exceção de autorização expressa do Poder Legislativo em sentido oposto.

Além disso, de forma a restringir o seu uso, foi previsto que o Poder Exe-cutivo publicaria semestralmente, no Diário Oficial de Porto Alegre, a relação dos quarteirões da cidade que não poderiam receber aumento no coeficiente de apro-veitamento através da transferência do direito de construir, garantindo-se o direito de protocolo anterior.20 Lei Complementar Municipal n. 434/1999.

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Em 23 de outubro de 2013, foi promulgado o Decreto Municipal n. 18.432/2013, que regrou a denominada “Transferência do Potencial Construtivo” no município de Porto Alegre-RS. No caso de imóveis tombados, foi estabelecido que a análise e a aprovação da transferência deve passar por cinco órgãos diferen-tes: Secretaria Municipal da Cultura, Secretaria Municipal de Urbanismo, Secretaria Municipal de Gestão, Secretaria Municipal de Finanças e Procuradoria-Geral do Mu-nicípio. Ainda, previu-se a criação de um Sistema de Monitoramento de Potencial Construtivo, que em 2014 passou a compilar, organizar e gerenciar todo o potencial existente na cidade.

Assim, de modo geral, à exceção da ideia da criação do sistema supramen-cionado, o arcabouço normativo porto-alegrense para a TDC é restritivo, em com-paração com a legislação municipal em Curitiba-PR e São Paulo-SP. Traz mais óbices do que incentivos, dificultando a sua utilização em uma escala maior.

5 As medidas adotadas são eficazes?

Da análise da legislação municipal das três cidades no capítulo anterior, é possível depreender os dois principais vieses que embasam as restrições ou incen-tivos à utilização da TDC.

O primeiro é econômico: ao regular a TDC, as municipalidades fornecem uma alternativa sem custos para a preservação e conservação de imóveis tombados, em comparação com o instituto da desapropriação, que levaria as cidades a terem que indenizar os proprietários por meio do pagamento do valor de mercado de tais bens. Além disso, permite, por exemplo, que imóveis públicos que sejam tombados também alienem o seu potencial construtivo, trazendo mais recursos para as enti-dades proprietárias – sejam essas federais, estaduais ou municipais.

Ou seja, cria-se valor adicional para um bem que, por suas características principais, é, em sua maioria, desvalorizado pelas restrições arquitetônicas e urba-nísticas que lhes são impostas. Ademais, ao trazer mais uma forma de se aumentar o coeficiente de aproveitamento de determinado imóvel, cria-se uma alternativa à aquisição dos certificados de potencial construtivo que, por suas características essenciais – são títulos emitidos pelo poder público e vinculados a determinada região da cidade –, podem tornar-se escassos ou financeiramente desvantajosos.

O segundo viés é o urbanístico: a TDC é um instituto que reequilibra os direi-tos e obrigações dos proprietários, ao trazer uma compensação ao proprietário que

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teve parte do seu direito de propriedade limitado, por exemplo, pelo tombamento total ou parcial de seu imóvel. Traz compensação financeira, permitindo que esse use tais recursos para realizar todas as obras necessárias para conservar o seu bem, agregando valor a ele, ao final. Escolas, clubes e associações são, em geral, os proprietários que costumam ser beneficiados pela TDC.

Consequentemente, distribuir recursos entre empreendedores e tais donos de imóveis é uma forma, também, de gerar capital a entidades que estão, muitas vezes, passando por dificuldades financeiras, e não possuem patrimônio suficiente para conservar o imóvel do modo necessário e requisitado pela lei.

Entretanto, nas três cidades analisadas, fica evidente o cuidado com a forma de utilização do coeficiente de aproveitamento no imóvel receptor, seja por meio da restrição das áreas capazes de receber o potencial (por exemplo, permitindo-se apenas que imóveis lindeiros ao tombado recebam o potencial construtivo), ou por meio da definição de um teto em relação ao coeficiente de aproveitamento máximo.

Nesse sentido, a legislação de Curitiba-PR parece ser uma inspiração, es-pecialmente no que refere-se à accountability dos proprietários de imóveis tom-bados. O critério escalonado – o proprietário pode realizar obras na medida em que aliena o potencial construtivo do seu imóvel – é um método prático e teleolo-gicamente justo, ao adequar o recebimento dos valores às obras de conservação do imóvel tombado.

Além disso, a possibilidade de ser obtida nova declaração de potencial cons-trutivo após 15 (quinze) anos é lógica: toda e qualquer obra de conservação e restauro em um imóvel tombado tem determinado prazo de validade, e o valor arrecadado com a alienação do potencial não será poupado por décadas pelos pro-prietários, com o objetivo de ter recursos para uma futura obra que venha a ser necessária. Por isso, nada mais coerente do que permitir a renovação do potencial construtivo, desde que, evidentemente, os valores inicialmente arrecadados te-nham sido investidos no imóvel.

Outra disposição interessante de Curitiba-PR refere-se à possibilidade de ser realizada a transferência de potencial construtivo entre imóveis localizados em diferentes municípios, desde que dentro da região metropolitana. Ora, é coerente, também, entendermos nos dias de hoje as grandes cidades como aglomerações urbanas que ultrapassem os limites territoriais de cada município. É por tais razões que temos visto a criação oficial, por lei, de diversas regiões metropolitanas Brasil afora. Consequentemente, a TDC não deveria estar adstrita a imóveis localizados

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no mesmo município, principalmente quando os imóveis cedente e receptor se localizarem em regiões próximas, uma da outra.

Inversamente, algumas restrições identificadas nos parecem sem sentido. Engessando o sistema e trazendo mais burocracia, a legislação de Porto Alegre-RS obriga seis diferentes órgãos municipais a opinarem a respeito da concessão de certificado de potencial construtivo, tornando o processo moroso e burocrático.

Outro ponto sensível é vincular a transferência do potencial entre imóveis localizados em uma mesma macrozona, o que denota a falta de qualquer critério ur-banístico, já que pode acontecer de determinada macrozona possuir infraestrutura urbana com capacidade suficiente para receber empreendimentos com coeficiente de aproveitamento mais alto, em comparação com a macrozona onde se localiza o imóvel cedente.

Já a restrição inserida recentemente na legislação paulistana também não nos parece dotada de argumento urbanístico relevante. Percebendo a diminuição no interesse para a comercialização da outorga onerosa e para a aquisição dos Certificados de Potencial Adicional de Construção comercializados pela Prefeitura Municipal, devido à concorrência da TDC, foi promulgada norma que impede que a quantidade de potencial construtivo anualmente comercializada seja superior a de-terminada porcentagem dos recursos auferidos pelo Fundo de Desenvolvimento Ur-bano. Dessa forma, a restrição é matemática, sem possuir nenhum argumento eco-nômico ou urbanístico. É apenas uma restrição concorrencial criada pela prefeitura, de forma a manter a comercialização dos referidos CEPACs em nível satisfatório.

Cabe fazer também uma menção à utilização da TDC em propriedades loca-lizadas em áreas de proteção ambiental. Inicialmente utilizada para imóveis tom-bados, foi observada, no decorrer deste artigo, a criação de regras para a TDC em decorrência de restrições ambientais – por exemplo, quando o imóvel se localiza em Área de Preservação Permanente. Embora tais propriedades particulares gerem concorrência econômica em relação aos imóveis tombados, no que concerne à TDC, parece-nos que as razões que embasam a sua aplicação são da mesma natureza.

Ao serem impostas restrições ao seu direito de propriedade, os donos de tais imóveis deixam de perceber capital em decorrência de seu patrimônio. Devem, por exemplo, manter determinada faixa não edificável, e restaurar eventual vegeta-ção previamente degradada. Por isso, a TDC surge como método de compensação financeira a tais proprietários, para que os valores arrecadados por esses sejam utilizados para manter e preservar a vegetação e eventuais mananciais existentes naquele imóvel.

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Finalmente, outro ponto que merece atenção diz respeito aos imóveis lo-calizados em área envoltória de tombamento. As restrições construtivas não são impostas apenas a imóveis tombados. Também o são em relação aos imóveis lin-deiros e próximos a tais bens, de forma a impedir que eventuais construções – por exemplo, um arranha-céu contíguo a uma igreja tombada – venham a impedir a melhor visualização e aproveitamento urbanístico do bem tombado. No entanto, não foi verificada a existência de legislação municipal, nas três cidades analisadas, que aplicasse a TDC de forma a compensar proprietários de imóveis cujas restri-ções construtivas derivem de sua localização em área envoltória.

Conclusão

O presente Artigo buscou elencar os pontos nevrálgicos no que concerne à legislação relativa à TDC em três municípios, Curitiba-PR, São Paulo-SP e Porto Alegre-RS.

Sem prejuízo do que ocorre em outras grandes cidades do Brasil, foi possível concluir que as cidades analisadas estão em momentos diferentes, no que con-cerne à sua utilização. Sendo a cidade brasileira que utiliza a TDC há mais tempo, Curitiba-PR já desenvolveu instrumentos de forma a capitalizar os imóveis objeto de restrições urbanísticas, além de possuir critérios coerentes para que seus proprie-tários utilizem os recursos recebidos a título de TDC para a conservação e restauro de tais imóveis. Além disso, a possibilidade de renovação da TDC em 15 (quinze) anos contados da alienação de sua totalidade, decorrente do mesmo imóvel, pode-ria ser aplicada em outros municípios.

No entanto, este instituto de direito urbanístico possui um obstáculo impor-tante, que desincentiva a sua aplicação: pode retirar recursos do Estado, ao concor-rer diretamente com a comercialização dos certificados de potencial construtivo, alienados pelo poder público municipal e investidos em regiões determinadas por lei – a exemplo de São Paulo, que o utiliza por meio do emprego de seus recursos nas áreas onde se localizam as Operações Urbanas Consorciadas –, e pelo disposi-tivo da outorga onerosa.

Dessa forma, a decisão pelo incentivo de seu uso depende de um trade off a ser analisado por cada município: iremos auxiliar os proprietários de imóveis tom-bados a conservar seus bens, fornecendo a eles o aparato normativo e burocrático necessário para que alienem seu potencial construtivo passível de transferência,

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mesmo que isso signifique uma brusca diminuição de receitas para o Município (em razão da redução da aquisição de CEPACs e de outorga onerosa pelos em-preendedores)? Ou vamos restringir a sua utilização, de forma a manter intacta a arrecadação com os CEPACs e com a outorga onerosa?

Entendemos que, desde que adotados critérios eficientes – por exemplo, a possibilidade de alienação de parcela do potencial construtivo na medida em que são realizadas as obras de restauro no imóvel tombado –, o instituto da TDC deve ser incentivado e mantido. A sua necessidade decorre, também, do fato de não haver, à exceção da isenção de IPTU – que não é relevante financeiramente, pois o valor economizado é de pequena monta –, nenhum outro instituto factível para incentivar economicamente os proprietários de imóveis tombados a preservá-los ou a realizar obras de restauro. Sendo assim, sem a TDC, a limitação ao direito de propriedade, por meio da imposição administrativa de restrições construtivas e arquitetônicas, não teria nenhum contraponto relevante.

Ainda, é fundamental que legisladores e prefeitos busquem identificar, em outras cidades, quais os mecanismos e critérios utilizados pelos municípios para regular a TDC. Embora a legislação paulistana não seja a mais completa, o estabelecimento de determinados fatores de incentivo, quando do cálculo do potencial construtivo passível de transferência, parece ser útil, na medida em que estabelece um critério objetivo – no caso específico, vinculado ao tamanho da área do imóvel tombado.

Por fim, eventuais restrições geográficas, tais como a obrigatoriedade de os imóveis cedente e receptor localizarem-se na mesma zona, não trazem nenhum embasamento econômico ou urbanístico que pareça cabível, por razões evidentes. Suponha-se a existência de um município onde, por sua peculiaridade, a maior parte de seus imóveis tombados localiza-se na região central. Além disso, tal zona central já possui um adensamento elevado, com espigões comerciais que incen-tivam a migração urbana diária da periferia ao centro e cuja infraestrutura urba-na já está saturada. Seria, então, ineficiente, do ponto de vista urbanístico, que o potencial construtivo passível de transferência desses imóveis tombados fosse utilizado na mesma região, por meio da construção de prédios mais altos do que o inicialmente permitido.

Consequentemente, recomendamos que as respectivas legislaturas mu-nicipais busquem basear-se nas experiências de outras cidades como fundação para desenvolver arcabouço legislativo técnico, estabelecendo critérios urbanís-ticos coerentes para a aplicação da TDC em imóveis tombados, sem a utilização

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de critérios geográficos ou econômicos que deturpem e prejudiquem a troca de recursos – potencial construtivo a ser utilizado em outro imóvel por dinheiro a ser usado para a restauração e conservação do bem tombado – entre as partes envolvidas nessas operações.

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Fernanda Kelly Inácio Halliwell1

Resumo

O presente artigo visa discorrer sobre a penhorabilidade do bem de famí-lia do fiador e do caucionante. O tema foi despertado em razão da existência de distinção na lei, e divergência na doutrina e jurisprudência, no que diz respeito à possibilidade de penhora do bem de família dos garantidores dos contratos de lo-cação. Assim, o trabalho foi desenvolvimento através do estudo da Constituição Federal, Lei 8.009/90 (Lei do Bem de Família), Lei 8.245/91 (Lei de Locações), Lei 10.406/2002(Código Civil), doutrina e jurisprudência, e permitiu concluir pela ne-cessidade de alteração legislativa para dar maior segurança jurídica às relações locatícias, com o desenvolvimento do importante setor imobiliário.

Palavras-chave

Garantias locatícias; bem de família; inconstitucionalidade; direito à moradia; penhorabilidade.

Abstract

The purpose of this article is to discuss the attachment possibility of the rent guarantor’s homestead right and of the guarantor. The subject was raised because of the existence of distinction in the law, and divergence in doctrine and jurispru-1 Advogada militante na área do direito imobiliário. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco. Membro efetivo da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SBC gestão 2016/2018 e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário.

O BEM DE FAMÍLIA FRENTE ÀS GARANTIAS LOCATÍCIAS

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dence, regarding the possibility of attachment of these family properties, which are the rent guaranties of the lease contracts. Thus, the work was developed through the study of the Federal Constitution, Law nº 8.009 / 90 (Law of homestead right), Law nº 8.245 / 91 (Law of Leases), Law nº 10406/02 (Civil Code), doctrine and jurisprudence, and it leaded to the conclusion that there is a need for legislative changes to give greater legal certainty to leasing relations, with the development of the important real estate sector.

Key words

Lease guarantees; homestead right; unconstitutionality; right to housing; attachability.

Sumário

Introdução; 1 Aspectos gerais das garantias na lei de locações; 1.1 Caução; 1.2 Fiança; 1.3 Seguro de fiança; 2 Do bem de família; 3 O bem de família e as garantias locatícias; Conclusão; Referências bibliográficas.

Introdução

A locação de imóveis é um dos negócios jurídicos mais comuns em nossa sociedade. A sua natureza jurídica está situada no ramo do direito privado, todavia, é necessária a sua regulamentação com vista à coletividade, uma vez que é uma das formas de realização do direito fundamental à moradia. Por conseguinte, é sa-lutar ao fomento do setor de locações do país a presença da almejada e perseguida segurança jurídica.

Como é cediço, em tempos de crises econômicas o abalo no cumprimento das obrigações em geral é inevitável, e o mercado imobiliário é um dos primeiros a ser atingido. E foi num cenário de grande instabilidade, à época de galopante inflação, que foi promulgada a Lei de Locações de Imóveis Urbanos (Lei 8.245/91), que ficou conhecida também como Lei do Inquilinato, com o intuito precípuo de pro-teger os locatários, diante de tão grande desequilíbrio contratual à época. Na outra ponta da relação, tornou-se praxe entre os proprietários de imóveis destinados à locação a exigência por garantias efetivas ao cumprimento das obrigações locatí-cias, sendo que a Lei de Locações apresentou, inicialmente, três tipos de garantias:

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caução, fiança e seguro de fiança. Mais tarde, foi incluída uma quarta garantia: a cessão de quotas de fundo de investimento2.

Em se tratando das garantias locatícias, a Lei de Locações alterou a Lei 8.009/90, que havia entrado em vigor um ano antes dispondo sobre a impenhora-bilidade do bem de família, para acrescentar o inciso VII ao artigo 3º, trazendo mais uma exceção à proteção do único bem imóvel residencial da família, nos casos de dívidas oriundas de fiança locatícia.

Com o advento da Emenda Constitucional 26, de 26 de fevereiro de 2000, que ampliou o rol dos direitos sociais, incluindo, dentre eles, o direito à moradia, o mercado imobiliário sofreu insegurança a partir de teses doutrinárias e decisões judiciais que passaram a defender a inconstitucionalidade do referido inciso VII, pro-tegendo o bem de família do fiador em detrimento da garantia do credor. Recente-mente, o STF parece ter pacificado o tema, a partir de decisões que reconheceram a constitucionalidade da penhorabilidade do imóvel do fiador.

Outra garantia que, a princípio, poderia ser considerada como uma das mais sólidas, a caução sobre bem imóvel, também encontra embates frente ao bem de família, haja vista que a Lei 8.009/90 não ostentou exceção expressa a essa garan-tia, como o fez em relação à fiança.

Portanto, diante da enorme importância das locações imobiliárias para a so-ciedade, especialmente em razão do déficit habitacional, urge solução às celeumas que recaem sobre as garantias locatícias, o que este trabalho proporá a partir da pesquisa explicativa e bibliográfica.

1 Aspectos Gerais das Garantias na Lei de Locações

A Lei de Locações de imóveis urbanos, Lei 8.245/91, trouxe a seção VII especialmente dedicada às garantias locatícias. Em seu artigo 37, apresentou a caução, a fiança, o seguro de fiança locatícia e a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento. como modalidades de garantias que o locador poderá exigir do locatário. Contudo, foi vedada a adoção de mais de um tipo de garantia sob pena de nulidade. O intuito do legislador foi o de impedir abusos do locador.

O rol do artigo 37 indica uma taxatividade, e como esclarece o doutrinador Custódio da Piedade Ubaldino Miranda3, essa norma é de ordem pública.2 Artigo 37, incisos I a IV, da Lei 8.245/91.3 MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Locação de imóveis urbanos: comentários à lei nº 8245/90, de 18-10-1991. São Paulo: Atlas, 1996, p. 104.

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Vale destacar que não é obrigatória a existência de uma garantia nos contra-tos de locação, tendo a Lei de Locações apresentado a possibilidade de cobrança antecipada do aluguel4 e a concessão de medida liminar de despejo5, quando ine-xistente a garantia locatícia.

Todavia, a realidade dos grandes centros urbanos impôs a praxe de se exigir a apresentação de uma garantia ao cumprimento das obrigações locatícias. Par-tindo dessa realidade, a dúvida que se apresenta aos locadores é sobre qual das garantias deverá exigir de seu locatário. A resposta a essa indagação não é sim-ples, pois nos deparamos com fatores tanto positivos, como negativos, em todas as modalidades de garantia.

Para melhor compreensão do tema, é válido adentrar no conceito de cada modalidade de garantia, dando-se maior profundidade à caução e à fiança, pois estas se relacionam com o tema principal deste artigo, que é o bem de família.

1.1 Caução

Na teoria geral das obrigações o termo “caução” é utilizado no sentido de gênero dos direitos de garantia. Não se perca de vista que a garantia geral para o cumprimento das obrigações é o patrimônio do devedor, surgindo a caução como um reforço a essa garantia. Nas palavras de Tucci e Villaça Azevedo, citados por Maria Helena Diniz6, “garantia é o reforço jurídico, de caráter pessoal ou real, de que se vale o credor, acessoriamente, para aumentar a possibilidade de cumprimento, pelo devedor, do negócio principal”.

Na Lei de Locações, o termo “caução” foi adotado no sentido de espécie de garantia, a caução real. Falando em direito real de garantia, o Código Civil ostenta 4 Art. 42. Não estando a locação garantida por qualquer das modalidades, o locador poderá exigir do locatário o pagamento do aluguel e encargos até o sexto dia útil do mês vincendo.

20. Salvo as hipóteses do art. 42 e da locação para temporada, o locador não poderá exigir o pagamento antecipado do aluguel.5 Art. 59. Com as modificações constantes deste capítulo, as ações de despejo terão o rito ordinário.

§ 1º Conceder-se-á liminar para desocupação em quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por fundamento exclusivo:

IX – a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo. (Incluído pela Lei nº 12.112, de 2009)6 DINIZ, Maria Helena. Lei de Locações de Imóveis Urbanos Comentada. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 129.

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a hipoteca e a anticrese7 quando a garantia recair sobre bem imóvel, e o penhor, quando o bem for móvel.

Oportuno destacar que os direitos obrigacionais têm origem na vontade das partes, logo, não se limitam aos tipos previstos em Lei.

Contrariamente aos direitos obrigacionais, os direitos reais dependem de reconhecimento legal para existir. Assim, Clóvis Beviláqua esclarecia que “o núme-ro dos direitos reais é sempre limitado nas legislações. Não há direito real, senão quando a lei o declara”8. Mas esse não é o entendimento do ilustre Washington de Barros Monteiro9, que defende a possibilidade de criação de direito real por conven-ção das partes, fundamentando-se na observação de que a lei não veda a criação de outros direitos reais, em acréscimo àqueles estabelecidos no artigo 1.225 do Código Civil.

É certo que, além dos direitos reais previstos no mencionado dispositivo, art. 1.225, encontram-se outros em leis esparsas, como é o caso da alienação fiduciária de bem imóvel, prevista na Lei 9.514/97, e a concessão de direito real de uso para fins de moradia, prevista nas Leis 11.481/2007, 10.257/2001 e 9.639/98.

A respeito da caução indicada na Lei de Locações explica Sílvio de Salvo Venosa10que “não há necessidade de que se constitua penhor ou hipoteca para perfazer a caução estampada na lei locatícia. Essa caução que assegura o contrato de locação destaca um bem, móvel ou imóvel, para a garantia, sem que existam as formalidades dos direitos reais de garantia típicos”.

Frisa-se que podem ser caucionados bens do próprio locatário ou de terceiros.

O problema que se verifica com a caução locatícia é que Lei 8.245/91 não a declarou como garantia real. Assim, o artigo 167 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) incluiu em seu inciso II, 8, a caução como ato de averbação.

Assim, a doutrina diverge sobre a natureza jurídica da caução locatícia, en-contrando adeptos de que não se trata de “direito real”, pois a Lei de Locações assim não o declarou, devendo, portanto, ser reconhecida como um “ônus real”, 7 Art. 1.225. São direitos reais:

VIII - o penhor;IX - a hipoteca;X - a anticrese.

8 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Vol. I. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 304.9 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, Vol. 3, 44ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.10 VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do Inquilinato comentada: doutrina e prática. 14ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 180 ss.

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a incidir sobre o imóvel sem, contudo, estabelecer direito típico. Guardaria esse “ônus real” semelhança com outras situações jurídicas que, embora não sendo di-reito real, são levadas à matrícula do imóvel para gerarem efeitos perante terceiros, por exemplo, a cláusula de inalienabilidade.

Na visão de Francisco Carlos Rocha de Barros11, a caução locatícia trata-se de espécie autônoma de garantia, em face da atecnia da própria Lei de Registros Públicos, que admite a averbação de caução de bens imóveis12.

Na hipótese da caução de um bem imóvel do locatário ou de terceiro constar apenas em cláusula contratual, ou seja, não ter sido levado o contrato ao registro público, ter-se-á um direito pessoal, e não será permitido excutir diretamente o bem, porque garantia real não é. Assim, a garantia do locador ficará restrita à ga-rantia geral frente aos contratantes.

Todavia, ainda que levada ao registro público, vislumbra-se que a caução locatícia tem o condão de garantir ao locador o recebimento dos locativos devidos enquanto não alienada a coisa, pois, se isto ocorrer, cessará a garantia, devendo o locador exigir outra e o locatário prestá-la13.

Esse efeito reforça a tese de que a caução não se trata de um direito real, e se apresenta como um aspecto negativo na adoção desta garantia, pois o locador não poderá impedir a alienação da coisa, que deixará de responder pelo cumpri-mento das obrigações.

Dessa forma, salvo melhor juízo, os estudos da Lei de Locações e dos di-reitos reais permitem concluir que a caução locatícia é nova garantia sobre bem imóvel, sem as características típicas dos direitos reais de garantia, que são a opo-nibilidade erga omnes e os direitos de sequela e de preferência, por isso é cabível a averbação, porém, não constituirá direito real, diante da falta de registro14.

Assim, não sendo um direito real pelas razões antes apresentadas, conclui-se que a caução locatícia sobre bem imóvel possui natureza de direito pessoal.11 BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Comentários à lei do inquilinato. São Paulo: Saraiva,1997, p.182.12 Lei 6.015/73, artigo 167, II, 8.13 Art.40 da Lei de Locações: “O locador poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de garantia, nos seguintes casos: ... VII – desapropriação ou alienação do imóvel.

Parágrafo único. O locador poderá notificar o locatário para apresentar nova garantia locatícia no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de desfazimento da locação.14 A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) define o registro e a averbação como atribuições do registrador, e estabelece no art. 167 os atos jurídicos próprios a cada uma destas atribuições, sendo o inciso I dedicado aos atos de registro, cujo rol é taxativo, e o inciso II aos atos de averbação, que é meramente exemplificativo, pois admite-se averbações oriundas de Leis esparsas.

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O fato de a caução ingressar no fólio real implica reconhecer que essa garan-tia produz efeitos, diante da seguinte disposição do artigo 172 da Lei de Registros Públicos: “Art. 172 - No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, “inter vivos” ou “mortis causa” quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade”.

Considerando que a caução não é um direito real, não possui os efeitos típi-cos a eles, que são: oponibilidade erga omnes, ou seja, a possibilidade de oposição do direito perante as demais pessoas; sequela, que é prerrogativa de perseguir a coisa nas mãos de quem quer que detenha; direito de preferência.

Dessa forma, na visão de Francisco Carlos Rocha de Barros15, a averbação da caução de imóvel resulta em alguma garantia ao locador, pois, em caso de alienação do bem não significará o desaparecimento da garantia, visto que o adquirente não poderá alegar desconhecimento da caução, devendo responder pelas obrigações locatícias, até o limite do bem caucionado. E Walter Ceneviva, citado por Luiz Antonio Scavone Junior16, observa que, “alguma realidade há de decorrer da averbação, ainda que o locador, no caso, não possa excutir o imóvel dado em garantia”.

Extrai-se dos ensinamentos dos ilustres juristas o entendimento de que, sen-do alienado o bem caucionado, o locador não poderá realizar a penhora do bem e le-vá-lo a leilão. Contudo, o adquirente deverá responder pelos débitos existentes até o momento da aquisição, pois não poderá alegar desconhecimento da obrigação.

Tal modalidade de garantia tem eficácia plena e aplicação prática imediata no ordenamento jurídico. Porém, nada impede que a intenção das partes, principal-mente do locador, seja a de realmente constituir um direito real, o que deverá ser feito através do registro de uma escritura pública de hipoteca.

Para Luiz Antonio Scavone Junior17, a caução locatícia é uma hipoteca, pois, se assim não o fosse, de nada adiantaria a caução do imóvel. Observa ainda que poderá haver alguma resistência para a lavratura da escritura pública de constitui-ção da hipoteca e para seu registro. É que, por se tratar de direito de garantia, a hipoteca garante um crédito e com vencimento certo. No caso da garantia locatícia, 15 BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Ob. cit., p. 182.16 SCAVONE, Luiz Antonio. Direito Imobiliário. Teoria e Prática. 11ª ed. São Paulo: Forense, 2016, p. 1.256.17 SCAVONE, Luiz Antonio. Direito Imobiliário. Teoria e Prática. 11ª ed. São Paulo: Forense, 2016, p. 1.257.

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não há um crédito no momento em que é constituída. Todavia, defende Scavone que deverá ser adotada a previsão do inciso I do artigo 1.424 do Código Civil, com-binado com o inciso III do artigo 58 da Lei 8.245/91, permitindo que sejam indicados 12 aluguéis e o prazo do contrato.

O Ministro do STJ, Arnaldo Esteves Lima18 expôs o entendimento de que, malgrado não esteja expressamente elencada como garantia locatícia, a hipoteca estaria implicitamente inserida na modalidade “caução”.

Para que o locador alcance seu direito, deverá ingressar com a ação de cobrança ou execução contra o locatário e, a partir desta ação, executar a dívida, penhorando bens para a satisfação do seu crédito, e que poderá ser o bem cau-cionado. Assim, enquanto não alienada a coisa caucionada, aquele que a prestou, o locatário ou terceiro, responderá com a própria coisa. Dessa forma, não poderá o caucionante, no caso de ser terceiro garantidor, embargar a execução alegando a impenhorabilidade do bem, assim como não caberá ao registrador devolver a ordem de penhora, sob o fundamento de que a propriedade não é do executado.

Além da caução sobre bem imóvel, poderá ser adotada como garantia loca-tícia a caução de bem móvel (veículo automotivo, por exemplo) e de títulos e docu-mentos, cujas regras são atinentes ao penhor, previstas no art. 1.431 e seguintes do Código Civil, sendo necessária a averbação no registro de títulos e documentos e notificação ao devedor, para que não pague diretamente ao seu credor (devedor pignoratício, que prestou a caução). Assim, o credor pignoratício poderá apropriar-se do objeto apenas em caso de inadimplemento da obrigação, ou seja, após o vencimento, e a título de dação em pagamento (art. 1.428).

A caução mais comumente adotada nas locações urbanas é a caução em dinheiro, que foi disciplinada no artigo 38 da Lei de Locações de forma bastante sucinta.

A esse respeito, ensina Sílvio de Salvo Venosa19:

Esse depósito garante não só o pagamento de alugueres e encar-gos, mas qualquer responsabilidade do locatário com relação à coi-sa locada. Assim sendo, deve o depósito responder também pelo ressarcimento de danos anormais no imóvel, de responsabilidade do inquilino.

18 Recurso Especial 770.885-RJ, julgado em 27/03/2008. 19 VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do Inquilinato comentada: doutrina e prática. 14ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 173.

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A caução em dinheiro é a garantia menos onerosa ao locatário, pois o § 2º do artigo 38 da Lei 8.245/91 impõe o limite de três meses de aluguel, e deverá ser depositado em caderneta de poupança, revertendo em benefício do locatário todas as vantagens dela decorrentes por ocasião do levantamento da soma respectiva. O ponto negativo desta garantia fica por conta de seu valor ínfimo, assim, qualquer inadimplência do locatário será suficiente para extinguir a garantia, sobretudo em casos mais graves, que demandem o ajuizamento de ação de despejo.

1.2 Fiança

A fiança é uma das modalidades de garantia mais utilizadas. Trata-se de um contrato típico, nominado e acessório, como se extrai da leitura do artigo 818 do Código Civil. A fiança é um contrato solene, portanto, escrito, cuja interpretação não pode ser extensiva, em razão do disposto no artigo 819 do mesmo codex. Em caso de dúvida, os termos da fiança devem ser interpretados favoravelmente ao fiador, pois um dos traços desse contrato é a gratuidade, no sentido de que apenas o credor (locador) tem benefício, sem contraprestação20. Nesse sentido, afirmou a Ministra Laurita Vaz que “o contrato acessório de fiança obedece à forma escrita, é consensual, deve ser interpretado restritivamente e no sentido mais favorável ao fiador” (AgRg no REsp 832.271/SP, j. 19.10.2006).

A fiança locatícia segue o mesmo regramento da fiança civil, disciplinada no Código Civil, no artigo 818 e seguintes. Dentre as características dessa moda-lidade de garantia pode-se mencionar que se trata de contrato benéfico, ou seja, o fiador assume a obrigação de pagar a dívida do devedor principal sem nenhuma vantagem para si.

Interessante ressaltar que a fiança é uma garantia fidejussória, ou seja, pes-soal. Portanto, qualquer bem do patrimônio do fiador poderá ser penhorado na exe-cução para o pagamento do crédito do locador do imóvel. Assim, certamente não interessará ao locador a indicação de fiador que não possua bens suficientes para garantir o pagamento das obrigações locatícias.

No entanto, é muito comum nos depararmos com contratos de locação que estabelecem como garantia a fiança, mas, ao mesmo tempo, declaram que um determinado imóvel do fiador irá garantir o locatício. Esta prática redacional não é a melhor, pois induz a crer que foram estabelecidas duas modalidades de garantia, 20 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil: volume único. 3ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 855.

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fiança e caução de bem imóvel, o que é vedado pelo artigo 43 da Lei 8.245/91, configurando uma contravenção penal21.

Como a fiança é uma manifestação de vontade gratuita, mas que poderá gerar ônus e até perda de patrimônio, em sendo casado o fiador, é obrigatória a outorga conjugal, para validade da fiança. Portanto, a sua falta, implica em nulidade, nos termos da Súmula 332 do STJ.

Uma vez prestada a fiança, o fiador se torna o principal responsável pelo cumprimento do contrato. Dessa forma, deverá o fiador ser cientificado de even-tuais processos judiciais referentes à locação que ele garante.

É importante ressaltar que o fiador terá, obrigatoriamente, de participar dos aditivos de contrato que eventualmente estabeleçam reajustes negociados dos alu-guéis. Caso contrário, não poderá ser responsabilizado pelo aumento e responderá somente pelo valor contratado e os reajustes legais, consoante prevê a Súmula 214/STJ: “O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de adita-mento ao qual não anuiu”.

Interessante destacar alguns efeitos da fiança, entre eles o benefício de ordem, que significa a obrigação de excutir os bens do locatário antes de atingir o patrimônio do fiador. Todavia, é permitida a renúncia a este direito, o que já se tornou praxe. Outro efeito a ser mencionado se trata da solidariedade entre os cofiadores, que decorre dos artigos 283 e 831 do Código Civil.

A exoneração do fiador após o término contratual foi um ponto de acaloradas discussões. Inicialmente, o STJ não aceitava a permanência da garantia quando o contrato se achava prorrogado por prazo indeterminado, em sintonia com o artigo 819 do Código Civil, que indica a interpretação restritiva ao contrato de fiança, e, ainda, os artigos 46 e 56 da Lei 8.245/91, segundo os quais a resolução do con-trato ocorrerá “findo o prazo estipulado”. Depois, o posicionamento foi modificado, admitindo a continuidade da garantia, se houvesse cláusula contratual expressa obrigando o fiador até a entrega das chaves22.21 Ilustrando a possibilidade de confusão sobre qual garantia foi a estabelecida no contrato, ou até mesmo se há duplicidade de garantia, a decisão exarada pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos do Agravo de Instrumento 2078669-09.2018.8.26.0000, da relatoria do Des. Felipe Ferreira, julgado em 26.07.18, registro nº 2018.0000549004.22 Civil. Locação. Embargos de divergência em recurso especial. Contrato de locação por tempo determinado. Fiança. Término do prazo originalmente pactuado. Exoneração. Impossibilidade. Responsabilidade dos fiadores até a efetiva entrega das chaves do imóvel. Embargos de divergência acolhidos. 1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp 566.633/CE, firmou o entendimento de que, havendo, como no caso vertente, cláusula expressa no contrato de aluguel de que a responsabilidade dos fiadores perdurará até a efetiva

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Com o advento da Lei 12.112/2009, o fiador conquistou o direito de exo-nerar-se, mediante o envio de notificação extrajudicial ou judicial ao locador, após o vencimento do prazo contratual, independentemente de motivo. Nesse caso, o fiador ainda permanecerá obrigado até 120 dias do recebimento da notificação pelo locador. Não é admitido que o fiador notifique 120 dias antes do termo contratual, para, quando este ocorrer, estar libertado da garantia, pois a Lei prevê a possibili-dade de notificar para o fim de exoneração quando o contrato já está prorrogado.

Importante destacar que o direito à exoneração não poderá ser renunciado, pois se trata de norma cogente.

Salienta-se que a atual Lei de Locações expressamente excluiu a impenho-rabilidade do imóvel residencial do fiador por disposição do artigo 82, que acrescen-tou o inciso VII ao artigo 3º da Lei 8.009/90. Essa é uma das principais questões do presente trabalho e será melhor disciplinada em tópico específico.

Apresentadas tais ponderações é possível concluir que a fiança também não se trata de garantia perfeita, diante das hipóteses de desoneração do fiador, esvaziamento de seu patrimônio durante a garantia e discussões a respeito da penhorabilidade ou não do bem de família.

1.3 Seguro de fiança

O seguro de fiança locatícia consiste na contratação de uma empresa se-guradora que cumprirá as obrigações locatícias inadimplidas pelo locatário. Via de regra, o locatário é quem faz a contratação e paga o prêmio.

O seguro de fiança locatícia ainda é uma das garantias menos utilizadas em razão de sua onerosidade, já que o prêmio custa, em média, um mês e meio de aluguel por ano.

Essa garantia foi prevista na lei anterior, Lei 6.649/79, mas se mostrava mais restrita, pois abrangia apenas o pagamento dos aluguéis, deixando desprotegidas as demais obrigações, tais como, o pagamento dos acessórios (taxa condominial, energia elétrica, IPTU), e por isto não estimulava a contratação.

Suprindo a lei anterior, a lei vigente dispôs em seu artigo 41 que o seguro de fiança locatícia deverá abranger a totalidade das obrigações do locatário. Ocasio-

entrega das chaves do imóvel objeto da locação, não há falar em desobrigação por parte destes em razão do término do prazo originalmente pactuado. 2. Embargos de divergência rejeitados (EREsp 791.077/SP, 3ªSeção, j. 28.03.2007, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima).

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nalmente, as seguradoras podem ressarcir multas contratuais e danos ao imóvel provocados pelo inquilino.

Uma das vantagens na utilização do seguro de fiança é a de o locador conti-nuar recebendo os aluguéis mesmo durante a tramitação da ação de despejo, cujas despesas judiciais são pagas pela seguradora. Nas demais hipóteses de garantia, o locador suporta todos os custos para promover a ação de despejo, e não receberá os aluguéis no curso do processo. Somente no fim da ação judicial poderá ser res-sarcido, desde que consiga localizar patrimônio dos devedores.

Por outro lado, ao termo final do contrato de locação, poderá ocorrer de o locatário não pagar o prêmio para renovação da garantia, deixando o locador desprotegido. Nesses casos, o locador deverá notificar o locatário para apresentar nova garantia, sob pena de propor ação de despejo. Não obstante a ressalva, o seguro de fiança se apresenta como a modalidade mais efetiva de garantia, e tem crescido bastante nos últimos anos.

2 Do bem de família

A ideia da propriedade privada estava fixada, primeiramente, na própria reli-gião, já que cada família tinha seu lar e seus antepassados. No segundo momento, a propriedade passou a representar a economia, o poder de determinada classe social.

No Direito Romano havia uma proibição de alienar o patrimônio da família, tendo em vista que todo o patrimônio da família tinha caráter inalienável, dado os rígidos princípios de perpetuação dos bens dos antepassados, que se conside-ravam sagrados. Existia, portanto, uma preocupação com a propriedade privada, consistente numa proteção dos interesses da família, já que existente a cláusula de inalienabilidade.

No direito brasileiro, o instituto do bem de família foi inserido no Código Civil de 1916, no capítulo V, do Livro II, que trata dos bens. Os dispositivos ligados à ma-téria não explicavam o que de fato significava o bem de família. O caput do artigo 70 tentava explicitar a que se destinava o referido instituto, permitindo aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com cláusula de isenção de exe-cução por dívidas, salvo as que proviessem de impostos relativos ao mesmo prédio.

Nota-se que o instituto tinha a intenção de garantir a moradia da família que apenas dispunha de um único bem imóvel. Importante ressaltar então, que o bem de que tratava o instituto era o imóvel destinado ao domicílio da família.

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Nesses moldes, o bem de família deveria ser instituído através de escritura pública inscrita no Registro de imóveis, por iniciativa do chefe da família.

Sendo instituído o bem de família, esse ficava isento de execução por dívi-das, ou seja, não seria possível a penhora do referido bem, tendo em vista que a família não poderia ficar desamparada sem sua única moradia.

Com a promulgação da Lei 8.009/90, o instituto foi regulado sob outro pris-ma, abarcando em seu teor hipóteses de penhorabilidade do bem de família, como adiante se verá.

Com a entrada em vigor do atual Código Civil, em 10 de janeiro de 2002, o instituto do bem de família teve lugar no Livro IV – Do Direito de Família, Título I – Do Direito Pessoal e Subtítulo IV – Do bem de família, que abrange os artigos 1.711 a 1.722, como se vê:

Art. 1.711 Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante es-critura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse 1/3 (um terço) do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.Parágrafo único – O terceiro poderá igualmente instituir bem de fa-mília por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da enti-dade familiar beneficiada.

É possível notar que houve uma diferenciação da pessoa que poderá instituir o bem de família hoje, na vigência do novo Código Civil, qual seja, os cônjuges ou a entidade familiar.

Já no que tange à constituição do bem de família, igualmente como era feito sob a vigência do Código Civil de 1916, para que se possa instituí-lo, necessário é o seu registro por iniciativa do proprietário.

A essa forma de instituição, dá-se o nome de bem de família voluntário, como esclarece o professor José Rogério Cruz e Tucci23, pois como já se observa da própria nomenclatura, o registro é ato de voluntariedade do proprietário.

Como claramente se pode verificar, a Lei 8.009/90 é anterior à entrada em vigor do novo Código Civil em tela, e, diante disso, algumas disposições nele abran-23 TUCCI, José Rogério Cruz (org.). A penhora e o bem de família do fiador da locação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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gidas foram moldadas em total conformidade com a referida lei, resguardando o bem imóvel das execuções por dívidas, como disposto no artigo 1.715.

A Lei 8.009/90 foi promulgada em 29 de março de 1990, com o objetivo de dar maior amparo à família brasileira, cuja nação passava por séria crise econômica.

De início houve questionamentos a respeito da constitucionalidade da Lei 8.009/90, como se extrai das palavras de Carlos Callage, citado por Álvaro Villaça Azevedo:

[...] torna inócuo o princípio universal da sujeição do patrimônio às dívidas acolhido pela Constituição brasileira (art. 5º, incs. LX-VII, LIV) e atinge o próprio regime econômico básico adotado pela Carta, que pressupõe relações obrigacionais das mais diferentes espécies, suprimindo as garantias e a eficácia coativa do direito e crédito. (...) No passado, o devedor respondia com o próprio corpo. No presente, responde com seu patrimônio e, neste futuro, não responde mais24.

Outrossim, ao se deparar com a questão constitucionalidade da Lei 8.009/90, a 11ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no dia 24 de se-tembro de 1992, por votação unânime, considerou a lei uma ampliação do bem de família, com o fundamento de que esta recebe especial proteção do Estado, conforme disposto no art. 226 da Constituição da República.

O bem de família, previsto na Lei 8.009/90 é uma nova espécie, bastante diversa daquela abarcada nos códigos civilistas de 1916 e de 2002, em que a pro-teção abrange apenas o imóvel, e a sua instituição, além da exigência de uma série de formalidades e inconvenientes, depende de iniciativa de seu proprietário, fato pelo qual é denominado de voluntário.

Já sob a égide da Lei 8.009/90, a constituição do bem de família independe de iniciativa do proprietário do imóvel, tendo em vista que é norma de ordem pú-blica, cuja observância não pode ser afastada, e sua arguição deve ser apreciada e decidida, podendo ser realizada, quando necessário, prova para demonstrar os requisitos protetores desse instituto. Assim, fala-se que este seria o bem de família involuntário ou legal.

Guardadas algumas exceções, para que se reconheça o bem como sendo de família é necessário que o bem sirva de moradia dos membros da família.24 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família: comentários à lei 8.009/90. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 166.

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Não restam maiores dúvidas a respeito do sentido da lei, em proteger, de fato, a família, seguindo os preceitos maiores da Carta Magna, nos quais é dever do Estado a proteção à célula familiar.

3 O bem de família e as garantias locatícias

Como visto acima, a Lei 8.009/90 instituiu a impenhorabilidade do bem de família involuntário, sendo que o imóvel nessa condição, de acordo com o artigo 1º “[...] não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciá-ria ou de outra natureza [...]”. A mesma lei, no art. 3º, trouxe seis incisos nos quais estavam previstas as exceções à impenhorabilidade.

Contudo, não havia previsão, naquela oportunidade, de que o imóvel residen-cial próprio do casal, ou da entidade familiar pudesse suportar o cumprimento de obrigação assumida pelo fiador de relação locatícia.

