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INSTITUTO SANTO INÁCIO
FACULDADE JESUÍTICA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
JOSÉ WILSON ANDRADE
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIOPOLÍTICA DE CANUDOS
ASPECTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE ANTÔNIO CO NSELHEIRO
Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio
BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS
2006
INSTITUTO SANTO INÁCIO
FACULDADE JESUÍTICA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
JOSÉ WILSON ANDRADE
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIOPOLÍTICA DE CANUDOS
ASPECTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE ANTÔNIO CO NSELHEIRO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Instituto Santo Inácio, Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia, sob a orientação do Dr. João Batista Libanio.
Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio
BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS
2006
AGRADECIMENTOS
Ao querido Dom Esmeraldo Barreto de Farias, bispo da Diocese de Paulo Afonso – BA.,
por ter me liberado para essa aventura, não obstante a carência de padres e as dificuldades
financeiras da Diocese. Sempre apostou na formação dos leigos e padres.
Ao querido grande orientador Pe. Libanio, pelas suas sábias “dicas”. Foi uma alegria tê-lo
como professor e, ainda mais, como orientador.
Ao amigo Pe. Charles da Diocese de Grajaú – MA, pelo acompanhamento sistemático;
Oscar José Ramos, da Paróquia Nossa Senhora Mãe da Igreja – Belo Horizonte, católico
fervoroso, pelas “dicas” da língua portuguesa e pelas conversas sobre o tema. Ao meu irmão
Antônio Mendonça, pelo estímulo ao Mestrado. A Raimundo, irmão marista, pela ajuda na
tradução para a língua francesa. Ao companheiro no Ministério, Pe. Hélio Raso, pelos elogios.
Aos professores da Companhia de Jesus, pela partilha do saber, de modo especial ao Pe.
Konings, que me incentivou no aprofundamento da temática de Canudos.
Aos amigos da Província do Brasil Centro-Leste da Companhia de Jesus, pelo
apoio financeiro, sem o qual não seria possível esse estudo. Estendo o reconhecimento ao Centro
de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, na pessoa dos padres Mac Dowell, Vitório e Ir.
Carmelita, pela bolsa institucional.
Aos amigos da Adveniat pelo computador, parte dos livros, plano de saúde, etc., durante
estes anos.
Ao Pe. Célio (Paróquia Rainha da Paz), Pe. Fernando (Paróquia Santo Inácio de Loyola),
Pe. Carlinhos (Paróquia Santa Inês) e Pe. Danilo (Paróquia Mãe da Igreja), pelo apoio pastoral.
A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para que este projeto se realizasse,
especialmente pelo atendimento sempre cordial e carinhoso de Dulcinéia Guides, na Secretaria da
Faculdade.
ÍNDICE GERAL
Índice geral.....................................................................................................................................03
Resumo...........................................................................................................................................06
Resumé...........................................................................................................................................07
INTRODUÇÃO............................................................................................................................08
1- Motivação inicial.......................................................................................................................08
2- Pretensões...................................................................................................................................09
3- Organização do trabalho.............................................................................................................10
4- Nossa opção................................................................................................................................11
5- Opção hermenêutica...................................................................................................................14
CAPÍTULO I
ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS.......................................................................16
1.1. Origem, formação humana e religiosa de Antônio Conselheiro..............................................17
1.2. Formação religiosa de Antônio Conselheiro...........................................................................19
1.3. Antônio Conselheiro, Padre Ibiapina e Padre Cícero de Juazeiro...........................................22
2.3.1- Antônio Conselheiro e o Padre Ibiapina.......................................................................23
2.3.2- Antônio Conselheiro e o Padre Cícero..........................................................................26
1.4. Padre Ibiapina, Padre Cícero e Conselheiro: semelhanças e dessemelhanças.........................28
1.5. Contextualização do Nordeste do Brasil no tempo de Antônio Conselheiro........................32
1.6. A Conjuntura eclesial..............................................................................................................36
1.7. De Antônio Vicente Mendes Maciel a Antônio Conselheiro: história de um Beato
Conselheiro.....................................................................................................................................43
Conclusão.......................................................................................................................................48
5
CAPÍTULO II
UNIVERSO RELIGIOSO DE ANTÔNIO CONSELHEIRO.......... ............................50
2.1. As fontes do projeto de Antônio Conselheiro.........................................................................51
2.2.1. Alcance e limites da interpretação marxista.............................................................58
2.2.2. A utilização da Bíblia Sagrada..................................................................................63
2.2.3. A Missão Abreviada como livro de cabeceira..........................................................64
2.2.4. Obra manuscrita por Antônio Conselheiro...............................................................71
2.2. Descrição do imaginário religioso de Antônio Conselheiro....................................................75
2.2.1- As dores de Nossa Senhora......................................................................................77
2.2.2. Os Dez Mandamentos da lei de Deus.......................................................................80
2.2.3. Textos tirados da Sagrada Escritura..........................................................................82
2.2.4. Prédicas de circunstâncias e discursos......................................................................84
2.2.4.1- Sobre a Cruz..........................................................................................................86
2.2.4.2- Sobre a Missa........................................................................................................88
2.2.4.3- Sobre a confissão...................................................................................................89
2.2.4.4- Sobre as maravilhas de Jesus.................................................................................91
2.2.4.5- Construção e edificação do templo de Salomão....................................................92
2.2.4.6- Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio, Padroeiro do Belo
Monte..................................................................................................................................93
2.2.4.7- Sobre a parábola do semeador...............................................................................94
2.2.4.8- Sobre a República, o casamento civil, a família imperial, a libertação dos
escravos...............................................................................................................................95
2.2.4.9- Prédica de despedida.............................................................................................98
2.3. Tentativa de uma leitura sistemática do pensamento teológico do Conselheiro.....................99
2.3.1- O Deus Criador, Misericordioso e Onipotente.......................................................103
2.3.2- Concepção sobre Jesus Cristo................................................................................106
2.3.3- A idéia sobre o Espírito Santo................................................................................107
2.3.4- A idéia sobre a Igreja Católica...............................................................................105
2.3.5- A idéia sobre o papa, cardeais e bispos..................................................................109
2.4- O enfrentamento de Masseté.................................................................................................111
2.5- A comunidade solidária de Canudos.....................................................................................111
2.6- Por que a comunidade de Canudos constituiu-se um perigo para a República?...................117
4
2.7- A participação da Igreja Católica na destruição de Canudos................................................124
Conclusão.....................................................................................................................................130
CAPÍTULO III
ELEMENTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE CANUDOS.. ......................134
3.1- Natureza eclesial do movimento de Canudos.......................................................................139
3.2- A eclesiologia subjacente em Canudos.................................................................................139
3.3- A relação de Antônio Conselheiro com as autoridades eclesiásticas....................................149
3.4- Canudos: Igreja pobre acolhendo os pobres..........................................................................152
3.5- Os colaboradores diretos na Igreja dos pobres em Belo Monte............................................155
3.6- Outras manifestações religiosas em Canudos.......................................................................165
3.7- Características fundamentais da Igreja de Canudos..............................................................167
3.7.1- Uma Igreja fundada pelo Bom Jesus......................................................................167
3.7.2- Uma Igreja alicerçada na sucessão apostólica........................................................168
3.7.3- Uma Igreja pobre e para os pobres.........................................................................171
3.8- Fundamentos bíblicos e teológicos da eclesiologia da comunidade de Canudos..................174
Conclusão..........................................................................................................................177
CONCLUSÃO GERAL.............................................................................................................179
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................188
5
RESUMO
O presente texto examina a história da Guerra de Canudos, pelo viés dos “vencidos”: seus
aspectos históricos e eclesiológicos. A partir dos manuscritos deixados por Antônio Conselheiro,
este trabalho apresenta uma leitura do universo religioso do Conselheiro, líder principal da Igreja
do Belo Monte, este conhecido por Canudos. Ele liderou uma comunidade que se constituiu em
uma alternativa para o povo sertanejo, submergido na crise política, econômica e religiosa, no
final do século XIX. Quer-se com isso discutir a natureza da experiência da grei canudense: seus
aspectos político-sociais e eclesiológicos. Pretende-se mostrar, ainda, os elementos eclesiológicos
presentes na experiência da Igreja de Canudos e suas conseqüências para a igreja católica hoje.
Palavras-chaves: Guerra de Canudos, movimento social, movimento popular, religião,
igreja católica, eclesiologia, comunhão eclesial, teologia sistemática, práxis cristã, recepção da
Bíblia Sagrada, comunidade cristã, liderança cristã.
Resumé
Le présent texte examine l´histoire de la Guerre des “Canudos”, selon la biais des vaincus:
ses aspects historiques et éclésiologiques. À partir des manuscrits laissés par Antônio
Conselheiro, ce travail présente une lecture de l´univers réligieu du Conselheiro, chef principal de
l´Eglise du “Bello Monte” (Belle Montagne), celui-ci connu par le nom de Canudos. Il a
commandé une communauté que s´est constituée en une alternative pour la population de la
région (de l´intérieur) submergée dans la crise politique, économique et religieuse, à la fin du
disneuvième siècle. Ainsi, on veut discuter la nature de l´expérience de la communauté des
Canudos: ses aspects politiques, sociaux et éclésiologiques. On prétend montrer encore, les
éléments éclésiologiques présents dans l´expérience de l´Eglise des Canudos et ses conséquences
pour l´Eglise catholique d´aujourdhui.
Mots principaux (importants) : Guerre des Canudos, mouvement populaire, réligion, église
catholique, éclésiologie, communion éclésiale, théologie sistématique, práxis chrétienne,
réception de la Sainte Bible, communauté chrétienne, lidérance chrétienne.
INTRODUÇÃO
1- Motivação inicial
O primeiro contato sério que tive com a literatura sobre Antônio Conselheiro e Canudos
deu-se quase por acaso. No final de 1990, após ter concluído licenciatura em Filosofia, na
Universidade Católica do Salvador, estava finalizando o Bacharelado em Teologia, quando
apareceu um anúncio no Jornal A Tarde, de Salvador, comunicando um Curso de extensão
universitária sobre Canudos,1 na Universidade Federal da Bahia, de 11 de setembro a 11 de
dezembro de 1990, ministrado pela professora Noemi Salgado Soares. No final do curso de
teologia, iria eu residir na Diocese de Paulo Afonso (BA), nas proximidades de Canudos: eis a
motivação principal para melhor conhecer Antônio Conselheiro e a história de seu povo.
O curso foi um aperitivo. Despertou-me interesse para aprofundar a história de Canudos.
Deu-me a munição necessária para entrar na Comissão da Romaria de Canudos, de 1991 a 2002,
participar da criação do Instituto popular Memorial de Canudos, do qual fui secretário de 1993 a
1996 e presidente, de 1996 a 1999. Nesse intervalo, tive oportunidade de participar, na qualidade
de debatedor e palestrante, de diversos seminários, em universidades, Assembléia Legislativa,
Câmara dos Deputados, Câmara de Vereadores, colégios, igrejas, etc.
1 Tema do curso: “A mentalidade do homem sertanejo de Canudos: análise literária e análise antropológica”.
Essa militância na atualidade de Canudos, especialmente nos dois grandes centenários: o
da chegada de Antônio Conselheiro a Canudos (1993) e o da destruição do arraial (1997),
iluminou-me na decisão da escolha do tema desta Dissertação de Mestrado: A experiência
Religiosa e Sociopolítica de Canudos: aspectos eclesiológicos da comunidade de Antônio
Conselheiro. Minha monografia de Pós-Graduação em Ensino Religioso, apresentada na
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em 2004, versou sobre um tema semelhante: A
comunidade de Canudos: uma experiência religiosa ou político-social?
2- Pretensões
Este estudo nasceu, assim, de uma longa experiência pastoral junto ao Canudos atual.
Perceber os diversos olhares que se entrecruzam num movimento como Canudos é enriquecedor,
muito revela sobre os sujeitos sociais nele envolvidos. Levando em consideração toda a parte
histórica de Canudos, presente no primeiro capítulo, nosso olhar sobre Canudos é teológico ou,
mais especificamente, eclesiológico. Nossa aproximação visa particularizar tal abordagem,
procurando enfocar aspectos mais eclesiológicos e responder a algumas perguntas: 1- Foi a
experiência do séquito de Antônio Conselheiro uma motivação de ordem meramente político-
social, ou de natureza religiosa? 2- Por que a experiência da comunidade de Canudos desperta
tanta controvérsia entre historiadores, cientistas sociais e religiosos? 3- Qual a novidade
eclesiológica subjacente na experiência da Igreja em Canudos? 4- Que tipo de contribuição a
Teologia poderia dar para uma melhor compreensão do aspecto teológico, no diálogo com as
ciências humanas e sociais? Fundamentalmente pretendemos realçar os aspectos eclesiológicos
da comunidade de Antônio Conselheiro.
9
3- Organização do trabalho
Esta pesquisa divide-se em três capítulos. O primeiro apresenta a história de vida de
Antônio Conselheiro, principal ator do acontecimento Canudos: sua história de vida, formação
humana, intelectual e religiosa. Ressaltar-se a contextualização histórica e sociológica do Brasil,
o contexto específico do Nordeste do final do século XIX, os interesses políticos das forças
sociais, o deslocamento do eixo da economia nacional, o fim do ciclo da cana-de-açúcar no
Nordeste e a ascensão do cultivo da borracha e do café, respectivamente, no Norte e Sudeste do
Brasil. Finaliza com uma análise da conjuntura eclesial: o papel do catolicismo popular, a
romanização verso religiosidade popular, o encontro entre Padre Ibiapina, Padre Cícero e
Antônio Conselheiro.
O segundo capítulo apresenta o universo religioso de Antônio Conselheiro; analisa as
fontes do projeto do Peregrino, a utilização da Bíblia, a Missão Abreviada e os Manuscritos do
Beato, publicados por Ataliba Nogueira. Destacam-se, ainda, a ortodoxia da catequese ensinada
pelo Conselheiro no acampamento: os sacramentos (batismo, eucaristia e penitência), a missa, os
Dez Mandamentos, etc., a comunidade solidária, sua destruição e o papel da Igreja Católica no
episódio.
Finalmente, o terceiro capítulo apresenta os elementos eclesiológicos da comunidade de
Canudos, sempre partindo de textos manuscritos por Antônio Conselheiro. Aqui se apresentam a
natureza eclesial do movimento de Canudos, a eclesiologia subjacente na grei, o contato do
Peregrino com as autoridades eclesiásticas, a forma de acolhida em Canudos, os ministérios, as
características fundamentais da Igreja em Canudos.
10
4- Nossa opção
Optamos, ao logo da pesquisa, por alguns autores: Euclides da Cunha, Abelardo
Montenegro, Edmundo Muniz, Rui Facó, José Calazans, Marco Antônio Villa e Alexandre Otten.
Euclides da Cunha é a “porta de entrada” para Canudos. Os Sertões não perdeu o caráter de
grande obra da literatura brasileira. De Os Sertões, derivam uma infinidade de obras, contra ou a
favor. Diante desse escrito de Euclides da Cunha é sempre possível reação. Durante quase cem
anos, ele exerceu forte influência no pensamento dos intelectuais brasileiros. Por muito tempo,
não se conseguia superar essa monumental obra, acusada por autores contemporâneos de ter
“engaiolado” a história da Guerra de Canudos, em uma única versão: a oficial. É preciso
reconhecer o valor de Euclides da Cunha. Porém, outros ventos sopraram na historiografia
brasileira, nas últimas décadas.
Optamos também por Abelardo Montenegro, Rui Facó e Edmundo Moniz. Eles nos
proporcionam uma boa reflexão sobre os aspectos marxistas, a dimensão do comunismo
primitivo em Canudos. Levantaram muitas dúvidas sobre visões tidas como verdadeiras sobre o
Beato. Edmundo Moniz foi acusado de idealizar Canudos, enquadrá-lo num igualitarismo
romântico, sem comprovação histórica e de não apresentar fundamentação teórica. A visão de
Abelardo e a de Rui Facó partem do mesmo referencial teórico que Edmundo Moniz, porém com
maior fundamentação bibliográfica. Abelardo Montenegro é rico em detalhes, muito citado por
autores modernos e apresenta uma vasta bibliografia. Rui Facó estruturou seu livro no que
Hoornaert caracterizou de “esquema mecanicista de caráter marxista”. 2 Seu livro apresenta uma
base para ler Canudos de forma crítica, especialmente na compreensão do “jogo” das forças do
Estado o do enfrentamento dos movimentos sociais. Seu enfoque é um excelente instrumental
teórico de viés marxista. Porém, não conseguiu superar a imagem fundamental de Euclides da
2 HOORNEAT, Eduardo, Os anjos de Canudos: revisão histórica, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 3.
11
Cunha, Maria Isaura de Queirós, Gilberto Freyre e Djacir Menezes dos “dois brasis”.3 Abelardo
Montenegro, Rui Facó e Edmundo Moniz estimularam a pesquisa sobre Canudos.
José Calazans tomou outro caminho. Foi um dos pioneiros na revisão histórica. Procurou
auscultar o povo, especialmente alguns sobreviventes da guerra. Valorizou e preferiu pisar o chão
firme do relato preciso dos fatos históricos. Visitou diversas vezes a região do Vaza-Barris.
Tornou-se o “pai da oralidade” sobre a Guerra de Canudos. “No seu discurso, nada de
“extraordinário” aparece em Canudos, nem socialismo, nem igualitarismo, nem exaltação
religiosa”.4 José Calazans iniciou seus estudos históricos sobre Canudos no início da década de
1940, com mais de 50 anos de dedicação. Foi pioneiro na revisão histórica. Superou a visão
dicotômica de povo em “dois brasis”: a do litoral e o sertão. Costuma-se dizer que ele nos
libertou das “amarras” euclidianas: “desengaiolou” Canudos e o entregou aos estudiosos.
Segundo Eduardo Hoornaert, José Calazans “pertence à corrente historiográfica dos que
pretendem interpretar o Brasil a partir do Brasil, e não de esquemas interpretativos importados”. 5
Marco Antônio Villa trata do Canudos mais especificamente histórico. Ele reconstrói
dados factuais, há tempos submersos no esquecimento. A obra de Marco Antônio Villa propõe-se
apresentar uma visão de totalidade de Canudos. Por ser um autor crítico, apresenta uma análise de
certas visões cristalizadas, sempre partindo de documentos históricos e, muitos, até raros.
Diferentemente de Alexandre Otten, afirma que a Igreja ficou satisfeita com a destruição de
Canudos e comemorou a volta dos militares. Sua publicação é de nível acadêmico, não se perde
em detalhes fúteis.
3 Ibid, p.98. 4 Ibid, p. 95. 5 HOORNAERT, Eduardo, Os anjos de Canudos: revisão histórica, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 93.
12
Alexandre Otten, por ser, na concepção de José Calazans, a obra mais completa sobre a
história de Canudos,6 é o texto que não deve faltar numa pesquisa que se propõe abordar os
aspectos eclesiológicos de Canudos. Alexandre Otten, pioneiro na abordagem de Canudos nos
aspetos religiosos, como o subtítulo revela: “a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro” é o
autor mais completo sobre a Guerra de Canudos, pelas diferentes interpretações, pela seriedade
de abordagem, acompanhada de uma vasta fundamentação científica. Além de tratar da parte
histórica, o quarto capítulo apresenta excelente base da vida em Canudos, na perspectiva da
sociologia da religião. Especialmente nos capítulos dois e três de nossa pesquisa, vamos trabalhar
com o pensamento de Alexandre Otten.
Diversos outros autores serão citados no corpo e nas notas do trabalho. O fato de não
receberem os destaques merecidos, não significa, necessariamente, negar sua importância. Por
mais completa que possa parecer, toda fonte carrega seu limite. Nossa opção decorre em vista da
circunscrição de páginas. Apreciações críticas serão feitas. Isso faz parte do espírito acadêmico.
Não temos a última palavra sobre Canudos. Esperamos colaborar para melhor conhecer e fazer
justiça ao que Antônio Conselheiro e sua gente significaram para a Igreja e, assim, colaborar para
o desenvolvimento da ciência.
Tenho consciência de que não vamos dar a ultima palavra sobe esse tema. O pensamento
de Ronhus Zuurmond sobre as fontes da Cristologia, guardadas as devidas proporções, também
vale para dá o valor devido aos autores de nossa opção e aos que não entraram na escolha, no
decorrer do trabalho.
Mesmo quando fidedigna, uma fonte focaliza apenas determinado aspecto do ocorrido. Nunca pode ser abarcada a totalidade do acontecimento, tanto por falta de testemunhas como pelo fato de que dados importantes de toda espécie (motivos coletivos e individuais, processos intrincados de causa e efeito, circunstâncias fortuitas) sempre estão e permanecerão ocultos. Nunca enxergamos tudo, nem quando as coisas se passam na frente
6 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é Grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro, São Paulo: Loyola, 1990.
13
de nosso nariz, e muito menos quando estamos a séculos de distância do que é descrito. Querer imagens definitivas é uma ilusão. 7
A cada fonte descoberta é um novo avanço no campo da ciência histórica e teológica.
Onde existe vida humana envolvida, há mistério a ser desvendado. Diante do mistério da
existência humana, com seus feitos, atitudes e façanhas é ingênuo querer enquadrá-lo totalmente
em teorias objetivas. Isso não significa que os estudos não tenham valor. Falando do mistério
trinitário, Boff apelou para o silêncio. Também podemos silenciar. Porém,
calemos somente no fim do esforço de falarmos o mais adequadamente possível daquela realidade para a qual não há nenhuma palavra adequada. Calemos no fim e não no começo. Só no fim o silêncio é digno e santo. No começo seria preguiçoso e irreverente. As palavras morrem nos lábios. Os pensamentos obscurecem na mente. Mas o louvor incendeia o coração e a adoração faz dobrar os joelhos. 8
5- Opção hermenêutica
Antes de apresentar este trabalho, externo minhas preocupações de ordem hermenêutica
sobre a historiografia brasileira e, portanto, sobre as publicações e estudos sobre Canudos. Pelo
menos duas realidades interpretativas permeiam a historiografia brasileira. Uma, a ensinada nas
escolas oficiais, do pesquisador e historiador Varnhagem, que conta a história ortodoxa do Estado
e da Nação, fiel à “verdade histórica”, à versão dos grandes, dos poderosos, das instituições que
dominam o povo. É a história amplamente divulgada nas escolas públicas. Essa versão conta com
vasta documentação, arquivos, monumentos, construções.
Outra orientação vem de Capistrano de Abreu. Ele documentou a história na perspectiva
das pessoas comuns, dos feitos deixados pelos atores do povo simples, com limitação, é claro.
Um dos problemas da historiografia na óptica dos “vencidos” é que eles quase não deixam
monumentos, documentação e outros vestígios. Pouco sabemos, por exemplo, da história do
Quilombo dos Palmares, Cangaço, Lampião, Contestado, dos povos indígenas e tantos outros
7 ZUURMUND, Ronhus, Procurais o Jesus histórico?, São Paulo: Loyola, 1998, p. 42. 8 BOFF, Leonardo, A Trindade, a sociedade e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1986, p. 19.
14
levantes em defesa da vida, ao longo de séculos. Para refazer ou reinterpretar a história dos
pobres, faz-se necessário um trabalho de garimpagem. Os pobres e excluídos, mesmo tendo
importância vital no processo histórico, quase sempre são lembrados como marginais, fanáticos,
bandidos, revoltosos e desordeiros. Canudos não fugiu a essa lógica.
No tocante à Guerra de Canudos, a versão oficial, unilateralmente, tentou enterrar sua
memória nas águas do açude do Cocorobó.9 Porém, a partir de 1945, cresceu o interesse pelo
resgate histórico, versão que vai além de Os Sertões, do clássico Euclides da Cunha, superando
uma interpretação preconceituosa e racista sobre o sertanejo. Para Ataliba Nogueira, essa visão
preconceituosa vem sendo purificada “de todas as deformações propaladas pelos partidos
políticos, pela meia-ciência, pelos propósitos inconfessáveis, pela forma literária imaginosa e
sacrificadora da verdade”. 10 Os pobres e considerados vencidos estão com a palavra! Durante o
ano de 1997, centenário da destruição de Canudos, a mídia nacional colocou na ordem do dia a
temática da experiência ocorrida no acampamento e os reais motivos pelos quais o governo
republicano mobilizou quatro expedições militares e promoveu o maior massacre dos próprios
brasileiros de nossa história.
Esta pesquisa se propõe trilhar pelo caminho da revisão histórico-teológico da Guerra de
Canudos e das lições para nossa vida hoje. Tento garimpar, dentro dos mais de cem anos de
produção literária sobre Canudos, os elementos fundamentais do projeto de Antônio Conselheiro
e sua experiência eclesial inovadora na Igreja de seu tempo.
9 Cocorobó foi o nome da antiga Canudos. Em 1968 foi construído o açude do Cocorobó no local do cenário da guerra, com 16km de extensão, por 5km de largura e 20m de profundidade, no leito do Rio Vaza-Barris que deságua no Oceano Atlântico, zona Sul de Aracaju – SE. Cf. INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Almanaque de Canudos 1999, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1998, p. 60 e 82. 10 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica, São Paulo: Nacional, 1974, p. 1.
15
CAPÍTULO I
ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS
A primeira parte deste trabalho traça, em linhas gerais, o itinerário histórico de Antônio
Conselheiro e o roteiro de sua vida, situando-o no contexto mais amplo da região nordestina do
Brasil, no que diz respeito aos aspectos culturais, políticos, econômicos e eclesiais do final do
século XIX.
A segunda metade do referido século, como momento histórico, provocou inquietações na
vida social e religiosa do País, o que causou em Antônio Conselheiro indignação ética e o levou a
buscar novos caminhos de solidariedade para com as vítimas das agitações políticas, sociais e
eclesiais, que caracterizaram o final desse século. Antônio Conselheiro sentiu-se, então, chamado
por Deus para organizar um movimento de caráter religioso, com dimensões sociais e políticas,
inserido em um contexto de crise da Monarquia, de implantação da República e de separação
entre Igreja e Estado.
Este estudo não apresenta exaustiva análise da conjuntura social e política do final do
século XIX, nem uma interpretação sociológica dos fatos, mas descreve o perfil do líder Antônio
Conselheiro, destaca as possibilidades e as bases de sua atuação, o que provocou reação das elites
agrária e política da República. A natureza e o alcance do movimento deixaram um enorme
legado para a historiografia brasileira e para a Igreja, o que permitiu que fosse redescoberto o
papel do cristão leigo na sua atuação pastoral. A inserção de Antônio Conselheiro no Catolicismo
Popular do final do século XIX, sua formação religiosa, o contato com o Padre Cícero e a
experiência com o movimento das Beatas do Padre Ibiapina, proporcionaram-lhe inspiração para
organizar a comunidade do Belo Monte, como era conhecido o acampamento de Canudos.
1.1- Origem e formação humana de Antonio Conselheiro
Antônio Vicente Mendes Maciel, popularmente conhecido por Antônio Conselheiro1,
nasceu na vila de Quixeramobim, então Província do Ceará, aos 14 de maio de 1830. Era filho de
Vicente Mendes Maciel e Maria Joaquina de Jesus (também conhecida por Maria Chana),
conforme assentamento de seu batizado.2 Logo aos seis anos, ficou órfão de mãe, juntamente com
suas três irmãs passando a viver com a madrasta. Segundo a tradição, ela tinha sérias
perturbações mentais. Abelardo Montenegro confirma: “A madrasta do pequeno Antônio,
Francisca Maria Maciel, considerada ‘mulher geniosa, que não poupava maus tratos’, irritava-se
com o marido e desforrava-se nos enteados. Chamava o pequeno Antônio de mandrião e sem
vergonha”.3 Seu pai, Vicente Mendes Maciel, após ser obrigado a deixar o campo, tornou-se
comerciante e construtor, edificando algumas casas na praça principal de Quixeramobim.
Maciel originou-se de uma família residente em Vila Nova, lugarejo entre Tamboril e
Quixeramobim, em conflito com os Araújos, por questões de terra, nas acirradas disputas no
interior da Província cearense (motivo que o obrigou a migrar para a cidade). Antônio Vicente
teve uma vida conturbada desde o início. Seu pai começou a vida como vaqueiro e foi obrigado a
1 No decorrer do trabalho, usaremos os diversos títulos atribuídos a Antônio Vicente Mendes Maciel, durante sua vida e cristalizados na literatura atual: “Antônio Maciel”, “Antônio Vicente Maciel”, “Antônio Conselheiro”, “O Conselheiro”, “O Peregrino”, “O Peregrino do sertão”, “Santo Antônio”, “Antônio Aparecido”, “Santo Antônio Aparecido”, “Antônio dos Mares”, “O Bom Jesus”, “O Ermitão Antônio Conselheiro”. 2 Conforme cópia do original da certidão de batismo, que se encontra no acervo do Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC), na atual cidade de Canudos – BA, a 420Km de Salvador, com o seguinte teor: “Aos vinte e dois de maio de mil oitocentos e trinta, batizei e pus os santos óleos nesta Matriz de Quixeramobim ao párvulo Antônio pardo nascido aos treze de março do mesmo ano supra, filho natural de Maria Joaquina: foram padrinhos, Gonçalo Nunes Leitão e Maria Francisca de Paula. Do que, para constar, fiz este termo, em que me assinei. O vigário, Domingos Álvaro Vieira”. Grande parte dos autores divulga incorretamente 1828 como o ano do nascimento de Antônio Conselheiro. 3 MONTINEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros, Fortaleza: Henrique Galeno, 1973, p. 114.
17
fixar-se em Quixeramobim, distanciando-se dos confrontos com os Araújos, “que
ensangüentavam o sertão cearense desde o início do século XIX”. 4 Para Manoel Benício, os
Maciéis formavam uma família numerosa, de homens álidos, ágeis, inteligentes e bravos, que
faziam parte de grandes fastos criminais do interior da referida Província, em guerra de família,
nas cercanias de Quixeramobim e Tamboril. Os confrontos se deram com os Araújos, distinta
família rica, filiada a outras das mais antigas do norte da Província. “Foi uma das lutas mais
sangrentas dos sertões do Ceará a que se travou entre estes dois grupos de homens, desiguais na
fortuna e posição oficial, ambos embravecidos na prática das violências”. 5 Naquele tempo,
imperava a “lei do mais forte”. Uma certa feita, um tal Silvestre Rodrigues Veras, residente no
termo de Vila Nova, declarou guerra de extermínio aos Maciéis ou Carlos. “Pertencente à
poderosa família dos Araújos, que controlava as autoridades locais, pôs em jogo a influência
clânica, forçando os Maciéis a abandonarem a Vila Nova e virem para Quixeramobim”.6 Silvestre
conseguiu uma ordem de prisão e fez uma tentativa de prender os Maciéis que, avisados,
reagiram, provocando a retirada dos ameaçadores. “Os inimigos dos Maciéis, não podendo
prendê-los, convidaram para auxiliá-los o capitão do mato José Joaquim Meneses, que, vindo de
Fortaleza, ia para o Piauí acompanhado de sicários e do terrível Vicente Lopes”.7 Sem
possibilidade de reação, os Maciéis se entregaram. Essa atitude não foi capaz de aplacar a fúria
dos perseguidores. “Meneses passou os presos aos Araújos e Veras que, no dia 9 de junho de
2833, entre as fazendas Convento e Araras, entre Quixeramobim e Sobral, simulando um ataque à
4 VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo da terra, São Paulo: Ática, 1995, p. 14. 5 BENÍCIO, Manoel, O rei dos jagunços: crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos, Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 7. “Boa Viagem, pequena povoação, estava em grande afinidade de interesses, pela sua indústria pastoril, com Santa Quitéria, Vila Nova e Tamboril, cujos valentões tinham muita fama por esses tempos e influíram grandemente nas lutas sertanejas. Era do número deles o célebre José Joaquim de Meneses, oriundo de Pernambuco, corajoso até a temeridade; o afamado Vicente Lopes; os Mourões; João da Costa Alecrim e outros”. Ibidem. 6 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111. 7 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111.
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escolta, os assassinaram”.8 Dois irmãos, chefes de família dos Maciéis, tombaram: Manuel Carlos
Maciel e Antônio Maciel.
As famílias sem influências políticas e econômicas eram condenadas ao silêncio ou a
migrar para outras áreas, distantes dos coronéis do sertão. Nesse tempo, o Doutor Ibiapina, que
posteriormente seria missionário católico, exercia o cargo de Juiz de Direito na Comarca de
Quixeramobim e protegia os Maciéis. Dr. Ibiapina foi famoso por ser um juiz justo e, por esta
razão, uma outra família “valentona”, conhecida por Miguel, se sentia intimidada. Entretanto,
Doutor Ibiapina era substituído pelo Juiz leigo Antônio Duarte de Queiroz, parente dos Araújos,
que iniciou uma forte perseguição aos Maciéis.9 Os mais fracos estavam entregues ao “Deus
dará”. Foi nesse ambiente familiar e social que Antônio foi formando a personalidade infantil,
agregando a isso posteriormente, a escola, a experiência religiosa e os enfrentamentos políticos.
1.2- Formação religiosa de Antônio Conselheiro
Mesmo sabendo-se que o homem não é somente produto do meio - no caso, o sertão -
marcado pelos conflitos de terra, as brigas políticas, o abandono das populações sertanejas e os
conflitos familiares foi esse ambiente a primeira escola na vida de Antônio Vicente Mendes
Maciel. O pai de Antônio Vicente sonhava que o filho fosse padre. Procurou colocá-lo na escola
do professor Manuel Antônio Ferreira Nobre, onde o menino teria uma base razoável de
português, latim e francês. Não se tem conhecimento dos motivos que desencaminharam o
menino da vocação sacerdotal. Abelardo Montenegro afirma que Antônio era filho de uma
8MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111. E. Moniz documenta o mesmo episódio: “A luta sangrenta, iniciada em 1833, de vinditas em vinditas entre os Macieis e os Araújos, ficou famosa no sertão cearense. Essa luta agravou-se com o massacre da família Maciel, depois que se rendeu num confronto armado com os Araújos, sob a promessa não cumprida, de que ninguém seria morto. No massacre, morreu Miguel Mendes Maciel, avô de Antônio Conselheiro, cuja honestidade – segundo Manuel Ximenses – era reconhecida pelos próprios inimigos”: MONIZ, Edmundo, Canudos: a luta pela terra, São Paulo: Centro Editorial, 1982, p. 12. 9 Cf. ibidem, p. 112.
19
família tradicionalmente católica e recebia influências do catolicismo popular. Foi educado nos
princípios da Igreja do seu tempo. “Ensinaram-lhe a sofrer com resignação, a esquecer as
misérias terrenas para gozar as delícias celestiais e a aceitar como provações divinas os golpes
impiedosos do destino. A leitura de obras sacras mostrava como os santos haviam sofrido e
buscavam o sofrimento”.10 Euclides da Cunha colheu informações significativas junto a amigos
sobre o genitor de Antônio Conselheiro, Vicente Mendes Maciel: irascível, de excelente caráter,
meio visionário, desconfiado, de capacidade prática impressionante (mesmo sendo analfabeto).
Ele negociava largamente em fazendas, trazendo tudo perfeitamente contado e medido de
memória, sem mesmo ter escrita para os devedores. Homem de honradez.11 Na concepção
euclidiana, Antonio Vicente foi educado longe das turbulências da família. Porém, as marcas da
personalidade do velho pai, de rigidez, seriedade, ríspida sisudez e de honestidade ficaram
cravadas na personalidade daquele que se tornaria andarilho pelo sertão. Assim Euclides da
Cunha resume-lhe a infância: “Indicam testemunhas de vista, ainda existentes, como adolescente
tranqüilo e tímido, sem o entusiasmo feliz dos que seguem as primeiras escalas da vida; retraído,
avesso à troça... coragem tradicional e rara”.12 Sempre “revelava-se muito religioso, morigerado
e bom, respeitoso para com os velhos. Protegia e acariciava as crianças. Sofria com as rusgas
entre o pai e a madrasta. Ao longo da trajetória de vida, internalizou o conteúdo de um
cristianismo rústico, tradicional, de um Deus que castiga duramente os que erram. Consideravam-
no a pérola de Quixeramobim, por ser um moço sério, trabalhador, honesto e religioso”.13
Acompanhou o pai no comércio, trabalhando como caixeiro. Conforme tradição oral, por ocasião
do falecimento do pai em 1855, Antônio Maciel prosseguiu na mesma vida corretíssima e
10 MONTENEGRO, Abelardo, F, Fanáticos e Cangaceiros, ..., p. 119. 11 Cf. CUNHA, Euclides da, Os sertões, São Paulo: Ediouro, 2003, p. 212. 12 Ibidem. 13 MONTENEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros..., p. 114.
20
calma.14 Em sua biografia, não constam atos de desonestidade ou atitudes desabonadoras de sua
conduta.15 Ao contrário, ele revelou um caráter que não se deixava abater. Viveu sempre
trabalhando e resolvendo problemas deixados pelo pai, inclusive “a tarefa de valer por três irmãs
solteiras (após a morte do pai) revelou abnegação. Somente depois de tê-las casado procurou, por
sua vez, um enlace que lhe foi nefasto”.16
Com 25 anos, assumiu a direção dos negócios, após a morte de seu genitor. Aos 7 de
janeiro de 1857, casou-se com Brasilina Laurentina de Lima, em Quixeramobim. Teve dois filhos
desse casamento. Nesse mesmo ano, sua casa comercial entra em falência. Segundo Abelardo
Montenegro, Antônio não tinha vocação para o comércio. Os negócios não prosperavam, as
dívidas aumentavam e chegou a hipotecar imóveis para pagar dívidas que não paravam de
crescer.17 Marco Antônio Villa aponta, para justificar o fracasso de Maciel, a crise econômica
cearense, especialmente devida às sucessivas secas.18 O autor de “Os Sertões” indica 1858 como
o início da transformação do caráter de Antônio Vicente Mendes Maciel. É a partir desse
momento que ele “Perde os hábitos sedentários. Incompatibilidade de gênio com a esposa ou, o
que é mais verossímil, a péssima índole desta torna instável a sua situação. Em poucos anos, vive
em diversas vilas e povoados. Adotou diversas profissões”.19 Ele se desfaz completamente do
comércio. Procurou mudar de atividade profissional. Passou a lecionar português, aritmética e
geografia em uma fazenda vizinha. “Tenta sorte em Tamboril, depois em Campo Grande. É outra
vez caixeiro. Passando algum tempo, o dono fecha a casa de comércio e de novo fica
desempregado”.20 Chegou a militar no Fórum de Campo Grande e Ipu como advogado
14 Ibidem, p. 212-213. 15 Como conseqüências de sua opção, Antônio Conselheiro foi acusado de uma série de crimes não comprovados, tratados de forma aprofundada no final do próximo capítulo. 16 Ibidem, p. 313. 17 Ibidem, 115. 18 VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo da Terra, São Paulo: Ática, 1995, p. 15. 19 CUNHA, Euclides da, Os sertões...,p. 213. 20 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica, São Paulo: Nacional, 1974, p. 5. Para uma reflexão mais recente, cf.: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA/ CENTRO DE ESTUDOS EUCLIDES
21
provisionado.21 Nesse período em Ipu, sua esposa foge com João da Mata, furriel da força pública
da província. Em meio à instabilidade econômica e afetiva, Antônio teve uma aventura com
Joana Imaginária, gerando o último filho, Joaquim Aprígio, em Santa Quitéria.22
Essa vida de ambulante não era exclusiva de Antônio. A crise econômica da segunda
metade do século XIX provocava desespero na população pobre. Como muitos outros
conterrâneos, ele não tinha medo de mudar de perspectivas e procurar outro meio de vida, como
única possibilidade de continuar vivo. A vida ambulante foi uma característica marcante na
personalidade do peregrino de Deus, que lutava pela melhoria da vida de seus irmãos sertanejos.
1.3- Antônio Conselheiro, Padre Ibiapina e Padre Cícero de Juazeiro
Antônio Vicente Mendes Maciel (1830) conheceu Padre Ibiapina (1806) e Padre Cícero
(1844), de Juazeiro. Mesmo com uma pequena diferença de idade, eles formaram um verdadeiro
trio antológico no cenário nordestino do século XIX,23 embora sabendo-se que não houve um
plano de ação pastoral em conjunto. As práticas religiosas entre Padre Ibiapina, o Conselheiro e
Padre Cícero eram semelhantes, porém, nunca iguais. Existem diferenças significativas entre a
missão de Antônio Conselheiro e a dos dois padres, que serão abordadas a seguir.