Apenas com o advento da Lei 8.245/91, (Lei de Locações Urbanas), foi in-troduzido o inciso VII à redação original do art. 3º da Lei 8.009/90, passando então a figurar, entre as exceções à impenhorabilidade, a obrigação de pagar (garantia fidejussória) assumida pelo outorgante de fiança em contrato de locação de bem imóvel. Em resumo, tornou-se possível a penhora e venda pública do imóvel resi-dencial do fiador.

A partir daí a jurisprudência, de modo praticamente unânime, passou a en-tender e aplicar conforme a lei.

O Supremo Tribunal Federal, entretanto, em abril de 2005, reacendeu o debate no julgamento do Recurso Extraordinário 352.940-4/SP, decidido mono-craticamente pelo Min. Carlos Velloso, que reconheceu a impenhorabilidade do único imóvel residencial do fiador, considerando o cotejo da mencionada altera-ção legislativa com o alcance e a auto-aplicabilidade do disposto no art. 6º da Constituição Federal, na redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional 26/2000, que, ao tratar dos direitos sociais, por sua vez considerados direitos fundamentais de segunda geração, previu o direito à moradia, o que resulta em contradição e acarreta tratamento desigual, determinando, por isso, a não re-cepção, pela ordem constitucional, da disposição constante do inciso VII da Lei 8.009/90.

Essa decisão foi seguida de outra, em idênticos termos, no Recurso Extraor-dinário 349.370/SP, decidido pelo mesmo julgador.

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Destaca-se que esses julgados surtiram efeitos junto ao Superior Tribunal de Justiça, o qual, ao julgar o Recurso Especial 699.837/RS, em 02/08/2005, no Voto do Ministro Felix Fischer25, declarou:

[...] RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. LOCAÇÃO. FIADOR. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. ART. 3º, VII, DA LEI Nº 8.009/90. NÃO RECEPÇÃO.I - Inadmitem-se as preliminares argüidas em contra-razões à míngua do necessário prequestionamento, porquanto não foram objeto de discussão pelo e. Tribunal a quo (Súmula nº 282 do Pretório Excelso).II - Com respaldo em recente julgado proferido pelo Pretório Excelso, é impenhorável bem de família pertencente a fiador em contrato de locação, porquanto o art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90 não foi recepcio-nado pelo art. 6º da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional nº 26/2000). Recurso provido.

Em contrapartida ao caráter protetivo da Emenda Constitucional 26/2000, tem-se o fato de que o direito à moradia, inserido no artigo 6º da Constituição Fe-deral, está a exigir regulamentação própria e específica que venha gerar efeitos no plano da realidade jurídica, isso porque, na parte final do artigo 6º, da Magna Carta, contém a expressão “na forma desta Constituição”. Significa dizer, que o conteúdo do artigo 6º da Constituição Federal tem caráter de norma de eficácia limitada, de aplicabilidade mediata e reduzida.

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul proferiu decisão, salientando o relator da Apelação Cível 70010909281 que a norma inse-rida pela Emenda Constitucional 26 de 2000 dispôs sobre princípios de natureza programática, “cuja extensão e validade, como se sabe, dependem exclusivamente de lei a ser editada pelo Poder Executivo”.

Como se vê, a discussão que se criou em torno da aplicabilidade, imediata ou mediata, da norma inserida pela Emenda Constitucional 26/2000, consubstan-cia-se na ideia de que a Constituição Federal não teria recepcionado o conteúdo das leis infraconstitucionais, e, consequentemente, não haveria a possibilidade de penhora do único bem do fiador, tendo em vista a moradia como direito social.

Não obstante o posicionamento expressado em algumas decisões das Cor-tes Superiores, alguns Tribunais Estaduais, como o Tribunal de Justiça de São Paulo, mantinha o posicionamento favorável à penhora do bem de família do fiador.25 http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=impenhorabilidade+do+bem+de+familia&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=111. Acesso em: 15 mai. 2009.

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Nesta época, início dos anos 2000, diante de tantas decisões conflitantes, o mercado imobiliário passou a exigir a múltipla titularidade de bens pelo fiador, para evitar a alegação de impenhorabilidade do único bem imóvel utilizado pela família, e também a fomentar a adoção de outras modalidades de garantia, como a caução em dinheiro e o seguro de fiança locatícia.

Finalmente, no julgamento do tema 295, o STF assentou o entendimento sobre a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador:

1. A hipótese dos autos versa sobre a validade da penhora do bem de família do fiador de contrato de locação. O acórdão recorrido pos-sui a seguinte ementa:‘Embargos à execução. Penhora de bens do fiador em contrato de locação. Impenhorabilidade afastada. Inconstitucionalidade em face da Emenda Constitucional 26 não reconhecida. Honorários arbitra-dos equitativamente. Recurso desprovido’.2. Este Tribunal, ao apreciar este recurso extraordinário, reconheceu a existência da repercussão geral da matéria para que os efeitos do art. 543-B do CPC possam ser aplicados.Esta Corte firmou entendimento no sentido da constitucionalidade da penhora sobre o bem de família do fiador, mesmo após a EC 26/2000. Nesse sentido: RE 407.688, rel. Min. Cezar Peluso, Pleno, DJ 6.10.2006; RE 477.953-AgR, rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJ 2.2.2007; RE 493.738-AgR, rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJe 5.2.2009; AI 584.436-AgR, rel. Min. Cezar Peluso, 2ª Turma, DJe 12.3.2009; AI 693.554, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 11.2.2008; RE 591.568, rel. Min. Ayres Britto, DJe 18.9.2008; RE 598.036, rel. Min. Celso de Mello, DJe 6.4.2009; AI 642.307, rel. Min. Marco Au-rélio, DJe 26.6.2009; RE 419.161, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 9.11.2009; AI 718.860, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 19.4.2010; e RE 607.505, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 5.3.2010.O acórdão recorrido não divergiu desse entendimento.3. Ante o exposto, nego seguimento ao recurso extraordinário26

O mesmo rumo tomou o STJ, quando, em 2014, pela sistemática dos recur-sos repetitivos, a segunda seção fixou a seguinte tese27:”É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90”.26 Ministra Relatora Ellen Gracie, julgado em 14/09/2010.27 Tema 708/STJ.

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No ano seguinte, o STJ pacificou de vez a questão com a publicação da sú-mula 549, nos termos a seguir: “É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”.

Também o TJSP arrematou o tema na Súmula 8, com o seguinte enunciado: “É penhorável o único imóvel do fiador, em contrato locatício, nos termos do art. 3º, VII, da Lei 8.009, de 29.03.1990, mesmo após o advento da Emenda Constitucional nº 26, de 14.02.2000. ”

Assim, em se tratando de fiança em contratos de locação de imóvel urbano para fins residenciais, a questão restou pacificada.

Mas ainda existem decisões desfavoráveis à penhora do bem de família do fiador em casos específicos, como em contratos de locações não residenciais. Vejamos o fundamento empregado no seguinte julgado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO MANEJADO CONTRA ACÓRDÃO PU-BLICADO EM 31.8.2005. INSUBMISSÃO À SISTEMÁTICA DA RE-PERCUSSÃO GERAL. PREMISSAS DISTINTAS DAS VERIFICADAS EM PRECEDENTES DESTA SUPREMA CORTE, QUE ABORDARAM GARANTIA FIDEJUSSÓRIA EM LOCAÇÃO RESIDENCIAL. CASO CONCRETO QUE ENVOLVE DÍVIDA DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO À MORADIA E COM O PRINCÍPIO DA ISONOMIA. 1. A dignidade da pessoa humana e a proteção à família exigem que se ponham ao abrigo da constri-ção e da alienação forçada determinados bens. É o que ocorre com o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Interpretação do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990 não recepcionada pela EC nº 26/2000. 2. A restrição do direito à moradia do fiador em contrato de locação comercial tampouco se justifica à luz do princípio da iso-nomia. Eventual bem de família de propriedade do locatário não se sujeitará à constrição e alienação forçada, para o fim de satisfazer valores devidos ao locador. Não se vislumbra justificativa para que o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador, sobretudo porque tal disparidade de tratamen-to, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito à moradia. 3. Premissas fáticas distintivas impedem a submissão do caso concreto, que en-volve contrato de locação comercial, às mesmas balizas que orienta-ram a decisão proferida, por esta Suprema Corte, ao exame do tema

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nº 295 da repercussão geral, restrita aquela à análise da constitu-cionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação residencial. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido.28

O entendimento acima já foi observado em decisões estaduais, como no Agravo de Instrumento 2192239-70.2018.8.26.000 do TJSP29.

Curiosamente, o Recurso Especial 1.363.368/MS, que serviu de paradigma para o tema 708/STJ, tratava de possibilidade da penhora do bem de família do fiador em locação comercial.

Portanto, a polêmica sobre a penhora do bem de família do fiador con-tinua viva.

No que concerne a outra garantia locatícia em destaque, a caução sobre bem imóvel, o entendimento predominante é oposto à compreensão que se tem quanto a penhorabilidade do bem de família do fiador.

Ocorre que, o inciso VII, do art. 3º da Lei 8.009/90 expressa: “por obriga-ção decorrente de fiança concedida em contrato de locação”. Desse dispositivo se extrai a conclusão de que a exceção é restrita à modalidade de garantia locatícia denominada “fiança”.

Em relação à caução, defende Heitor Vitor Mendonça Sica30 que “a situação não se equipara à do imóvel em que reside o fiador locatício, e, dessarte, mostra-se inviável a interpretação extensiva do art. 3º, VII, da Lei 8.245/91. A caução é garantia real, que recai sobre bem específico, vinculando-o ao cumprimento da obrigação principal, ao passo que a fiança é garantia pessoal, pela qual o fiador 28 RE 605.709/SP. Relator Min. DIAS TOFFOLI, Relatora p/acórdão Min. ROSA WEBER, julgamento: 12/06/2018. Publicado no DJE-032 de 18/02/2019. Órgão Julgador: Primeira Turma. “Após o voto do Senhor Ministro Dias Toffoli, relator, que negava provimento ao recurso extraordinário, pediu vista do processo o Senhor Ministro Ro-berto Barroso. Presidência do Senhor Ministro Marco Aurélio. Primeira Turma, 14.10.2014. Decisão: A Turma, por maioria, deu provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto da Ministra Rosa Weber, Redatora para o acórdão, vencidos os Ministros Dias Toffoli, Relator, e Luís Roberto Barroso. Não participou, justificadamente, deste julgamento, o Ministro Alexandre de Moraes. Presidiu, este julgamento, o Ministro Marco Aurélio. Primeira Turma, 12.6.2018.” Este recurso ainda não transitou em julgado, estando pendente de julgamento os embargos de divergência.29 EMENTA: Locação de imóvel residencial – Ação de despejo por falta de pagamento cumulada com cobrança – Fase de cumprimento de sentença. Decisão que indeferiu o pedido de impenhorabilidade de imóvel pertencente ao fiador. Manutenção. Cabimento – Arguição de tratar-se de único imóvel e bem de família. Inconsistência. Inteligência do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90. STJ – Precedente jurisprudencial em sede de recurso repetitivo. Inaplicabilidade do entendimento exarado pelo STF no julgamento do RE 605.709, por se restringir apenas à locação comercial.30 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Questões polêmicas e atuais acerca da fiança locatícia. In: TUCCI, José Rogério Cruz (org). A penhora e o bem de família do fiador da locação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 25.

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compromete-se a adimplir o contrato principal firmado pelo afiançado, caso esse não o honre (art. 1.481 do CC), respondendo, para tanto, com todo o seu patrimô-nio, composto de bens presentes e futuros”. Conclui Sica que, “em consequência do exposto, o bem de família dado em caução é impenhorável, enquanto que tal exceção é inoponível à execução decorrente de fiança locatícia. Este é também o entendimento da jurisprudência”.

No mesmo sentido lembra a ilustre Professora Maria Helena Diniz31 que, “só os bens suscetíveis de alienação é que poderão ser dados em caução real”, excluindo-se, portanto, o bem de família.

Também Luiz Antonio Scavone Junior32 compreende a caução como garantia fraca, sem sentido, diante de sua suscetibilidade à proteção concernente ao bem de família.

Portanto, vê-se uma incompatibilidade no tratamento jurídico recebido pelas garantias locatícias. Enquanto o bem de família do fiador não foi preservado, me-recendo expressa exceção na Lei 8.009/90, o mesmo tratamento, porém, não foi conferido ao bem do caucionante, que continua protegido pela dita lei específica. Vale destacar ainda, que o bem de família do locatário também é protegido.

Independentemente do posicionamento apresentado na doutrina, encontra-mos no Tribunal paulista julgados33em sentido contrário:

Ementa: Processual. Despejo por falta de pagamento cumulada com cobrança. Fase de cumprimento de sentença. Penhora de imóvel dado em caução no contrato de locação, nos termos do art. 37, I, da Lei nº 8.245/91. Possibilidade. Alegação de impenhorabilidade como bem de família. Descabimento. Aquele que espontaneamente ofere-ce o bem para garantia de débito renuncia ao benefício legal e não pode retornar sobre os próprios passos, pretendendo impenhorável o imóvel. A caução de imóvel, em locação, é figura que equivale à hipoteca, constituindo, pela absoluta identidade de razões, exceção à impenhorabilidade, a teor do art. 3º, V, da Lei nº 8.009/90. Além do mais, na hipótese, ainda, além da garantia real, os caucionantes fir-maram posteriormente acordo judicial, assumindo responsabilidade solidária pelo débito locatício, em posição de fiadores judiciais, o que

31 DINIZ, Maria Helena. Lei de Locações de Imóveis Urbanos Comentada. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 174.32 SCAVONE, Luiz Antonio. Direito Imobiliário. Teoria e Prática. 11ª ed. São Paulo: 2016, p. 1.259.33 Agravo de Instrumento 2249589-21.2015.8.26.0000, Relatora: Cristina Zucchi, j.11/05/2016; Apela-ção 0176134-87.2011.8.26.0100, Relator Felipe Ferreira, j. 22/10/2015; Agravo de Instrumento 2249589-21.2015.8.26.0000, Relatora: Cristina Zucchi, j.11/05/2016.

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por analogia à fiança concedida em contrato de locação (art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90), também afasta a restrição à penhora do imóvel residencial. Decisão reformada. Agravo a que se dá provimento por maioria de votos, em julgamento ampliado, contra o voto da Relatora Sorteada34.

Mas, o STJ mantém posicionamento que vai ao encontro da doutrina, ou seja, pela impossibilidade de penhora do único bem imóvel residencial do caucionante35. Contudo, destaca-se a ressalva em julgado do Ministro Luis Felipe Salomão36, no sentido de que a entrega de imóvel residencial como garantia real somente enseja renúncia à impenhorabilidade do bem de família se ficar demonstrado o proveito à própria família, por versarem hipóteses legais do art. 3º da Lei 8.009/90.

Verifica-se, pois, a necessidade de se avaliar cuidadosamente a garantia apresentada, em especial quando se tratar de contrato de locação para fins não resi-denciais, pois, até mesmo a caução real, que a princípio parecia ser a mais segura de todas as modalidades37, ao final, poderá ser uma armadilha, se prestada por quem não possui outro imóvel e ainda estabeleceu no bem caucionado a sua moradia.

Conclusão

Tendo chegado ao término do presente estudo, conclui-se que as garantias locatícias merecem revisão legal, visando corrigir incoerências, atecnias e injustiça e, via de consequência, conferir segurança jurídica às locações residenciais ou não.

Todavia, enquanto não ocorrem mudanças legislativas, é possível encontrar no próprio ordenamento jurídico soluções mais coerentes à situação, a partir da interpretação sistemática de normas e princípios.

O ponto inicial é o princípio pacta sunt servanda, ou seja, o princípio da força obrigatória dos contratos. Trazendo esse princípio base do direito civil ao tema ora em exame, torna-se inadmissível atenuar ou extirpar a responsabilidade assumida pelo fiador ou pelo caucionante, ainda que o direito à moradia destes seja atingido em consequência da garantia prestada, isso porque a garantia locatícia pressupõe um ato de vontade daquele que a apresentou. Ora, se, ao tempo em que foi apre-34 Agravo de Instrumento 2115463-97.2016.8.26.0000, Relator: Silvia Rocha, j. 29/06/2016.35 AgRg no REsp 1.334.693/SP, Relator Ministro Sidnei Beneti, terceira turma, julgado em 25/06/2013.36 Recurso Especial 1.673.273-SP, julgado em 13/06/2018.37 DINIZ, Maria Helena. Lei de Locações de Imóveis Urbanos Comentada. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 134.

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sentada a garantia, era de ciência do garantidor a possibilidade de vir a perder o seu bem de família, no caso do pacto não ser cumprido pelo locatário, não parece razoável a exclusão da penhora sobre tais bens por decisão judicial, independen-temente da finalidade da locação, pois significa que o garantidor reconheceu na locação interesse de maior relevo do que a proteção ao seu bem de família. Ade-mais, inaceitável é a interpretação de que a penhorabilidade do bem de família se restringe aos contratos de locação de bem residencial, pois a Lei 8.009/90 não fez tal distinção. Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus.

A admissão da penhora do bem de família do locatário e do caucionante também privilegia o princípio da isonomia, em relação à posição do fiador, que per-deu a proteção do seu bem de família em vista do crédito locatício.

Não deve perpetuar o fundamento de ser inadmissível a renúncia ao bem de família pelo locatário e caucionante, pois a lei admite a penhora do único bem resi-dencial do fiador. Tanto o locatário, quanto os seus garantidores, emitiram vontade no momento da contratação, comprometeram-se a honrar obrigações locatícias em prol da mesma finalidade, seja ela residencial ou não. Devem, portanto, sofrer as mesmas consequências jurídicas.

Em julgado da terceira turma do STJ38, foi analisada a proteção do bem de família em demanda relacionada a um contrato de factoring. Embora esse julgado não se refira à relação locatícia, merece destaque e pode ser trazido a este traba-lho, pois representa um feixe de luz à obscuridade presente nas garantias locatícias em vista do bem de família. Concluiu-se no julgado em questão que “não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, pos-teriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório)”.

Não se olvide o aspecto negativo que as decisões que declaram a impe-nhorabilidade do bem de família do fiador e do caucionante trazem à credibilidade das leis, dos contratos, e do próprio Poder Judiciário, quando a parte que cumpre o contrato, no caso, o locador, jamais recebe o seu crédito, em razão de ter sido privilegiado o direito do inadimplente.

Acreditamos ainda que o prevalecimento de decisões judiciais contrárias à penhora do bem de família, seja do fiador em casos de locação não residencial, seja do caucionante ou do próprio locatário, prejudicará a coletividade, pois o mercado imobiliário passará a ser ainda mais exigente em relação às garantias locatícias.38 Recurso Especial nº 1667015/SP, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator para acórdão Ministra Nancy Andrighi, julgado em 28/08/2018.

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Marcelo Barbaresco1

Resumo

O presente artigo tem por finalidade abordar contornos da Ciência Jurídica de maneira a informar que não tem ela o condão de defender posições mas, sim, estabelecer, de alguma maneira, uma moldura de significados e, em assim sendo, desenvolver uma função social. Nesse sentido e, em face da recente Lei Federal n. 13.786/2018 que recebeu a alcunha de “Lei dos Distratos”, serão abordados alguns elementos do direito intertemporal de maneira a iluminar a avaliação da aplicação da novel legislação aos efeitos de contratos celebrados em data anterior ao do início de sua vigência.

Palavras Chave

Ciência jurídica; função social; direito intertemporal; negócio jurídico imobi-liário; Lei Federal 13.786/2018.

Abstract

The purpose of this article is to address the outlines of Legal Science in or-der to inform that it does not have the focus to defend positions, but rather to set 1 Doutorando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Político e Econômico. Pós-graduado em direito empresarial, em direito do mercado financeiro e de capitais, em direito processual civil, em direito do consumidor e em direito imobiliário, com capacitação para Mediador. Professor na FGV Direito SP – FGV Law, no INSPER, na FAAP, assim como em outras instituições de ensino superior. Fun-dador do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, exercendo uma de suas vice-presidências. Sócio--fundador de Barbaresco, Bidóia e Mello Advogados.

CIÊNCIA JURÍDICA E SUA FUNÇÃO: DIREITO INTERTEMPORAL E A LEI DOS “DISTRATOS” NO NEGÓCIO

JURIDICO IMOBILIÁRIO

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forth, in some way, a frame of meanings and, as such, to develop a social role. In this sense, and in view of the recent Federal Law no. 13.786/2018 also known as the “Rescission Law”, will be approached some elements of the intertemporal law in order to highlight the evaluation of the application of the novel legislation to the effects of contracts entered into before the its effective date.

Keywords

Legal science; social role; intertemporal law; legal real estate business; Fed-eral Law 13.786/2018.

Introdução

O resgate de conceitos por vezes adormecidos, quando não esquecidos, têm por finalidade iluminar os caminhos a serem percorridos pelo jurista e pelo ju-risconsulto2 ao se depararem com situações do mundo da vida que demandam um posicionamento científico, isso é, situações que exijam, o quanto possível, mesmo que de certa maneira impossível em sua essência, que se mostrem despidos de posicionamento meramente ideológico ou relacionado a determinada paixão culti-vada pelo cientista. Isso, pois, não deve o jurista ser viciado e/ou até enviesado por qualquer simpatia e/ou interesse que o domine.

Nesse sentido, emerge a importância do estudo da função social da Ciên-cia Jurídica e, para tanto, do estabelecimento de seus contornos, tudo de manei-ra que sejam resgatados, talvez, elementos dessa ciência de forma que se possa aplicar a lei, a norma e o Direito o quanto possível fundamentados em critérios objetivos.

Dessa forma, serão abordados de forma breve certos elementos conforma-dores da Ciência Jurídica, pinçados e escolhidos de maneira a fundamentar sua importância para o universo do jurista e do jurisconsulto e, por conta desses ele-mentos, enfatizar a função social que exercem na aplicação das leis, das normas e do Direito. E isso para, ao final, uma vez estabelecidos alguns desses contornos, buscar identificar nessa específica ciência elementos que tenham o condão de co-laborar na resolução de problemas relacionados à aplicação ou não de determinada lei a específicas situações e que, nos dias atuais, têm segmentado os juristas e os 2 Essa palavra é utilizada por Maximiliano quando se refere ao advogado, de forma a estabelecer uma distinção com o jurista. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

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jurisconsultos quanto aos negócios jurídicos de índole imobiliária, especialmente, no regime jurídico das incorporações imobiliárias3 e dos loteamentos e, notadamen-te, no que se refere à aplicação da lei que recebe a alcunha de Lei dos Distratos.

Referindo-se especificamente ao tema, trata-se de, através da Ciência Jurídi-ca, buscar elementos que de alguma forma possam iluminar a identificação das pos-sibilidades de sustentação científica no que se refere à aplicação, obrigatória e, aos negócios jurídicos validamente estabelecidos em data anterior ao início da vigência da Lei Federal 13.786/2018 mas que, por serem de trato sucessivo, não esgotam os seus efeitos de uma isolada vez mas, sim, se postergam no tempo. Dito de maneira direta, mencionada lei deve ser, obrigatoriamente, aplicada aos efeitos de determi-nado negócio jurídico estabelecido em período anterior ao início de sua vigência? Quais as controvérsias a respeito? Quais as possibilidades a serem ponderadas?

Para tanto e, tendo por base as fontes do Direito4, serão objeto de avaliação as leis em sentido amplo, os usos e costumes jurídicos, a atividade jurisdicional e o poder negocial sendo que, realizada mencionada avaliação, o que se espera é insculpir, repita-se, um quadro de possibilidades amparadas pela Ciência Jurídica e não, propriamente, uma posição definitiva acerca desse tema.

1 Ciência Jurídica e sua função

A avaliação da função desperta naquele que se lança ao seu estudo um uni-verso de possibilidades, especialmente, quando a essa se faz relacionar um caráter social e, portanto, em específica contraposição aos interesses individuais, particu-lares, especificamente destinados à proteção de um liberalismo que tende a não identificar limites senão àqueles próprios de sua subjetiva razão egoística.

Em assim o sendo, partindo do pressuposto que a função das normas jurí-dicas, segundo Bobbio5 é “tornar possível a convivência dos indivíduos em grupos que perseguem, cada qual, fins individuais [...]”, a função da Ciência Jurídica, como 3 Isso é, para aqueles empreendimentos imobiliários que, para sua regulação, foi adotado o regime estabelecido pela Lei 4.591/64.4 A este respeito informa Reale: “Por ‘fonte do direito’ designamos os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia. O direito resulta de um complexo de fatores [...] mas se manifesta, como ordenação vigente e eficaz, através de certas formas, diríamos mesmo de certas ‘fôrmas’, que são o processo legislativo, os usos e costumes jurídicos , a atividade jurisdicional e o poder negocial.” REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 17ª ed. ver. atual. Saraiva: São Paulo, 1990, p. 140.5 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. São Paulo: Manole, 2011, p. 111.

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adiante se verá ao iluminar determinados elementos de seu conteúdo, objetiva sis-tematizar e operacionalizar a construção de bases para uma avaliação do conheci-mento científico acerca das normas jurídicas inseridas em seu contexto normativo. E esse contexto é conhecido por ordenamento jurídico.

Importa enfatizar que a Ciência Jurídica é a forma pela qual se isola e se estuda a norma e o ordenamento jurídicos e, não, o Direito6, como colocado por Diniz7. Como diz Celso no Digesto, mencionado por Maximiliano8 “saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, mas a força e poder, isto é, o sentido e o alcance res-pectivos”. E Kelsen9 esclarece que “a ciência jurídica tem por missão conhecer – de fora, por assim dizer – o Direito e descrevê-lo com base no seu conhecimento.” E arremata Bobbio10 dizendo que “as mudanças ocorridas na função do Direito não negam a validade da análise estrutural, como foi elaborada por Kelsen.”

Então, essa função se dirige, especialmente, para a construção de métodos que não apenas identificarão os comportamentos proibidos mas, sobretudo, que tenham por finalidade direcioná-los para objetivos (sua função) preestabelecidos pela Ciência Jurídica. E, por conta dessa objetividade, retirando da avaliação téc-nica, o quanto possível, critérios políticos, sociais, ideológicos e quaisquer outros alienígenas à própria norma jurídica e respectivo ordenamento11.6 Acerca do entendimento do que vem a ser o Direito, coloca Maria Helena Diniz, transcrevendo a posição de Giorgio CAMPANINI: “Indubbiamente el concetto di legge é parte integrante del più generale concetto di Diritto, ma non si risolve in esso, perchè Diritto non é soltanto la legge, nè con essa è estato storicamente identificato: accato alla legge positiva sono sempre state poste, anche nel momento normativo del Diritto, legge naturale e consuetudine, talchè ridurre la storia del concetto di Diritto alla storia del concetto di legge sareable un’arbitraria e ingiustificata trasposizione sul piano storico di attuali posizioni teroretiche non suficientemente e criticamente fondate.” DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo: Resenha Universitária, 1982, p. 61.

De outro lado, para Reale o Direito seria “uma realidade histórico-cultural ordenada de forma bilateral atributi-va segundo valores de convivência, o que significa que a Jurisprudência tem por objeto fatos ordenados valora-tivamente em um processo normativo de atributividade. Trata-se, como se vê, de uma realidade espiritual (não natural, nem puramente psíquica, ou técnico-normativa, etc.), na qual e pela qual se concretizam historicamente valores, ordenando-se as relações intersubjetivas consoante exigência complementares dos indivíduos e do todo social.” REALE, Miguel. Filosofia do direito. 9ª ed. ver. atual. Saraiva: São Paulo, 1982, 695. 7 DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo: Resenha Universitária, 1982, p. 63.8 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 100.9 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 81.10 BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Unesp, 2008, p. 119.11 Assim coloca Bobbio ao fazer menção às lições de Hans Kelsen, na obra Teoria Pura do Direito: “A análise estrutural não serve apenas para salvaguardar a teoria do direito das contaminações ideológicas, mas também permite desmascarar tomadas de posição política que se alojam nos conceitos tradicionais aparentemente neu-tros da ciência do direito.” BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. São Paulo: Manole, 2011, p. 56.

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E essa exclusão do alienígena busca conferir à Ciência Jurídica aquilo que Reale12 coloca como sendo “o rigor do raciocínio, a objetividade da observação dos fatos sociais e a concordância de seus enunciados”, ou seja, que todas as ciências e, inclusive, a jurídica, deve se fazer valer de um raciocínio lógico.

Para tanto, faz-se necessário identificar e delimitar o objeto de estudo da Ciência Jurídica para, então e também, qualificá-la e, por conta disso, constatar seu impacto social, isso é, a função que exerce na sociedade.

A esse respeito, coloca Kelsen13 que “são as normas jurídicas o objeto da ciên-cia jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas.” Com relação à parte final do conceito Reale14 coloca que “o que efetivamente caracteriza uma norma jurídica, de qualquer espécie, é o fato de ser uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória.”

E de maneira a colaborar com a delimitação de seu objeto, Bobbio,15 ao desenvolver espécie de crítica à formulação desenvolvida por Kelsen, informa que se torna imperativo distinguir a ciência da sociologia jurídica e, para tanto, disserta sobre o significado de “normativo”:

(a) as normas, um determinado sistema de normas, são o ponto de vista do qual o jurista, diversamente do sociólogo, considera os comportamentos sociais, aparecem por meio de uma tela com cer-ta estrutura narrativa, e os comportamentos interessam enquanto regulados e pelo modo como são regulados e, (b) são proposições normativas o resultado a que chega o jurista com sua obra de veri-ficação, de interpretação e de sistematização de determinado orde-namento jurídico positivo.

Nesse sentido, o conjunto de normas jurídicas criadas por um agente com-petente constitui o ordenamento jurídico16. E esse ordenamento pode apresentar 12 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 17ª ed., ver. atual. Saraiva: São Paulo, 1990, p. 82.13 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 79.14 REALE, Miguel. Lições preliminares..., cit., p. 95. E explica: “Dizemos que a norma jurídica é uma estrutura proposicional porque o seu conteúdo pode ser enunciado mediante uma ou mais proposições entre si correlacio-nadas, sendo certo que o significado pleno de uma regra jurídica só é dado pela integração lógico-complementar das proposições que nela se contém.” 15 BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Unesp, 2008.16 Dentre diversas outras: a Constituição Federal, o Código Civil, o Código Comercial, o Código Penal, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Loteamentos, a Lei da Incorporação Imobiliária.

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quatro espécies de situações que deverão ser estudadas de maneira a identificar uma adequada solução, quais sejam elas: o da unicidade, o da hierarquia, o da consistência e o da completude.

O estudo acerca dessas soluções é o objeto da Ciência Jurídica, uma vez que a ela cabe resolver os problemas criados por conta das normas jurídicas ob-servadas individualmente, e em seu conjunto (i.e. enquanto ordenamento jurídico). Tanto assim que Vilanova17 estabelece que a “Ciência do Direito não se reduz a uma análise em nível de metalinguagem formal sobre o Direito positivo. Seria ela um sistema cognoscente sobre outro sistema prescritivo, mas tomando o siste-ma-objeto, o do Direito positivo, em seu aspecto formal.” E para que não se perca e sequer se esqueça que essa atividade do jurista constitui uma escultura repleta de significados, Maximiliano18 diz que “pratica o hermeneuta uma verdadeira arte, guiada cientificamente, porém jamais substituída pela própria ciência. Esse elabora as regras, traça as diretrizes, condiciona o esforço, metodiza [...] porém não dispen-sa o coeficiente pessoal, o valor subjetivo.”

Dessa forma, o poder cria a norma jurídica e passa a ser problema do jurista, usando-se da técnica consubstanciada pela Ciência Jurídica, encontrar a melhor solução para sua aplicação. Com isso não se deseja de qualquer forma afirmar ou fazer entender que o Direito seja uma ciência, mas que o Direito é o objeto da ciência que tem por finalidade dedicar-se a seu estudo.

Caberá, assim, ao jurista, ao estudar o Direito, ou seja, frise-se, o conjunto de normas que constitui e integra o ordenamento jurídico19, utilizar-se de um mé-todo de estudo que pode ser entendido como sendo um conjunto de enunciados lógicos, prescritivos, que vêm do conhecimento e que não decorrem da vontade ou de atos decisórios, uma vez que na norma jurídica não há vontade ou decisão20 contidos em sua essência. Tanto assim que Nunes21 coloca que “o objetivo da ciên-17 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 158.18 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007.19 A este respeito, coloca Diniz: “a Ciência do Direito é uma ciência normativa, mas para evitar equívocos, convém esclarecer as três acepções da expressão ‘ciência normativa’: ciência que estabelece normas (Wundt); ciência que estuda normas (Kelsen); ciência que conhece a conduta através de normas (Cóssio)”. DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo: Resenha Universitária, 1982, p. 177.20 Enquanto norma jurídica não se encontra nela contida qualquer vontade ou exteriorização de uma decisão, isso se verificando apenas e tão somente quando do processo de escolha de um determinado fato a ser regulado pela norma e, inclusive, em seu processo de discussão.21 NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria: como a estatística pode reinventar o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 126.

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cia é descrever a realidade de forma objetiva e sem interferência das inclinações subjetivas do pesquisador. A realidade é o que é, quer gostemos dela ou não [...].”

A esse respeito importa estabelecer a diferença entre a função jurídico-cien-tífica e a jurídico-política tomando por empréstimo mais uma vez as palavras de Kelsen22 ao dizer que

um advogado que, no interesse de seu constituinte, propõe ao tribu-nal apenas uma das várias interpretações possíveis da norma jurídica a aplicar a certo caso, e um escritor que, num comentário, elege uma interpretação determinada, de entre as várias interpretações possí-veis, como a única “acertada”, não realizam uma função jurídico-cien-tífica, mas uma função jurídico-política (de política jurídica). (g.n.)

E a consequência direta dessa metodologia é que seu exercício se relaciona com a função social da Ciência Jurídica.

E assim o é por conta de constituir o principal elemento de estudo da Ciência Jurídica o da decidibilidade, ou seja, ao se deparar o jurista com o objeto de sua ciência deve avaliar a decisão tomada pelo poder e consubstanciada em norma de maneira a buscar respostas às perguntas que, ao integrarem o universo jurídico, venham a causar a menor perturbação possível.

Para tanto, exemplificativamente, o jurista pode se utilizar de um raciocínio baseado na construção de perguntas e respostas cuja técnica foi desenvolvida por Viehweg23 que, inclusive desenvolve a aplicação dos “topoi”24, os quais são as pre-missas examinadas e confrontadas dialeticamente na busca de uma verdade que seja uma solução justa (valorada e em conformidade com o ordenamento) para o caso concreto.

Em face dessas colocações, pode-se afirmar que o pensamento jurídico é “tecnológico”, uma vez se encontrar relacionado a uma específica técnica, isso é, conhecimento dos meios para se atingir uma determinada finalidade.22 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 396. 23 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento da imprensa nacional, 1979.24 Ferraz Júnior coloca: “No Direito, são topoi, neste sentido, noções como interesse, interesse público, boa fé, autonomia da vontade, soberania, direitos individuais, legalidade, legitimidade. Viehweg assinala que os topois, numa determinada cultura, constituem repertório mais ou menos organizados conforme outros topoi, o que permite séries de topoi. Assim, por exemplo, a noção de interesse permite construir uma série do tipo interesse público, privado, legítimo, protegido, etc.” FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Prefácio. In: VIEHWEG, Theodor. Tó-pica e jurisprudência. Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. (col. Pensamento Jurídico Contemporâneo, vol. 01). Brasília: Departamento da Imprensa Nacional, 1979, p. 27.

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A Ciência Jurídica tem por incumbência e finalidade definir os conceitos re-lacionados ao seu objeto, utilizando-se, para tanto, dos métodos de interpretação e de integração de normas jurídicas, assim como das técnicas que têm por fina-lidade a correção de antinomias (contradições). Ao assim proceder, proporciona à coletividade uma função cuja finalidade é a de apaziguar as relações sociais o quanto possível de maneira a conferir uniformidade ao ordenamento e, por via de consequência, conferir tranquilidade ao social.

Nesse sentido, o pensamento do jurista é que constrói a Ciência Jurídica no entorno de seu objeto. E ao assim proceder presta à sociedade uma função, sendo certo que sua construção pode ser avaliada sob três modelos, quais sejam: o analítico, o hermenêutico e o empírico. Para fins elucidativos, convém abordar em apertada síntese o analítico na exata medida em que este mantém relação mais próxima com o estudo que se deseja realizar ao término desta crítica acerca da retroatividade ou irretroatividade da lei, isso é, da aplicação de novel lei a situações consumadas no passado e que produzem efeitos no futuro.

A avaliação analítica não se relaciona ao estudo de fatos concretos, uma vez que cabe ao jurista avaliar situações hipotéticas. Para tanto, o jurista sistematiza o or-denamento jurídico, isso é, as normas jurídicas; com isso e por conta disso, o sistema jurídico não se trata de uma realidade, mas, sim, de um processo decorrente de um estudo organizado, e que tem por finalidade a sistematização de suas normas jurídicas.

Assim sendo, nessa função organizatória, cabe ao jurista avaliar se a norma jurídica é vigente no tempo e no espaço; se ela é constitucional; se ela é válida fa-ticamente (sob o prisma da eficácia) e idealmente (sob a ótica da justiça enquanto valor amparado pelo sistema). Como coloca Diniz25: “a eficácia da ordem jurídica como um todo e a eficácia de uma norma de Direito singular são – como o ato que estabelece a norma – condição de validade.”

Importa esclarecer que não cabe ao jurista preencher eventuais lacunas existentes em determinada norma jurídica ou no ordenamento jurídico, mas cabe a ele apontar, em uma lógica sistêmica, critérios normativos que poderão ser utiliza-dos pelo aplicador da norma jurídica quando se deparar com situações lacunosas. Diferença abismal essa entre o jurista e o jurisconsulto.

A esse respeito coloca Reale26: “a Ciência do Direito, como investigação positiva desse campo da realidade social que chamamos experiência jurídica, não pode deixar de obedecer às regras da Lógica, nem deixar de seguir métodos ade-25 DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo: Resenha Universitária, 1982, p. 56-57.26 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 17ª ed., ver. atual. Saraiva: São Paulo, 1990, p. 83.

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quados às suas finalidades.” E Diniz27 contribui: “a Ciência Jurídica enuncia na sua atividade teorética proposições jurídicas, cujos predicados indicam uma ação ou um estado de um ou mais sujeitos.”

O jurista, portanto, quando da exteriorização de suas opiniões na órbita da Ciência Jurídica não emite prescrições, mas, apenas, descrições, uma vez que ao se manifestar demonstra seu entendimento acerca da linguagem que constitui o objeto da norma jurídica, isso é, descreve em palavras uma determinada prescri-ção. Portanto, a opinião do jurista não busca influir no comportamento humano acerca da observância ou inobservância de uma determinada norma jurídica, mas, apenas, tem por finalidade discorrer sobre a linguagem legal.

Dessa forma, um dado enunciado constituído por um jurista – um enunciado normativo – não tem o condão de criar uma norma jurídica uma vez que seu emi-tente não tem a competência e a força para condicionar comportamentos. Mas, poderão ter o poder – em sentido figurado – de influenciar comportamentos quando da aplicação do direito a um caso concreto. E, nesse sentido, mais uma vez exsurge a importância da função que a Ciência Jurídica desenvolve para a sociedade na medida em que, mesmo não condicionando, pode iluminar e dirigir entendimentos e, por decorrência, comportamentos.

Ao discorrer acerca do interesse social no direito privado e, especialmente, acerca da função social, Wald28 coloca que ela não constitui “[...] uma carta branca para que o magistrado decida ao arrepio da lei e de princípios sedimentados.” E a opção por essa transcrição tem por finalidade iluminar a relevância da Ciência Ju-rídica e da função que ela exerce para a sociedade na medida em que estabelece critérios e contornos das normas e do ordenamento de forma a tornar sua aplicação objetivamente científica.

Tanto assim que Diniz29 coloca que “o jurista deve volver seus olhos às nor-mas sem se atrever a examinar as causas de sua origem, os fins sociais a que se destinam e a emitir juízos de valor sobre seu conteúdo, para ele pouco ou quase nada deve importar a moralidade ou imoralidade desses preceitos.”30 Mas isso não significa dizer que não cabe ao jurista perquirir quando do exercício de sua ciência a 27 DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica, cit., p. 59.28 WALD, Arnold. O interesse social no direito privado. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca (Co-ord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 55.29 DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo: Resenha Universitária, 1982, p. 60.30 E continua: “Se, porventura, não concordar com os comandos jurídicos por entender que são atentatórios à moral, deverá como observa GOFFREDO TELLES JUNIOR, ingressar como membro de um partido político e pleitear sua revogação, por se tratar de um problema político.”

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intenção do legislador, tanto assim que Reale31 ao abordar elementos da Escola da Exegese32 coloca: “determinar a intenção do legislador passou a ser um imperativo de ordem jurídica e política [...] chegava-se ao extremo de afirmar ‘se o intérprete substituir a intenção do legislador pela sua, o Judiciário estará invadindo a esfera de competência do Legislativo’.”

Importa iluminar, parafraseando Reale33 que identificar a intenção do legis-lador é pressuposto lógico e cientificamente aplicável de maneira válida em mo-mento próximo à aprovação de uma determinada lei e, portanto, se e enquanto não verificadas alterações significativas nas relações sociais.

Em face dessas breves enunciações que têm por finalidade colaborar com o assentimento da Ciência Jurídica, pode-se afirmar que ela exerce uma função so-cial na exata medida em que estabelece critérios de avaliação e de pesquisa – i.e. o instrumental necessário de forma a assegurar a ordem e a garantia da estabilidade sob a ótica da tecnologia (um método rigoroso e um plano sintático) – no campo das normas jurídicas e respectivo ordenamento no qual se integram e interagem.

Nesse exercício tecnológico e, através dele, a Ciência Jurídica identifica e ilumina bases possíveis de entendimento e aplicação das normas e, dessa forma, torna o estudo o quanto possível livre de elementos que lhe são estranhos, ou seja, que não integram a sua substância (sua essência). E Espinoza,34 acerca do atributo de uma substância, define como aquilo que o entendimento, através da razão, per-cebe acerca de uma substância como constituindo a sua essência, ou seja, que não decorre de uma criação das partes mas, sim, é preexistente a essas.

Em face, portanto, do quanto lançado anteriormente, afirma-se que tendo em vista a finalidade a que se propõe a Ciência Jurídica, sua função social é a de 31 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 17ª ed. ver. atual. Saraiva: São Paulo, 1990, p. 276.32 Coloca Reale ao realizar uma ponderação acerca da contribuição da Escola de Exegese: “[...] os mestres da Escola de Exegese e da “Analytical School”, assim como da Pandetística germânica, não teria poderiam podido elaborar, com tanta penetração e rigor de análise, as categorias e os institutos jurídicos que consolidaram a Ciên-cia Jurídica moderna, emancipando-a do Direito Romano, sem romper as raízes que prendem a cultura ocidental ao Corpus Juris, como um filho que põe a família própria, mantendo-se fiel às suas origens. A hoje tão criticada Jurisprudência dos Conceitos deixou-nos um legado do mais alto alcance, que é o sentido normativo e sistemático do direito, compreendido como lucidus ordo. O erro foi considerar-se imutável e intangível um sistema jurídico--político [...].” REALE, MIGUEL. Teoria Tridimensional do Direito. 2ª ed. rev. at. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 17.33 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 17ª ed. ver. atual. Saraiva: São Paulo, 1990.34 E a este respeito coloca Spinoza: “tudo o que uma substância tem de perfeição não se deve a nenhuma causa exterior, porquanto a sua existência tem de resultar exclusivamente da natureza que lhe é própria, a qual dela não é mais do que a própria essência. A perfeição de uma coisa não suprime a sua existência, antes, pelo contrário, a estabelece; é a sua imperfeição que a suprime [...]”. SPINOZA, Baruch de. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 78.

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conferir ao Direito a efetividade de seu estudo enquanto ciência e, por conta de sua ínsita objetividade, fazer afastar de sua aplicação, como coloca Aguiar Junior35 “a forte influência ideológica [...] da cláusula geral ‘função social’ como meio de enfraquecer o contrato e reduzir direitos [...]”.

Realizados, portanto, esses apontamentos, seguir-se-á com o destaque de alguns dos elementos estudados pela Ciência Jurídica enquanto tecnologia neces-sária ao entendimento das leis e normas integrantes do ordenamento jurídico de maneira a iluminar específica indagação: a Lei do Distratos deve ser, obrigatoria-mente, aplicada aos efeitos de determinado negócio jurídico estabelecido em pe-ríodo anterior ao início de sua vigência? Ou, ainda mais, em sendo de ordem pública seus comandos, deve referido diploma retroagir e ser aplicado até mesmo aos atos e/ou fatos consumados?