A CUNHA, Revista Canudos, v. 4, n. 1/2 (dezembro de 2000), Salvador: UNEB, 2000; BOAVENTURA, Edvaldo, O Parque Estadual de Canudos, Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 1997; ÊNIO, José da Costa Brito e TENÓRIO, Waldecy (org.), Milenarismos ontem e hoje, São Paulo: Loyola, 2001: SANTOS NETO, Manoel Antônio dos e DANTAS, Roberto (org.), Os intelectuais e Canudos: o discurso contemporâneo: história oral temática, Salvador, UNEB, 2002; ROSSI, Luiz Alexandre S, Messianismo e modernidade: repensando o messianismo a partir das vítimas, São Paulo: Paulus, 2002. 21 Advogado provisionado, ou advogado dos pobres: profissão sem diploma, muito comum no Nordeste do Brasil, no século XIX. 22 Cf. MONTENEGRO, Abelardo F, Cangaceiros e fanáticos..., p. 116. 23 PINTO, Luis Araújo, O padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil, in: Perspectiva Teológica, Belo Horizonte: n. 93, p. 216, maio/agosto, 2002.
22
1.3.1- Antônio Conselheiro e o Padre Ibiapina
Há uma estreita relação entre Antônio Mendes Maciel e Padre Ibiapina, conhecido como
“apóstolo da caridade”. José Antônio Maria Ibiapina nasceu em 5 de agosto 1806, na cidade de
Sobral, no Ceará. Em 1832, formou-se em Advocacia pela Faculdade de Direito de Pernambuco.
Exerceu, por um curto período, a advocacia e a docência na academia de Olinda. Em dezembro
de 1833, foi nomeado juiz de Direito e chefe de polícia de Quixeramobim, terra de Antônio M.
Maciel. O Doutor Ibiapina chegou a advogar para os Maciéis, período em que Antônio
Conselheiro o conheceu, na região de Quixeramobim.24 Tornou-se famoso pela sua opção de
vida, pautada na verdade, na honestidade e na justiça. Como professor, magistrado, advogado e
deputado geral na legislatura de 1834/37, ficou famoso pela sua competência e seriedade
profissional. No exercício da magistratura, acumulou larga experiência junto às camadas menos
favorecidas do sertão nordestino. Aos 44 anos, em 1850, abandonou a magistratura, comprou
uma casa nos arredores de Recife, onde residiu por três anos, como retirante, dedicado à
meditação, aos exercícios de piedade, às leituras e às atividades manuais. Foi um tempo de
revisão de vida e de parada para repensar o destino. Nesse entremeio, decidiu abraçar o
sacerdócio ministerial, tornando-lhe possível servir ao Reino de Deus como padre diocesano.
Dom João da Purificação, conhecendo suas qualidades humanas e coerência de vida, o dispensou
das formalidades canônicas. Aceitou o pedido de ordenação para ingressar no clero secular.
Houve agilização do processo: “entre as primeiras ordens e a ordenação sacerdotal, transcorreu
pouco mais de um mês – a tonsura se deu a 11 de junho de 1853 e a ordenação, a 3 de julho do
mesmo ano”.25 Em fevereiro de 1854, o novo padre foi nomeado professor de Eloqüência
Sagrada no Seminário de Olinda, lecionando também, História Sagrada e Eclesiástica.
24 MONTENEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros..., p. 112. 25 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil..., p. 202.
23
A vida itinerante do Mestre Ibiapina, iniciou-se em dezembro de 1855, no sertão da
Paraíba. Visitando diversos municípios pobres (como Campina Grande, Pilar, Ingar e Araras)
com a intenção de se encontrar com os pobres atingidos pela cólera, seguindo as pegadas do
Salvador: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção, para anunciar a
boa nova aos pobres. Enviou-me para proclamar aos cativos a libertação...” (Lc 4,18-19). O
sonho de missionar aos pobres, já era realidade. Ainda na Paraíba, em 1866, ele fundou a
primeira Casa de Caridade, conhecida por Santa Fé, no município de Araras. Sua missão tinha
pelo menos dois objetivos: anunciar aos pobres a chegada do Reino de Deus e construir casas de
caridade para socorrer os desvalidos do interior. Para Padre Ibiapina, o Reino de Deus acontece
concretamente onde há solidariedade e partilha dos bens. O amor aos pobres faz parte integrante
da opção de Jesus. Padre Ibiapina sabia harmonizar o material e o espiritual. A pregação era
bastante pragmática: “um chamado a romper o isolamento individualista, no qual se encontrava o
povo, através do testemunho de sua ação social. Nisto residia a diferença entre Pe. Ibiapina e os
missionários tradicionais”.26 Para o teólogo José Comblin, as Casas de Caridade do Padre
Ibiapina eram muito mais do que “obras de caridade”. Concretamente uniu os sertanejos com o
objetivo de encarnar o Evangelho entre os pobres, alertando-os para a união. “As casas de
caridade vão ser núcleos ao redor dos quais o povo se constitui como comunidade organizada.
Trata-se de implantar centros comunitários que vão mostrar a todos uma encarnação visível da
unidade”.27 Para o missionário pai dos pobres, “Evangelizar era unir os desbravadores dispersos,
os pobres desunidos para formarem um só povo”.28 Daí a necessidade de ele construir várias
casas de caridade, escolas, açudes, igrejas, hospitais e cemitérios. “O filão teológico que perpassa
26 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres da Igreja do Brasil..., p. 205. 27 COMBLIN, José, Ibiapina, o missionário, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS (CEHILA), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 123. 28 Ibidem, p. 122.
24
as obras de Ibiapina é de fato o da opção pelos pobres, e esta se expressa na ação civilizatória de
promoção humana motivada pela caridade evangélica”.29
O contato de Antônio Conselheiro com o Padre Ibiapina seria importante para a vida do
Peregrino. José Calazans, estudioso proeminente de Canudos, professor emérito de história da
Universidade Federal da Bahia, afirma categoricamente: “Antônio Conselheiro se aproximou do
notável pregador de missões (Padre Ibiapina), tendo trabalhado como irmão pedinte, angariando
fundos para os projetos de construções do antigo magistrado”.30
A convivência com o missionário dos pobres o torna, de certa maneira, um exemplo a ser
seguido: “mui justamente impressionado com o Pe. Ibiapina, procurou imitá-lo. Na humildade,
no vestuário, no uso do cajado, no combate ao luxo, na preocupação constante de fazer obras.
Como o Pe. Ibiapina, queimava objetos considerados supérfluos”.31 Para Alexandre Otten, a
influência de Padre Ibiapina sobre o Conselheiro se confirma especialmente pelas semelhanças
no pensamento teológico. “Ambos ligam a percepção do pecado com o fato da diluição do mundo
sertanejo tradicional [...], os dois tornaram-se, aos olhos dos seus seguidores, imagens do Bom
Jesus nesta terra”.32 Na concepção de José Comblin, a vida de Padre Ibiapina foi marcada por
uma opção de classe, materializada na opção pelos pobres.33 “O sentido da ação do padre
Ibiapina, como a do padre Cícero, foi político: ele permitiu, mais do que estimulou, a emergência
de um precário projeto popular (mutirão, resolver em comum os problemas) no nível das
instituições”.34 Antônio Conselheiro, ao acompanhar o Padre Ibiapina e aproximar-se de Padre
29 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil... p. 205. 30 CALAZANS, José, O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo da companhia de Canudos, Salvador: Tipografia Beneditina, 1950, p. 44. 31 CALAZANS, José, O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo..., p. 44. 32 OTTEN, Alexandre, Só Deus é Grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro, São Paulo: Loyola, 1990, p. 273. 33 Cf. HOORNEART, Eduardo, Crônica das Casas de Caridade do Padre Ibiapina, São Paulo: Loyola, 1981, p. 13. 34 HOORNEART, Eduardo, Ibiapina e os desclassificados: à procura de uma chave interpretativa da cônica das casas de caridade, in: HOOENAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 83.
25
Cícero, percebeu que poderia engrossar o cordão dos defensores de sua gente. O jeito carinhoso
de o líder maior de Juazeiro receber os pobres e as ações concretas do Padre Ibiapina marcariam a
vida do Peregrino e influenciariam seu pensamento nas andanças pelo sertão brasileiro. Essas
marcas permaneceram encravadas na vida do Peregrino durante suas andanças pelos rincões
sertanejos. Inspirando-se na vida dos dois padres, Antônio Conselheiro percebeu, então, que era
possível encontrar um novo caminho ao lado de sua gente.
1.3.2- Antônio Conselheiro e Padre Cícero
Um outro personagem que influenciou o pensamento de Antônio M. Maciel foi o Padre
Cícero de Juazeiro, nascido aos 24 de março de 1844, no Crato, na Chapada do Araripe cearense.
Cícero Romão Batista, filho de Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, viveu sete
anos no seminário, saindo dali aos 30 de novembro de 1870 ordenado padre, depois de passar
pelo crivo da formação dos padres da Congregação da Missão Lazarista, de origem francesa.35
Após o término dos estudos, o reitor do seminário, o francês Padre Pierre Chevalier,
“desaconselhou a ordenação sacerdotal porque achava Cícero demasiadamente místico, cabeçudo
e por vezes audacioso em matéria doutrinal. No entanto, dom Luís tinha muita simpatia por
Cícero e o ordenou”.36 Logo, ele vai para Juazeiro, onde fica 60 anos, trabalhando com
populações que viviam “numa situação de miséria tal, que não tinham sequer a consciência dos
direitos mais elementares ao ser humano”.37 Andava de povoado em povoado, pregando missões,
celebrando novenas, promovendo terços, procissões e festas religiosas, como um andarilho,
cumprindo um chamado de Deus. Proibia as danças, as bebidas alcoólicas e lutava,
implacavelmente, contra os vícios dos fiéis. Sua vida de pobreza e simplicidade cativava o povo,
35 Cf. BARRETO, Francisco Murilo de Sá, Padre Cícero, São Paulo: Loyola, 2002, p. 14-19. 36 COMBLIN, José, Padre Cícero de Juazeiro, São Paulo: Paulinas, 1991, p. 8. 37 FACÓ, Rui, Cangaceiros e Fanáticos..., p. 136.
26
que procurava seguir as ordens do novo padre. Reuniu um grupo de beatas dedicadas a uma vida
de piedade, ao estudo da doutrina católica e à participação em todos os ofícios e celebrações da
Igreja. Em 1889, o “milagre da hóstia” transformada em sangue, foi marco divisor na vida de
Padre Cícero. Esse acontecimento ocorreu no dia 2º de março de 1889, durante a distribuição da
comunhão. Na missa celebrada antes do café da manhã, em jejum, conforme determinação da
Igreja, uma hóstia que padre Cícero entregou em comunhão à beata Maria de Araújo
“intumesceu, sangrando”, criando um rebuliço no povo de Juazeiro. Na missa de 7 de julho,
Domingo do Preciosíssimo Sangue de Cristo, Mons. Francisco Rodrigues Monteiro, durante a
missa na Igreja Nossa Senhora das Dores de Juazeiro, comentou para mais de três mil pessoas os
fatos extraordinários de “sangue na hóstia”. A multidão que veio ao Crato entrou em delírio. O
povo se multiplicava e aumentavam as súplicas e romarias. Juazeiro crescia e atraía multidões.
Padre Cícero acreditava no milagre e muitas autoridades eclesiásticas também. Por causa do
milagre, o povo migrava para Juazeiro. Segundo José Comblin, “Entre 1890 e 1898, a população
passou de 2.000 a 5.000 habitantes. Em 1905 já era de 12.000 habitantes e em 1909 chegou a
15.000”.38 Em 1911, Juazeiro era emancipada, tornando-se o maior centro urbano do Ceará,
depois da Capital, Fortaleza. O Bispo suspendeu o Padre Cícero de Ordem. Para o povo, o Padre
estava sendo perseguido. “A questão religiosa de Juazeiro abriu uma fenda no coração deste
povo. Tantos estudos sérios, tantos livros, teses só chegaram a uma conclusão – Padre Cícero
ganhou terreno”.39 Para o teólogo Comblin, esse delírio do povo sertanejo foi estimulado pela
fama de Santo que Padre Cícero já tinha. Além disso, é preciso levar em conta que, no interior
do Ceará, a proclamação da República foi acolhida como o fim do mundo. Os republicanos eram
tidos como inimigos e destruidores da Igreja de Cristo – eram anticristos. Maçons e republicanos
38 COMBLIM, José, Padre Cícero de Juazeiro..., p. 18. 39 BARRETO, Francisco Murilo de Sá, Padre Cícero..., p. 33.
27
eram tidos como “filhos do diabo”. “Muitas profecias vieram renovar a convicção de que o fim
do mundo era iminente. Essa mesma fé apocalíptica ia animar Canudos alguns anos mais
tarde”,40 afirma José Comblin.
Juazeiro cresceu rapidamente e passou a ter grande importância no interior do Ceará e
objeto de disputa das oligarquias da região do Cariri. Padre Cícero resolveu entrar na disputa
política. Segundo José Comblin, com o objetivo de “evitar lutas ferozes e sangrentas. Era a única
pessoa capaz de estabelecer certa unidade entre os partidos. De fato, padre Cícero conseguiu
diversos pactos de não agressão entre partidos e coronéis que podiam muito bem ter
desencadeado guerras sangrentas”.41 Padre Cícero ocupou também a vice-presidência do Ceará.
Quando o presidente Cel. Franco Rabelo foi deposto pela revolução de 1924, ele responsabilizou
seu amigo Doutor Floro Bartolomeu pelo acontecido. “Com a vitória da revolução, Padre Cícero
reassumiu o cargo de Prefeito, do qual havia sido retirado pelo governo deposto, e seu prestígio
cresceu”.42 A missão do Padre Cícero na política de Juazeiro não significou novidade, nem
melhoria na qualidade de vida dos menos favorecidos.
Assim, o que Antônio Conselheiro tinha em comum com Padre Cícero era a solidariedade
com o povo sofrido e o desejo de levar a mensagem cristã aos desvalidos e desprotegidos pelo
cruel sistema de marginalização. Entre Padre Cícero e Antônio Conselheiro havia muitos pontos
de desencontro, como veremos a seguir.
1.4- Padre Ibiapina, Padre Cícero e Conselheiro: semelhanças e dessemelhanças
As práticas religiosas de Padre Cícero, Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro foram em
favor dos pobres. Padre Cícero, no entanto, esteve mais atrelado ao poder: beneficiava-se dele e
40 COMBLIN, José, Padre Cícero de Juazeiro..., p.11. 41 Ibidem, p. 25. 42 SITE DO GOOGLE, Biografia do Padre Cícero, acesso em 9 de agosto, 2005.
28
não era capaz de contrariar as práticas e “normas estabelecidas” na política vigente. A chamada
ação social, muito presente na missão de Antônio Conselheiro e de Padre Ibiapina, quase não
aparece na vida de Padre Cícero. Luís Araújo Pinto afirma: “A ação social desse sacerdote (Padre
Cícero) ainda é bastante discutida. Há os que dizem que ele nunca fez nada pela educação de
Juazeiro, nem mesmo quando foi prefeito da cidade”,43 mesmo reconhecendo-se a relação
solidária do Padre Cícero com os pobres, por meio de sábios conselhos44 para a vida prática dos
humildes, tais como curas, higiene, cultivo de plantas apropriadas ao clima, alternativas que lhes
propiciariam conviver em tempos de secas. Para Rui Facó, o apostolado de Padre Cícero se
distinguia dos outros padres: “não cobra em dinheiro os serviços religiosos. É o ponto de partida
da sua popularidade, ao lado, é claro, de certas manifestações místicas coincidentes com as
camadas mais atrasadas da população sertaneja local”.45 Quanto às práticas de muitos padres no
sertão, Euclides da Cunha é implacável: “o missionário moderno é um agente prejudicialíssimo
no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus. [...] sua ação é negativa:
destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos ingênuos”.46
43 Ibidem, p. 219. 44 Cf. INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Almanaque de Canudos 1995, Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 2995, p. 64. São apresentados treze conselhos do Padre Cícero: “1- Cada casa seja um oratório e, ao mesmo tempo, uma oficina; cada quintal, uma horta. 2- Procure adquirir sua moradia. Quem tem uma casa para morar, tem um pedacinho de céu aqui na terra. 3- Não derrube a mata; é ela que atrai a chuva. 4- Não toque fogo na roça, porque senão a terra fica cada vez mais fraca; plante feijão e fava dentro dos garranchos. 5- Prepare o seu roçado. Choveu, plantou; nasceu, limpou; colheu guardou. 6- Não cace por brincadeira, mas para comer. 7- Não crie o boi ou o bode soltos; faça cercados e deixe o pasto descansar para se refazer. 8- Não plante de serra acima, nem faça roçado em ladeira muito em pé, para que a água não arraste a terra e não perca sua riqueza. 9- Nunca plante uma coisa só, varie as culturas. E se uma não der, outra pode dar. 10- Represe os riachos de 100 em 100 metros, ainda que seja com pedras soltas. 11- Plante, cada vez que puder, um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só. 12- Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema. Elas podem ajudar vocês a conviver com a seca. 13- Faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar a água da chuva”. Se o sertanejo obedecer a estes conselhos, a seca irá, aos poucos, se acabando, o gado melhorando, e o povo terá sempre trabalho e o que comer. Mas se não obedecer, dentro de pouco tempo, o sertão todo vai virar um deserto só”. 45 FACO, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 135. 46 CUNHA, Euclides da, Os sertões..., p. 296. Grifo do autor. “E alucina o sertanejo crédulo: alucina-o, deprime-o, perverte-o”. P. 198.
29
Já o Padre Ibiapina, por outro lado, tem uma ação pastoral que vai além da prática de
Padre Cícero. O conhecido Mestre Ibiapina fazia diversas construções para amparar os pobres:
hospitais, casas de caridade, cemitérios, igrejas e várias outras obras com o objetivo de atender
aos desvalidos e abandonados pela política dominada pelos coronéis47, práticas ausentes na
missão de Padre Cícero, que nem sequer passou por essa experiência peregrina junto ao povo,
como aconteceu com Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro. A única vez em que saiu de Juazeiro
foi quando teve que ir explicar-se em Roma acerca de seus supostos milagres. Sua ação foi
restrita a Juazeiro e teve como finalidade dar conselhos ao povo que o procurava. Além de um
bom atendimento pessoal aos pobres, do atendimento sem cobrar dinheiro pelos sacramentos, das
bênçãos, ele dava orientações médicas (ensinava-lhes a preparar remédios caseiros) e dava-lhes
outras orientações simples, porém muito significativas para um povo mergulhado na pobreza, na
ignorância e na mais absoluta miséria. Eram populações desprovidas de quaisquer possibilidades
de levante que pudessem significar interferência na ordem política. Foi acusado de ter adotado
uma pastoral assistencialista. “Seria exigir-se muito de populações marginalizadas secularmente
num tão grande atraso, num isolamento não menor, numa situação de miséria tal que não tinha
sequer a consciência dos direitos mais elementares ao ser humano”48, afirma Rui Facó. Isso não
desmerece a coerência da ação pastoral do Padre Cícero. De fato, a sua única preocupação era a
peleja do dia-a-dia para suprir as necessidades básicas do povo pobre.
47 Para Dom Marcelo Pinto Cavaleira, hoje Arcebispo emérito da Arquidiocese da Paraíba, o povo simples se encantava pelas coisas concretas criadas pelo Padre Ibiapina e se beneficiava do que acontecia: “nos fartos almoços de que todos os pobres participavam em missões do Padre Ibiapina; nos açudes d’água que ele construía em mutirão com o povo do Nordeste, fragelado pelas secas; nas 22 casas de caridade onde acolhia pobres e abrigava órfãs desamparadas, educando-as para a vida; nos hospitais que ele edificava com o povo para recolher os doentes tão numerosos do interior; nos cemitérios para sepultar com dignidade os corpos de tantos mortos, sobretudo no tempo da peste... E o povo pensava também nas Igrejas que o padre Ibiapina, em mutirões, construía nos povoados. Sabendo, sem dúvidas, que esses templos eram marcos vivos não apenas de uma fé devocional, para o povo sempre necessária, mas também de uma fé prática, manifestada nas obras da justiça e do amor fraterno. Ibiapina mostrava bem, em sua ação missionária, como a fé cristã articula inseparavelmente a religião com a vida”. HOORNAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 6. 48 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos... p. 136.
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Diferentemente de Padre Ibiapina e Padre Cícero de Juazeiro, Antônio Conselheiro não se
restringia a um trabalho de apaziguamento das massas como fazia Padre Cícero, nem somente à
criação de Casas de Caridade para amparar os pobres, como era a prática de Padre Ibiapina.
Antônio Conselheiro imprimia práticas religiosas que iam além de tudo isso. Formava uma
comunidade alternativa, instruía o povo na oração, procurava conscientizar o sertanejo para
mudar o sistema agrário e transformar a política coronelista regional. Isso incomodou as elites
agrárias e políticas.49 Esse é o diferencial mais significativo da comunidade do Conselheiro. O
Barão de Jeremoabo não escondia a preocupação com o crescimento da comunidade alternativa
de Canudos e sua proposta inovadora, ao lamentar:
Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal o aluvião de famílias que subiam para Canudos, local escolhido por Antônio Conselheiro para as suas operações. Causava dó ver exposta à venda na feira a extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, além de objetos, por preço nonada como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era vender, apurar dinheiro e ir reparti-lo com o santo Conselheiro.50
O que diferenciava o leigo Conselheiro dos dois padres era sua ação social. De Padre
Ibiapina, o Conselheiro herdou o impulso de construir. Ele levantava igrejas, construía
cemitérios, acolhia os pobres, organizava a comunidade dos “desvalidos” e “sem sorte”. Luis
Araújo, diferenciando o protagonismo dos três missionários, afirmava que a novidade era a forma
como Antônio Conselheiro organizou seu povo, dando “uma resposta à situação de miséria em
que jazia a maioria do povo sertanejo. Foi também uma resposta provocadora à sociedade
opressora republicana, um protesto radical expresso no não-pagamento de impostos e no não-
reconhecimento da República e de sua moeda”.51 Padre Cícero era conhecido como milagreiro.
Padre Ibiapina fazia de tudo para que seu povo não lhe atribuísse esse poder, “sua intenção era,
49 Esse ponto será mais bem desenvolvido no capítulo II, nos itens 2.4: A comunidade Alternativa de Canudos e 2.5: Por que a comunidade de Canudos se constituiu num perigo para a República? 50 Cit in: MONIZ, Edmundo, Canudos: a luta pela terra, São Paulo: Centro Editorial Latino-Americano, 1981, p. 42. 51 JÚNIOR, Luis Araújo Pinto, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil..., p. 219.
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sobretudo, a de que as pessoas se convertessem à caridade, superando intrigas e atendendo aos
mais necessitados”.52
Na concepção de Consuelo Novais, Canudos foi uma comunidade de sertanejos que ousou
criar uma forma própria de organização social, motivo principal que fez a elite política da época
varrer do mapa tal experiência53, que foi criando uma nova estrutura agrária, conforme
aprofundamento a seguir54, na análise da conjuntura política do Nordeste, no final do século XIX.
Os três líderes: Padre Ibiapina, Antônio Conselheiro e Padre Cícero exprimiram as lutas e
esperanças do povo desclassificado pelo sistema. Alexandre Otten afirma que é “provável que
historicamente Pe. Ibiapina tenha aberto a brecha para o Conselheiro. Seguramente influenciou
muito o beato. Este, porém, promove um projeto mais popular”.55 Nesse sentido, eles são
semelhantes, porém, cada um a seu modo e com suas características. Afirmar, além disso, é
projetar as categorias de análises sociais modernas, num momento histórico em que não se
dispunha de tais categorias.
1.5- Contextualização do Nordeste do Brasil no tempo de Antônio Conselheiro
O final do século XIX foi de turbulências política e social. O advento da República,
instalada em 1889, não alterou o desenvolvimento desigual do sertão nordestino, nem resolveu os
problemas na economia. A Igreja vivia o conflito de separação do Estado. O novo regime
republicano não superou os problemas ligados à concentração da terra, ao declínio do ciclo da
cana-de-açúcar, nem amenizou as conseqüências das sucessivas secas. Os fazendeiros,
“verdadeiros donos das terras”, não toleravam manifestações de independência de homens livres,
52 Ibidem, p. 218. 53 Cf. SAMPAIO, Consuelo Novais, Canudos: a construção do medo, in: SAMPAIO, Consuelo Novais (org), Canudos: cartas para o Barão, São Paulo: EDUSP, 2002, p. 31. 54 A natureza da comunidade alternativa de Canudos será abordada no capítulo II, 2.4. 55 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 380.
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de “status” inferior. “A hipertrofia do poder privado e a atrofia do poder político, assevera Costa
Pinto, criavam condições propícias ao aparecimento da vingança privada como modo típico de
controle social”,56 especialmente no que diz respeito à luta pela terra. Na concepção de Rui Facó,
esse monopólio da terra no Brasil, herdado das capitanias hereditárias, e a subseqüente concessão
das sesmarias, deram origem aos latifúndios atuais.57 A defesa da propriedade, ao longo da
história do Brasil, vinha sendo feita, quase sempre “pelos próprios donos da terra”, se não com a
conivência do aparelho do Estado, pelo menos com o silêncio do aparelho estatal. Imperava a “lei
do mais forte”. No sertão, dominado pela ação dos donos das grandes propriedades, valia um
código de honra: “seria humilhante não se desforçar, não exercer vindita. A pressão do grupo
colocava o indivíduo no seguinte dilema: ou vingar-se e provar que respeitava a vontade grupal,
ou não se vingar e excluir-se do grupo”.58 Era a verdadeira lei de Talião.59 As autoridades
consideravam-se impotentes ou, porque não afirmar, condizentes, diante de tal prática.
Constatava-se que, “no sertão, a única força real era a do senhor rural. Havia mesmo um
compromisso do Estado com a casa grande: esta apoiava aquele na defesa de seus interesses,
enquanto o Estado transferia o poder que pudesse à casa grande”.60 Rui Facó vai mais longe: “O
latifúndio se manteve intacto através da Monarquia e não se modificou com o advento da
República, que não tocou num fio de cabelo da grande propriedade territorial”.61 A terra sempre
fora uma questão aguda que vinha se arrastando ao longo da história do Brasil. Mesmo em meio
às reações dos donos das grandes propriedades, houve uma tentativa de interferir na legislação
56 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros, p. 110. 57 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 16. 58 MONTENEGRO, Abelardo F..., Fanáticos e cangaceiros, p. 112 59 No Antigo Testamento, a lei do “talião” era um princípio jurídico segundo o qual a pena deveria ser proporcional à ofensa: “Mas se acontecer dano grave, pagarás vida por vida, olho por olho, dente, por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, contusão por contusão” (Ex 21,23-25). Cf. também Lv 24,19 e Dt 19,21. No Brasil do final do século XIX, a justiça era feita pela elite rural, pelos coronéis e pelos barões. O povo era simplesmente desprotegido com a quase total ausência do Estado. 60 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 110. 61 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 128.
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sobre a terra, não com o objetivo de democratizá-la, mas com o intuito de acolher os imigrantes,
conforme o que segue:
Para fortalecer a imigração e aumentar o trabalho agrícola, importa que seja convertido em lei, como julga vossa sabedoria, a proposta para o fim de regularizar a propriedade territorial e facilitar a aquisição e cultura das terras devolutas. Nessa ocasião resolvereis sobre a conveniência de conceder ao governo o direito de desapropriar, por utilidade publica os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais.62
Somente a partir de 1940, com os primeiros planos de reforma agrária, lançados pelo
Estado sem muito progresso que se percebe o desejo de mudanças na ordem agrária do País. As
décadas de preparação para a proclamação da República foram marcadas por muitas tensões e
crises. De 1864-1870, guerra do Paraguai; 1870-1889, o declínio da Monarquia. “O que mais
caracterizava a Monarquia era o predomínio, em todos os níveis, dos interesses dos grandes
proprietários de terra, de escravos e de capitais em prejuízo das camadas populares”.63 O poeta
popular sintetiza bem a situação: “O Nordeste desta época/ era mais agonia/ pesado pela
República/ Morto pela Monarquia/ Milhares de nordestinos/ abandonados viviam”.64 Os conflitos
eram intensos. As transformações políticas e sociais iniciaram-se em 1850 e chegaram ao século
seguinte, sem que se encontrassem soluções para minorar os problemas sociais.
O movimento pela abolição da escravatura deságua na assinatura da Lei Áurea, em 13 de
maio de 1888. Além das pressões sociais contra o sistema escravocrata, este não respondia mais
aos interesses das elites rurais. No final do século XIX, o Nordeste foi marcado pelo “incremento
do banditismo, do fanatismo religioso e pelo desânimo dos grandes proprietários que se
desinteressavam com a sorte da Monarquia [...], à beira da efervescência revolucionária”.65 O
sistema imperial estava com os dias contados. O império monárquico não gozava mais de
62 FALAS DO TRONO, 1889, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. 63 CASALECCHI, José Enio, A Proclamação da República, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 8. 64 VIOLÃO, Zequinha do, cit. in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, uma história de luta e resistência, Paulo Afonso: Fonte Viva, 1993, p. 8. 65 MONTEIRO, Hamilton de Matos, Nordeste insurgente: 1850 – 1890, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 23, 30.
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legitimidade. Liberais e conservadores atacavam impiedosamente o imperador. “O Estado erigido
sobre os escombros das revoltas de 1817, 1824, Balaiada, Sabinada, Cabanagem, Farroupilha e
a Revolução Praieira de 1848 já não mais atendia às necessidades decorrentes da conjuntura do
final do século XIX”.66
Com relação a esse momento, o Economista Celso Furtado constata que dados das duas
últimas décadas do século XIX apontam um crescimento da população nordestina em cerca de
80%, enquanto a renda real gerada pelo setor exportador não ultrapassou 54%.67 Em fins de 1879,
a população indigente, no Ceará, ultrapassava a casa dos 300 mil. Outras 300 mil pessoas haviam
morrido ou emigrado.68 A grande seca de 1877/1879 desencadeou ações dos grupos de
cangaceiros mais famosos do século XIX: os Brilhantes, os Variatos e Calangros. Como
conseqüência das secas, aumenta o número de óbitos no Ceará e nas outras províncias
sacrificadas pelo flagelo causado pela estiagem, como a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Nesse
mesmo período, cresce a migração com destino à Amazônia. Levas e levas de infelizes
procuravam a todo custo sobreviver à fome, sem querer aventurar-se aos seringais do Norte.69
As rebeliões nordestinas anunciavam transformações na ordem política e econômica que
não aconteciam. “Os conservadores eram defensores da Monarquia, da centralização do poder, da
administração e instituições do Império”.70 As reformas liberais não apontavam para um cenário
político que pudesse superar os conflitos. “Os liberais pretendiam reformas: extinção do poder
moderador, do senador vitalício, a descentralização do poder, o Conselho de Estado, reforma
eleitoral, etc.”.71 Nota-se que não havia propostas significativas que alterassem, por exemplo, o
conflito agrário e a crise econômica.
66 VILLA, Marco Antônio, Canudos e o povo da Terra..., p. 90. 67 Cf. FURTADO, Celso, Formação econômica do Brasil, São Paulo: Nacional, 1974, p. 147-149. 68 BRASIL, Tomás Pompeu de Sousa, O Ceará no cenário da Independência, v. I, Fortaleza: 1922, p. 231. 69 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 132. 70 CASALECCHI, José Enio, A proclamação da República..., p. 18. 71 CASALECCHI, José Enio, A proclamação da República..., p. 18.
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A monocultura da cana-de-açúcar, principal alavanca da região Nordeste, estava em
declínio. Investia-se na cultura do café em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e no
plantio da seringueira, na Região Norte, para onde se deslocou o centro dos interesses
econômicos. Do ponto de vista político e econômico, o Nordeste foi perdendo paulatinamente sua
importância. A nova economia exigia mão-de-obra especializada. O País estimulou a imigração,
“tendo-se em vista a necessidade de serem atendidos os interesses da lavoura cafeeira,
amplamente processada de braços (...) pelas alterações resultantes da recente abolição da
escravatura”.72 O Norte, o Sul e o Sudeste, para onde se voltavam os interesses econômicos,
recebiam os imigrantes.73 Nesse período, as eleições eram cartas marcadas: “Os governadores
impunham seus candidatos, (...) transformando as eleições em ato formal e confirmatório dos
acordos da oligarquia. Isso não significava inexistência de conflitos intra-oligárquicos”.74
O Nordeste era carente de lideranças significativas. Cada um se “salvava como podia”. É
nesse contexto de um Nordeste em chamas que Antônio Conselheiro chegou para organizar o que
não interessava às elites: o povo. A Igreja também passava por grandes transformações, que
interferiam no processo político e social, com deficiências na hierarquia eclesiástica, o que fazia
com que o povo criasse sua própria religiosidade, como veremos a seguir.
1.6- A conjuntura eclesial
Com a proclamação da República (1889), a Igreja separou-se do Estado. O processo
conflituoso de independência acarretou algumas perdas. O Estado criou o casamento civil,
assumiu a administração dos cemitérios, etc. A Igreja católica já vivia em conflito com o sistema
imperial. A questão religiosa se arrastou de 1872 a 1875, período no qual foram presos os bispos
72 VIANA, Hélio, História do Brasil: Monarquia e República, São Paulo: Melhoramentos, 1974, p. 293. 73 Cf. Ibidem, 294-295. 74 VILLA, Marco Antônio Villa, Canudos, o povo da terra..., p. 113-114.
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de Olinda, Dom Vital e do Pará, Dom Macedo Costa. Esse conflito foi conseqüência do
regalismo dominante na política imperial, da própria situação ambivalente em matéria religiosa
gerada pela instituição do regime de padroado, do qual se beneficiavam os próprios bispos, em
termos de sustentação econômica de suas respectivas igrejas.75 D. Manoel Joaquim da Silveira,
arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, saiu em defesa de um de seus colegas que havia sido
preso, com uma declaração publicada no Diário de Notícias.76 A Igreja do Brasil vivia o reflexo
do que acontecia na Europa. A Barca de Pedro estava agitada pelos ventos do liberalismo que se
confrontava com as decisões da Igreja. Thales de Azevedo documentou a repercussão do conflito
no Brasil entre Igreja e Império, nestes termos:
Nos primeiros anos 70 do período imperial, ressoava na Bahia – aparentemente só nos jornais – a questão religiosa que envolveu os bispos D. Vital de Oliveira, de Pernambuco, e D. Antônio de Macedo Costa, do Pará. Sucede que o primeiro, uma vez pronunciado, foi preso, e ao ser levado para a Corte sob custódia de um general, e acompanhado por seu secretário, esteve no porto da Bahia a bordo da corveta de guerra Recife, sendo transferido para o transporte Bonifácio em que, ao cabo de três dias, prosseguiu viagem. Segundo instrução do governo central, o presidente da Província fez por evitar quaisquer manifestações na cidade, as quais, ao que se pode presumir dos noticiários, não se tentaram. Importa registrar que somente o arcebispo primaz, Dom Manoel Joaquim da Silveira, frustrado seu pedido para hospedar o colega, teve autorização para visitar D. Vital na companhia de seu secretário e de algumas outras pessoas; estas teriam sido um religioso franciscano, representações da Associação Católica, seminaristas e estudantes de medicina, entre os quais Manoel Vitorino Pereira (vide Diário de Notícias); porém, a não ser seu secretário e o referido franciscano, todos os demais impedidos de subir a bordo, limitando-se a permanecer na pequena embarcação que até lá levava, onde saudaram o homenageado. O periódico Crônica Religiosa, que acompanhava aqueles acontecimentos, com editoriais e notícias, protestou.77
75 Cf. AZZI, Riolando, A Sé Primacial de Salvador: a Igreja Católica na Bahia (1551-2001), Período imperial e republicano, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 18-19. 76 “Nós, D. Manoel Joaquim da Silveira, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Arcebispo da Bahia, metropolitano e primaz da Brasil, conde de São Salvador, do Conselho de S. M. o Imperador: Visitando nas águas da capital desta arquidiocese o nosso muito colega e irmão, o Exmo e Revmo. Sr. Bispo de Olinda, D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, que segue para a Corte do Império preso por ordem do governo imperial, e reconhecendo a injúria que se faz com esse ato à sua sagrada pessoa, e se arroga à Igreja Católica, e a todo o seu episcopado, especialmente o do Brasil; protestamos solenemente perante os fiéis de toda a Santa Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, com especialidade os deste Império, e perante o mesmo governo de S. M. o Imperador, contra essa violência, que tão cruelmente fere os sentimentos católicos e toda a população, do mesmo Império. Bahia, 8 de janeiro de 1874. Arcebispo. Conde de São Salvador”. Cit in: Ibidem, p. 20-21. 77 AZEVEDO, Thales, A guerra aos Párocos, Salvador: EGBA, 1992, 65-66.
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Nesse período, as idéias do ultramontanismo influenciavam o pensamento conservador e
agitava as elites letradas da Bahia. Em 1871, o Concílio Vaticano I definiu o dogma da
infalibilidade do Papa, segundo o qual, o Sumo Pontífice é infalível toda vez que proferir
decisões, não somente em questão de fé, como também no domínio moral, acerca da religião com
a sociedade, da Igreja com o Estado, e até das instituições nacionais.78 Portanto, cabe a “todos os
católicos uma submissão absoluta e sem reservas; cumpre-lhes respeitá-las no falar e no proceder.
Daqui vem que, aos olhos do ultramontanismo, é completamente monárquico o poder do papa
sobre a Igreja, e não conhece nem tolera limites”.79 Logo veio a reação dos intelectuais com
tendência esquerdista. O livro O Papa e o Concílio do teólogo alemão J. J. Von Döllinger foi
traduzido por Rui Barbosa e tornou-se uma obra que “pode ser considerada como um
complemento da questão religiosa, mediante a denúncia do ultramontanismo”.80 O debate entre o
clero ultramontano e os intelectuais liberais prolongou-se até as últimas décadas do período
imperial. Hugo Fragoso apresentou o contexto mais amplo em que ocorreu a questão religiosa:
Esta questão religiosa representou o clímax do conflito entre a Igreja ultraconservadora (ultramontana) e o liberalismo, representado de maneira especial pela maçonaria. Tal conflito revelou que a aliança entre Altar e Trono era como um casamento híbrido: matrimônio de uma Igreja conservadora com um Estado liberal. Este fermento liberal-maçônico era também um fator de desagregação da monarquia, pois, em última análise, era aquele uma extensão da ideologia republicana”. Todo esse conflito (ultramontano versus liberais) era uma transplantação de um conflito maior que agitava a Europa, sob cuja influência ideológica estavam nossos políticos e nossos homens da Igreja. Sobretudo, refletia-se no Brasil, o que se passava na Itália em revolução pela unidade nacional, em conflito com a Igreja de Pio IX. Também aqui no Brasil tivemos o eco desse ‘grito’ na luta entre a maçonaria e a Igreja.81
78 Dois novos dogmas foram proclamados: 1) O primado de jurisdição do Papa: o Papa é a instância suprema da Igreja, não há outra instância superior a quem se possa apelar. Compete ao sumo Pontífice a “plenitude” e não somente a “primazia”, como opinava o galicanismo. A Sé apostólica e os sucessores de Pedro, vigários de Jesus Cristo detém a plenitude do poder em questão de fé, de costumes, de organização e de governo de toda a Igreja. Neste sentido, o Papa está acima do próprio Concílio; 2) A infalibilidade do magistério solene do papa: Essa “verdade” de fé é decisiva de todo serviço à unidade da Igreja. O que for determinado pelo papa deve ser seguido por todas as igrejas particulares. Mesmo aceitando as novas decisões solenes do romano pontífice, houve críticas no campo teológico. Um maior aprofundamento desse tema cf. MARTINA, Giocomo, História da Igreja, de Lutero aos nossos dias: III – a era do liberalismo, São Paulo: Loyola, 1996, 147-286. 79 Ibidem, p.51. 80 AZZI, Riolando, A Sé Primacial de Salvador..., p. 21. 81 FRAGOSO, Hugo, Cadernos de restauração, I, Salvador, EPSSAL, 1993, p. 11-12.
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A conhecida atitude antiliberal de Pio IX, a partir de 1850, aumentou o abismo entre
Igreja e a Era Moderna, de um lado, e da real ameaça política aos Estados Pontifícios, de outro.
Em 1864, Pio IX publicou o Silabo, documento magisterial polêmico, que fazia uma síntese dos
erros mais comuns do laicismo que se alastrava. O Silabo criou um forte rebuliço entre os
próprios teólogos, bispos, e teóricos da modernidade. O referido documento papal, julgado por
muitos como condenação pontifícia a todas as formas de liberalismo, atingiu não somente o
liberalismo imanentista e radical, como também o liberalismo católico, despertando reações de
teólogos que adotavam uma postura de diálogo com os modernistas.