2 Conformação de conceitos pela Ciência Jurídica: elementos das margens possíveis

Se credita que para que se possa desenvolver uma observação acerca do tema objeto da indagação realizada na parte final do item anterior, faça-se necessá-rio, primeiramente, avaliar o que a Constituição do Brasil36, no inciso XXXVI, de seu artigo 5º, estabelece quando elenca os direitos e garantias fundamentais e afirma que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Como tive a oportunidade de descrever quando do estudo dos regimes jurí-dicos da compropriedade e da sociedade para a estruturação de empreendimen-tos imobiliários37, deverão ser enfrentadas, como é o caso, situações baseadas em normas abertas, ou seja, em modelos abertos. Para tanto, de forma a auxiliar o processo de interpretação e aplicação sem que se perca a segurança jurídica esperada do Direito e por conta da Ciência Jurídica cujos principais elementos de conformação foram lançados no item anterior, são transcritas as palavras de Martins-Costa38, enquanto fonte que tende a inspirar o caminho a ser perseguido nos seguintes termos:35 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Prefácio. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca (Coord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.36 A expressão Constituição do Brasil é utilizada por Grau, significando que o Brasil da atualidade dela nasceu. GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015.37 BARBARESCO, Marcelo. Compropriedade e sociedade. Estrutura, segurança e limites da autonomia privada. São Paulo: Almedina, 2017, p. 172-173.38 MARTINS-COSTA, Judith. Como harmonizar os modelos jurídicos abertos com a segurança jurídica dos contra-tos? Revista Brasileira de Direito Civil. Vol. 5, jul/set 2015, Instituto Brasileiro de Direito Civil, p. 8.

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[...] a minha mais presente preocupação intelectual e a mais pesa-da responsabilidade como jurista, a saber: determinar e explicitar critérios para a aplicação de modelos jurídicos abertos, procedendo a uma adequada – isto é, corretamente orientada – qualificação ju-rídica dos fatos, pois a qualificação é, por assim dizer, o momento máximo da interpretação [...]

Nesse sentido, e sob a premissa de que os conceitos do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada são modelos jurídicos abertos, a questão objeto da crítica circunscreve-se aos seguintes termos: poderia ser aplicado aos efeitos de determinado negócio jurídico a lei que, posteriormente à sua concreção, estabelece um tratamento diverso daquele existente quando de sua celebração? Esse tratamento dos efeitos sob o regramento de lei nova representaria ofensa às garantias constitucionalmente asseguradas do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada? Nesse cenário e, em sendo aplicável aos efeitos pro-duzidos sob a incidência da nova lei, representaria ofensa à segurança jurídica, ou, então, o que se espera do direito é uma interpretação cada vez mais relacionada à socialidade e à coletividade e em detrimento da proteção de comportamentos individualistas e egoísticos mesmo que pensados e estruturados sob a égide de um sistema que, à época, representava, se em termos, a coletividade?

Certamente que em face do recorte a que se propõe este texto, bem como da limitação de espaço e, mesmo que, de outro lado assim o fosse ilimitado, não seria possível de qualquer forma esgotar o desenvolvimento da crítica de maneira a responder de maneira satisfatória às mencionadas indagações. E isto por uma razão elementar, qual seja, cada uma delas demandaria um aprofundamento teórico espe-cificamente destinado à sua solução através da aplicação dos elementos conforma-dores da Ciência Jurídica e, inclusive, da crítica tendo por base um marco teórico que tivesse o condão de sustentá-las em seu desenvolvimento. E essa não é a finalidade última deste texto uma vez que, como informado alhures, o que se pretende é des-tacar elementos que são objeto da Ciência do Direito de maneira a reavivar conceitos por vezes adormecidos quando, não, esquecidos pelos jurisconsultos.

Em face desse cenário que é conformado por tais circunstâncias, importa avaliar o que a Constituição do Brasil objetivou, em última análise resguardar quan-do estabelece que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Buscando estabelecer contornos acerca dos mesmos regimes e, sem que com isso se possa entender que houve qualquer espécie de limitação, os parágra-

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fos primeiro, segundo e terceiro do artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Di-reito Brasileiro39 estabelece que: (a) reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou; (b) consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inal-terável, a arbítrio de outrem e, (c) chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.

Descrevendo o ato jurídico perfeito, Diniz40 informa que ele constituiria “o negócio, ou ato, jurídico consumado, segundo a norma vigente, ao tempo em que se efetuou, produzindo seus efeitos jurídicos, uma vez que o direito gerado foi exercido”. Beviláqua, mencionado por França41, coloca que o direito deseja res-guardar o ato jurídico perfeito de maneira que o legislador, assim como o intérprete da lei, o observe, uma vez que o ato jurídico “é gerador, modificador ou extintivo de direitos” e, portanto, “se lei nova pudesse dar como inexistente ou inadequado o ato jurídico, o direito adquirido, dele oriundo, desapareceria [...].” O que se dis-cute, portanto, e como será abordado mais adiante, é o entendimento acerca da consumação do ato, isso é, o momento em que se tem por consumado e a lei que sobre ele se aplica.

Por sua vez, o direito adquirido encontra-se na base da teoria clássica ou subjetivista do direito intertemporal, conforme afirma Cais42, informando, inclusi-ve, que o expoente dessa corrente foi o italiano Gabba43. Em assim sendo Diniz44 coloca que “para gerar o direito adquirido, o ato ou negócio jurídico deverá não só 39 Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, e suas alterações.40 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1449.41 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis..., cit., p. 235.42 CAIS, Fernando Fontoura da Silva. Direito processual civil intertemporal. Tese de Doutorado em Direito Proces-sual Civil. Universidade do Estado de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 12.43 E Barroso, ao abordar o tema da retroatividade da lei, realiza o seguinte estudo que contribui para a confor-mação da crítica objeto do presente trabalho: “[...] A controvérsia que opôs os dois principais doutrinadores que trataram do tema e seus seguidores – o italiano Gabba e o francês Paul Roubier. Para Roubier, a lei nova aplicava-se desde logo a esses efeitos, e essa circunstância o autor denominava efeito imediato da lei e não re-troatividade (note-se desde logo que, no caso de contratos, o próprio Roubier entendia que a lei velha continuava a aplicar-se, como se verá). Gabba, por sua vez, rejeitava essa solução com fundamento no conceito de direito adquirido (que será tratado mais adiante), para concluir que, também nessa hipótese, haveria retroação inválida. Ainda para Gabba, os efeitos futuros deveriam continuar a ser regidos pela lei que disciplinou sua causa, isto é, a lei velha. Como se sabe, a posição do autor italiano acabou por preponderar e, no Brasil, as Constituições sempre adotaram a fórmula de Gabba de proteção do direito adquirido (ao lado do ato jurídico perfeito e da coisa julgada).” BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado, cit. 44 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 16ª. ed. São Paulo, Saraiva, 2012, 1449.

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ter acontecido e irradiado seus efeitos em tempo hábil, ou seja, durante a vigência da lei que contempla aquele direito, mas também ser válido, ou seja, conforme os preceitos legais que o regem”.

Em complemento e, após realizar o estudo crítico dos conceitos cunhados por Gabba45, por Paulo de Lacerda e por Pacifici-Mazzoni, França46 pondera como sendo adquirido o direito que “é a consequência de uma lei, por via direta ou por in-termédio de fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto.” Importa iluminar que França inclui em sua definição elemento através do qual, para ser adquirido o direito, esse deve já ter integrado o “patrimô-nio” do sujeito, de forma a indicar que, em não integrando, não estaria a se falar de direito passível de ser adquirido e, portanto, em mera expectativa de direito.

Agregando-se a esses elementos, importa destacar que, para o direito civil, é aplicável e, enquanto regra geral47, o princípio do tempus regit actum, significando dizer que a lei vigente ao tempo do ato ou fato jurídico é que deve reger o respectivo ato ou fato acontecido e/ou verificado quando de sua vigência. Tanto assim que Reale48 ao abordar a distinção entre vigência e eficácia coloca que: “a lei nova, isto é, a vigência de uma lei não retroage, não tem eficácia pretérita. Uma clara distin-ção entre vigência e eficácia auxiliará a compreender algumas teses basilares de nossa Ciência, como por exemplo a dos ‘direitos adquiridos’, a da ‘irretroatividade da lei’[...].”

Em face desse cenário, pergunta-se: estariam esses elementos constitu-cionais informando que sua observância consubstancia aquilo que se denomina segurança jurídica dos administrados em face do poder do Estado? Ao abordar o tema da segurança jurídica, coloca Barroso49 que ela se conforma por45 E França assim afirma ter sido o conceito de direito adquirido cunhado por Gabba: “é a) consequenza di un fato idôneo a produrlo, in vitù della legge del tempo in cui il fatto venne compiuto benché l´ ocasione di farlo valere non siasi presentata dell´attuaziione di uma legge nuova intorno al medesimo e che b) a termini della legge sotto l’impero della quale acaade il fatto da cui trae origine, entró imediatamente a far parte del patrimônio di chi lo acquisitado.” FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis..., cit., p. 232-233.46 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis..., cit., p. 231.47 Enquanto regra geral pois, há entendimento, como será abordado logo mais à frente, de que até mesmo este princípio sofre limitações em algumas situações, tais como aquelas relacionadas às normas de ordem pública; àquelas relacionadas à função social da propriedade e/ou do contrato.48 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 17ª ed. ver. atual. Saraiva: São Paulo, 1990, p. 114.49 BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado. Segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, 2005.

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Um conjunto de conceitos, princípios e regras decorrentes do Estado democrático de direito [...] A lei, por sua vez, opera a despersonali-zação do poder, conferindo-lhe o batismo da representação popular. Visa, sobretudo, a introduzir previsibilidade nos comportamentos e objetividade na interpretação. De parte isto, cada domínio do Direito tem um conjunto de normas voltadas para a segurança jurídica, mui-tas com matriz constitucional. [...] Desse modo, o debate acerca da segurança jurídica, especialmente no que diz respeito aos efeitos da lei nova sobre a realidade existente quando de sua entrada em vigor, vem – sem ironia – se perpetuando no tempo.

E Bobbio50 complementa ao dizer que “[...] o direito, como ordenamento coa-tivo, visa à segurança coletiva. No exato momento em que se afirma que o direito garante pelo menos a segurança coletiva, quando não a paz, o fim, um certo fim, torna-se um elemento da definição funcional do direito.”

Já tivemos oportunidade de colacionar51 o entendimento de Martins-Costa segundo o qual “o Direito não pode se dar ao luxo de não ser positivo e o Direito positivo não pode se dar ao luxo de desvalorizar a segurança jurídica. [...] um orde-namento jurídico deve oferecer segurança e almejar segurança [...] deve acalmar e não inquietar.”

Em assim se amalgamando, em apertada síntese, a segurança jurídica como sendo a previsibilidade e a calculabilidade52 garantida pelo Estado53 e a todos a quem a lei se dirige, emerge dessa circunstância de que uma lei nova não atinge os fatos anteriores à sua vigência e que no mesmo lapso temporal tenha exaurido a produção de seus efeitos54. E assim ocorre exatamente por conta de, em sendo 50 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. São Paulo: Manole, 2011, p. 59.51 BARBARESCO, Marcelo. Compropriedade e sociedade. Estrutura, segurança e limites da autonomia privada. São Paulo: Almedina, 2017, p. 195.52 Nunes, transcrevendo Humberto Ávila, coloca que “esssa calculabilidade só existe se o cidadão puder contro-lar, hoje, os efeitos que lhe serão atribuídos pelo Direito amanhã, o que só ocorre se o cidadão tem, em grande medida, a capacidade de, aproximadamente, antecipar e reduzir o espectro reduzido e pouco variado de critérios e de estruturas argumentativas definidoras de consequências atribuíveis [...]”. NUNES, Marcelo Guedes. Jurime-tria: como a estatística pode reinventar o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 157.53 Grau coloca: “[...] é necessário que o Estado se empenhe na defesa do capitalismo contra os capitalistas. E, oportuna a transcrição do que colaciona em outro momento: “É oportuna a lembrança, aqui, da imagem do feiticeiro que já não consegue dominar as forças demoníacas que evocara. Para aplacá-las, afinal, é que o Estado esta aí, com o Direito que produz - o Direito posto - a serviço da preservação do sistema.” GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 96 e p. 56.54 A esse respeito, Cais coloca: “Esses constumam ser denominados pela doutrina, com esteio em idéias cunha-das na época do Direito Justiniaeu, de facta praeterita. Existirão outros que se constituíram no passado, mas que permanecem produzindo efeitos durante o tempo de vigência da nova lei. A eles a doutrina normalmente se

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esta retroatividade possível, estar-se contrariando direitos assegurados pela Cons-tituição do Brasil. Dessa forma afirma-se a não retroatividade das leis exatamente objetivando conferir efetividade ao Direito adquirido.

Mas, seria a irretroatividade um princípio ou uma regra? Caldas,55 ao desen-volver estudo a respeito e, para tanto, abordando o entendimento de Canotilho, de Virgílio Afonso da Silva e de Humberto Ávila, acerca da diferença entre um princípio e uma regra, adota o entendimento deste último por compreender que, em face da maleabilidade de um princípio que ora e outra poderia ser ou não aplicado por conta da ponderação entre princípios, conclui tratar-se de uma regra e, portanto, “que im-põe, de forma direta, o dever de adotar a conduta nela descrita [...], em fidelidade aos fins que lhe são subjacentes (dar segurança jurídica) [...]”.56 57

refere com facta pendentia. Por fim, após a vigência da nova lei advirão novos fatos por ela regrados, os quais são chamados de facta futura.” CAIS, Fernando Fontoura da Silva. Direito processual civil intertemporal. Tese de Doutorado em Direito Processual Civil. Universidade do Estado de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 11-12. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-08072011-133714/pt-br.php Acesso em 06 abr. 2019.55 CALDAS, Rodrigo de Oliveira. A lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes da vigência do novo Código Civil. Dissertação de Mestrado em Direito Civil. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Orien-tador Renan Lotufo. São Paulo, 2009, p. 92-104.56 E transcreve a posição de Virgílio Afonso da Silva que rechaça a ideia de que no conflito entre princípios a aplicação de um deles a um caso em concreto, excluiria o fim determinado por um (ou alguns deles) de maneira semelhante ao que ocorre no conflito entre regras, dizendo: “No caso de conflito total entre regras, uma delas, necessariamente, deverá ser declarada inválida, já que ambas não podem conviver no mesmo sistema [...] a hipotética não realização de um princípio em nada se aproxima à solução dada ao conflito entre regras, já que o princípio afastado não é declarado inválido [...]”. CALDAS, Rodrigo de Oliveira. A lei aplicável..., cit, p. 102. 57 O autor que, costumeiramente, é mencionado quando da abordagem da distinção entre princípios e regras é Robert Alexy, que ao estudar a constituição alemã se dedicou ao estabelecimento dessa diferença quando do estudo da aplicação das normas de direitos fundamentais. Nesse sentido e, fazendo referência à Robert Alexy, Gorzoni sustenta que: “[...] princípios são mandamentos de otimização, ou seja, normas que ordenam que algo seja feito na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto. Por outro lado, regras são mandamentos definitivos, ou seja, normas que só podem ser cumpridas ou não, sendo realizadas por meio da lógica "tudo ou nada". Isso implica formas diversas de solucionar conflitos entre regras e colisões entre princípios: enquanto o primeiro deve ser solucionado por meio de subsunção, a colisão deve ser resolvida por meio do sopesamento. [...] Já a colisão de princípios é solucionada de forma distinta. Quando dois princípios entram em colisão, um deles tem que ceder perante o outro. Entretanto, isso não significa que exista a declaração de invalidade de um princípio. Diante de certas circunstâncias do caso concreto, um princípio precede o outro. A dimensão a ser avaliada não é de validade, mas sim de peso de cada princípio. Por isso essa colisão deve ser resolvida por meio do sopesamento. É necessário considerar as variáveis presentes no caso concreto para atribuir pesos a cada direito e avaliar qual deverá prevalecer. A avaliação dos pesos dos princípios deverá levar em conta o seguinte raciocínio: ‘Quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância de satisfação do outro’. Após sopesá-los, chega-se a uma relação de precedência condicionada, isto é, sob certas condições um princípio precede o outro; sob outras condições, essa precedência pode ser estabelecida inversamente.” GORZONI, Paula. Entre o princípio e a regra. São Paulo: Novos Estudos CEBRAP, 2009. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101--33002009000300013#nt1. Acesso em 20 abr. 2019, p. 90, p. 93, p. 167.

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Mas mesmo essa conclusão comporta entendimento oposto e de outros que estudaram o tema, em outra vertente, quando se tratar de normas de ordem pública como mais à frente será observado.

Retornando, portanto: a questão não se encerra na irretroatividade pura e simples e acerca de atos praticados e cujos efeitos se consolidaram sob a vigência de determinada norma. Há, sim, atos e/ou negócios jurídicos que não se esgotam instantaneamente. Há aqueles cujos efeitos se operam no tempo, tais como assim o são os de trato sucessivo ou, então, aqueles que, não obstante celebrados em determinado momento, somente produzem efeitos no futuro e, no caso, sob a vi-gência de uma nova lei. Exatamente dirigido a essas situações, importa destacar a título de exemplo que o artigo 2.035 do Código Civil58 estabelece que, salvo se pac-tuada alguma forma de execução, os seus efeitos serão regulados pela lei vigente à época de sua ocorrência.

E quanto a esse ponto, o que se discutiu e ainda se discute é se há diversas espécies de gradação de retroatividade, informando que duas delas são inadmissí-veis pelo ordenamento jurídico e por conta do princípio da retroatividade e, outra, admissível59 pelas razões que adiante serão levantadas. Quanto àquela que alguns 58 O Artigo 2.035 do Código Civil dispõe que: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no artigo 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”59 A respeito deste tema, coloca Barroso: “Quanto à graduação por intensidade, as espécies de retroatividade são três: a máxima, a média e a mínima. Matos Peixoto, em notável artigo – Limite Temporal da Lei – publicado na Revista Jurídica da antiga Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (vol. IX, págs. 9 a 47), assim as caracteriza: ‘Dá-se a retroatividade máxima (também chamada restitutória, porque em geral restitui as partes ao statu quo ante), quando a lei nova ataca a coisa julgada e os fatos consumados (transação, pagamento, prescri-ção). Tal é a decretal de Alexandre III que, em ódio à usura, mandou os credores restituírem os juros recebidos. À mesma categoria pertence a célebre lei francesa de 2 de novembro de 1793 (12 brumário do ano II), na parte em que anulou e mandou refazer as partilhas já julgadas, para os filhos naturais serem admitidos à herança dos pais, desde 14 de julho de 1789. A carta de 10 de novembro de 1937, artigo 95, parágrafo único, previa a aplicação da retroatividade máxima, porquanto dava ao Parlamento a atribuição de rever decisões judiciais, sem executar as passadas em julgado, que declarassem inconstitucional uma lei. A retroatividade é média quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurídico verificados antes dela, exemplo: uma lei que limitasse a taxa de juros e não se aplicasse aos vencidos e não pagos. Enfim a retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores produzidos após a data em que ela entra em vigor. Tal é, no direito romano, a lei de Justiniano (C. 4, 32, de usuris, 26, 2 e 27 pr.), que, corroborando disposições legislativas anteriores, reduziu a taxa de juros vencidos após a data da sua obrigatoriedade. Outro exemplo: o Decreto-Lei n. 22.626, de 7 de abril de 1933, que reduziu a taxa de juros e se aplicou, ‘a partir da sua data, aos contratos existentes, inclusive aos ajuizados (art. 3°)’ (págs. 22/23)” BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado..., cit., (g.n.).

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entendem como, em tese, admissível, localiza-se a que Sampaio60 informa ser a de “retroatividade mínima, ao admitir, apenas no nível acadêmico, que os efeitos de atos anteriores sejam submetidos à regência da lei posterior.” Mas esse entendi-mento não é inequívoco, uma vez que há aqueles que, conforme mencionado por Levada61, afirmam que essa teoria acerca dos níveis de retroatividade “[...] não tem aplicação no direito intertemporal brasileiro pois, (a) ao criar os efeitos retroativo médio e mínimo, acaba por sugerir uma vedação, inexistente, ao efeito imediato qualificado da lei nova, o qual, no direito intertemporal brasileiro, encontra limite ape-nas na proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada[...]”.

Em face desse cenário e sob essa premissa, afirmam que a lei nova não estaria sendo aplicada retroativamente, mas, sim, para atos e/ou negócios jurídicos que, mesmo concluídos sob a égide de uma lei anterior e diversa da que a sucedeu, viesse a produzir efeitos, total e/ou parcialmente, na regência de lei nova; tanto assim que no início deste ano de 2019 houve decisão judicial de primeira instância, na Comarca de São Paulo, entendendo e aplicando a Lei dos Distratos a contratos celebrados anteriormente ao início de sua vigência62.

Entretanto, Barroso63 discorda de tal conclusão e coloca que “a incidência da lei nova sobre os efeitos de atos praticados na vigência da lei antiga é modalidade de retroatividade vedada pela Constituição de 1988”64.60 SAMPAIO, Marcelo Telles Maciel. Confrontando o art. 2035 do Código Civil com a Constituição Federal. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2008. Disponível em http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=d9697c1a-7775-4c65-b8e5-0cd67c29b089&groupId=10136. Acesso em 05 abr. 2019.61 LEVADA, Filipe Antonio Marchi. O direito intertemporal e os limites do direito adquirido. Dissertação de Mes-trado em Direito Civil. Universidade do Estado de São Paulo. São Paulo, 2009, p. 154.62 E assim a sentença, afirmando estar aplicando a Lei Federal 13.786/2018 de maneira a resguardar os interes-ses do consumidor, às fls. 191-192 coloca: “[...] Tendo em conta que a lei posterior não traz gravame demasiado ao consumidor é possível a sua aplicação de plano, não havendo que se falar na aplicação de tal regra somente aos contratos instituídos a posteriori da publicação e vigência da nova redação trazida pela Lei 13.786/2018. [...] Ressalto que não vislumbro, de momento, qualquer inconstitucionalidade – formal ou material – para a não aplicação imediata da lei. Inclusive por estar-se diante, no entendimento deste magistrado, de norma de retro-atividade média, qual seja, se opera quando a nova lei, sem alcançar os atos ou fatos anteriores, atinge os seus efeitos ainda não ocorridos (efeitos pendentes).” (Processo 1070803-55.2018.8.26.0100. 7ª. Vara Cível. Foro Central Comarca de São Paulo. Requerente: Rogério Westphal Gonzalez. Requerido: Jaguarete Empreendimentos e Participações Ltda. J. 10.01.2019).63 BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado, cit.64 E arremata Barroso: “É incompatível com a idéia de segurança jurídica admitir que a modificação posterior da norma pudesse surpreender as partes para alterar aquilo que tinham antevisto no momento da celebração do contrato. [...] A lição de Henri de Page sobre o assunto é clássica e foi reproduzida por Caio Mário da Silva Pereira nos seguintes termos: ‘Os contratos nascidos sob o império da lei antiga permanecem a ela submetidos, mesmo quando os seus efeitos se desenvolvem sob o domínio da lei nova. O que a inspira é a necessidade da segurança

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Entretanto, em posição contrária e fazendo referência específica ao artigo 2.035 do Código Civil – há posição que defende a aplicação imediata da lei nova a atos e/ou fatos constituídos no passado tendo como fundamentação a socialização do direito e, afirmando que a retroatividade inexiste, uma vez que se estaria tratando de efeitos presentes de fatos constituídos no passado65. E assim seria exatamente por conta do vigente Código Civil trazer em sua essência os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade, que são, inclusive, princípios constitucionais aplicáveis ao direito privado e que informariam a interpretação e a aplicação do Direito.

Acerca da socialização do direito, Reale66 coloca que deve permear a inter-pretação do ordenamento jurídico e, especialmente, do vigente Código Civil, confor-me discorre na exposição de motivos do anteprojeto que lhe deu origem:

Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes inspi-radoras do Código vigente, reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a corre-lação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclu-sivismos, numa ordem global de comum participação, não pode ser julgada temerária, mas antes urgente e indispensável, a renovação dos códigos atuais, como uma das mais nobres e corajosas metas de governo.

Em face dessas considerações, que de maneira indireta relacionam-se com as indagações suscitadas no início desse item, Diniz67 sustenta que

[...] o ato ou negócio jurídico em curso de constituição, validamente celebrado antes da vigência do novo diploma legal, em sua forma-lidade extrínseca, seguirá o disposto no regime anterior, mas como ainda não pode irradiar todos os efeitos, que se produzirão somente por ocasião da entrada em vigor da lei [...] os contratantes terão o direito de vê-lo cumprido, nos termos da novel lei que, então, regu-lará seus efeitos[...].

em matéria contratual. No conflito dos dois interesses, o do progresso, que comanda a aplicação imediata da lei nova, e o da estabilidade do contrato, que conserva aplicável a lei antiga, tanto no que concerne às condições de formação, de validade e de prova, quanto no que alude aos efeitos dos contratos celebrados na vigência da lei anterior, preleva este sobre aquele.’ ” BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado, cit. 65 E a esse título pode-se mencionar os seguintes exemplos: a taxa de juros de mora legal; a possibilidade da mudança do regime patrimonial entre cônjuges.66 REALE, Miguel. Exposição de motivos do supervisor da comissão revisora e elaboradora do Código Civil. Novo Código Civil. Exposição de Motivos e Texto Sancionado. Brasília, 2005, p. 23-24.67 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 16ª. ed. São Paulo, Saraiva, 2012, p. 1450.

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Esse entendimento acerca do tema da aplicação de lei nova a atos e fatos constituídos no passado e que continuam a irradiar seus efeitos no futuro foi o adotado quando do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, em 02 de janei-ro de 2004, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3105-DF, que tinha por fina-lidade avaliar a conformidade constitucional da Emenda Constitucional 41/2003, que tratava da contribuição previdenciária compulsória pelos servidores públicos aposentados.68

Entretanto, esse entendimento não é imune a outros em sentido contrá-rio. Tanto assim que vários outros69 e dentre eles Barroso70, conclui que a garantia “contra a retroatividade da lei [...] impede que os contratos, mesmo aqueles de trato sucessivo, ou quaisquer outros atos jurídicos perfeitos, sejam afetados pela incidência da lei nova, tanto no que diz respeito à sua constituição válida, quanto no que toca à produção de seus efeitos”.

Dirigindo-se diretamente aos negócios jurídicos, logo após realizar variadas ponderações acerca dos contratos a termo e sob condição, afirma França71 que

há um paralelo entre os direitos a termo e aqueles correspondentes a obrigações periódicas, oriundos da generalidade dos contratos de trato sucessivo. Assim, a mesma razão que leva a considerar Direi-to Adquirido os efeitos de um negócio jurídico a ser executado em diversas quotas, conduz ao reconhecimento de que igualmente se passa com os direitos a termo.

Acerca do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, importa, outrossim, ilu-minar aquelas possibilidades insculpidas pelo ordenamento jurídico e previstas na parte final do artigo 2.035, do vigente Código Civil e seu parágrafo único – ambas tomadas por empréstimo para o corrente estudo – uma vez que as conclusões dos 68 Diz o artigo 4º da Emenda Constitucional 41/2003: “Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Es-tados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3º, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.” A decisão do Supremo Tribunal Federal foi por maioria, uma vez que julgou impro-cedente o pedido formulado através de mencionada ação em relação, especificamente, ao caput do artigo 4º. da Emenda Constitucional n. 41/2003, sendo vencidos os ministros Carlos Britto, Marco Aurélio e Celso de Mello, assim como a Relatora a Ministra Ellen Gracie. No mesmo sentido a decisão na Ação Direta de Inconstituciona-lidade n. 3105-8, disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=363310.69 A respeito de outros que entendem como Barroso (ob. cit.), observar a nota de rodapé 71.70 BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado. Segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, 2005.cit.71 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis..., cit., p. 246.

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juristas identificadas através da Ciência Jurídica poderão contribuir para a identifica-ção de respostas tecnológicas àquelas que se pretende obter através deste estudo.

A parte final do artigo 2.035 estabelece, quanto aos efeitos a serem produ-zidos na vigência da nova legislação, que somente serão aplicáveis aqueles esta-belecidos pela lei se as partes, na disciplina da autonomia da vontade, não tenham estabelecido alguma específica forma de execução. Portanto e, mais uma vez, tal-vez, privilegie a segurança jurídica e, por consequência, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido.

Quanto à forma de execução estabelecida pelas partes, essa será observada e respeitada desde que, em conformidade com o parágrafo único do artigo 2.035 do vigente Código Civil, não venha a contrariar preceitos de ordem pública que tenham por finalidade, inclusive, assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

A respeito dos preceitos de ordem pública mais uma vez este trabalho utiliza as lições de Barroso72 que, fazendo menção a conteúdo de voto73 de Moreira Alves ao apreciar a aplicação da Taxa Referencial – TR a contratos assinados tendo por base outro índice74 legal ou contratualmente estabelecido, sustenta que:

[...] Quanto ao conteúdo do ato normativo, não há qualquer distin-ção entre as chamadas “leis de ordem pública” e as demais [...]. A Constituição não prevê exceções. [...] o Supremo Tribunal Fede-ral já decidiu diversas vezes que a caracterização de lei de ordem pública não tem maior relevância quando se está diante de direito

72 Em nota de rodapé, Barroso sintetiza as posições da doutrina acerca do papel que as leis de ordem pública assumem no conflito intertemporal de leis, nos seguintes termos: “Rubens Limongi França registra a presença de três correntes doutrinárias razoavelmente bem definidas no direito brasileiro. Na primeira delas, a dos partidários do efeito retroativo, incluir-se-iam Clóvis Beviláqua, os Espínolas e Carvalho Santos. Na outra mão, autores como Eduardo Theiler, Oscar Tenório e Caio Mário propugnam o respeito ao direito adquirido. E, por fim, há o grupo dos consectários do efeito imediato, integrado, entre outros, por Pontes de Miranda e Vicente Ráo. Peculiar é o en-tendimento do próprio Rubens Limongi França, para quem as normas de importância pública ou social expressiva, que têm efeito imediato como regra, poderiam retroagir desde que: (i) o legislador assim determinasse explici-tamente e (ii) tal retroatividade, ao sobrepujar direitos adquiridos, não alcançasse proporções de desequilíbrio social e jurídico. V. Rubens Limongi França, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982, p. 253 e s.” BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado, cit.73 STF, RTJ, 143:724, 1993, ADIn 493-DF, Rel. Min. Moreira Alves. 74 Se tratava da aplicação da Lei Federal n. 8177, de 1 de março de 1991 a contratos celebrados antes do início de sua vigência. E assim consta da ementa da ADIn 493-DF mencionada na nota de rodapé anterior: “Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ele, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. [...] Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido [...]”.

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adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Confira-se, por todos, trecho do acórdão marco na matéria, relatado pelo Ministro Moreira Alves, in verbis: “Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroativi-dade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qual-quer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirma-ção de muitos – apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal – de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é ve-dado constitucionalmente”.

Entretanto, Diniz,75 ao abordar o tema da função social da propriedade e colecionando os ensinamentos de José de Oliveira Ascensão, que desenvolve crí-tica concluindo acerca da relevância atribuída pelo ordenamento jurídico brasileiro à função social, entende que “a irretroatividade da lei não é absoluta, pois poderá alcançar convenção de execução que contrarie preceitos de ordem pública como o princípio da função social do contrato e da propriedade, por ser inadmissível produ-ção de efeitos incompatíveis com esses princípios”. E Silva76 contribui de maneira a afirmar que o “princípio da irretroatividade da lei não é de Direito Constitucional, mas princípio geral de Direito. Decorre do princípio de que as leis são feitas para vigorar e incidir para o futuro.” Mas Silva continua e coloca que não concorda com o posicionamento daqueles que afirmam que não há direito adquirido em face da lei de ordem pública e assim se manifesta: “A generalização não é correta nestes termos. O que se diz com boa razão é que não corre direito adquirido contra o inte-resse coletivo [...], por que aquele é manifestação de interesse particular que não pode prevalecer sobre o interesse geral. A Constituição não faz distinção.”

Em face dessas colocações e acerca das normas de ordem pública e sua aplicabilidade, inclusive, a atos e/ou fatos jurídicos consolidados e que tenham con-75 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 16ª. ed. São Paulo, Saraiva, 2012, p. 1452.76 Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª ed., rev. at. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 435.

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cluído seus efeitos e, quanto mais para os futuros efeitos de atos e/ou fatos con-sumados no passado, poder-se-ia indagar se a alcunhada Lei dos Distratos contém normas de ordem pública de maneira que sua aplicação possa ser abarcada por mencionados entendimentos.

Em assim o sendo, se a própria Constituição do Brasil elege como princípios norteadores de todo o ordenamento jurídico, assentando inclusive em cláusulas pétreas tanto a função social da propriedade, quanto o respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, surge uma antinomia jurídica real77 e de segundo grau que deverá ser solucionada pela Ciência Jurídica de forma a tranquilizar e conferir segurança jurídica aos administrados. O estudo de forma a resolver essa antinomia demandaria a realização de novas e extensas pesquisas, além de críticas, mas a limitação de espaço impede seu desenvolvimento neste momento.

Relativamente, portanto, à aplicação imediata e obrigatória da Lei Federal 13.786/2018 aos efeitos a serem produzidos por determinado negócio jurídico es-tabelecido em período anterior ao início de sua vigência, percebe-se que há possibi-lidade de entendimento em diversos sentidos e todos eles baseados na tecnologia insculpida pela Ciência Jurídica.

E assim se opera a depender da compreensão do alcance e significado do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, enquanto garantias asseguradas pela Constituição do Brasil que inibe, sempre a depender da caracterização do específi-co sistema jurídico constituído por determinado jurista – i.e. seja enquanto norma ou, então, enquanto princípio – quanto à qualificação da retroatividade da lei; salvo para as especiais situações tratadas constitucionalmente de forma expressa como sendo passível de retroatividade78.

Talvez e por conta desse fator que se faz materializar através do levantamen-to bibliográfico e jurisprudencial levados a efeito quando da coleta do material que 77 A esse respeito, a define Ferraz Junior, nos seguintes termos: “[...] antinomia real é a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que coloca o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhes uma saída nos quadros de um ordenamento.” FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Verbete Antinomia. In: FRANÇA, Rubens Limongi (Org.) Enciclopédia Saraiva do Direito. Vol. 7. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 14.

E explica Levada: “[...] antinomia real é o conflito normativo que não pode ser solucionado por um critério pré--determinado de exclusão – diferentemente da antinomia aparente, a qual é resolvida pelos critérios hierárquico (a norma hierarquicamente superior prevalece sobre a inferior), da especialidade (a norma especial prevalece sobre a geral) e cronológico (a norma posterior prevalece sobre a anterior).” LEVADA, Filipe Antonio Marchi. O direito intertemporal e os limites do direito adquirido. Dissertação de Mestrado em Direito Civil. Universidade do Estado de São Paulo. São Paulo, 2009. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-19112009-133339/pt-br.php. Acesso em 05 abr. 2019, p. 157.78 A título de exemplo é possível se referir à lei penal, quando mais benéfica ao réu.

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serviu de base à produção deste texto, seja conveniente considerar a aplicação da jurimetria para que possa, o jurisconsulto, em face desse cenário de possibilidades, adotar um caminho um tanto mais certeiro e menos movediço quando de sua orien-tação quanto aos negócios jurídicos imobiliários.

Nesse sentido pode-se tomar por empréstimo o que Nunes,79 ao abordar o conceito de segurança jurídica, coloca como sendo sua “nova feição quando, a partir da ideia de previsibilidade, ele é definido como uma situação em que cida-dãos que incorram em condutas iguais encontrem no ordenamento um tratamento também igual.” E assim poderá, em tese, ser operado quando da utilização da es-tatística de forma que, parafraseando Nunes, na essência da análise prospectiva da jurimetria reside a investigação das relações de situações passadas e presentes e, com base nesta avaliação, realiza-se uma comparação com os possíveis estados futuros de um processo decisório.

Em assim o sendo, a previsibilidade e a calculabilidade assumem, de certa maneira e, o quanto possível, contornos estatísticos e, com isso, buscam conferir aos agentes do negócio jurídico imobiliário melhores condições de decidibilidade.

Conclusão

A Ciência Jurídica exerce uma função social para o Direito na medida em que estabelece uma separação entre o científico e o político quando da avaliação das possibilidades insculpidas nas leis. E assim se opera por conta da compreen-são do ordenamento jurídico por determinado jurista que, ao exercer sua técnica atividade e, tendo em vista determinada estrutura, estabelece o seu sistema jurídico próprio.

Esse sistema guarda em si premissas lógicas inafastáveis para a caracte-rização de um estudo como sendo realizado por um jurista, isso é, sempre uma determinada linha filosófica embasará o seu processo de entendimento e de de-cisão. Melhor esclarecendo: aquele que possui a qualidade de jurista é fiel a uma linha que fundamenta sua maneira de pensar e, exatamente por conta dessa cir-cunstância, é possível localizar respostas diversas, no todo e/ou em parte, para idênticas perguntas.

Nesse sentido, surge o jurisconsulto que, dentre as possibilidades apresen-tadas pela Ciência Jurídica, opta por aquela que, no caso concreto, melhor res-79 NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria: como a estatística pode reinventar o direito. São Paulo, 2016, p. 168.

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guarda os atuais e imediatos interesses daquele que representa. E, tendo por base essa consciente e política escolha, busca interferir na decisão dos demais quanto à aceitabilidade de sua opção, podendo, inclusive, utilizar-se da jurimetria como forma de objetivar, estatisticamente, esse processo.

E a razão de escolher, de optar, de seguir por um caminho ou outro encon-tra-se materializada neste texto, que teve por finalidade marcar alguns elementos científicos de forma a iluminar o processo de decisão quanto à aplicação obrigatória e imediata ou, não, da Lei Federal 13.786/2018 – alcunhada de Lei dos Distratos – aos negócios jurídicos imobiliários constituídos no passado que venham a surtir efeitos presentes.

Nesse sentido, entende-se como atendida a finalidade proposta no exato sentido do não desenvolvimento, o quanto possível, de uma posição política, mas, sim, daquela que teve por finalidade estabelecer os limites e/ou contornos de pos-síveis critérios que, a depender da posição de cada intérprete, isso é, de cada leitor, possa ele, de acordo com sua conveniência, optar, consciente e tecnicamente, por uma ou outra posição.

De todo modo, e apenas aumentando a intensidade dessa específica luz, a escolha tenderá a repercutir efeitos não apenas na aplicação imediata da espe-cífica Lei dos Distratos aos efeitos presentes com relação a fatos constituídos no passado, mas, inclusive, no entendimento acerca da aplicação de futuras leis que venham de alguma forma regular de maneira diversa aquilo que a autonomia da vontade houve por bem disciplinar através da livre iniciativa assegurada na Cons-tituição do Brasil. Nesse sentido, ainda uma vez faço remissão ao que já escrevi alhures.80 A coerência faz parte dos coerentes de maneira a afastar as conclusões casuísticas e, quando não, as oportunistas.

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80 BARBARESCO, Marcelo. Compropriedade e sociedade. Estrutura, segurança e limites da autonomia privada. São Paulo: Almedina, 2017, p. XX.

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Ricardo de Oliveira Campelo1

Resumo

O presente trabalho tem o objetivo de avaliar, no âmbito do direito urbanísti-co brasileiro, os limites legais para a aplicação das contrapartidas urbanísticas por parte do poder público. A análise perpassa os dispositivos constitucionais sobre as competências legislativas em matéria de direito urbanístico, as disposições do Estatuto da Cidade sobre os instrumentos da política urbana e sobre o plano diretor, além do princípio da reserva de plano.

Palavras-chave

Contrapartidas, contrapartidas urbanísticas, direito urbanístico, plano diretor, doações, parcelamento do solo, medidas mitigadoras, função social.

Abstract

This article discusses the legal limits to the ‘urban compensations’ deman-ded by the public authorities in Brazil. The analysis covers the constitutional provi-sions regarding the legislative competences for urban law, the dispositions on the ‘Statute of the City’ concerning the instruments for the urban policy and the director plan, and also the principle of the director plan’s reservation.

1 Bacharel em Direito pela UFPR, Pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-PR, LLM – Legal Law Master pela Estação School/IBMEC. Membro do Conselho de Administração do IBRADIM. Membro dos Conselhos Jurídicos do Sinduscon-SP e da CBIC.

AS CONTRAPARTIDAS URBANÍSTICAS: LIMITES

LEGAIS PARA A SUA EXIGÊNCIA PELO PODER PÚBLICO

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Key words

Compensations, urban compensations, urban law, director plan, donations, land subdivision, mitigating measures, social function.

Sumário

Introdução; 1 Propriedade, Função Social e Direito Urbanístico; 2 O Arcabou-ço Legislativo Urbanístico no Brasil; 2.1 O Estatuto da Cidade e os instrumentos da política urbana; 2.2 Competência municipal e o princípio da reserva de plano; 3 As Contrapartidas Urbanísticas: Definição e Condições de Validade; 3.1 Casos práticos; 4 Conclusões.

Introdução

O direito urbanístico contemporâneo contempla a preocupação com que a ocu-pação e o parcelamento do solo ocorram de maneira ordenada e de forma a melhor atender os interesses da coletividade. No Brasil, atribuiu-se ao poder público a com-petência para instituir e aplicar instrumentos de política urbana, que, muitas vezes, aparecem como limitadores ou condicionadores do desenvolvimento das cidades.

No exercício dessa competência, as autoridades urbanas brasileiras vêm exigindo, seja para o deferimento de projetos de parcelamento do solo, seja para a aprovação de projetos de edificação, a execução de diversas modalidades de con-trapartidas por parte do interessado. No entanto, muitas vezes essas imposições acabam por se realizar à margem do arcabouço normativo vigente.

O que se pretende com o presente trabalho é avaliar quais são os limites legais para a aplicação dessas contrapartidas por parte do poder público de modo que não se tornem intervenções indevidas no exercício do direito de propriedade pelo particular.

1. Propriedade, Função Social e Direito Urbanístico

A propriedade é, sem dúvida, um dos temas de maior relevância e, portanto, objeto de grande parte dos estudos relacionados ao Direito. O autor Yuval Noah Harari relaciona a proliferação da propriedade ao desenvolvimento de sociedades hierárquicas nos moldes em que temos hoje:

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Depois da revolução agrícola, a propriedade multiplicou-se, e, com ela, a desigualdade. Quando humanos obtiveram propriedade de terra, animais, plantas e ferramentas, surgiram rígidas sociedades hierárquicas, nas quais pequenas elites monopolizavam a maior parte da riqueza e do poder, geração após geração. Os humanos aceitaram esse arranjo como sendo natural e até mesmo prove-niente de ordem divina.2

Os poderes de usar, fruir e dispor do bem constituem os elementos primor-diais da propriedade, conforme definição mundialmente aceita, e hoje positivada no art. 1.228 do Código Civil de 2002. É essa a sustentação que possibilita ao proprie-tário de imóvel urbano a execução de projetos, tanto pela via do parcelamento do solo, quanto pela ocupação do solo exercendo o direito de construir.

De outro lado, há muito o exercício do direito de propriedade vem sendo condicionado a que ela cumpra com uma função social. A Constituição brasilei-ra de 1988, ao instituir os direitos individuais, no art. 5º, estabelece no inciso XXII que “é garantido o direito à propriedade” para, logo em seguida, no inciso XXIII, prescrever que “a propriedade atenderá a sua função social”. O parágrafo primeiro do art. 1.228 do Código Civil é amplo, ao preceituar que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades eco-nômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.

É nesse ambiente, da compreensão do bem, especialmente o imóvel urba-no, como “elemento de construção de harmonia e coesão do tecido social, com di-reitos da coletividade oponíveis ao proprietário”3, e não de “subordinação completa de terceiros frente ao proprietário”, que se torna clara a necessidade de regulamen-tação do seu uso a partir de regras de natureza urbanística.