A Igreja no Brasil vivia um processo de romanização. Ocorria, assim, uma política de
hierarquização amparada nas decisões romanas, com o objetivo de formar bispos e sacerdotes
obedientes às regras vindas de Roma, distintas do povo e do modelo do catolicismo popular luso-
brasileiro. Eram duas modalidades de catolicismos. Se, por um lado, o sertão vivia um
catolicismo popular, predominantemente laical, das novenas, procissões, e sem muito “controle”
da hierarquia – que fazia aliança com o governo imperial - por outro, surge um novo projeto
pastoral para a Igreja do Brasil, que se preparava para enfrentar o liberalismo cuja característica
principal era o anticlericalismo. “É a Igreja que se fecha sobre si mesma para organizar-se e,
posteriormente, reiniciar a luta no campo político; é a época dos bispos reformadores”.82
Riolando Azzi descreveu as características desse novo modelo de Igreja entre os sertanejos,
afirmando que ele é romano, clerical, tridentino e sacramentalista, com a finalidade do controle
hierárquico sobre a vida religiosa dos fiéis. Os bispos fazem, então, uma opção por uma
europeização das Igrejas Particulares, como forma de obediência às ordens emanadas da Cúria
Romana.
A formação européia recebida por grande parte dos bispos reformadores em São Sulpício, na França, ou em Roma, e as novas congregações européias que se estabelecem no país
82 PINHEIRO, José Francisco, Dependência e marginalidade, in: HOORNAERT, Eduardo e DESRECHERS, Georgette (org.), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 49.
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passam a pesar fortemente na Igreja do Brasil [...] Os novos valores religiosos importados da Europa trazem todas as marcas do romanismo, ou seja, de uma declarada vinculação com a Cúria Romana.83
Três grupos de missionários se destacavam entre os sertanejos: os lazaristas franceses que,
posteriormente, assumiram a função nos seminários; os padres diocesanos que exerciam forte
influência na organização das missões, e os capuchinhos italianos, identificados fortemente com
o povo do sertão.84 Esses “novos institutos religiosos trazem novos santos, novas devoções, novas
práticas religiosas que, progressivamente, se sobrepõem à vida do catolicismo tradicional”.85
Mesmo com as iniciativas de apoio aos pobres, como construções de casas de caridade,
mutirões comunitários, sacramentalização, etc., a Igreja Católica não respondia às reais
expectativas do povo. “O sertanejo, por sua vez, é vítima de um contato fugidio, mecânico,
formal, sempre apressado, irregular e, afinal de contas, pouco orgânico por parte da Igreja oficial.
Por isso, ele cria um cristianismo próprio, alimentado pelas santas missões”.86 A migração
provocada pela crise dilacerava a estrutura familiar, criando uniões fora do casamento e outros
problemas pastorais.87 Havia um dúbio comportamento do clero. “Os vigários não correspondiam
ao ideal do caboclo: não praticavam nem a pobreza, nem o desprendimento, nem a castidade e
muitas vezes nem a caridade”.88 A chegada de um padre numa localidade “é um horror para o
pobre, rapa todo o dinheiro”, 89afirma o beato Pedro Batista. A agitação política, a crise de
valores, os problemas do clero, a separação entre a Igreja e o Estado, a implantação do projeto de
romanização aumentam ainda mais a insegurança do sertanejo, “entregue ao Deus dará”.
83 AZZI, Riolando, O episcopado brasileiro frente ao catolicismo popular, Petrópolis: Vozes, 1977, p. 112. 84 Cf. HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil, Petrópolis: Vozes, 1990, p. 50-51. 85 AZZI, Riolando, O episcopado brasileiro frente ao catolicismo popular..., p. 115. 86 Ibidem, p. 49. 87 Cf. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo: Alfa-Ômega, 1977, p. 327. 88 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 317. 89 Cit. in: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O Messianismo no Brasil e no mundo..., p. 317.
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O povo foi criando uma experiência própria, a partir da religiosidade popular, com
características especiais, alimentada pelas Santas Missões. A Igreja oficial atendia aos fiéis
ocasionalmente, ora quando o padre diocesano aparecia para as desobrigas, ora quando os
missionários chegavam para as Missões ocasionais, que se constituem num método reconhecido
pelo Concílio de Trento no século XVI, para atingir populações rurais mal assistidas pelo sistema
paroquial. Esse método foi usado “por jesuítas, carmelitas ou franciscanos do século 17 e
primeira metade do século 18, oratorianos portugueses e capuchinhos italianos, lazaristas
franceses e grupos de sacerdotes seculares do tipo Ibiapina ou Herculano”.90 As idéias de Trento
começaram a ser aplicadas no Brasil no final do século XVIII e no início do século XIX. A
romanização do catolicismo brasileiro se realizou em oposição ao sistema do Padroado, centrado
em Lisboa, a partir da segunda metade do século XIX. Nesse período, as Santas Missões criaram
dinamismos que perduram até hoje.
O cristianismo trazido pelos missionários portugueses continha misturas de conteúdos.
Junto com os sacramentos e as devoções aos santos, apareciam as grandes pregações sobre o céu,
o inferno e o purgatório. O povo abraçou esse cristianismo devocional, segundo Eduardo
Hoornaert, de caráter penitencial, sacramentalista, profundamente social e laical. Era um
cristianismo que trazia o medo, como método para conquistar adeptos. As marcas deixadas pelas
Santas Missões eram inesquecíveis para o povo pobre.91 Por onde a hierarquia eclesiástica foi
90 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil…, p. 49. 91 Eduardo Hoornaert chama a atenção para a influência dos dias de missões para o povo. Para ele, “as Santas Missões tiveram igualmente um aspecto profundamente social, não só no sentido de unir o povo que normalmente vivia tão isolado nas imensidões do sertão, mas sobretudo realizando obras de máxima importância para as comunidades interioranas, como pontes, estradas, canais de irrigação, açudes, cemitérios, igrejas, tanques, ou cacimbas. Uma obra que marca em todo canto a realização das Santas Missões é o cruzeiro erguido em mutirão na praça central da cidade. (...) Podemos dizer que as Santas Missões eram momentos de ‘administração popular’ da coisa publica e que elas desta forma contribuíram muito para criar no povo um senso comunitário e público. Isso tanto é verdade que se dizia dos missionários que eles eram os verdadeiros ‘governadores’ do povo sertanejo, e eles em conseqüência disso recebiam missões oficiais por parte de um governo que não se aventurava em penetrar no interior, por exemplo, a missão de apaziguar o povo em momentos de revoltas e rebeliões, como no caso de Canudos, onde Frei João Evangelista de Monte Marciano atuou como conciliador entre o povo de Canudos e o governo da Bahia”. Ibidem, p. 52.
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construindo “igrejas e catedrais, conventos e mosteiros, a devoção construiu uma multiplicidade
de santuários que vão desde os santuários domésticos (os oratórios com enorme variedade de
santos) até os centros de romarias que hoje congregam milhares e milhares de devotos”.92
Sabemos que a “devoção freqüentemente é marginalizada socialmente, mas eclesialmente ela
pode apresentar documentos de veracidade insuspeita. Ela constitui um legítimo modelo
eclesial”.93 Eduardo Hoornaert fala em duas forças sociais que modelaram o modo de pensar dos
brasileiros no final do século XIX: “a força da instituição oficial (a missão) e a devoção”.94
A fé do sertanejo foi motivada por orações, benditos, procissões e novenas aos santos.
Esse catolicismo popular e devocional não era exclusividade do leigo, embora ser leigo fosse uma
característica marcante. Faziam parte dessa corrente de espiritualidade os padres Cícero de
Juazeiro, Ibiapina e outras lideranças como Pedro Batista, em Santa Brígida e o Beato Lourenço,
em Pau de Colher, que exerceram forte influência na vida religiosa e social do sertanejo, a partir
do final do século XIX, até nossos dias. O século XIX foi fértil no cultivo de conselheiros e
beatos.95 Eles participavam ativamente das Santas Missões, eram confirmados pelo povo, a partir
do envolvimento nas atividades religiosas, como responsáveis pela continuidade dos trabalhos,
após a despedida dos missionários. A realização das missões tornava-se verdadeira escola prática
de lideranças leigas que continuavam os trabalhos nas comunidades sertanejas, especialmente
aonde o padre diocesano demorava a retornar. Os momentos de mutirões, celebrações,
confissões, casamentos comunitários, bênçãos, pregações e benditos das missões funcionavam no
92 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil...,p. 67. 93 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil..., p. 67. 94 HOORNEART, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil..., p. 67. 95 CALAZANS, José, Quase biografia de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro, Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA, 1986, p. 13: “Ao beato cabia a missão de tirar rezas, contar ladainhas, pedir esmolas para as obras da Igreja. O Conselheiro ia além disso, porque, mais bem preparado sobre os temas religiosos, pregava, dava conselhos”.
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imaginário religioso do sertanejo como uma avalanche de conteúdos, no processo da
continuidade dos trabalhos, agora coordenados pelas próprias lideranças leigas.
Antônio Conselheiro, vivendo nesse contexto, fez parte dessa experiência popular do
catolicismo sertanejo que, mesmo com a chegada da romanização, continua existindo até hoje. Os
grandes centros de romarias no Nordeste, como as romarias de Canudos, da Juventude em
Adustina, Patamuté, Bom Jesus da Lapa e Senhor do Bom Fim, na Bahia; Nossa Senhora Divina
Pastora, em Sergipe; Juazeiro e Canindé, no Ceará; Zumbi dos Palmares, em Alagoas e outros
pequenos centros de romarias alimentam essa religiosidade.96
1.7- De Antônio Vicente Mendes Maciel a Antônio Conselheiro: história de um
Beato Conselheiro
Inicialmente, é preciso considerar a figura do beato e da beata no sertão nordestino do
século XIX. Eduardo Hoornaert define o beato como um “Tipo de cristão engajado na ‘via
peregrina’ ou no cristianismo itinerante. É também chamado ‘devoto’ ou ‘romeiro’. Foi
marginalizado pela romanização”.97 Esta estabeleceu as grandes linhas postas em prática pelos
bispos reformadores, de formação européia: ela é romana, clerical, tridentina e sacramentalista.
Tudo devia ser enquadrado no “institucional” e dentro das normas do Direito Canônico. Padre
Ibiapina, por exemplo, teve que orientar a vida religiosa de suas beatas, à revelia das orientações
vindas de Roma.98 Hugo Fragoso fez um paralelo entre as irmãs de Caridade do Padre Ibiapina e
as irmãs trazidas pelos bispos reformadores. Aquelas, além de serem nativas, tinham o pé no chão
do próprio Nordeste; estas, porém, estavam ligadas às instituições religiosas, tinham a cabeça
96 Um excelente estudo sobre o discernimento da fé foi feito por Pedro Rubens. Cf. BUBENS, Pedro, Discerner la foi dans des contextes religieux ambigus: enjeus d’ une théologie du croire, Paris: Cerf, 2004. 97 HOORNAERT, Eduardo, O Cristianismo Moreno do Brasil..., p. 170. 98 Cf. FRAGOSO, Hugo, As beatas do Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa para os sertões do Nordeste, in: HOORNAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org.), O Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres..., p. 85-106.
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voltada para a Europa e faziam parte do projeto de romanização.99 As Beatas do Padre Ibiapina
“teriam mais o cheiro do sertão sem ranços de academismos; teriam mais o sabor dos interiores
nordestinos sem gosto de frutas estrangeiras”.100 As “Irmãs de Caridade podem ter sido
excogitadas como uma tradução sertaneja das SOEURS DE CHARITÉ DE SAINT VINCENT
DE PAUL”.101 Nessa época, as beneméritas Filhas de São Vicente estavam chegando da França,
solicitadas zelosamente pelos bispos reformadores, “para desenvolverem suas atividades nas
capitanias e grandes centros urbanos. Ao invés disso, Padre Ibiapina plantou suas beatas lá no
mato, onde vivia todo um povo desamparado”.102
Antônio Vicente conhecia a mística dos Beatos e Beatas do Nordeste. Primeiro, ele é um
Beato, seguidor dos missionários e puxador de rezas; quando recebe o título de Conselheiro é
com uma missão específica. “Parece que se sente obrigado a pregar. Por nenhum preço larga suas
prédicas”.103 Conselheiro é aquele que fala, que dá conselhos. Um penitente ou Beato não prega.
Nos três anos, de 1871 a 1874, não se têm notícias seguras sobre o paradeiro de Antônio
Vicente. Foi esse o período em que ele rompeu com os laços familiares e sociais, abandonou as
necessidades materiais e fez uma intensa experiência religiosa,104 como um verdadeiro peregrino.
Ouviu o chamado do Senhor, à semelhança de João Batista, pregador no deserto da Judéia:
“Convertei-vos, porque o Reino do Céu está próximo” (Mt 3,2) e do Padre Ibiapina. Aliás, o
distanciamento estratégico da sociedade e da família, foi uma prática implantada pelo próprio
Cristo e inspirou diversas práticas ao longo da história da Igreja: “Quem tiver a própria vida
99 Cf. FRAGOSO, Hugo, As Beatas de Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa nos sertões do Nordeste..., p. 94-101. 100 FRAGOSO, Hugo, As Beatas de Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa nos sertões do Nordeste..., p. 94. 101 FRAGOSO, Hugo, As Beatas de Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa nos sertões do Nordeste..., p. 95-96. 102 FRAGOSO, Hugo, As Beatas de Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa nos sertões do Nordeste..., p. 96. 103 OTTEN, Alexandre, Só Deus é Grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 145. 104 Também, antes ser ordenado sacerdote, o Mestre Ibiapina passou um tempo retirado, preparando-se para uma vida de intensa missão. Quanto a Jesus, o Espírito o conduziu ao deserto para ser tentado pelo diabo. Foi durante a experiência do deserto, que Jesus superou as tentações. Cf. Mt 4, 1-11; Mc 2, 12-13; Lc 4,1-13.
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assegurada perdê-la-á e quem perder a vida por minha causa vai achá-la” (Mt, 10,39) ou, ainda:
“E todo aquele que houver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do
meu Nome, receberá muito mais e, em herança, a vida eterna” (Mt 19,29).105
A essa altura, a vida itinerante já tinha se consolidado. Durante suas andanças pelo Sul do
Ceará, em Paus Brancos, em direção do Crato, “fere com ímpeto de alucinado, à noite, um
parente, que o hospeda. Fazem-se breves inquirições policiais, tolhidas logo pela própria vítima,
reconhecendo a não-culpabilidade do agressor”.106 Euclides da Cunha fala que Antônio V. Maciel
desapareceu por um período de dez anos, de todo esquecido107, sem que houvesse notícias
confirmadas. Manoel Benício fala em seis anos sem notícias de Maciel. Em 1865, ele esteve na
pequena cidade cearense de Campo Grande e, em seguida, visitou a ex-mulher, a quem
recomendou, pela ultima vez, o filho. “É provável que, engrossando o número dos peregrinos que
acautelavam os missionários, ele atravesse os sertões do Norte até a Bahia, nesta data do seu
desaparecimento do Ceará, 1867 a 1868”.108 Em 1873, foi encontrado em Itapicuru, Estado da
Bahia. Para Euclides da Cunha, Antônio Vicente percorreu os sertões de Pernambuco e apareceu
na cidade sergipana de Itabaiana em 1874. De fato, o jornal semanário O Rabudo, da cidade
sergipana de Estância, noticiou sua passagem por Sergipe, na edição de 22 de novembro de 1874,
qualificando-o de Antônio dos Mares. Euclides da Cunha traça as características do andarilho
Antônio, durante a passagem por Sergipe. Era um desconhecido, suspeito e trajes esquisitos:
camisolão azul, sem cintura, chapéu com abas largas e derrubadas, e sandálias. Levava nas costas
105 Ao longo da história do cristianismo, desde Jesus, passando pela Europa Medieval, quando “alguém decidia tornar-se um pregador itinerante, ortodoxo ou dissidente, muitas vezes começava por afastar-se para uma floresta, vivendo durante algum tempo como eremita. Durante esse período de retiro ascético, adquiria o poder espiritual para a sua missão, podendo, ainda adquirir também a fama de santo e atrair os seus primeiros seguidores”. COHN, Norman, Na senda do milênio, Lisboa: Presença, 1981, p. 35. Isso aconteceu com Antônio Vicente. Possivelmente, Padre Ibiapina tenha sido exemplo. 106 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 114. 107 Ibidem, p. 214. 108 BENÍCIO, Manoel, O rei dos jagunços: crônicas históricas e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos..., p. 22.
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um surrão de couro, com papel, pena e tinta, dois livros intitulados a Missão Abreviada e as
Horas Marianas.109
Ataliba Nogueira defende a tese segundo a qual, a partir do fechamento do comércio por
falta de vocação e da fuga da mulher, que fugiu com João da Mata, furriel da força pública da
província, Antônio mudou inteiramente a vida e sentiu-se livre para realizar seu sonho de
missionar junto aos sertanejos desvalidos. É a partir desses episódios que ele entrou numa crise
aparentemente profunda. Alexandre Otten entende que a crise pessoal “se torna, tudo indica, seio
para uma vida nova. Começaria uma nova fase na vida de Antônio. Ele perambula pelos sertões
como peregrino penitente”.110 Ataliba Nogueira divide a história de Antônio Vicente em duas
etapas bastante distintas.111 A primeira, foi um período de profunda instabilidade, migração,
mudança de empregos e atividades em locais diferentes. Desde a liquidação da casa comercial,
ascendeu a profissões de maior status: escrivão, solicitador e advogado provisionado. Há os que
supõem que ele procurava a mulher e seu sedutor para uma possível vingança, por terem
maculado a honra de sua família. “Não há outra explicação para a vida andeja. Sua presença é
notada em muitos pontos do Ceará. Tudo, porém, em vão. Não os encontrou nunca”.112 É uma
hipótese que não tem consistência. Talvez a hipótese mais provável seja a crise econômica que
produzia uma leva de migrantes em busca de sobrevivência. Antônio fazia parte dessa leva. Na
segunda etapa de sua vida, após comprovação de sua competência e criatividade, ele passou a
construir cemitérios, capelas e igrejas, com muita eficiência. Nessa fase, o Andarilho passa pelos
sertões baianos de Curaçá, estacionando-se em Chorrochó (1877), cuja movimentada feira
juntava a maioria dos habitantes dos lugarejos do Médio São Francisco. O autor de Os sertões
109 Cf. CUNHA, Euclides da, Os sertões..., p. 217. 110 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 144. 111 Cf. NOGURIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 5-6. 112 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 5.
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adjetivava as Igrejas, construídas por Antônio Vicente, de “Capela Elegante”,113 como é o caso da
Igreja de Chorrochó, que existe até hoje.
O Jornal de Notícia114 da capital baiana publicou um artigo de Durval Vieira Aguiar, de
26/6/1893, no qual constatava a forte liderança do Conselheiro, seguindo “sertão adentro”
acompanhado por um enorme séquito, gente inofensiva que só se assanhava em defesa do
Conselheiro. Ele atraía para si as mesmas honras, as mesmas práticas e o mesmo apoio dos
missionários. Ele “aconselha o casamento, os batizados, as orações e os bons costumes, se bem
que em linguagem menos correta”.115 O professor José Calazans reconhece que nenhuma outra
pessoa, diante dos volumosos problemas dos sertanejos, tenha prestado maiores serviços aos
pobres como Antônio Conselheiro.116 Em 1893, um jornal de Salvador noticiou que um certo
Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido por Antônio Conselheiro, acompanhado de um
numerosíssimo séquito, “faz pregações públicas sobre religião, a modo das missões feitas por
capuchinhos ou lazaristas nas paróquias rurais”.117 Por essa altura, sua popularidade era
incontestável. Alguns serviços que o Estado e a Igreja não conseguiam realizar, Antônio
Conselheiro os fazia com o povo em mutirões. É claro que isso criaria conflitos com a Igreja
instituição e o ineficiente Estado, como veremos na seqüência deste trabalho.
113 Cf. CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 222. O Peregrino, “De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos, chegando mesmo até o litoral, em Villa do Conde (2887). Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado onde não tenha aparecido. Alagoinha, Iambupe, Bom Conselho, Jeremoabo, Cumbe e outros, viram-no chegar acompanhado da frândula de fiéis. Em quase todas deixava um traço de passagem: aqui um cemitério arruinado, além uma igreja renovada; adiante uma capela que erguia, elegante sempre”. Ibidem, p. 222-223. 114 Um bom documentário sobre o papel da imprensa na cobertura da Guerra de Canudos, cf. GALVÃO, Walnice Nogueira, No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais, 4ª expedição, São Paulo: Ática, 1974. 115 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 150. 116 CALAZANS, José, Antônio Conselheiro: construtor de Igrejas e cemitérios, in: Revista Brasileira de Cultura, 26 (1973), p. 71. 117 Jornal de Notícias, Salvador, 16/6/1893.
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Conclusão
O primeiro acesso à Guerra de Canudos, após mais de cem anos do final do
acontecimento, continua sendo o clássico Os Sertões, de Euclides da Cunha. Antes de escrever
Os Sertões, Euclides da Cunha tratou, pela primeira vez, da Guerra de Canudos no artigo A nossa
Vendéia, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 24 de março de 1897, motivado pelo
revés sofrido pela Expedição Moreira Cezar, no enfrentamento com os seguidores de Antônio
Conselheiro, como se verá com mais detalhe na segunda parte desta pesquisa. Porém, como se
pode perceber neste primeiro capítulo deste trabalho, há uma série de novos autores que ampliam
a visão de Os Sertões. Criticam-no ele e vão muito além de sua visão marcada pela filosofia
positivista e pelos condicionamentos próprios de um jornalista que acompanhou as tropas
oficiais. Isso, evidentemente, não desmerece o papel fundamental de Euclides da Cunha e a
qualidade literária de Os Sertões, mas redimensiona essa grande obra da literatura brasileira.
Pode-se perceber, a partir da releitura histórica da Guerra de Canudos,118 dados que não
são encontrados no referido autor como, por exemplo, a data correta do nascimento de Antônio
Conselheiro, a superação de certos preconceitos no que diz respeito ao povo nordestino, tratado
de raça inferior ou sub-raça, etc.
Mesmo sem ter oportunidade de passar por um maior aprofundamento formal nos estudos,
Antônio Conselheiro teve uma formação consistente, capaz de assumir com clareza uma opção de
classe, ameaçar a República e questionar a prática dos cristãos, especialmente da alta hierarquia
eclesiástica. Canudos não foi uma Igreja paralela, nem um movimento de revoltosos no seio da
Igreja Católica, mas uma voz profética, inspirada pelo próprio Espírito de Deus, capaz de formar
uma Comunidade de irmãos, cuja orientação maior era a Palavra de Deus (a Bíblia Sagrada) e os
118 Uma releitura da Guerra de Canudos, foi feita por Vargas Llosa, cf. LLOSA, Mario Vargas, A Guerra do fim do mundo: a saga de Antônio Conselheiro na maior aventura literária do nosso tempo, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
48
ensinamentos da Igreja. Antônio Conselheiro não era contra a Igreja, mas reagia a certas práticas
de muitas lideranças eclesiásticas, que se beneficiavam do padroado, distanciando-se cada vez
mais do verdadeiro sentido da fé cristã.
Com a crise econômica, política e social do final do século XIX, Antônio Conselheiro
ocupou um espaço significativo, junto às classes menos favorecidas dos sertões nordestinos. Ele
experimentou na vida familiar a luta pela terra, que causou perdas significativas no seio de sua
família. Além disso, sua conversão à missão religiosa foi uma arma poderosa, tanto para suas
convicções pessoais, quanto para sua aceitação no meio dos pobres. Nesse sentido, ter participado
das missões com o Padre Ibiapina, assegurou-lhe a facilidade necessária para entender as massas,
trabalhar com elas e responder às suas reais aspirações. Para o povo, não havia alternativas nem
no campo político e econômico e, tampouco, na dimensão religiosa. A Igreja oficial estava
distante dos reais interesses das classes menos favorecidas, tentando resolver a crise do padroado,
como forma de se preparar para enfrentar sua independência financeira e política. O movimento
de Canudos foi a via possível, para atingir tal fim num momento de crise social. A romanização
se contrapôs ao Catolicismo Popular, causando desdobramentos, tanto para a classe política,
quanto para a Igreja institucional, o que aprofundaremos no próximo capítulo.
49
CAPÍTULO II
UNIVERSO RELIGIOSO DE ANTÔNIO CONSELHEIRO
Este capítulo é consagrado a uma apresentação da natureza concernente ao universo religioso do
principal fundador da comunidade de Canudos, Antônio Conselheiro. A descrição do universo
religioso da comunidade de Belo Monte1 será feita a partir de fontes deixadas pelo próprio
Conselheiro, com o auxílio de elementos da própria historiografia sobre o fato Canudos,
especialmente de autores que optaram pela revisão histórica do referido acontecimento. Não se
esgotam todas as questões apresentadas para a compreensão da Comunidade belo-montense:2
surgimento, organização, destruição, a função das elites rurais, políticas, religiosas e o papel do
Estado brasileiro no episódio que mais preocupou o mundo político e a própria Igreja Católica,
no alvorecer da República, início da década de 1890.
Antônio Conselheiro não chegou a Canudos por acaso. A organização de sua comunidade
foi fruto do planejamento e efetivação de um projeto religioso, com dimensão claramente
política. Há estreita relação das dimensões política e religiosa no projeto do Peregrino. Muitos
estudiosos afirmam que o religioso aparece em Canudos como passo necessário para chegar a
fins políticos e econômicos. O que revelou a prática do Peregrino? Ele foi um agente político ou
procurava implantar o reino de Deus na terra? A nossa proposta parte da experiência de Canudos.
A motivação foi de ordem meramente político-social ou de natureza religiosa? Paira uma dúvida
1 Além de Canudos, a comunidade que abrigou o povo peregrino, liderado por Antônio Conselheiro, também foi batizada por Belo Monte. No Estado de Alagoas há uma pequena cidade chamada Belo Monte. Porém, provavelmente Antônio Conselheiro tenha se inspirado no mundo bíblico, na Jerusalém do Alto, ou na Terra Prometida. 2 Euclides da Cunha batizou a vila conselheirista como a “Jerusalém de Taipa”.
que não foi totalmente esclarecida ao longo dos estudos históricos, antropológicos e teológicos.
Procuraremos analisar essa questão, ao longo deste segundo capítulo.
2.1- As fontes do projeto de Antônio Conselheiro
Sempre houve controvérsias entre os estudiosos de Canudos quanto ao caráter do seu
movimento. Para uns, o movimento de Canudos foi exclusivamente político: Antônio
Conselheiro teria como objetivo derrubar a República. O aspecto religioso seria apenas uma
apropriação do sagrado com a finalidade de fortalecer o projeto político-transformador de
Antônio Conselheiro e sua gente, no sertão brasileiro. Para outros, o discurso teológico tem
incidência política, mas a ciência teológica tem seu objeto próprio de pesquisa, distinto da ciência
política. O discurso teológico tem impacto político transformador. A revelação de Deus é
histórica e é recebida pelo homem, num determinado contexto histórico. O Deus cristão escuta os
clamores de seu povo e vem libertá-lo (cf. Ex 3,7-9).
Não é tão simples fazer uma distinção entre os interesses políticos e religiosos, mesmo
sabendo, de antemão, que são coisas distintas, e com implicações às vezes mútuas. Reduzir o
campo religioso-teológico ao sociopolítico, provoca uma espécie de confusão semântica. Reduzir
atrapalha a compreensão da relação entre o religioso e o sociopolítico, suas mútuas implicações e
as devidas especificidades. Faz-se necessário superar os preconceitos dicotômicos, os enfoques
reducionistas, a interpretação puramente positivista, segundo a qual o conhecimento teológico é
um estágio pré-filosófico, o filosófico, pré-científico e o científico, o estágio mais avançado e
definitivo da vida humana e que, portanto, os conhecimentos teológicos e filosóficos devem ser
superados, para se estabelecer a era da ciência positiva. A interpretação de Canudos recebeu
influência dessa visão cientificista.
51
Desde o início da teologia da esperança de J. Moltmann (1964),3 passando pela teologia
política de J. Baptist Metz (1928)4 e a teologia da libertação de G. Gutiérrez (1968-72?)5, tanto no
âmbito da produção teológica católica quanto na da protestante, a reviravolta política da teologia
vem procurando um diálogo com as várias ciências, especialmente políticas e sociais. Essa
possibilidade nasce nos encontros do jovem teólogo católico J. B. Metz, com seu mestre Karl
Rahner. A partir daí, Metz usou a expressão “teologia política”, com a elaboração de um novo
projeto teológico, publicado no livro Sobre a teologia do mundo, em 1968. Por essa altura, o
pensamento Europeu já havia superado o dogmatismo positivista. Entretanto, foi a teologia
latino-americana da libertação que melhor se serviu das ciências sociais e políticas como
instrumentais teóricos para uma melhor compreensão das realidades históricas. Isso nunca
significou fusão semântica. Toda reflexão teológica, conservadora ou progressista, tem dimensão
sociopolítica de mudança ou de preservação do “status quo”. Para ser coerente com o Deus dos
cristãos, a reflexão teológica leva o cristão à transformação de sua vida pessoal e social. A
religião tem um papel importante e, em alguns casos, preponderante na transformação social.
Os historiadores e os sociólogos de filiação marxista, ao adotarem a revisão histórica,
afirmam que Antônio Conselheiro fundou uma comunidade socialista e sua inspiração foi
predominantemente marxista. Eles não encontram documentação histórica para sustentar essa
tese. Mesmo reconhecendo que “Antônio Conselheiro imaginou a criação de uma comunidade
3 Cf. MOLTMANN, Jürgen, Teologia de la esperanza, Salamanca: Sígueme, 1969 e MOLTMANN, Jürgem, Il Dio crocifisso: la Croce di Cristo, fundamento e critica della teologia cristiana, Brescia: Queriniana, 1973. 4 São duas obras clássicas de Metz, sobre a teologia política: METZ, Johann Baptista, Sulla teologia del mundo, Brescia: Queriniana, 1969 e La “Teologia Política” in discussione, in: Debattito sulla “teologia política”, Brescia: Queriniana, 1971, p. 231-276; METZ, Johann Baptista, Sulla teologia del mundo, Brescia: Queriniana, 1969. 5 Cf. GUTIERRZ, Gustavo, Teologia della liberazione: perspectivas, Brescia: Queriniana, 1971. Esta obra apresenta o conteúdo programático para uma teologia propriamente latino-americana da libertação. G. Gutiérrez formula com clareza seu projeto como um novo modo de fazer teologia e não como um tema a mais. Segundo J. B. Libanio, “A proposta teológica de Gutiérrez fundamenta-se num trípode: a intenção de valorizar a teologia como reflexão crítica sobre a praxes; o papel da coletividade dos pobres e fiéis como objeto e destinatário original na história, na Igreja e na teologia; e a articulação entre libertação histórica e salvação divina”. LIBANIO, João Batista, Gustavo Gutiérrez, São Paulo: Loyola, 2004, p. 13.
52
em que prevalecesse a igualdade cristã dos primeiros séculos da nossa era”,6 Edmundo Muniz
afirma ser Antônio Conselheiro “um socialista utópico, que tentou organizar uma comunidade
igualitária. Há uma profunda semelhança entre as suas idéias e as idéias de Thomas Münzer tais
como Engels as apresenta”.7 E vai mais além: “Ninguém, realmente pode duvidar do socialismo
de Antônio Conselheiro que foi reconhecido por muitos de seus contemporâneos. [...] Apesar de
se apegar aos Evangelhos, o movimento que desencadeou no interior da Bahia teve mais um
caráter social do que religioso”.8 Para justificar sua tese, atribui a Antônio Conselheiro o uso da
Utopia de Tomás More [Thomas Morus]9 pois na experiência de Canudos, existiu “a fusão das
idéias que promoveram, no campo, os levantes igualitários dos séculos XVI, XVII e XVIII com
as utopias do renascimento e do século XIX”. 10 Quando Edmundo Moniz afirma: “Apesar de se
apegar ao Evangelho”, o movimento de Canudos “teve um caráter mais social do que religioso”,
ele não fundamenta sua afirmação. Mais na frente, até admite, falando sobre o Conselheiro: “Não
tinha nem tivera nenhuma ligação política com os monarquistas. Defendera Canudos sem seu
auxílio, apenas com seus próprios recursos”.11 Ao contrário, a literatura usada por Antônio
Conselheiro e a prática de vida da Comunidade do Belo Monte12 não confirmam essa versão. A
6 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 30. 7 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 264. “Sua doutrina política procede diretamente do seu pensamento religioso revolucionário e adiantava-se à situação social e política de sua época, da mesma forma que sua teologia também ia além das idéias e conceitos existentes... Em seu programa, o resumo das reivindicações plebéias aparece menos importante do que a antecipação genial das condições de emancipação do elemento proletário que acabava de aparecer entre os plebeus. Tal programa exigia o estabelecimento imediato do reino de Deus, da era milenária de felicidade tantas vezes anunciada pela volta da Igreja às suas origens, e pela supressão de todas as instituições que se achassem em contradição com este cristianismo que se dizia primitivo e que, em realidade, era sumamente moderno. Segundo Münzer, porém, este reino de Deus não significava outra coisa senão uma sociedade sem diferença de classe, sem propriedade e sem poder estatal independente e alheio aos seus próprios membros. Todos os poderes existentes que não se conformassem com a revolução seriam destruídos. Tornavam-se comuns os trabalhos e os bens, estabelecendo-se a igualdade completa”. Ibidem, p. 264-265. 8 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos, p. 265. 9 Cf. MORE, Thomas, A Utopia, São Paulo: Nova Cultural, 2004. 10 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 30. 11 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 255. 12 A comunidade, organizada por Antônio Conselheiro, recebeu diversas designações ao longo da vida: Canudos, a Comunidade de Canudos, a Comunidade do Belo Monte, a Comunidade do Belo Monte de Canudos, a Comunidade do Bom Jesus, a Comunidade de Antônio Conselheiro, a Comunidade igualitária de Canudos, a Comunidade solidária de Canudos, etc.
53
tese fundamental de Alexandre Otten inverte a afirmação de Edmundo Moniz. A vida da
Comunidade de Canudos gravita em função da religião.
A vida apostólica será o berço da nova comunidade [...] A entrada no arraial era ligada à conversão. Não bastava o batismo cristão. Para pertencer aos fiéis do Bom Jesus, ao povo do Conselheiro, era necessário converter e emendar-se, aderir e professar a ‘verdadeira Religião’ [...] Devem seguir minuciosamente a lei de Deus [...] A conversão e a vida nova exprimem-se também no apelo do beato de viver uma vida santa [...] A religião predominava em tempos de paz [...] regulava a vida social e econômica. Com esse regime a comunidade de Belo Monte se situava fora do espaço do domínio do Estado, do coronel e da Igreja oficial.13
Marco Villa também sai em defesa do caráter predominantemente religioso do
movimento nordestino, ao afirmar: Edmundo Moniz, “seguindo a tradição do marxismo
brasileiro, desconsiderou a influência religiosa como se a religião fosse somente um invólucro
que encobrisse as razões de ordem material. Assim, a religião não passa de uma interpretação
desfocada da realidade”.14 Moniz imputou “a Antônio Conselheiro aquilo que ele nunca foi e
tudo indica que nem pretendeu ser. Sua insistência em tentar provar que a leitura de A utopia de
Thomas Morus tenha servido de inspiração para fundar Belo Monte é um grande equívoco”.15
Uma análise mais cuidadosa da citação de Thomas Morus, presente nos manuscritos de Antônio
Conselheiro, indica que ela se deu num contexto exclusivamente religioso, e não serve como
fonte para afirmar o uso ou manuseio de A Utopia, no projeto político de Canudos. Comentando
os chamados Textos extraídos das escrituras, Antônio Conselheiro se refere a Thomas Morus
como vítima dos protestantes, na Inglaterra, e não no contexto político. O professor Calazans não
concorda com a tese da utilização do referido texto de Thomas Morus. Não “há nada que indique
haver o Conselheiro lido a obra de More. A nosso ver, essa é mais uma dedução infundada para
tentar mostrar que Canudos foi planejada como sociedade igualitária”.16
13 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 345-347. 14 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 237. 15 VILLAS, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 237. 16CALAZANS, José, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos controvertidos do episódio de Canudos, in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS - BLOCH, Didier (org.) Canudos, 100 anos de produção:
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É fato. O povo sertanejo não precisou importar do além-mar modelo de transformação
social. A bem da verdade, não se tem conhecimento da circulação dessas idéias nos sertões
pobres e desprovidos de condições econômicas e educacionais. “A razão do surgimento, da
existência e da resistência de Canudos deve ser encontrada no mundo sertanejo, nas relações
sociais, na vivência religiosa e na luta cotidiana pela sobrevivência. Não cabe incluir Canudos na
linha evolutiva seqüencial das revoluções ocidentais”.17 Aliás, não se pode desconhecer a
dimensão solidária da cultura sertaneja, as práticas de mutirões, esmolas, ajudas entre os pobres,
o sistema de compadrio, e outras formas de ajuda mútua em tempo de necessidades. Dessa
espécie de “comunitarismo, produto da tradição sertaneja, dependia a vida de milhares de
desvalidos em uma área pobre em recursos naturais”,18 e não da transladação de experiências
extemporâneas ao povo sertanejo.
Seguindo a mesma linha de interpretação marxista de Edmundo Muniz, Rui Facó defende
semelhante tese na obra clássica Cangaceiros e Fanáticos, afirmando: “A epopéia de Canudos
ficará em nossa história como um patrimônio das massas pobres do campo e uma glória do
movimento revolucionário pela libertação”.19 E acrescenta: “os fenômenos do messianismo ou
misticismo, que se convencionou chamar de fanatismo, disseminados pelos sertões em nosso
passado ainda recente, têm um fundo perfeitamente material e servem apenas de cobertura a esse
fundo. É uma exteriorização”.20 Marco Villa não comunga com os historiadores e sociólogos de
filiação marxista. Eles procuraram interpretar o movimento de Canudos sob a ótica marxista.
Sendo assim, “a religião nunca passou de uma fachada que encobria as razões de ordem material:
era a falsa consciência. Curiosamente, assim como o Estado brasileiro nunca soube reconhecer e
vida cotidiana e economia dos tempos do Conselheiro até os dia atuais, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1997, p. 44. 17 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 237-238. 18 VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo da terra..., p. 237. 19 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 122. 20 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 9.
55
conviver com a diferença, esses pesquisadores agiram da mesma forma”.21 Parece grave não
reconhecer a originalidade no movimento de Canudos. Os marxistas não admitem algo próprio e
capacidade revolucionária, a partir das próprias condições do homem sertanejo, como se a
referida experiência tivesse sido uma cópia autenticada de outros modelos revolucionários
antecedentes. O “entendimento de Canudos por aquilo que realmente foi era tão complexo e
exigia tamanha invasão analítica que optaram por ignorar estas especificidades, preferindo repetir
a cantilena de que a religião não passa de uma ideologia típica de movimentos pré-políticos”,22
desconsiderando-se a força histórica do povo da Bíblia, das comunidades primitivas e do próprio
movimento em questão.
Interpretar o movimento de Canudos como uma experiência de lastro predominantemente
materialista e de inspiração marxista, desmerece o potencial revolucionário do estilo de vida do
povo sertanejo, da influência da Bíblia Sagrada na vida da comunidade de Belo Monte,
especialmente as fontes utilizadas por Antônio Conselheiro, tais como os livros do Êxodo, os
quatro evangelhos, os Atos dos Apóstolos e outras obras de autores religiosos, que serão
analisadas a seguir.23
Não parece sustentável a tese segundo a qual o líder maior de Canudos tenha usado outras
obras de cunho mais político que religioso. Levando-se em consideração o estilo de vida interno
da comunidade belo-montense, não se pode afirmar que Canudos foi uma experiência coletivista.
“Não é plausível afirmar que Canudos era uma comunidade socialista. [...] havia propriedade
privada, a acumulação privada de parte dos lucros e desigualdades sociais”.24 José Calazans
prefere afirmar: “Se Canudos não foi uma sociedade igualitária, ele foi, sem dúvidas, uma
21 VILLA, Marco Antônio, Canudos: a luta pela terra..., p. 238-239. 22 VILLA, Marco Antônio, Canudos: a luta pela terra, p. 239. 23 A importância do uso da Bíblia e de outras publicações no projeto religioso de Antônio Conselheiro, serão objeto de análise ainda neste capítulo. 24 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 237.
56
sociedade solidária – não devemos confundir solidariedade com socialismo”.25 Calazans afirma
haver
diversos documentos, escritos e orais relatando que Antônio Conselheiro recebia bens e dinheiro de pessoas abastadas e os redistribuía. Em Canudos, o mutirão era prática comum. Também, podia-se plantar na terra dos outros e os necessitados eram atendidos pelas esmolas, feitas muitas vezes em gêneros (feijão, farinha, etc.)”26
Canudos, então, não foi uma comunidade socialista nos moldes marxistas, mas uma
experiência solidária, com características sertanejas e inspiração cristã. O sertanejo sempre portou
marcas de solidariedade e ajuda mútua. No Nordeste, adotar criança pobre ou de pai e mãe
desconhecidos, com o argumento de “onde comem nove, comem dez”, mutirões entre os pobres
para construção de pequenas casas, capinar roças, comprar ou fazer remédios das ervas para
pessoas carentes, etc. são práticas corriqueiras do povo ainda hoje. Essa forma de vida na
comunidade do Conselheiro pode encontrar explicações na própria experiência do povo e não em
filosofias, muito mais presentes na mente de intelectuais, do que no cotidiano do povo pobre.
Isso, no entanto, não inviabiliza a identificação de elementos do marxismo ortodoxo na
comunidade de Antônio Conselheiro. Ao narrar a vida interna de Canudos, Maria Isaura de
Queiroz sustenta a tese segundo a qual toda ela ostentava características religiosas. Em Canudos
havia um conjunto de regras bem definidas, apoiadas em um substrato de crenças religiosas.
Quanto a Antônio Conselheiro, “vemo-lo ocupado em resolver também questões práticas da vida
diária, solucionando problemas socioeconômicos e políticos, além de desenvolver seu papel de
chefe religioso e de enviado divino”.27 Para Maria Isaura de Queiroz, o “destino terrestre” era
levado muito a sério pelo Conselheiro, que instituíra uma série de normas destinadas a
regulamentá-lo, a fim de que realmente em Canudos se realizasse o Paraíso Terrestre”.28 E
25 CALAZANS, José, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos controvertidos..., p. 44-45. 26 CALAZANS, José, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos controvertidos..., p. 44. 27 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo: Alfa-Omega, 1977, p. 236. 28 QURIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 236.
57
acrescenta, ainda: “Tais instituições ou são copiadas da sociedade rústica circundante, ou surgem
devido a problemas novos que a predominância grande da religião, a vontade do líder e a
aglomeração de povo em quantidade, criavam”.29 Prevaleciam características religiosas quanto às
formas de organização, encontros comunitários, celebrações e procissões. É o que demonstra nas
conclusões do sério estudo de Otten: “A partir da biografia de Antônio Vicente Mendes Maciel,
ressalta-se o fato de que ele foi, não obstante o choque das interpretações proferidas por amigos e
inimigos, uma personalidade marcada pela religião”,30 e não pela política, ainda que esta tenha
sido uma dimensão fundamental do seu projeto de inspiração religiosa. Os textos usados por
Conselheiro, em quase sua totalidade, foram religiosos. Isso é possível provar a partir da análise
de documentos usados. Alexandre Otten confirmou a tese da sociologia religiosa, segundo a qual
o berço dos movimentos religiosos de protesto social seria o catolicismo rústico. Por isso, a
motivação de Antônio Conselheiro foi impulsionada pela sua espiritualidade.31 A Bíblia Sagrada,
autores da Patrística, citações de vários santos, e de outros pensadores cristãos demonstram que o
Conselheiro esteve mais familiarizado com a literatura religiosa que com autores do campo
político ou sociológico.
2.1.1- Alcance e limites da interpretação marxista
Reconhece-se, inicialmente, a interpretação marxista da história como um legado da
sociologia contemporânea. Não se poderia fazer uma análise sociológica profunda das realidades
históricas, nem entender a existência e os reais interesses das classes sociais nas relações do
trabalho sem se usar o instrumental teórico da análise marxista. Com a teoria da mais-valia, Marx
29 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 236-237. 30 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 201. 31 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro...p. 202. No capítulo quarto dessa obra, Otten confirma, sociologicamente, a tese segundo a qual Antônio Conselheiro teve motivações religiosas. Cf. p. 203-355.
58
percebeu a causa da exploração capitalista, mostrou as contradições internas do capitalismo e a
força revolucionária do proletariado. Mediante as “teorias do valor do trabalho e da mais-valia,
Marx interpreta o capitalismo como um sistema de exploração do trabalhador pelo capitalista, o
qual guarda para si a mais-valia criada pelo primeiro”.32
A sociologia marxista, como instrumental teórico, contribuiu para a compreensão do
conflito dos protagonistas da República com os movimentos de resistência em todo o Nordeste,
especialmente o de Canudos. Ela identificou, na prática da comunidade de Canudos, elementos
do comunismo primitivo, a exemplo de Rui Facó, ao assumir o testemunho narrado por Euclides.
A “apropriação pessoal de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das
pastagens, dos rebanhos e dos produtos das culturas, cujos donos recebiam exíguas cota-parte
revertendo o resto para a companhia”.33 São visíveis os elementos da prática coletivista dos bens,
conforme apontam com tanta propriedade Rui Facó e Edmundo Moniz, ao interpretarem Canudos
no viés marxista. Antônio Conselheiro, com certeza, não conheceu a teoria do marxismo
ortodoxo, porém sua prática revela sintonia com as idéias do autor do “manifesto comunista”.
Rui Facó não acreditava que o potencial revolucionário do povo de Canudos fosse capaz
sequer de identificar o inimigo da luta, quanto mais de mudar o sistema semifeudal baseado nas
grandes propriedades rurais, causa principal de todo o atraso no campo:
Naquele atraso medieval, a reação da classe potencialmente revolucionária – os semi-servos da gleba – é de nível correspondente das forças produtivas: uma reação primária em que o inimigo de classe não é percebido claramente, em que as desgraças parecem cair do céu, como castigos, e é mesmo necessário implorar as bênçãos do céu, em que o individualismo campesino prevalece e a solidariedade grupal é bem limitada.34
José de Souza Martins rejeita o evolucionismo mecânico apresentado por interpretação
que leva em conta uma força de “fora” ou de “cima” para tornar o movimento camponês
32 Marxismo, In: BRUGGER, Walter, Dicionário de filosofia, São Paulo: EPU, 1977, p. 258. 33 Cit. in: FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 97. 34 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 43.
59
legitimamente político, como se houvesse algo pré-determinado, em uma seqüência evolutiva e
determinista. O “messianismo, como aconteceu em Canudos e no Contestado; banditismo social,
como aconteceu no Nordeste com Antônio Silvino e Lampião; associativismo e sindicalismo,
como aconteceu com as Ligas Camponesas e com os sindicatos dos trabalhadores rurais”.35 A
religião seria suplantada pela política. Para J. de Souza Martins, é “significativo que o movimento
messiânico e o movimento sindical se entrecruzem com freqüência, sem causar nos seus
participantes o mesmo choque que tal cruzamento causa nos guardiães da pureza política das
lutas populares”.36
Mais problemática ainda para os marxistas ortodoxos é a questão da religião. Quando Rui
Facó e Edmundo Moniz escreveram sobre Canudos, a religião continuava sendo “ópio do povo”,
como “parte da superestrutura da realidade econômica” ou, ainda, superável pelo
desenvolvimento da ciência positiva. Não seria possível detectar qualquer outro capital
revolucionário, capaz de promover a verdadeira libertação.37 No caso de Canudos, a motivação
religiosa seria apenas uma tendência natural das massas rurais espoliadas, em determinadas
condições, para criar uma religião própria, que lhes servisse de instrumento em sua luta pela
libertação social, como o cristianismo foi, em seus primórdios, religião de escravos e proletários
da época. Nesse tempo, não havia estudos do catolicismo popular do pós-concílio, especialmente
os realizados na década de 1970 e o potencial libertador das CEBs. Autores como Alexandre
Otten e Eduardo Hoornaert reconhecem que é preciso uma leitura mais sistemática da mensagem
religiosa de Antônio Conselheiro, para superar certos mitos sobre a religião do povo (catolicismo
popular), quase sempre tratada como se fosse uma seita.38 Canudos não pode ser reduzido a uma
seita! Para Hoornaert, “a própria construção do imponente edifício de uma igreja nova, logo em
35 MARTINS, José de Souza, Os camponeses e a política no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1982, p. 27. 36 MARTINS, José de Souza, Os camponeses e a política no Brasil..., p. 30. 37 Docunto de Puebla (DP), 281. 38 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Os anjos de Canudos: uma revisão histórica..., p. 122-125.
60
1893, quando o povoado se organiza, e na qual toda a comunidade se empenha, é um sinal do
modelo-igreja existente no imaginário dos canudenses”.39
João B. Libanio afirma que a religiosidade popular é “o elemento mais importante para a
vida cotidiana do pobre e lhe dá resistência, coragem, esperança, futuro. Ela tem força enorme em
fazer a verdadeira face de Deus, como um Deus da vida e também em desqualificar muitos
projetos, como verdadeiro ‘sindicato da morte’”.40 Quando os autores marxistas ofereceram suas
publicações sobre o ocorrido em Canudos acreditava-se que a “evolução intelectual iria suplantar
o papel da religião, a função desta é limitada e será superada”.41 Ela não passa de elemento
ideológico da “superestrutura” e “ópio do povo”. Rubens Alves sintetiza essa mentalidade, ao
afirmar: “A religião, como reflexo invertido, como efeito, é reduzida à insignificância. Dedicar-se
à investigação da religião implica um perigoso desvio teórico e prático [...] Por que não
abandonar a religião, simplesmente, e atacar o problema das relações de produção numa
abordagem frontal?”.42
Para Rui Facó a religião não pode ocupar o foco principal em Canudos e os que o fazem é
por motivos ideológicos:
Não é por acaso que historiadores, mesmo os mais honestos, exageram o misticismo religioso dos habitantes de Canudos e o transformam no móvel único de sua luta. Procuram assim esconder as causas que a geraram, os verdadeiros motivos de sua resistência maravilhosa e de suas arrancadas heróicas: a opressão semifeudal do latifúndio, a miséria e a fome, frutos da posse monopolista da terra por uma minoria de grandes fazendeiros. Desta forma, tratam também de amesquinhar a resistência inquebrantável dos homens de Canudos diante da esmagadora superioridade das forças armadas com que os governos representantes dos latifundiários tentavam esmagá-los.43
39 HOORNAERT, Eduardo, Os Anjos de Canudos: revisão histórica..., p. 122. 40 LIBANIO, João Batista, I- Panorama da teologia da América Latina nos últimos anos – 1999; II- Teologia da libertação (textos inéditos: destinados a uma enciclopédia italiana), 2001, p. 40. Belo Horizonte: agosto 2002. Apostila mimeografada. 41 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 66. 42 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 64. 43 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 120.
61
Mesmo com essa insistência de Rui Facó em focar os motivos da resistência dos
canudenses exclusivamente a partir do viés material: opressão feudal do latifúndio, a miséria e a
fome, etc., pergunta-se: a força da resistência da comunidade de Canudos foi somente de ordem
material? A mística religiosa não teve papel relevante? Porque Antônio Conselheiro insistiu tanto
na espiritualidade, com orações diárias e catequese sistemática? Se o próprio Rui Facó reconhece
que Antônio Conselheiro nunca cogitou filiação política,44 não seria interessante um estudo
imparcial sobre o papel da religiosidade popular, na formação da mística que sustentou a
resistência do povo de Canudos? Para os cristãos, os “mártires latino-americanos, de fato, foram
mortos por defender a mesma causa de Jesus, o reino de Deus para os pobres, e foram
ameaçados, perseguidos e mortos pelo anti-reino. [...] Não são mártires da Igreja, embora vivam e
morram na Igreja, mas mártires do reino de Deus, da humanidade”.45 Analisando o
relacionamento do Conselheiro com fazendeiros da região, E. Hoornaert observa: “nos esquemas
marxistas fica incompreensível: diversos fazendeiros ajudavam o povoado de Canudos, com
lealdade e franqueza. O relacionamento entre o Conselheiro e os habitantes de Canudos era
decerto paternalista e hierárquico”.46 Porém, sem perder a dimensão ética. Com isso, não se deve
descartar a análise marxista. Ao contrário. Os autores de filiação marxista deram uma
contribuição incomensurável ao episódio de Canudos. Frei Beto costuma dizer: “O comunista é
cristão sem saber e o cristão é comunista sem querer”. Pode haver sintonia, especialmente nos
aspectos que os unem.
Finalmente, o que ocorreu em Canudos, especialmente no “mundo simbólico”, não pode
ser mensurado pelas ciências sociais. No que diz respeito aos atos celebrativos, à vivência da fé, à
invocação do bom Jesus, às práticas de penitência, à salvação como iniciativa de Deus, que exige
44 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 84. 45 SOBRINO, Jon, Jesus, o Libertador: I- a história de Jesus de Nazaré..., p. 385. 46 HOORNAERT, Eduardo, Os anjos de Canudos: uma revisão histórica..., p. 99.
62
resposta humana: com a palavra a teologia. Compreender, portanto, Canudos hoje, exige do
pesquisador interdisciplinaridade, especialmente entre História, Sociologia, Antropologia,
Teologia, Psicologia e Arqueologia.
2.1.2- A utilização da Bíblia Sagrada
A Bíblia Sagrada exerceu grande influência na vida da comunidade de Canudos. Serviu
para fundamentar a luta dos conselheiristas, como primeira e mais importante fonte de inspiração
do Conselheiro. Há uma longa discussão sobre a utilização da Bíblia na organização da
comunidade canudense. Antônio Conselheiro copiou trechos do livro do Êxodo, o Evangelho de
Mateus, partes das Cartas de São Paulo e do livro do Apocalipse de São João. Esse fato,
possivelmente, se deu pela dificuldade de o cristão leigo de ter acesso ao Livro Sagrado. Não se
tinha facilidade de adquirir um exemplar da Bíblia. Daí uma das explicações da necessidade de
copiar partes do Livro Sagrado. É provável que Antônio Conselheiro não possuísse um exemplar
da Bíblia, mas que a tenha pedido emprestado para transcrever ou copiar trechos de maior
utilização nas suas prédicas. O professor José Calazans, especialista no assunto, julga provável
que o Cônego Agripino, vigário de Itapicuru, muito próximo do Conselheiro, tenha emprestado
muitas vezes a Bíblia a ele, para a transcrição de partes da Palavra de Deus. Já para Edmundo
Moniz, Antônio Conselheiro sempre teve consigo a Bíblia. As prédicas estão marcadas por
citações diretas do Livro Sagrado. “Além de um destaque à figura de Paulo e aos evangelhos, no
manuscrito inédito, são várias as histórias bíblicas narradas pelo Conselheiro, e no meio delas,
[...] há um alongamento sugestivo sobre os episódios do êxodo e dos inícios do povo de Israel”.47
47 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terras das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo monte..., p. 214.
63
A Bíblia não parece confirmar argumentos de forma apologética, como poderia ser praxe. Temas
bíblicos são transformados em reflexões e conselhos para o povo, de forma natural e prática.
Um estudo amplo e de bastante qualidade sobre a utilização da Bíblia por Antônio
Conselheiro foi feito por Pedro Lima. “O recurso da Bíblia nessas circunstâncias teve
implicações profundas: impactou na definição de territórios, na nomeação e qualificação de
lugares, na estigmatização ou engrandecimento de pessoas e instituições”.48 É possível perceber,
por exemplo, no contato com seus manuscritos que a “ seleção do material bíblico encontrada em
alguns cadernos que levam o nome de Antônio Conselheiro não é fortuita, e configura a visão que
ele imprimia ao vilarejo que liderava”.49 A Bíblia não é um livro neutro. Seu uso evidenciou o
“confronto entre o Conselheiro e seu povo, de um lado, e a instituição eclesiástica com seus
missionários e as forças republicanas, do outro... aliados, aqui, não têm necessariamente a mesma
leitura dos acontecimentos, nem a mesma apropriação de referenciais bíblicas”.50
2.1.3- A Missão Abreviada como livro de cabeceira
Em Canudos, conforme argumentos apresentados, os aspectos religiosos se sobressaíram
aos político-partidários. Essa afirmação não são ilações, se levarmos em consideração a formação
cristã de Antônio Conselheiro, as relações com os padres Cícero e Ibiapina, a influência do
Catolicismo Popular, o envolvimento nas missões e a enorme literatura religiosa usada ao longo
da vida do Beato. O mesmo não se pode afirmar de seu envolvimento político. Analisando
cuidadosamente os textos de Edmundo Moniz e Rui Facó, que mais insistem na tese da
sociologia de orientação marxista, não se encontra qualquer alusão documental que prove, por
48 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre o Belo Monte (Canudos), 2004. Tese de doutoramento, PUC, São Paulo, p. 12. 49 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém Maldita: memórias bíblicas..., p. 12. 50 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo Monte (Canudos), 2004. Tese de doutoramento, Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 12.
64
exemplo, que Antônio Conselheiro, ou alguém do seu grupo, tenha freqüentado grupos de
orientação político-partidária (republicano ou monarquista), com a intenção de apoiar ou
desestabilizar o governo republicano. Ao contrário, seu envolvimento sempre foi no âmbito
eclesial. O fato de ter feito duras críticas à República, não credencia ninguém concluir pela sua
ligação a esse ou àquele partido político, mesmo sabendo-se que ele não era uma pessoa ingênua
politicamente. “O Conselheiro antagonizou a República, não porque fosse de um então propalado
partido monárquico, [...] mas porque adotava a teocracia. O poder, que só pertencia aos príncipes,
vinha de Deus. Política e religião nele se unem indissoluvelmente”.51 Na concepção de Euclides
da Cunha, o
profetismo, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que despontou na Frígia, avançando para o Ocidente. Anunciava idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias. A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus, prometido, delongando sempre e, ao cabo, de todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século II.52
Ao falar de Canudos, deve-se considerar a profunda ligação de seu representante maior
com a Igreja do Nordeste, dos valores cristãos recebidos pelo líder, do povo e da forma de vida
interna de sua comunidade. Observando as fontes nas quais Antônio Conselheiro bebeu, é
fundamental para entendermos quais eram mesmo os reais interesses do líder carismático. Um
marxista ortodoxo não destaca tanto a teoria do Peregrino, mas sua prática revela elementos da
teoria marxista.
A Missão Abreviada,53 redigida por um padre português, circulou em grande escala nos
sertões nordestinos e se tornou um texto de muita valia deixado pelos missionários para a
continuidade das missões populares, através de lideranças leigas. Os historiadores são unânimes
51 NUNES, Benedito, A cidade sagrada, in: FERNANDES, O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões..., p. 249. 52 CUNHA, Euclides, Os Sertões..., p. 229. 53 Cf. COUTO, José Gonçalves, Missão Abreviada para despertar os descuidados, converter os pecadores sustentar o fruto das missões: Porto [22ª ed.], 1878. A 11ª edição é melhorada, não significando, porém, alteração no teor da obra. Será indicado por 11ª ou 9ª edição, de 1873. Missão Abreviada, manual útil para os párocos, vigários e capelães do interior e para qualquer liderança católica. Era uma espécie de “Catecismo da doutrina católica”.
65
ao afirmarem que o Peregrino usou a Missão Abreviada como manual orientativo na mística de
sua comunidade. Não há dúvidas quanto ao uso da Missão Abreviada pelo Conselheiro. Foi um
livro devocional por excelência, dos sertões nordestinos, pois sua “forma acessível e concreta de
catequização facilitou o entendimento, também, da gente simples e permitiu que o livro se
apresentasse como a suma doutrinal e catequética”.54 Com 993 páginas, 211 meditações,
instruções tituladas, 21 vidas de santos, apartados de práticas e devoções, a Missão Abreviada
apresenta aquilo de que o padre ou qualquer missionário leigo deve fazer uso nos trabalhos da
pós-missão.55 A finalidade do livro encontra-se no próprio título: despertar os descuidados,
converter os pecadores e sustentar o fruto das missões. De ampla circulação e assimilação de seu
conteúdo pelas camadas menos letradas, Eduardo Hoornaert classifica o livro de uma espécie de
“bíblia do povo sertanejo”.56 Joaquim Cabral atesta a grande utilidade para todas as pessoas pela
“extração de noventa e dois mil exemplares em tão pouco tempo; uma grande multidão de
pecadores verdadeiramente convertidos e emendados; muitas confissões gerais que se têm feito e
se fazem por toda parte, só por ter lido, ou ouvido ler este livro”.57 Vilanova, sobrevivente da
guerra de Canudos, conviveu de perto com Antônio Conselheiro e deixou este depoimento sobre
Missão Abreviada:
O livro do Peregrino era a Missão Abreviada, onde muito se fala da morte, do inferno, do juízo final, dos açoites e espinhos e da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os frades pregadores daquele tempo conduziam sempre este livro, que de tão cru, nas palavras, fechava sem piedade as portas do céu. Também o Peregrino amava esse livro e varava o dia e a noite lendo ou copiando as Meditações e os Exemplos dos Santos. Quando a mão do Peregrino estava cansada, escrevia por ele Leão de Natuba, que tinha boa caligrafia e era muito devoto.58
54 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande, a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 274. 55 Cf. COUTO, José Gonçalves, Missão Abreviada...,p. 21. 56 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste, Salvador: Beneditina, 1972, p. 77-87. 57 Cabral, Joaquim, “Missão Abreviada”: Da pobreza de uma teologia... ao Estigma funesto de uma moral, dissertação de licenciatura em Teologia Moral na Academia Afonsiana, Pontifícia Universidade Lateranense, Roma: 1986, p. 5. 58 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova..., p. 49.
66
Alexandre Otten confirma o conteúdo descrito por Vilanova. A Missão Abreviada fala de
Céu, Inferno, Purgatório, Vida, Paixão, morte, Ressurreição e traz belos relatos da vida de
diversos santos.59 Como manual de espiritualidade, Missão Abreviada mostrava a mentalidade
teológica presente na Igreja. Apresentava uma visão dicotômica da vida espiritual: céu – inferno,
vida – morte, bem - mal, pecado - raça, Deus – diabo, salvação - condenação. Essa visão
teológica, comum aos pregadores de missões, iria influenciar a fundamentação da teologia
subjacente ao pensamento religioso da comunidade canudense.
Missão Abreviada refletia o esquema teológico da época. Apresentava um Deus
vingativo e castigador, implacável com o pecador. Eduardo Hoornaert fez da obra uma análise
bastante crítica, mostrando as lacunas teológicas e os avanços para uma pastoral renovada, na
perspectiva da Missão Abreviada. “Esta Bíblia do Nordeste, confrontada com a Sagrada
Escritura, nos revela as grandes lacunas da mensagem missionária, e ao mesmo tempo, os pontos
de apoio de uma pastoral renovada”.60 O pecado é o elemento estruturante de todo o conteúdo
doutrinal teológico, exortativo e ascético, formando o eixo condutor de toda a obra. O ser
humano, visto como pecador devia temer os riscos pessoais que corria, a gravidade da
condenação, as penas do inferno. Sem o arrependimento e a confissão não é possível conter a ira
de Deus. Hoornaert aponta pelo menos três lacunas na visão teológica do devocionário.
Em primeiro lugar, a mensagem cristã era reduzida ao âmbito estritamente individual e
moral.61 Seu autor, o Padre Couto, seguia a linha da teologia do pecado original de Santo
Agostinho, construída nas discussões com Pelágio. Os argumentos de Agostinho, produto de uma
disputa apaixonada, assumem posições dialéticas diante do seu interlocutor como acontece em
59 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande, a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 273-287. 60 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste, Salvador: Beneditina, 1972, p. 77-87. O autor faz uma análise crítica do conteúdo teológico da Missão Abreviada, destacando, principalmente, as lacunas teológicas. 61 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e Falsa religião no Nordeste..., p. 78-80.
67
discussões acirradas. O futuro Bispa de Hipona fora, antes de sua conversão, durante um longo
tempo, maniqueu: acentuou certos aspectos do maniqueísmo e influenciou a antropologia
católica, especialmente a teologia sobre o pecado.62
Essa visão, um tanto dualista, da Antropologia Cristã assumiu posição central na pregação
popular da Igreja no ocidente cristão. A insistência pela salvação da alma dominava a pregação
dos missionários na época do Conselheiro. Ao comentar a Missão Abreviada, E. Hoornaert
chama a atenção do leitor para a procura quase exclusiva da religião cristã com a intenção de
salvação da alma. Essa “perspectiva reduz tudo: o evangelho se torna uma coleção de histórias
edificantes, a moral engole a mensagem do Reino de Deus, Cristo se torna instrumento no
caminho da salvação individual, a Igreja nem entra em consideração”.63 O tema do “poucos se
salvam” perpassa todo o livro, com advertências quase sempre dirigidas ao pecador. Por isso, o
cristão necessitava converter-se, confessar-se e comungar, para livrar-se do castigo eterno. A
pregação dos missionários e as orientações do manual entregue às lideranças, orientador dos
participantes das missões, adotavam uma pedagogia da sensibilização pelo medo, intimidação
pelos castigos. O inferno seria o destino dos desobedientes e malfeitores.
Em segundo lugar, a Missão Abreviada fazia uma exaltação unilateral da obediência e
penitência como virtudes cristãs.64 A mortificação e as várias formas de penitência ocupavam o
lugar do Reino de Deus. “No século XIX, a penitência se chama mortificação. Esta mortificação
não prepara o advento do Reino de Deus como a penitência (conversão, metanóia) pregada por
João Batista (Mt. 3, Mc 2,3), mas prepara a morte”.65 Só pelo caminho da mortificação e
62 MANIQUEÍSMO, in: BRUGGER, Walter, Dicionário de Filosofia, São Paulo: EPU, 1977, p. 257: “O mundo é explicado por dois princípios : um bom, o da luz; outro mau, o das trevas (da matéria)”. Ainda, segundo a concepção maniqueísta, o universo foi criado e dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem absoluto, e o mal absoluto ou o Diabo. 63 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 79. 64 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 80-84. 65 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 80-81.
68
penitência chegava-se ao céu. “Para o céu não se vai por meio de solturas, divertimentos e bailes.
Para o céu se vai, sim, mas é por meio de muitas mortificações e jejuns”.66 O destaque da
pregação voltava-se para o pecado e o castigo, em detrimento da graça de Deus e o amor
misericordioso de Jesus de Nazaré. Isso se comprova pela importância que o autor deu ao inferno,
pelo fato de ter atribuído um capítulo inteiro ao tema, intitulado Uma visão do inferno que tem
convertido a muitos e grandes pecadores.
A confissão limitava-se à “lista” dos pecados pessoais e domésticos. Os “pecados de
âmbito social ou político (a não-colaboração na construção da sociedade) não eram sentidos
como tais [...] “fazer caridade” na linguagem do confessionário significava “dar esmolas”. A
moral do confessionário é uma redução da moral cristã”.67 O mandamento da Igreja de confessar-
se, ao menos uma vez ao ano, era rigorosamente observado para o bem do fiel. O pecado da
desobediência quase sempre funcionou como controle social. O povo, atingido por essa visão de
pecado, penitência e obediência, ficou preso a uma Igreja atrelada ao poder do Estado e pouco
comprometida com as mudanças sociais efetivas para os pobres. Diante das mudanças, a Igreja
não conseguia assumir uma posição de independência.
A terceira deformação do cristianismo apresentada pela Missão Abreviada, consistia na
quase-identificação entre vida cristã e “vida de piedade” (pietismo).68 A vida cristã se restringia
ao âmbito das devoções e da recepção dos sacramentos. A Igreja não cria devoções. Elas eram
conseqüências de uma forma de pregação, do conteúdo teológico, de liturgias celebradas e
decodificadas pela experiência do povo sertanejo, de influência indígena e negra. “Milhões de
escravos africanos foram sumariamente importados e ainda mais sumariamente introduzidos no
cristianismo através do batismo e quase sem catequese senão a declaração mecânica de algumas
66 COUTO, José Gonçalves, Missão Abreviada...,p. 562 (9ª ed.). 67 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 82. 68 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 84-87.
69
fórmulas estereotipadas”.69 O cristianismo lusitano, devocional, em processo de romanização,
encontrou-se com a vitalidade das religiões indígena e africana. No encontro do cristianismo com
essas culturas, quase não houve inculturação da fé, nem respeito pela experiência das
comunidades locais, mas transladação e imposição cultural. Cultura européia e evangelho
tornaram-se dois lados da mesma moeda. A vida cristã foi reduzida à assimilação da cultura
européia, muitas vezes em simbiose com o evangelho. O índio, o negro, o sertanejo “iletrados”, e
“sem cultura”, foram ressignificando e reprocessando a mensagem cristã a partir do paradigma
indígena, africano e sertanejo, criando o que Eduardo Hoornaert batizou de cristianismo moreno
do Brasil ou cristianismo rústico.
Missão Abreviada também dava um destaque especial à devoção mariana, com
características feudais.70 De nossa parte, somos servos ou escravos de Maria. Essa devoção
“provém de uma visão medieval do Reino de Deus, como um Reino que se realiza aqui na terra
pela cristandade”.71 As festas de Cristo-Rei, Nossa Senhora-Rainha, causavam incidência na
espiritualidade do povo. Havia uma ligação natural com a vida prática. Assim como Maria-
Rainha obedecia ao Cristo Rei, o povo deveria obedecer às autoridades. Quem quisesse ser
cristão verdadeiro deveria obedecer às ordens da Igreja e a seus ministros. Por isso, precisava
observar as principais práticas religiosas. As “as orações de cada dia, a santificação dos domingos
e dias santos, a observação da abstinência e jejuns da Igreja, a freqüência dos sacramentos, numa
palavra, a obediência a tudo quanto nos é mandado por parte da Igreja”.72
Essa espiritualidade de submissão foi reinterpretada pelo Conselheiro na perspectiva da
libertação de sua comunidade. Não a repetiu pura e simplesmente, mas trouxe algo novo, como
69 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil..., p.37. 70 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 85. 71 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 85. 72 COUTO, José Gonçalves, Missão Abreviada... [9ª ed.], p. 180.
70
veremos no último capítulo. Antônio Conselheiro estava de acordo com essa doutrina. Porém,
obedecer plenamente, só a Deus. A todo o momento ele repetia: “Só Deus é grande”. Ele
inaugurou uma nova maneira de agir na Igreja, desde o final do século XIX.
2.1.4- Obra manuscrita por Antônio Conselheiro
As Prédicas ou manuscritos de Antônio Conselheiro, examinadas cuidadosamente, são
indispensáveis para se formular um julgamento aproximado, porém, sério, do pensamento e da
conduta do líder maior de Canudos. Foram poucos os que se debruçaram sobre o aspecto
religioso da vida interna da comunidade de Canudos. Talvez o preconceito sobre religião, até
recentemente vista no meio acadêmico como o “ópio do povo”, e a influência do materialismo
histórico de K. Marx tenham impedido análise mais apurada e isenta da religião, como força
motora e determinante na resistência do povo de Canudos frente à arrogância irracional do Estado
brasileiro. “Certamente concorreu para tal a pouca importância dada à religião na abordagem dos
fenômenos sociais, tida que era como expressão de uma consciência atrasada, ou apenas refluxo
(ou encobrimento) de realidades e conflitos situados na base socioeconômica da sociedade”.73
Outros condicionamentos foram a força da ditadura militar e a falta de investimento do Estado
para um estudo mais profundo dos movimentos sociais, especialmente o ocorrido no sertão da
Bahia.
Desde o Concílio Vaticano II, a Teologia da Libertação, a expansão do pluralismo
religioso, o advento das ciências da religião, os estudos da religiosidade popular, o empenho por
uma melhor compreensão da religião ou do fenômeno religioso nas transformações sociais, vêm
aumentando sempre mais o interesse por movimentos como Canudos. Os estudos mais recentes
73 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das Promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo Monte..., p. 210.
71
sobre o movimento em questão constituem um desses exemplos.74 Ataliba Nogueira, jurista e
escritor, fez publicar o caderno contendo manuscritos de Antônio Conselheiro, datados de 22 de
janeiro de 1897.75 “[...] a caligrafia do texto e a assinatura são suas, as mesmas que se podem ver
em duas cartas emolduradas e suspensas na parede, no Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia”.76 Não há qualquer suspeita quanto à autoria do texto:
O volume é encadernado, conta com 628 páginas, numeradas e sem margem. Cada página com 24 linhas. Tinta preta, letra bela e sempre igual. Formato 10 x 14. Diz na folha de rosto:
‘A presente obra mandou subscrever o peregrino Antônio Vicente Mendes Maciel
No povoado do Belo Monte, província da Bahia
Em 12 de janeiro de’ ‘897’.77
Para Ataliba Nogueira, a expressão “mandou subscrever”, na primeira página, não põe em
dúvida a veracidade da autoria, mas confirma a humildade do autor.78 Alexandre Otten se refere a
um “outro” manuscrito, não conhecido pelo público, também de autoria do Conselheiro: “O
manuscrito não publicado não apresenta as últimas prédicas, mas oferece uma transcrição do
Evangelho de Mateus, tirada da Bíblia Vulgata, na tradução de Pe. Antônio Pereira de
Figueiredo”.79 Esse outro manuscrito foi encontrado em 1972, na preparação do inventário de
Aloísio de Carvalho, senador e professor da Faculdade de Direito de Salvador. Atualmente a
relíquia encontra-se na posse da família do saudoso professor José Calazans.80
74 Desde o início da década de 1990, Canudos não é mais um acontecimento marginal da historiografia brasileira. Além dos filmes, publicações de livros e jornais sobre o acontecido em Belo Monte, há diversas teses de doutorado e dissertações de mestrado sobre o significado de Canudos. 75 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos...,p. 46-290. A paginação contém um erro. Da página 569 salta-se para a 600. Entretanto, não há descontinuidade no discurso. O manuscrito termina na página 628. Mesmo usando a referida publicação de Ataliba Nogueira, a citação seguirá do caderno manuscrito, pela sigla MAC (Manuscritos de Antônio Conselheiro), seguida da página do original. A ortografia é do século passado e difere da nossa; será mantida conforme o texto manuscrito, publicado por Ataliba Nogueira. 76 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos...,p. 23. 77 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos, p. 23 78 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos..., p. 23 79 OTEEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 203. 80 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos..., p. 23. A prova concreta da autenticidade da obra é o texto na página que precede à folha de rosto: “No dia 5 de outubro de 1897, em que as tropas legais sob o comando do general Artur de Andrade Guimarães se assenhoraram vitoriosa e decididamente do arraial de Canudos, dando
72
As chamadas Prédicas de Antônio Conselheiro estão organizadas em quatro partes e um
discurso sobre a República, conforme índice abaixo:
Esquema geral do Manuscrito de Antônio Conselheiro
PRIMEIRA PARTE
I. Tempestades que se levantam no coração de Maria (até a página 223), com 29 mistérios,
divididos em três pontos, cada um.
1. Tempestades que se levantam no coração de Maria por ocasião do mistério da anunciação (p. 3-9).
2. Sentimento de Maria por causa da pobreza em que se achava, por ocasião do nascimento de seu divino
filho (p. 10-16).
3. Dor de Maria na circuncisão de seu Filho (p. 17-23).
4. Humilhação de Maria no Mistério da apresentação (p. 24-29).
5. Dor de Maria na profecia de Simeão (p. 30-37).
6. Dor de Maria por ocasião de sua fugida para o Egito (p. 38-46).
7. Dor de Maria na morte dos inocentes (p. 47-55).
8. Desolação de Maria durante o seu desterro do Egito (p. 56-62).
9. Aflição de Maria na sua volta do Egito (p. 63-70).
10. Dor de Maria na perda de seu Filho no Templo (p. 71-77).
11. Sentimento de Maria na morte de seus pais (p. 78-85).
12. Dor de Maria durante a vida particular de Jesus em Nazaré (p. 86-92).
13. Sentimento de Maria quando seu Filho se retirou para o deserto (p. 93-101).
14. Dor de Maria por causa das injúrias proferidas contra seu Filho (p. 102-109).
15. Dor de Maria por ocasião da permissão que Jesus lhe pediu para suportar a morte (p. 110-117).
16. Dor de Maria na prisão de seu Filho (p. 118-124).
17. Dor de Maria na flagelação de seu Filho (p. 125-133).
18. Dor de Maria quando seu Filho foi apresentado por Pilatos ao povo (p. 134-139). busca do lugar denominado Santuário, em que morou o célebre Antônio Conselheiro, foi este livro encontrado em uma velha caixa de madeira, por mim, que me achava como médico em comissão do governo estadual e que fiz parte da junta de peritos que no dia 6 exumou e reconheceu a identidade do cadáver do grande fanático. Submetido ao testemunho de muitos conselheiristas, este livro foi reconhecido ser o mesmo que, em vida, acompanhava nos últimos dias a Antônio Maciel, o ‘Conselheiro’. Bahia, março de 2898, João Pondé”. Cit. in: ibidem, p. 22 e 51. JoãoPondé (1874-1974), natural de Itapicuru de Cima Na infância, beijou a mão de Antônio Conselheiro. Cf. Ibidem p. 22.
73
74
19. Dor de Maria encontrando seu Filho com a Cruz aos ombros (p. 140-147).
20. Dor de Maria na agonia de Jesus (p. 148-155).
21. Dor de Maria quando os soldados repartiam entre si os vestidos de seu Filho (p. 156-163).
22. Compaixão de Maria na sede de seu Filho pregado na Cruz (p. 164-171).
23. Dor de Maria na agonia de Jesus (172-179).
24. Dor de Maria quando seu Filho lhe falou da Cruz (p. 180-187).
25. Martírio de Maria na morte de seu Filho (p. 188-194).
26. Dor de Maria quando o lado de seu Filho foi aberto com uma lança (p. 195-202).
27. Dor de Maria no descimento da cruz e funeral do cadáver de seu Filho (p. 203-209).
28. Dor da Senhora em sua soledade (p. 210-216).
29. Maria, Rainha dos Mártires (p. 217-223).
SEGUNDA PARTE
2. Exposição sobre os dez mandamentos da lei de Deus (p. 224-426). Reflexão sobre cada
mandamento
1º Mandamento (p. 224-250).
2º Mandamento (p. 251-270).
3º Mandamento (p. 271-292).
4º Mandamento (p. 293-318).
5º Mandamento (p. 319-342).
6º Mandamento (p. 343-362).
7º Mandamento (p. 363-380).
8º Mandamento (p. 381-403).
9º Mandamento (p. 404-415).
10º Mandamento (p. 416-426).
TERCEIRA PARTE
3. Textos extraídos da Sagrada Escritura (p. 427-485), sem divisão.
Quarta parte
4. Prédicas de circunstâncias e discursos, (p. 486-559), com 7 subdivisões. 75
Sobre a República (p. 560-623) e com duas partes.
1. Sobre a Cruz (486-508).
2. Sobre a Missa (509-516).
3. Sobre a confissão (517-528).
4. Sobre as maravilhas de Jesus (529-530).
5. Construção e edificação do templo de Salomão (531-536).
6. Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio, padroeiro de Belo Monte (p. 537-553).
7. Sobre a parábola do semeador (p. 554-559).
Sobre a República (p. 560-623).
A companhia de Jesus – O casamento civil – A família imperial – A libertação dos escravos (p. 560-523).
Despedida (p. 624-628).
2.2. Descrição do imaginário religioso de Antônio Conselheiro
Mesmo não sendo um manual de teologia sistemática, é possível fazer uma leitura
sistemática do pensamento de Antônio Conselheiro, a partir dos referidos manuscritos. Seria
exigir muito de um cristão leigo no Brasil, no final do século XIX, radicado nos sertões do Ceará
e Bahia, um conteúdo sistemático no sentido estrito do termo. Esta capacidade nem estava
presente no manuscritos dos ministros ordenados. Ele foi teólogo, sem sequer cursar teologia, um
teólogo por intuição. Desenvolveu muito mais os aspectos práticos da fé cristã, que os de
natureza sistemática. Encontramos intuições teológicas muito concretas no seu pensamento,
identificando-se um fio condutor nas suas reflexões. A forma de citar textos bíblicos, os Padres
da Igreja e a Missão Abreviada desmentem o preconceito de Euclides da Cunha sobre a pouca
formação do Peregrino. Tomando por base o conteúdo e a forma a respeito da qualidade literária
e conceitual “da leitura dos sermões o que surge, entretanto, é a figura de um sertanejo letrado,
capaz de exprimir-se correta e claramente na defesa de suas concepções políticas e sociais, e de
suas crenças religiosas”.81 A fé é um ato primeiro. Na concepção dos teólogos clássicos, Teologia
é a ciência da fé. Ao pensar a fé, ao envolver-se na vivência comunitária, produzir textos de
próprio punho para orientar sua comunidade, Antônio Conselheiro fazia teologia. Suas prédicas
estão marcadas pelas fontes essenciais da ciência teológica: A Bíblia, Tradição e Magistério. Seu
discurso teológico deve ser lido e interpretado no contexto da teologia da Contra-Reforma na
Europa e da Reforma Católica no Brasil (1840-1920). “Foi nesse período que se gestou o
pensamento de Antônio Conselheiro. A preocupação dominante por parte da hierarquia católica
era mudar o tradicional modelo de Igreja da Cristandade, vinculado à cultura lusitana, pelo
modelo de Igreja hierárquica, conforme fora formulado pelo Concílio de Trento”.82
A cosmovisão de Antônio Conselheiro não se diferenciava da concepção teológica de seu
tempo. As pregações seguiam um tripé teológico ensinado nos seminários: purgatório, céu e
inferno. São as três possibilidades destinadas aos mortais. Esse esquema teológico estava
presente no conteúdo das pregações dos próprios missionários, párocos e conselheiros,
continuadores das missões. A diferença residia na prática. Conselheiro se apossou de manuais
reprodutores do pensamento teológico medieval. Não inventou um novo sistema. Sendo um filho
fiel de seu tempo, viveu as contradições políticas e religiosas, conseguindo, porém, propor novos
caminhos para uma alternativa de vida, organizada em comunidade. Antônio Conselheiro não foi
um mero reprodutor do pensamento teológico medieval. Os manuais da Igreja, os ensinamentos e
sacramentos eram recebidos e reinterpretados, à luz da praxe comunitária. O amor a Deus e a
caridade aos irmãos, especialmente aos mais necessitados, tornaram-se regras de vida na
comunidade.