José Afonso da Silva4 explica que o Direito Urbanístico surge para atuar na conformação dos conflitos entre o direito individual dos proprietários e os interes-ses da coletividade:2 HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o Século 21. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 75. 3 APPARECIDO JUNIOR, José Antonio. Propriedade urbana & edificabilidade: o plano urbanístico e o potencial construtivo na busca das cidades sustentáveis. Curitiba: Juruá, 2012, p. 83. 4 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 34.

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A atuação urbanística do Poder Público gera conflitos entre o interes-se coletivo à ordenação adequada do espaço físico, para o melhor exercício das funções sociais da cidade, e os interesses dos proprie-tários, que se concretizam em que seja aproveitável toda a super-fície de seus lotes, que desejam edificar todo o seu terreno e nele construir o máximo volume, fundados no espírito de lucro e numa concepção individualista da propriedade como direito absoluto. (...)A composição desses conflitos de interesse urbanístico é função da lei, e na medida em que a atividade urbanística se faz mais ne-cessária e intensa vão surgindo normas jurídicas para regulá-la e fundamentar a intervenção no domínio privado. Essas normas – que, entre nós, carecem de sistematização e de unidade, por falta de uma lei urbanística geral – é que constituem o que a teoria jurídica vem denominando Direito Urbanístico.

Nessa mesma linha, José Antonio Apparecido Junior5, ao abordar o conceito de propriedade urbanística, que passou a ser reconhecida em nome da “conforma-ção jurídica da propriedade imobiliária urbana irrigada pelos princípios e regras de caráter urbanísticos”:

(...) é de se constatar ser inegável o atual status de direito individual da propriedade – não fosse por outro motivo, tal disposição é texto expresso do art. 5º da nossa Constituição Federal. É preciso debater, entrementes, o conceito de limitações urbanísticas como modo de conformação da propriedade urbana (...).Em face do que foi exposto, podemos chegar ao conceito de pro-priedade urbanística, que é aquela, inserida no contexto de normas e planos urbanísticos, vinculando sua função social à ordenação da cidade expressa no plano diretor.

Arremate-se com o escólio de Carlos Ari Sundfeld6:

O direito urbanístico é o reflexo, no mundo jurídico, dos desafios e problemas derivados da urbanização moderna (concentração popu-lacional, escassez de espaço, poluição) e das ideias da ciência do urbanismo (como a de plano urbanístico, consagrada a partir da dé-cada de 30). Estes foram os fatores responsáveis pelo paulatino sur-gimento de soluções e mecanismos que, frente ao direito civil e ao direito administrativo da época, soaram impertinentes ou originais e

5 Op. Cit., p. 88-90. 6 SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAS, Sér-gio (Coord.). Estatuto da Cidade: comentários à lei federal 10.257/2001. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 46.

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que acabaram se aglutinando em torno da expressão ‘direito urba-nístico’. Esse direito contrapôs-se ao direito civil clássico ao deslocar do âmbito puramente individual para o estatal as decisões básicas quanto ao destino das propriedades urbanas (princípio da função so-cial da propriedade). Em consequência, ampliou o objeto do direito administrativo, para incorporar medidas positivas de intervenção na propriedade, deixando para trás as limitadas medidas de polícia, de conteúdo negativo.

Portanto, o Direito Urbanístico surge como um conjunto de normas editadas para funcionarem não apenas como elementos limitadores, mas como comandos efetivos para concretizar a boa ocupação do espaço urbano, conformando os inte-resses individuais dos proprietários aos anseios da coletividade.

2 O Arcabouço Legislativo Urbanístico no Brasil

A Constituição de 1988, em matéria de direito urbanístico, cuida, inicialmen-te, da distribuição de competências legislativas. Nesse sentido, estabelece, em seu art. 24, I, que é de competência da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre direito urbanístico. No art. 21, XX, estatui que compete à União Fe-deral “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano”. Aos Município, atribui-se a competência de “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (art. 30, VIII).

Em capítulo específico, regula-se a política urbana, com destaque para o instituto do plano diretor como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana” (art. 182, § 1º).

A respeito do relevante papel assumido pela Constituição na regulamenta-ção urbanística, ensinam José Renato Nalini e Wilson Levy7:

Ao trazer a disciplina da ordem urbana para o interior do projeto e da narrativa constitucional, operou o constituinte um movimento sem precedentes. Pela primeira vez a ordenação das cidades passou a contar com o arrimo de norma constitucional. Vale dizer, a atividade legiferante dos Municípios, cuja competência para legislar em maté-ria de uso e ocupação do solo urbano deriva da própria CRFB, passou

7 NALINI, José Renato e LEVY, Wilson. Cidade e regulação: os mecanismos fiscais e urbanísticos de controle e captura de mais-valias urbanas. Revista de Direito da Cidade. Abec Brasil, vol. 10, n. 2., p. 1084.

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a ser regulada por princípios gerais hierarquicamente superiores, aptas a servir como fundamento de validade das normas, como re-ferência hermenêutica e como base para o controle de constitucio-nalidade das leis. Diminuiu-se, portanto, o espaço do laissez-faire urbano – ou, ao menos, a sua feição normativa.

A competência federal para a instituição de diretrizes gerais de desenvolvi-mento urbano restou exercida com a edição da Lei 10.257/2001, que se auto inti-tulou “Estatuto da Cidade” (art. 1º, parágrafo único), a qual merece estudo detido, conforme nos propomos a realizar no subcapítulo a seguir.

2.1 O Estatuto da Cidade e os instrumentos da política urbana

A Lei 10.257/2001, atendendo à diretriz constitucional, propõe-se a dar efe-tividade ao direito urbanístico brasileiro. Nos dizeres de Carlos Ari Sunsfeld8:

Nesse contexto surgiu o Estatuto da Cidade, com a pretensão de pôr fim à prolongada adolescência em que ainda vive o direito urbanís-tico brasileiro. Coube à nova lei enfrentar o desafio de consolidá-lo (fixando conceitos e regulamentando instrumentos), de lhe conferir articulação, tanto interna (estabelecendo os vínculos entre os diver-sos instrumentos urbanísticos) como externa (fazendo a conexão de suas disposições com as de outros sistemas normativos, como as do direito imobiliário e registral), e, desse modo, viabilizar sua ope-ração sistemática.

O parágrafo único do art. 1º do Estatuto da Cidade revela a proposta do diploma de estabelecer “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, demonstrando a preocupação, já abordada no presente trabalho, da conformação entre os direitos do proprietário e os anseios da coletividade.

Zélia Leocádia da Trindade Jardim9 assim define a importância do diploma para o regramento urbanístico do país:

A versão final do Estatuto da Cidade, conquistada após longos anos de processo legislativo no Congresso Nacional, desde 1982, insti-

8 Op. Cit., p. 52.9 JARDIM, Zélia Leocádia Trindade. Regulamentação da política urbana e garantia do direito à cidade. In: COU-TINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi (Coord.). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. 2ª ed. São Paulo: Lumen Juris, 2011, p. 121.

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tucionalizou as diretrizes gerais para a uniformização das políticas urbanas no país e ratificou o papel do plano diretor, como um mode-lo institucional inovador e instrumento jurídico-político fundamental para a ampliação da cidadania, o ordenamento do solo urbano e a sustentabilidade da qualidade de vida de nossas cidades.Dessa forma, o Estatuto da Cidade, além de regulamentar os arts. 182 e 183 da Lei Maior, estabelece as diretrizes gerais da política urbana que visa a ordenar o pleno desenvolvimento das funções so-ciais da cidade e da propriedade (...)

Importante destacar o disposto no art. 2º, IX, do diploma legal em comento, que preceitua que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi-mento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguin-tes diretrizes gerais: (...) IX - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes da urbanização”.

Para o presente trabalho, interessa sobremaneira o Capítulo II do Estatuto da Cidade, que disciplina os “instrumentos da política urbana”:

Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urba-nas e microrregiões;III – planejamento municipal, em especial:a) plano diretor;b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;c) zoneamento ambiental;d) plano plurianual;e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual;f) gestão orçamentária participativa;g) planos, programas e projetos setoriais;h) planos de desenvolvimento econômico e social;IV – institutos tributários e financeiros:a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU;b) contribuição de melhoria;c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros;V – institutos jurídicos e políticos:a) desapropriação;b) servidão administrativa;c) limitações administrativas;d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano;

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e) instituição de unidades de conservação;f) instituição de zonas especiais de interesse social;g) concessão de direito real de uso;h) concessão de uso especial para fins de moradia;i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;j) usucapião especial de imóvel urbano;l) direito de superfície;m) direito de preempção;n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;o) transferência do direito de construir;p) operações urbanas consorciadas;q) regularização fundiária;r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e gru-pos sociais menos favorecidos;s) referendo popular e plebiscito;t) demarcação urbanística para fins de regularização fundiária;t) demarcação urbanística para fins de regularização fundiária;u) legitimação de posseu) legitimação de posse.VI – estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).

Em comentário a esse capítulo, Adilson Abreu Dallari10 define esse rol como “instrumentos que são colocados à disposição do Poder Público visando à organiza-ção conveniente dos espaços habitáveis e ao cumprimento das funções sociais da propriedade ou da cidade”.

Prossegue o mesmo doutrinador, destacando que referidos instrumentos são instituídos a fim de proporcionar uma intervenção efetiva por parte do poder público:

O mais importante, porém, é destacar a instrumentalização da atua-ção do Poder Público em matéria urbanística. Ou seja, a institucio-nalização de um conjunto de meios e instrumentos expressamente vocacionados para a intervenção urbanística, possibilitando ao Poder Público uma atuação vigorosa e concreta neste setor. (...)Em resumo, quando a lei se refere a instrumentos de política urbana, ela pretende identificar meios e instrumentos, de diferentes espé-cies, por meio dos quais o governo municipal deve implementar suas decisões de mérito, suas opções quanto a objetivos que devam ser

10 DALLARI, Adilson Abreu. Instrumentos da política urbana. In: _________; FERRAS, Sérgio (Coord.). Estatuto da Cidade: comentários à lei federal 10.257/2001. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 72.

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atingidos para assegurar a melhor qualidade de vida de sua população e as propriedades que, em seu entender, devem ser observadas.11

Cabe a observação de que o artigo 4º supratranscrito não se propõe a ser taxativo, mas meramente exemplificativo, vide a ressalva constante do caput de que esses serão os instrumentos utilizados, “entre outros”. Ou seja, admite-se a criação e utilização de outros instrumentos para a materialização da política urbana.

2.2 Competência municipal e o princípio da reserva de plano

Conforme já mencionado, a Constituição Federal, em seu art. 30, VIII, atri-buiu aos Municípios a competência para promover o adequado ordenamento ter-ritorial, mediante planejamento e uso do controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.

Essa competência é balizada pela própria Lei Magna, ao preceituar, no art. 182, § 1º, que o plano diretor é o “instrumento básico da política de desenvolvimen-to e de expansão urbana”.

De tal modo, o plano diretor emerge como o plano urbanístico geral, assim definido por José Afonso da Silva12:

É plano, porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados (ainda que, sendo plano ge-ral, não precise fixar prazos, o que tange às diretrizes básicas), as atividades a serem executadas e quem deve executá-las. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município.

Uma observação fundamental a se fazer reside no fato de que, ao submeter o desenvolvimento da política urbana a um instrumento específico, qual seja, o plano diretor, a Constituição de 1988 faz uma opção: a de que tal exercício não fique à completa mercê da discricionariedade do Poder Executivo, mas que conte com a par-ticipação efetiva do Legislativo Municipal. Nesse sentido, Jacintho Arruda Câmara13:

Isso significou dizer que este instrumento do planejamento urbano envolve uma decisão do Poder Legislativo Municipal, e não apenas do Chefe do Executivo, como se chegou a admitir. Portanto, pode ser

11 Idem, p. 76.12 Op. Cit., p. 134. 13 CÂMARA, Jacintho Arruda. Plano Diretor. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAS, Sérgio (Coord.). Estatuto da Cidade: comentários à lei federal 10.257/2001. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 322.

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este o primeiro aspecto do conceito em exame: o plano diretor é (ou deve ser) uma lei.

Esse papel de basal relevância do plano diretor foi reforçado quando da pu-blicação do Estatuto da Cidade. Além de o incluir como um dos instrumentos da política urbana (art. 4º, III, ‘a’), o diploma federal trouxe um capítulo todo para o regulamentar, nos arts. 39 e seguintes.

De início, cabe destacar que o Estatuto da Cidade atribui requisitos espe-ciais, de ordem formal e material, ao plano diretor. Nesse sentido, o art. 40, § 1º, estabelece a necessidade de integração do plano diretor com o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual:

Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.§ 1º O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.

Outra característica especial do plano diretor é a necessidade de que seja re-visto a cada dez anos, a teor do disposto no § 3º do art. 40. Desta forma, busca-se assegurar que a legislação urbanística acompanhe as mudanças experimentadas pela cidade.

Além disso, o § 4º do art. 40 da lei federal traz requisitos formais para a aprovação do plano diretor, destacando-se, fundamentalmente, a garantia à partici-pação da população em sua elaboração e fiscalização:

§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmen-tos da comunidade;II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informa-ções produzidos.

Note-se, ainda, que ao tratar dos instrumentos específicos de outorga one-rosa do direito de construir e de alteração de uso, o Estatuto da Cidade os vincula por completo ao plano diretor:

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Art. 28. O Plano Diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveita-mento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.§ 1º Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e a área do terreno.§ 2º O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento bási-co único para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas especí-ficas dentro da zona urbana.§ 3º O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento, considerando a proporciona-lidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área.Art. 29. O Plano Diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser per-mitida alteração de uso do solo, mediante contrapartida a ser pres-tada pelo beneficiário.

Portanto, caberá ao plano diretor não somente definir as áreas em que tais instrumentos poderão ser aplicados, mas a própria fixação do coeficiente de apro-veitamento máximo de construção a ser praticado no Município.

Vinícius Monte Custódio14 realiza esclarecimento oportuno a respeito do pla-no diretor, descrevendo-o não só como fonte de normas gerais, mas também um instrumento para a política urbana em sentido estrito:

À primeira vista, portanto, parece paradoxal que a Constituição co-meta à união a competência para legislar sobre normas gerais de po-lítica urbana municipal. Para se resolver essa aparente contradição, é preciso interpretar as diretrizes gerais traçadas pelo plano diretor não como normas gerais decorrentes do exercício de competência legislativa plena (política urbana latu sensu), mas, sim, como normas gerais que informam e orientam o planejamento urbanístico munici-pal (política urbana scrictu sensu). É dizer, observados os caracteres geral e abstrato do plano diretor, não existem temas referentes ao planejamento urbanístico que fiquem fora de sua alçada.

Pela relevância que o plano diretor recebe desde a Constituição Federal, e por conta das características especiais que lhe são definidas pelo Estatuto da Ci-dade, identifica-se que determinadas matérias não poderão ser tratadas por outro 14 CUSTÓDIO, Vinícius Monte. Princípio da reserva de plano: comentários ao acórdão do Recurso Extraordinário 607.940/DF. Revista Ibradim de Direito Imobiliário. Vol. 1 (nov. 2018). São Paulo, 2018, p. 280.

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diploma ou instrumento. Eis o comando do princípio da reserva de plano, conforme ensina Carvalho Pinto15:

O princípio da reserva de plano é o que permite a articulação entre o ordenamento jurídico e o planejamento. Este opera não tanto pela imposição de obrigações aos agentes públicos e privados, mas pela proibição de ações não planejadas. O que se exige é que as ações sejam decididas após cuidadosa ponderação das alternativas e ava-liação de seus efeitos.

No mesmo sentido, José Antonio Apparecido Júnior16:

Em obediência ao princípio da reserva de plano, móvel da aplicação isonômica de normatização urbanística, tal o plano diretor evidencia-se como referência do desenvolvimento do Município, seja em seus aspectos materiais, referentes à efetiva realização de suas dispo-sições, seja no aspecto formal, como fundamento de validade da legislação urbanística especial deste ente federativo.

Confira-se, ainda, a título ilustrativo, a orientação do CAOP – Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado do Paraná17:

Determina o princípio da reserva do plano urbanístico que medida que possa vir a afetar a transformação do território urbano conste do principal plano urbanístico da cidade como condição para que possa ser executada validamente. Colocando em outros termos: trata-se de princípio que condiciona a validade de toda intervenção no espa-ço urbano à sua prévia inclusão no plano diretor.

3 As Contrapartidas Urbanísticas: Definição e Condições de Validade

Os desafios de se implantar a política urbana em um país em desenvolvi-mento, como é o caso do Brasil, não são poucos, como bem alertado por José-Ri-cardo Lira Pereira18:15 CARVALHO PINTO, Victor. Direito Urbanístico: plano diretor e direito de propriedade. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 184-185.16 APPARECIDO JÚNIOR, José Antonio. Propriedade Urbanística & Edificabilidade. Curitiba: Juruá, 2012, p. 45-46.17 Disponível em <http://www.urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/O_que_e_o_principio_da_reserva_do_pla-no_diretor.pdf>. Acesso em 02 jun. 2019. 18 PEREIRA, José-Ricardo Lira. Direito urbanístico, estatuto da cidade e regularização fundiária. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi (Coord.). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. 2ª ed. São Paulo: Lumen Juris, 2011, p. 3-4.

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Nos países subdesenvolvidos e nos países em desenvolvimento como o nosso, a ocupação do espaço urbano se faz marcada pelo déficit habitacional, pela deficiência de qualidade dos serviços de infra-estrutura, pela ocupação predatória de áreas inadequadas, pelos serviços de transporte deficientes, estressantes e poluentes, pela agressão frontal ao meio ambiente natural e ao meio ambiente construído (...)Os fatos arrolados tornam evidente a indeclinável necessidade de uma política urbanística que ordene a utilização do solo urbano, à base da qual se identifique uma concepção renovada e democrática do direito de propriedade.

Assim, é de se reconhecer a dificuldade do trabalho a ser enfrentado pelas autoridades municipais que se propõem a realizar o planejamento urbano, sempre atentos ao aspecto primordial do direito urbanístico que é o de conformar os inte-resses individuais do proprietário aos anseios da coletividade.

Certamente imbuídos do espírito de proporcionar o bom ordenamento do solo urbano, muitos Municípios brasileiros passaram a aplicar instrumentos de po-lítica urbana além daqueles estabelecidos no art. 4º do Estatuto da Cidade. É o que se tem chamado de contrapartidas urbanísticas, embora essa definição não conste de qualquer diploma legal.

Fato é que tais exigências representam efetivas limitações ao exercício da propriedade, na medida em que condicionam a aprovação do projeto de ocupação ou parcelamento do solo (a priori permissíveis nos termos dos parâmetros vigen-tes) à execução de medidas que, certamente, implicarão em assunção de custos pelo particular. E, enquanto tal, sua aplicação deve ser realizada de forma cautelo-sa, e nos estritos termos do arcabouço legislativo acima exposto.

As contrapartidas em análise se revelam de formas bastante diversificadas. Identificamos os seguintes elementos que, a nosso ver, definem as contrapartidas e se mostram como requisitos para a sua validade jurídica: especificidade, causali-dade, caráter não monetário e previsão no plano diretor.

Primeiramente, parece-nos claro que os impactos que se pretendem mitigar devem ser pontuais e específicos. É dizer: deve haver uma delimitação clara de quais efeitos decorrentes da ocupação do solo serão enfocados pela contrapartida a ser executada. Não haveria fundamento jurídico, desse modo, para a exigência de medidas mitigadoras tendo como objeto os efeitos genéricos do próprio desen-volvimento urbano, como, por exemplo, o eventual adensamento populacional da respectiva região.

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Ainda, por conta da própria etimologia do verbete contrapartida, a imposição deve guardar uma correlação à intervenção urbanística a ser desenvolvida pelo par-ticular. Essa relação deve ser de causalidade, ou seja, assume-se que a atividade de desenvolvimento imobiliário do interessado traz impactos para o panorama ur-banístico local, e, no intuito de compensar ou mitigar estes efeitos, é que se impõe a execução de determinadas contrapartidas.

Ademais, é de se supor que tais medidas sejam não monetárias – até porque a cobrança de prestações pecuniárias, salvo enquadramento específico em con-ceitos legalmente bem delimitados como o de outorga onerosa (arts. 28 e 29 do Estatuto da Cidade), configuraria a exigência de tributo (art. 3º do Código Tributário Nacional), em desencontro com a competência tributária disciplinada na Constitui-ção Federal.

Por fim, há que se fazer referência ao princípio de reserva de plano, abordado no subcapítulo antecedente, para se rememorar que o plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana e que medida que possa vir a afetar a transformação do território urbano deve constar do principal plano urbanístico da cidade como condição para que possa ser executada validamente. Por conseguinte, parece-nos inquestionável que as contrapartidas urbanísticas so-mente podem ser impostas ao particular caso devidamente expressas no plano diretor municipal.

Admitir que o Município pudesse estabelecer as contrapartidas em lei avul-sa, desconectada do plano diretor, seria, na prática, permitir que fosse subtraído da população o direito de se envolver nessa decisão, o que fere o princípio da partici-pação popular, sacramentado pelo § 4º do art. 40 do Estatuto da Cidade.

3.1 Casos práticos

A fim de ilustrar as características do que se está a tratar, entendemos ser oportuno trazer exemplos concretos de exigências possivelmente classificáveis como contrapartidas urbanísticas, regulamentadas por municipalidades brasileiras e sua legalidade em face dos requisitos acima descritos.

a) O pólo gerador de tráfego em São Paulo-SP

A Lei 15.150/2010, alterada pela Lei 16.801/2018, estabeleceu, de forma clara e precisa, uma contrapartida a ser executada pelo interessado cujo projeto seja enquadrado como “polo gerador de tráfego” em São Paulo-SP:

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Art. 4º Os projetos apresentados pelos interessados na implantação ou reforma de um empreendimento classificado como Polo Gerador de Tráfego serão analisados pela Companhia de Engenharia de Trá-fego – CET, a qual indicará as medidas mitigadoras de minimização dos impactos sobre o Sistema Viário e as eventuais adequações nos projetos viários e/ou de arquitetura, bem como a eventual realização de medidas compensatórias.

A definição específica das medidas a serem adotadas foram deixadas a car-go da CET – Companhia de Engenharia de Tráfego conforme disposto no parágrafo único do referido dispositivo:

Parágrafo Único. A Companhia de Engenharia de Tráfego – CET, na análise dos projetos de arquitetura apresentados, deverá indicar:(...)V - a relação das medidas mitigadoras – obras e serviços de si-nalização viária – necessárias à minimização do impacto negativo provocado no Sistema Viário decorrente das viagens geradas pelo empreendimento qualificado como Polo Gerador de Tráfego;

As medidas, portanto, consistem em obras e serviços de sinalização viária com o intuito de minimizar, especificamente, o impacto negativo trazido para o sistema viário. À vista disso, ao menos teoricamente, resta presente a relação de causalidade entre os impactos promovidos pelo empreendimento e o efeito minimi-zador que se pretende buscar. Esta relação, inclusive, foi positivada, com proprie-dade, no art. 9º do referido diploma:

Art. 9º As medidas mitigadoras estabelecidas na Certidão de Diretri-zes deverão estar diretamente relacionadas com o impacto gerado no trânsito pelo empreendimento.

A contrapartida em questão mostra-se, pois, com os contornos caracterís-ticos de um instrumento de política urbana justificável do ponto de vista técnico e urbanístico.

Entretanto, o art. 8º, em seu § 4º, institui que, além de custear as obras viárias, o interessado deverá realizar um depósito ao Fundo Municipal de Desenvol-vimento de Trânsito:

§ 4º Todos os empreendimentos classificados como Polos Geradores de Tráfego deverão recolher ao Fundo Municipal de Desenvolvimento de Trânsito para a realização de projetos específicos de trânsito e transporte:

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I - no caso de não ser necessária imediatamente nenhuma obra viá-ria ou serviço, o valor correspondente a 1% (um por cento) do custo total do empreendimento;II - no caso do valor das obras e serviços realizados não atingir o valor correspondente a 1% (um por cento) do custo total do empreendi-mento, o valor remanescente.

Destaque-se o fato de que, conforme disposto no inciso I, o pagamento é devido mesmo quando a autoridade entender pela desnecessidade de execução de obras viárias ou serviços. E, quando as obras forem necessárias, mas o custo for in-ferior a 1% do valor total do empreendimento, exige-se o pagamento, quantificado nesse saldo remanescente.

Desse modo, fica claramente comprometido o requisito de causalidade ne-cessário à legalidade da contrapartida exigida.

Ademais, o pagamento em dinheiro a um fundo municipal, a despeito de sua destinação específica, apresenta-se claramente como uma prestação pecuniária. Portanto, especificamente quanto ao depósito estabelecido no § 4º supra, parecem-nos ausentes os pressupostos para a validade jurídica de tal imposição.

Com relação ao alinhamento com o plano diretor, confira-se o disposto no plano vigente (Lei 13.430/2002), em seu art. 84, que dispôs sobre as ações estra-tégicas da política de circulação viária e de transportes:

XVI - rever a legislação de pólos geradores de tráfego, condicionan-do a aprovação de empreendimentos a uma análise regionalizada dos impactos e à execução de obras que mitiguem impacto;

Observe-se que o dispositivo faz referência aos pólos geradores de tráfego, e, ainda, possível condicionamento da aprovação dos projetos à execução de obras que mitiguem impacto. Por outro lado, não faz menção ao fato de que a municipa-lidade pudesse exigir contrapartidas do interessado, de forma a que este viesse a custear completamente a execução de referidas obras.

Assim, e sem pretender aprofundar o exame para aferir se esse detalhe compromete a sua validade jurídica, entendemos que a instituição dessa contra-partida poderia ter sido explorada de modo mais preciso no texto do plano diretor, permitindo-se que a população participasse da decisão de se praticar a contra-partida com essas características, com o custeio integral das obras mitigadoras pelo interessado.

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b) As medidas mitigadoras em Fazenda Rio Grande-PR

O Município de Fazenda Rio Grande-PR, integrante da Região Metropolitana de Curitiba, editou a Lei Municipal 08/2006, que criou mecanismos de contrapartida a serem exigidos do empreendedor que desejar construir na cidade:

Art. 23 - Por ocasião do fornecimento de diretrizes para elaboração de projeto, poderá ser solicitada:(...)III - a adoção e a realização de medidas mitigadoras ao empreende-dor tendo em vista a necessidade de atendimento da prestação de serviços públicos e de neutralizar através de contrapartida os impac-tos urbanísticos;

O art. 23-C, em seu § 3º, estabelece exemplos de contrapartidas mitigado-ras a serem exigidas:

§ 3º Os ônus decorrentes das exigências necessárias para minorar ou mesmo eliminar os impactos negativos do projeto, deverão ser arcados pelo empreendedor através de contrapartida que poderá ser executada através de:I - implantação, produção, aquisição, construção, conclusão, melho-ria, reforma e ampliação de equipamentos comunitários, tais como postos de saúde, escolas, salas de aula, canchas esportivas, praças, dentre outros;II - aquisição de materiais para construção, conclusão, melhoria, re-forma e ampliação de equipamentos comunitários;III - implantação, melhoria e ampliação de saneamento básico, infra-estrutura e outros equipamentos urbanos; (...)

Na prática, referida municipalidade passou a impor aos empreendedores a obrigação de construção de equipamentos comunitários, tais como creches, esco-las e postos de saúde, sob a justificativa de mitigar o adensamento resultante do desenvolvimento imobiliário.

Em nosso entendimento, muito embora a legislação em questão procure traçar uma correlação entre o impacto da atividade imobiliária e a mitigação que se pretende realizar, as contrapartidas impostas carecem de fundamento legal. Isso porque não se apontam efeitos específicos e pontuais gerados por determinado empreendimento (como no caso do pólo gerador de tráfego estudado no subcapí-tulo antecedente), mas sim um suposto impacto urbanístico, assim colocado, de forma genérica.

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Parece-nos, dessa forma, que o Poder Público não está a estabelecer medi-das específicas para mitigar efeitos dos empreendimentos, mas está, em verdade, delegando ao particular a missão de bancar os avanços estruturais que o Município deveria absorver para comportar o próprio crescimento da cidade, o que não parece justificável – até porque as obras de infraestrutura municipal devem ser custeadas pela arrecadação dos tributos municipais.

Ademais, as medidas não foram referidas no plano diretor do Município, o que também compromete a sua validade jurídica.

c) Pagamento em dinheiro no Rio de Janeiro-RJ e em Fazenda Rio Grande-PR

A Lei Complementar 192/2018, do Rio de Janeiro, estabeleceu uma “con-trapartida” pecuniária a ser exigida para a liberação da instalação de jiraus em edificações comerciais:

Art. 4º Nas edificações comerciais ficam permitidos, mediante pa-gamento de contrapartida, na forma estabelecida no art. 9º desta Lei Complementar:I - jirau, com ocupação máxima de cinquenta por cento da área útil, nos pavimentos situados acima do primeiro;II - jirau, com mais de cinquenta por cento de ocupação da área útil, em todos os pavimentos, desde que garantido pé direito mínimo de três metros, na parte que ultrapasse os cinquenta por cento de ocupação;(...)Art. 9º O cálculo do valor da contrapartida de que trata esta Lei Complementar se dará da seguinte forma:I - se praticada em imóvel multifamiliar ou comercial, pelo construtor pessoa física ou pessoa jurídica, antes da concessão do “habite-se”, será calculado com base em percentual do Valor Unitário Padrão Predial por metro quadrado, constante de guia do Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU, relativa ao exercício em que for requerida e aos fatores de correção referentes a imóvel novo, mediante aferição com dados do cadastro fundiário;II - se praticada por particular proprietário, em unidade de imóvel unifamiliar ou bifamiliar, antes ou após a concessão do “habite-se”, ou em unidade de edificação multifamiliar ou comercial após a sua concessão, o valor da contrapartida será calculado com base em percentual do Valor Unitário Padrão Predial por metro quadrado constante de guia do IPTU relativa ao exercício em que for requerida e aos fatores de correção referentes a imóvel novo mediante aferi-ção com dados do cadastro fundiário;

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De início, cabe esclarecer que jiraus são estrados instalados a meia altura de um compartimento ou laje, que podem servir para guarda de objetos ou mesmo permitir a circulação de pessoas.

Portanto, são instalações que trazem influência exclusivamente ao próprio imóvel em que se encontram, sem qualquer impacto para a cidade. Não há, desse modo, efeitos urbanísticos a serem mitigados ou minimizados, o que coloca em xeque a própria classificação da imposição em comento como contrapartida. É im-possível denotar qualquer causalidade entre a intervenção a ser permitida no imóvel e a contrapartida exigida, até porque esta é feita em espécie, e sem qualquer vin-culação ou destinação específica da respectiva arrecadação.

A imposição em questão remete, grosseiramente, ao conceito da outorga onerosa de direito de construir, tratada no art. 28 do Estatuto da Cidade. Todavia, o jirau sequer representa construção, de modo que não há impacto no coeficiente de aproveitamento do imóvel, cuja elevação é a ideia central da figura do solo criado. Ademais, a instituição de tal contrapartida dependeria da previsão no plano diretor, com definição de áreas da cidade para aplicação e observância dos demais requisi-tos do Estatuto da Cidade, o que não ocorreu no caso em exame.

Caso similar ocorre no Município de Fazenda Rio Grande-PR. A Lei Com-plementar Municipal 08/2006, com redação pela Lei Complementar Municipal 85/2014, ganhou o art. 17-A, que estabeleceu uma doação obrigatória, em pecú-nia, como condição para a aprovação de projetos de condomínios:

Art. 17-A - Deverá ser doada ao Município, além das demais exi-gências constantes nesta Lei Complementar, com destinação direta ao Fundo Municipal de Políticas Públicas, o percentual equivalente ao número de unidades habitacionais, inclusive de parcelamentos verticais, para cada uma das unidades do empreendimento criadas através do parcelamento em condomínio, na seguinte proporção:(...)§ 1º O percentual estabelecido no “caput” deste artigo incidirá sobre o valor de mercado de cada uma das unidades habitacionais, após a implantação de toda a infraestrutura do condomínio, com exceção da realização da edificação das unidades habitacionais nos casos dos condomínios horizontais, não excepcionadas as edificações dos condomínios verticais.§ 2º Não será fornecido alvará de conclusão de obra enquanto não houver no processo administrativo comprovante de recolhimento dos valores ao Fundo Municipal de Políticas Públicas, devendo o

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empreendedor comunicar à Secretaria de Urbanismo para que rea-lize a avaliação no momento da conclusão da obra de infraestrutu-ra do parcelamento, sob pena de ser considerado o valor final do empreendimento.

Ou seja, o ato de aprovação de um projeto de edificação na modalidade de condomínio, que deveria se ater a quesitos de ordem técnica, passa a ficar con-dicionado ao pagamento de valores que são calculados com base no número de unidades imobiliárias do empreendimento.

Trata-se de imposição que não apresenta o requisito de especificidade, já que não se identificam os efeitos provocados pelo empreendimento imobiliário cuja mitigação se pretende. Igualmente, não é possível traçar relação de causalidade entre eventuais efeitos da atividade urbanística e a contrapartida exigida, já que se trata de um pagamento em dinheiro ao fundo municipal destinado, de forma genérica, à execução de políticas públicas.

Dada a ausência de fundamento legal diverso, a exigência praticada por am-bos os Municípios acaba por representar obrigação pecuniária compulsória, confi-gurando verdadeiro tributo, a teor da conceituação proposta pelo art. 3º do Código Tributário Nacional:

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Sucede que a Carta Magna não outorga aos Municípios a competência para cobrar tributos dessa natureza. Os impostos que podem ser instituídos pelo Muni-cípio estão definidos no art. 156:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:I - propriedade predial e territorial urbana;II - transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais so-bre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.

Nenhuma das hipóteses de incidência acima delineadas justificam a exi-gência em comento, imposta como condição para a aprovação dos jiraus em edi-

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ficações do Rio de Janeiro, ou para a liberação da edificação de condomínios, em Fazenda Rio Grande.

Também não se mostra viável a classificação da exigência como taxa, espé-cie de tributo que tem “como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição” (Código Tributário Nacional, art. 77).

É que o pagamento em exame não está sendo exigido como contrapresta-ção por qualquer serviço público, mas como condição para a simples aprovação dos projetos de construção. A própria quantificação da prestação pecuniária não se relaciona com a atividade estatal, mas sim com base no valor do imóvel ou do número de unidades habitacionais a serem construídas.

Sendo assim, a imposição nos parece configurar exigência tributária sem o devido fundamento legal.

O caso de Fazenda Rio Grande foi objeto de questionamentos no Tribunal de Justiça do Paraná, obtendo entendimentos diversos em diferentes órgãos de jul-gamento. A Quarta Câmara Cível entendeu pela validade da cobrança, em acórdão que, a nosso sentir, merece extensas críticas:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA COLETI-VO. NATUREZA PREVENTIVA DO PEDIDO. NÃO SUJEIÇÃO A PRAZO DECADENCIAL. INEXISTÊNCIA DE IMPETRAÇÃO CONTRA LEI EM TESE. EXIGÊNCIA DE DOAÇÃO FUNDADA NO ARTIGO 17-A DA LEI COMPLEMENTAR N.º 08/2006 DO MUNICÍPIO DE FAZENDA RIO GRANDE (LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO). COMPETÊN-CIA MUNICIPAL PARA A INSTITUIÇÃO DE OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR E DE ALTERAÇÃO DE USO. EXAÇÃO QUE NÃO CONSUBSTANCIA ESPÉCIE TRIBUTÁRIA. INEXISTÊNCIA DE “FUMUS BONI JURIS”. LIMINAR CASSADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.(TJPR – 4ª C.Cível – AI – 1650147-6 – Fazenda Rio Grande – Rel.: Maria Aparecida Blanco de Lima – Unânime – J. 05.06.2018)

A Corte entendeu que a prestação pecuniária exigida pelo Município poderia ser classificada como outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso.

A nosso ver, enxergar tal exação como outorga onerosa do direito de cons-truir se mostra absolutamente inviável, já que não é exigida como contrapartida para se aumentar o coeficiente de aproveitamento do imóvel, como dispõe literal-mente o art. 28 do Estatuto da Cidade. Conforme se demonstrou anteriormente,

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a lei municipal em referência estabelece o pagamento para todo e qualquer em-preendimento de condomínio, de forma absolutamente desvinculada ao coeficiente de aproveitamento. A par disso, não havia previsão de tal contrapartida no plano diretor, e tampouco a definição das áreas em que poderia ser praticada, como exige o Estatuto da Cidade.

Também não vemos como se enquadrar tal imposição ao conceito de ou-torga onerosa de alteração de uso, eis que o instrumento previsto no art. 29 do Estatuto da Cidade refere-se à permissão de efetiva alteração do uso de deter-minado terreno, o que não deve ser confundido com a mera autorização de um empreendimento imobiliário.

É dizer: a “alteração de uso do solo” prevista na lei federal trata da hipótese de mudança na natureza de utilização do terreno, como ensina Eliane Trevisani19:

Entre os dispositivos que tratam do instituto em comento, o art. 29 da Lei 10.257/2001 estabelece a possibilidade de o Plano Diretor fixar áreas em que viabilizada a alteração do uso do solo, desde que retribuição advenha, ao Município, pelo proprietário. O uso do solo é em geral definido pelo zoneamento urbano, que tem por objetivo possibilitar a utilização racional, harmoniosa e, na medida do possí-vel, confortável das cidades para moradia, deslocamento, trabalho e recreação. Para tanto, os Municípios instituem zonas de uso do solo, segundo o interesse e a possibilidade da comunidade, que nada mais são do que áreas de utilização do solo, conforme as especifica-ções definidas pelo Município. São, por José Afonso da Silva, assim, classificadas: ‘(a) zona de uso residencial; (b) zona de uso industrial; (c) zona de uso comercial; (d) zona de uso de serviços; (e) zona de uso institucional; (f) zona de usos especiais.’

Análise mais acertada, em nosso entendimento, da imposição legal de Fa-zenda Rio Grande foi realizada pela Quinta Câmara da Corte paranaense, que assim julgou:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. DECA-DÊNCIA. INOCORRÊNCIA. CONEXÃO. INOCORRÊNCIA. INEXISTÊN-CIA DE PREJUDICIALIDADE ENTRE AS DEMANDAS. INADEQUA-DAÇÃO DA VIA ELEITA. INOCORRÊNCIA. DESNECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. CONCESSÃO DE CERTIFICAÇÃO DE CON-CLUSÃO DE OBRAS. REQUISITO DE DOAÇÃO DE VALORES AO FUN-

19 TREVISANI, Eliane. Outorga Onerosa do Direito de Construir. In: ARRUDA ALVIM, José Manuel de; CAMBLER, Everaldo Augusto (Coord.). Estatuto da Cidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 338-339.

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DO MUNICIPAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. ARTIGO 17-A, DA LEI Nº 08/2006. IMPOSSIBILIDADE. DOAÇÃO QUE NÃO SE CONFUNDE COM A OUTORGA ONEROSA. UTILIZAÇÃO, PELO AGRAVANTE, DOS TERMOS COMO SINÔNIMOS. EQUÍVOCO. FUNDAMENTOS DIFE-RENTES. POSSIBILIDADE DE COBRANÇA DA OUTORGA ONEROSA, EM RAZÃO DA REDUÇÃO DOS QUANTITATIVOS MÍNIMOS E DO AU-MENTO DO NÚMERO DE UNIDADES. FUNDAMENTO QUE NÃO SER-VE DE BASE PARA A COBRANÇA DA “DOAÇÃO”, MAS APENAS DA OUTORGA. PRECEDENTE DO ÓRGÃO ESPECIAL DESTA CORTE. IN-CONSTITUCIONALIDADE FLAGRANTE, DE CUNHO FORMAL E MATE-RIAL – OFENSA AOS ARTS. 5º, XXIV, 22, II, 24, I, E 182 § 3º, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DESAPROPRIAÇÃO E DOS ESTADOS MEMBROS E DISTRITO FEDERAL PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO URBANÍSTICO. VEDAÇÃO AO CONFISCO.Exigir a doação prevista no art. 17-A, da Lei Complementar Munici-pal nº 08/2006, seria indubitável bis in idem, uma vez que o agravado deveria arcar com a outorga onerosa e com a doação exatamente pelo mesmo fato: aprovação da redução dos quantitativos mínimos e aumento do número de unidades.(TJPR – 5ª C.Cível – AI – 0007442-69.2018.8.16.0000 – Fazenda Rio Grande – Rel.: Nilson Mizuta – Unânime – J. 17.08.2018)

O Eminente Desembargador Relator Nilson Mizuta, em seu voto, abordou a questão com propriedade:

Conclui-se, facilmente, que o agravante utiliza os termos “outorga onerosa” e “doação” como sinônimos, quando, em verdade, nada têm em comum. (...)Da mera leitura dos dispositivos, percebe-se que a doação prevista na Lei Municipal nº 08/2006 tem como fundamento apenas a im-plantação de empreendimento por meio de parcelamento em con-domínio e que NÃO POSSUI, como quer fazer crer o agravante em seus memoriais, a alteração dos parâmetros de uso e de ocupação do solo e o aumento substancial do número de habitantes como mo-tivos de sua cobrança. Pelo contrário, o fundamento da doação é a mera construção de “unidades do empreendimento criadas através do parcelamento em condomínio”.Ou seja, a Lei nº 08/2006, que institui a doação, será aplicada AINDA QUE não ocorra a alteração do uso do solo e AINDA QUE não haja aumento substancial no número de habitantes. Ela será aplicada, portanto, pelo simples fato de se construir um empreendimento no Município de Fazenda Rio Grande, o que não encontra base legal.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 216 No 2 | Julho 2019

A decisão atacou, pois, a impossibilidade de se tratar a exigência como contrapartida, eis que a cobrança é feita para todo e qualquer empreendimento de condomínio executado no Município. Destacou, o Magistrado Relator, que o pagamento é devido “ainda que não haja aumento substancial no número de ha-bitantes”, o que demonstra a ausência de correlação necessária entre os impac-tos gerados pela intervenção urbanística e a mitigação que se pretende realizar, a qual se necessária para que o instrumento praticado pela municipalidade tenha validade.

d) a transferência compulsória de lotes do Município de Toledo-PR

O Município de Toledo-PR, em sua Lei 1945/2006, que disciplinou o parcela-mento do solo urbano, criou a obrigatoriedade de doação de lotes como condição para a aprovação de loteamentos:

Art. 8º - Os loteamentos deverão atender, no mínimo, os seguintes requisitos:(...)VII – cinco por cento dos lotes do loteamento, arredondando-se para o número inteiro imediatamente superior, quando do cálculo resultar fração, já deduzidas as áreas públicas referidas no inciso I deste ar-tigo, deverão ser transferidos ao Município de Toledo, para utilização em programas de habitação popular e de interesse social;

A lei impunha, ao empreendedor, portanto, o dever de transferir à municipa-lidade lotes correspondentes a 5% (cinco por cento) da totalidade do loteamento, cuja destinação é vinculada à utilização para programas de habitação popular e interesse social.

Percebe-se que não existe o caráter de contrapartida com a necessária es-pecificidade. A imposição era destinada a todo e qualquer parcelamento do solo pela modalidade de loteamento, independentemente dos impactos urbanísticos a serem verificados no caso concreto. Não se identifica, ainda, a necessária correla-ção entre a intervenção urbana a ser desenvolvida pelo particular e os respectivos efeitos a serem mitigados.

Ainda que a lei estabelecesse uma causa aparentemente nobre, ao destinar os lotes para programas sociais, não há como se fundamentar tal exigência no ordenamento jurídico vigente. Tratava-se, pois, de uma verdadeira desapropriação, conforme restou reconhecido pelo Tribunal de Justiça do Paraná, ao julgar a legali-dade do dispositivo legal em comento:

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1) DIREITO CONSTITUCIONAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALI-DADE. LEI MUNICIPAL DE TOLEDO Nº 1.945/2006. LOTEAMENTO. DOAÇÃO DE LOTES PARA HABITAÇÃO SOCIAL E INTERESSE SO-CIAL. AFRONTA À GARANTIA DE JUSTA INDENIZAÇÃO E À COM-PETÊNCIA DA UNIÃO DE LEGISLAR SOBRE DESAPROPRIAÇÃO. a) O loteamento consiste na subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradou-ros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes, de modo que as exigências contidas no artigo 22 da Lei nº 6.766/1979 possuem a finalidade de ordenar o espaço urbano destinado à habitação, com a divisão das glebas. b) Observa-se que a legislação federal (artigo 22 da Lei nº 6.766/1979) ao determinar que “Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços, livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urba-nos, constantes do projeto e do memorial descritivo”, visa consti-tuir estruturas que viabilizem o próprio loteamento, provendo um conjunto de melhorias às pessoas que habitarão os lotes, tudo no interesse da coletividade atingida pelo novo espaço urbano. c) Por sua vez, a Lei Municipal nº 1.945/2006 (artigo 8º, inciso VII), ao dis-por sobre o parcelamento do solo urbano no Município de Toledo, impôs ao proprietário que pretendesse implantar um loteamento a transferência de 5% (cinco por cento) dos lotes ao Município, para utilização em programas de habilitação popular e de interesse social. d) Entretanto a exigência de transferência de 5% (cinco por cento) dos lotes ao Município não tem por escopo ordenar o espaço urbano em benefício dos futuros moradores, mas sim verdadeira expropria-ção sem justa indenização. e) Nessas condições, a Lei Municipal nº 1.945/2006, ao estabelecer como condição uma expropriação, sem a correspondente indenização, viola diretamente os artigos 5º, inciso XXIV, e 182, parágrafo 3º, da Constituição Federal. f) Além disso, nos termos do artigo 22, inciso II, da Constituição Federal, compete privativamente a União legislar sobre desapropriação, de modo que não poderia o Município ter disposto acerca da matéria. g) Portanto, diante dos indícios de inconstitucionalidade já elencados, e, considerando a cláusula de reserva do plenário, o tema deve ser remetido ao Órgão Especial desta Corte Estadual, competente para decidir a questão prejudicial aqui levantada, nos termos do artigo 84, inciso III, alínea “g” do Regimento Interno.2) APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO QUE SE REMETEM AO ÓRGÃO ESPECIAL.” (TJPR – ACR – 1082233-2 – Toledo – Rel.: Leonel Cunha – Unânime – J. 24.09.2013)

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Destaque-se o excerto em que a Corte reconheceu que a imposição conti-da na lei “não tem por escopo ordenar o espaço urbano em benefício dos futuros moradores, mas sim verdadeira expropriação sem justa indenização”, confirmando a ausência de relação de causalidade necessária para a validade das contrapartidas urbanísticas, conforme acima demonstrado.

e) a doação compulsória de área ou dinheiro – Municípios de Curitiba-PR e Rio de Janeiro-RJ

A doação é definida no art. 538 do Código Civil como o contrato pelo qual “uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. O texto legal positiva a compreensão comum que se tem da doação como um ato voluntário, de livre iniciativa daquele que o faz.

Apesar disso, há Municípios que utilizam o termo doação para se referir a exigências verdadeiramente mandatórias, estabelecidas como condição para a aprovação de projetos de parcelamento ou ocupação do solo.

A nosso ver, existe certa confusão na interpretação da Lei 6.766/1979, que determina a transferência, ao domínio público, das áreas destinadas a vias, praças e demais equipamentos públicos em loteamentos (art. 22). Essa transferência não é uma contrapartida devida pelo loteador, mas mera consequência da implantação do parcelamento do solo via loteamento, que, por sua essência, pressupõe a aber-tura de vias de circulação (art. 2º, § 1º) e a instalação de equipamentos urbanos e comunitários (art. 4º, I). Nesse sentido, o loteamento implica que parte das áreas resultantes será de propriedade privada, e parte será, naturalmente, transferida ao poder público, tudo conforme projeto a ser aprovado conforme critérios técnicos pelo órgão urbanístico municipal.

Não existe, portanto, fundamento para se cogitar que a realização de um loteamento possa facultar ao Município a reivindicação de uma doação compulsória de parte da área do empreendimento, como se fosse um pedágio pela aprovação do parcelamento do solo.

Fato é que esta imposição tem sido frequente, e – o mais grave, a nosso sentir –, não só para projetos de loteamento, mas também para a aprovação de projetos de construção, sem que sequer haja o parcelamento do solo.

É o que ocorre no Rio de Janeiro-RJ, onde a Lei Complementar 156/2015 re-gulamenta a “a concessão da Licença de Obras para empreendimentos comerciais e de serviços”, condicionando-a ao “cumprimento de obrigação definida nos arts. 3º e 4º desta Lei Complementar, excetuados desta obrigação os templos religiosos de qualquer culto.”

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A doação compulsória, então, vem prevista no art. 3º do diploma em questão:

Art. 3º A obrigação instituída no art. 1º desta Lei Complementar consiste no atendimento pelo empreendedor de uma das seguintes exigências:I - doar ao Município terreno de valor equivalente a dez por cento do valor do terreno do empreendimento, calculado com base em avaliação do órgão municipal competente, considerando os valores apurados para fins de cálculo do valor do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis e de Direito a Eles Relativos, Realizada Intervivos, por Ato Oneroso - ITBI;II - depositar, em conta específica do Município, destinada às fina-lidades previstas no art. 4º desta Lei Complementar, valor corres-pondente a dez por cento do valor do terreno do empreendimento, calculado com base em avaliação do órgão municipal competente, considerando os valores apurados para fins de cálculo do valor do ITBI.Parágrafo Único - O cumprimento da obrigação poderá ser auto-rizado utilizando as duas modalidades relacionadas neste artigo desde que seja atendido proporcionalmente o valor definido para cada uma delas.

De acordo com a lei, portanto, a aprovação dos projetos dependerá de doa-ção de parte correspondente a 10% (dez por cento) do terreno, ou, alternativamen-te, ao pagamento em dinheiro de montante equivalente a essa parcela da área.

Não se vê qualquer correlação entre o pagamento exigido e eventuais im-pactos urbanísticos decorrentes do empreendimento, o que, de plano, afasta qual-quer possibilidade de enquadramento como contrapartida urbanística.

Se trata, pois, de exigência que não encontra embasamento legal. Na hipó-tese de a “doação” recair sobre área do empreendimento, parece-nos inquestioná-vel que a exigência configura desapropriação sem a devida indenização em dinhei-ro, dada a plena identidade com o caso do Município de Toledo-PR, que viu sua lei ser declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Estado (vide acórdão nos autos 1082233-2, supratranscrito).

Em se tratando de pagamento em dinheiro, a imposição assume todos os contornos de uma exação tributária, porém sem o devido fundamento constitu-cional, a teor do que observamos anteriormente no caso da contrapartida para a construção de jirau, conforme previsto em diploma legislativo vigente no Rio de Janeiro-PR.

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No Município de Curitiba-PR, também vigora uma espécie de pedágio para os projetos que tramitam pela secretaria de urbanismo. Confira-se o teor do De-creto 1.048/2018, que regulamenta os “projetos de cadastramento, unificação ou subdivisão de lotes ou glebas”:

Art. 2º - Deverão ser transferidas sem ônus ao Município de Curiti-ba as áreas destinadas à implantação de equipamento comunitário, praças, jardins e parques em projetos de cadastramento, unificação ou subdivisão de lotes ou glebas com área superior a 20,000m², à exceção dos casos descritos no artigo 3º, deste decreto.

Fosse o dispositivo legal adstrito aos projetos de loteamento, a sua legalida-de estaria intacta, já que se determina a transferência, ao Poder Público, especifica-mente das áreas para implantação de equipamentos públicos e comunitários, nos termos do art. 22 da Lei 6.766/1979.

O problema que nos parece pairar sobre referida legislação é o fato de ela se destinar também a casos de cadastramento, unificação ou subdivisão de lotes ou glebas, acabando por atingir, assim, também os casos de meros desdobramento ou desdobro – quando é certo que somente se pode falar em áreas de equipamentos comunitários para projetos de loteamento, nos claros termos dos arts. 4º e 22 da Lei 6.766/1979.

O caráter expropriatório da exigência acaba se evidenciando da leitura do § 3º do próprio art. 2º do Decreto em exame, que assim giza:

§ 3º Não sendo possível ou não sendo de interesse público a des-tinação das áreas de que trata o caput do próprio local, o Conselho Municipal de Urbanismo – CMU, ouvido o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba – IPPUC, poderá admitir:I – a transferência de área de valor equivalente em outro local, me-diante avaliação com base no valor atual de mercado definido pela Comissão de Avaliação de Imóveis – CAI;II – o recolhimento do valor referente a área que deveria ser doada aos cofres públicos municipais mediante sua avaliação com base no valor atual de mercado, definido pela Comissão de Avaliação de Imóveis – CAI em conta específica com a finalidade de desapro-priação de áreas ou construção de edificações para implantação de equipamentos comunitários, praças, jardins e parques.

Passa-se a admitir, portanto, que as autoridades urbanísticas municipais dis-pensem, por falta de interesse em áreas para equipamentos públicos, a doação

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das respectivas áreas, caso em que o interessado deverá realizar o pagamento em dinheiro ou com a doação de área em outro local.

Salvo melhor juízo, o que se tem é um desvirtuamento da lógica disciplinada na Lei 6.766/1979, que parte do pressuposto de haver interesse público em equi-pamentos comunitários, para se estabelecer que essas áreas deverão constar do projeto de loteamento e sua propriedade será transferida ao Poder Público.

O Decreto curitibano, ao contrário, parte da obrigatoriedade de destinação de parte de no mínimo de 10% (dez por cento) do imóvel ao Município e, caso este considere desnecessária a instalação de equipamentos comunitários, poderá determinar ao interessado que pague em dinheiro ou doando imóvel em outro local. E isso, repita-se, não só para projetos de loteamento, mas também para desmem-bramento, desdobro, cadastramento ou unificação.

Tanto a exigência carioca quanto a curitibana, estudadas no presente sub-capítulo, parecem se afastar do conceito de contrapartida urbanística legalmente válida, já que sequer se estabelecem melhorias a serem executadas por conta da intervenção urbana a ser praticada apelo particular, tratando-se de mera destinação de área ou dinheiro ao Município, sem vinculação específica.

4 Conclusões

A propriedade privada deve cumprir com a sua função social, e o direito ur-banístico tem o papel de regulamentar o exercício do direito de imóvel urbano, pelo particular, em conformidade com os interesses coletivos dos demais munícipes.

O Estatuto da Cidade, em seu art. 4º, estabelece uma série de instrumentos para a execução da política urbana, em lista não exaustiva, podendo os Municípios se valer de outros que não estejam ali previstos – eis o espaço das contrapartidas urbanísticas tratadas no presente artigo.

O plano diretor é o instrumento básico para o planejamento da política urbana pelo Município e, nesse sentido, é de sua alçada o estabelecimento dos contornos das contrapartidas exigíveis dos particulares, resguardando-se, assim, a observância dos princípios da reserva de plano e da participação popular.

As contrapartidas urbanísticas são instrumentos importantes a serem uti-lizados pelas municipalidades no planejamento e implantação da política urbana. Todavia, sua instituição deve ser realizada com a devida observância do arcabouço legislativo vigente, sob pena de se realizarem indevidos impedimentos ao exercício do direito da propriedade.

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Desse modo, as contrapartidas legalmente exigíveis devem ser dotadas de especificidade, no sentido de se proporem a mitigar efeitos determinados e pon-tuais da intervenção urbanística em referência. Ademais, impõe-se que haja rela-ção de causa e efeito entre os efeitos da atividade urbana que se pretendem mitigar e as respectivas imposições a ela relacionadas.

É fundamental, ainda, que as contrapartidas sejam de caráter não mone-tário, a fim de evitar seu enquadramento como tributo, atraindo ilegalidade por violação às competências tributárias constitucionalmente instituídas.

Por fim, é fundamental que as contrapartidas estejam previstas no plano dire-tor do Município, a fim de se ter resguardado o princípio da reserva de plano, garan-tindo a participação da comunidade na decisão a respeito do seu estabelecimento.

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Roberto Renault1

Palavras-chave

Shopping centers; definição; natureza jurídica; interpretação; conclusão.

Keywords

Shopping centers; definition; legal nature – Law n. 8245/91; interpretation; conclusion.

Sumário

1 Conceito jurídico de shopping center; 2 Natureza jurídica dos contratos celebrados entre empreendedor e lojistas de shopping centers; 3 Consequências da expressão “livremente pactuadas” mencionada no art. 54 da Lei 8.245/91; 4 Cláusulas contratuais estabelecidas entre empreendedor e lojistas dos shopping centers; Conclusões; Bibliografia.

1 Conceito jurídico de shopping center

Muito se tem analisado a respeito do conceito jurídico dos shopping centers, especialmente porque a Lei 8.245/91, que regula as locações de imóveis urbanos, estabeleceu normas específicas para esse tipo de empreendimento empresarial em que os enquadrou, facultando aos empreendedores e lojistas estabelecer cláu-sulas livremente pactuadas, com as exceções nela previstas, adiante abordadas, sem, no entanto, defini-lo, o que a melhor doutrina aplaude.1 Advogado, sócio da sociedade de advogados Renault, Zattar, Da Gama, Rodrigues e Pires. Membro da Comis-são de Shopping Centers do IBRADIM e da Comissão de Direito Imobiliário do IASP.

SHOPPING CENTERS – ANOTAÇÕES À RELAÇÃO CONTRATUAL ENTRE

EMPREENDEDOR E LOJISTAS

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O conceito de shopping center varia conforme o país, sendo exemplos os abaixo transcritos, a fim de se tentar concluir a respeito dos elementos essenciais nesse tipo de empreendimento.

A Associação Brasileira de Shopping Centers (ABRASCE) conceitua os sho-pping centers como2:

os empreendimentos com Área Bruta Locável (ABL), normalmen-te, superior a 5 mil m², formados por diversas unidades comerciais, com administração única e centralizada, que praticam aluguel fixo e percentual. Na maioria das vezes, dispõem de lojas âncoras e vagas de estacionamento compatível com a legislação da região onde está instalado.

International Council of Shopping Center (ICSC), associação norte-americana que equivale à ABRASCE no Brasil, define shopping center de forma mais elástica, como:

A shopping center is defined as a group of retail and other commer-cial establishments that is planned, developed, owned and managed as a single property, typically with on-site parking provided. Although this is generally the accepted description globally, significant varia-tions exist by region3.

No Canadá, segue a definição dada pelo Global Research Network, em de-zembro de 2010:

As a working definition, this document defines a Canadian shopping center as a retail property that is planned, built, owned and mana-ged as a single entity, comprising commercial rental units (CRU) and common areas, with a minimum size of 10,000 square feet (Gross Leasable Area or GLA) and a minimum of three CRUs.1 On-site par-king is also generally provided.

Em Portugal, o Decreto-Lei 10/2015, em seu anexo 2, alínea m, configura o shopping center com base no conceito do ICSC, da seguinte forma:

m) “Conjunto comercial”, o empreendimento planejado e integrado, composto por um ou mais edifícios nos quais se encontra instalado

2 Portal Internet <https://www.abrasce.com.br/monitoramento/definições-e-convenções>. Acesso em 31 jan. 2018.3 Portal Internet <https://www.icsc.org/news-and-views/research/shopping-center-definitions, atualizado em janeiro de 2018>. Acesso em 31 de janeiro de 2018

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um conjunto diversificado de estabelecimentos de comércio a re-talho e ou de prestação de serviços, sejam ou não propriedade ou explorados pela mesma entidade, que preencha cumulativamente os seguintes requisitos:i) Disponha de um conjunto de instalações e serviços concebi-dos para permitir a uma mesma clientela o acesso aos diversos estabelecimentos;ii) Seja objeto de uma gestão comum, responsável, designada-mente, pela disponibilização de serviços coletivos, pela instituição de práticas comuns e pela política de comunicação e animação do empreendimento;

Pontos em comum entre tais definições são a administração única, a diver-sidade de estabelecimentos. Contudo, apenas essas características não são sufi-cientes para conceituar legalmente um shopping center, visto que strip centers e hipermercados, estes com lojas que lhes complementam, também podem atender a tais requisitos.

Outras condições estabelecidas pela ABRASCE na definição acima têm caráter extrínseco, como o tamanho e a prática de aluguel mínimo e percentual, visto que um shopping center poderá ser assim caracterizado, mesmo com me-tragem inferior ao mínimo estabelecido, e sem que se estabeleça o aluguel entre mínimo e percentual, o que dependerá de exame judicial caso a caso, posto que a definição da ABRASCE pode servir de apoio interpretativo, mas, não tem efetividade legal.

Acresça-se que os strip centers não se enquadram na definição de shopping centers da ABRASCE, que estipula uma metragem mínima para a caracterização dos centros comerciais, mas, são albergados pela citada Associação, em segmen-to próprio, bem como pela ICSC, nos Estados Unidos. As características dessa modalidade empresarial, segundo a ABRASCE, são:

fileira de lojas voltadas ao comércio varejista; administração centra-lizada; estacionamento localizado em frente às lojas; ausência de corredores cobertos que interligam as lojas; espaços que podem ser configurados em linha reta, em forma de “L” ou de “U”; ABL menor que 5.000 m2; são, geralmente, ancorados por um grande varejista, e possuem no mix uma forte oferta de serviços, como salão de bele-za, loja de calçados, drogaria, papelaria, livraria, lanchonete, floricul-tura, pet shop, ótica e cafeteria4.

4 Portal Internet <https//www.abrasce.com.br/notícias>. Acesso em 06 fev. 2017.

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Desse modo, os strip centers não se incluem no conceito de shopping cen-ters, definido pela ABRASCE, embora também passíveis de a ela filiar-se.

No entanto, os hipermercados, com lojas de conveniência, e os shopping centers vendidos, na medida em que tenham administração centralizada e diver-sidade de lojas, obedecendo a um mix planejado, além de – acrescento – nor-mas gerais uniformes, limitando os direitos a favor do empreendimento, estariam abarcados no conceito de shopping center, estabelecido pela citada Associação nacional?

Entendo que os shopping centers com espaços comerciais vendidos, desde que tenham administração centralizada e estipulem regras gerais de limitação ao uso, gozo e disposição aos proprietários, em benefício da coletividade do empreen-dimento, como, hoje, essa limitação é usual nos empreendimentos de flats destina-dos a pool e coworking, por exemplo, com disposições contratuais uniformes, es-tariam enquadrados no conceito do art. 54 da Lei 8.245/91, desde que observados os demais requisitos por esta estabelecidos na definição acima, conquanto pouco provável essa adequação.

Sou de opinião, contudo, que, no que concerne aos hipermercados, com lojas de conveniência, ainda que estejam em consonância com o conceito genérico da ABRASCE, não podem se subsumir ao disposto no art. 54 da Lei 8.245/91. Isso porque, nos shopping centers, as atividades dos lojistas, como um todo, comple-mentam-se, agregam valor como um bloco, integrando-se à função do empreende-dor, seja diretamente, seja através de administradora, que deterá o controle único da administração, formando o polo de atração da clientela e caracterizando uma unidade organizacional.

Ao contrário dos shopping centers, nos hipermercados o polo de atração cinge-se à sua própria atividade, sendo que as demais lojas de conveniência neles instaladas são de mera passagem, não tendo por condão atrair público ao empreen-dimento, nem qualquer significado como unidade organizacional. Nesse caso, não é o todo que atrai o público, como nos shopping centers, mas, o hipermercado, individualmente.

A respeito, FÁBIO KONDER COMPARATO5 doutrina, verbis:

O centro comercial não se confunde com a figura do promotor, ou do proprietário, do conjunto imobiliário. Para o público consumidor,

5 COMPARATO, Fábio Konder. As cláusulas de não concorrência nos “Shopping Centers”. RDM n. 97. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan/março 1995. p. 23 e seguintes.

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o shopping center aparece sempre como um centro de compras e prestação de serviços, cujo conjunto exerce – pela localização e or-ganização interna – uma atração comercial muito diversa da que resultaria da soma das clientelas respectivas de cada um dos esta-belecimentos nele situados. Vale dizer, o centro comercial tem sua clientela própria, atraída pelo agrupamento de lojas e não por esta ou aquela em particular [...]Nessa modalidade de organização, é óbvio que o centro comercial só passa a existir, como conjunto comercial distinto dos estabeleci-mentos que o compõem, quando a maior parte das dependências estiver sendo ocupada e os fundos de comércio nelas instalados, em funcionamento. A exploração conjunta do centro comercial é condi-ção indispensável para o êxito do empreendimento.

DARCY BESSONE6, com relação ao aspecto organizacional do shopping cen-ter, complementa:

O ponto decisivo aqui é o de saber se o que predomina, no com-plexo (shopping center), é o uso do espaço físico autônomo, ou se, pelo menos, este pode ser pinçado, continuando o mesmo fora do aparato.Aqui, ouso adotar uma posição definitiva: o complexo de vantagens é incindível, é um bloco monolítico, é uma unidade orgânica. Não há como nem porque despedaçá-lo, pulverizá-lo, atomizá-lo.

E acrescenta7, verbis:

A ideia de atividade comum pressupõe a de organização. Aí está um certo poder de polícia, a cargo do empreendedor.Estou destacando esse aspecto subjetivista para ponderar que, no shopping, o que importa, em verdade, é a atividade comum, apre-sentando-se como um dado menor que o uso do espaço físico exclu-sivo (loja) ou de espaços físicos comuns.

No mesmo sentido, J. ANTUNES VARELA8 refere-se ao shopping center como “unidade global”.6 BESSONE, Darcy. Problemas Jurídicos do Shopping Center. RT n. 660. São Paulo: Revista dos Tribunais, out. 1990. p. 7 e seguintes.7 BESSONE, Darcy. O Shopping na Lei do Inquilinato, após a Lei 8.245/91. Vide biblio final.8 VARELLA, J. Antunes. Os Centros Comerciais (Shopping Centers). Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Homenagem ao Prof. Doutor Antônio de Arruda Ferrer Correia. Coimbra. 1988. p. 9 e 16.

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ALFREDO BUZAID9 cita RUBENS REQUIÃO, que pontifica10: “Ele [shopping center] está determinado pelo conjunto organizacional para atingir um objetivo da comunidade de empresas que a ele aderem”.

FRANCISCO CARLOS ROCHA DE BARROS11 aduz que o shopping center se trata de um organismo em que se sobrepõe “o interesse econômico de uma “or-ganização”, da qual participam empreendedor e lojista, agindo e se comportando como um todo”.

Na lição de FÁBIO ULHOA COELHO12, “o empreendedor não pode perder de vista o complexo comercial como um todo”.

Enfim, indubitavelmente, há dificuldade em se conceituar juridicamente o shopping center, cujas definições ainda não obtiveram êxito em caracterizá-lo de forma definitiva, ficando a critério do Poder Judiciário o exame, caso a caso, dos centros comerciais que possam trazer dúvidas sobre seu enquadramento legal no art. 54 da Lei 8.245/91.

Entretanto, pode-se afirmar que, para a caracterização de um shopping center, além do aspecto arquitetônico, que deve ser composto de uma ou mais edificações, formando um todo integrado de lojistas e prestadores de serviços de diversos ramos de atividade, além de áreas de entretenimento, alimentação e estacionamento, en-tre outras, exsurge como importante o aspecto organizacional do empreendimento, em função do detalhado planejamento, desde antes de sua concepção, da análise e atualização do mix pelo empreendedor e dos estudos sempre periódicos referentes ao centro comercial, levando em conta as áreas de abrangência do consumidor, sendo de responsabilidade do empreendedor a tarefa de administrá-lo de forma cen-tralizada e observando a prevalência do interesse coletivo sobre o individual, sempre visando a maximizar os lucros dos lojistas e prestadores de serviços em conjugação com os seus próprios lucros, decorrente da atração dos consumidores em sua área de influência. Enfim, é da confluência de interesses de lojistas e do empreendedor do shopping center, em benefício da clientela, o objetivo primordial de um centro comercial, o que denota a complexidade de uma definição a respeito.9 BUZAID, Alfredo. Estudo sobre shopping center. In: PINTO, Roberto Wilson Renault; OLIVEIRA, Fernando Albino de (coord.). Shopping Center: questões jurídicas. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 11.10 REQUIÃO, Rubens. Shopping Centers: aspectos jurídicos. In: ARRUDA, José Soares; LÔBO, Carlos Augusto da Silveira (coord.). Shopping Centers: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p. 116 e seguintes.11 BARROS, Francisco Carlos Rocha De. Comentários à Lei do Inquilinato. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 296.12 COELHO, Fábio Ulhoa. Locação de Lojas em Shopping Center. In: OLIVEIRA, Juarez. coord. Comentários à Lei de Locação de Imóveis Urbanos. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 344.

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Por outro lado, a natureza jurídica desse tipo de empreendimento, decor-rente da Lei 8.245/91, e a redação do respectivo art. 54 são fatores essenciais, determinantes, a serem aplicados aos contratos de cessão de uso em espaços de shopping centers, como será analisado a seguir.

2 Natureza jurídica dos contratos celebrados entre empreendedor e lojistas de shopping centers

Durante a vacatio legis da Lei 8.245/91 surgiram discussões sobre a nature-za jurídica dos contratos previstos no artigo 54 em apreço, visto que as consequên-cias dela provenientes são bastante diversas. Muitas dessas discussões perduram mesmo após sua entrada em vigor.

A Lei vigente intitula de locação a relação jurídica de cessão de uso de espa-ço em shopping centers, embora faculte às partes contratantes a livre estipulação do aluguel e das cláusulas contratuais.

Por sua vez, os demais imóveis urbanos, sujeitos à Lei de Locações, devem seguir o princípio da liberdade de contratar, com as limitações nela expressas, ob-servando suas disposições, sendo permitida a livre estipulação do aluguel (art. 17).

Uma parte importante da doutrina sustenta que o contrato de locação pode apresentar cláusulas especiais, sem, no entanto, ser desfigurado, prevalecendo o contrato-tipo; seria o caso das relações jurídicas na cessão de uso de espaço em shopping center, adotado pela Lei 8.245/91.13

Outra corrente14, não menos importante, propugna que o contrato-tipo – locação –, que decorre dessa relação, por estar acrescido de outros aspectos, caracterizariam nova espécie de contrato.13 ANDRADE, Luís Antonio de. Considerações sobre o aluguel em shopping centers. p. 177; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Shopping Centers. p. 82; ambos In: ARRUDA, José Soares; LÔBO, Carlos Augusto da Silveira (coord.). Shopping Centers: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.

FRANCO, J. Nascimento. A Lei de Luvas e os Shopping Centers, p. 123 e seguintes; MARTINS, Ives Gandra Da Silva. A natureza jurídica das locações comerciais dos Shopping Centers. p. 79 e seguintes; CARVALHOSA, Mo-desto. Considerações sobre as relações jurídicas em “shopping centers”, p. 177; todos In: PINTO, Roberto Wilson Renault; OLIVEIRA, Fernando Albino de (coord.). Shopping Center: questões jurídicas. São Paulo: Saraiva, 1991.

ANDRADE JUNIOR, Claudionor de. Locações em shopping centers e outros aspectos práticos do Direito Imo-biliário, p. 3 e 25; SANTOS, Gildo dos. Locação e Despejo. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 366; SOUZA, Sylvio Capanema de. A Nova Lei do Inquilinato Comentada. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 1993, p. 6; SLAIBI FILHO, Nagib. A Nova Lei do Inquilinato Comentada. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 1992, p. 246.14 BUZAID, Alfredo. Estudo sobre shopping center; AZEVEDO, Álvaro Villaça. Atipicidade mista do contrato de utilização de unidade em centros comerciais e seus aspectos fundamentais. ambos In: PINTO, Roberto Wilson Renault; OLIVEIRA, Fernando Albino de (coord.). Shopping Center: questões jurídicas. São Paulo: Saraiva, 1991.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 230 No 2 | Julho 2019

Para essa corrente, tais aspectos poderiam ser assim resumidos: a) aspecto organizacional, em que se complementam as atividades do empreendedor e dos lojistas; b) diferença entre as obrigações de locadores de lojas de rua e/ou de gale-rias, constantes da lei, e as dos empreendedores, em que estes têm obrigações de conceber e realizar o shopping center – mediante estudos prévios de planejamento, incluindo estudos financeiros, decorrentes de mix dos tipos de lojas e serviços, vias de acesso, projeto arquitetônico compatível, realização das obras de construção no prazo previsto contratualmente com os lojistas, para a inauguração, com con-siderável percentual da Área Bruta Locável ocupada por lojas, abertas ao público –, e administrá-lo de modo a sempre manter o mix das lojas atualizado, de acordo com a preferência do público-alvo, já que a atração da clientela deve ser perma-nente, realizando promoções e eventos, fazendo prevalecer o interesse comum ao individual, enfim, visando a que a integração entre a sua atuação, na administração do shopping center, aliada ao desempenho e resultados esperados de vendas e serviços pelos lojistas, tornem sempre o empreendimento atrativo ao público-alvo e lucrativo a ambas as partes, aspectos estes que desfiguram a locação-tipo; c) limitações contratuais a que os lojistas de shopping centers se submetem, que excedem em muito as de lojas de rua, descaracterizando o contrato-tipo locação, como as obrigações de disponibilizar dados de suas receitas ao empreendedor, manter a loja aberta nos horários definidos pela administração do shopping center, seguir normas específicas para obras, não poder alterar o tipo de atividade para a qual a loja foi cedida, em benefício do empreendimento.

Por fim, uma terceira corrente sustenta que a relação jurídica entre em-preendedor e lojista trata de contrato atípico, sendo que alguns propugnam tratar-se propriamente de contrato atípico misto e outros de contrato atípico stricto sensu, sendo que ORLANDO GOMES15 considera contrato simplesmente atípico, apud J. A. PENALVA SANTOS, embora se trate apenas de denominação, já que o contrato atípico, para ORLANDO GOMES, significa o mesmo que contrato atípico misto, na

PINTO, Dinah Sonia Renault. Shopping Centers: uma nova era empresarial. 3ª ed. revista e atualizada por PINTO, Vânia Renault e BRAGANÇA, Marcos. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 41 e seguintes.

BARCELLOS, Rodrigo. O Contrato de Shopping Center e os Contratos Atípicos Interempresariais. São Paulo: Atlas, 2009;

BESSONE, Darcy. Problemas Jurídicos do Shopping Center, cit. 15 GOMES, Orlando. Traços do Perfil Jurídico de um “Shopping Center”. In: Shopping Centers: aspectos jurídicos, cit. p. 88 e segs.; SANTOS, J.A. Penalva. Regulamentação jurídica do shopping center. In: PINTO, Roberto Wilson Renault; OLIVEIRA, Fernando Albino de (coord.). Shopping Center: questões jurídicas. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 113.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário No 2 | Julho 2019 231

definição de MESSINEO. PENALVA SANTOS concorda com a conceituação de OR-LANDO GOMES, que assim define o contrato atípico:

[...] os que estão sujeitos a um regime – desde que não são legal-mente esquematizados – que implica a aplicação dos princípios ge-rais em matéria de direito contratual e daqueles de outros contratos dos quais tiram prestações para formar, exatamente pelo conjunto, pelas fusões dessas prestações, um novo contrato. Tiram deles al-gumas definições que os regem. Portanto, o fato de se dizer que, no exame do contrato atípico do shopping center, algumas disposições da locação podem ser aplicadas, não significa que se esteja acei-tando a locação como a definição e a qualificação desse contrato. É contrato atípico porque não há esquema legal que o defina, mas, tem, sob o aspecto dogmático, todos os traços que podem determi-nar a aplicação de um regime jurídico adequado que possa dar-lhe base e sustento para a atividade empresarial que é desenvolvida pelo shopping center.

FÁBIO KONDER COMPARATO16 vai além dos posicionamentos acima, tipifi-cando tais relações jurídicas como contrato em que aponta outro aspecto predomi-nante, o “agrupamento contratual”, como “elemento unificador do conjunto”, verbis:

O contrato de grupo tem uma estrutura bilateral e até sinalagmática, comportando o intercâmbio de duas prestações. Mas, ele só existe se coligado a outros contratos da mesma espécie, nos quais apare-ce sempre a mesma parte, como elemento unificador do conjunto. O agrupamento contratual é, portanto, condição da realização do interesse econômico de cada um dos contratantes agrupados [...].

Importa considerar que esse contrato grupal, tal como os contratos plurila-terais, cria uma organização ou instituição, isto é, um conjunto objetivo de relações jurídicas, comportando elementos subjetivos e reais: um relacionamento estrutu-rado entre, de um lado, as pessoas contratantes e, de outro, um acervo de bens instrumentais, cuja organização é o ponto de equilíbrio dessa relação.

Parece indubitável que o contrato grupal, cujo exemplo mais claro é o con-trato de seguro, traz um dos elementos essenciais das relações entre empreen-dedores e lojistas de shopping centers, seja em decorrência da centralização da administração, seja da organização de que se revestem esses estabelecimentos, em que a figura do administrador é fundamental, mas, não se pode deixar de lado os elementos da cessão de uso de espaço, característico da locação de imóveis.16 COMPARATO, Fábio Konder. Ob. cit.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 232 No 2 | Julho 2019

O aspecto convergente da doutrina consiste em que a locação-tipo aparece, nessa espécie contratual, de forma unânime. Contudo, a divergência encontra-se no grau de importância do contrato-tipo no negócio jurídico praticado, em que parte entende que se desfigura e outra que se torna contrato inominado.

Portanto, constatam-se dois tipos contratuais a preponderarem nas relações jurídicas entre empreendedores e lojistas de centro comerciais que são extrema-mente importantes para a interpretação do art. 54 da Lei de Locações Prediais Urbanas.

J. C. PESTANA DE AGUIAR17 pauta-se na classificação dos contratos de FRANCESCO MESSINEO18, a mais completa, pela importância do tema, no que tan-ge à natureza jurídica dos contratos de shopping center, verbis:

[...] Messineo relaciona três grupos [de contratos inominados), o primeiro com conteúdo totalmente estranho a qualquer tipo legal, o segundo com conteúdo aglomerando tantos elementos estranhos a qualquer tipo legal quantos elementos correspondentes a um tipo le-gal. Os dois grupos acima constituem para Messineo a categoria dos contratos inominados em sentido estrito, ou inominados puros. Para esses, recomenda a aplicação analógica. É ao terceiro grupo, porém, que dedica maior atenção, esses compreendendo os contratos mis-tos [...] que não pertençam aos tipos que tenham uma regulamen-tação particular, desde que visem a realizar interesses merecedores de tutela de acordo com a ordem jurídica. É a liberdade de contratar, apanágio do direito contratual.

Não obstante, a Lei 8.245/91 veio a optar pela natureza de contrato-tipo de locação, com cláusulas especiais, o que não pode ser olvidado pelo intérprete.

Conforme lembrado por RODRIGO BARCELLOS19, ORLANDO GOMES recla-mava do fato de que alguns juristas procuravam tipificar as relações contratuais entre lojistas e empreendedores de shopping centers como de locação-tipo, verbis:

Borbulham na vida figuras novas, que não têm que ser explicadas com aqueles velhos quadros já em decomposição do Direito Romano. No fundo, o que se quer é aplicar o Direito Romano ao shopping center.

17 AGUIAR. J.C. Pestana de. Anotações sobre o mundo jurídico dos shopping centers. In: PINTO, Roberto Wilson Renault; OLIVEIRA, Fernando Albino de (coord.). Shopping Center: questões jurídicas. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 179 e seguintes.18 MESSINEO, Francesco. Dottrina Generale Del Contratto. Milão: Dott A. Giuffrè. 1948, p. 226-231.19 BARCELLOS, Rodrigo. O Contrato de Shopping Center e os Contratos Atípicos Interempresariais. São Paulo: Atlas, 2009. p. 103.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário No 2 | Julho 2019 233

A título de curiosidade, estive em Salvador, com o emérito mestre baiano, cerca de dez dias antes de seu falecimento, há mais de duas décadas, com o intuito de convidá-lo a participar de um seminário sobre o tema objeto deste tra-balho, quando ele condicionou a participação a que não convidasse um emérito e festejado civilista, justamente porque ele, ORLANDO GOMES, clamava estar can-sado de discutir com esse outro festejado doutrinador, que insistia com a tese do contrato-tipo para as relações de empreendedor e lojista de shopping centers, sem se desvincular das raízes no Direito Romano, após quase 20 séculos... Infelizmente, o pranteado mestre baiano veio a falecer dias depois de nosso encontro, o que não parecia crível, visto que estava bem, sua figura elegante e longilínea, impeca-velmente vestido todo de branco, deixando uma lacuna, visto se tratar de um dos maiores doutrinadores pátrios.

3 Consequências da expressão “livremente pactuadas” mencionada no art. 54 da Lei 8.245/91

O art. 54 da Lei 8.245/91, ao prever a livre negociação entre empreendedor e lojistas, nas relações de cessão de espaço em shopping centers, apesar de lhe atribuir a natureza de contrato-tipo, consoante classificação de MESSINEO, enqua-drou-o como atípico stricto sensu, isto é, admitiu que o contrato-tipo fosse acresci-do de cláusulas atípicas.

Portanto, como a Lei de Locações veio privilegiar a natureza da relação con-tratual entre empreendedor e lojista como contrato atípico stricto sensu – decor-rente da prevalência do tipo contratual locação com cláusulas atípicas, – as normas contidas no Título I se lhe aplicariam, com as exceções pertinentes às disposições específicas do negócio jurídico contratado.

Esse é o ponto fulcral que se deve observar quanto à interpretação das nor-mas previstas no Título I da Lei – Disposições Gerais – e suas consequências.

A propósito, FRANCISCO CARLOS ROCHA DE BARROS20 sustenta, verbis:

Locação que é, aplicam-se a ela todas as regras gerais desta lei (arts. 1º a 45), as especiais da locação não residencial (arts. 51 e 52) e todas as normas sobre procedimentos (arts. 58 a 75). As únicas exceções são aquelas consignadas nos parágrafos que se seguem, além daquela já anotada (art. 52, § 2º).

20 BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Ob. cit. p. 299.

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JOÃO CARLOS PESTANA DE AGUIAR21 também se manifesta no mesmo sentido:

Por aqui se evidencia a incidência de todas as normas gerais de locação (da Lei 8245/91) nas relações entre lojistas e proprietários ou locadores de espaços em shopping center.

Com relação aos ensinamentos dos eméritos doutrinadores acima mencio-nados, cabe a ressalva de que as obrigações do empreendedor perante cada lojista, perante todos lojistas e dos lojistas entre eles, nos centros comerciais, vão além daquelas preceituadas nos artigos 22 e 23 da Lei 8.245/91, disposições gerais para as lojas de rua e de galerias comerciais.

Assim, podem-se elencar como exemplos acima, que não abrangem a rela-ção locador-lojista de lojas de rua e de galerias: a) a obrigação do empreendedor, dentre outras, de zelar pelo aspecto organizacional do shopping center; de inaugu-rar o shopping center com um percentual de Área Bruta Locável que represente efetiva atratividade à clientela; de manter o mix de lojas de modo a atrair o público permanentemente; de zelar pelo interesse coletivo em detrimento do individual; b) os lojistas dos centros de compras, por sua vez, têm muitas de suas liberdades tolhidas, em prol do benefício do empreendimento, como a proibição de alteração da atividade determinada no contrato; do fechamento da loja nos dias que escolher a seu bel-prazer; de proibição de venda de mercadorias de segunda-mão, de sub-missão dos projetos das lojas e das vitrines ao empreendedor; de livre cessão do contrato societário, posto que se trata de contrato intuitu personae; de manter um nível de faturamento mínimo, sob pena de resolução.

Não obstante vários ilustres doutrinadores considerarem que a livre negocia-ção se refira apenas a cláusulas econômicas, tal interpretação não se sustenta, a nosso ver, pois afastaria a liberdade de contratar, facultada pelo art. 54 às relações jurídicas contratuais de espaços nos centros comerciais, liberdade que conflita com algumas das hipóteses a que se referem os artigos 22 e 23 da Lei 8.245/91. Tal posição doutrinária restritiva desfigura o contrato em exame, afastando o elemen-to vital, que é o organizacional, acima examinado. Na realidade, o art. 17 da Lei 8.245/91 já permite aos contratos entre empreendedores e lojistas de shopping center, assim como de locadores e lojistas de lojas de rua e de galerias, a livre pac-tuação do aluguel, o que propicia estabelecerem alugueres mínimo e percentual, em dobro em dezembro e outras disposições pertinentes.21 AGUIAR, João Carlos Pestana de. Nova Lei das Locações Comentada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993. p. 135.

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A respeito, compete também criticar a proibição de cobrança aos lojistas, de encargos contratuais (§ 1º do art. 54) decorrentes de pintura das fachadas, empenas, e iluminação, bem como das esquadrias externas do centro comercial, previstas na alínea b do artigo 22, além das despesas de paisagismo e decoração, previstas na alínea f do § 1ª do mesmo dispositivo legal, posto que contribuem, efe-tivamente, para a atração da clientela, que os lojistas delas se beneficiam na atra-ção do público, respeitando sua cobrança o princípio da comutatividade contratual, em equilíbrio na relação jurídica, que fica prejudicada, pelo enriquecimento sem causa dos lojistas em desfavor do empreendedor do centro comercial, por força de lei, obrigado este a arcar com tais despesas, enquanto os lojistas se aproveitam desses benefícios na atração da clientela. Ponto esse controvertido, a ser analisado pela jurisprudência.

Ainda a propósito, não há dúvida de que, quanto melhores e mais modernas as instalações e a decoração do centro comercial, mais atraente este ficará ao público. Acresça-se que há desgaste de fachada e pisos, além de necessidade de atualização da decoração e iluminação do shopping center, devido ao uso natural, de tempos em tempos, cuja vedação de cobrança fere o equilíbrio contratual, que está subordinado aos princípios gerais de Direito Obrigacional, em que a comutati-vidade se mostra essencial. Matéria que parece deva ser sensível à jurisprudência, especialmente porque os critérios interpretativos deverão, sempre, ser o sistemá-tico e o finalístico, em que os princípios têm prevalência sobre a norma isolada, o que é corroborado abaixo, a título de exemplos.

GILMAR FERREIRA MENDES e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO22 ponde-ram que “A interpretação sistemática atuaria, assim, de forma corretiva, permitindo tanto a justificação de novas restrições quanto a delimitação do âmbito de proteção de determinado direito”, posição doutrinária esta adotada pela melhor doutrina.

HUMBERTO THEODORO JUNIOR, DIERLE NUNES, ALEXANDRE MELO FRAN-CO BAHIA e FLAVIO QUINAUD PEDRON23 ressaltam a “sistematização do Código de Processo Civil, em face dos princípios de Direito”, verbis:

Assim, o Novo CPC somente pode ser interpretado a partir de suas premissas, de sua unidade, e especialmente de suas normas funda-mentais, de modo que não será possível interpretar/aplicar dispositi-

22 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. 9ª ed. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 65-66.23 THEODORO JÚNIOR, Humberto, NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 2ª ed. ver. e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 19-20.

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vos ao longo de seu bojo sem levar em consideração seus princípios e sua aplicação dinâmica (substancial).Ademais, não será possível analisar dispositivos de modo isola-do, toda a compreensão deve se dar mediante entendimento pleno de seu sistema, sob pena de se impor leituras apressadas e despro-vidas de embasamento consistente.Leituras isoladas de dispositivos e institutos, alheias às premissas fundamentais, tendem a ser equivocadas e conduzir a resultados práticos inaceitáveis.

CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO24, partindo do princípio de direito due processo of law, argumenta que a lei não pode prescindir dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, para ter eficácia jurídica, como ocorre no que tange às restrições impostas ao empreendedor do centro comercial, pelo art. 54, §1º, c/c at. 22 e alíneas supracitadas, portanto, carecedoras de eficácia jurídica.

[...] consolidou-se o axioma de que uma lei não pode ser considera-da uma autêntica e respeitável law of land, ou consentânea ao due process of law, se incorrer na falta de razoabilidade (reasonableness) ou de racionalidade (rationality), ou seja, e em suma, quando parecer arbitrária.

No campo jurisprudencial, o acórdão de Relatoria da e. Ministra NANCY ANDRIGHI25, do Superior Tribunal de Justiça, na ementa, pontifica que “A interpre-tação sistemática de uma lei exige que se busque, não apenas em sua arquitetura interna, mas, no sentido jurídico dos institutos que regula, o modelo adequado para sua aplicação”.

4 Cláusulas contratuais estabelecidas entre empreendedor e lojistas dos shopping centers – interpretação

A natureza jurídica dos contratos de cessão de uso de espaço em shopping center é importante para fins do art. 54 da Lei 8.245/91, quando se atenta para as obrigações do empreendedor em face dos lojistas e entre os próprios lojistas, que também estão albergadas no dispositivo legal em apreço, posto que constituem normas específicas, diversas da relação locador-locatário de lojas de ruas e de galerias. 24 CASTRO, Carlos Roberto de. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 80.25 REsp 1.155.716-DF (2009/0159820-5). 3ª Turma. unânime. J. 13.03.2012. DJe 22.03.2012.