81 MONTEIRO, Duglas Teixeira, Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado, in: FAUSTO, Bores (org.), História geral da civilização brasileira, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, t. 3, v. 2, p. 65. 82 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 67.
76
As Prédicas são “um eco amortecido de suas concepções religiosas e políticas. São, com
certeza, apontamentos para suas pregações em determinados momentos. Mas não dão a clara
noção da maneira envolvente com que se dirigia aos seus fiéis seguidores”.83 As Prédicas revelam
um nível teológico, cujo vocabulário nem sempre condiz com o de pessoas de pouca instrução.
Estava em sintonia com as fontes essenciais da teologia cristã. Tinha facilidade de conjugar
citações da palavra de Deus e autores da Patrística. Textos do Êxodo, evangelhos, cartas de
Paulo, João, Apocalipse, foram facilmente comentados pelo Conselheiro, com citações ou
referências aos Santos Padres.
2.2.1- As dores de Nossa Senhora
Os manuscritos trazem 29 reflexões sobre as consideradas “Dores de Nossa Senhora”, em um
total de 221 páginas. Cada meditação parte de textos ou pequenas histórias bíblicas sobre a
Virgem Maria, com as devidas considerações teológicas, mesmo sabendo que não eram
exposições com interesses teológicos, mas orientações de espiritualidade, com a intenção de
animar a comunidade nos momentos difíceis. O conjunto do texto “As Dores de Nossa Senhora”
apresenta excelente embasamento bíblico, conjugado com a lógica do pensamento teológico do
Conselheiro.84 Alexandre Otten afirma: “São descrições vivas do sofrimento de Cristo e das dores
de Maria que têm a finalidade de comover os ouvintes, apelando aos seus sentimentos, a fim de
levá-los à conversão de suas atitudes diante de Maria e do Filho”.85 As “Dores de Nossa Senhora”
é uma verdadeira teologia marial; eram instrumentais pedagógicos para levar o povo ao
seguimento do Jesus Cristo. O destaque recaía para os verbos “ver”, “contemplar”, “imitar” e
“sentir” o amor e a misericórdia da Mãe e do Filho para com os pecadores. “Convida os ouvintes
83 Cf. MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 247. 84 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande..., p. 204-211. Otten faz um comentário teológico de cada dor de Maria, a partir do manuscrito do Peregrino. 85 OTTEN. Alexandre, Só Deus é grande...,p. 210.
77
a “associarem-se” ao Filho e à Mãe e aos seus sofrimentos, a “acolhê-los”, a “consolar” Nossa
Senhora, chorando com ela ou chorando os próprios pecados, arrependendo-se e emendando as
suas vidas para assim serem dignos do amor do Filho e da Mãe”.86 Com facilidade, identificam-se
palavras-chave no imaginário mariológico de Antônio Conselheiro. Artur Peregrino, do atual
grupo de Peregrinos do Nordeste, desenvolve “Uma Teologia marial”, tendo como base “As
Dores de Nossa Senhora”.87 Identificou 85 vezes a palavra Dor/Dolorosa; 83 vezes, Coração; 51,
Lágrimas/Chorar; 51, Amor/Compaixão/Caridade; 18, Morte/Crime; 16, Cruz; 14, Martírio; 11,
Misericórdia/Penitência; 10, Terra/Céu e 9, Pobreza.88 Artur Peregrino faz uma ligação da dor da
mãe com os filhos sofredores de Canudos: “Através do sofrimento de Maria o próprio
Conselheiro ia, com certeza, ligando o sofrimento, a dor e a morte tantas vezes presenciados nos
sofrimentos de grandes parcelas da população dos sertões nordestinos”.89
Em meio a uma cultura marcada pelo machismo, a mulher ocupava um lugar central nas
atividades comunitárias. Não seria esse o motivo principal para tanto destaque à figura de Maria
Santíssima? Euclides da Cunha, nos relatos sobre a guerra, foi acusado de preconceito contra as
mulheres. Silvio Rabelo, biógrafo de Euclides, descreve sua vida sem amor e vazia de afeição
feminina, ao afirmar: “A presença do outro sexo nada acrescentava ao homem seco e triste que
ele era, em conforto pessoal, em gosto do mundo, em pletora de vida. O outro sexo, ele trazia
narcisicamente em si mesmo”.90 Um estudo de Os Sertões, a partir do viés da mulher, realizado
por José Calazans, comprova essa lacuna na vida do literato, no que diz respeito ao sexo oposto:
“Uma experiência como a de Euclides da Cunha, tão pobre de amor e tão vazia de mulheres,
haveria de refletir, necessariamente e de modo especial, na sua atitude de escritor em face do
86 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 210. 87 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 62-64. 88 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 62. 89 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 63. 90 RABELO, Sílvio, Euclides da Cunha, Rio de Janeiro, C.E.B., 1948, p. 453.
78
mundo feminino”.91 O professor Calazans observa a forma depreciativa com que as mulheres são
tratadas em Os Sertões: “Causa pena vê-las. Estão terrivelmente marcadas, duramente
estigmatizadas. São feias, magras, bruxas, viragos, zanagas. Uma autêntica caqueirada humana,
que o autor parece ter tido o prazer de debuxar”.92 E levanta uma indagação: “Acreditamos que
não será despropositado indagar, terminada a leitura do trecho acima, se na imputação feita ao
Bom Jesus Conselheiro não estaria também o biógrafo se projetando no pensamento do
biografado?”93. O Conselheiro não maltratava as mulheres. Ao contrário, elas tiveram um papel
preponderante em todos os trabalhos internos da comunidade, inclusive no final da guerra.
Ao falar de Maria, Conselheiro destaca também a importância das mulheres na comunidade
de irmãos e irmãs. “A mulher, na pessoa de Maria, tem um lugar de destaque nas Prédicas de
Antônio Conselheiro. Há um olhar para a mãe de Jesus como se fosse um olhar para ele mesmo e
a situação vivida naquele momento”.94 Ao escutar as Prédicas, as mulheres se identificavam logo
com Maria, mulher alegre e sofredora, mas forte e vencedora. “Bendita seja Maria em suas dores.
Quando, à força de marteladas, os cravos iam penetrando as mãos e pés do Salvador, as dores que
ele sofria se unificavam com as da Virgem Maria”.95 O coração de Maria, “como a cera junto ao
91 CALAZANS, José, As mulheres de Os Sertões, in: RINALDO, de Fernandes, O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões, São Paulo: 2002, p. 191. 92 CALAZANS, José, As mulheres de Os Sertões..., in: RINALDO, de Fernandes, o Clarim e a oração: cem anos de Os Sertões, p. 192. “Ali estavam”, inicia Euclides da Cunha a descrição, “gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas – êmulos das bruxas das igrejas – revestidas da capona preta, lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e despojadas, soltas na garridice sem freios; as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias, nivelando-se pelas mesmas rezas. E prossegue – “faces murchas de velhas – esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; - rostos austeros de matronas simples, fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho’. Mais ainda – “Todas as idades, todos os tipos, todas as cores”. E Depois – Grenhas maltratadas de crioulas retintas, cabelos corredios e duros de cablocas; trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e louras de brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor, o toucado ou a coifa mais nobre. Nos vestuários singelos de algodão ou chita, deselegantes e escorridos, não havia obrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos ou de nôminas encerrando cartas santas, únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador”. Cit in: ibidem, p. 195-196. Grifos do autor. 93 CALAZANS, José, As mulheres de Os Sertões..., p. 193. 94 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 62. 95 MAC , p. 153.
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fogo, se derrete de pura dor, a qual causando estragos no interior pôs sinais visíveis e seus traços
naquele rosto santíssimo completamente desfigurado”.96 O pesquisador José Calazans não
alimenta dúvidas quanto à bravura das mulheres de Canudos, especialmente no momento da
guerra: “Acreditamos, também, que morreram muitas mulheres. Eram mais corajosas que os
homens, por serem mais religiosas e terem mais convicções”.97
As meditações sobre Maria “acentuaram-se no genocídio a que foram submetidos os
canudenses. O seu testemunho é suportar com amor o martírio, assim como fez Jesus”.98 Assim
como Maria venceu o sofrimento, a comunidade vai celebrar a vitória contra o inimigo. “A
teologia marial desenvolvida nas prédicas (naturalmente cem anos atrás) revela uma correta
compreensão da teologia cristã. Maria é aquela que nos leva a Jesus”.99 Essa é a principal
intuição mariológica do Conselheiro: “Que grande diferença entre o procedimento desta e o da
primeira mãe? Em Eva sobressai a curiosidade e a desobediência a Deus; em Maria, o amor e a
obediência a levam ao pé da cruz e onde está a vontade do Senhor”. De fato, na teologia católica,
Maria é apresentada como a Nova Eva e a Mãe dos viventes. Em Canudos, Maria foi mãe dos
mártires e mãe de todos os que proclamam com confiança: “vida doçura, esperança nossa,
salve!”.
2.2.2- Os Dez Mandamentos da lei de Deus
A segunda parte ocupa 213 páginas dos manuscritos100 e revela o destaque que o Peregrino
deu aos Dez Mandamentos. Comentou cada mandamento; fundamentou com fatos dos primeiros
96 MAC , 153-154. 97 CALAZANS, José e NÓBREGA, José Dionísio, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos controvertidos do episódio de Canudos, in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, BLOCH, Didier (org.), Canudos, 100 anos de produção..., p. 45. 98 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 63. 99 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 64. 100 Cf. MAC , p. 224-426.
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séculos; referiu-se a diversos autores da Patrística. “Antônio Conselheiro tinha um conhecimento
fabuloso da patrística. Cita com facilidade Padres da Igreja, santos, como também uma
enormidade de figuras bíblicas, da tradição da Igreja e da Grécia Antiga”.101 Entre os Padres da
Igreja citados aparecem: São João Crisóstomo,102 São Basílio,103 São Jerônimo,104 São Gregório
(papa?),105 São Dionísio Areopagita.106 Santo Agostinho.107 Santos e santas como: Santa
Madalena de Pazis,108 São Boaventura,109 Santo Tomás de Aquino,110 São Pedro Damião,111Santa
Luzia,112 São Bernardo,113 Santa Brígida,114 Santo Antônio.115
Outros personagens importantes referidos: O Papa Urbano IV,116 Papa Eugênio IV117,
Henrique VIII,118 Thomas Moro, Luís (Rei da França)119 e Cardeal Hugo.120 Quase todas essas
referências foram feitas nas meditações sobre os Dez Mandamentos, demonstrando o destaque
dos ensinamentos divinos para organizar a vida comunitária. Antônio Conselheiro se mostra um
conhecedor não só da história da Igreja, mas também da história universal.121
Nas Prédicas sobre os Dez Mandamentos, o autor se apropriava da resposta de Jesus ao
doutor da lei: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e de todo o
101 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo...,p. 64. 102 MAC , p. 227, 368, 397, 422, 483. 103 MAC , p. 398. 104 MAC , p. 356, 419. 105 MAC , p. 348. 106 MAC , p. 464. 107 MAC , p. 335, 236, 258, 353, 383, 513. 108 MAC , p. 322. 109 MAC , p. 233, 247. 110 MAC , p. 228, 246, 279, 320, 321,353, 369, 421. 111 MAC , p. 231. 112 MAC , p. 303. 113 MAC , p. 313-314. 114 MAC , p. 313. 115 MAC , p. 537, 539. 116 MAC , p. 514. 117 MAC , p. 514. 118 MAC , p. 514. 119 MAC , p. 479. 120 MAC , p. 226, 245. 121Cf. PEREGRINO, Artur, Canudos: Um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 65.
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teu entendimento. Esse é o máximo e o primeiro mandamento (Mat., cap. 22, v. 38)”122 e
percebe a dificuldade para pôr em prática este mandamento. “A maior parte dos homens não
observa este preceito, cuja verdade não necessita de prova. [...] Mas ah! Que ingratidão daqueles
que assim procedem! Até quando viverão na tibieza e indiferentismo?”123 Como a comunidade de
Canudos não tinha Constituição, Leis Orgânicas ou Código Civil, os Dez Mandamentos
funcionavam como uma espécie de legislação da comunidade, uma forma de estabelecer limites e
respeito nas relações humanas. Daí a justificativa para o uso tão intenso dos mandamentos, nas
pregações igualmente intensas do Conselheiro. Os membros da comunidade acreditavam na força
da graça de Deus, veementemente anunciada pelo Conselheiro. Na concepção do Beato, a
salvação é Dom de Deus. É preciso crer na misericórdia infinita de Deus que envia seu próprio
Filho como nosso Salvador. “Quem poderá jamais compreender o excesso desse amor, pelo qual
para resgatar o escravo quisestes dar vosso Filho Unigênito? Deus nos deu seu próprio Filho e
porque motivo? Unicamente por amor”.124 Segundo A. Otten, [...] “as prédicas sobre os
mandamentos são muito caracterizadas pela necessidade de o homem nutrir o temor de Deus.
Mesmo assim o amor de Deus e o amor a Deus permanecem presentes. Para o peregrino é este
amor que salva o homem”.125 O temor a Deus criava vontade de viver o amor em comunidade. É
o desejo da salvação que forçava os moradores de Canudos a evitarem o mal e praticarem o bem.
A vida correta é desejo de Deus. Através de sua graça, Deus auxilia o homem pecador. Só a graça
pode domar e reprimir os instintos mais selvagens dos pecadores. Insistia na necessidade de o
pecador recorrer a Deus, nos momentos de necessidade: “Deus abandona os que escondem os
seus crimes e perdoa aos que os acusam. Movido de compaixão a favor dos pecadores, instituiu
Jesus Cristo o sacramento da penitência, que os regenera no sangue do cordeiro e os reveste da
122 MAC , p. 224. 123 MAC , p. 225. 124 MAC , p. 228. 125 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 219.
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inocência primitiva”.126 Deus reconhece nossa fraqueza e perdoa aqueles que, na auto-entrega da
fé, se curvam diante do Senhor compassivo do universo. O Peregrino admirava aqueles que se
confessavam ao menos uma vez a cada ano, conforme determinava o mandamento da Igreja. Para
os que verdadeiramente se arrependiam, há a certeza do perdão divino. Essa prática consciente
dos integrantes da comunidade de Canudos reatava a amizade com Deus e a convivência fraterna
com os irmãos de comunidade. A vida interna na comunidade organizava-se à luz da lei divina. O
ato extremo de matar era duramente reprovado pelo Peregrino, ao comentar o quinto
mandamento. Não
se deve proteger o assassino, que deve expiar o seu crime na cadeia para não sair dela, para servir de exemplo àqueles que o queiram imitar. Para que foi constituída a lei se não para garantir o direito do homem? Aquele porém que não quer sofrer injúrias por Nosso Senhor Jesus Cristo, cujo exemplo deve imitar, então recorra à lei para punir aquele que lhe (sic) injuriou, porque só assim evitará de tirar a existência do próximo e arrancar tantas lágrimas de uma família.127
Mesmo tendo consciência do valor da misericórdia de Deus pelo pecador, o Peregrino
reprovava o falso juramento, como também o furto de qualquer objeto do próximo. Ele defendia
a punição dura para os que insistiam no erro: “Se o primeiro passo dado pelo ladrão na carreira
do crime fosse logo rigorosamente punido, a ponto de não sair da cadeia, não havia de ver tantas
desgraças”.128 E foi mais exigente, ao citar o pensamento de Santo Agostinho, para quem não se
perdoa o pecado sem restituir o furto.129 O ladrão não merece proteção. Ao contrário, a
impunidade daquele que comete o furto anima aos outros no mesmo procedimento.130
126 MAC , p. 519 e 520. 127 MAC , p. 325 e 326. 128 MAC , p. 363 e 364. 129 Cf. MAC , p. 364. 130 Cf. MAC , p. 367.
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2.2.3- Textos tirados da Sagrada Escritura
Mesmo sem certa sistematização, essa parte dos manuscritos131 se divide em dois
momentos: primeiro, destaca o amor de Jesus Cristo pelo ser humano e sua aplicação para a vida
do povo de Canudos.132 Começa com a anunciação do Anjo a Maria (cf. Lc 1,28). Para ele, Jesus
veio ao mundo com a finalidade única de “trazer às almas o fogo do divino amor, e que não tinha
outro desejo senão de ver esta santa chama acender em todos os corações dos homens”.133 Inicia
sempre fazendo uma citação do evangelho ou outro texto do Novo Testamento em latim, seguido
de seu próprio comentário. Em muitos casos, há comentários desconexos. Os destaques recaem
nos textos sobre o sofrimento de Jesus e sua capacidade de superação, em função do amor aos
homens e mulheres.134 Em muitos casos, assume textos bíblicos em seus comentários, como se
fossem seus.135 E afirma: “Todo aquele, pois, que me confessar diante dos homens também eu o
confessarei diante de meu Pai que está nos céus”.136 Para o Conselheiro, amor aos inimigos fazia
parte do testemunho dos que querem salvar-se.137 Assim como os discípulos deixaram tudo para
seguir ao Cristo, os que querem pertencer ao Senhor deveriam entregar tudo o que possuem para
serem seus discípulos. Os que tivessem essa coerência receberiam sua recompensa: a vida eterna,
o atendimento dos seus pedidos e o descanso de suas almas. Aqueles que negassem o Cristo
seriam negados; os que o confessassem seriam confessados. São esses que formariam a Igreja de
Cristo, sobre a qual as portas do inferno não prevalecerão, enquanto os outros seriam
surpreendidos pelo fim do mundo.
131 Cf. MAC , p. 427-485. 132 Cf. MAC , p. 427-458. 133 MAC , p. 429. 134 Cf. MAC , p. 430-431. 135 Cf. Como exemplos, MAC , p. 345, 438, 441-442. 136 MAC , p. 441. 137 Cf. MAC , p. 444.
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Na Segunda parte dos manuscritos, Antônio Conselheiro revela um caráter discursivo e
apologético de suas prédicas.138 Diferentemente da primeira, foram poucas as citações bíblicas,
ainda seguidas dos referidos comentários. Constituíam-se de pequenos comentários e tentativa de
aplicação na vida concreta da comunidade. O gênero literário continua sendo catequético e
demonstra um amor muito grande pela revelação de Deus, por intermédio de sua palavra.
Ao retomar as palavras do Apóstolo Paulo (2Cor 2,4), Antônio Conselheiro mostrava que
seu interesse não era deste mundo e suas palavras não eram palavras meramente humanas: “Os
meus sermões (diz o santo Apóstolo) não se fundam em palavras vãs da humana sabedoria, mas
sim em espírito e virtude”.139 Em tais palavras, condenava a eloqüência humana e inculcava a
eficácia necessária para repreender os vícios e mover o coração ao santo temor de Deus.140
2.2.4- Prédicas de circunstâncias e discursos
Mesmo sendo discursos esparsos, é o texto mais bem elaborado das prédicas.141 Quase
não tem citações diretas da Bíblia. Mesmo assim, são comentários nos quais Antônio Conselheiro
se apropriou de pequenas perícopes ou versículos da Bíblia e transmitiu sua mensagem aos fiéis.
Em compensação, aí foram citados, por diversas vezes, os Santos Padres. Havia uma opção na
escolha de certos temas, em que o texto vem seguido de verdadeira reflexão teológica. Foram sete
temas trabalhados intensamente pelo Peregrino, durante suas prédicas, o que demonstra o
interesse na escolha e na abordagem ao longo de suas pregações: a cruz,142 a missa,143 a
confissão,144 sobre as maravilhas de Jesus,145 construção e edificação do templo de Salomão,146 o
138 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio conselheiro..., p. 219-221. 139 MAC , p. 459-460. 140 Cf. MAC , p. 264-266. 141 Cf. MAC , p. 486-559. 142 Cf. MAC , p. 486-508. 143 Cf. MAC , p. 509-516. 144 Cf. MAC , p. 527-528. 145 Cf. MAC , p. 529-530. 146 Cf. MAC , p. 531-536.
85
recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio,147 sobre a Parábola do Semeador,148 a
República149 e uma despedida.150 Em cada tema, ele desenvolveu pura teologia, articulando textos
da Bíblia, citações dos Santos Padres e outras fontes do magistério eclesiástico. Eram verdadeiras
homilias, ou aulas de catequese, com a finalidade de animar a comunidade eclesial, sob sua
direção, com destaque na ortodoxia magisterial.
Analisando as Prédicas de Antônio Conselheiro podemos observar o quanto ele é respeitoso e obediente às normas e doutrina da Igreja. Algumas vezes ele faz menção aos bispos e arcebispos de maneira positiva. Vemos o quanto ele era equilibrado emocionalmente. A severa perseguição do arcebispo da Bahia não lhe tiraria a capacidade de discernir as “coisas de Deus” das “coisas do mundo”.151
As prédicas, portanto, estão balizadas pela Palavra de Deus e ensinamentos do magistério
eclesial. Não eram reflexão à parte, de um grupo à revelia da comunidade eclesial. Trata-se de
uma experiência em busca da supressão das deficiências da Igreja. Para melhor compreensão das
prédicas de circunstâncias, retornar-se-ão os sete pontos abordados pele Peregrino.
2.2.4.1- Sobre a Cruz
A cruz recebeu destaque na quarta parte dos manuscritos com 23, das 74 páginas.152 O
sofrimento de Jesus é modelo para os que queriam trilhar os caminhos da vida eterna. Por isso,
“Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt
26,24), retoma o Peregrino. Foi prático na aplicação do texto sagrado: “O homem deve carregar
sua cruz debaixo de qualquer forma que se apresente, deve penetrar-se assim de júbilo, sabendo
que em virtude dela vai ao céu”.153 A humilhação passada por Jesus foi por amor à humanidade.
A cruz purifica o cristão das paixões desordenadas. “A cruz reconciliou o céu com a terra, que
147 Cf. MAC , p. 537-553. 148 Cf. MAC , p. 554-559. 149 Cf. MAC , p. 560-623. 150 Cf. MAC , p. 624-628. 151 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 69. 152 Cf. MAC , p. 486-508. 153 MAC , p. 486-487.
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estava em guerra. Da árvore da cruz brota o pomo de vida que se perdeu no paraíso terreal”.154
Segundo a mentalidade teológica de Antônio Conselheiro, o fato de um Deus morrer na cruz
revela um mistério profundo, perante o qual a razão humana se inclina sem entender.155 Quem
deseja a salvação procura a cruz, não como maldição, mas como “doce cruz! Por mim desejada e
agora preparada para esta alma que por ela tão ardentemente suspira!”156 A cruz é mais que um
símbolo. É o
estandarte da glória, símbolo da fé, chave do paraíso, divino arco-íris da paz entre Deus e os homens, terror do inferno, espada contra o demônio, alegria dos cristãos, esforço dos fracos, escudo dos fortes justificados na graça de Deus, cruz bendita, sempre estimada de Deus, desde o princípio do mundo, no fim do qual haveis de aparecer como estandarte real nas mãos do verdadeiro Deus, castigando com a sua justiça os maus, e triunfando de glória para os bem-aventurados.157
No cristianismo, a cruz teve significado paradoxal, escandaloso e soteriológico. A morte
de Jesus na cruz, presente nas tradições evangélicas, surpreendeu Antônio Conselheiro. Sua vida,
marcada pela cruz do sofrimento, da migração forçada, do conflito de terra, do povo machucado,
encontra inspiração no Cristo, Servo Sofredor. Trata-se da coerência com a tradição sertaneja do
cristianismo moreno, da Via Peregrina, do Cristo da Sexta-feira Santa, da identificação com o
sofrimento do Crucificado. Ao comentar a morte de Jesus na cruz, obediente até a morte, o
Peregrino transcreveu o texto do Profeta Isaías 50,6: “Eu entreguei o meu corpo aos que me
feriam, minha face aos que despedaçavam, não desviei a minha face dos que me diziam
impropérios e cobriam de escárnios”.158 Facilmente relacionava a cruz de Cristo com o
sofrimento de seu povo. Perguntava: “Quem poderá fugir às ignomínias vendo a Jesus tratado
154 MAC , p. 503. 155 Cf. MAC , p. 502. Um aprofundamento bastante sério sobre o emblema da cruz foi feito por SOBRINO, Jon, Jesus Cristo Libertador: I- A história de Jesus de Nazaré, São Paulo: Vozes, 2994. Especialmente a terceira parte: A Cruz de Jesus, p. 285-390. Um outro trabalho pioneiro em teologizar os povos do Terceiro Mundo como povos crucificados, foi feito por: I. ELLACURÍA, El pueblo crucificado: ensaio de soteriología histórica , RLT, 18 (1989, p. 303-333 ( publicado pela primeira vez in: vários, Cruz y resurrección, México, 1978, p. 49-82). 156 MAC , p. 503. 157 MAC , p. 506-507. 158 MAC , p. 438.
87
como louco, como rei de teatro, como malfeitor escarnecido, coberto de escarros e preso a um
patíbulo?”.159 São grandes os bens espirituais para os que meditam os mistérios de Deus na cruz
de seu Filho. Para chegar a um amor perfeito de Deus, era preciso meditar sobre a cruz
salvadora.160 O povo sertanejo se identifica com o sofrimento de Cristo. Alexandre Otten não tem
dúvidas: “A prédica (sobre a cruz) é uma das revelações mais autênticas da espiritualidade do
peregrino. Numa situação de grandes tribulações e confrontos escatológicos, ele interpreta o
mundo pela cruz, tendo nela orientação e segurança que transmite aos seus”.161 Na cruz de Cristo,
a comunidade de Canudos encontrava sentido para superar a morte e a dor. Dela proviam a
mística da resistência da Igreja dos pobres do Belo Monte. Para crescer no amor a Deus, não
havia “exercício mais útil que meditar muitas vezes na sua Paixão (de Cristo)”.162 Insistia, ainda,
“ são tão grandes os bens que resultam da veneração devida à Santa Cruz, que a missa, sendo tão
excelente sacrifício que Deus fez, não se pode celebrar sem assistência da Cruz”.163
2.2.4.2- Sobre a missa
Antônio Conselheiro atuou em Canudos na qualidade de autêntico catequista. Desenvolveu uma
catequese sobre a missa. Quem descobrir os bens advindos da missa, deixa todos os afazeres para
não faltar a este tão grande bem espiritual. Ensinava aos fiéis que “a missa é a melhor cousa e
mais sagrada que Deus deixou à sua Igreja, por ser a representação da paixão e morte de Nosso
Senhor Jesus Cristo”.164 Tinha uma compreensão clara da Eucaristia e a transmitia ao povo: “E
quando se está à missa, é o tempo mais oportuno que há para a oração e para falar com Deus,
pedir-lhe mercês em companhia de milhares de anjos, que Lhe assistem, ajudando-o: por ser a
159 MAC , p. 488. 160 MAC , p. 489. 161 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 223. 162 MAC , p. 489. 163 MAC , p. 490. 164 MAC , p. 509-510.
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oração um dos maiores remédios que há para destruir os vícios e chegarmos a Deus”.165 E
continuava: “Se bem soubera um cristão o que lucra em assistir e ouvir a missa todos os dias,
deixaria os maiores negócios deste mundo para não faltar a tão grande bem espiritual”.166 A
missa “é a melhor obra, de mais proveito, e não há palavra, nem sinal, nem cerimônia nela que
não tenha significações e mistérios”.167 Além das diversas indulgências garantidas pelos romanos
pontífices para os que participam da missa, “os papas Urbano IV, Martinho V e Eugênio IV,
concederam duzentos anos de indulgência a quem devotamente ouve a missa, ou a diz, ou dá
esmola para ela, como consta em suas bulas”.168 Na missa “se acha para os aflitos alívio, para os
tristes consolação, para os atribulados remédio, para os combatidos socorro, para os consolados
esperança e toda mais paciência, fortaleza, graça, [...] indulgência para os vivos e também para as
almas do purgatório”.169 Sobre a interpretação do mistério eucarístico na óptica de Antônio
Conselheiro, afirma Alexandre Otten: “ A missa, aos olhos do Beato, tem valor porque é um forte
meio para a santificação: para o amor e serviço a Deus, para a conversão dos pecados, para o
cumprimento das obras meritórias; ela dá fortaleza em tempos difíceis”.170 Suas idéias sobre a
missa eram claras. Com facilidade, ensinava isso ao povo, estimulando-o a participar
fervorosamente da missa. Era um bem inestimável de revigoramento da vida e de salvação.
2.2.4.3- Sobre a confissão
Nesta prédica, Conselheiro conjugou os sacramentos da eucaristia e da penitência.171 Na
sua óptica, o católico confessava-se para ir à comunhão. O ser humano carrega dentro de si o
165 MAC , p. 50-511. 166 MAC , p. 509. 167 MAC , p. 511-512. 168 MAC , p. 514. 169 MAC , p. 515-516. 170 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 223. 171 Cf. MAC , p. 517-528.
89
germe do mal, sementes de morte: a soberba atrevida e violenta, apetites insaciáveis, o ódio, a
inveja e a avareza. São heranças do pecado original. Somente a graça de Deus poderia mais ou
menos, domar e reprimir.172 “Deus abandona os que escondem os crimes e perdoa aos que os
acusam. Movido de compaixão a favor dos pecadores, instituiu Jesus Cristo o sacramento da
penitência, que os regenera no sangue do cordeiro e os reveste da inocência primitiva”.173 O
Conselheiro reprovava o procedimento daqueles que deixam de confessar-se ao menos uma vez a
cada ano.174 A confissão combatia a tríplice concupiscência:
Uma soberba ora atrevida e violenta, ora disfarçada e astuciosa, uma curiosidade desmedida, apetites insaciáveis, o ódio acompanhado de injúria, do ultraje e da calúnia, a inveja, mãe do homicídio, avareza que diz continuamente: traze, traze; a dureza da alma, as alegrias culpáveis do espírito.175
Desde o pecado original, a humanidade fora afetada pela tríplice concupiscência citada
pelo Conselheiro. Ele tinha consciência da fraqueza do ser humano, das conseqüências do pecado
original e sua incidência na natureza do homem. Somente pela graça e misericórdia de Deus, o
homem poderia recuperar o “estado original”. Foi para isso que Jesus instituiu o sacramento da
penitência e da reconciliação. Na concepção do Peregrino, a confissão era o único remédio para
curar o pecado e combater a concupiscência. O sacramento do perdão serviria de alívio e alegria
para os oprimidos, necessitados da misericórdia do Filho de Deus:
Vós que andais oprimidos com o peso de vossos pecados, dai-vos pressa, ide, com dor sincera e amorosa esperança, aliviar-vos aos pés daquele que faz as vezes do Filho de Deus; ide e humilhai-vos, ide e chorai-vos; a mão divina enxugará vossas lágrimas, e restabelecidos em graça com Deus, em paz convosco cantareis com alegria o hino do perdão. Ditosos aquele cujas iniqüidades foram perdoadas e cobertos seus pecados! Feliz aquele a quem o Senhor não imputou seu crime e cujo coração não é fraudulento.176
O Beato indicava ao penitente uma forma catequética prática para a confissão. Devia
percorrer os mandamentos da lei de Deus, os pecados mortais, as obras de misericórdia, os
172 MAC , p. 519. 173 MAC , p. 519-520. 174 MAC , p. 521. 175 MAC , p. 518. 176 MAC , p. 520-521.
90
pecados de omissão, especialmente quando se tinha algum cargo ou poder. Em seguida, devia
declarar os pecados ao confessor, sem omissão – por mais grave que fosse – crer na bondade
misericordiosa de Deus, compenetrar-se na dor de tê-los cometido, assumir o firme propósito de
não voltar a cometê-los e, finalmente, cumprir a penitência imposta pelo confessor.177 Sem a
confissão não haveria salvação eterna.178 Após a recepção do sacramento da penitência, agora
com o coração purificado e a consciência tranqüila, o fiel se aproximava da mesa da eucaristia,
onde se dá o maior encontro do cristão com Deus.
2.2.4.4- Sobre as maravilhas de Jesus
Neste pequeno trecho, de apenas duas páginas,179 Antônio Conselheiro não escondeu sua
satisfação, ao contemplar a entrada triunfante de Jesus em Jerusalém, subentendido o texto de
Lucas (cf. Lc 29, 29-40). A única novidade foi o caráter otimista pinçado da narrativa. Durante o
acontecimento, os discípulos estavam “transportados de gosto”, cheios de “chusma a louvar a
Deus pelas maravilhas” e diziam: Bendito o reino que vem em nome do Senhor, paz no céu e
glória nas alturas.180 Nem sequer o apelo dos fariseus para Jesus repreender os discípulos foi
atendido: “Seguro-vos que se eles se calarem, clamarão as mesmas pedras”.181 Constata-se um
grande amor do Peregrino no manuscrito dos textos bíblicos, não deixando dúvidas quanto ao seu
caráter inspirado.
177 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 225. 178 Cf. MAC , p. 525. 179 Cf. MAC , p. 529-530. 180 MAC , p. 529. Ele trocou a palavra rei do texto de Lc 29,38, por reino: “Bendito seja aquele que vem, o rei,...”; por “Bendito seja aquele que vem, o reino...”. Teria sido um mero engano na transcrição do texto evangélico, ou ele identificava, de fato, Jesus com o Reino de Deus? 181 MAC , p. 530.
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2.2.4.5- Construção e edificação do templo de Salomão
Com uma prédica de seis páginas,182 ele descreveu em detalhes a construção do templo de
Salomão. Destacou a multidão de fiéis que trabalhou durante a edificação. Foram 70 000
carregadores de material; 80 000 cortadores de pedra; 3 600 inspecionadores e 2 000 cortadores
de cedro no Líbano.183 A construção era majestosa. Foram 60 côvados de comprimento; 20 de
largura; 30 de altura; um espaçoso alpendre em volta. Além disso, grandes odres para os
sacerdotes e o povo.184 Por dentro, as paredes eram forradas de cedros, representando querubins,
palmas de flores variadas. Havia belíssimos altares para o culto: 10 mesas; 100 taças ou cálices
de ouro puríssimo; o Santuário e o Santo dos Santos eram chapeados de lâminas de ouro.185
Descreveu a inauguração solene do templo: estavam presentes os Príncipes e anciãos,
transladando a Arca da Aliança. Os levitas tocavam atabales, saltérios e cítares; 220 sacerdotes
embocavam suas trombetas e romperam todas as vozes nesse festim o seguinte cântico: “Bendizei
ao Senhor porque ele é bom e sua misericórdia é eterna”.186 Ao entrar no templo com a Arca,
Salomão adorou ao Senhor, fez uma oração e foi atendido por ele: “Ouvi a tua oração, santifiquei
esta casa e meus olhos e meu coração aqui estarão sempre atentos para todos os que
invocaram”.187
A façanha da construção do templo de Salomão tinha similar: o sonho da construção das
várias capelas, por onde o Peregrino andava. A escolha do relato da construção do templo de
Salomão não foi aleatória. Antônio Conselheiro foi construtor de belas igrejas, como a de Monte
Santo, Chorrochó, Iambupe, existentes até hoje. Traça logo a relação: “O Templo de Salomão é,
182 Cf. MAC , p. 531-536. 183 Cf. MAC , p. 531. 184 Cf. MAC , p. 532. 185 Cf. MAC , p. 532-533. 186 MAC , p. 534. 187 MAC , p. 536.
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como o antigo Tabernáculo, uma figura das nossas Igrejas”.188 Zeloso pelas igrejas, tinha bom
gosto pelas construções: “uma autoridade de Itapicuru acusou o beato com seus superiores em
Salvador pelo desperdício de dinheiro que traz a construção de uma capela”.189 Inclusive, o
suposto motivo do desencadeamento da guerra foi a busca da madeira para a construção da igreja
nova de Canudos. Matéria abordada ainda neste capítulo.
2.2.4.6- Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio, padroeiro do Belo
Monte
O relato de sua prédicas, em 17 páginas,190 é uma comemoração da inauguração da igreja
do Patrono de sua comunidade. Primeiro, o novo templo, recebido pelo povo como dádiva do
Bom Jesus, tocou o coração dos fiéis a prestarem esmolas e seus braços durante os mutirões. Aos
colaboradores, ficava a certeza da recompensa generosa do Bom Jesus. O Peregrino sabia da
importância da nova igreja de Santo Antônio para agregar o povo, na casa de Deus. Considerava-
se indigno encarregado da construção. O novo templo de Canudos foi objeto de júbilo para o
Conselheiro.191 Não restavam dúvidas. Chegou o momento de reconhecer as contribuições dos
doadores e comemorar em comunidade. Convidou o povo para se alegrar e contemplar “com
júbilo as maravilhas que o Onipotente Senhor está fazendo aqui, por tanta glória, louvor e honra
ao nosso amável Jesus”.192
Teceu, ainda, duras críticas aos judeus, protestantes, maçons e republicanos.193 Eles deram
um triste testemunho de incredulidade, assemelhando-se aos judeus que só acreditam na Lei de
Moisés. Os judeus, maçons, protestantes e republicanos espalham doutrinas falsas e errôneas:
188 MAC , p. 536. 189 MAC , p. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 226. 190 Cf. MAC , p. 537-553. 191 Cf. MAC , p. 536. 192 MAC , p. 538. 193 Cf. MAC , p. 548.
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além das perseguições que fazem à religião do Bom Jesus, nunca eles vão triunfar porque Deus
protege sua obra.194 Eles eram ingratos. Não havia dúvidas quanto à verdadeira Igreja. “Foi
Nosso Senhor Jesus Cristo, fiéis, que fundou a sua Igreja, cujo ensino vem do Senhor: nela não
há erro, porque o seu fundador é a fonte de toda a sabedoria, santidade e perfeição”.195 Se Jesus é
o fundador da Igreja, quem tem coragem de não contribuir para a construção de um novo templo?
indagou o Peregrino, acrescentando: “Vejam, fiéis, se não é de grande utilidade e agradável aos
olhos divinos do nosso Bom Jesus a construção dos templos. [...] certamente não deixaria de
concorrer com suas esmolas e com seus braços para a construção de tão belas obras”.196
Sua crítica aos judeus, maçons e protestantes advinha do processo de romanização, tão
marcante na vida da Igreja. A visão eclesiológica do Peregrino era a de uma única Igreja, fundada
pelo próprio Cristo, detentora da verdade: não erra, pois seus ensinamentos procedem do próprio
Cristo, única porta pela qual passam as ovelhas. E comentou Jo 10,9: “Eu sou a porta e se algum
por mim entrar será salvo. Acreditem pois, fiéis, na lei da graça que é a verdadeira lei que devem
observar irrepreensivelmente para vossa salvação”.197 Para ele, não restam dúvidas, de que só
existia uma única Igreja: a Católica, Apostólica, Romana.
2.2.4.7- Sobre a parábola do semeador
O autor das prédicas contou, com suas palavras, a parábola do semeador (Lc 8,4-18) e o
convite aos pobres para o jantar (Lc 4, 2-14), em forma de resenha.198 Parecia identificar-se com
o semeador sertão afora. Teve consciência da prioridade do convite aos pobres. Estes deveriam
ser chamados para as refeições, respeitando a lógica do evangelho: “quando deres um festim,
194 Cf. MAC , p. 548. 195 MAC , p. 550. 196 MAC , p. 552. 197 MAC , p. 549. 198 Cf. MAC , p. 554-559.
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convida os pobres, aleijados, coxos e cegos, e serás feliz porque eles não têm com que retribuir:
com efeito, isso será retribuído na ressurreição dos justos” (Lc 14,13). A palavra de Jesus era
norma, Alexandre Otten acredita que o “trecho de Lc 24,12-14, alude, no entanto, no gosto do
conselheiro, que seguindo a palavra de Jesus, acolhe em sua companhia sobretudo os mais
miseráveis, que, segundo o Evangelho, não têm como retribuir. Canudos torna-se refúgio dos
pobres, coxos, aleijados e cegos”.199 O Evangelho precisava ser semeado no meio da gente
maltratada pela República.