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A evolução dos contratos de locação em geral advém, precipuamente, do art. 17 respectivo, que estabelece a liberdade de convencionar o aluguel, poden-do, assim, as partes considerarem entre mínimo e percentual, assim como o dobro do aluguel relativo ao mês de dezembro e de outros em que, devido a festas – Dias das Mães, Pais, Namorados, Crianças, etc. –, notoriamente a atividade do lojista possa comportar um acréscimo substancial de vendas, que espelharia a razoabi-lidade e a proporcionalidade dessa cláusulas e o equilíbrio na relação locatícia, o que seria inimaginável na vigência da lei respectiva revogada e cuja possibilidade de pactuação, nos contratos de cessão de uso de centros comerciais, era motivo de acaloradas discussões.

Trata-se o diploma legal locatício vigente de marco importantíssimo, con-siderando que, na legislação revogada, o paternalismo exacerbado em favor do locatário levara uma quantidade expressiva de locadores residenciais a deixar imó-veis vazios, em vez de locá-los, e muitos lojistas de shopping centers pretenderam valer-se das normas legais restritivas, nas locações residenciais, para aplicá-las às relações com os empreendedores de centro comerciais, o que evidenciaria um total desequilíbrio contratual. Portanto, a Lei 8.245/91, no art. 54, consagrou a liberdade de contratar como regra geral, causando um impacto positivo, de forma que as par-tes contratantes, observadas as vedações e direitos dos lojistas, pudessem refletir instrumentos jurídicos mais equilibrados e que atingissem os anseios das partes, como fim social do contrato.

Na realidade, nas relações entre empreendedores e lojistas de shopping centers, as cláusulas específicas transcendem a simples fixação do aluguel em mínimo mensal reajustável e percentual, em dobro em dezembro e em outros meses, por já estarem contempladas no art. 17 da Lei 8.245/91, razão pela qual, em razão do art. 54, englobam, entre outras, as previstas nos artigos 22 e 23 do mencionado diploma legal, dadas as características do empreendimento sho-pping center apontadas, acima, especialmente por FÁBIO KONDER COMPARATO e DARCY BESSONE, sendo essa a sua interpretação, considerando os métodos sistemático e teleológico.

Como o Direito é uma ciência, sua interpretação há de ser feita de forma que as normas se complementem, harmonizem-se, encaixem-se, motivo pelo qual os princípios de Direito são essenciais à interpretação das leis e das próprias normas jurídicas, o que foi ressaltado acima, entre os quais o da comutatividade dos contratos.

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CARLOS MAXIMILIANO26 doutrina a respeito dos processos de interpreta-ção, a saber:

A interpretação é uma só; não se fraciona: exercita-se por vários processos, no parecer de uns; aproveita-se de elementos diversos, na opinião de outros; o gramatical, ou melhor, filológico; e o lógico, subdividindo-se este, por sua vez, em lógico propriamente dito, e social, ou sociológico.A diferença entre os dois principais elementos, ou processos, con-siste em que um só se preocupa com a letra do dispositivo; o outro, com o espírito da norma em apreço.

Consoante tal diretriz interpretativa do supracitado mestre do Direito, de que a interpretação literal apenas se sobrepõe em casos específicos, estabelecidos por lei, como das isenções tributárias, CELSO RIBEIRO BASTOS27 lembra que “a inter-pretação faz o caminho inverso feito pelo legislador. Do abstrato procura chegar a preceituações mais concretas, o que só é factível procurando extrair o exato signifi-cado da norma. [...] Há alguns princípios de obediência obrigatória na interpretação constitucional. O primeiro deles é o da unicidade da Constituição”.

Em consonância com a forma de interpretação da Constituição de CEL-SO RIBEIRO BASTOS, aplicável também às leis em geral e aos contratos, EROS ROBERTO GRAU28 aduz a existência de duas dimensões no fenômeno jurídico, a dimensão legislativa e a dimensão normativa [...] As normas resultam, portanto, de interpretação. Daí que o ordenamento jurídico, no seu valor histórico-con-creto, é um conjunto de interpretações, um conjunto de normas29. O conjunto dos textos normativos é ordenamento em potência, conjunto de possibilidades de interpretação, conjunto de normas potenciais. O significado da norma é produzido pelo intérprete. A distinção entre a dimensão legislativa e a dimensão normativa do direito conduz à compreensão de que o universo jurídico compreende, em um primeiro momento, distintos procedimentos. Um o processo legislativo, outro o processo normativo (= produção da norma pelo intérprete autêntico, no sentido de Kelsen, os juízes)”.26 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 1991, p. 87. 27 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 347-348.28 GRAU, Eros Roberto. Como Modernizar a Constituição. In: TOFFOLI, José Antonio Dias. 30 Anos da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 590. 29 No mesmo sentido, Celso de Mello cita Francisco Campos. MELLO, Celso de. O Papel Constitucional do Supre-mo Tribunal Federal na Consolidação das Liberdades Fundamentais. In: TOFFOLI, José Antonio Dias. 30 Anos..., cit. p. 484.

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Mesmo a caracterização de ato-regra desses contratos, adotada por alguns doutrinadores, não é de todo aplicável, posto que os lojistas, em razão de especi-ficidades de sua atividade, não raras vezes obtêm alterações nas normas a serem pactuadas, que se amoldem à situação peculiar de seu segmento, sendo exemplos as lojas-âncora, como as salas de cinema, e semiâncora, ou pelo tipo de atividade, como as farmácias, caixas eletrônicos, que procuram adequar seus contratos à suas realidades empresariais. Alguns contratos de cessão de uso não permitem a cobrança de aluguel percentual, por ser inaplicável.

No anteprojeto do Código Civil em vigor, está ressaltado o princípio da liber-dade de contratar, desde que atenda o fim social do contrato:

Tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito funda-mental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreen-são positivista do Direito, mas, essencial à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica.

J. ANTUNES VARELA30 leciona, com toda propriedade – embora se refira à lei portuguesa de shopping centers:

Simplesmente, todos sabem que o princípio da liberdade contratual, tal como a própria lei o define (art. 405.º do Cod. Civil) permite às partes introduzir alterações, adaptações ou aditamentos a qualquer contrato típico ou inominado, catalogado na lei, sem rompimento necessário com os limites essenciais desse contrato.Têm, também, como expressamente afirma o art. 406.º nº 1 deste diploma, a faculdade de incluir nos próprios contratos previsto no Código as cláusulas que lhes aprouver.

Assim, a liberdade de contratar está expressa, como princípio de Direito Obrigacional, no art. 421 do Código Civil, desde que cumprida a função social do contrato, que, no art. 422, pontua, como princípio de direito obrigacional, a boa-fé contratual, isso é, a exercida durante a negociação e todo o período de eficácia contratual. Trata-se de ponto manso e pacífico na doutrina e jurisprudência.

A Lei de Locações, no art. 17, repita-se, autoriza, expressamente, a liberda-de de convencionar o aluguel, desde que respeitados os princípios de Direito Obri-gacional da livre negociação e do sinalagma, com as restrições expressas, mencio-30 VARELA, Antunes. Ob. cit. p. 8.

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nadas acima, pelo i. Magistrado GILDO DOS SANTOS, sem afastar, no entanto, as especificidades das normas contratuais decorrentes do aspecto organizacional dos shopping centers, cujas consequências práticas são abordadas adiante.

O saudoso e emérito magistrado, FRANCISCO CARLOS ROCHA DE BAR-ROS31, pondera:

[...] este art. 54 afirma que nas relações entre eles (lojistas e em-preendedores) “prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimen-tais previstas nesta lei”.Trata-se de norma cuja ausência não faria falta, simplesmente por-que não diz nada. Bastaria ter dito, para evitar dúvidas, que esse tipo de relação jurídica constituiria locação regulada por esta lei.

GILDO DOS SANTOS32, no mesmo sentido, doutrina:

A norma legal ressalvou, todavia, por outro lado, que as relações jurídicas entre os lojistas (comerciantes) e os empreendedores ou proprietários de shopping centers são aquelas por eles estabelecidas nos contratos de locação, no que laborou em regra desnecessária, por isso que, pelo princípio da liberdade de contratar, as disposições ajustadas pelas partes sempre prevalecem, salvo se atentarem con-tra a lei, a moral, os bons costumes, a ordem pública.

Outro traço marcante nos contratos envolvendo empreendedores e lojistas de shopping centers, é de que se trata de contrato empresarial, em que as partes estão no mesmo nível, configurando equilíbrio e igualdade entre elas, cuja con-sequência é a prevalência da interpretação pacta sunt servanda das cláusulas contratuais, observadas as restrições à legalidade dos atos jurídicos.

O Superior Tribunal de Justiça já julgou diversas ações33, como, por exemplo, o aresto cuja ementa é transcrita em parte, tendo como partes adversas empresá-rios, em que tal princípio interpretativo imperou:

1. Contratos empresariais não devem ser tratados da mesma for-ma que contratos cíveis em geral ou contratos de consumo. Nestes admite-se o dirigismo contratual. Naqueles devem prevalecer os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória das aven-ças. 2. Direito Civil e Direito Empresarial, ainda que ramos do Direito Privado, submetem-se a regras e princípios próprios.

31 BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Ob. cit. p. 297-298.32 SANTOS, Gildo dos. Ob. cit. p. 366.33 REsp 936.741 (GO), Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. em 3/11/2011; DJe 8/3/2012.

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Da mesma forma, no REsp 1413818/DF, 2013/0357088-734, acórdão cuja ementa é transcrita abaixo, não só reforça o caráter de contrato interempresarial, a forma organizacional desse tipo de empreendimento, a comutatividade contratual e a cooperação entre empreendedor e lojista, verbis:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. LOCAÇÃO DE ES-PAÇO EM SHOPPING CENTER. CLÁUSULA CONTRATUAL LIMITA-DORA DO VALOR DA REVISÃO JUDICIAL DO ALUGUEL MENSAL MÍNIMO. RENÚNCIA PARCIAL. VALIDADE. PRESERVAÇÃO DO PRINCÍPIO DO PACTA SUNT SERVANDA. 1. Ação declaratória de nulidade de cláusula contratual cumulada com pedido revisional do valor do aluguel mensal mínimo. 2. Recurso especial que veicula a pretensão de que seja reconhecida a validade de cláusula de contrato de locação de imóvel situado em shopping center que estabelece critérios para a revisão judicial do aluguel mensal mí-nimo. 3. O princípio do pacta sunt servanda, embora temperado pela necessidade de observância da função social do contrato, da probidade e da boa-fé, especialmente no âmbito das relações empresariais, deve prevalecer. 4. A cláusula que institui parâme-tros para a revisão judicial do aluguel mínimo visa a estabelecer o equilíbrio econômico do contrato e viabilizar a continuidade da relação negocial firmada, além de derivar da forma organizacional dos shoppings centers, que têm como uma de suas características a intensa cooperação entre os empreendedores e os lojistas. 5. A renúncia parcial ao direito de revisão é compatível com a legis-lação pertinente, os princípios e as particularidades aplicáveis à complexa modalidade de locação de espaço em shopping center. 6. Recurso especial provido.

RODRIGO BARCELOS35 ressalta que “não obstante, em regra, os contratos interempresariais, de um lado, e os contratos civis e de consumo, de outro, possam ter a mesma estrutura, terão tratamento jurídico diferenciado em razão de suas distintas funções econômicas”.

DINAH SONIA RENAULT PINTO36 também afasta os contratos interempre-sariais dos contratos de adesão, ao salientar que “há obrigações para ambas as partes, em grau de igualdade e autonomia da vontade”.34 3ª Turma. Relator Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, j. 14.10.2014; DJe 21.10.2014.35 BARCELOS, Rodrigo. O Contrato de Shopping Center e os Contratos Atípicos Interempresariais. São Paulo: Atlas, 2009, p. 60.36 PINTO, Dinah Sonia Renault. Shopping Centers: uma nova era empresarial, cit. p. 98.

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Consequentemente, por não se tratar de relação de consumo, dada a inexis-tência de hipossuficiência do lojista, os contratos de cessão de uso de espaço em shopping centers têm natureza interempresarial e como tal devem suas cláusulas ser interpretadas.

Obviamente que pode haver, por exceção, desequilíbrio de cláusulas nessa espécie contratual, como em qualquer outra espécie de contrato; contudo, depen-dem de exame caso a caso, quando essa anormalidade poderá ser anulada por de-cisão judicial, por mediação, ou arbitragem, conforme a forma contratual escolhida para dirimir as divergências acaso dele provenientes.

É, pois, importante notar que o contrato em apreço é celebrado entre em-presários, não sendo qualquer deles hipossuficiente, razão pela qual entendo ser um tremendo retrocesso a possibilidade de uma nova lei para complementá-lo. A lei atual, apesar de falha sob o prisma da tecnicidade, interpretada pela ótica dos princípios de Direito Obrigacional, tem condições de resolver todas as questões pertinentes à relação jurídica objeto deste trabalho, sendo o Poder Judiciário, a arbitragem e a mediação os meios de se obter o remédio para qualquer inadimple-mento contratual.

Portanto, estipular o pagamento de aluguel entre o maior, o mínimo mensal e percentual, assim como o dobro em dezembro e em meses em que, notoriamen-te, há um acréscimo na arrecadação do lojista, proibir a alteração da atividade da loja, o art. 17 da Lei 8.245/91 já autoriza. Vedar que se provoque barulho na loja que possa afetar os demais lojistas, ou que se exerça algum tipo de atividade fora do seu espaço comercial, ou ainda observar os horários de abertura e fechamento da loja e de entrega de mercadorias de acordo com o regimento interno, ou legis-lação local, ou até de depósito de lixo, a título de exemplos, constituem práticas que atendem os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que, na relação bilateral e sinalagmática entre as partes contratantes, não acarretam desequilíbrio entre elas, passíveis de serem implementadas em shopping centers, lojas de rua e de galerias, matérias de que grande parte da doutrina se ocupou anteriormente ao advento da Lei 8.245/91, antes da possibilidade legal de se estabelecerem cláu-sulas contratuais livremente convencionadas, devido às amarras legais que então predominavam.

A relação jurídica envolvendo o empreendedor e o lojista do shopping center é extremamente complexa, podendo englobar a fase de construção do shopping center, sua administração, uma vez operando, e até as fases de expansão.

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Disso decorre a necessidade de as características fundamentais desse tipo de relação contratual serem devidamente esclarecidas nos contratos que regem a relação empreendedor-lojistas, de modo que os princípios gerais de Direito, es-pecialmente o da comutatividade, justifiquem as cláusulas especiais pactuadas. Sugere-se, a propósito, que sejam colocadas em consideranda, a fim de facilitar a compreensão do contrato.

Vale lembrar que, no Direito Pátrio, muitas delas dependem de interpreta-ção, no sentido de se determinar a existência, ou não, de equilíbrio entre as partes, o que será objeto de definição pelo Poder Judiciário.

Sobre as cláusulas especiais, nos Estados Unidos, algumas delas são polêmicas, não obstante ter um regime jurídico diverso do Brasil, como as de inauguração do shopping center, substituição de loja-âncora, raio, resolução con-tratual por inadimplemento à performance mínima, expansão, sobre as quais o ICSC recomenda cuidado redobrado nas redações, a fim de afastar o desequilíbrio contratual.37

SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA38, sobre a aplicação das cláusulas gerais aos contratos de cessão de uso de espaço em shopping center, adverte com razão:

Aplicam-se, portanto, ao contrato de locação de imóvel urbano, além das regras específicas, estabelecidas na presente lei, todas as demais que se referem aos contratos bilaterais e onerosos, e, entre elas, a exceção do contrato não cumprido, a cláusula resolutória tá-cita, a das arras, a dos vícios redibitórios e da evicção.

No direito francês, a fim de coibir cláusulas que, segundo a legislação local, poderiam ensejar desequilíbrio contratual entre empreendedor e lojista de shopping center, a lei atual (Ordonnance 2016-131), de 10 de fevereiro de 2016, prevê a nu-lidade de cláusulas que afetem a essência do contrato e vedem a possibilidade de as partes o reverem judicialmente, pela aplicação da teoria da imprevisão.

O Código de Processo Civil, de 2015 inovou, ao introduzir princípios de ordem constitucional ao processo, que o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, LUIZ FUX, assim resumiu39:37 BELKIN, Elizabeth H.; HENNIGH, Mark S.; WALDSTEIN, Arthur S.; HALL, Joel R. Crafting Lease Clauses. Nova York: ICSC, 1994. p.7 e 14; HALL, Joel R., BELKIN, Elizabeth H. e HENNIGH, Mark S. Key Shopping Center Legal Issues. Nova York: ICSC, 1995. 38 SOUZA, Sylvio Capanema De. A Nova Lei do Inquilinato Comentada. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 6.39 FUX, Luiz. Novo Código de Processo Civil Temático. São Paulo: Mackenzie, 2015, p. 22.

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[...] o exsurgimento dos princípios maiores, inseridos na Carta Fe-deral de 1988, introduziu o sistema jurídico brasileiro do positivismo moderno que não mais se reduz a regras legais, senão e, princi-palmente, compõe-se de princípios maiores que representam o centro de gravidade de todo o sistema jurídico. Nesse segmento, destacam-se os princípios da dignidade humana, da razoabilidade, da impessoalidade, da eficiência, da duração razoável dos proces-sos, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da efetividade, da tutela específica e tempestiva, do acesso à ordem jurídica justa, dentre outros, à luz da concepção jusfilosófica que os acompanham.

Conclui-se dos ensinamentos transcritos acima que o sistema jurídico de-corre dos princípios; que as normas, mesmo as processuais, não podem ser inter-pretadas isoladamente, devendo preponderar a interpretação com base no sistema jurídico como um todo.

No caso de várias cláusulas, cujos objetos foram acima indicados, depende-rá da jurisprudência, se adotarão as interpretações sistemática e finalística, tendo em vista a análise do caso, sob o prisma da comutatividade, do equilíbrio contra-tual, conquanto se tratem de contratos interempresariais, afastando a mera inter-pretação literal.

Nesse diapasão, é essencial ressaltar que o contrato de cessão de uso de espaços em shopping centers tem uma característica fundamental, a natureza or-ganizacional, que serve de base às interpretações sistemática e teleológica da re-lação jurídica em questão, à luz do artigo 54 da Lei 8.245/91.

Conclusões

- O conceito jurídico de shopping center ainda prescinde de maior clareza, a despeito das definições da ABRASCE, do ICSC e das legislações estrangeiras.

- A Lei 8.245/91, que dispõe sobre as locações prediais urbanas, no art. 54 estabeleceu a subsunção dos contratos de cessão de espaço em shopping center a esse diploma legal, facultando, contudo, a liberdade de contratar, no que for espe-cífico dessa espécie de contrato, com raras e criticáveis exceções.

- Contudo, será necessário o exame, caso a caso, pelo Poder Judiciário, de um estabelecimento que se denomine shopping center, quando houver dúvida a respeito de seu enquadramento ao art. 54 da Lei 8.245/91.

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- Segundo classificação de FRANCESCO MESSINEO, o enquadramento do contrato em apreço à citada lei enseja sua classificação como contrato atípico stric-to sensu, em que o tipo legal locação prevalece, mas, admite cláusulas atípicas.

- Pelo art. 17 da Lei 8.245/91, passou a ser livre a convenção do aluguel nos contratos de locação em geral, o que abarca aqueles de cessão de uso de espaços em shopping centers.

- A interpretação da expressão “livre negociação”, contida no art. 54 acima referido, deve ser feita considerando o tipo legal da locação atípica stricto sensu, ou seja, alcançando apenas as cláusulas que refletem a especificidade desse tipo de negócio, enquanto as demais se sujeitam às normas gerais do diploma legal em questão.

- Há cláusulas específicas cuja aplicação não gera dúvidas. Todavia, outras ainda dependem de se consolidar a jurisprudência, a fim de serem aceitas pacifi-camente, ou não, tendo em vista sua redação, sendo determinante a sua análise, para se constatar se afetam, ou não, o equilíbrio contratual e o sinalagma, que são características desse tipo contratual bilateral.

- Nos consideranda do contrato de cessão de uso é de suma importância ressaltar o aspecto organizacional do shopping center, em que as atividades dos contratantes se complementam e se entrelaçam, no sentido da lucratividade e do êxito do empreendimento como um todo, em que o interesse coletivo, a ser zelado pelo empreendedor, prevalece sobre o individual de cada lojista.

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Sérgio Ulpiano K. I. Itagiba1

Resumo

Não é novidade que a obtenção de quóruns qualificados de deliberação nas assembleias gerais condominiais é fato difícil de ocorrer. Como os condomínios edilícios não podem se curvar a esse problema, sob pena de um engessamen-to administrativo capaz de ameaçar a boa condução dos negócios condominiais, várias soluções para essa questão são postas em prática. O objetivo do presente artigo é trabalhar algumas dessas soluções para ao fim defender a legalidade do controverso procedimento de conversão da sessão assemblear em permanente, que mantém essa sessão aberta por tempo (in)determinado para a coleta de votos dos condôminos em determinada deliberação.

Palavras-chave

Condomínio edilício; assembleia geral; sessão permanente; assembleia permanente.

Abstract

It is not news that obtaining qualified majority quorums for deliberation at condominial general assemblies is a hard fact to take place. As condominiums can-1 Advogado; graduado, cum laude, em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ); Especialista em Direito Imobiliário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); pes-quisador em direito civil, com foco em direito das coisas e responsabilidade civil; membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM), onde compõe a comissão de condomínios; da Associação Brasileira de Ad-vogados do Mercado Imobiliário (ABAMI); e da Associação Henri Capitant – Brasil (AHC-Brasil); Delegado da Comissão de Direito Imobiliário da 16ª Subseção da Seção do Estado do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/Niterói). e-mail: <[email protected]>. Artigo finalizado em 17 abr. 2019.

A (DIFÍCIL) OBTENÇÃO DE QUÓRUM NAS ASSEMBLEIAS GERAIS CONDOMINIAIS E A VALIDADE DA CONVERSÃO DA SESSÃO

ASSEMBLEAR EM PERMANENTE

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not bow themselves to that problem, under a penalty of an administrative stale-mate, which is able to threat the proper conduction of the condominial business, several solutions for this question apply. The objective of this article is to work on some of these solutions, in order to defend the legality of the controversial proce-dure that convert in permanent of the general assembly session, keeping it open for an (in)determinate period of time in which it will be possible to collect the votes of the co-owners at a specific deliberation.

Keywords

Condominiums (strata title); general assembly; permanent session; perma-nent assembly.

Sumário

1 Quóruns assembleares especiais: um problema a ser vencido pelos con-domínios; 2 O consentimento tácito dos condôminos ausentes; 3 A representa-ção dos ausentes por procuração; 4 Conversão da sessão da assembleia geral em permanente; 4.1 A conversão da sessão da assembleia geral em permanente na doutrina e na jurisprudência; 4.1.1 Estudo de casos: diferença entre conversão da sessão da assembleia geral em permanente da ratificação posterior de deliberação assemblear; 4.2 Motivos determinantes para se admitir a conversão da assembleia geral em permanente; 4.2.1 Ausência de regulamentação legislativa sobre a maté-ria e modelação expansiva dos direitos reais; 4.2.2 A assembleia geral é um órgão perene, com deliberações tomadas em sessões temporárias; 4.2.2 A assembleia geral é um órgão perene, com deliberações tomadas em sessões temporárias; 5 A solução francesa para as dificuldades na obtenção de quórum: uma alternativa às assembleias gerais permanentes? Conclusão; Referências bibliográficas.

1 Quóruns assembleares especiais: um problema a ser vencido pelos condomínios

Quem lida diariamente com a administração e condução jurídica dos negó-cios de condomínios sabe que a convocação de uma sessão da assembleia geral para deliberar sobre matérias que exigem quóruns especiais para a sua aprovação é um verdadeiro problema diante do baixo comparecimento dos condôminos.

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Partimos do pressuposto de que questões como (i) desaprovação da gestão do síndico; (ii) ambiente rotineiramente belicoso de certas assembleias gerais e (iii) desconhecimento ao tentar entender a administração da coisa comum e de obter informações sobre ela2 são os maiores catalisadores do já comum e cultural desin-teresse da comunhão na participação em assembleias gerais.

Muitas vezes, o desinteresse da comunhão na participação direta e presen-cial nas deliberações em assembleia geral é ineficaz para travar ou obstar algum aspecto da administração da coisa comum, porquanto deliberações como (i) apro-vação das contas; (ii) eleição dos componentes da administração condominial; ou (iii) fixação dos valores das contribuições condominiais, independem de quórum específico para serem aprovadas.

Entretanto, há situações em que medidas excepcionais de notório interesse da integralidade da comunhão precisam ser tomadas, e por sua delicadeza, de-mandam quóruns especiais, como (i) modificação da convenção condominial; (ii) realização de obras úteis e voluptuárias no condomínio; e (iii) aplicação das multas previstas pelo artigo 1.337 e seu parágrafo único do Código Civil ao condômino re-lapso ou antissocial, respectivamente. Nessas hipóteses, torna-se quase proibitivo deliberar no atual cenário de participação assemblear.

A doutrina é tímida ao lidar com a questão da dificuldade na obtenção de quóruns qualificados. Arnaldo Rizzardo compreende que mesmo nos casos de a matéria exigir aprovação qualificada e em havendo regular convocação, deve ser interpretada a omissão do condômino em participar da assembleia como consentimento para com as propostas, posto que a própria existência do condomínio ficaria comprometida diante do cenário da impossibilidade de deliberar3.

Guardadas todas as vênias ao entendimento de Rizzardo, com a qual não concordamos pelos motivos expostos adiante, vemos como viáveis apenas duas saídas para solucionar o problema do baixo comparecimento assemblear: (i) a re-presentação dos ausentes por mandatários regularmente constituídos, expedien-te comumente vedado nas associações civis e largamente utilizado nos condomí-nios edilícios; e (ii) a conversão da sessão da assembleia geral em permanente, procedimento excepcionalíssimo consistente em não encerrar a sessão após os 2 SCHWARTZ, Roseli Benevides de Oliveira. Revolucionando o Condomínio. 15ª ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 40-41.3 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 6ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 209.

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debates acerca de determinada deliberação, admitindo-se a tomada dos votos de toda a comunhão em lista própria, expediente lícito no entendimento de Caio Mário da Silva Pereira4.

Enfrentaremos os prós e os contras de todas as soluções acima expostas, inclusive a de Rizzardo, para ao fim defender a possibilidade jurídica de conversão da sessão da assembleia geral em permanente como meio viável de se vencer a questão do baixo comparecimento às assembleias gerais condominiais na conjun-tura legislativa atual. Trabalharemos também a solução parcial dada pelo ordena-mento francês para a dificuldade na obtenção de quórum assemblear, cuja adoção no ordenamento pátrio vemos como bastante conveniente.

2 O consentimento tácito dos condôminos ausentes

A primeira solução, de interpretar a omissão dos condôminos ausentes à assembleia geral como consentimento para com as deliberações a serem tomadas, nos parece potencialmente polêmica. É, em tese, balizada pela legislação quando o artigo 111 do Código Civil determina que “[o] silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de von-tade expressa”, mas dependerá de sólida interpretação que confirme a aplicação do dispositivo ao ambiente condominial.

É aí que resta a fragilidade dessa solução. Depender de interpretação judi-cial que assegure a aplicação do artigo 111 do Código Civil para que a norma seja aplicada em sede de assembleias gerais condominiais colocaria um sem número de deliberações assembleares em xeque até que a jurisprudência se sedimentas-se no sentido da validade da tese de Rizzardo, o que poderia demorar anos, sem mencionarmos que a jurisprudência poderia se firmar em sentido contrário, e que incontáveis provimentos judiciais seriam prolatados em todos os sentidos até a pacificação da (im)procedência jurisprudencial da tese.

Entendemos que o cumprimento aos dois requisitos contidos no artigo 111 do Código Civil – (i) autorização pelos usos e costumes; e (ii) desnecessidade de declaração de vontade expressa – não está presente para que a norma seja aplica-da em sede de assembleias gerais condominiais em relação àqueles que se omiti-ram em participar da sessão assemblear.4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 11ª ed. rev., atual. e ampl. por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 157.

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Quanto ao silêncio importar anuência de acordo com os usos e costumes, não é possível concebermos qualquer interpretação jurídica que permita concluir que seja usual ou costumeiro ter a ausência à sessão de assembleia geral interpre-tada como anuência dos ausentes às matérias sob deliberação.

Nesse sentido se posiciona a melhor doutrina, tanto nacional5 quanto estran-geira6, sendo contundente a crítica de Luis Cabral de Moncada àqueles que sempre veem no silêncio uma forma de anuência:

Querer chamar ao silêncio vontade, é contorcer a lógica: é como di-zer, no clássico chiste, que o açúcar explica o amargo do café quan-do ausente nele. Ou é – isso sim – numa primeira hipótese, uma forma de manifestação expressa duma vontade psicológica anterior (ou também expressa ou subentendida); mas neste caso, deixa de nos interessar como silêncio (facto negativo) para só nos interes-sar como facto positivo, colocado como vedeta à frente de todo o processo da manifestação da vontade por essa mesma vontade anterior. Ou então ainda – segunda hipótese – trata-se dum facto abstracto do qual, em certas condições, a lei faz depender um efeito jurídico, vendo nele, não uma manifestação de vontade psicológica com um certo conteúdo querido, mas sim a origem duma vontade jurídica, isto é, duma imputação que a mesma lei cria à base de uma responsabilidade.7

Mormente seja comum ouvir-se dizer que a pessoa que se omite de com-parecer à assembleia geral anui, diante de sua ausência, com o deliberado à ses-são, devemos diferenciar o dever de respeito às deliberações assembleares regu-larmente tomadas do consentimento tácito do ausente para com essas mesmas deliberações.

Talvez por certa coloquialidade teleológica, seja interpretada a omissão do condômino em comparecer à assembleia geral como um consentimento tácito do que foi deliberado pelos presentes, diante não apenas do dever de respeitar a de-liberação assemblear, mas também pelo sentimento de que a ausência de deter-minado condômino importe em confiança na deliberação tomada pelos presentes.5 Na qual estão inseridos Philomeno J. da Costa e Serpa Lopes.6 Na qual estão inseridos Roberto de Ruggiero e Luis Cabral de Moncada.7 MONCADA. Luis Cabral de. Lições de Direito Civil: parte geral. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 568-569, apud FAZANO, Haroldo Guilherme Vieira. Hermenêutica e a Aplicação da Convenção de Condomínio (Propriedade Horizontal) (Tese. Doutorado em Direito). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007, p. 167, nota de rodapé 319.

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A parêmia “quem cala consente” não tem juridicidade em nosso ordena-mento8, e é daí que podemos extrair que não há (e não pode haver) costume do ponto de vista jurídico que permita confundir ausência com anuência tácita. A um, porque como já explicado, a ausência importa apenas no dever de respeitar a deliberação assemblear na qual o ausente não tomou parte9; e a dois, porque esse dever de respeito não decorre de simples costume, mas do império da lei: é através da assembleia geral que a coletividade manifesta a sua vontade e a impõe à minoria discordante, como bem diz Carlos Maximiliano10. No mais, se fosse juridicamente viável a lógica do consentimento tácito, o condômino não poderia nem mesmo ter legitimação para perquirir a declaração de nulidade da deliberação assemblear.

Ademais, se examinarmos mais a fundo a lógica da indiferença entre ausên-cia e anuência, veremos que ela somente se aplica às deliberações que dependem de maioria simples para serem aprovadas, quando na verdade, deveria ela ser apli-cada indistintamente, tal qual defende Rizzardo11. Em seu raciocínio, a anuência tácita é admitida por decorrer diretamente da ausência à sessão assemblear, inde-pendentemente da deliberação que esteja em pauta.

Quando as deliberações dependem de quórum qualificado, fica mais evi-dente que a manifestação de vontade do condômino deve ser expressa no proce-dimento de tomada das deliberações, principalmente no ambiente condominial, onde se tratam de assuntos delicados relativos ao direito de propriedade, sua restrição ou diminuição, como por exemplo, a construção de novo pavimento ou edifício com instituição de novas unidades imobiliárias, onde o direito de proprie-dade de todos os condôminos, inclusive os ausentes, é modificado por alteração das frações ideais.8 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 194.9 LOPES, João Batista. Condomínio. 10ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 136, apud ELIAS FLHO, Rubens Carmo. A Convenção de Condomínio e as Restrições aos Direitos dos Condôminos nela decorrentes (Tese. Doutorado em Direito). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012, p. 96. "Como é sabido, as deliberações da assembleia são soberanas, obrigando a todos, mesmo os ausentes e dissidentes, desde que tenham sido observados os requisitos legais, ou seja, 'impõe-se fiel observância às pres-crições legais, seja no aspecto formal (regularidade da convocação, quórum, etc.), seja no substancial (conteúdo das deliberações)', incumbindo ao síndico cumprir e fazer cumprir essas deliberações, assim como a convenção de condomínio e o regimento interno (artigo 1.348, IV, do Código Civil)".10 MAXIMILIANO, Carlos. Condomínio: terras, apartamentos e andares segundo o direito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 292.11 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 6ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 209.

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Mesmo que uma pessoa esteja presente à assembleia geral e, se reservan-do o direito de permanecer silente, se abstenha de votar pela aprovação ou rejei-ção dessa matéria, é incabível que seu silêncio seja computado como anuência à deliberação12. Se o silêncio do presente não pode ser considerado como anuência, muito menos o silêncio do ausente pode ser tido dessa forma.

3 A representação dos ausentes por procuração

A segunda solução, de representação dos ausentes por mandatários re-gularmente constituídos é a melhor saída para evitar polêmicas e controvérsias no ambiente condominial. Indiscutivelmente, facilita a obtenção das maiorias necessárias para se deliberar, e permite que o condômino evite ser mantido fora das decisões administrativas do condomínio13. É, além disso, expediente normalmente incontestável, a não ser quanto a alguns elementos intrínsecos e extrínsecos do instrumento de mandato que variarão conforme o condomínio e o caso concreto.

Sobre a legalidade da utilização de procurações visando à representação dos ausentes, nada se questiona – e nada há que se questionar. A legislação brasileira admite claramente o mandato como contrato típico14,15, não havendo empecilhos legislativos que inviabilizem a sua utilização no ambiente condominial.

Muito embora a legislação atual não proíba a representação por manda-to nos ambientes assembleares16, são potenciais empecilhos a tal expediente a proibição estatutária de representação nas assembleias gerais associativas, muito comum em clubes; e a limitação convencional17 da quantidade de procurações18 12 Note-se que a necessidade de manifestação expressa é para que determinada deliberação seja aprovada. Nada impede ou obriga que determinado componente da assembleia geral tenha de se manifestar expressamen-te pela aprovação ou rejeição de certa matéria, sendo o seu silêncio e a sua ausência verdadeiros direitos seus, decorrentes da facultatividade da participação às assembleias gerais.13 KISCHINEWSKY-BROQUISSE, Édith. La copropriété des immeubles bâtis. 3ª ed. Paris: Librairies Techiniques, 1978, p. 600-601.14 Como aliás já admitia a legislação romana há milênios (D. 17, 1). Vide: SCOTT, Samuel Parsons. The Civil Law. Vol. III. Cincinatti: The Central Trust Company, 1937. Disponível em: <http://www.constitution.org/sps/sps.htm>. Acesso em: 02 out. 2018.15 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. Vol. II. 5ª ed. São Paulo: Forense, 1995, item 243, p. 194-199.16 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 6ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 204.17 “convencional” está no sentido de “convenção de condomínio”.18 Comumente limitada a duas ou três procurações por mandatário.

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que podem ser portadas ou da qualidade de quem pode portar procurações19 em assembleias gerais condominiais.

Contudo, analisa-se legislativamente a possibilidade de se limitar legislativa-mente a quantidade de procurações que podem ser portadas por mandatário nas assembleias gerais condominiais. O Projeto de Lei do Senado (PLS) 348/201820, de autoria do Senador Hélio José (PROS/DF) prevê em seu artigo 3º a inclusão de dois parágrafos ao artigo 1.354 do Código Civil, com o seguinte teor:

Art. 1.354. (...)§1° Os condôminos ausentes poderão ser representados por meio de procuração, observado o limite de representação estabelecido na convenção condominial ou, na sua omissão, o máximo de dois mandatos, específicos e expressos, por pessoa.§2º O mandato não poderá ser utilizado quando o objeto da votação for de interesse preponderante do mandatário, sob pena de nulidade do ato.

É importante considerarmos que o PLS 348/2018, que tivemos a oportuni-dade de proveitosamente discutir na Comissão de Condomínios do IBRADIM no tocante a outro aspecto – a habilitação profissional dos síndicos – não limita defini-tivamente ao número de duas as procurações que podem ser portadas por manda-tário, mas tão somente torna essa a regra para condomínios cujas convenções não disciplinem em contrário.

Entretanto, a despeito de bem-intencionada, a proposição legislativa parece inoportuna quando observada sob a ótica da autonomia privada, porquanto não vemos como adequado o Estado impor irrestritamente uma proibição que deve ser adotada caso a caso, de acordo com a vontade de cada comunhão, seus interesses e características.

Evidentemente, não negamos que o atual cenário legislativo possibilita a ocorrência de inconvenientes como a maciça concentração de procurações na pessoa de um condômino, o que chega a ser qualificado por Rizzardo como uma “manobra de domínio”, principalmente se outorgados os mandatos a membros da 19 Acontece de haver convenções condominiais que proíbem que membros da administração condominial, como síndico, subsíndico e conselheiros fiscais; bem como membros integrantes da mesa diretora da Assembleia Geral, portem procurações para representar condôminos ausentes.20 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado 348, de 2018. “Altera a Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil, para dispor sobre a habilitação profissional do síndico não condômino, sobre competências, renúncia, dever de prestação de prestação de contas (sic.) e destituição do síndico e sobre o uso de procurações nas assembleias condominiais”. Autor: Senador Hélio José (PROS/DF). Publicação no Diário do Senado Federal em: 08 ago. 2018.

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administração condominial21. Nenhum cenário é perfeito, mas temos o que privile-gia a autonomia privada como o menos defeituoso.

Em termos de praticidade, prevemos como desastrosos os efeitos da incor-poração do PLS 348/2018 ao ordenamento. A um, porque os efeitos da proposição legislativa incidirão sobre uma parcela significativa dos condomínios edilícios no Brasil; a dois, porque nos últimos anos vimos crescer vertiginosamente o número de grandes empreendimentos imobiliários, com tamanho e estrutura de verdadei-ros bairros e cidades, contando com um sem número de unidades imobiliárias autô-nomas, divididas em vários blocos, o que torna muito difícil, até mesmo com o uso de procurações, alcançar os quóruns previstos em lei22.

Para que tenhamos um exemplo, se um condomínio que conta com nove-centas unidades quiser modificar sua convenção, seria necessária a presença de no mínimo duzentas pessoas em uma assembleia geral, sendo todas elas condô-minas titulares de uma unidade imobiliária, portando duas procurações cada uma, bem como anuindo todas, sem exceção, à modificação pretendida. Além de muitas vezes alguns condomínios grandes não possuírem estrutura para receber tamanho número de pessoas em sessões de assembleia geral, seria proibitivo e extrema-mente trabalhoso haver movimentação da administração condominial ou da própria comunhão no sentido de organizar uma deliberação com quórum qualificado. Nem todos os condôminos se conhecem, sendo certo que a desconfiança é um fator determinante para que certo condômino ausente não queira se fazer representar em assembleia geral através de um procurador.

Muito embora tenhamos uma visão ampla de autonomia privada que nos faz enxergar como inadequada uma limitação legislativa ao número de procurações que pode portar o mandatário às assembleias gerais, encontramos na brilhante obra do Professor André Abelha Dutra23 que o ordenamento francês, talvez preocupado com certos abusos de direito24 no ambiente condominial, adotou severas limitações 21 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 6ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 204.22 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 11ª ed. rev., atual. e ampl. por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 10123 DUTRA, André Abelha. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2013, p. 36.24 Mesmo sabendo das controvérsias envolvendo o emprego do termo abuso de direito, preferimos empregar neste trabalho a expressão que consta na legislação, muito embora concordemos com o posicionamento de Marcel Planiol de que o termo é inadequado se observarmos que o direito cessa quando inicia o abuso. Vide: PLANIOL, Marcel. Traité Élémentaire de Droit Civil Français. Tomo II. 2ª ed. Paris: Libraire Générale de Droit et Jurisprudence, 1901, p. 297, apud DUTRA, André Abelha. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2013, p. 28, nota de rodapé 27.

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legislativas – tanto quantitativas quanto qualitativas – ao direito de representação dos condôminos ausentes às assembleias gerais.

No que toca às restrições de ordem quantitativa, o artigo 22 da Lei 65-557, de 10 de julho de 1965, que “fixa o estatuto da copropriedade dos edifícios”, esta-belecia em sua redação original que o condômino tem direito de delegar seu direito de voto a um mandatário, e que cada mandatário não poderia receber mais do que três delegações de voto25. Posteriormente, a Lei 94-624, de 21 de julho de 1994, modificou a redação do dispositivo, permitindo que um mandatário possa portar mais de três procurações desde que os votos de que ele dispõe por direito próprio, somados aos votos de seus mandantes, não ultrapassem cinco por cento dos votos da comunhão26.

Por força da Lei 66-1006, de 29 de dezembro de 1966, o ordenamento fran-cês também passou a admitir que um mandatário porte mais de três procurações na hipótese de ele representar perante o “sindicato principal” (o condomínio), ape-nas mandantes que pertençam a um mesmo “sindicato secundário”, algo que seria concebido em nosso ordenamento como um “subcondomínio”27, normalmente com-preendido por um bloco ou torre de um empreendimento com vários blocos ou torres.

Nessa seara, não podemos deixar de mencionar que o ordenamento francês também limita o poder de voto do condômino que seja titular de mais da metade das frações ideais. Materializando-se essa hipótese, positivada pela Lei 66-1006, 25 Dizia o referido dispositivo legal em sua redação original: “Article 22. (...) Chaque copropriétaire dispose d'un nombre de voix correspondant à sa quote-part dans les parties communes. Tout copropriétaire peut déléguer son droit de vote à un mandataire. Chaque mandataire ne peut recevoir plus de trois délégations de vote”.

Em livre tradução para o português: “Artigo 22. (...) Cada coproprietário tem um número de votos correspon-dente à sua quota-parte nas partes comuns. Todo coproprietário pode delegar seu direito de voto a um manda-tário. Cada mandatário não pode receber mais de três delegações de voto”.26 Em redação atualizada pela Lei 2014-366, de 24 de março de 2014, diz o referido dispositivo legal: “Article 22. (I) (...) Tout copropriétaire peut déléguer son droit de vote à un mandataire, que ce dernier soit ou non membre du syndicat. Chaque mandataire ne peut, à quelque titre que ce soit, recevoir plus de trois délégations de vote. Tou-tefois, un mandataire peut recevoir plus de trois délégations de vote si le total des voix dont il dispose lui-même et de celles de ses mandants n'excède pas 5% des voix du syndicat. Le mandataire peut, en outre, recevoir plus de trois délégations de vote s'il participe à l'assemblée générale d'un syndicat principal et si tous ses mandants appartiennent à un même syndicat secondaire”.

Em livre tradução para o português: “Artigo 22. (I) (...) Todo coproprietário pode delegar seus direitos de voto a um mandatário, que pode ser ou não membro do sindicato. Cada mandatário não pode, a qualquer título, receber mais de três delegações de voto. Contudo, um mandatário pode receber mais de três delegações de voto se o número total de votos que ele dispuser por si próprio e por seus mandantes não exceder 5% dos votos do sindi-cato. O mandatário pode, além disso, receber mais de três delegações de voto se ele participar da assembleia geral de um sindicato principal e se todos os seus mandantes pertencerem ao mesmo sindicato secundário”.27 Vide redação atualizada à nota de rodapé n. 26.

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de 29 de dezembro de 1966, o poder de voto do condômino majoritário será redu-zido à soma dos votos dos demais condôminos28.

Já no que concerne às restrições de ordem qualitativa, a lei francesa proíbe que síndicos, seus cônjuges, prepostos ou parceiros a ele unidos por um pacto de solidariedade civil, possam presidir as sessões das assembleias gerais ou ser manda-tários de outros condôminos29. A despeito dessa restrição legislativa, o ordenamento francês admite desde 1938 que os condôminos possam se fazer representar por mandatários livremente escolhidos30, mas a doutrina, reconhecendo os mandamen-tos do artigo 22 da Lei 65-557 como de ordem pública, questiona – ou questionou outrora – se os règlements de copropriété (as nossas convenções de condomínio) poderiam restringir a liberdade na outorga de mandatos, prevista em Lei.

Duas correntes se erigiram sobre o tema, sendo majoritária a que enten-de ser possível que os règlements de copropriété limitem o poder de outorga de mandatos a certas pessoas (empregados do condomínio e locatários de unidades autônomas, por exemplo), ou até mesmo a pessoas estranhas à comunhão. Esse foi o entendimento do Senador Joseph Voyant, relator da Lei 65-557 no Senado francês31, posteriormente insculpido no texto legal quando de sua promulgação e confirmado por aresto do tribunal de Orléans em 196932.

Contudo, mesmo com a ratio do artigo 22 da Lei 65-557 ser a da liberda-de na escolha de mandatários pelos condôminos, alguns tribunais franceses reco-nheceram que não pode haver limitação regulamentar (convencional, em nosso ordenamento) do dispositivo, em razão de um suposto caráter de ordem pública que lhe é atribuído por minoria da doutrina. Nesse sentido, decidiram o tribunal de 28 DUTRA, André Abelha. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2013, p. 36.29 Em redação atualizada pela Lei 2014-366, de 24 de março de 2014, diz o referido dispositivo legal: “Article 22. (I) (...) Le syndic, son conjoint, le partenaire lié à lui par un pacte civil de solidarité, et ses préposés ne peuvent présider l'assemblée ni recevoir mandat pour représenter un copropriétaire.”.

Em livre tradução para o português: “Artigo 22. (I) (...) O síndico, seu cônjuge, o parceiro vinculado a ele por um pacto de solidariedade civil, e seus prepostos não podem presidir a assembleia nem receber um mandato para representar um condômino”.30 KISCHINEWSKY-BROQUISSE, Édith. La copropriété des immeubles bâtis, 3ª ed. Paris: Librairies Techiniques, 1978, p. 601.31 FRANÇA. Journal Officiel de La République Française. Débats Parlamentaires. Sénat. Edição de 9 de junho de 1965, p. 528, apud KISCHINEWSKY-BROQUISSE, Édith. La copropriété des immeubles bâtis, 3ª ed. Paris: Librai-ries Techiniques, 1978, p. 602, nota de rodapé 66.

Também disponível eletronicamente em: <http://www.senat.fr/comptes-rendus-seances/5eme/pdf/1965/ 06/s19650608_0499_0538.pdf> Acesso em: 18 out. 2018.32 KISCHINEWSKY-BROQUISSE, Édith. La copropriété des immeubles bâtis, 3ª ed. Paris: Librairies Techiniques, 1978, p. 602, nota de rodapé 67.

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Lyon em 196933 (o condomínio não pode regulamentar as modalidades de exercício do mandato, bem como não pode modificar seu regulamento para proibir que os condôminos se façam representar por outros condôminos) e o tribunal de grande instância de Paris em 197034 (reputa-se não escrita a cláusula do regulamento do condomínio que proíba os coproprietários de se fazerem representar por mandatá-rios que não sejam condôminos).

A questão foi pacificada por um julgado da Corte de Cassação francesa, que admitiu por um julgado de 1975 que o regulamento do condomínio pode validamen-te conter uma cláusula que proíba o condômino de se fazer representar por uma pessoa estranha ao condomínio35. Em 2011, o entendimento da Corte de Cassação fora ratificado por novo aresto em que se reconheceu implicitamente a possibilida-de de limitação do poder na outorga de mandatos e respectivos substabelecimen-tos para representação dos condôminos ausentes em assembleias gerais36.33 KISCHINEWSKY-BROQUISSE, Édith. La copropriété des immeubles bâtis, 3ª ed. Paris: Librairies Techiniques, 1978, p. 602, nota de rodapé 68.34 KISCHINEWSKY-BROQUISSE, Édith. La copropriété des immeubles bâtis, 3ª ed. Paris: Librairies Techiniques, 1978, p. 602, nota de rodapé 69.35 FRANÇA. Corte de Cassação. Terceira Câmara Cível. Recurso 73-13.338. “1) COPROPRIETE (LOI DU 10 JUILLET 1965) – SYNDICAT DES COPROPRIETAIRES – ASSEMBLEE GENERALE – DROIT DE VOTE – DELEGATION – MANDA-TAIRE IRREGULIER – NULLITE DE LA DELIBERATION. TOUTE DELEGATION PAR UN COPROPRIETAIRE DE SON DROIT DE VOTE A UN MANDATAIRE QUI NE PEUT LEGALEMENT OU CONVENTIONNELLEMENT LA RECEVOIR, EMPORTE NULLITE DES DELIBERATIONS DE L'ASSEMBLEE GENERALE AUXQUELLES IL A PARTICIPE. 2) COPROPRIETE (LOI DU 10 JUILLET 1965) – SYNDICAT DES COPROPRIETAIRES – ASSEMBLEE GENERALE – DROIT DE VOTE – DELE-GATION – LIMITATION PAR LE REGLEMENT DE COPROPRIETE – VALIDITE. LE REGLEMENT DE COPROPRIETE PEUT VALABLEMENT LIMITER LA FACULTE DE REPRESENTATION DES COPROPRIETAIRES AUX ASSEMBLEES GENERA-LES”. Relator: Conselheiro M. Leon. Sessão de julgamento em: 11 fev. 1975, apud KISCHINEWSKY-BROQUISSE, Édith. La copropriété des immeubles bâtis, 3ª ed. Paris: Librairies Techiniques, 1978, p. 602-603, nota de rodapé 70.

Também disponível eletronicamente em: <https://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriJudi.do?oldAction=rechJuriJudi&idTexte=JURITEXT000006993860&fastReqId=1234425877&fastPos=5> Acesso em: 19 out. 2018.

Ementa do julgado, em livre tradução: “1) CONDOMÍNIO (LEI DE 10 DE JULHO DE 1965) – SINDICATO DOS CON-DÔMINOS – ASSEMBLEIA GERAL – DIREITO DE VOTO – DELEGAÇÃO – MANDATÁRIO IRREGULAR – NULIDADE DA DELIBERAÇÃO. TODA DELEGAÇÃO POR UM CONDÔMINO DE SEU DIREITO DE VOTO A UM MANDATÁRIO QUE NÃO PODE LEGALMENTE OU CONVENCIONALMENTE A RECEBER, IMPORTA EM NULIDADE DAS DELIBERAÇÕES DAS ASSEMBLEIAS GERAIS ÀS QUAIS ELE PARTICIPAR. 2) CONDOMÍNIO (LEI DE 10 DE JULHO DE 1965) – SINDICATO DOS CONDÔMINOS – ASSEMBLEIA GERAL – DIREITO DE VOTO – DELEGAÇÃO LIMITAÇÃO PELO REGULAMENTO DO CONDOMÍNIO – VALIDADE DO REGULAMENTO DO CONDOMÍNIO. O REGULAMENTO DO CONDOMÍNIO PODE VALIDAMENTE LIMITAR A FACULDADE DE REPRESENTAÇÃO DOS CONDÔMINOS ÀS ASSEMBLEIAS GERAIS”.36 FRANÇA. Corte de Cassação. Terceira Câmara Cível. Recurso 10-14.591. “(...) Attendu que tout copropriétaire peut déléguer son droit de vote à un mandataire, que ce dernier soit ou non membre du syndicat; (...) Qu'en sta-tuant ainsi, alors que tout copropriétaire peut déléguer son droit de vote et qu'elle n'avait pas constaté que toute faculté de subdélégation était interdite au mandataire, la cour d'appel a violé les textes susvisés (...)”. Relator: Conselheiro A. Lacabarats. Sessão de julgamento em: 16 mar. 2011. Disponível eletronicamente em: <https://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriJudi.do?oldAction=rechJuriJudi&idTexte=JURITEXT000023742543&fastReqId=1688776039&fastPos=4> Acesso em 21 out. 2018.

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Portanto, se de um lado a utilização de procurações no ambiente assemblear é atualmente o meio mais seguro de se obter quórum para tomar certa deliberação, o potencial abuso de direito decorrente dessa possibilidade jurídica torna a matéria controvertida a ponto de se defender doutrinariamente e de buscar legislativamen-te em nosso ordenamento a sua limitação, tal qual ocorre no ordenamento francês. Se concretizada a pretendida modificação legislativa trazida pelo PLS 348/2018, será necessário desenvolver outros métodos para a obtenção de quórum, dentre os quais elencamos como o mais adequado, dentro da conjuntura legislativa atual, a conversão das sessões das assembleias gerais em permanentes.

4 Conversão da sessão da assembleia geral em permanente

A terceira e última solução que se afigura viável dentro de nosso ordena-mento para contornar a dificuldade na obtenção de quórum de deliberação é o que se chama de “conversão da sessão da assembleia geral em permanente”.

Consiste esse expediente em não encerrar a sessão da assembleia geral na qual determinada deliberação, após o desenvolvimento de todos os debates, não atingiu certo quórum para ser tomada. Com isso, a sessão permanece fictamente aberta por tempo determinado (ou indeterminado) para que toda a comunhão tenha a oportunidade de manifestar seus votos em lista própria.

4.1 A conversão da sessão da assembleia geral em permanente na doutrina e na jurisprudência

Admitimos que a conversão da sessão da assembleia geral em permanente é um tanto quanto controvertida e pouco explorada na doutrina e na jurisprudência. Na doutrina, encontramos três obras que tratam da matéria, todas a favor do cabi-mento do procedimento. Uma dessas obras, Condomínio, de autoria J. Nascimento Franco, coloca muito bem o assunto37:

Ementa do julgado, em livre tradução: “(...) Considerando que todo condômino pode delegar seu direito de voto a um mandatário que pode ser ou não membro do sindicato; (...) Que, portanto, seguindo-se que todo pro-prietário pode delegar seu direito de voto e que ele não constatou que qualquer faculdade de subdelegação era proibida ao mandatário, a Corte de Apelação violou os dispositivos acima mencionados”.37 FRANCO, J. Nascimento. Condomínio: administração, órgãos administrativos, assembléia geral, síndico, con-selho fiscal, responsabilidades. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 96-97, apud KARPAT, Rodrigo. Assem-bleia em aberto ou em sessão permanente. Disponível em <https://www.karpat.adv.br/assembleia-em-aberto--ou-em-sessao-permanente/>. Acesso em 12 abr. 2019.

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Há questões que nem sempre podem ser discutidas e votadas no mesmo dia. Os motivos são os mais variados, tais como necessidade de serem obtidas informações especializadas, questões dependentes de manifestação de alguns condôminos, hora avançada da noite, etc. Em tais casos, qualquer condômino pode sugerir que a Assembléia se declare em sessão permanente e desde logo designe dia, hora e local para continuação dos trabalhos. Assim decidido, o Presidente encerra os trabalhos do dia, determina que o Secretário lavre ata antes de nova reunião e, finalmente, declara convocados todos os presentes. Embora dispensáveis, o Presidente pode expedir avisos sobre a conti-nuação dos trabalhos aos condôminos que deixaram de comparecer.O prosseguimento dos trabalhos em sessão permanente não pode ser considerado uma outra Assembléia, nem como Assembléia reu-nida em segunda convocação, uma vez que a reunião subseqüente é, do ponto de vista legal, simples continuidade da anterior.Por derradeiro, cabe consignar que a declaração de sessão perma-nente é matéria de competência exclusiva da Assembléia e não do Presidente, que apenas pode tomar a iniciativa de submetê-la à con-sideração do Plenário.

Não podemos deixar de mencionar que o procedimento também se revela aceitável de acordo com o que leciona o Professor Caio Mário da Silva Pereira38 (lastreado em antigo aresto do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara) e o atualizador de sua obra Condomínio e Incorporações, o Professor Sylvio Capanema de Souza39. O mesmo entendimento é seguido por Thelma Araújo Esteves Fraga e Cleyson de Moraes Mello40, que mencionam expressamente as “assembleias permanentes” como um procedimento legal, desde que haja deliberação nesse sentido autorizando a coleta dos votos da comunhão em sessão permanente.38 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 11ª ed. rev., atual. e ampl. por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 157. “Embora a Assembleia-Geral se reúna e delibere em ato contínuo, encerrando com a votação da matéria, não atenta contra os bens princípios a suspen-são dos trabalhos e prosseguimento em dia subsequente, quer pelo adiantado da hora, quer pela necessidade de se coligir elementos ou complementar informações. Válida será até a declaração de manter-se a Assembleia em sessão permanente. Assim já foi decidido pelos Tribunais”.39 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 11ª ed. rev., atual. e ampl. por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 102. “Ainda mais se for exigido que as assinaturas sejam apostas na própria Assembleia-Geral para tanto convocada, demonstrando a experiência comum de que um reduzido número de condôminos se dispõe a comparecer às reuniões, apesar da relevância das matérias a serem ali decididas.

Daí por que, diante dessa realidade, alguns condomínios adotam uma solução prática, que não está prevista em lei, mantendo a Assembleia em reunião permanente, por um certo tempo, para que sejam recolhidas as assinaturas, até que se complete o quorum, o que nos parece aceitável”.40 FRAGA, Thelma Araújo Esteves; MELLO, Cleyson de Moraes. Condomínio. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003, p. 53-54.

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Na mesma direção decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos autos da Apelação Cível 0026364-02.2003.8.19.000141, alicerçando o provi-mento sobre o fundamento de que o simples fato de a sessão da assembleia geral ter sido convolada em permanente e somente encerrada um mês após a convoca-ção inicial não acarreta sua nulidade, diante da ausência de norma legal que proíba tal convolação e da falta de demonstração de prejuízo, sendo esse último critério – importante dizer – muito relevante para se arguir a nulidade das deliberações assembleares, afastando formalismos exagerados e sem objetivo prático42. Tal qual o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, já decidiu também o do Estado de São Paulo43.

4.1.1 Estudo de casos: diferença entre conversão da sessão da assembleia geral em permanente da ratificação posterior de deliberação assemblear

Em sentido contrário, posicionam-se aqueles que entendem que as delibe-rações assembleares devem ser, em todos os casos, tomadas presencialmente. 41 ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Décima Sexta Câmara Cível. Apelação Cível 0026364-02.2003.8.19.0001. “(...) O fato da Assembleia Geral ter sido convolada em permanente e somente encerrada cerca de um mês após a convocação inicial, não acarreta sua nulidade diante da ausência de norma legal que proíba tal convolação e da falta de demonstração de prejuízo (...)”. Apelante: Rachel Faul. Apelado: Condomínio do Edifício Senamar. Relator: Desembargador Mário Robert Mannheimer. Sessão de julgamento em: 24 ago. 2004. Publicação do acórdão em: 19 out. 2004.42 FAZANO, Haroldo Guilherme Vieira. Hermenêutica e a Aplicação da Convenção de Condomínio (Propriedade Horizontal) (Tese. Doutorado em Direito). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007, p. 100.43 ESTADO DE SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara de Direito Privado. Apelação Cível 0002258-60.2010.8.26.0445. “Ação anulatória de assembleia. Condomínio Edilício. Pretensão contra a decisão de esten-der a assembleia por mais dez dias para obtenção de votos a fim de modificar cláusula da Convenção. Sentença de procedência. Data da distribuição da ação: 12/03/2010. Valor da causa: R$ 10.000,00.

Apela o autor sustentando que houve aprovação por unanimidade dos presentes para estender a duração da assembleia por mais dez dias visando alcançar o quórum mínimo necessário; e que a medida aprovada, limitação do número de procurações para participação em assembleia, somente trouxe benefícios.

Cabimento.Deliberação de manter o funcionamento da assembleia de forma ininterrupta. Motivo insuficiente para impor

sua nulidade. Limitação do número de procurações. Inexistência de indicação de prejuízo individual ao postulante em face da vontade expressada pela coletividade dos condôminos.

Sentença reformada. Recurso provido para julgar improcedente a ação, com inversão dos ônus da sucum-bência”. Apelante: Condomínio Village Paineiras. Apelado: Carlos Marcelo de Castro Ramos Mello. Relator: Desembargador James Siano. Sessão de julgamento em: 05 dez. 2012. Publicação de acórdão em: 18 dez. 2012 apud PASCHOAL, João Paulo Rossi. Posso realizar uma assembleia em sessão aberta ou permanente? Dis-ponível em: <http://www.smartsindico.com.br/blog/2018/09/10/posso-realizar-uma-assembleia-em-sessao--aberta-ou-permanente/> Acesso em: 12 abr. 2019.

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Lastreiam-se, para tanto, na decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomada nos autos do Recurso Especial 1.120.140/MG44, assim ementado:

RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA – JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE – POSSIBILIDADE – CERCEA-MENTO DO DIREITO DE DEFESA – NÃO- OCORRÊNCIA, NA ESPÉ-CIE – ASSEMBLÉIA – INSUFICIÊNCIA DE QUORUM – RATIFICAÇÃO POSTERIOR – IMPOSSIBILIDADE – NECESSIDADE DA COLHEITA DE VOTOS NAS REUNIÕES CONGREGASSIONAIS – RECURSO ESPE-CIAL IMPROVIDO. (...)2. Conquanto o condomínio não possua personalidade jurídica, é inviável deixar de reconhecer que deve exprimir sua vontade para deliberar sobre o seu direcionamento.3. A assembléia, na qualidade de órgão deliberativo, é o palco onde, sob os influxos dos argumentos e dos contra-argumentos, pode-se chegar ao voto que melhor reflita a vontade dos condôminos e, portanto, não é de admitir-se a ratificação posterior para completar quorum eventualmente não verificado na sua realização. (...)

O julgado, contudo, não trata da hipótese fática de conversão da assembleia geral em permanente; mas sim da ratificação posterior de deliberação aprovada sem quórum suficiente após o encerramento da sessão da assembleia geral, o que se revela, de toda sorte, incabível, inclusive em outros ordenamentos45.

É necessário diferenciarmos a sessão da assembleia geral convertida em permanente da ratificação posterior da deliberação tomada em assembleia 44 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial 1.120.140/MG. “RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA – JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE – POSSIBILIDADE – CER-CEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA – NÃO-OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE – ASSEMBLÉIA – INSUFICIÊNCIA DE QUORUM – RATIFICAÇÃO POSTERIOR – IMPOSSIBILIDADE – NECESSIDADE DA COLHEITA DE VOTOS NAS REU-NIÕES CONGREGASSIONAIS – RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. Não há falar em cerceamento do direito de defesa em hipóteses tais em que o julgador, destinatário final das provas, dispensa a produção daquelas que julga impertinentes, formando sua convicção com aqueloutras já constantes nos autos e, nesta medida, julga antecipadamente a lide, como sucede in casu. 2. Conquanto o condomínio não possua personalidade jurídica, é inviável deixar de reconhecer que deve exprimir sua vontade para deliberar sobre o seu direcionamento. 3. A assembléia, na qualidade de órgão deliberativo, é o palco onde, sob os influxos dos argumentos e dos contra--argumentos, pode-se chegar ao voto que melhor reflita a vontade dos condôminos e, portanto, não é de admitir--se a ratificação posterior para completar quorum eventualmente não verificado na sua realização. 4. Recurso especial improvido”. Recorrente: Condomínio do Edifício Marrocos. Recorrida: Construtora GSR Ltda. Relator: Ministro Massami Uyeda. Sessão de julgamento em: 06 out. 2009. Publicação do acórdão em: 23 out. 2009.45 Sendo um deles o ordenamento estadunidense. Vide: SHAPIRO, Sylvia. The New York Co-Op Bible. Nova York: St. Martin’s Griffin, 1998, p. 216. “The law allows shareholders to consent in writing without a meeting. (No such comparable provision exists for condo owners)”. Em livre tradução: “A lei autoriza os acionistas a consentir sem uma reunião. (Nenhuma provisão comparável existe para condôminos)”.

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geral. A diferença fundamental entre essas duas situações é o encerramento da sessão assemblear.

Na primeira situação, a sessão da assembleia geral não é encerrada, per-manecendo aberta para a colheita dos votos da comunhão sobre determinada deli-beração, quase sempre em lista própria. A assembleia geral, verificando o quórum insuficiente para deliberar, não delibera nesse momento e determina a conversão da sessão em curso em permanente, permanecendo a sessão aberta por tempo determinado ou por tempo indeterminado – até o momento em que se possa obter uma decisão definitiva sobre a deliberação. Não existe aqui deliberação anterior ratificada por deliberação posterior: a deliberação está em pleno curso.

Já na segunda situação, a assembleia é encerrada e somente após o formal encerramento do ato, busca-se a ratificação da deliberação. No caso do Recurso Especial 1.120.140/MG julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa está transcrita supra, uma deliberação foi tomada irregularmente pela ausência de quó-rum qualificado para tanto, e independentemente disso, a sessão da assembleia geral foi encerrada com a deliberação irregular tendo sido tomada como se regular fosse. Contudo, após a verificação do vício de quórum, a administração condominial busca a ratificação posterior da comunhão acerca daquela deliberação irregular, sem convocar nova sessão assemblear.

Naquele caso concreto, o Condomínio do Edifício Marrocos, composto por cem unidades imobiliárias autônomas, das quais oito lojas térreas e noventa e dois apartamentos (e-STJ fls. 53/55), convocou sessão extraordinária de sua assem-bleia geral para o dia 21 de novembro de 2006 através de edital publicado em jornal de grande circulação, visando, dentre outras matérias, deliberar sobre a reforma da portaria principal do edifício (e-STJ fl. 74).

Na presença de dezessete condôminos, fora instalada a sessão da assem-bleia geral, onde segundo consta da ata da referida sessão, aprovou-se por unani-midade dos presentes não apenas a realização da obra, mas também o seu projeto, apresentado e firmado por duas arquitetas.

Após o início da empreitada, a Construtora GSR Ltda., proprietária de uma das lojas térreas do Edifício Marrocos, verificou que as obras prejudicariam o aces-so de clientes à sua unidade, razão pela qual manejou ação de nunciação de obra nova em face do condomínio. Em contestação, o Condomínio do Edifício Marrocos arguiu que, mesmo não tendo havido quórum à assembleia geral, outros cinquenta e dois condôminos ratificaram posteriormente a deliberação, totalizando a anuência

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de sessenta e nove condôminos para com a obra, o que convalidaria a deliberação irregular (e-STJ fl. 43).

Sentenciado o feito (e-STJ fls. 145/147), a 24ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte entendeu que “não é válida a declaração de anuência e aceitação dos condôminos que foi acostada às folhas 73 [e-STJ fls. 82/85], posto que colhida sem o crivo do salutar debate que se deve proceder em assembleia pre-viamente convocada”.

O mesmo entendimento reiterou a Décima Câmara Cível do Tribunal de Jus-tiça do Estado de Minas Gerais46, não conferindo validade à ratificação firmada pelos cinquenta e dois condôminos para confirmar a deliberação assemblear que irregularmente aprovou a realização das obras. Asseverou, ainda, que a aprovação das obras deveria ocorrer em assembleia, com a presença dos condôminos ou de seus representantes munidos de procuração, não sendo possível a ratificação posterior do ato.

Esse entendimento, contudo, não era pacífico no Tribunal de Justiça do Esta-do de Minas Gerais. Um ano e meio antes, a Décima Segunda Câmara Cível daquele Tribunal tinha admitido a hipótese de modificação posterior até mesmo de delibe-rações rejeitadas, no julgamento da Apelação Cível 0193680-02.2002.8.13.007947.

Naquela hipótese, o Condomínio do Edifício Antônio Gomes Carneiro, com-posto por doze unidades imobiliárias, reuniu sua assembleia geral com onze con-46 ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Décima Câmara Cível. Apelação Cível 1.0024.07.428424-1/002 (Recurso Especial 1.120.140/MG no STJ). “NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA – NULIDADE DA SENTENÇA – CERCEAMENTO DE DEFESA – OBRAS EM PARTES COMUNS – NULIDADE DA DELIBERAÇÃO. Fundada a decisão no reconhecimento de vício formal na realização de assembléia geral extraordinária de condomínio, ainda que se discutam matérias de direito e de fato, não se torna exigível a produção de outras provas, se aquelas existentes são suficientes para o julgamento da lide. A inobservância de quorum qualificado para aprovação de realização de obras em partes comuns em edifício de condomínio depende da aprovação de dois terços dos condôminos, ocor-rendo nulidade se não observada a exigência legal do art. 1342, Código Civil. Preliminar rejeitada e apelação não provida”. Apelante: Condomínio do Edifício Marrocos. Apelada: Construtora GSR Ltda. Relatora: Desembargadora Evangelina Castilho Duarte. Sessão de julgamento em 30 out. 2007. Publicação do acórdão em: 09 nov. 2007.47 ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Décima Segunda Câmara Cível. Apelação Cível 0193680-02.2002.8.13.0079. “NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA – CONSTRUÇÃO DE CHURRASQUEIRA – SALÃO DE FESTAS – ÁREA PRÓXIMA – QUORUM ESPECIAL – ACEITAÇÃO ABSOLUTA EM MOMENTO POSTERIOR – MANIFESTA-ÇÃO DE VONTADE PREVALENTE. A construção de churrasqueira em área próxima à do salão de festas, que se mostra aceita pela maioria absoluta dos condôminos, deve ser preservada. Assim, quorum especial inicialmente não atingido, mas alcançado em momento posterior, não pode ser olvidado. Ademais, na relação condominial, a demolição de obra aceita pela maioria absoluta, apenas dá causa à reconstrução, ou seja, provoca despesa dupla por capricho inexpressivo”. Apelantes: Dalva Gonçalves da Silva e seu marido. Apelado: Condomínio do Edifício Antônio Gomes Carneiro. Relator: Desembargador José Flávio de Almeida. Sessão de julgamento em: 25 jan. 2006. Publicação do acórdão em: 11 mar. 2006.

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dôminos presentes, visando à realização de obra voluptuária. A assembleia geral rejeitou a deliberação, com sete votos a favor, e cinco votos contra. Eram necessá-rios oito votos favoráveis para a realização da obra.

Ocorre que a administração condominial do Edifício Antônio Gomes Carneiro, após o encerramento daquela sessão da assembleia geral e sem procedimento ou deliberação assemblear posterior, coletou votos em lista de toda a comunhão, onde restou aprovada a realização da obra voluptuária com nove votos favoráveis e três contra, o que faria com que a deliberação outrora rejeitada em sede assemblear tivesse sido aprovada por mero acordo entre os condôminos, sem convocação ou deliberação próprias para tanto.

Assim, no caso do Condomínio do Edifício Antônio Gomes Carneiro, o Tri-bunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por um critério prático e utilitarista, dispensou a sede assemblear como seio das deliberações condominiais, clara-mente considerando que “o quorum especial a princípio não observado e que se mostra alcançado em atos posteriores de manifestação dos condôminos, deixa transparecer a máxima probabilidade de construção de churrasqueira substituta à atual, se desfeita”.

Afetada a questão ao STJ, prevaleceu o entendimento de que as delibera-ções assembleares não podem ser confirmadas após o encerramento da sessão da assembleia geral. O Recurso Especial 1.120.140/MG, na origem, trata dessa hipótese específica, assim como a Apelação Cível 0193680-02.2002.8.13.0079, citada pelo Condomínio do Edifício Marrocos em sua tese de defesa.

Todavia, ambos os casos que citamos, oriundos do Estado de Minas Gerais, não tratam da possibilidade de conversão da sessão da assembleia geral em per-manente, mas da ratificação posterior de ato de deliberação já praticado em sessão já encerrada da assembleia geral. Trata-se de situações distintas separadas por um liame muito tênue, mas que merecem tratamento jurisdicional distinto para que não se acabe por confundi-las como uma mesma situação jurídica no momento da formação de eventual precedente.

4.2 Motivos determinantes para se admitir a conversão da assembleia geral em permanente

Efetivamente, a ratificação posterior de deliberação assemblear deve ser repelida pelo Judiciário ao interpretar o ordenamento, porquanto a comunhão nos condomínios edilícios somente pode manifestar sua vontade através de suas res-

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pectivas assembleias gerais, principalmente diante da natureza despersonalizada do condomínio edilício48.

A possibilidade de conversão da sessão da assembleia geral em permanente, por sua vez, é de ser admitida por (i) não haver regulamentação legislativa acerca da organização dos trabalhos assembleares, o que dá validade ao expediente dentro da modelação expansiva dos direitos reais; (ii) ser a assembleia geral um órgão pe-rene, mas que depende de sessões temporárias para deliberar; e (iii) não ocasionar ausência de debates sobre a matéria em votação. Discorramos sobre esses motivos.

4.2.1 Ausência de regulamentação legislativa sobre a matéria e modelação expansiva dos direitos reais

A ausência de regulamentação legislativa, não apenas acerca da matéria de conversão das assembleias gerais em permanentes, mas sobre a organização e condução dos trabalhos assembleares como um todo, é talvez o mais rico argu-mento que podemos empregar em defesa das “assembleias permanentes”.

O condomínio edilício é instituição de direitos reais, campo do direito civil onde encontramos a tipicidade como característica fundamental erigida com a fina-lidade de se impor o exercício do direito real de acordo com suas regulamentações legislativas. É a delimitação legislativa do conteúdo de cada direito real49 através da edificação de normas havidas como de ordem pública, que devem ser exercidas conforme a vontade do legislador, que repele a vontade dos particulares frente a qualquer possibilidade de se remodelar as instituições nesse campo do direito civil, o que somente pode ser feito mediante atuação legislativa50.

A tipicidade, caso levada ferrenhamente a cabo, não traz determinações genéricas ou cláusulas gerais para o exercício dos direitos reais, mas sim impo-sições que tornariam os particulares verdadeiros “reféns” das situações jurídicas 48 A despeito da corrente majoritária na doutrina se inclinar para reconhecer ao condomínio edilício a natureza de pessoa jurídica, conforme se pode depreender do Enunciado 90 da I Jornada de Direito Civil, ratificado e reforçado pelo Enunciado 246 da III Jornada de Direito Civil, aliamo-nos à doutrina mais clássica para reconhecer o condomínio edilício como ente despersonalizado.49 ROSENVALD, Nelson; CHAVES, Cristiano. Curso de Direito Civil. Vol. 5 (Reais), 11ª ed., rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 19.50 ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Breves anotações para uma teoria geral dos direitos reais. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.). Posse e propriedade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 48, apud DAN-TAS, Bruno. Tipicidade dos Direitos Reais. In: BRASIL. Presidência da República. Centro de Estudos Jurídicos da Presidência. Revista Jurídica da Presidência, vol. 20, n. 121. Brasília: Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, 2018, p. 459.

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previstas legalmente, o que tolhe de forma desnecessária a autonomia privada, que até certo ponto deve ter liberdade para prever determinadas situações que não encontrem lastro legal51.

A tipicidade é fruto de uma excessividade positivista datada da Revolução Francesa, que impôs ferrenhas restrições aos direitos reais, mas concedeu profun-da autonomia aos cidadãos no âmbito do direito das obrigações. Essa disparidade de critérios é explicada por José de Oliveira Ascensão em razão das motivações po-lítico-econômicas da época, pois as transformações empreendidas pela revolução não tinham como destinatários os hipossuficientes, mas uma burguesia crescente e ávida por um arcabouço jurídico que lhes garantisse a riqueza, mediante um único movimento que enfraquecesse a nobreza e favorecesse a dominação da plebe. Em inarredável colocação de Ascensão, “a classe que lucrava com a liberdade contra-tual no Direito das Obrigações, não era a mesma que perdia com a exclusão dessa liberdade no Direito das Coisas” 52.

Em complementação à fala de Ascensão, narram Rosenvald e Chaves que essa fórmula (tanto da tipicidade, quanto do numerus clausus) ganhou suas fei-ções modernas pelas mãos dos legisladores do século XIX, receosos de eventuais restrições que o Estado pudesse impor ao direito de propriedade. Deu-se à classe proprietária, com isso, a segurança jurídica de saber que seu poder sobre a coisa estaria preservado, apenas sofrendo limitações ou restrições pelas hipóteses pre-vistas em lei, e quase sempre decorrentes, importante dizer, de um ato emanado de sua autonomia da vontade53.

Por não poder prever todas as situações jurídicas relativas a determinado direito real, ainda mais em uma sociedade que se moderniza a cada dia, onde a atividade negocial, principalmente no ramo imobiliário, mostra-se cada vez mais dinâmica, a tipicidade não tem como afastar integralmente a autonomia privada. É necessário que se dê espaço para que os particulares possam convencionar si-tuações que respeitem os princípios básicos dos direitos reais, especialmente o numerus clausus, desde que isso, por lógico, como bem citam Rosenvald e Chaves, 51 ROSENVALD, Nelson; CHAVES, Cristiano. Curso de Direito Civil. Vol. 5 (Reais), 11ª ed., rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 19.52 ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa: Minerva, 1968, p. 75, apud DANTAS, Bruno. Tipicidade dos Direitos Reais. In: BRASIL. Presidência da República. Centro de Estudos Jurídicos da Pre-sidência. Revista Jurídica da Presidência, vol. 20, n. 121. Brasília: Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, 2018, p. 458.53 ROSENVALD, Nelson; CHAVES, Cristiano. Curso de Direito Civil. Vol. 5 (Reais), 11ª ed., rev. ampl. e atual. São Paulo, Atlas, 2015, p. 18.

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seja “compatível com os princípios constitucionais da função social da propriedade e da atividade econômica, de modo a entender os valores existenciais da pessoa humana como paradigma necessário e indispensável”54.

É em razão disso que os autores supracitados admitem a tipicidade com uma certa elasticidade55, mitigada em sua concepção e significado originais, ha-vendo de se conceder aos particulares a possibilidade de modelação expansiva dos direitos reais56, obedecendo o critério exposto pela transcrição supra. Tomemos como exemplo o caso da multipropriedade, dos shopping centers e flats. Todas essas figuras são desdobramentos de negócios decorrentes do direito real de pro-priedade que foram criadas pela engenhosidade das mentes jurídicas sem tipifica-ção específica na legislação, e mesmo assim, sem que se ofendesse a propriedade em si. Muito pelo contrário: essas figuras a operacionalizam, geram circulação de riquezas e conferem à coisa verdadeira função social quando devidamente utilizada, fruída e disposta sob essas modalidades.

Se partirmos de uma perspectiva histórica justificadora da tipicidade, pode-mos extrair que o legislador não se importou em regular a forma de desenvolvimen-to dos trabalhos assembleares, legando a cada condomínio a definição que mais lhe conviesse sobre o tema. Quando o legislador se abstém de regulamentar certo aspecto do direito real, a comunidade jurídica deve haver essa abstenção não ape-nas como uma impossibilidade de se regularem todos os casos, mas também como uma autorização legislativa tácita para que as partes, respeitando normas de ordem pública e os próprios limites elásticos da tipicidade, convencionem quais direitos, obrigações, atos e negócios jurídicos envolverão a coisa e sua administração.

É aí que se encaixa a conversão da sessão da assembleia geral em perma-nente como parte não tipificada de um ato jurídico complexo57. A despeito de a 54 GONDINHO, André Pinto da Rocha Osório. Direitos reais e autonomia da vontade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 154, apud ROSENVALD, Nelson; CHAVES, Cristiano. Curso de Direito Civil. Vol. 5 (Reais), 11ª ed., rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 19.55 “[M]antém-se íntegro o princípio positivado da taxatividade, mas se admite certa elasticidade no princípio da tipicidade, para que cada um dos direitos reais, individualmente considerados, possa abrigar situações jurídicas que, embora não expressamente previstas, sejam compatíveis com seus princípios e mecanismos”. É o que diz LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado. 5ª ed. Coord. de Antônio Cesar Peluso. São Paulo: Manole, 2011, p. 1.078 apud ROSENVALD, Nelson; CHAVES, Cristiano. Curso de Direito Civil. Vol. 5 (Reais), 11ª ed., rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 230.56 ROSENVALD, Nelson; CHAVES, Cristiano. Curso de Direito Civil. Vol. 5 (Reais), 11ª ed., rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 19.57 A assembleia geral tem natureza de órgão componente da estrutura dos condomínios edilícios. A sessão da assembleia geral tem natureza de ato jurídico complexo.

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conversão da sessão em permanente não estar tipificada no ordenamento positivo, o procedimento é escorreito sob a ótica da modelação expansiva dos direitos reais aplicada aos condomínios edilícios, não havendo o que se falar sobre ofensas à função social da propriedade ou de outro princípio ou característica norteadora dos direitos reais.

E não se trata de apenas sustentar que a função social da propriedade não é ofendida com as “assembleias permanentes”. Temos aqui um potente procedimen-to de operacionalização da propriedade que garante a ocorrência de um processo mais fluido e participativo de tomada de deliberações, e que como consequência privilegia a função social da propriedade. Como o controle de legitimação e mere-cimento da atuação privada na modelagem expansiva dos direitos reais será dado pela prevalência axiológica da Constituição Federal58 que impõe à propriedade uma destinação necessariamente social, entendemos que a conversão das sessões as-sembleares em permanentes encontra, por seus fundamentos, validade jurídica.

4.2.2 A assembleia geral é um órgão perene, com deliberações tomadas em sessões temporárias

Ultrapassadas as explicações de ordem fundamental no âmbito da teoria dos direitos reais para justificar a possibilidade de conversão da sessão da assem-bleia geral em permanente, é necessário tratarmos de uma especial característica da assembleia geral que é descrita por Haroldo Fazano: a de que a assembleia geral condominial é um órgão perene, que possui atribuições permanentes59 que serão exercidas através de sessões temporárias.

É costumeiro, entretanto, depararmo-nos na prática diária com o entendi-mento de que a assembleia geral é um órgão temporário, que surge quando uma sessão é instalada e é dissolvido quando a mesma sessão é encerrada. Confun-dem-se aí os conceitos de assembleia geral em si, enquanto órgão perene da ad-ministração condominial, e de sessão da assembleia geral, essa sim temporária, a partir da qual o órgão soberano toma suas decisões.58 ROSENVALD, Nelson; CHAVES, Cristiano. Curso de Direito Civil. Vol. 5 (Reais), 11ª ed., rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 20. Sobre o controle dos atos praticados por particulares dentro da modelação expansiva dos direitos reais, veja-se: “Certamente, o controle de legitimidade e merecimento da atuação conferida aos particulares para a modelagem de direitos reais será dado pela prevalência axiológica da Constituição Federal, com influxo da tutela aos aspectos existenciais da pessoa humana e proteção dos interesses metaindividuais que gravitam ao redor dos interesses patrimoniais dos particulares”.59 FAZANO, Haroldo Guilherme Vieira. Hermenêutica e a Aplicação da Convenção de Condomínio (Propriedade Horizontal) (Tese. Doutorado em Direito). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007, p. 341.

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Contudo, a temporariedade das sessões da assembleia geral não deve ser exercida através de uma limitação temporal rígida. A prática condominial nos mostra que há uma certa cultura enraizada em alguns condomínios onde se es-tabelece como regra costumeira – sem qualquer lastro na legislação – o fato de que as sessões não podem durar mais do que uma certa quantidade de horas ou ultrapassar a meia-noite, sob pena de nulidade do ato e de todas as deliberações tomadas60.

Não se pode impor que a sessão assemblear dure por tempo determinado. Toda tentativa de impor uma limitação temporal à sessão da assembleia geral não se sustenta, porquanto o processo deliberativo deve levar o tempo que for suficien-te para que uma decisão possa ser tomada61,62, não se podendo admitir imposições inusitadas e sem razão jurídica aparente. Não há absolutamente nada na lei que obrigue a assembleia a terminar no mesmo dia em que foi convocada63.

Logo, como a assembleia geral é um órgão permanente, não há empeci-lhos para que suas sessões se prolonguem pelo tempo que for preciso à obten-ção de uma determinada deliberação, inclusive mediante a conversão dessas sessões em permanentes.60 Recentemente, tivemos a oportunidade de ver um condômino defendendo esse entendimento, em sessão da 105ª Assembleia Geral, Extraordinária, do Condomínio do Edifício Tagus II, situado em Niterói/RJ.61 A despeito de não haver possibilidade de se limitar temporalmente uma sessão assemblear, devem ser se-guidos padrões de razoabilidade para que o processo deliberativo não se torne desnecessariamente moroso e burocrático.62 Como aliás, bem entendeu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Nona Câmara Cível. Apelação Cível 0021262-25.2005.8.19.0002. “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ASSEMBLÉIA GERAL DE ASSOCIAÇÃO RECREATIVA QUE ALTEROU O ESTATUTO DO CLUBE, SOB FUNDAMENTO DE QUE DITA ASSEMBLÉIA ADOTOU PROCEDIMENTO SUI GENERIS MEDIANTE VOTAÇÃO QUE PERDUROU POR TRÊS DIAS. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA.

- A Assembléia Geral cujas deliberações foram objeto do pedido foi realizada na conformidade do que foi deli-berado em Assembléia Geral anterior, ou seja, se não obtido o quorum qualificado, o Presidente ficou autorizado a declará-la em caráter permanente.

- Essa modalidade de Assembléia permanente não constitui nenhuma nulidade, sendo aceita pela doutrina e jurisprudência. Não é pelo fato de perdurar por mais de um dia que deixa de ter o caráter assemblear.

- Apelo provido” (sic). Apelante: Iate Clube Icaraí. Apelados: Kleber de Oliveira Mesquita e outros. Relator: Desembargador Joaquim Abílio Moreira Alves de Brito. Sessão de Julgamento em 27 nov. 2007. Publicação de acórdão em: 18 fev. 2008.

Note-se que a despeito de o caso supracitado se tratar da assembleia geral de uma associação civil, é ple-namente válido e aplicável em matéria de condomínios edilícios o argumento de que a assembleia geral não se invalida se a sessão ultrapassar o dia de sua instalação.63 É o que, com razão, diz o Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SP, Edwin Britto. Disponível em: <https://www.sindiconet.com.br/informese/assembleia-aberta-ou-em-sessao-permanente-administracao--assembleias-de-condominio>. Acesso em: 15 dez. 2018.

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Contudo, a despeito de não haver procedência na limitação temporal em uma sessão assemblear, acreditamos que os limites temporais devam ser fomenta-dos nas sessões convertidas em permanentes. O estabelecimento de um prazo de duração da assembleia convertida em permanente se faz necessário para que esse expediente, em vez de operacionalizar o condomínio edilício, não acabe por tornar sua administração burocrática, morosa e juridicamente insegura.

Sem dúvidas, o principal argumento para sustentarmos que a sessão as-semblear não deve ter limitação temporal é o de que os debates que se desenvol-vem nessas sessões não podem ser tolhidos pelo tempo. Mas como nas sessões convertidas em permanentes a fase de debates já ocorreu e o procedimento é tão somente a colheita de votos, não há razão para que se permita uma duração ilimitada da sessão, sob pena de, como já indicamos supra, o expediente acabar surtindo o efeito contrário que se busca com a sua adoção. Nessa hipótese, o ideal – e ousamos dizer, o necessário – é estabelecer um tempo certo para a duração da sessão convertida em permanente, que pode se encerrar antes disso caso um resultado definitivo acerca de certa deliberação já tenha sido alcançado64.

Sobre as sessões assembleares convertidas em permanentes sem um prazo definido para o seu encerramento, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, através de sua Quinta Câmara de Direito Privado65, já se manifestou no sentido de ser esse mais um argumento contrário à admissibilidade do procedimento como um todo. Nesse ponto concordamos com o TJSP, porquanto a ausência de fixação de um termo final para a sessão convertida em permanente dá uma margem muito grande a incertezas quanto ao resultado da deliberação, indo contra, inclusive, ao princípio da operabilidade, norteador do Código Civil de 200266.64 Contudo, é necessário ponderar que o encerramento da sessão tão logo um resultado definitivo esteja alcan-çado impede os demais condôminos que ainda não votaram de manifestarem sua opinião.65 ESTADO DE SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara de Direito Privado. Apelação Cível 0001823-49.2015.8.26.0045. CONTRARRAZÕES – Intempestividade- Desacolhimento – Recurso interposto no prazo legal – Preliminar rejeitada. ANULATÓRIA DE ASSEMBLEIASC.CCONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO – Nulidade na forma de convocação dos condôminos – Parcial procedência do pedido – Inconformismo do réu – Desacolhimento – Re-conhecimento da validade do ato convocatório – Descabimento da assembleia permanente – Validade condicio-nada à fixação de termo final – Impossibilidade de prolongamento da reunião até o alcance do quórum necessário para implementar a mudança na convenção condominial – Nulidade da cobranças a maior – Precedente desta Colenda 5ª Câmara de Direito Privado – Aplicação do disposto no art. 252 do RITJSP – Sentença mantida – Recur-so desprovido. Apelante: Condomínio Arujazinho I, II e III. Apelados: Marcelo Dal Bagno Barreto e outro. Relator: Desembargador J. L. Mônaco da Silva. Sessão de Julgamento virtual finalizada em: 29 nov. 2017.66 REALE, Miguel. Exposição de Motivos ao Anteprojeto de Código Civil (PL 634-B/1975). In: BRASIL. Congresso Nacional. Diário do Congresso Nacional, n. 061 (13 jun. 1975), Suplemento B, Seção I, p. 107-125.