2.2.4.8- Sobre a República, o casamento civil, a família imperial, a libertação dos
escravos
Com uma longa prédica de 34 páginas,200 Antônio Conselheiro comentou três temas
distintos: A Companhia de Jesus, o casamento civil, a família imperial e a libertação dos
escravos. Com um discurso eminentemente político, o Peregrino externou sua posição contra o
sistema republicano. Do ponto de vista da comunidade, a República era um assunto assombroso.
Ele não mediu as conseqüências e disparou contra o chefe da Nação: “O presidente da República,
porém, (é) movido pela incredulidade que tem atraído sobre ele toda sorte de ilusões, entende que
pode governar o Brasil como se fosse um monarca legitimamente constituído por Deus; tanta
injustiça os católicos contemplam amargamente”.201 Em seguida, atacou o sistema republicano.
Por ter uma base sobre um princípio falso, dele não se poderia tirar conseqüências legítimas.202 A
República era um grande mal para o Brasil. Seus governantes chegaram à incredulidade de
proibir até a Companhia de Jesus, de oprimir a Igreja e os fiéis do Bom Jesus.203 Os republicanos
199 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 228. 200 Cf. MAC , p. 560-623. Da página 569, há um salto para a página 600. Porém, não se constata descontinuidade no texto. 201 MAC , p. 564. 202 Cf. MAC , p. 567. 203 Cf. MAC , p. 560-569.
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também querem acabar com o casamento religioso. Por essas atitudes políticas, Antônio
Conselheiro posicionou-se contra a instituição: “A República é o ludíbrio da tirania para os fiéis.
Não se pode qualificar o procedimento daqueles que têm concorrido para que a República
produza tão horroroso efeito! Homens que olham por um prisma, quando deviam impugnar
generosamente a República”.204 As práticas excludentes dos republicanos acirravam os ânimos de
Antônio Conselheiro diante da crise política e do conflito entre Igreja e Estado. Não deixou seus
liderados à revelia da corrupção dos republicanos. Apelou para a moralidade da família. Animou
o povo diante da desordem: “Vamos com coragem combater os nossos inimigos com os olhos
fixos em Jesus Cristo, que pelos merecimentos da sua paixão nos oferece a vitória e a coroa”.205
Conselheiro não conseguiu superar a visão teocrática do poder. Em seu entendimento,
somente a família imperial teria legitimidade para governar o Brasil. Um juiz desse sistema tirava
o direito de quem tem para dar a quem não tem: “Negar estas verdades seria o mesmo que dizer
que a aurora não veio descobrir um novo dia”.206 Os que receberam legitimamente o poder de
Deus, somente a ele devem obediência: pontífice, o pai de família e os ministros de Deus para o
bem do povo. Quem, por direito divino, deveria governar legitimamente o Brasil é o Príncipe, D.
Pedro . Ele atribuiu o ódio dos republicanos à família real, porque sua alteza, a senhora Dona
Isabel, libertou os escravos das senzalas. Por isso, os republicanos guardavam ressentimento
desse ato de bondade.
Interpretando a visão maniqueísta e a teocrática presentes nos manuscritos do Peregrino,
José Luiz Fiorin conclui sobre sua cosmovisão:
A cosmovisão conselheirista insere-se num esquema axiológico maniqueísta: bem vs mal. Ao bem pertence os semas da cosmovisão exposta acima. Ao mal, seus contrários. O tempo histórico é, pois, uno, uma vez que a história se reduz à peleja entre o bem e o mal,
204 MAC , p. 562. 205 MAC , p. 613. 206 MAC , p. 569.
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ou seja, entre a Igreja católica, encarnação do bem, e os seus inimigos, que representam o mal.207
Essa visão teocrática incide, determinantemente, nos organismos sociais e produz ou
confirma uma determinada forma de conceber a organização da sociedade humana. A idéia
medieval atribui os semas englobante e englobado, respectivamente, às ordens espiritual e
temporal. “Os semas pertencentes a essa visão são, pais: / teocratismo/, cosmopolitismo/,
naturalidade/, estaticidade/, masculinidade/”.208
Antônio Conselheiro saiu em defesa do casamento religioso. Pediu aos pais de família que
não apoiassem as atitudes do governo contra o verdadeiro casamento religioso, único deixado por
Deus. Diante de Deus, o casamento civil não tem qualquer valor. Sendo a união religiosa um
contrato entre duas pessoas ligadas por amor, os casados na Igreja “são justificados com a graça
que lhes deu Nosso Senhor Jesus Cristo e autorizada com a cerimônia que lhes juntou a santa
madre Igreja”.209 O casamento entre homem e mulher, elevado pelo próprio Cristo à dignidade de
sacramento, seria puramente de responsabilidade da Igreja e só seus ministros teriam poder para
celebrá-lo.210 O poder temporal não devia exercer qualquer tipo de interferência nos atos
sagrados. O casamento cristão é da lei de Cristo, “figurando nele a sua união com a santa Igreja,
como diz São Paulo. Assim, pois, é prudente e justo que os pais de família não obedeçam à lei do
casamento civil, evitando a gravíssima ofensa em matéria religiosa que toca diretamente a
consciência e a alma”.211 Se o casamento civil foi inventado pelos republicanos que, por sua vez,
eram contra a Igreja, logo, não deveria ser seguido pelos membros de sua comunidade. Não
deveria haver medo. Deus protegeria sua Igreja, porque era obra-prima de suas mãos. O
207 FIORIN, José Luiz, A ilusão da liberdade discursiva: uma análise das prédicas de Antônio Conselheiro. Dissertação de mestrado apresentada na Universidade de São Paulo, 1999, p. 154. 208 Ibidem. 209 MAC , p. 605. 210 Cf. MAC , p. 607. 211 MAC , p. 607-608.
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Peregrino apelou para o Evangelho: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e a
Potência da morte não terá força contra ela” (Mt, 16,18). No cumprimento do direito divino
estava garantida a certeza da vitória. A Igreja e seus fiéis encontravam-se protegidos por vontade
divina.
No final dessa prédica, Antônio Conselheiro dirigiu uma reflexão sobre a escravidão
negra e sua abolição.212 O ato da Princesa Isabel não foi mais do que cumprir a ordem vinda do
céu. Era “chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo desse semelhante estado, o
mais degradante a que podia ver reduzido o ente humano”.213 Muitos escravos morriam debaixo
dos açoites, outros oprimidos do peso da fome e do trabalho. Alguns já não suportavam com
paciência tanta crueldade e, revoltados, se matavam!214 Os senhores de engenhos não sabiam que
era da vontade de Deus libertar os escravos. Deus agiu em socorro de seu povo nas senzalas:
“Chegou enfim o dia em que Deus tinha de pôr termo a tanta crueldade, movido de compaixão a
favor de seu povo e ordena para que se liberte de tão penosa escravidão”.215 Na concepção
religiosa de Antônio Conselheiro, o poder que desrespeita o ser humano, o oprime e o escraviza
não vem de Deus, mas de satanás. Até mesmo os clérigos aliados ao poder republicano, não
foram poupados pelo Beato de Canudos. Eles não passavam de falsos cristãos.
2.2.4.9- Prédica de despedida
O chamado discurso de despedida216 revela o otimismo de um homem satisfeito com a
missão recebida, agradecido de ter cumprido a vontade de Deus. Pelo desenrolar dos
acontecimentos, tinha consciência da proximidade da morte. Já com idade avançada, saúde
212 Cf. MAC , p. 619. 213 MAC , p. 619. 214 Cf. MAC , p. 623. 215 MAC , p. 623. 216 Cf. MAC , p. 624-628.
98
bastante fragilizada, ficou chocado com as invasões militares a Canudos e o massacre ao seu
povo. No final da guerra, em outubro de 1897, desejou que seus conselhos produzissem
abundantes frutos. Encorajou seus seguidores: “podeis entretanto estar certos de que a paz de
Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa luz e força, permanecerá em vosso espírito”.217 Lembrou-se de
pedir perdão dos erros cometidos: “Antes de fazer-vos minha despedida, peço-vos perdão se nos
conselhos vos tenho ofendido. [...] todavia não concebam que eu nutrisse o mínimo desejo de
macular a vossa reputação”.218 De forma poética e dramática, sente que é hora de despedir-se de
sua comunidade. Cheio de vivos sentimentos, pronuncia as últimas palavras, demonstrando as
gratas recordações, que jamais se apagarão de sua lembrança: “Adeus povo, adeus árvore, adeus
campos, aceitai a minha despedida, que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós,
que jamais se apagarão da lembrança deste Peregrino”.219 Finalmente, este Peregrino “aspira
ansiosamente à vossa salvação e ao bem da Igreja. Praza aos céus que tão ardente desejo seja
correspondido com aquela conversão sincera que tanto deve cativar o vosso afeto”.220 Foi o final
emocionado do seu discurso, dias antes da morte!
2.3- Tentativa de uma leitura sistemática do pensamento teológico do Conselheiro
Como ficou evidente, Antônio Conselheiro produziu um discurso teológico possível de
detectar uma linha de reflexão ou pensamento sistemático. Na qualidade de líder leigo, não foi
um cristão qualquer. O Peregrino não teve formação teológica para tal tarefa. Pode-se garimpar
nos seus escritos, elementos teológicos, enriquecedores, dos que se propõem compreender em
profundidade a contribuição que Antônio Conselheiro deixou para a história do Brasil,
especialmente para a Igreja Católica. “Não é de se esperar que o Conselheiro, como uma simples
217 MAC , p. 624. 218 MAC , p. 625-626. 219 MAC , p. 267-268. 220 MAC , p. 628.
99
pessoa religiosa leiga, desenvolva todo um sistema teológico coeso”.221 Com olhar mais atento
sobre seus manuscritos detectam-se verdadeiros filões teológicos.222 Com a finalidade de animar,
libertar e salvar o povo do Nordeste, Antônio Conselheiro oferecia algo que o historiador não
consegue mensurar na experiência do povo de Canudos: o aspecto religioso. Este deu sustentação
à organização sociológica do acampamento. Prevaleceu o interesse de alimentar a resistência dos
canudenses, a convivência respeitosa entre os membros de sua comunidade eclesial, inspirada nos
ensinamentos da fé cristã. Os Dez Mandamentos foram assumidos de forma concreta, tornando-
se a ética de sustentação da conduta dos integrantes do Arraial. Das prédicas sobre os
mandamentos, emergem três tipos de pecados: mácula, transgressão da lei divina e sujeição à
carne.
O Conselheiro demonstra conhecer razoavelmente Santo Agostinho; acreditava na força
da graça de Deus como superação do pecado. Por isso, para superar o pecado, faz-se necessário a
ascese. Ele deixa claro a necessidade de não infringir, de modo algum, nem mesmo por causa de
extrema necessidade material, as ordenações divinas. “A ética ensinada pelo Conselheiro tem um
traço qualificacional bastante nítido, a juridicidade. Há uma preocupação, corrente na época, com
a lei. [...] O conjunto doutrinário torna-se, então, lei, cuja violação é punida com a ira divina”.223
Euclides da Cunha, com sua cultura letrada, fez duras críticas ao conteúdo das pregações
do Beato do sertão nordestino. Não esconde a arrogância do letrado, detentor da ciência positiva,
fora da qual não existe verdade. E dispara contra o conteúdo das prédicas:
Uma oratória bárbara e arripiadora, feita de excertos truncados das Horas marianas, desconexas, abstrusas, agravadas, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e profecia esdrúxula... Era truanesco e era pavoroso. Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse... Parco de gestos, falava largo
221 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 232. 222 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 232. 223 FIORIN, José Luiz, A ilusão da liberdade discursiva: uma análise das prédicas de Antônio Conselheiro..., p. 158.
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tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopéia fatigante.224
O ataque de Euclides da Cunha ao Conselheiro não encontrou respaldo nas multidões que
acompanhavam o Peregrino. O literato não entendia como as pessoas davam ouvidos a tanta
“futilidade”, a um discurso atrasado, uma “moral ultrapassada” e “sem base científica”. De sua
boca saía apenas “uma ou outra frase incisiva. Enunciava-a e emudecia: alevantava a cabeça,
descerrava de golpe as pálpebras; viam-se-lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o
olhar – uma cintilação ofuscante... Ninguém ousava contemplá-lo”.225 O mais intrigante: “A
multidão sucumbida abaixa, por sua vez, as vistas, fascinada, sob o estranho hipnotismo daquela
insânia formidável”.226 Euclides da Cunha percebeu a reação positiva do povo às prédicas de
Antônio Conselheiro e uma “vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões,
estadeava o sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem os ouvia não se forra a
aproximações históricas sugestivas”.227
Não era de esperar de Euclides da Cunha uma reação de admiração ao Peregrino. Eram
representantes de dois brasis. O Brasil do litoral e o do sertão. Um representava o “letrado”; o
outro, o “ignorante”. Aquele, representava a “ciência”, o “homem civilizado” e o “Estado de
direito”; este, o “analfabeto”, o “homem atrasado”, “sem cultura” e a reação ao “Estado de
direito”. Não se podia exigir de um literato, um homem pautado pela ciência militar, formado nos
ditames da filosofia positiva, compreender um catolicismo enraizado na vida do povo, sem base
científica, liderado por um líder sem qualquer contato com o positivismo francês. Euclides não
foi capaz de perceber a base contestadora desse catolicismo, sem a qual a resistência não
encontraria explicação.
224 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 223-224. 225 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 224. 226 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p, 224. 227 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 224.
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Eduardo Hoornaert nos faz entender o papel desempenhado por esse catolicismo, na
religiosidade cultivada pelas principais lideranças eclesiais e suas marcas na vida das
comunidades. “O povo tem uma cultura própria e podemos mesmo afirmar que o catolicismo
popular constitui a cultura mais original e mais rica que o Brasil já produziu”.228 Rubens Alves
preencheu a lacuna deixada por Euclides, quando não percebeu o caráter contestador e próprio
dessa religiosidade. Esta funciona como “um protesto contra uma realidade estranha (cultural,
econômica e política) que é imposta de cima para baixo [...] O arcaico se transfigura em utópico,
a aparente presença do passado se transforma em anúncio do futuro, a memória torna-se
profecia”.229 A nosso ver, faltou essa percepção ao literato. Com isso, comprometeu sua visão
religiosa correta do discurso do Conselheiro. Euclides entendeu como “excertos truncados das
Horas marianas” e ousadas “citações latinas”.230 O olhar do teólogo detecta como uso de fontes
da ciência teológica.
Os fundamentos teológicos de Antônio Conselheiro foram bem sedimentados pela
experiência adquirida no contato com os padres Ibiapina, Cícero e os diversos manuais de
religiosidade popular circulantes no seu meio. A teologia encontrada nos seus manuscritos não
difere do pensamento teológico presente nos manuais de teologia de seu tempo. Antônio
Conselheiro não incorreu em heresias. Ao contrário, suas homilias concorrem com os
missionários capuchinhos e vigários da região. Salta aos olhos a ligação de seu pensamento com
a Tradição da Igreja, o uso freqüente da Bíblia; recorreu diversas vezes aos Santos Padres. O fato
de reconhecer essa ortodoxia nas prédicas do Conselheiro não o abdica da liberdade para criticar
o sistema eclesiástico, distante do povo, a exigir compromisso da República e repulsa ao sistema
coronelista, causadores dos males no sertão.
228 HOORNAERT, Eduardo, A formação do catolicismo brasileiro..., p. 99. 229 ALVES, Rubens, A volta do sagrado, in: O suspiro dos oprimidos, São Paulo: Paulinas. 1992, p. 139. 230 Cf. CUNHA, Euclides da, Os sertões..., p. 223.
102
A fé no Deus presente ao lado do povo da Bíblia, na escravidão, o amor misericordioso de
Jesus, alimentado pela oração diária, a participação nos sacramentos – especialmente do batismo,
reconciliação e eucaristia – uniam a comunidade num único objetivo: viver a fé cristã na oração,
na fraternidade, no trabalho, no cuidado aos pobres e indefesos que chegavam a Canudos. A
presença de Jesus na vivência dos sacramentos, a certeza de um Deus compassivo e
misericordioso para com os pobres, presença do Cristo libertador e o exemplo de Maria e dos
santos, forma uma espécie de “núcleo duro” do pensamento de Antônio Conselheiro, são o “fio
condutor” de sua reflexão teológica, conforme a análise dos principais pontos, a seguir.
2.3.1- O Deus Criador, Misericordioso e Onipotente
É o ponto mais significativo das prédicas de Antônio Conselheiro. Ele trata do primeiro
mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e de todo o
teu entendimento. Este é o máximo e o primeiro mandamento (Mat., cap. 22, v. 38)”.231 O Beato
levanta uma pergunta sobre Deus, num tom de admiração, contemplando a bondade do Pai, ao
enviar seu Filho para resgatar o homem do pecado: “Ah! Que maior amor podia Deus mostrar-
nos depois de condenar à morte seu Filho inocente para salvar miseráveis pecadores como
nós?”232 E contrapõe o poder de Deus ao poder dos poderosos da República e coronéis do sertão:
“Só Deus é grande”. Expressão que ficou consagrada no pensamento do Peregrino. Nada neste
mundo está acima do Criador: “Deus é rico e Todo-Poderoso, Senhor do céu e da terra, do mar e
de todos os bens e haveres deste mundo”.233 Somente diante de Deus, Eterno Pai, o homem deve
dobrar seus joelhos. Poder supremo, só Deus. O Peregrino revelava isso, através da oração: “ó
Criador Supremo, o plano da vossa providência: Maria é nossa co-redentora; isto basta para
231 MAC , p. 224 232 MAC , p. 241. 233 MAC , p. 477.
103
convencer-nos de que ela tem de ser a mais atribulada de todas as mães, porque Jesus, seu Filho,
vai ser o mais humilhado de todos os homens”.234
Antônio Conselheiro desenvolveu uma reflexão segura e teologicamente correta ao tratar
das três pessoas trinitárias e suas relações entre si. Ainda, comentando o primeiro mandamento, o
Peregrino se alegra. Reconhece a proteção de Deus diante de Isaac, prestes a ser sacrificado por
vontade divina. Deus acudiu, mandando-lhe o anjo suspender o golpe, provando seu amor para
com Abraão, seu Pai.235 Impressiona a forma de dirigir-se a Deus, parafraseando São João
Crisóstomo:
Oh! Maravilhosa condescendência de vossa ternura! Oh! rasgo incomparável de caridade! Para resgatar o escravo entregastes o Filho! Deus infinito! Como pudestes usar de ternura tão amável. Quem jamais poderá compreender o excesso desse amor, pelo qual para resgatar o escravo quisestes dar vosso Filho Unigênito?236
A linguagem utilizada pelo Peregrino sobre Deus-Pai-Criador revela a visão de um Deus
amoroso. Valorizou o aspecto do amor divino, a ternura de Deus, a graça recebida sem
merecimento humano, instalada com a morte vicária de Cristo. Recebeu influência da teologia do
pecado original de Santo Agostinho. Deus tem, ainda, características bem definidas: “Há uma
tendência de enfocar no Onipotente Todo-Poderoso o Eterno Pai, no Deus infinito o Deus de
amável ternura, no Ser supremo sem sofrimento o Deus da compaixão, no Deus Criador soberano
o Deus que quer habitar em meio do seu povo”.237 Apresentou um argumento tomista sobre o
Deus Uno e Trino, ao referir-se a Santo Tomás de Aquino:
“Ora o Dom que o Eterno Pai nos fez de seu Filho foi verdadeiro dom gratuito e sem merecimento algum de nossa parte; é por isso que se diz que a Encarnação do verbo teve lugar pela operação do Espírito Santo, isto é, unicamente pelo amor, como se exprime o mesmo doutor”.238
234 MAC , p. 144-145. 235 MAC , p. 225. 236 MAC , p. 287-228. 237 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 236. 238 MAC , p. 229-230.
104
O Deus Uno e Trino demonstra seu amor, enviando-nos seu único Filho. Nota-se, de certa
maneira, a insistência no aspecto da ternura do Pai e uma visão de Deus distinta daquela pregada
pelos missionários: um Deus vingativo e castigador dos pecadores. Visão que ficará mais nítida
quando ele fala sobre o sacramento do perdão. Quem é ingrato a Deus vive cego. Quem conhece
Deus abandona o pecado e muda de vida”.239 Após exame do pensamento do Cardeal Hugo,
afirma que Deus enviou Jesus para dar o último golpe e ferir de amor os corações humanos. “Na
antiga lei podia o homem duvidar se Deus o amava com ternura, mas depois de o ter visto
derramar o seu sangue num suplício e morrer, como podemos duvidar se nos ama com toda
ternura do seu coração?240 Mesmo pregando sobre o amor misericordioso de Deus, não deixou de
chamar a atenção para os que não seguiam seus mandamentos e insistiam no desprezo a Deus e
na ofensa aos irmãos. Todos os homens devem temor a Deus e precisam acertar contas em
qualquer cargo ou poder em que se vêem constituídos.241 Quem não respeita a vida humana está
sujeito às penas divinas: “Ação digna de um grande castigo e repressão, tanto pela ofensa a Deus,
como do próximo”.242 O Peregrino não tolerava a injustiça aos filhos de Deus. Sempre insistia na
prática da Palavra de Deus.
Alexandre Otten é categórico no que diz respeito à linha de pensamento de Antônio
Conselheiro: “Este centro do pensamento teológico do Conselheiro – o Pai amoroso que entrega
o próprio Filho para salvar os homens – é pelo beato representado e atualizado para seus
seguidores”.243 No tempo certo, Deus libertou os escravos da dura servidão.244 O fim desta
humilhação tornou-se possível por amor de Deus ao seu povo sofrido.
239 MAC , p. 243-244. 240 MAC , p. 226. 241 MAC , p. 263. 242 MAC , p. 265. 243 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 235. 244 Cf. MAC , p. 616 e 623.
105
2.3.2- Concepção sobre Jesus Cristo
Antônio Conselheiro não deixava dúvidas: Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, é o
Bom Jesus, o Divino Redentor.245 Oferecendo-se por nossos pecados, o Bom Jesus se fez amável
Redentor, segunda pessoa da Santíssima Trindade.246 Dirigindo-se ao Bom Jesus, externava sua
total confiança: “Oh! Bom Jesus, que fazendo tantos prodígios de amor, não pode ainda ganhar os
nossos corações? [...] Oh! Se todos os homens pensassem no amor que Jesus Cristo nos
testemunhou morrendo na cruz por nós [...]”.247
Jesus, por ser o Rei dos mártires, cujo poder está acima de qualquer outro, tornou-se
homem sem deixar de ser Deus, foi uma vítima destinada ao sacrifício, para o bem do gênero
humano. Jesus Cristo nos alcançou mais bem por sua morte do que o demônio nos fez mal pelo
pecado de Adão.248 Jesus veio tomar a natureza humana, concebida de Maria, nascida em Belém,
“despachando do Poço da Santíssima Trindade, trazendo o poder, o saber e o amor. Foi assistido
dos anjos, adorado dos reis e visitado dos homens”.249 Como Filho do Eterno Pai, nasceu pobre,
“viveu independente, morreu despido e partiu para sua pátria com muitas enchentes de graças;
pelos merecimentos que fez na terra em todo o tempo do seu bom governo, levando o título de
rei”.250 Morreu na cruz para nos salvar; no fim do mundo ele voltará vitorioso.
Podemos encontrar diversos títulos cristológicos sobre o Deus encarnado: Filho de
Deus,251 Nosso Senhor Jesus Cristo,252 O Bom Jesus,253 Adorável Jesus,254 Amado Filho.255
245 Cf. MAC , p. 224 e 239. 246 MAC , p. 229-230. 247 MAC , p. 233. 248 Cf. MAC , p. 244. 249 MAC , p. 268. 250 MAC , p. 269. 251 Cf. MAC , p. 10. 252 Cf. MAC , p. 268. 253 Cf. MAC , p. 239. 254 Cf. MAC , p. 133. 255 Cf. MAC , p. 134.
106
Enfim, “O mais gentio dos filhos dos homens entre os brutos e na mais completa pobreza”.256
Poder-se-ia desenvolver uma verdadeira cristologia, a partir desses títulos.
2.3.3- A idéia sobre o Espírito Santo
Antônio Conselheiro pouco ocupou-se da pessoa do Espírito Santo. Refere-se à terceira
pessoa da Trindade, por ocasião da visita do anjo à Maria, na encarnação do Verbo de Deus
dizendo: “O Espírito Santo descerá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra
[...].257 Lembra Santo Tomás de Aquino: “é por isso que se diz que a encarnação do verbo teve
lugar pela operação do Espírito Santo, isto é, unicamente pelo amor, como se exprime o mesmo
doutor”.258 Não se poderia esperar uma longa reflexão do Conselheiro sobre a pessoa do Espírito
Santo. É a partir do desenvolvimento do pentecostalismo evangélico e católico, pouco antes do
Concílio Vaticano II, nos Estados Unidos, que a terceira pessoa da Trindade passou a ocupar
lugar de destaque na pneumatologia ocidental. Foi uma lacuna no pensamento de Antônio
Conselheiro.
2.3.4- A idéia sobre a Igreja Católica
Ao predicar sobre a Igreja, o Conselheiro apresentou sua definição sobre ela,
aconselhando seus membros ao dever de permanecerem unidos ao Deus Criador: “a Igreja é a
congregação dos fiéis que, por dever indeclinável, devem curvar-se reverentemente diante de
Deus, rendendo-lhe as devidas adorações, invocando seu nome com amorosa confiança, tendo
por certo que Deus lhe será propício”.259 É de origem divina, nasceu da vontade do Salvador. Não
tem medo de dirigir-se aos fiéis para comunicar esta verdade de fé: “Foi Nosso Senhor Jesus
256 MAC , p. 10. 257 MAC , p. 428. 258 MAC , p. 229-230. 259 MAC , p, 550 -551.
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Cristo, fiéis, que fundou a sua Igreja”.260 Ele fundou uma única Igreja. Se ela é uma obra-prima
da vontade do Bom Jesus, “conseqüentemente só ela é verdadeira, cujo ensino vem do mesmo
Senhor: nela não há erro, porque seu fundador é a fonte de toda sabedoria, santidade e
perfeição”.261 A salvação de Cristo realiza-se através da Igreja Católica, Apostólica Romana. A
única Igreja verdadeira é constituída “pelos santos e convertidos, por aqueles que puseram o amor
de Deus e a busca da salvação em primeiro lugar, que seguem a Lei divina e os preceitos da Santa
Igreja e da Santa Religião com pertinência e assiduidade”.262 Conselheiro não acha normal, nem
da vontade do Bom Jesus, o aparecimento de Igrejas protestantes e outras atitudes que
contestavam a soberania de Deus e o trabalho da Igreja Católica. Pelo menos com os protestantes
não estava disposto ao diálogo. Colocava os judeus, maçons e republicanos na vala comum dos
que atrapalhavam a missão da Igreja:
Quem teria nunca imaginado que no século dezenove, cujo povo foi educado nos santos salutares princípios da religião cristã, que muitos deles deixassem de se nutrir do verdadeiro sentimento do amor de Deus; além de terem tão triste testemunho, ocorre que se movem pela incredulidade, imitando assim os judeus, idéia horrorosa, pensamento ingrato; que eles não ligam a menor importância pela sua salvação, como são os maçons, protestantes e republicanos, porque eles também só acreditam na Lei de Moisés, espalhando doutrinas falsas e erronias aos ignorantes, arrastando assim tantas almas para o inferno, além das perseguições que eles fazem à religião do Bom Jesus, nunca eles hão de triunfar, porque Deus protege a sua obra.263
Conselheiro não estava fora do seu tempo. Seu pensamento sobre o protestantismo, os
judeus, a maçonaria e a República se coadunava com a Igreja Católica, do final do século XIX.
Dos próprios ensinamentos da Igreja oficial nasceram, no coração do Peregrino, o amor à Igreja e
a reação a seus opositores.
A ojeriza ao protestantismo e judaísmo talvez decorresse mais dos livros de piedade,
escritos na Europa (especialmente em Portugal e Roma), do que de um confronto com igrejas
260 MAC , p. 550. 261 MAC , p. 550. 262 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 242. 263 MAC , p. 547-548.
108
diferentes, no contexto sertanejo. O protestantismo só começa ter influência no Brasil, a partir do
início do século XX, com a chegada das primeiras convenções ao País, com os imigrantes
europeus. Francisco Rolim data de 1910 e 191 a chegada das igrejas Assembléia de Deus e
Congregação Cristã no Brasil, respectivamente.264 Nesse período, o Nordeste não recebia
qualquer influência religiosa, além da Igreja Católica, tão querida pelo Peregrino e das religiões
indígenas e afro. Na comunidade de Canudos, havia uma grande quantidade de índios e negros.
Aliás, diga-se de passagem, não há registro de conflitos entre o Conselheiro e as religiões dos
índios e negros; se existiram, não foram significativos, a ponto de atrapalhar a comunidade. Tudo
leva a crer que havia uma tolerância às diferentes experiências religiosas, trazidas pelos membros
que chegavam à comunidade. Prevalecia, é claro, o catolicismo.
2.3.5- A idéia sobre o papa, os cardeais e os bispos
Nos textos extraídos da Sagrada Escritura, mesmo sem muitos comentários, Antônio
Conselheiro não se esqueceu de citar Mt 16,18. Como de costume, primeiro transcreve a citação
em latim (prática que irritou Euclides da Cunha), seguida da tradução: “Tu és Pedro e sobre esta
pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.265 Reconhecia
a liderança do Papa, afirmando: “Na vara do sumo pontífice se vêem expressamente estas três
cruzes, símbolo do supremo poder daquele supremo ministro de Deus”. Não cita o outro texto de
Mt. 18,15-18, (sobre a correção fraterna), interpretado teologicamente à luz de Mt 16,18, que
amplia o peso da autoridade individual de Pedro, à luz da comunidade. 266 Ele não se colocava
contra a Igreja ou suas autoridades. Só fazia críticas quando os prelados abandonavam os pobres
e optavam pelos ricos e poderosos, muitos deles contra a Igreja do Bom Jesus e seus pobres. O
Conselheiro superou a média de conscientização entre os excluídos do sistema político e 264 Cf. ROLIM, Francisco Cartaxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina, Petrópolis: Vozes, 1994, p. 15. 265 MAC , p. 435. 266 MAC , p. 500-501.
109
religioso. Conseguiu perceber as deficiências da Igreja e da República. Papas, cardeais,
arcebispos e bispos devem estar a serviço de Deus e, através das bênçãos, dirigir o povo para o
bem:
Estas bênçãos se vêem lançar os papas, cardeais, bispos e todas mais pessoas constituídas em dignidade eclesiástica, no fim da missa e mais cerimônias da Igreja, quando abençoam os cristãos, invocando as três pessoas da Santíssima Trindade, que as formou e dirigiu para nosso bem.267
Antônio Conselheiro, como leigo, não celebrava os sacramentos da Igreja. Ao falar da
investidura dos papas, dos cardeais, dos arcebispos, dos bispos e de outras pessoas “constituídas
em dignidade eclesiástica”, o Peregrino deixa entender a prática do uso da aspersão dos fiéis com
água benta, por cristãos leigos. Não havia recomendações em contrário por parte da Igreja,
mesmo sabendo do forte uso, pelos missionários ordenados, de bênçãos com aspersão, durante as
missões populares. O Beato afirmava venerar os Santos Padres, porque eram colunas da Igreja
Católica Apostólica Romana.268 Essa veneração aos Santos Padres levou Antônio Conselheiro a
assumir, ao lado da Bíblia e dos documentos eclesiais, uma das fontes essenciais da ciência
teológica. Por isso, justifica o conteúdo teológico de suas prédicas como corretos no ponto de
vista da tradição teológica. Facilmente, lidava com autores das principais fontes eclesiais: Bíblia,
Santos Padres, papas e diversos santos e santas (doutores da Igreja).
A partir desses temas teológicos concretos, os atores políticos e religiosos da República
perceberam a grandeza prática do projeto de Antônio Conselheiro. A comunidade de Canudos
cresceu rapidamente e, por isso, a decisão de impedir a proliferação da experiência foi uma
atitude das autoridades de não deixar essa forma de organização social prosperar. A partir daí,
vêm as decisões de reprimir de qualquer jeito, a comunidade solidária de Antônio Conselheiro.
267 MAC , p. 500. 268 Cf. MAC , p. 474-475.
1104
2.4- O enfrentamento de Masseté
Antes de chegar a Canudos, em 1893, durante a passagem por Bom Conselho,269 no
distrito de Soure, Antônio Conselheiro reagiu às altas taxas de impostos. Os editais eram
afixados, por determinação da Câmara de Vereadores. Em dia de feira livre, o Conselheiro reuniu
o povo e, entre foguetes e aplausos, mandou arrancar das paredes e queimar os editais, como
forma de protesto para não pagá-los. Durante o ato, não houve vítimas. Num lugarejo chamado
Messeté, entre Tucano e Cube as forças policiais atacam duramente o povo do Conselheiro. A
resposta do grupo do Conselheiro foi a altura. Os soldados bateram em retirada. Pressionadas
pelas lideranças políticas e pelos comerciantes da região, as autoridades locais, entre elas, o juiz
Arlindo Leone, posteriormente transferido para Juazeiro, não tiveram como reagir. Antônio
Conselheiro, sem ser incomodado, pôde sair de Bom Conselho para Monte Santo. A denúncia do
ocorrido chegou a Salvador, pelo citado juiz. A “vingança” chegará. Mesmo transferido para
Juazeiro, Dr. Arlindo Leone espera um dia encontrar o Conselheiro.
2.5- A comunidade solidária de Canudos
Pelo caminho já percorrido, foi possível mostrar os fundamentos políticos e religiosos da
comunidade de Canudos. Mesmo partindo de uma cosmovisão teocrática (Deus é o verdadeiro rei
e dele emanam todos os poderes deste mundo), Antônio Conselheiro deu passos significativos na
organização da comunidade solidária. O projeto de vida em Canudos escapa à racionalidade
sociológica, não segue as leis que os sociólogos consideram constitutivas para a edificação de
uma sociedade. Assim como essa forma de organizar a vida em Canudos se recusa a ser nivelada
pela ideologia funcionalista e desenvolvimentista, do mesmo modo não deve ser enquadrada num
processo dialético de sociedade. A experiência vivida em Canudos se inspirava no modelo
269 Atual Cidade de Cícero Dantas.
111
evangélico simples da vida apostólica. Como profeta de Deus, Conselheiro sentia-se ordenado a
criar uma comunidade alternativa, orientada por outras leis, capaz de abrir aos desiludidos as
portas do céu e, com elas, um caminho a uma vida digna nesta terra.270 A sociologia deve admitir
a “inércia” da fé no processo formativo da comunidade do Belo Monte, e não dedicar a ala
atenção secundária. Para Otten, “é pouco dizer que era um passo para a conscientização da
realidade de classe. A base transcendental do projeto pretende o “outro” ou o “novo” e quer mais
do que a eliminação da sociedade classista”.271
Canudos foi-se formando aos poucos. O País tinha superado a escravidão oficial, parte da
população negra migrara para Canudos; aumentava o séquito de Antônio Conselheiro. As altas
taxas de impostos inviabilizavam a vida das pessoas; o desemprego, a migração interna no
Nordeste e as sucessivas secas provocavam na população a busca de novas formas de vida. O
Barão de Jeremoabo não escondia sua preocupação ao perceber o deslocamento de pessoas,
deixando os povoados, lugarejos e fazendas, para acompanharem o Conselheiro. Sintetizou a
angústia dos grandes proprietários rurais: “O povo em massa abandonava suas casas a afazeres
para acompanhá-lo. Com a abolição do elemento servil, ainda mais se fizeram sentir os efeitos da
propaganda pela falta de braços livres para o trabalho”.272 Na visão do Barão, o abandono do
trabalho nas fazendas e comunidades, não era fruto da racionalidade. “A população vivia como
que em delírio ou êxtase e tudo quanto não fosse útil e agradável ao inculcado enviado de Deus
(A. Conselheiro) facilmente não prestava”.273 E não atraía somente os pobres, desempregados e
sem terra, mas “famílias inteiras, algumas abastadas, vendiam o que possuíam, reuniam os
parentes afastados e marchavam para a Cidade-Sagrada”,274 afirma o combatente oficial tenente
270 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 362-363. 271 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 362. 272 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 153. 273 Cit. In: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 153. 274 SOARES, Henrique Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos, Rio de Janeiro: Altina, 2903, p. 36.
112
Macedo Soares. Belo Monte tornou-se a única alternativa capaz de vislumbrar dias melhores para
o povo. Além do sonho de encontrar um lugar durante a peregrinação pelo sertão para fundar uma
comunidade e poder alimentar a esperança de sua gente, o Conselheiro carregava a fama de
construtor de Igrejas, cemitérios, pequenos açudes, coordenar trabalhos de mutirão, organizar
rezas e defender os pobres. A passagem pelo interior do Ceará, Sergipe e Bahia, fez ampliar o
horizonte da escolha de uma localidade certa (Canudos) às margens do rio Vaza-Barris, tendo
como principais afluentes os riachos Mauruquem, Umburana, do Mato, da Providência e o rio
Sargento, para instalar sua comunidade. A região desfrutava de posição privilegiada: passagem
para Cumbe, Camboio, Calumbir ou Rosário, Massacará e Jeremoabo; caminhos abertos à
penetração do Rio São Francisco de um lado, Juazeiro e do outro, Paulo Afonso; saídas para
Aracaju, via Jeremoabo e Salvador, pela estrada de Monte Santo. Ao chegar a Canudos, sua
liderança já tinha sido consolidada nas estradas. No início da aventura, Antônio Conselheiro disse
ao povo reunido, de onde vinha sua façanha:
- Sim, meus irmãos, obedecei à Igreja e aos mandamentos de Deus Nosso Senhor, nosso pai e salvador eterno, de quem sou na terra um miserável apóstolo, porque ele me apareceu uma noite e disse: - Antônio, sairás pelos sertões, como seu xará de Lisboa, a fazer penitência, pregando o meu Evangelho e as Escrituras Sagradas; sofrerás perseguições dos maus e dos hereges, que retribuirás com benefícios derramados por onde passares; terás como Pedro, Paulo e todos os meus santos discípulos, o teu povo que te seguirá e de que serás o guia; encher-te-ei de poder na terra e serás tu e serão os teus adeptos cheios de graça na vida eterna.275
Batizado, pelo próprio Peregrino, de Belo Monte, o local, até então conhecido como
fazenda Umburana, serviu como chão para o início do sonho dos cerca de 800 seguidores de
Antônio Conselheiro, em meados de junho de 1893. A ocupação teve início de forma organizada.
O historiador observou a preocupação do Peregrino com os que chegavam sem que houvesse casa
para todos. Já bem próximo a Canudos, na Freguesia de Itapicuru, o Conselheiro havia mandado
construir “um barracão para abrigar os romeiros e cavou um tanque, onde os habitantes iam
275 BENÍCIO, Manoel, O Rei dos Jagunços: crônicas históricas e de costumes..., p. 51.
113
buscar água. Batizou o arraial com o nome de Bom Jesus e tratou de edificar a capela sob sua
invocação, defronte da qual ergueu um imponente cruzeiro”.276 Não foi Antônio Conselheiro
sozinho quem construiu Canudos. Em pouco tempo a comunidade se estruturou. Não perderam
tempo. Muita gente precisava se organizar, plantar e comer. O entusiasmo pela terra motivou a
imaginação do trabalhador sertanejo. Terra boa, água do rio Vaza-Barris, sol e coragem de
trabalhar. A comunidade iniciou imediatamente as plantações:
As margens frescas do rio eram cultivadas com plantações de diversos legumes, milho, feijão, grogotuba, favas, batatas, melancias, jerimuns, melões, canas, etc. Nos terrenos arenosos, vinham-se milhares de matombos, grelando o talo tenro das mandiocas e outros com estacas de diversos tamanhos. Pela vizinhança, os pequenos cultores da terra (pequenos agricultores), em Canudos, possuíam sítios, pomares, fazendolas de criação de bodes, animais vacuns e cavalares [...].277
A “plantação obedecia a um plano preestabelecido para garantir à cidade o seu auto-
abastecimento. A produção ultrapassava o consumo, e o excedente era armazenado ou vendido
em localidades vizinhas como Jeremoabo e Monte Santo”.278 Tudo sob a coordenação do
Conselheiro. Ele não permitia que seus colaboradores “cometessem abusos nem tão pouco que os
encarregados da fiscalização se excedessem no exercício de suas funções. Ninguém ousava
desobedecer-lhe. Para manter a ordem, Antônio Conselheiro não poderia fraquejar”.279 Em menos
de quatro anos, Canudos recebeu mais de 25 mil peregrinos.280
Honório Vilanova recebeu tal confiança do Peregrino que chegou a ser encarregado de
receber as esmolas ofertadas e dividi-las para os pobres e mendigos. “Ele era para o Conselheiro
276 CALAZANS, José, Antônio Conselheiro: construtor de Igrejas e cemitérios, in: Revista Brasileira de Cultura, 26 (1973), p. 75. 277 Cit in: BLOCH, Didier (org.), Canudos, 200 anos de produção, vida cotidiana e economia..., p. 82. 278 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 121. 279 MONIZ, Edmundo, A guerra social de canudos..., p. 121. 280 Cf. VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra...p. 220. Há divergências quanto ao número de habitantes em Canudos. A Comissão de Engenharia do Exército, no final da guerra, fala em 5 200 casas. Cerca de 25 mil habitantes. Marco A. Villa duvida que três oficiais do Exército, em poucas horas tenham contado casa por casa e chegado a 5 200. A Capital do Estado da Bahia, contava com 174 mil habitantes. Santo Amaro, o maior município do interior, tinha cerca de 66 mil habitantes. O mapa divulgado amplamente pelo Exército brasileiro, apresenta as casas do acampamento com uma extensão de aproximadamente mil metros quadrados de comprimento por mil metros de largura. Canudos “nunca se aproximou de 25 mil habitantes, possuindo no máximo 20 mil pessoas”, afirma Marco Vila. Ibidem, p. 220.