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4.2.3 A inépcia do argumento da ausência de debates contra as “assembleias permanentes”

Quando o STJ teve a oportunidade de analisar o Recurso Especial 1.120.140/MG67, utilizou-se como uma das razões de decidir o argumento de que

[a] assembléia, na qualidade de órgão deliberativo, é o palco onde, sob os influxos dos argumentos e dos contra-argumentos, pode-se chegar ao voto que melhor reflita a vontade dos condôminos e, portanto, não é de admitir-se a ratificação posterior para completar quórum eventualmente não verificado na sua realização. (grifamos em itálico)

Desse argumento, muitos extraem que são imprescindíveis os debates para que determinada matéria esteja madura para votação. Contudo, há algumas situa-ções que não ensejam a anulação da deliberação assemblear, como (i) a dispensa de debates sobre determinada matéria; e (ii) a chegada de um condômino ao recin-to assemblear após os debates, mas antes da votação atinente à matéria.

No primeiro caso, nada impede que os condôminos presentes à assembleia dispensem os debates por simplesmente não quererem se manifestar sobre suas razões para votar em determinadas matérias. É comum que isso aconteça em alguns condomínios quanto à leitura das atas das sessões anteriores da assembleia geral, que costumam ser enviadas eletronicamente à comunhão tão logo finalizadas. O mesmo ocorre também, algumas vezes, com a apresentação da previsão orçamen-tária anual, onde os condôminos aceitam integralmente as exposições das adminis-tradoras ou escritórios de contabilidade sem a necessidade de maiores discussões.

Nessa hipótese, onde não há debate, seria cabível declarar a nulidade da sessão assemblear, ou pelo menos de certa deliberação, tão somente pela inexis-tência de um debate prévio à votação? Não nos parece cabível. Os debates consti-tuem uma faculdade dos condôminos, não sendo adequado que se faça indispen-sável um debate às vezes indesejado pela unanimidade dos presentes tão somente para que se cumpra com um (inexistente) requisito necessário à deflagração do processo de votação.

Já no segundo caso, não existe imposição que afaste em sede assemblear o direito de voto de um ou vários condôminos quites com as suas obrigações con-dominiais tão somente porque eles não se fizeram presentes durante a ocasião dos 67 Em nosso entendimento, novamente frisamos que o Recurso Especial 1.120.140 não trata de sessão de as-sembleia geral convertida em permanente, mas sim de ratificação posterior da deliberação.

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debates da matéria posta em votação. É esse o argumento mais importante do qual respeitosamente nos valemos para contrapor à concepção de que os debates assembleares são imprescindíveis.

Aquele que deseja se manifestar sobre determinada matéria a ser discutida em sessão assemblear tem local e hora para fazê-lo, não podendo rediscutir a matéria com a comunhão após o encerramento dos debates e início da votação. Se o condômino se vale de sua faculdade de se furtar aos debates, não pode ele empregar a sua própria ausência para arguir a improcedência do procedimento de conversão da sessão da assembleia geral em permanente utilizando-se do argu-mento de que ele não participou dos debates atinentes à matéria. Frise-se, além disso, que sua ausência, assim como a de outros condôminos, é justamente o motivo de conversão da sessão assemblear em permanente.

Não que essa ausência seja uma torpeza propriamente dita para que possa-mos sustentar que “ninguém pode se valer da própria torpeza”, mas há de se convir que a ausência de parte considerável da comunhão prejudica demasiadamente a condução dos negócios condominiais e a obtenção do posicionamento mais plural possível da assembleia geral, principalmente quando tratarmos de deliberações que exijam quórum especial para serem aprovadas.

Privar um condômino do direito de votar em determinada deliberação tão somente porque ele não se fez presente nos debates que precederam a votação importa em uma severa violação ao seu direito de propriedade, que lhe confere duas faculdades distintas: a de estar presente e a de votar às assembleias gerais, não se podendo instituir a presença ou a participação nos debates como requisito ao exercício do direito ao voto em sede assemblear.

Nada pode impedir o condômino de manifestar seu voto sobre determi-nada matéria, mesmo que não tenha assistido aos debates que precederam a votação, principalmente porque ele foi convocado para também participar dos debates. Sustentar o contrário traria a grave consequência de atrelar o direito de voto à participação do condômino nos debates, o que a legislação afeta aos direitos reais não prevê.

Some-se a isso o fato de que a teoria dos direitos reais se norteia pelo prin-cípio da tipicidade, que não pode servir como instrumento para instituir uma ainda maior limitação da relação do sujeito para com a coisa. A hipótese de modelação expansiva dos direitos reais que outrora mencionamos não pode ser invocada com o fito de limitar ainda mais a relação do sujeito para com a coisa, seu uso, fruição e

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disposição. Serve tal modelação justamente para (com o perdão do termo) afrouxar certos grilhões que inibem a operacionalização e a potencialidade da função social da propriedade.

Portanto, a disponibilização de um espaço de debates nas sessões assem-bleares é tão somente o requisito para que elas possam, após, serem convertidas em permanentes. O condômino regularmente convocado para a sessão assemblear que não se faz presente no oportuno momento dos debates para expor seus moti-vos – e o mais importante, ouvir os motivos dos demais – não tem lastro jurídico para, sob esse fundamento, arguir que o procedimento de conversão da sessão em permanente não é cabível, e isso sem prejuízo de uma eventualíssima configuração de abuso de direito em razão de sua ausência.

5 A solução francesa para as dificuldades na obtenção de quórum: uma alternativa às assembleias gerais permanentes?

Como o procedimento de conversão das sessões assembleares em perma-nentes deve ser empregado com a maior excepcionalidade possível, não podería-mos encerrar este trabalho sem deixar de mencionar a interessante solução dada pelo ordenamento francês para contornar parte do problema que é a dificuldade na obtenção de quórum deliberativo assemblear, dada pela Lei 2000-1208, de 13 de dezembro de 2000, “relativa à solidariedade e renovação urbanas”.

Antes de tratar da Lei 2000-1208 especificamente, é necessário mencionar-mos que nos termos da Lei 65-557, os quóruns para aprovação de determinada ma-téria no ordenamento francês são os de (i) maioria simples dos presentes à sessão assemblear (artigo 24); (ii) maioria absoluta de todos os proprietários (artigo 25); dois terços de todos os proprietários (artigo 26); e unanimidade dos proprietários (artigos 11, 26 e 26-4).

Dentre as deliberações a serem tomadas pela maioria absoluta de todos os proprietários previstas pelo artigo 25 da Lei 65-557, estão as de nomeação e destituição do síndico e do conselho sindical (os nossos conselhos consultivos ou fiscais); a de autorização permanente para o ingresso de forças policiais nas áreas comuns do condomínio; todos os trabalhos envolvendo transformações, adições ou melhorias; e a individualização dos medidores de água.

Visando evitar que a administração condominial fique engessada pela im-possibilidade de se tomarem decisões importantes pela ausência de quórum, a Lei

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2000-1208 acrescentou à Lei 65-557 o artigo 25-168, abrindo a possibilidade de as deliberações normalmente tomadas por maioria absoluta de todos os condôminos serem tomadas apenas por maioria simples em determinadas condições.

Conforme o dispositivo, essa hipótese pode se concretizar de duas formas. Em uma primeira, se o quórum de maioria absoluta de todos os proprietários não foi atingido, mas a deliberação contou com os votos de um terço de toda a comunhão, uma segunda votação imediata poderá ser realizada, e a decisão assemblear será obtida a partir da maioria simples prevista pelo artigo 24.

Na segunda, se nem o quórum de maioria absoluta de todos os proprietários, nem o quórum de um terço dos votos de toda a comunhão foi atingido, uma segun-da votação poderá ser realizada em nova sessão assemblear pela maioria simples prevista pelo artigo 24, desde que essa sessão ocorra dentro de três meses a partir da primeira deliberação.

Evidentemente, essa flexibilização deliberativa concedida pelo ordenamento francês não é capaz de solucionar as dificuldades na obtenção de quórum para a tomada de deliberações que exigem maioria de dois terços ou unanimidade da comunhão, mas é inegável que se trata de um avanço muitíssimo importante para solucionar parte considerável dos problemas que envolvem a obtenção de quórum nos condomínios edilícios franceses, ainda mais porque algumas deliberações que em nosso ordenamento se tomam por maioria simples são tomadas no ordenamen-to francês por maioria absoluta de toda a comunhão69.68 Em redação atualizada pela Lei 2014-366, de 24 de março de 2014, diz o artigo 25-1 da Lei 65.557: “Article 25-1. Lorsque l'assemblée générale des copropriétaires n'a pas décidé à la majorité prévue à l'article précédent mais que le projet a recueilli au moins le tiers des voix de tous les copropriétaires composant le syndicat, la même assemblée peut décider à la majorité prévue à l'article 24 en procédant immédiatement à un second vote.

Lorsque le projet n'a pas recueilli au moins le tiers des voix de tous les copropriétaires, une nouvelle assemblée générale, si elle est convoquée dans le délai maximal de trois mois, peut statuer à la majorité de l'article 24.

Le présent article n'est pas applicable aux décisions mentionnées aux n et o de l'article 25”.Em livre tradução para o português: “Artigo 25-1. Quando a assembleia geral dos coproprietários não tiver

decidido pela maioria prevista no artigo anterior, mas o projeto tiver recebido pelo menos um terço dos votos de todos os coproprietários que compõem o sindicato, a mesma reunião poderá decidir pela maioria prevista pelo artigo 24 através de uma segunda votação imediata.

Se o projeto não tiver recebido pelo menos um terço dos votos de todos os coproprietários, uma nova assem-bleia geral, se convocada no prazo máximo de três meses, poderá decidir pela maioria do artigo 24.

Este artigo não é aplicável às decisões mencionadas nas alíneas e) do Artigo 25”.69 Dentre as deliberações que em nosso ordenamento são tomadas por maioria simples, mas que no orde-namento francês são tomadas por maioria absoluta, estão a eleição e destituição de síndico (artigo 25-1, alínea “c”) e membros do conselho sindical (equivalente aos nossos conselhos consultivo e fiscal) e a forma de remoção de lixo (artigo 25-1, alínea “g”), normalmente tratada no direito brasileiro em sede de regimento interno dos condomínios. Isso sem considerar que nos condomínios que tenham menos de quinze unidades

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Após as devidas adaptações à realidade nacional, acreditamos que a inscri-ção dessa flexibilização no ordenamento brasileiro teria muito a contribuir para uma maior eficácia da função social da propriedade pela simples possibilidade de se lhe conferir uma maior operacionalização a partir da facilitação do processo deliberativo condominial.

Ademais, por ser um procedimento que depende de positivação legislativa, essa flexibilização deliberativa traz consigo não somente a potencialidade de uma fecunda discussão sobre a sua forma de adoção no ordenamento pátrio, mas tam-bém uma necessária segurança jurídica para se obter uma solução para o grande desafio que é a obtenção de quórum deliberativo nos condomínios edilícios.

Conclusão

A obtenção de quórum para deliberação nas assembleias gerais condomi-niais é, sem dúvida, um problema antigo – e ao mesmo tempo muito contemporâ-neo – que está longe de ser vencido. Independentemente das saídas que se bus-quem para a solução da questão, a natureza comumente belicosa das comunhões mostra que são grandes as chances de oposição a qualquer procedimento que se tente para a obtenção de uma deliberação.

De outro lado, é inegável o engessamento que sofrem as administrações condominiais diante da impossibilidade de se executar certos planos para o condo-mínio, porquanto o baixo comparecimento às sessões assembleares, tão comum, impede a deliberação de matérias importantes, normalmente tomadas por quórum qualificado.

Dada essa situação, algumas formas de contornar o problema são trabalha-das pelos doutrinadores e executadas em campo pelos juristas. Tratamos de três dessas formas, sendo elas (i) a presunção de anuência dos condôminos ausentes para com as deliberações tomadas, com o que não concordamos; (ii) a utilização de procurações, expediente seguro, mas potencialmente ameaçado pela eventual conversão em lei do PLS 348/2018; e (iii) a conversão das sessões assembleares em permanentes, a que este artigo se dedicou em tratar e defender como um procedimento lícito.

Argumentos como a ausência de previsão expressa em lei autorizando esse expediente; a tipicidade dos direitos reais; a impossibilidade de a sessão da as-

imobiliárias, todas as deliberações que são tomadas normalmente por maioria simples devem ser tomadas por maioria absoluta (artigo 25-1, alínea “a”).

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sembleia geral se protrair no tempo; e a suposta ausência de debates, não são, em nosso entendimento, hábeis a obstar a conversão da sessão em permanente. Destacamos, dentre todos esses argumentos, que um importante movimento dou-trinário que defende a chamada modelação expansiva dos direitos reais é plena-mente válido para, em nome da operacionalização da propriedade e privilégio de sua função social, afrouxar certos grilhões que em tese inibem formas salutares de administração e disposição da propriedade.

Faz-se imprescindivelmente necessário, ainda, diferenciarmos a ratificação posterior de deliberação assemblear da conversão da sessão assemblear em per-manente. As matérias atualmente tidas como leading cases no Superior Tribunal de Justiça pela inadmissibilidade das assembleias permanentes tratam dessa primeira hipótese, que ao contrário da segunda, é efetivamente descabida.

Mas apesar de lícito, o procedimento de conversão das sessões assem-bleares em permanentes é ainda por demasiado controverso. Por isso, as assem-bleias permanentes não devem, pelo menos por ora, ser utilizadas como a solução para qualquer dificuldade na obtenção de quórum de deliberação assemblear. Seu emprego deve ser excepcional e tão somente quando os presentes à sessão não forem numericamente suficientes para deliberar sobre matéria a ser decidida por quórum qualificado, pelo o que se recomenda muita cautela na conversão de uma sessão assemblear em permanente.

Dada a excepcionalidade do procedimento que defendemos neste traba-lho, aproveitamos o ensejo para mostrar como o ordenamento francês moldou sua legislação para trabalhar parte do problema de obtenção do quórum assemblear qualificado. Lá, permite-se que uma segunda votação seja realizada por maioria simples quando não houver quórum para se decidir uma matéria que depende de maioria absoluta para ser aprovada.

Enquanto o ordenamento não for modificado para, com maior segurança jurídica, conferir meios para solucionar a questão da dificuldade na obtenção de quórum nas assembleias condominiais, fica o debate sobre as soluções para o tema acrescido deste pequeno contributo, o qual esperamos ser de utilidade para as discussões que se apresentem oportunamente.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 282 No 2 | Julho 2019

Thairiny Jorge Dakil1

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar os desdobramentos havidos em decorrência do perecimento do motivo que ensejou a constituição de um negócio jurídico. Para tanto, serão analisados alguns princípios gerais associados à questão, bem como serão discutidos preceitos jurídicos como as teorias da base objetiva ne-gócio e da imprevisão, a cláusula rebus sic stantibus, a regra clássica do pacta sunt servanda e suas consequências jurídicas sob a luz da análise do risco do negócio.

Palavras-chave

Imprevisão, rebus sic stantibus, pacta sunt servanda, risco, revisão.

Introdução

As relações jurídicas e econômicas sempre figuraram no tecido das socieda-des e foram ganhando relevância à medida em que se intensificaram as atividades de produção, troca e distribuição de bens e serviços. O incremento do volume e da complexidade das teias negociais associado ao dinamismo dos contextos socioe-conômicos pode trazer uma série de desdobramentos cujas consequências jurídi-cas devem ser sopesadas pelo profissional do Direito.

Não raramente, presenciamos situações em que pessoas firmam um negó-cio jurídico motivadas por determinado contexto, que simplesmente desaparece 1 Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; pós-graduanda em Gestão de Contratos pelo INSPER. Gestora de Contratos na empresa Digital Pages.

A ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CONTRATO IMOBILIÁRIO E SUAS

CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS

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em seu curso. O perecimento da base objetiva do contrato traz à tona uma série de questões que merecem relevo a fim de que seja adotado um desdobramento razoável para a questão. Em tal caso, qual seria o ponto de equilíbrio para eventual alteração ou revisão das condições contratuais?

Assim, pretendemos analisar os desdobramentos havidos em decorrência do perecimento do motivo que ensejou a constituição de um negócio jurídico no âmbito imobiliário sob a luz de aspectos principiológicos do Direito Civil, como a autonomia da vontade, a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Há limites para a conservação do negócio jurídico? Quais parâmetros devem norteá-la? Ao se examinar a questão, que impactos devem ser ponderados? Nesse passo, com o fir-me propósito de trazer luz a essa problemática, serão discutidos aspectos como as teorias da base objetiva do negócio e da imprevisão, a cláusula rebus sic stantibus, a regra clássica do pacta sunt servanda e suas consequências jurídicas sob a luz da análise do risco do negócio.

A autonomia da vontade e a função social do Contrato

A autonomia da vontade atingiu sua máxima expressão durante a fase do liberalismo econômico do século XVIII, cujos preceitos apoiavam-se sobre a não-in-tervenção do Estado na economia, o câmbio livre, a livre concorrência e a proprie-dade privada. No modelo liberal, não se levava em conta a imprevisibilidade. Assim, qualquer intercorrência que viesse a causar prejuízo era considerada incompetência do contratante e a vinculação era extremada. Aquele que houvesse manifestado sua vontade de maneira livre e consciente e tivesse negociado mal seus interesses, deveria arcar com as consequências.

Vários fatores podem ser apontados como responsáveis pela mitigação do ideário liberal. Além do surgimento da teoria marxista, no século XIX, que defendia a intervenção do estado na economia, após a Segunda Guerra Mundial, as economias nacionais tiveram de ser reorganizadas a partir do Estado. Nesse contexto especí-fico, o fundamento predominante foi o da escola keynesiana. Durante essa fase de transição para o modelo neoliberal, tornou-se possível a adoção de institutos jurídi-cos, como a teoria da imprevisão, que possibilitavam a revisão judicial do contrato.

Talvez, não seja temerária a constatação de que tudo o que existe se mani-festa de forma cíclica ou pendular. Em relação à intervenção do Estado na economia não foi diferente. Assim, nas décadas de 1980 e 1990 o papel de intervenção do Estado passa a sofrer diversas críticas e surge o neoliberalismo econômico.

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Em relação aos contratos, o modelo neoliberal procurou conciliar “de um lado, o reconhecimento do poder de os sujeitos de direito disporem de seus pró-prios interesses de modo juridicamente válido e eficaz e, de outro, as limitações impostas pela necessidade de tutelar o contratante débil.”2

Além do aspecto trazido pelo mencionado jurista, convém destacar a lição trazida por GAGLIANO e PAMPLONA FILHO3, ao transcreverem as lições de Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón. Segundo eles, “a autonomia privada deve sofrer os seguintes condicionamentos:

a) da Lei – a lei, manifestação maior do poder estatal, interfere no âmbito da autonomia privada, posto sem aniquilá-la, para salvaguar-dar o bem geral;b) da Moral – trata-se de uma limitação de ordem subjetiva, com forte carga ético-valorativa;c) da Ordem Pública – também este conceito, que mais se relacio-na com a estabilidade ou segurança jurídica, atua na ausência de normas imperativas impondo a observância de princípios superiores, ligados ao Direito, à Política e à Economia.

Neste diapasão, temos que a liberdade negocial, como qualquer outro di-reito, não pode ser interpretada de forma absoluta. No mesmo sentido, assevera COELHO4:

O princípio da autonomia privada esbarra, em primeiro lugar, na pre-servação da ordem pública. Nenhum contrato de objeto ilícito, por exemplo, pode ser juridicamente executado. O postulado da autono-mia privada não tem o alcance de validar acordos criminosos, con-travencionais ou mesmo imorais. (...) Mesmo contratos ‘cujo objeto não corresponde a nenhum crime ou contravenção podem enfren-tar resistências no campo moral, principalmente se os interesses negociados dizem respeito a temas acerca dos quais a sociedade ainda não construiu um padrão claro de moralidade, como embriões crioconservados ou gestação em útero alheio. A autonomia privada valida, assim, os contratos quando exercida nos limites da lei e da ordem pública. Extrapolados tais limites, não atribui o princípio jurí-dico nenhuma eficácia à composição dos interesses pelos titulares.

2 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: contratos. Vol. 3. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 38.3 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Vol. 4: contratos, tomo I, teoria geral. 11ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 734 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, cit. p. 38.

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Em consonância com os ditames que norteiam o exercício da autonomia privada, surgem os princípios sociais dos contratos. Tais princípios apontam para a necessidade de que se observem outros aspectos que não os exclusivamente formais (agente capaz, objeto lícito, forma prescrita em lei), como eventuais refle-xos ambientais, trabalhistas, sociais e morais. São princípios que visam a traduzir uma sensibilidade para questões metaindividuais – o da boa-fé objetiva e da função social dos contratos.

RENTERÍA5 elucida que não há oposição entre a função social do contrato e autonomia privada. Para ele, “ambos estão intrincados como as duas faces de uma mesma moeda, isto porque a finalidade social é o próprio título justificativo do ato de autonomia.”

Esta compreensão, segundo este autor, abre

novas perspectivas para um controle dos atos de autonomia diverso daquele operado tradicionalmente pela ordem pública. Com efeito, a vinculação do ato à sua finalidade social permite que se recriminem certos atos que, embora situados dentro dos limites externos fixa-dos pela ordem pública, se mostram contrários a esta finalidade.6

A partir da reflexão proposta pelo autor, o termo ‘autonomia privada’ parece até carecer de precisão terminológica, pois não são raras as vezes em que o poder estatal invoca a ‘ordem pública’ como pretexto para cometer desmandos e incon-gruências contrários ao que se percebe como valor intrínseco ao da função social. Neste contexto, talvez, mais apropriado fosse que passássemos a discorrer sobre a autonomia contratual ou sobre a autonomia da vontade.

O artigo 5º, XXIII da Constituição Federal preceitua que “a propriedade aten-derá a sua função social”. COELHO7, ensina que

neste mandamento constitucional insere-se também o contrato. A execução das obrigações contratuais importa necessariamente o uso da propriedade de algum bem, seja ele o próprio objeto do contrato, insumo da atividade econômica, ferramenta de prestação de serviço etc. A cláusula geral da função social, portanto, apenas explicita, no campo do direito contratual, o que já se encontrava regrado num princípio constitucional.

5 RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In: MORA-ES, Maria Celina Bodin de. (Org.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 296.6 RENTERÍA, Pablo. Considerações... cit. p. 296.7 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil..., cit. p. 50.

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O Código Civil também trata do tema em seu artigo 421 “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”

Assim, inferirmos que atenta à função social um contrato cuja execução vi-lipendie interesses públicos, difusos ou coletivos, que são negativamente impacta-dos pelas consequências que dele decorrem. Muitos juristas mencionam também a proteção do contratante hipossuficiente, vulnerável e invocam pelo preceito a necessidade de equilíbrio na relação contratual. Nesse contexto, o que se busca não é o menoscabo à autonomia privada nem ao pacta sunt servanda, mas sim sua contemporização a aspectos gerais e de interesse público.

RENTERÍA8, entretanto, vê sem entusiasmo a solução dada pelo legislador civilista. Para ele, há carência de conceituação mais específica no já mencionado artigo 421:

(...) do ponto de vista estritamente normativo, essa correlação entre função social do contrato e superação da igualdade formal na rela-ção contratual acaba por desembocar numa proposta tímida. Com efeito, a função social serviria, quando muito, para sistematizar e orientar a aplicação de específicos institutos que procuram tutelar o equilíbrio contratual, em espécie a lesão (CC, art. 157) e a onerosida-de excessiva (CC, art. 478). Também, fora do Código Civil, a função social do contrato se manifestaria por meio de diversos estatutos legislativos que dirigem uma tutela específica aos indivíduos que se encontram em típica situação de vulnerabilidade.

Afirma ainda que, para alguns autores, o fato de a função social estar pre-vista na Constituição já implicaria sua eficácia direta e imediata sobre as relações privadas, em referência ao controle da licitude do objeto do contrato. Ele assevera, no entanto, que, além do controle da licitude do objeto, o princípio deve “comple-mentar o controle do merecimento da tutela.” 9

Ao propor o “controle do merecimento da tutela”, o referido autor parece propor uma análise casuística para que se aplique o princípio da função social. No tocante às relações de consumo, por exemplo, seria razoável afirmar que todos os consumidores são hipossuficientes, ou determinados aspectos adicio-nais, notadamente, circunstâncias de origem socioeconômicas deveriam ser ponderadas?8 RENTERÍA, Pablo. Considerações... cit. p. 287.9 RENTERÍA, Pablo. Considerações... cit. p. 292-293.

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O princípio da boa-fé objetiva

Em primeiro lugar, convém destacar o status da boa-fé como princípio que se converte em verdadeira obrigação dos contratantes, de acordo com a redação do próprio dispositivo legal do Código Civil que trata do tema:

Art. 422 Os contratantes são obrigados a guardar, assim, na conclu-são do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Sobre a probidade, COELHO10 esclarece que “Probidade significa honestida-de, retidão de caráter, senso de justiça.” Para ele, “a probidade é virtude já com-preendida pela boa-fé objetiva. O contratante probo respeita os direitos da outra parte; se os desrespeita, falta-lhe honestidade. O dispositivo foi redundante. Se mencionasse apenas a boa-fé, já teria alcançado necessariamente os probos.”

Se, a respeito da probidade, o artigo legal é tido por alguns como redun-dante, sobre as fases contratuais em relação às quais o princípio da boa-fé deve ser aplicado, há a constatação de omissão e de imprecisão. Isso ocorre porque, erroneamente, são destacadas no artigo apenas a conclusão do contrato e sua execução, enquanto a doutrina e a própria lógica intrínseca às situações negociais asseveram que o dever de boa-fé é aplicável mesmo durante as fases pré (incluindo as tratativas preliminares) e pós-contratuais.

GAGLIANO e PAMPLONA FILHO11 explicma que “por meio da boa-fé objetiva, visa-se a evitar o exercício abusivo dos direitos subjetivos.” Ainda segundo ele, os deveres de lealdade e confiança recíprocas remetem à “fidelidade aos compromissos assumidos, com respeito aos princípios e regras que norteiam a honra e a probidade”.

Ao discorrer sobre a Teoria da Imprevisão12, instituto sobre o qual discorre-remos a seguir, afirma:

Trata-se, em nosso pensar, de uma aplicação direta do princípio da boa-fé objetiva, pois as partes devem buscar, no contrato, alcançar as prestações a que originalmente se comprometeram, da forma como se obrigaram. Assim sendo, nem mesmo para a Administra-ção Pública, quando estabelece contratos, conseguimos encontrar óbice para a sua aplicação, modus in rebus, em função das peculia-ridades dos envolvidos.

10 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito civil...cit. p. 48.11 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, cit. p. 112.12 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, cit. p. 312.

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ZANCHIM13 aborda visões de diversos autores que entrelaçam o princípio da boa-fé objetiva com a revisão judicial dos contratos, devido a alterações nas circunstâncias que o ensejaram. Entretanto, para este professor,

a boa-fé paira como critério geral na revisão judicial de contratos de todas as categorias. Abstrata, não captura as especificidades ca-tegoriais dos contratos empresariais, contratos de consumo e con-tratos paritários. Cada categoria tem uma dimensão de álea natural e outra álea extraordinária, áleas estas que contemplam respecti-vamente eventos previsíveis, que não ensejam a revisão judicial, e eventos imprevisíveis, que a impõem. Assim, mesmo que se utili-ze a boa-fé como orientação das medidas de restabelecimento do equilíbrio contratual, será necessário fazer um estudo específico do contrato para identificar em que tipo de álea se enquadra o evento desestabilizador das suas prestações. Essa análise passa pelo risco, critério concretizador da boa-fé em cada avença afetada por altera-ções de circunstâncias.

Segundo ele, três são as teses mais recorrentes nos tribunais: a da cláusula rebus sic stantibus, a da imprevisão e da onerosidade excessiva.

Pacta sunt servanda e a Teoria da Imprevisão

A Teoria da Imprevisão guarda relação íntima com o pacta sunt servanda, que se consubstancia como a força obrigatória de um contrato. O princípio da força obrigatória faz do contrato lei entre as partes, produzindo a cogência necessária a fim de que se crie um ambiente propício à constituição de novos negócios, à circulação de bens e de serviços e ao desenvolvimento sustentável das atividades econômicas. Trata-se da segurança jurídica necessária que confere ao contratante uma previsibilidade mínima, uma confiança em relação ao cumprimento das obriga-ções que as partes tenham livremente convencionado.

GAGLIANO e PAMPLONA FILHO14 elucidam que “de nada valeria o negócio, se o acordo firmado entre os contratantes não tivesse força obrigatória. Para eles, o contrato, nesse contexto, seria “mero protocolo de intenções, sem validade ju-rídica.” Ainda na mesma obra, os autores mencionam Orlando Gomes, para quem13 ZANCHIM, Kleber Luiz. Contratos Empresarias: Categoria – Interface com Contratos de Consumo e Paritários – Revisão Judicial. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 225.14 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, cit. p. 75.

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o princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é a lei entre as partes. Celebrado que seja, com a ob-servância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais e imperativos. (...) Essa força obrigatória atribuída pela lei aos contratos é a pedra angular da segurança do comércio jurídico.

Se em um primeiro momento, as matizes do princípio sobre o qual nos de-bruçamos acima trazem ares de previsibilidade aos contratantes e uma lufada de segurança ao ambiente em que se constituem os negócios, no instante seguinte sua adoção cega e irrestrita acarretaria sérios prejuízos e incongruências diante de contingências que podem advir das próprias circunstâncias concernentes ao negócio jurídico – seja em relação às características das partes, à natureza da obrigação, às condições da celebração, à função econômica ou quanto aos eixos motivadores que o determinaram ante o período de sua execução. Não parece leviano afirmar que a impossibilidade de revisão de acordos e obrigações traria um ambiente de insegurança tão nocivo quanto àquele eventualmente suscitado pelo desprestígio completo da vontade consubstanciada em um contrato.

Talvez, a maior frustração do homem seja decorrente da pretensão de exer-cer controle sobre circunstâncias e condições que podem vir a influenciar sua vida de maneira direta. Perceber-se impotente diante de certos acontecimentos é causa de grande angústia, mas também tem impulsionado a criação de preceitos reli-giosos, filosóficos e científicos e estimula a inteligência à formulação de novas soluções e desfechos. “Sempre vem imprevisível o abominoso?” “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”15.

Nesse passo, à ciência jurídica coube a missão de eleger elementos que con-temporizassem a força obrigatória do contrato a fim de que o mesmo não represen-tasse uma ameaça, um caminho sem volta aos contratantes ante a superveniência de situações e de condições que não tenham sido previstas ao tempo da celebração.

O instituto que se presta a “temperar” o princípio da obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda) é a Teoria da Imprevisão.

Segundo GAGLIANO e PAMPLONA FILHO16, “a Lei 48 do Código de Hammu-rabi, grafado em pedra, cerca de 2.000 anos a. C., já trazia em um de seus artigos 15 ROSA, João Guimarães. Desenredo. In: _____________. Tutameia (Terceiras Histórias). 9ª ed. Rio de Janei-ro: Ediouro, 2009. p. 72 e 73.16 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, cit. p. 309-311.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 290 No 2 | Julho 2019

a possibilidade da alteração da obrigação de entregar trigo em um ano quando o campo houvesse sido devastado pela tempestade, impossibilitando a colheita. Em nossa era, ao compartilharem, em sua obra, a lição de Darcy Bressone, os mesmos autores ensinam que a Lei Falliot, de origem francesa, foi a primeira a disciplinar esta questão:

Na França, ainda sob o fragor das batalhas, o problema desfiava so-lução. A Corte de Cassação resistiu tenazmente às solicitações da revisão dos contratos. O Conselho de Estado, no entanto, cedeu logo à premência dos fatos, firmando o princípio de que o poder público só poderia exigir do concessionário o cumprimento do contrato, tor-nado excessivamente oneroso por consequência de circunstâncias novas, das quais houvessem resultado dificuldades superiores às que poderia prever, se os revisse, adaptando-os às circunstâncias do momento. Em face da resistência da Corte de Cassação, tornou-se necessária a solução da questão por meio de lei, e, a 21 de maio de 1918, promulgou-se a Lei Falliot (...).

RIZZARDO17 ensina que a Teoria da Imprevisão foi desenvolvida a partir da cláusula rebus sic stantibus, segundo a qual a obrigatoriedade do vínculo depende da permanência daquele estado de fato vigente ao tempo de sua estipulação. Ele explica que esta cláusula foi criada pelo Direito Canônico nos séculos XIV e XVI e perdeu força durante a Revolução Francesa, tendo sido aviventada nos períodos que sucederam as duas Guerras Mundiais, em decorrência da necessidade de que negócios havidos antes de tais situações extremas fossem resgatados e cumpridos posteriormente, quando as moedas padeciam de desvalorização. O preceito trazido pela cláusula permite “a revisão ou a rescisão do contrato em certas circunstâncias especiais, como na ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevistos, que tornam a prestação de uma das partes sumamente onerosa.”

Lição similar e complementar, nesse contexto, compartilha AVVAD18, que, ao enunciar Arnoldo Medeiros da Fonseca “como grande mestre da Teoria da Previ-são”, transcreve seus ensinamentos:

Por muitos anos pela influência sobretudo do tribunal eclesiástico e dos pós-glosadores ou bartolistas, foi admitida pacificamente

17 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 443.18 AVVAD, Pedro Elias. Direito imobiliário: teoria geral e negócios imobiliários. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 331.

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como subentendida nos contratos que tivessem dependentian de futuro, a célebre cláusula rebus sic stantibus, abreviação da fórmu-la: Constractus qui habent tractum succesivum et dependiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur – pela qual, nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório se entendia su-bordinado à continuação daquele estado de fato vigente ao tempo da estipulação.

Ainda na mesma obra19, AVVAD traz o ensinamento do mesmo mestre Ar-noldo Medeiros da Fonseca:

O problema da imprevisão – Todavia, a questão da superveniência de acontecimentos imprevisíveis acarretando uma onerosidade exces-siva da prestação prometida, apresenta-se também, de quando em quando, sem estar regulada por nenhuma disposição legislativa ex-cepcional, em plena paz, a afetar interesses individuais respeitáveis e a exigir solução em face dos princípios normais de direito comum. E o magistrado, na sua árdua função, de realizar o direito, posto em contato com o caso prático ‘pelo inato e irresistível desejo de evitar a iniquidade’, não pode fugir à natural tendência de humanizar a lei.

RIZZARDO20 também referencia Arnoldo Medeiros da Fonseca, que estabe-leceu elementos para a aplicação da referida cláusula:

a) A alteração radical no ambiente objetivo existente ao tempo da formação do contrato decorrente de circunstâncias imprevistas e imprevisíveis;b) onerosidade excessiva para o devedor e não compensada por ou-tras vantagens auferidas anteriormente, ou ainda esperáveis, diante dos termos do ajuste;c) enriquecimento inesperado e injusto para o credor, como conse-quência direta da superveniência imprevista.

Esse mesmo autor acrescenta, ainda, “outros requisitos que conferem direi-to ao uso da cláusula, como inexistência de mora ou culpa do devedor na alteração do ambiente do objetivo”.

A obra de MIRANDA21 traz um quadro com uma atualização sobre o tema:19 AVVAD, Pedro Elias. Direito imobiliário..., cit. p. 331.20 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações..., cit. p. 443.21 MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino. Teoria geral do negócio jurídico. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 137.

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O Código Civil era omisso quanto à resolubilidade (ou resibilidade) dos negócios jurídicos em face da mudança extraordinária e impre-vista das circunstâncias. Em casos tais, a doutrina invocava a cláu-sula rebus sic stantibus, que muitos consideravam implicitamente inserta nos contratos, a teoria da imprevisão ou do desaparecimento da base do negócio, por exemplo. O Código Civil de 2002, no entan-to, supriu essa lacuna ao estabelecer regra explícita segundo a qual, nos contratos de execução continuada ou diferida, a parte prejudi-cada pela excessiva onerosidade de sua prestação, com extrema vantagem para a outra, decorrente de circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis, pode pleitear a resolução (ou resilição) ou a revisão do contrato (arts. 478 a 480 do CC/2002).

RIZZARDO22, no entanto, destaca que “dados os requisitos atuais em que se assenta, máxime o enriquecimento de uma das partes em detrimento da outra, da total imprevisibilidade, foi caindo em desuso a teoria, dando ênfase ao apareci-mento da modificação do contrato, desde que não seja o inadimplemento culposo. Partiu-se para a verificação da base objetiva existente quando da celebração do contrato.”

A lição de GAGLIANO e PAMPLONA FILHO23 traz ainda a distinção entre a Teoria da Imprevisão, a resolução por onerosidade excessiva e a cláusula rebus sic stantibus. Para os autores, a Teoria da Imprevisão “é o substrato teórico que permite rediscutir os preceitos contidos em uma relação contratual, em face da ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes e a elas não imputáveis.” Esses autores seguem explicando que a cláusula rebus sic stantibus possui cronologia anterior à Teoria da Imprevisão e corresponde a uma de suas possibilidades de apli-cação, segundo a qual “haverá sempre uma cláusula implícita de que a convenção não permanece em vigor se as coisas não permanecerem (rebus sic stantibus) como no momento da celebração”.

Por fim, os autores estabelecem a distinção entre a Teoria da Previsão e a Onerosidade Excessiva. Eles explicam que os artigos 478 a 480 do Código Civil estabelecem a “Resolução por Onerosidade Excessiva”, que se invoca em função do descumprimento involuntário do contrato em decorrência da “onerosi-dade excessiva gerada por circunstâncias supervenientes”. Ainda segundo esses autores,22 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações..., cit. p. 444.23 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, cit. p. 313.

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(...) onerosidade excessiva não importa somente na extinção do contrato, mas também em sua revisão”. Pontua que a teoria da one-rosidade excessiva “não corresponde exatamente à teoria da im-previsão por estar mais focada na questão da desproporção do que propriamente na imprevisibilidade.24

Teoria da base do Negócio

NERY25, citando outra obra de sua autoria, define que “Por base do negócio, devem-se entender todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os contratantes levaram em conta ao celebrar o contrato, que podem ser vistas nos seus aspectos subjetivo e objetivo.”

Ainda segundo ele,

(...) a alteração da base negocial pode ocorrer quando houver falta, desaparecimento ou modificação do condicionalismo que formou e informou a base do negócio. Ainda que não haja, no contrato, cláusula expressa referindo-se à base negocial como fator deter-minante para a manutenção do negócio jurídico, o preceito deriva do sistema, de sorte que se considera como se estivesse escrita referida regra, que é aplicável inexoravelmente por ser matéria de ordem pública.26

RIZZARDO27, debruçando-se sobre a mesma Teoria, escreve que:

No Direito brasileiro, destaca-se dentre os que abordaram o tema, Ruy Rosado Aguiar Júnior, que também enfatiza a figura: vista a obrigação como um processo e um sinalagma funcional como o aspecto social mais relevante dos contratos bilaterais – porquanto é na execução que se efetuam as prestações e ficam satisfeitos os interesses das partes – parece bem evidente que ao tempo do adimplemento, nos contratos duradouros ou de execução diferida, devem existir as circunstâncias que garantam a conservação do princípio da igualdade, expresso na equivalência entre as obrigações reciprocamente prometidas e a obtenção do fim natural do contrato.

24 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, cit. p. 314.25 NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil: direito das obrigações, vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 275.26 NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil..., cit. p. 276.27 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações..., cit. p. 445.

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Revista IBRADIM de Direito Imobiliário 294 No 2 | Julho 2019

Não é preciso buscar, fora da própria natureza jurídica do contrato bilateral, fundamento para estabelecer, como requisito da eficácia do contrato, a presença de condições que assegurem a equivalência e a finalidade objetivamente procurada.

Ainda segundo ele:

(...) se no curso do contrato, as circunstâncias não mais existem, ou desaparecem, não se justifica a manutenção do contrato. Mas, ao invés da resolução pura e simples, o mais prático consiste na recomposição das prestações, adequando-as às transformações sugeridas, de sorte a retornar ao equilíbrio existente no início da formalização do ato liberal de vontade.28

Caso a quebra da base econômica seja reconhecida judicialmente, o deve-dor deverá passar a cumprir o contrato nos limites estabelecidos pela sentença, que pode estabelecer tanto a resolução do negócio jurídico (art. 478 CC) ou a revi-são do contrato (arts. 317, 421, 422 e 479 CC).

O risco nos contratos

Entende-se por risco a “impossibilidade de se assegurar, de modo absoluto, certo resultado da ação.”, conforme ensinamento de COELHO.29

ZANCHIM30 assevera que

O risco contratual, a seu turno, é a probabilidade de, independente-mente da vontade das partes, determinado evento impactar a re-lação entre as prestações delas. Ao contrário da responsabilidade civil, o risco contratual não é provocado pelos contratantes e já está ‘internalizado’ no contrato, devendo apenas ser distribuído. O que interessa aqui é o dano enquanto fato das partes, mas o prejuízo enquanto perda patrimonial involuntária.

Esse autor explica ainda que é necessário indagar a respeito da origem do evento que desequilibra a relação. Se o evento tiver sido causado por uma das partes, trata-se de responsabilidade civil; de outro modo, se o evento não estiver na “álea ordinária, natural ou comum” do contrato, justifica-se a revisão.28 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações..., cit. p. 445.29 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito civil..., cit. p. 386.30 ZANCHIM, Kleber Luiz. Contratos Empresariais..., cit. p. 136.

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Ainda na mesma obra, esse autor menciona as lições de Nelson Borges, que classifica as áleas contratuais em:

(i) álea natural, que seria aquela comum a todos os contratos, em que os eventos são previsíveis;(ii) álea extracontratual, relativa a acontecimentos imprevisíveis;(iii) álea sui generis, peculiar aos contratos aleatórios, marcada pela incerteza da contraprestação.

Segundo ZANCHIM, a classificação das duas primeiras categorias acima recai sobre a capacidade de previsão dos próprios contratantes. Quanto maior a amplitude da capacidade dos contratantes em relação à previsibilidade de situa-ções, maior será a álea natural. quanto menor for essa capacidade, maior será a álea extraordinária.

Conclusão

Ao refletirmos sobre o tema da consequência jurídica da perda da base do negócio, vários aspectos devem ser sopesados.

Apenas é possível invocar-se a revisão judicial se as partes não tiverem agido com culpa em relação à causa que deu origem à alteração nas circunstâncias que originou o negócio imobiliário, afinal, para que haja equilíbrio nas obrigações contraídas, é fundamental que as condições mantenham-se economicamente atra-tivas para os contratantes.

Nesse passo, convém ao julgador analisar se houve dimensionamento dos riscos do negócio no momento da estruturação do contrato. Caso as prestações tenham sido engendradas de maneira a considerar os riscos envolvidos, não há que se falar em resolução do negócio jurídico.

Ademais, é fundamental que, além da análise da amplitude da capacidade das partes em relação à previsão dos riscos, o juiz procure ponderar as circunstân-cias que restabeleçam o equilíbrio da relação ante o perecimento da circunstância que motivou a constituição da relação.

O dinamismo das relações sociais impõe que os profissionais do direito se-jam cada vez mais perspicazes na interpretação das circunstâncias intrínsecas e extrínsecas de uma relação negocial a fim de que a solução mais conveniente aos contratantes e à sociedade possa ser aplicada.

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Referências Bibliográficas

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COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito civil: contratos. Vol. 3. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Vol. 4: Contratos, tomo I: Teoria geral. 11ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.

MIRANDA, Custodio Da Piedade Ubaldino. Teoria geral do negócio jurídico. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.

NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil: direi-to das obrigações. Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. (Org.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

ROSA, João Guimarães. Desenredo. In: _____________. Tutameia (Terceiras Histó-rias). 9ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2009.

ZANCHIM, Kleber Luiz. Contratos Empresarias: Categoria – Interface com Contratos de Consumo e Paritários – Revisão Judicial. São Paulo: Quartier Latin, 2012.

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ISSN 2595-8151