114
o que um médium é para o organizador ou o que os compadres são para os mágicos
ambulantes”.281
Na estruturação da comunidade, levou-se em conta a aptidão de seus moradores,
estabelecendo-se uma ética fundada nos Dez Mandamentos, no temor ao Deus Amor, no
seguimento a Jesus Cristo, na vivência dos sacramentos (especialmente Batismo, Reconciliação e
Eucaristia) e na vida fraterna, inspirada na experiência dos primeiros cristãos, alicerçados nos
cinco primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, etc. Trabalhavam febrilmente, dentro do
lugarejo e nas cercanias. Rapidamente foram levantadas cerca de duas mil casas de pau-a-pique,
cobertas de telha. A construção da Igreja ocupou o ponto central da comunidade.
Vilanova, um dos moradores, sobrevivente da Guerra de Canudos, deixou suas impressões
sobre a vida no Arraial: “Era um formigueiro de gente, zelosa e ordeira nos seus bons costumes,
onde não havia uma só mulher prostituta”.282 E ainda, o Peregrino respeitava a profissão e as
aptidões de cada membro da nova comunidade:
Grande era o Canudos do meu tempo. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de rezar ia rezar. De tudo se tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino.283
Havia uma forte presença do Conselheiro. Vilanova confirmou sua saudável liderança:
“Reinava o Peregrino. A sua palavra era ouro de lei. A sua mão, suave. O bastão era apenas para
apoiar o corpo moído de tantos sacrifícios e rezas. Isto. Mais nada”.284 Não se tem notícia de
abuso de autoridade por parte do Peregrino. Houve casos de pequenos proprietários rurais que
venderam bens e as entregaram ao Conselheiro. Alguns grandes proprietários fizeram o mesmo.
De todos os lados chegavam ajuda. E assim, a comunidade se fortalecia.
281 BENÍCIO, Manoel, O Rei dos jagunços, crônicas históricas e de costumes..., p. 47. 282 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova, 2. ed., Rio de Janeiro: Renis; INL, 1983, p. 67. 283 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova..., p. 67. 284 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova..., p. 67.
115
Canudos era um campo experimental. E tudo corria bem sem que ninguém usasse da esperteza para usufruir proveitos individuais. Antônio Conselheiro agia com rigoroso critério e exercia constante vigilância por meio de seus colaboradores.285
Aos poucos, os visitantes iam recebendo as orientações do seu líder maior. A oração
alimentava diariamente os moradores da Nova Canaã.
Ao fim da tarde, quando soavam os sinos da Ave-Maria, no santuário onde se via uma pequena mesa de pinho, coberta por uma toalha de linho branco, ele (Antônio Conselheiro), de túnica azul, aparecia diante dos fiéis e pregava durante uma hora ou mais, às vezes duas ou três, conforme a importância do assunto, examinando os fatos ocorridos, ditando um bom comportamento cristão baseado no amor ao próximo e na prática do bem, assinalando a santa obrigação de defender Canudos em caso de agressão. Todos o ouviam silenciosos, magnetizados pelas suas palavras convincentes. Não ousavam desviar-se do caminho que o Conselheiro traçava.286
O povo via em Canudos o que J. B. Libanio afirmou a respeito dos movimentos
religiosos, especialmente de caráter messiânico:
Por sua vez, a religião cristã lhes fala da dignidade dos filhos de Deus. Promete-lhes aquilo para que foram chamados. Há, portanto, no capital religioso das camadas populares esse elemento riquíssimo de um chamado de Deus, de um projeto divino para os pobres, onde poderão realizar-se como pessoas dignas. [...] O contraste entre as promessas de Deus e a realidade vivida pelo povo, vivido pela pregação de um líder religioso, desencadeia facilmente movimento de reivindicação.287
Caminhar conforme o ritmo da comunidade era uma questão de vida ou morte. Canudos
tornou-se a única alternativa possível para enfrentar a crise.288 Para os que chegavam, Belo
Monte era um oásis no sertão. Antônio Conselheiro “impunha espontaneamente um respeito
religioso. Sua autoridade sustentava-se não só na razão e na fé, mas também na força de vontade.
[...] sabia ouvir as sugestões dos companheiros de confiança”.289 As principais reuniões com as
lideranças mais influentes realizavam-se no santuário.
285 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 121. 286 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 121. 287 LIBANIO, João Batista e BINGEMER, Maria Clara, L., Escatologia cristã, Petrópolis: Vozes, 1985, p. 45. 288 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 362-367. 289 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 122.
116
2.6- Por que a comunidade de Canudos constituiu-se um perigo para a República?
As elites políticas e agrárias logo perceberam que não poderiam subestimar o movimento
de Belo Monte. Para a burguesia rural e as elites urbanas, Canudos passou a ser uma espécie de
movimento separatista, um cisto instalado no coração da República. Procurava-se um motivo
para justificar a destruição de um foco crescente, cada vez mais referencial para os injustiçados
da região. Essa forma de organização social não interessava aos proprietários de terra e lideranças
políticas. Acabar com o séquito de Antônio Conselheiro era indispensável para a “paz social”. A
migração para o arraial não parava. O acampamento virou um formigueiro humano. Os
proprietários temem a perda da mão-de-obra barata nas fazendas. A preocupação era real. O povo
não queria saber do trabalho nas grandes fazendas. “Assim foi escasseando o trabalho agrícola, e
é atualmente com suma dificuldade que uma ou outra propriedade funciona. O povo em massa
abandona suas casas e afazeres para acompanhá-lo”.290 Os donos de latifúndios organizaram as
primeiras reações, somadas às lideranças políticas da Bahia e do Brasil.
Fazia-se urgente desqualificar os membros da comunidade ali instalada, como também
seu principal comandante, Antônio Conselheiro. Os raivosos necessitavam da opinião pública a
seu favor. O recuo das forças militares durante o confronto de Masseté, em maio de 2893, após a
queima dos editais de cobrança de imposto, ficou entalado na garganta do alto comando da
Polícia Militar da Bahia e, mais ainda, no Juiz da Comarca de Bom Conselho, Dr. Arlindo Leoni.
Mesmo de longe, Antônio Conselheiro vinha sendo acompanhado pelas autoridades regionais e
federais. Os adjetivos usados, para desqualificar o Beato e as principais lideranças, foram os
piores. O tenente de infantaria, Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares, com seu testemunho
voraz, sob o ponto de vista militar, desqualificou os integrantes de Canudos, começando pelo
Conselheiro: Assim, “ a forma dos milagres do Conselheiro, sempre crescente, a vida patriarcal e
290 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 153.
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preguiçosa que levavam seus asseclas [...] fora da ação das leis, atraíram para Canudos,
inúmeras famílias de pontos mais ou menos remotos”.291 Antônio Conselheiro foi acusado de
vida patriarcal e de agitador, de ser acompanhado pelos mais famigerados valentões, os mais
truculentos bandidos com armas e munições.292 E mais: aleijados, doentes, cegos e macróbios,
também para lá convergiam. “Em pouco tempo se viam seis mil e quinhentas habitações, e trinta
mil seres nelas se agitavam promiscuamente”.293O policial procurou, ainda, desqualificar os
líderes dos principais comandos de Belo Monte, especialmente os comerciantes, encarregados de
regular a oferta de alimentos. “Antônio Vilanova, João Abade, Joaquim Macambira, Senhorinho
e outros, locupletavam-se com o produto do trabalho daqueles desventurados e sobre eles
exerciam decidida influência”.294 Aos poucos, os jornais iniciavam uma campanha para destruir
Canudos.
O início da guerra deu-se em 21 de novembro de 1896, a partir de um fútil pretexto. A
comunidade iniciara a construção de uma igreja maior no arraial. O Conselheiro precisava de
madeira para a cobertura da igreja nova. A compra foi feita ao Coronel João Evangelista Pereira
Melo, na cidade vizinha de Juazeiro, com pagamento antecipado. Na data combinada para o
envio da madeira, o coronel alegou falta de homens para o transporte. Com pressa para terminar a
construção, Conselheiro sugeriu que sua gente poderia ajudar no transporte. Nesse período, Dr.
Leoni havia sido transferido para a Comarca de Juazeiro. Com ressentimento do ocorrido no Bom
Conselho, o Juiz espalhou a notícia de que a gente de Antônio Conselheiro poderia invadir a
cidade, saquear o comércio e se vingar do Juiz, com quem o Beato teve desavença em Bom
Conselho. Ele solicitou ao governador Luiz Viana tropas policiais, para garantirem a ordem da
291 SOARES, Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos..., p. 35. Grifei. 292 SOARES, Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos..., p. 35. 293 SOARES, Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos..., p. 37. Grifei. O autor reconheceu, em seguida , uma virtude no aglomerado: “Contudo, raríssimos eram os crimes e as disputas, que o Conselheiro castigava inexoravelmente com a expulsão dos seus autores”. 294 SOARES, Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos..., p. 37.
118
cidade. O governador cumpriu o pedido. Enviou a chamada Primeira Expedição, com um efetivo
de 113 soldados, 3 oficiais, 1 médico e 2 guias, chefiados pelo Tenente Pires Ferreira. Em um
único confronto em Uauá, o saldo foi de 10 mortos (1 oficial, 7 soldados, 2guias) e 17 feridos. A
expedição logo se retirou para Juazeiro.
A Segunda Expedição chegou a Monte Santo em 29 de dezembro, com um combinado de
forças federais e da polícia do estado: 609 soldados, 10 oficiais, 1 médico, 1 farmacêutico, 1
enfermeiro, 2 canhões Krupp e três metralhadoras Nordefelt. Houve violentos combates na Serra
do Cambaio e na Lagoa do Sangue. As tropas foram recebidas a bala e obrigadas a recuar. O
saldo: 10 soldados mortos e 70 feridos.
A Terceira Expedição partiu de Salvador e desembarcou em Queimadas, 7 de fevereiro de
1897, com reforço de 6 canhões Krupp e 1 300 soldados, conduzindo 15 milhões de cartuchos,
sob o comando do coronel Moreira César. Dia 13 de março, a expedição estava próxima a
Canudos. Logo no início do confronto, o Coronel Moreira César morreu, atingido por tiros. O
Coronel Tamarindo assumiu o comando e, logo em seguida, também foi assassinado. Com as
tropas em pânico, o Major Cunha Matos tomou a direção. Houve debandadas pelas estradas entre
os soldados. Ficou um triste saldo: 116 mortos, inclusive 13 oficiais e 120 feridos. As notícias
incendiavam o País. Diante da ousadia do sertanejo, destruir Canudos passou a ser uma questão
de honra para o Exército e as autoridades da República. O governo não poupou esforços para
consegui-lo.
Em 5 de abril, foi enviada a Quarta Expedição, agora com mobilização de tropas
envolvendo 14 estados: Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba, Piauí, Maranhão, Pará, Espírito
Santo, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e um reforço posterior do
Amazonas, do Ceará e de Pernambuco. O comando organizou o ataque. Um composto de 6
brigadas, em 2 colunas por direções opostas, entrou em ação. O general Artur Oscar assumiu o
119
comando geral da expedição. A primeira coluna, comandada pelo General Silva Barbosa, partiu
de Queimadas, passando por Monte Santo, com disposição de enfrentar os canudenses: 3 415
homens, 180 mulheres; 12 canhões Kruppp e um canhão Withorth 32, apelidado pelos
canudenses de matadeira. O 5º corpo de Polícia da Bahia conduzia 750 mil quilos de
mantimentos e munições, com 388 jagunços contratados no interior do Estado. A segunda coluna
comandada pelo General Cláudio Savaget, saiu de Aracaju, passando por Jeremoabo (BA), pelo
Raso da Catarina, em direção a Canudos. Eram 2 340 homens, 512 mulheres e 72 crianças (duas
nascidas na viagem). A ordem do presidente da República, Prudente de Morais, “é de não ficar
pedra sobre pedra”. Tem que ser a Expedição vingadora das três derrotas. De fato, os ataques
foram tão intensos que no final da guerra, em 5 de outubro de 1897, Canudos estava
completamente destruída.
Uma legião de corpos carbonizados misturava-se com as cinzas das casas de taipas e
palhas. Estima-se que cerca de 25 mil vidas trucidadas durante os ataques sangrentos das 4
expedições militares, em um ano de lutas intermitentes. As três primeiras expedições foram
fragorosamente derrotadas. Os defensores da comunidade de Canudos desafiavam as forças do
governo. Bem-humorados, diziam: “- Avança, fraqueza do governo!” Era o seu grito de guerra.
“Durante um ano inteiro Canudos resistiu a quatro expedições regulares de forças do exército e
da polícia militar, incluindo tropas de infantaria, cavalaria e artilharia, num total de 12 mil
homens”.295 Uma verdadeira carnificina! Cerca 5 000 soldados, oficiais e generais das tropas
governistas morreram.296
Um banho de sangue coroou a companhia em que o Brasil se confrontou com o Brasil; a
civilização contra o atraso, a ciência positiva contra a sub-raça; o zelo e a dedicação dos
295 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 121. 296 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e Fanáticos..., p. 121.
120
republicanos, contra o fanatismo irracional! Uma guerra entre brasileiros, o Estado contra o povo.
Muitos guerreiros sobreviventes foram degolados, jovens e crianças, estupradas, outras divididas
entre membros das altas patentes do exército. Muitas meninas foram entregues aos prostíbulos
em Salvador, algumas com até 9 anos de idade. A opinião pública reprovou o acontecido no pós-
guerra.
E o paradeiro de Antônio Conselheiro? Mesmo sendo o alvo principal da guerra,
possivelmente o exército não o tenha atingido. Existem pelo menos três versões sobre a morte do
Peregrino. Segundo a tradição oral, o Conselheiro morreu de uma disenteria. A segunda
possibilidade é que diante do massacre de seu povo, ele ficou muito triste e, abalado, morreu de
desgosto. A terceira versão é a dos vencedores. Para a elite do exército, o Conselheiro teria sido
atingido por estilhaços de uma granada, durante o bombardeio da igreja, proporcionando-lhe a
morte em 22 de setembro de 1897. No dia seguinte ao término da guerra, 6 de outubro, seu corpo,
sepultado na casa onde morava perto da igreja, foi exumado. A cabeça levada para Salvador para
estudos pelo médico legista, Nina Rodrigues. Para surpresa dos que sempre afirmavam que o
Peregrino era um louco e débil mental, a conclusão dos exames foi a de um cérebro normal.297 O
que se questiona até hoje são os motivos pelos quais Nina Rodrigues não se tenha pronunciado
oficialmente sobre a causa da morte do examinado. Oficialmente não se sabe se Antônio
Conselheiro morrera de morte natural ou se fora, conforme a versão militar, atingido por
estilhaços de balas. Talvez, a verdade não fosse de interesse das forças militares e da opinião
pública. Poder-se-ia pensar: uma guerra tão brutal e não se conseguiu chegar ao principal alvo!
Isso deixou margem para as elites descaracterizarem a figura histórica de Antônio Vicente
Mendes Maciel, ao longo dos tempos.
297 Cf. RODRIGUES, Nina, As coletividades anormais, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939, p. 50-77.
121 121
Ainda hoje, boa parte do povo sertanejo, como também alguns segmentos da Igreja
Católica, acreditam na versão oficial sobre Conselheiro. Em 1993, por ocasião do centenário da
chegada de Antônio Conselheiro a Canudos, o professor Fernando Pinto, psiquiatra e psicanalista
da Universidade Federal da Bahia, explicitou esse pensamento, num polêmico artigo e recuperou
afirmações historicamente superadas pela historiografia sobre o Conselheiro. Antônio “entrou na
história pelas portas sangrentas de Canudos. [...] foi Messias justamente por causa da patologia
psiquiátrica e, apesar dela, conquista o respeito dos fiéis, e a admiração dos historiadores”.298 Ao
descrever sobre o núcleo patogênico da personalidade do líder em questão, afirma ser isso
decorrente dos traumas não resolvidos na infância, “em virtude da abrangência e patologia dos
elementos constitutivos de seu complexo de Édipo mal resolvido”.299 Essa concepção, montada
pelos que defendem a versão para justificar o massacre, sempre apela para uma fundamentação
positivista. Os argumentos mais usados são oriundos de Euclides da Cunha, mesmo sabendo-se
que a historiografia evoluiu e incorporou novos dados históricos sobre Canudos, superando o
paradigma euclidiano. Para eles, Euclides continua sendo quase a última palavra sobre a Guerra
de Canudos. Baseado em afirmações do autor de Os Sertões, o referido psiquiatra entende que a
patologia do Conselheiro decorre da estruturação da personalidade. E elenca, no seu diagnóstico,
elementos, no mínimo curiosos, do ponto de vista psiquiátrico, com o objetivo de descaracterizar
o Beato: orfandade precoce de mãe, madrasta castradora e psicótica, rejeição afetiva pela
madrasta, maus tratos e humilhações na infância, pai alcoólatra (irritável, agressivo, perdulário,
narcisista e desejoso de triunfo social, economicamente fracassado após ter desfrutado de boa
situação financeira), psicótico (portador de uma demência intermitente, hoje diagnosticada como
298 PINTO, Luiz Fernando, A personalidade carismática de Antônio Conselheiro: aspectos psicanalíticos, in: Centenário de Belo Monte, REVISTA DA FAEB/Universidade Estadual da Bahia, ano II, esp., Salvador (janeiro/junho), 1993, p. 44-45. 299 PINTO, Luiz Fernando, A personalidade carismática de Antônio Conselheiro: aspectos psicanalíticos..., p. 34.
122
psicose “maníaco-depressiva”), ambiente familiar desajustado e desagregado, carência afetiva.300
É uma visão da pessoa humana do Conselheiro bastante reducionista, que desconsidera o legado
do Beato e seu equilíbrio na condução da comunidade.
No momento, essa forma de analisar a personalidade de Antônio Conselheiro e seu
movimento, não tem encontrado respaldo no meio científico entre historiadores, cientistas
sociais, nem tão pouco, no meio psiquiátrico. Ao contrário, Canudos não é visto mais como um
acontecimento marginal, nem pode ser descaracterizado, como se tentou fazer no decorrer do
século passado entre os que afirmaram que o Peregrino foi um louco, débil mental e de
personalidade doentia. Uma pergunta vem orientando os estudos dos que documentam a história
de Antônio Conselheiro e Canudos: por que comparar um líder como o Conselheiro altamente
reconhecido, objeto de veneração coletiva e de sábios estudiosos, a um louco ou débil mental?
Antônio Conselheiro foi um místico internado, segundo as normas da época, com a etiqueta do
delírio. Para sempre, ele permanecerá fichado na série “doentes”. Faz-se necessário tirá-lo desse
fichário e restituí-lo à história dos místicos, a qual não o retém entre os seus preferidos, tampouco
nas bibliotecas o encontraremos no índice dos santos.
Para melhor entender a personalidade carismática do líder principal de Canudos, faz-se
necessário retomar a via mística, como elemento constitutivo da personalidade do Beato
Conselheiro. “Dos muitos caminhos de transformação interior conhecidos pelo homem, a via
mística é talvez uma das mais antigas, universais e altamente consideradas, mesmo que seus
praticantes muitas vezes tenham vivido uma paz difícil”. 301 Sigmund Freud fala em “modelos
energéticos”. Os cristãos sentem uma “força interior”, emanada da espiritualidade cristã: “há
realmente neste tipo de pessoas místicas uma espécie de energia, um poder de atração que emana
300 PINTO, Luiz Fernando, A personalidade carismática de Antônio Conselheiro: aspectos psicanalíticos..., p. 34. 301 KAKAR, Sudhir, Ramakrishna e a experiência mística, in: CLEMENT, Catherine e KAKAR, Sudhir, A louca e o Santo, Rio de Janeiro: Relume-Dumaré, 1997, p. 103.
123
delas. Chamamos ou não de poder carismático, trata-se da manifestação corporal de uma energia
interior”,302 afirma Sudhir Kakar. O objetivo de um místico não pode ser mensurado pelos
ciências positivas, não é de ordem sólida nem objetiva. Antônio Conselheiro superou suas
deficiências e seus problemas familiares pela mística cristã. O que o fez líder, ser ousada para o
seu tempo foi a capacidade de auto superação, a mística da justiça, o desejo de um mundo melhor
para todos, o sonho de uma sociedade mais humana, mais justa e solidária. Ele sublimou as
deficiências pessoais, aprendeu do Cristo, sentiu o apoio dos irmãos, viu seu sonho se
concretizando, alimentou a utopia de uma sociedade igualitário. A suposta loucura, os traumas
mal resolvidos ou, na expressão do psiquiatra Luiz Fernando Pinto, a “patologia dos elementos
constitutivos de seu complexo de Édipo mal resolvido”, foram sublimados nas atividades
altruístas, pela utopia de tornar Canudos a Jerusalém Celeste.
A dimensão espiritual, aliada à vontade de viver em um momento no qual não havia
alternativas econômicas viáveis, fez o povo perseverar na luta. Foi uma questão de vida ou morte.
A comunidade percebeu a presença do Deus da vida, iluminando os irmãos de caminhada. A
força da perseverança vinha do alto. Conselheiro sobe captá-la.
2.7- A participação da Igreja Católica na destruição de Canudos
A hierarquia católica não teve um posicionamento honroso na Guerra de Canudos. O
Arcebispo da Bahia sempre se colocou contrário à ação desenvolvida por Antônio Conselheiro.
Diversas cartas foram expedidas, proibindo as pregações do Peregrino e o apoio que lhe davam
os vigários das paróquias do sertão. O Peregrino sempre respeitou as orientações da Igreja,
porém, sem concordar com certas posturas da hierarquia, em fogo cruzado com o Estado, que se
proclamava laico. Ao ser proibido, nunca desrespeitava. Não invadia paróquias, nem usurpava
302 CLÉMENT, Catherine, Conversação entre Sudhir Kakar, psicanalista e Catherine Clément, filósofo in: CLÉMENT, Catherine e KAKAR, Sudhir, A louca e o Santo, Rio de Janeiro: Relume-Dumaré, 1997, p. 161.
124
serviços sacerdotais. Tinha bem claro o caráter leigo de seu ministério. Se a comunidade do
Conselheiro crescia, despertando simpatia de seus moradores, atraindo as populações vizinhas,
não era por acaso. Já em 1886, Conselheiro causava preocupação a uma parte do clero. Padre
Paranhos recorreu ao vigário capitular em Salvador, pedindo providências para impedir o
crescimento do séquito do Conselheiro: “A V. Exa. Recorro para que tome providência enérgica,
e quanto antes, de acordo com o Dr. Chefe de polícia, a fim de ser retirado desta freguesia um
homem que se inculca penitente, e que acompanhado de três mulheres e um ou dois adeptos,
percorre este centro da Província da Bahia, sem que em lugar nenhum declare seu fim”.303
Desde 1894, o deputado José Justiniano sugeriu ao parlamento baiano o diálogo, como
forma de impedir a proliferação de Canudos. O deputado não acreditava em motivos políticos do
Beato. Logo, se os interesses de Antônio Conselheiro e sua gente eram mais religiosos que
políticos, “se ele em todo caso é um homem virtuoso, um verdadeiro asceta, não um hipócrita,
mas um fanático, incontestavelmente, devem-se empregar outros recursos antes dos meios
violentos”.304 Se houvesse um acordo entre o Arcebispo Dom Jerônimo Tomé da Silva e o
governador Rodrigues Lima, poder-se-ia “combater” Canudos por meios diplomáticos e
religiosos, acreditava José Justiniano. Mesmo sabendo das dificuldades diplomáticas entre Igreja
e Estado, o arcebispo encaminharia uma missão religiosa, com missionários “que tenham
influência sobre o povo e que, empregando as mesmas doutrinas de paz e de ordem, pudessem
dissolver aquele grupo por meios suasórios”.305 Poderia ser uma oportunidade para o poder civil
reatar os laços com a Igreja. O que acabou acontecendo.
Em abril de 2895, a Arquidiocese da Bahia enviou a Canudos, por solicitação do
governador, os frades capuchinhos, freis João Evangelista de Monte Marciano e Caetano de S.
303 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 145. 304 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 180. 305 Cit. in: ibid, p. 180-182.
125
Léo,306 em companhia do Pe. Sabino, vigário de Cumbe, com o objetivo de dissolver a
comunidade do Conselheiro. A missão só chegou ao Arraial a 23 de maio, em razão das imensas
dificuldades de estradas, transporte, hospedagem e guias - conhecedores da região - conforme
relato minucioso apresentado após a visita ao Arcebispo da capital baiana.307 O texto do frei
capuchinho provocou diversas reações e depunha contra a Igreja, pela visão negativa que teve do
acampamento. De fato, sua visita não foi para admirar ou contemplar a experiência dos
sertanejos. Nem para identificar os “sinais do Reino” na experiência daquele povo. Sua ida a
Canudos tinha um único objetivo: dispersar as pessoas, aconselhando-as o caminho de volta para
suas casas. Ao referir-se ao povo de Canudos, o religioso, com pouca diplomacia, usou
expressões, no mínimo, curiosas, sobre os moradores do Belo Monte: “gente estranha” aos olhos
do missionário, “povo simples e ignorante” dos nossos sertões, “acampamento de beduínos”,
“perturbadores da ordem pública”, “turba desorientada”, “desvairados”, “seita político-religiosa”,
“milícia fanática”, “infeliz localidade”, etc.”308 Durante uma de suas homilias dirigidas aos
canudenses, frei J. Evangelista foi direto ao alvo: “Nós mesmos aqui no Brasil, a principiar pelos
bispos até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vos quereis
sujeitar? É mau pensar esse, é uma doutrina errada a vossa”.309
A gente de Antônio Conselheiro sentiu-se ofendida com palavras tão duras do
representante da Arquidiocese. Diante da reação da multidão, frei João lamentou ter sido
interrompido por “um dos da turba, gritando com arrogância: V. revm. é que tem uma doutrina
306 Frei João Evangelista, como ficou conhecido, natural da Itália, nasceu em 1843. Chegou a Salvador como missionário capuchinho, em 1871, onde viveu 49 anos. Morreu em 12 de abril de 1921. Frei Caetano chegou à Bahia em 1894, participou de 212 missões. Faleceu em Salvador a 4 de novembro de 1923. 307 Cf. MARCIANO, Frei João Evangelista de Monte, Relatório apresentado pelo Revê. Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispo da Bahia sobre Antônio Conselheiro e seu séqüito no Arraial de Canudos, 1895, (apresentação de José Calazans), Salvador: Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1987, p. 3. Citado por: Relatório do Frei João Evangelista, seguido do número de página. Atualizo o português. 308 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4, 6, 7, 8. 309 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4.
126
falsa, e não o nosso Conselheiro”.310 Antônio Conselheiro pediu silêncio. O frei baixou o tom e
não insistiu no assunto. Percebeu um ambiente hostil à sua pregação e resolveu desistir da
missão. O seu relatório desqualifica o Beato. “Antônio Conselheiro, inculcando zelo religioso,
disciplina e ortodoxia católica, não tem nada disso; pois contesta o ensino, transgride as leis e
desconhece as autoridades eclesiásticas”.311 Nesta pequena frase do relatório se encontram os
dois principais argumentos do capuchinho, para impedir a continuidade da comunidade de
Antônio Conselheiro: contesta o ensino da Igreja, não aceita as autoridades eclesiásticas e
transgride as leis.
Os manuscritos do Peregrino, analisados anteriormente, não corroboram os argumentos do
frei Evangelista. Ao contrário, como já foi demonstrado, os textos usados na catequese do Arraial
eram a Bíblia Sagrada, A Missão Abreviada e as Horas Marianas. Em todas as prédicas, o
Peregrino transcrevia ou parafraseava as obras deixadas pelos missionários, no final das semanas
missionárias, em nome da Igreja. Quando não o fazia, inspirava-se nelas. Os textos da Patrística,
citações de papas e diversos autores cristãos confirma a ortodoxia da mensagem do Peregrino.
O frei João Evangelista, externou sua visão de ortodoxia e obediência muito comuns na
Igreja. De certa maneira, ele foi incapaz de lidar com o dissenso e a alternativa. A “hierarquia
(em sua quase totalidade) via no arraial conselheirista uma grave ameaça a seus interesses”.312
Por essas razões, o seu relatório recomendava providências das autoridades eclesiástica e civil. Se
Canudos era uma seita religiosa, um Estado dentro do Estado, então ele recomendava uma ação
enérgica das autoridades: “O desagravo da religião, o bem social e a dignidade do poder civil
pedem uma providência que restabeleça no povoado de Canudos o prestígio da lei, as garantias
310 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. Grifo do autor. 311 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 312 VASCONCELLOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre o Belo Monte..., p. 181.
127
do culto católico e os nossos foros de povo civilizado”.313 Todo o texto do relatório estava eivado
de um certo ódio do frei, revelando uma missão fracassada.
No seu relatório, mesmo que de forma secundária, o missionário capuchinho deixou
escapar informações que depunham a favor da comunidade do Belo Monte e revelam o apreço do
Peregrino pelos representantes de Cristo, agindo em nome da Igreja. O Conselheiro não permitiu
alguém do meio da turba, conforme expressão do missionário, interromper a pregação do frei
capuchinho.314 Este não percebeu confusão nas atribuições leigas do líder de Canudos,
respeitando o ministério ordenado: “Quanto a deveres e práticas religiosas, Antônio Conselheiro
não se arroga nenhuma função sacerdotal”.315Cita a reação do Peregrino: “Esta vez ainda o velho
impôs silêncio”.316 E tranqüilizou o frei João Evangelista, abalado por sentir reação ao seu
sermão: “mas também não estorvo a santa missão”.317
Nas entrelinhas do relatório, fica patente o desvio de finalidade da missão. O frei
capuchinho não foi capaz de dissolver o povo. Ao contrário. O aspecto de fracasso da missão não
apareceu claramente no relatório. Segundo relata, houve um incidente. João Abade organizou um
protesto geral contra os frades. Frei J. Evangelista, responsável pela missão, batizou o protesto de
estripitoso do grupo arregimentado. [...], erguendo vivas ao Bom Jesus, ao Divino Espírito Santo e a Antônio Conselheiro, e de lá vieram até nossa casa, dando foras aos republicanos, maçons e protestantes, e gritando que não precisavam de padres para se salvar, porque tinham seu Conselheiro.318
O frei João ficou ofendido: “mostrei que tinha sido aquilo um desacato sacrilégio à
religião e ao sagrado caráter sacerdotal e que, portanto, ponho termo à santa missão”.319 A missão
capuchinha foi interpretada pela gente de Canudos como uma enaltecimento da República, que
313 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 8. 314 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 315 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 316 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 317 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 318 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 6. Grifo do autor. 319 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 6.
128
em nada colaborava para melhorar a vida do sertanejo, há tanto tempo abandonado à “própria
sorte”. O frei não se deu por vencido e tentou encontrar popularidade na decisão:
A suspensão repentina da santa missão produziu nos circunstantes o efeito de um raio, deixando-os atônitos e impressionados; os que ainda não haviam se alistado na companhia do Bom Jesus, que não recebiam do Conselheiro a comida e a roupa, e não dependiam dele, portanto, deram-me plena razão, e, reprovando formalmente os desvarios de tal gente, começaram a sair do povoado, já queixosos e completamente desiludidos das virtudes do Antônio Conselheiro.320
Não há registro histórico comprovando desistências de canudenses ou aplausos às atitudes
do missionário. Após a apresentação do relatório do frei João Evangelista, houve forte reação no
parlamento federal, pelo deputado Érico Coelho. Qualquer parlamentar, tendo acesso ao relatório
do frade, ficaria “surpreso com as expressões amorosas que ele prodigaliza à República [...] pois
ao pretexto de defender a ordem pública e as instituições republicanas, a intenção do clero foi
mover a guerra religiosa”.321
Por outro lado, uma parte do clero do interior sempre apoiou Antônio Conselheiro,
mesmo com orientações contrárias do Arcebispo Dom Jerônimo. Isso revela que Antônio
Conselheiro e seu povo não eram o que as elites pintavam, não causava unanimidade contra, nem
a favor. O vigário de Aporá, Pe. João Barbosa propôs ao Conselheiro a reza do terço, mas proibiu
as prédicas. Ele se retirou para os limites distantes da Paróquia e pregava nos sítios e povoados.
“Aí nenhum pároco lhe impede a prédica. Onde há povo, ele fala”.322 O Cônego Agripino da
Silva Borges, vigário de Cumbe, tinha grande apreço pelo Conselheiro. Era um dos maiores
amigos dele. “Pe. Agripino deixou o Conselheiro agir como quisesse, até o defendeu na Câmara
dos Deputados”.323 Pela boa conduta do Peregrino, ficava até difícil o padre falar abertamente
contra o Conselheiro. “Uns não se opuseram, até pediram a sua vinda à freguesia para
320 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 7. grifo do autor. 321 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 85 (apud MONTENEGRO, Abelardo, Antônio Conselheiro, Fortaleza, s. ed., 1954, p. 37). 322 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 145. 323 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 156.
129
construções e missões. Em Iambupe, Pe. Ramos lhe prepara uma acolhida calorosa, com incenso
e repique de sinos”.324 O povo distante da sede paroquial estava sedento da mensagem cristã e
vivia na mais absoluta ignorância religiosa, tornando-se “presa fácil” para o Conselheiro. Só que
muitos párocos aproveitavam-se da capacidade de o Conselheiro arrebanhar fiéis e o convidavam
para missões. O desabafo parte do Pe. Passos, ao Monsenhor Santos Pereira: “Quase todos os
párocos vizinhos o têm chamado instantemente para as suas freguesias”.325
O que mais incomodava a muitos padres era o exercício do direito de Antônio
Conselheiro predicar. Aliás, direito adquirido pelo batismo, que incorpora os fiéis ao múnus de
Cristo e à Igreja: “Estes fiéis pelo batismo foram incorporados a Cristo, constituídos no povo de
Deus e a seu modo feitos partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, pelo que
exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo”.326 Com muita
habilidade, respeitando os limites das lideranças da Igreja de seu tempo, Antônio Conselheiro não
fazia nada além do que é facultado ao cristão leigo. Algumas autoridades eclesiásticas tiveram
dificuldades para o entender.
Conclusão
As prédicas de Antônio Conselheiro são fontes escritas de seu próprio punho e provas de
sua fidelidade aos ensinamentos da Igreja. Foi possível demonstrar interesses religiosos
prevalecentes aos sociopolíticos, tão propalados por sociólogos e historiadores de interpretação
marxista, na organização da comunidade solidária dos canudenses.
Partindo de sua formação religiosa, do envolvimento com lideranças da Igreja, dos
documentos usados por Antônio Conselheiro, foi possível esclarecer dúvidas levantadas por
afirmações não demonstráveis ao longo da historiografia brasileira. Os escritos de Antônio 324 OTTEN, Alexandre, Só deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 157. 325 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 158. 326 Gaudium et Spes, 3,1.
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Conselheiro partem de fontes religiosas, deixadas por missionários, com o objetivo de continuar
as missões, especialmente por lideranças leigas. O líder maior de Canudos não teve acesso a
documentos de natureza estritamente política, que pudessem provar que ele tivesse usado o
religioso para colher objetivos políticos, como foi acusado. A tese de que ele usou a Utopia de T.
More não tem sustentação histórica. Também não se sustenta a tese de que Antônio Conselheiro
era um monarquista e tinha por objetivo organizar um movimento para derrubar o regime
republicano. Ao chegar a Canudos, teve uma vida eminentemente ligada ao seu povo.
Acompanhou a chegada, a instalação e o desenvolvimento do arraial, até a sua destruição.
A análise das prédicas desmentem também acusações de heterodoxia católica do Beato ou
desconhecimento dos principais ensinamentos da fé cristã e desconsideração, frente às
autoridades eclesiásticas. Foi possível demonstrar, através de cada ponto dos manuscritos, de uma
leitura sistemática do pensamento dele, a escolha de certos temas que garantiram solidez nos
fundamentos bíblicos e teológicos de seu pensamento, ao longo da vida de Canudos. O contato
individual com os adeptos do arraial, os encontros diários durante as orações comunitárias através
das prédicas, animavam os que chegavam a Canudos na esperança de dias melhores. Antônio
Conselheiro preencheu lacunas deixadas por deficiências da presença da Igreja e do Estado, nos
recônditos mais isolados do interior do Nordeste.
O Beato soube se integrar, de maneira bastante singular, aos aspectos religiosos, aos
sociopolíticos, garantindo à fé cristã um compromisso concreto na comunidade. Isso assegurou o
crescimento tão acelerado da população do Belo Monte. O pensamento e a prática de vida,
desenvolvidos ao longo da experiência do povo de Canudos, foram expressão da deficiência do
Estado e da impotência da Igreja, diante da extensão do Nordeste e da escassez de sacerdotes à
disposição das comunidades e lugarejos mais distantes das sedes paroquiais.
131
Portanto, o projeto religioso e a organização social de Canudos compatibilizaram-se com
os anseios dos pobres excluídos por uma sociedade justa e fraterna. A Bíblia, textos como A
Missão Abreviada, Horas Marianas, e outros ensinamentos da Igreja acompanharam Antônio
Conselheiro, dando base de sustentação à Comunidade de Canudos. O massacre de Canudos
envergonhou o Estado brasileiro. Canudos tornou-se uma desculpa para justificar a disputa
política no início da cambaleante República, instituída sem legitimidade e capacidade de
encontrar respostas políticas para resolver os problemas sociais e econômicos. Da mesma forma,
os argumentos do arcebispo da Bahia, especialmente o Relatório do frei João Evangelista de
Monte Marciano, sobre Antônio Conselheiro, não justificam a atitude da Igreja naquela
conjuntura. Finalmente, Canudos foi vítima de um setor da Igreja e de um Estado sem
compromissos com os sertanejos deserdados e excluídos do “progresso”, trazido pelo novo
regime republicano.
Analisando-se os manuscritos de Antônio Conselheiro, não restam dúvidas do valor
literário, histórico e teológico de um líder que continua sendo um enigma para a historiografia
brasileira e um convite para os protagonistas da Igreja dos pobres nele se inspirarem. Impedindo
o crescimento da comunidade de Canudos as autoridades republicanas e eclesiásticas cometeram
um erro histórico. Tanto no ponto de vista do poder republicano, quanto por parte da Igreja,
faltou uma autocrítica diante da conjuntura política e eclesial do final do século XIX. Antônio
Conselheiro não foi um herege, nem um fanático. Foi, sim, um cristão leigo que procurava
responder ao chamado de Deus para uma missão junto aos nordestinos, vítimas do desacerto
político da República e da ineficiência e falta de diálogo de setores da Igreja.O legado da
experiência de Canudos inspira atitudes novas, diante da ação legítima de leigos conscientes,
desejosos de cumprir sua missão de batizados. Na vivência do povo de Canudos, haurimos
132
elementos sólidos que estimulam uma Igreja a qual valoriza a ação dos leigos, acolhe os pobres e
reconhece seus limites históricos. Aspectos que serão analisados na terceira parte desta pesquisa.
133
CAPÍTULO III
ELEMENTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE CANUDOS
Após uma apresentação histórica sobre a vida de Antônio Conselheiro e seus seguidores, a
descrição do universo religioso do líder maior de Canudos, a partir de seus manuscritos, o
objetivo deste capítulo é pontuar os elementos eclesiológicos propriamente ditos da comunidade
de Canudos. Antônio Conselheiro ensaiou uma experiência diferente e mais engajada da Igreja
Católica no final do século XIX. Sobre Canudos, muita coisa já foi dita. Antônio Conselheiro tem
sido objeto de estudo por antropólogos, sociólogos, poetas e, mais recentemente por teólogos.
A prática de Antônio Conselheiro repercutiu na Igreja do século XIX. Antônio
Conselheiro fez sua experiência de fé dentro e não fora da Igreja católica, mesmo não sendo
compreendido por setores significativos dela. Por isso, neste capítulo serão analisados seus
manuscritos, visando encontrar características da eclesiologia subjacente na Igreja de Canudos.
Qual a novidade na experiência religiosa de Antônio Conselheiro? Por que o representante do
Arcebispo da Bahia, frei João Evangelista, teve ação tão enérgica com o Conselheiro e seu povo?
O que havia de “novo” na Igreja de Canudos? Canudos foi uma realidade eclesiológica nova? Em
que sentido podemos falar em nova eclesiologia no Belo Monte? Qual a relação do Peregrino
com as autoridades religiosas? Antônio Conselheiro teria antecipado uma Igreja comprometida
com os pobres, integrando fé e compromisso social? O que ele pensava sobre temas fundamentais
da teologia: Santíssima Trindade, Jesus – sua morte na cruz, ressurreição – os sacramentos,
salvação, os Dez Mandamentos, Igreja, sucessão apostólica? Canudos oferece várias lições para
firmarmos o compromisso com a opção pelos pobres, tema tão caro a Jesus de Nazaré e colocado
hoje como secundário pela teologia oficial. Procuramos responder, ao longo deste terceiro
capítulo, a todas essas indagações.
3. 1- Natureza eclesial do movimento de Canudos
Uma das deficiências da abordagem sociológica de Canudos foi não se analisar à exaustão
os manuscritos de Antônio Conselheiro e a literatura religiosa por ele usada. Caracterizar
Canudos como um movimento eclesial é levar em consideração sua experiência de vida religiosa,
os contatos diretos com Padre Ibiapina e Padre Cícero e o compromisso com as lutas dos
sertanejos, especialmente a partir da primeira metade do século XIX. Em Canudos, se
concretizou uma experiência eclesial eminentemente leiga, sacramental, engajada, comprometida,
capaz de harmonizar a vivência da fé e a transformação social entre os pobres. Essa Igreja
animou a experiência do povo pobre. Antônio Conselheiro reuniu “um projeto onde são
satisfeitos interesses divinos e humanos, necessidades sobrenaturais e naturais. Não conhece a
dicotomia entre Deus e homem, salvação eterna e bem-estar na terra, indivíduo e comunidade”.1
Em Canudos, estabeleceu-se uma simbiose entre fé e vida, doutrina e prática, amor a Deus e
amor ao próximo (cf. Mt 22,37 e 22,39). A Igreja carecia dessa síntese. No momento de conflito
com o Estado, suas energias eram colocadas na busca de superação da agitação. O Conselheiro
preencheu um vazio deixado pela Igreja oficial. Em Canudos, nas palavras de Otten, “O Projeto
(de Deus) toma a sério a realidade evangélica de que o Reino de Deus começa neste mundo, mas
1 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 380.
135
não é deste mundo. Desiludidos com o governo do homem sobre a terra, os cristãos pobres
procuram um lugar onde possam viver sob a ‘Lei de Deus’”.2
Antônio Conselheiro parece não encontrar respostas para os volumosos problemas sociais
na classe política; nem percebeu na forma como a Igreja Católica estava organizada, a
possibilidade para atender à demanda religiosa das populações sertanejas espalhadas pelo interior
do Nordeste. Procurou organizar uma comunidade para criar alternativas para que seus
integrantes pudessem viver dignamente como filhos de Deus e encontrar meios para vivenciar o
batismo cristão na qualidade de leigos, conhecedores de suas atribuições batismais. As atitudes
do Conselheiro emergiram do batismo cristão, mesmo que as autoridades eclesiásticas não o
tenham percebido. O exemplo de vida dos primeiros cristãos inspirou a nova comunidade do
Conselheiro. Historiadores, sociólogos e, até mesmo teólogos, são unânimes na defesa da
semelhança de Canudos com as comunidades primitivas. A força da experiência de Canudos
vinha das comunidades primitivas, do carisma profético do Conselheiro, da leitura atenta da
palavra de Deus, dos sacramentos da Igreja, especialmente da Eucaristia, das orações diárias na
comunidade, da observância exigente dos Dez Mandamentos e da ajudas fraternas. Em sintonia
com as aspirações do catolicismo popular, a comunidade de Canudos sonhava por melhor
convivência humana neste mundo, nos moldes como viviam as comunidades cristãs primitivas.
Ademais, como ficou demonstrado por A. Otten: “Que este projeto está longe de ser suspeito de
sobrenaturalismo desencarnado fica comprovado pelo entusiasmo com que os idealistas
socialistas recorrem a ele como modelo de uma sociedade ideal”.3 As necessidades religiosas
eram satisfeitas pela prática acentuada do catolicismo popular, de caráter leigo e devocional. É
uma Igreja leiga, que não rejeita o clero nem suas orientações, mesmo aparecendo eventualmente
2 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 379. 3 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 381.
136
para as desobrigas ou semanas missionárias. O dia-a-dia de Canudos era cuidado pelas lideranças
religiosas locais, especialmente pelo Conselheiro. A Igreja instituição estava distante das
necessidades materiais e espirituais do povo de Canudos, que procurava respostas para suprir às
necessidades por iniciativas e criatividade próprias. Cansado da ineficiência das instituições, o
povo foi se organizando como podia; vai criando um modelo social e eclesial diferentes das
existentes no século XIX. Não havia outro caminho. A decisão de viver do povo de Canudos, que
ia além das organizações políticas, das instituições do Estado republicano e da própria Igreja
oficial merece algumas interrogações. Organizar uma comunidade totalmente independente da
organização política e eclesiástica não deixa de ser um sonho e uma ilusão.
Um sonho, porque o Estado, manipulado e apropriado pelas oligarquias não inspirava
confiança. Fazia-se urgente a busca de alternativas para manter a peleja pela vida. Aliás, o povo
sertanejo vivia, por muito tempo, à revelia do Estado e a Igreja não conseguia atender às
necessidades do povo nas comunidades e lugarejos, nos rincões sertanejos. Uma alternativa ao
político e ao religioso vigentes era inevitável.
Uma ilusão, porque seria possível sustentar a comunidade de Canudos, completamente
desvinculada ou independente da organização do Estado republicano? A fé cristã pode ter a
pretensão de ser a única resposta para os problemas sociais e políticos? O cristianismo pode ter a
pretensão de açambarcar a estruturação política e partidária de uma sociedade humana e se
apresentar como única via? O religioso pode se reduzir ao sociopolítico? Mesmo constatando o
crescimento de Canudos, sua organização interna, a estruturação do atendimento religioso
dispensado pelo Conselheiro, a presença esporádica do sacerdote na região, era possível sustentar
por muito tempo aquela experiência? Ou ainda, a organização de Canudos teria encontrado o
ponto de equilíbrio entre fé e o compromisso com a prática social do cristianismo, descobrindo o
segredo da vivência da fé em comunidade?
137
A Igreja, historicamente, vem tendo dificuldade para harmonizar, de forma duradoura, a
fé e o compromisso com as transformações políticas. Historicamente, ou ela fica indiferente ao
aspecto político transformador da fé, ou confunde o religioso com o sociopolítico. J. Comblin
acredita que a “Igreja tem um papel limitado nas transformações do mundo. Esse papel, no
entanto, pode ser eficaz e significativo. Pode servir eficazmente ao advento do reino de Deus.
Pode também passar ao lado dele e perder chances históricas”.4 Canudos, talvez, não tenha ficado
imune a esse dilema. Não se pode prever qual teria sido o desfecho de Canudos, se não tivesse
havido a violência do Estado brasileiro e, portanto, sua destruição. Também não devemos
minimizar a experiência dos sertanejos, nem no aspecto político, nem no militar e nem no
eclesiológico. Não há dúvidas. Canudos deixou-nos um legado, mas não é um tema esgotado.
Que a experiência popular da Igreja em Canudos não foi bem aceita pela Arcebispo da
Bahia, é um fato. O relatório de frei Evangelista comprova a intenção oficial: mandar dispersar os
moradores do acampamento. O modelo de Igreja mais circular e participativo do Belo Monte,
apontava para uma situação nova na qual os modelos anteriores já não serviam para a conjuntura
de então. As lideranças eclesiásticas demoraram a entender o apelo para uma nova conjuntura.
Em Canudos, além de alternativa ao modelo político, nascia um novo modelo de Igreja,
claramente percebido pelo frei João Evangelista, pelo relatório apresentado ao Arcebispo da
Bahia. Antônio Conselheiro não tinha a intenção de contrariar a ordem vigente e tampouco as
instituições republicanas, aliás, por muito tempo distantes do homem do campo. 5 Ele não possuía
tal conhecimento, nem capacidade teórica para implantar um novo modelo eclesiológico, que
pudesse se contrapor ao oficial. Não constituía sua intenção. Sua vida foi dedicada aos problemas
4 COMBLIN, José, Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de libertação, São Paulo: Paulus, 1996, p. 17. 5 A intenção do Frei João encontra-se logo no primeiro parágrafo de seu relatório: “[...] a fim de procurar pela pregação da verdade evangélica, e, apelando para os sentimentos da fé católica que esse indivíduo (Conselheiro) diz professar, chamá-lo e a seus infelizes asseclas aos deveres de católicos e de cidadãos, que de todo esqueceram e violam habitualmente com as práticas e as mais extravagantes e condenáveis, ofendendo a religião e perturbando a ordem pública”. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 3.
138
da comunidade, aliás, não poucos. O frei teve um conceito a respeito da fé cristã e a ordem
estabelecida bastante diferente dos membros da comunidade de Canudos. O Conselheiro foi
acusado por setores significativos da sociedade de desrespeitar a religião e a ordem pública. Na
realidade, Antônio Conselheiro contrariava fortes interesses. Canudos foi constituído de um povo
ordeiro, sempre guiado pelos ensinamentos da fé cristã. Muito mais que Antônio Conselheiro,
ficaram preocupadas as autoridades religiosas, políticas e as oligarquias rurais da região. O
acampamento de Canudos teve um papel decisivo na subsistência do povo. Foi o que
demonstrou-se em todo o capítulo anterior.
3.2- A Eclesiologia subjacente em Canudos
Antes de um aprofundamento maior sobre o modelo eclesiológico presente em Canudos,
fazem-se necessárias algumas considerações sobre eclesiologia, a fim de melhor se entender que
tipo de experiência de Igreja aconteceu em Canudos. A Igreja nunca foi uma realidade
monolítica. Desde o seu início, já no mundo do Primeiro Testamento, entre os Padres Apostólicos
e os Padres da Igreja, haviam experiências eclesiais bastante diversas. Sempre houve um veio da
Igreja dos pobres, ao longo da vivência da fé. A tensão na Igreja entre carisma e poder,
comunhão e participação, fé e vida, concentração de poder e abertura para investimento em
lideranças leigas vem desde as suas origens. A Igreja Católica vem tentando harmonizar carisma
e poder, comunhão e participação, dimensão hierárquica e ministério leigo, quase sempre
pressionada pelo desejo de os leigos vivenciarem o batismo, no exercício da cidadania dentro da
própria instituição. O povo vem procurando de forma criativa conviver com o clero, cuja
autoridade muitas vezes afugenta iniciativas de uma vivência mais ministerial e circular na
139
comunidade eclesial.6 Não poucas são as tensões. Mesmo assim, há possibilidade de o povo
resistir na caminhada.
No início do cristianismo, onde o Conselheiro buscou inspiração, o carisma prevalecia aos
aspectos mais institucionais. Ele procurava envolver os leigos na organização e decisões de sua
comunidade, contrariando, de certa maneira, o modelo eclesiológico do seu tempo. Em Canudos,
a participação era regra. Conselheiro se defronta com um modelo eclesial centrado no papa, em
Roma, no arcebispo, na capital da Bahia, e no pároco, na cidade do interior. A dinâmica da Igreja
de Canudos não foi uma invenção de seu líder. Encontra respaldo na Bíblia Sagrada e na
Tradição eclesial, conforme veremos a seguir.
Na concepção do teólogo Comblin, a Igreja quer dar a impressão, pela literatura “oficial”
(documentos magisteriais, Direito Canônico, história da Igreja e interpretação teológica oficial)
“de que a eclesiologia vertical, que se chama também hierarcologia, cresceu harmoniosamente
com os aplausos do povo católico e sempre prevaleceu, vencendo todas as heresias que a
ameaçavam”.7 Ao tomar os documentos magisteriais, a primeira impressão é que existe uma
única eclesiologia ortodoxa possível. “Fora dela somente havia as heresias. Não foi bem assim.
Não se pode dizer que a hierarcologia tenha sido sempre doutrina unanimemente aceita”.8 A
“Igreja mais popular”, ministerial e leiga sempre sobreviveu ao longo da história, em muitos
momentos à revelia da hierarquia ou com apoio de parte dela:
Durante 10 séculos tivemos, por conseguinte, uma Igreja clerical apoiada pelas forças dominantes da cristandade, o império, as monarquias, o feudalismo, e, por outro lado, uma Igreja mais popular, da base, sem apoios. Esta não era necessariamente anticlerical. [...] O momento culminante no antagonismo ocorreu no século XIX – e esse antagonismo diminuiu no século XX não porque aja mais paz, mas é porque a Igreja está muito enfraquecida, estando na defensiva, tratando de salvar o que ainda pode salvar.9
6 Uma análise bastante crítica da Igreja, a partir dos pobres foi feita por Leonardo Boff, que lhe custou um processo na Sagrada Congregação para a doutrina da Fé. Cf. BOFF, Leonardo, Igreja: carisma e poder: ensaio de eclesiologia militante, Rio de Janeiro: Record, 2005. Os documentos do processo sobre o referido livro aparecem num apêndice, sob o título: O processo doutrinário a Igreja: Carisma e poder, p. 331-446. 7 COMBLIN, José, O povo de Deus, São Paulo: Paulus, 2002, p. 58. 8 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 58. 9 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 59.
140
Conselheiro viveu no auge da hierarcologia da Igreja, desencadeada no Brasil pelo
processo de romanização, da “moralização” do clero e da centralização dos “bens” religiosos em
detrimento da pulverização das experiências religiosas ligadas ao catolicismo popular de tradição
portuguesa e caráter leigo, etc.10 Antônio Conselheiro viveu sob o pontificado de Leão XIII (papa
de 20 de fevereiro de 1878 a 20 de julho de 1903). Considerado o primeiro dos papas modernos a
estimular o diálogo da Igreja com o mundo moderno, Leão XIII criou uma verdadeira revolução
na área social ao publicar a Rerum novarum (em 1901), após a destruição de Canudos. O povo de
Canudos não se beneficiou das idéias novas de Leão XIII. Passaram décadas para que chegassem
ao Brasil as idéias papais ou conciliares. Prevalecia o esforço da autoridade eclesiástica para
controlar as manifestações do catolicismo popular no sertão nordestino. Apesar do esforço, o
povo, orientado por seus líderes leigos (beatos e conselheiros) continuava com inércia própria,
com uma prática eclesial batizada por Comblin de “Igreja mais popular”.11
Esta “Igreja mais popular” prevaleceu em Canudos. Não era uma Igreja paralela, mas a
possível na atual conjuntura eclesial. Foi naquela que o povo encontrou orientação segura para
enfrentar às intempéries da época. Pelo fato de usar intensamente a Bíblia, conhecer textos dos
Santos Padres e outras literaturas religiosas, Antônio Conselheiro percebeu que era possível, pela
tradição eclesial, organizar uma Igreja mais popular, leiga, comprometida com os pobres, com
10 A religiosidade popular e a romanização foram amplamente abordadas no capítulo I. Porém, para um maior aprofundamento, cf.: SUESS, Paulo Guenter, O catolicismo popular no Brasil: tipologia de uma religiosidade vivida , São Paulo: Loyola, 1979. O Instituto Nacional de Pastoral, a pedido da CNBB, publicou em Cadernos de Teologia e Pastoral, o resultado da reflexão de um grupo de teólogos e outros especialistas sobre Evangelização e comportamento religioso. Cf. Evangelização e comportamento religioso popular, Petrópolis: 1978, n. 8. No artigo de Pedro Ribeiro (O catolicismo do povo), o autor apresenta um ensaio de interpretação sociológica do catolicismo popular. Cf. p. 10-40. O texto de Edênio Valle (Psicologia e religiosidade popular: pistas para uma reflexão pastoral) aborda o mesmo tema, a partir do viés psicológico, conforme sugere o título do artigo. Cf. p. 41-70. E, finalmente, o artigo de Alberto Antoniazzi (Evangelização e cultura), introduz-nos no estudo teológico das relações entre Evangelização e cultura. Cf. p. 71-102. Uma outra publicação aborda exclusivamente os aspectos históricos do catolicismo popular no Brasil. Dividido em oito partes: I- Cruzes e cruzeiros; II- Oratórios; III- Ermidas e capelinhas; IV- Santuários; V- Romarias; VI- Confrarias; VII- Festas; VIII Procissões. O texto documenta a riqueza simbólica no mundo popular do povo simples. Cf. AZZI, Riolando, O Catolicismo popular no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1987. 11 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 59.
141
força para combater os males causados pela República, “ludíbrio da tirania dos fiéis.”12 A Bíblia,
portanto, foi seu primeiro manual de inspiração.
Importa vasculhar na Bíblia e na tradição eclesial os “vestígios” dessa “Igreja mais
popular” no dizer de Comblin, abraçada por Antônio Conselheiro e sua gente, não menos
importante na vivência eclesial que a Igreja clerical.
A palavra grega ekklesia designa a assembléia do povo como força política. Paulo usou o
termo ekklesia no Segundo Testamento, que, embora assinalasse uma continuidade entre Israel e
o povo cristão, era muito apropriado para receber um conteúdo novo. Reunidos em assembléia
(ou Igreja), os primeiros cristãos já experimentavam divisões (cf. 1Cor 11,18). A nova
comunidade de Jesus, denominada também de Comunidade Escatológica de Deus ou Igreja, cujo
alicerce é Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18), foi
traduzida pela Septuaginta como ekklesia. Em João, a Igreja aparece com a finalidade de “reunir
na unidade os filhos de Deus que estão dispersos” (Jo 11,52). Nos Atos dos Apóstolos, a Igreja é
a comunidade dos que louvam a Deus e se beneficiam da salvação em Jesus Cristo (cf. At 2,47).
Paulo a chama de “nós, os alvos” (1Cor 1,18) e preparada por Deus “antes da fundação do mundo
para sermos santos e irrepreensíveis sob o seu olhar, no amor”(Ef 1,4). Embora os textos do
Primeiro Testamento não tragam um tratado exaustivo sobre eclesiologia, fica claro que a Igreja
nasce na Páscoa de Cristo, ao passar deste mundo ao Pai (cf. Jo 13,1), cujo corpo eclesial só se
torna visível a partir da efusão do Espírito Santo, em Pentecostes (cf. At 2,1-13). São aceitos na
Igreja, os que acolhem a palavra dos Apóstolos e recebem o batismo. Nos Atos dos Apóstolos já
aparece uma certa regra de vida entre os membros da Igreja. Os que aderiam à fé, “eram assíduos
ao ensinamento dos Apóstolos e à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42).
12 MAC , p. 562.
142
Nos Atos dos Apóstolos, o destaque recai sobre o número de fiéis que aumentava a cada
dia, permanecendo em comunhão. “Todos unidos, unânimes, eram assíduos à oração, com
algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus” (At 1, 14).
Logo em seguida, foram apresentados José e Matias. “Fez-se o sorteio e a sorte caiu sobre
Matias, que foi desde então incluído entre os onze apóstolos (cf. At 1, 16). A Igreja de Jerusalém
já reunia “um grupo de mais ou menos cento e vinte pessoas” (At 1, 15), chegando a 3 000 (cf. At
2,41). Após a explosão de Pentecostes (cf. At 2,1-13), o número dos fiéis crescia repentinamente:
“Os que acolheram a palavra de Pedro receberam o batismo. E neste dia uniram-se a eles cerca de
três mil pessoas” (At 2,42) e, mais ainda: “muitos haviam abraçado a fé; o número deles se
elevava a cerca de cinco mil pessoas”(At 4,4). A prática de vida na comunidade cristã
proporcionava novas adesões: “E a cada dia o Senhor acrescentava à comunidade outras pessoas
que iam aceitando a salvação” (At 2, 47).
O termo mais importante e freqüente no Segundo Testamento para designar Igreja é
ekklesia, sempre com dimensões comunitária e participativa. Nesse contexto, Álvaro Barreiro
defende pelo menos três níveis de significados em ekklesia: “É usada para designar ora a
assembléia cultual, ora a comunidade local ou comunidades locais, ora a Igreja universal”.13
A reflexão eclesiológica aparece embrionariamente nos Padres Apostólicos, sempre com a
presença da “Igreja mais popular”. Referindo-se à Igreja, Inácio de Antioquia destaca o aspecto
cósmico, que abrange o céu e a terra;14 Hipólito de Roma preconiza uma comunidade santa, que
aponta para uma realidade escatológica;15 Irineu de Lião fala da Igreja fundada pelo Espírito
Santo, do qual derivam suas marcas;16 Cipriano de Cartago justifica a existência da Igreja em
função da salvação, com forte acento na autoridade do bispo diocesano, legítimo sucessor dos
13 BARREIRO, Álvaro, Igreja, povo santo e pecador, São Paulo: Loyola, 2001, p. 53. 14 Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Efésios, 9,1; Carta aos Esmirniotas, 7,2. 15 Cf. HIPÒLITO DE ROMA, Comentário de Daniel, 1,14-18. 16 Cf. IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, III, 24.
143
apóstolos.17 Somente com Santo Agostinho aparece a distinção entre Igreja visível e Igreja
invisível.18
Essa época foi marcada por diversas eclesiologias, revelando estruturas eclesiais variadas.
Nem mesmo os concílios dos primeiros séculos, fixaram definitivamente uma ou outra
eclesiologia. No Símbolo de Constantinopla, no ano de 382, os Padres Conciliares procuravam
uma forma de contribuir para chegar à unidade da Igreja, ao reconhecerem a diversidade das
experiências. Professaram a fé na Igreja una, santa, católica e apostólica, como propriedades
essenciais da verdadeira Igreja de Cristo.19 O reconhecimento do pluralismo eclesial não
dificultou a riqueza dos diversos elementos específicos em cada Igreja particular. Ao contrário,
trouxe riqueza de experiências e desejo de se construir permanentemente a comunhão. O
fundamental para todos sempre foi viver a apostolicidade, a comunhão com as outras Igrejas e
celebrar os sacramentos, especialmente a eucaristia.
No Oriente, a reflexão eclesiológica mais sistemática surgiu com a unificação do Direito
Canônico por Graciano, século XII, quando apareceram os primeiros tratados teológicos
completos consagrados à eclesiologia. João de Torquemada, dominicano espanhol, se destacou
com a publicação da Suma de ecclesia, em 1450. Posteriormente, as eclesiologias desenvolvidas
pela Reforma trazem um viés mais dogmático e catequético, polarizada com os reformadores.
Até Santo Tomás, só havia fragmentos ou pequenas reflexões sobre a Igreja, num viés
mais apologético. A eclesiologia só aparece mesmo como um tratado autônomo na Teologia, a
partir do século XVI. Até então, prevaleciam os aspectos de sociedade perfeita e infalível. Aos
poucos, a eclesiologia foi ocupando seu espaço no conjunto maior da teologia dogmática. São
17 Cf. CIPRIANO DE CARTAGO, De ecclesie catholicae unitate, 6 e 17. 18 Cf. AGOSTINHO DE IPONA, De civitate Dei, 11-22. 19 Cf. Denzinger-Schönmetzer (=DS), 86; DS, 150.
144
Francisco de Assis e Santo Anselmo representaram o veio da “Igreja mais popular” e próxima ao
povo, na Idade Média.
Depois do século XVII, foi-se desenvolvendo uma visão eclesiológica, apontando para
uma Igreja como instrumento de transmissão da revelação divina. Os temas em destaque foram a
origem da Igreja, “sua natureza, suas estruturas e sua organização, suas tarefas e sua missão, suas
mediações, seus sacramentos e seus ministérios, seu culto, sua liturgia, sua pregação sua piedade
e seu futuro (escatologia)”.20
Ao longo da história da Igreja, não faltaram os que arriscassem definições apressadas
sobre ela. Belarmino, num contexto de combate ao protestantismo, motivado pelo clima de
polêmica, marcou época com sua clássica definição: “A Igreja é uma sociedade composta de
homens unidos entre si pela profissão de uma única e idêntica fé cristã e pela comunhão aos
mesmos sacramentos, sob a jurisdição de pastores legítimos, sobretudo do Pontífice romano”.21
Ressaltando, ainda, o aspecto jurídico e a da presença marcante da autoridade, Pio XII não mede
as palavras: “Como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro
da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separam voluntariamente do organismo do
corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpa gravíssima”.22 Essa
visão juridicista da Igreja, presente nos conceitos de Belarmino e Pio XII, marcou profundamente
os estudos eclesiológicos.
O Concílio Vaticano I teve a intenção de apresentar uma eclesiologia única e global. Em
meio às polêmicas, foi possível aprovar o capítulo IX de seu Shema de Ecclesia. A constituição
20 ECLESIOLOGIA, in: LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário crítico de teologia, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 590. 21 Cit in: MONDIN, Batista, As novas eclesiologias: uma imagem atual da Igreja, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 15. 22 PIO XII, Papa, Mystici Corporis , n. 21. Um excelente comentário sobre esse conceito de Pio XII, foi feito amplamente por Libanio, no contexto de uma análise dos critérios para se conhecer a autenticidade do catolicismo popular ou oficial. Cf. LIBANIO, João Batista, Critérios de autenticidade do catolicismo, in: Catolicismo popular, Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis: Vozes, v. XXXVI, 1976, p. 43-81.
145
dogmática Pastor Aeternus recebeu aprovação em 1870.23 Juntamente com os movimentos
litúrgico e bíblico, duas encíclicas marcaram o debate eclesiológico no alvorecer do Concílio
Vaticano II: Satis cognitum de Leão XIII (1896)24 e a Mystici Corporis, de Pio XII (1943).
Estava feito o caminho para o Vaticano II apresentar suas constituições, decretos e
declarações. Esse Concílio propôs o caminho para a elaboração do primeiro tratado, no campo da
teologia católica sobre eclesiologia, autorizado pelo magistério: a constituição dogmática sobre a
Igreja, Lumen Gentium.25 Na tentativa de melhor esclarecer o papel da Igreja como mistério e
sinal de salvação, os Padres Conciliares recorreram a imagens muito concretas da Igreja, tiradas
da palavra de Deus e trabalhadas pelos Santos Padres. A Igreja aparece como “o povo de Deus na
unidade do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”,26 é redil, sendo Cristo a única e necessária porta
(Jo 10,1-10)”; a grei da qual Deus é o próprio pastor (cf. Is 40,11; Ez 34,11); a lavoura ou o
campo de Deus (1Cor 3,9); construção de Deus (1Cor 3,9); casa de Deus na qual mora sua
família, templo santo; Jerusalém celeste e nossa Mãe (Gal 4,26; cf. Apoc 12,17); esposa
imaculada do Cordeiro imaculado (Apoc 19,7; 21,2,9; 22,17).27 e “Corpo Místico de Cristo”.28
No primeiro capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium,29 o Concílio apresentou
a Igreja, por um lado, como um mistério que não pode ser esgotado por conceito algum. Mas, por
outro, diante das indagações e cobranças do mundo moderno, os Padres Conciliares retomaram
noções eclesiológicas da primitiva Igreja, apresentadas como comunhão e sacramento: “a Igreja é
em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da
unidade de todo o gênero humano”.30 Para superar a abordagem excessivamente jurídica, o
23 DS, 3.050. 24Cf. DS, p. 3.300. 25 Cf. ECLESIOLOGIA, LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário crítico de teologia..., p. 590. 26 LG , 4. 27 Cf. LG , 6. 28 LG , 7. 29Cf. Cf. LG, 1-8. 30 LG , 1.
146
Concílio apresentou dois princípios norteadores no contexto da construção da Igreja comunhão:
a) O cristocentrismo e as dimensões sacramental e missionária da Igreja; b) A relação da Igreja
com o mistério trinitário, com uma reflexão da Igreja enquanto mistério, segundo a vontade
salvífica de Deus.31Com essa atitude do Concílio, a
eclesiologia supera o âmbito imediato do direito para situar-se no âmbito da teologia. No horizonte mais amplo do mistério trinitário, fora das relações imediatas de poder, explicitadas justamente pelo direito, é que se pode ver sob luz nova a relação da Igreja com o mundo, a relação entre hierarquia e fiéis e a relação entre a dimensão universal da Igreja e sua realização local.32
Há um deslocamento da Igreja centrada na hierarquia, no jurídico e no poder para acentuar
uma Igreja Povo de Deus, mais circular, onde os ministérios ocupam lugar, não de poder, mas de
serviço a toda a comunidade. O Concílio Vaticano II, especialmente a Lumen Gentium,33 abriu
um enorme leque na compreensão da Igreja, na missão dos leigos e no papel dos ministérios de
serviço, no interior da comunidade eclesial. De uma eclesiologia “hieracológica” passou-se a uma
Igreja Povo de Deus. Era uma eclesiologia da parte pelo todo (pars pro toto).
O que nos interessa nesta discussão sobre a Lumen Gentium é a inversão de ordem dos
seus capítulos II e III. Os Padres Conciliares, pela influência de assessores hábeis, optaram pelo
deslocamento do Povo de Deus do III para o II capítulo e a Hierarquia para o lugar do Povo de
Deus. Com isso, a categoria teológica “povo de Deus” tornou-se chave eclesiológica de leitura do
31 Cf. LG , 1. Cf. também: CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Vaticano II e a Igreja do Brasil, in: GONÇALVES, Paulo Sergio Lopes e BOMBONATTO, Vera Ivanise (orgs.), Concílio Vaticano II: análise e prospectivas, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 229-248. O autor comenta os principais deslocamentos eclesiológicos do Concílio Vaticano II. 32 CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Vaticano II..., p. 230-231. 33 Uma Comissão Teológica foi designada para elaborar um anteprojeto de Constituição sobre a Igreja. O primeiro texto chegou ao Concílio, intitulado De Eclésia; apresentava a seguinte ordem dos capítulos: I- Igreja como mistério; II- A Constituição hierárquica da Igreja; III- Igreja Povo de Deus; IV- Chamado à santidade. A Comissão teológica que elaborou o esquema viu o texto ser duramente criticado na Aula Conciliar, em sua estrutura, método, argumentação, conteúdo e espírito. Sugeriu-se a elaboração de um outro texto, incorporando as sugestões dos Padres Conciliares. O novo texto voltou ao plenário com quatro capítulos, faltando os atuais capítulos sobre o Povo de Deus, os Religiosos, a índole escatológica da Igreja e sobre Nossa Senhora. Novamente as críticas não se amenizaram. A mudança mais importante, pelo incidência na eclesiologia foi a inversão dos capítulos II e III. Após receber diversas emendas, o texto definitivo, agora com oito capítulos, foi apresentado ao plenário, presidido pelo Papa Paulo VI e, em 21-11-1964, aprovado por 2.151 votos, contra apenas 5 Padres Conciliares.
147
Concílio e o “Povo de Deus” ocupou seu devido lugar na Igreja. A Igreja passou de “Sociedade
desigual”, cujo acento recaía sobre a hierarquia e coloca os leigos, agora, em igualdade radical,
pela graça do batismo. Quem opera a diferenciação não é o cargo, mas “a ação do Espírito Santo
que convoca cada batizado a ser sujeito na Igreja conforme a diversidade de vocações, carismas,
e ministérios. Assim, todos são chamados a serem sujeitos no grande sujeito que é a Igreja, Povo
de Deus peregrino”.34 O Concílio assumiu uma prática muito antiga na caminhada do povo de
Deus.
A categoria Povo de Deus na Igreja, na concepção de Congar, é a forma mais feliz de
expressar a continuidade entre o antigo Povo de Deus, o Israel histórico, e o Povo de Deus hoje, a
Igreja.35 Modificou-se completamente o conceito de Igreja. De certa maneira, Antônio
Conselheiro antecipou na prática eclesial no Brasil essa realidade de Igreja, Povo de Deus, que
desaguou na Lumen Gentium.36 Ele deixou um legado para os que se convertem à Igreja, nascida
da vontade do Criador, cuja pertença se dá pelo batismo. Não se pode pensar que a mentalidade
hierárquica tenha desaparecido com o Concílio. Na prática eclesial, as duas realidades: Igreja,
Povo de Deus e hierarquia, convivem de forma dialética, dinâmica e, quase sempre, conflitiva.
Ainda mais diante da onda conservadora e da volta à grande disciplina, que invadiram a Igreja, a
partir dos anos oitenta, e a transportam para o conservadorismo, enfraquecendo muitos avanços
trazidos pelo Vaticano II e tão presentes nas comunidades eclesiais, como aconteceu em
Canudos. É um retrocesso para o Povo de Deus.
34 CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Concílio Vaticano II e a Igreja do Brasil..., p. 234. 35 Cf. CONGAR, Yves, A Igreja como Povo de Deus, in: Concílium, n.1, 1965, p. 13. 36 Cf. LG , 24-43.
148
3.3- A relação de Antônio Conselheiro com as autoridades eclesiásticas
Não se tem dados de conflitos provocados pelo Conselheiro com as autoridades
eclesiásticas. Ele era semelhante ao Padre Cícero, obedecia às orientações superiores, menos
abdicar do direito batismal de participar da comunidade ajudar organizá-la e cumprir sua missão
nascida do batismo, para a qual julgava ter sido chamado, de pregar o Evangelho e aconselhar
para o bem seus seguidores. Pelo acesso à literatura sobre esse assunto, o problema parece ser
mais da parte da hierarquia católica que de Antônio Conselheiro. Pelas circulares emitidas pelo
Arcebispo da Bahia, proibindo o Conselheiro pregar nas igrejas e por muitas cartas de párocos,
dirigidas ao Arcebispo da Bahia, relatando preocupações em relação à passagem do Peregrino em
determinadas paróquias, pode-se perceber o quanto a missão do Peregrino incomodava à
instituição eclesiástica em crise. O Conselheiro preferia mudar de freguesia a reagir publicamente
às proibições das autoridades religiosas. Em muitos casos, respeitou a reação dos vigários e
evitou o confronto direto, migrando para outros lugares. O Padre Agripino Borges, vigário de
Itapicuru, não teve dificuldades em perceber valores evangélicos na missão do Conselheiro.
Mesmo assim, uma análise mais apurada das cartas de alguns vigários enviadas às autoridades
(religiosas e do Estado) mostra a natureza do conflito. A preocupação de muitos padres era a
perda de espaço. Antônio Conselheiro os ameaçava: “O que gerou, pelas cartas dos vigários, o
confronto entre Igreja e Conselheiro era o fato de que o Conselheiro reclamava para si o direito
da prédica”.37 Padre Leopoldo Antônio Guia reconhece valores no Peregrino, mas demonstra
preocupação, ao dirigir-se à Arquidiocese, com os conselhos sem ciência, a um povo ignorante:
“Este homem que se diz penitente, conquanto tenha alguma utilidade para levantar paredes de
capelas e de cemitérios, tudo desfaz com os tais conselhos que, falta de toda ciência, prega ao
37 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 157.
149
povo [...]”.38 Tornava-se até mesmo impossível combater as heresias. Muitos padres, não somente
aceitavam a presença do Peregrino, como o convidavam para predicar nas Paróquias, divulgando
ainda mais as superstições. E lamenta: “como não haverá esta superstição se há sacerdotes que
consentiram ao mesmo Antônio pregar dentro da própria Matriz, de maneira que quando
convencidos do papel ridículo que representam, querem reagir, é sempre tarde [...]”.39
Visitando as Prédicas do Conselheiro, não aparece qualquer resposta a essas reações. Ao
contrário, quando alguns de seu grupo reagiram durante a homilia do frei João Evangelista,
emissário do Arcebispo da Bahia, o missionário reconheceu o respeito do Peregrino: “Este os fez
calar“.40 E, em outro momento: “Desta vez ainda o velho impôs silêncio”.41 Pelas prédicas, nota-
se um certo equilíbrio e amor de Antônio pela Igreja. Evitou responder às acusações que lhe
foram imputadas, de “inculto”, “ herege”, “ supersticioso”, “ desobediente”, “sem ciência” e “débil
mental”. Tomara a mesma atitude de Padre Cícero de respeito às normas do Arcebispo. Não as
criticava publicamente mesmo não sendo possível praticá-las. Ele não se perdia no que julgava
secundário. Cuidar da comunidade, procurar superar as dificuldades internas e conversar com os
que estavam chegando lhe era mais importante que qualquer discussão com autoridades
religiosas, quase sempre distantes do povo de Canudos. Muitos problemas surgiam no
aglomerado do Belo Monte, exigindo maturidade e capacidade de coordenação dos líderes.
Percebe-se, portanto, que o problema não estava nas atitudes do Conselheiro, e sim na
conjuntura eclesial nebulosa da Igreja. Mesmo sendo acusado pelo frei João Evangelista de
desrespeito à República e à doutrina cristã,42 seus manuscritos mostram sintonia com os
38 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 156. 39 Cit, in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 157. 40 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4. 41 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5 42 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5.
150
ensinamentos da Igreja.43 A questão era outra. A resposta da crise da Igreja não deveria ser
encontrada na repressão a Canudos. O povo do Conselheiro foi vítima de um sistema de
Padroado causador das verdadeiras mudanças da Igreja, no início da República. Nesse caso
concreto, o que fazer quando as autoridades eclesiásticas não percebem ou não estão atentas ao
sopro do Espírito que indica novos ventos na Igreja? As autoridades religiosas não percebiam as
mudanças que indicavam abertura para maior participação do leigo na Igreja, um compromisso
maior com os pobres e não um enrijecimento e hostilidade.
O Peregrino, mesmo sabendo que a participação do leigo na Igreja era restrita, aprendeu
com o Mestre Ibiapina o segredo da participação criativa no ministério profético, sacerdotal e
régio de Cristo, herança do batismo. Pela consciência do batismo, estimulado pela Missão
Abreviada44 (obra aprovada pelo Cardeal de Lisboa, pelo Arcebispo primaz de Braga, pelo
Cardeal do Porto e pelo Bispo Conde de Coimbra) e interpelado pela carência de seu povo,
Antônio Conselheiro “Estava bem amparado, num tempo em que o apostolado dos leigos não
havia cobrado a extensão que tem hoje”.45 Não basta acusar o Conselheiro de herege: “Para se
aquilatar da genuinidade da doutrina de suas prédicas, o melhor é lê-las uma a uma.
Absolutamente ortodoxas. São elas instrutivas e persuasivas”46, analisa Ataliba Nogueira. Em
Canudos, estava em gestação o desejo de maior participação do leigo na Igreja. Decerto,
observando atentamente suas prédicas, “não hão de encontrar nenhuma das tolices ou crendices
ou infantilidades que se lhe atribuem, baseadas em simples ‘papeluchos de algum ouvinte
ignorante’”.47 A atenção do Peregrino frente ao magistério da Igreja na Bahia encontra
43 Os fundamentos da catequese ensinada pelo Conselheiro estavam na Bíblia Sagrada, nas Horas Marianas, na Missão Abreviada e outros manuais circulantes entre os vigários e cristãos leigos. 44 A Missão Abreviada, por ser um livro de continuidade da missão e direcionado às lideranças leigas, foi uma obra basilar na prática missionária de Conselheiro. 45 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76. 46 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76. 47 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76.
151
semelhança na atitude tomada pelo Padre Cícero: respeito sem confronto direto e público. O
mesmo não foi feito por parte de muitas autoridades religiosas que preferiram seguir os ditames
do projeto de romanização,48 a respeitar as iniciativas de leigos dedicados. Antônio Conselheiro
percebeu o chamado de Deus e, orientado pela sua palavra, procurou reunir o povo para antecipar
os sinais do Reino dos céus aqui na terra. Sempre o fez na qualidade de leigo comprometido, não
ousando apropriar-se de funções exclusivas do clero.
O movimento de Canudos foi eminentemente transformador, não teve interesse de
manutenção do status quo. Seu principal líder agiu impulsionado pela missão (estritamente) de
competência de qualquer leigo. Aprendeu na escola do Padre Ibiapina, acompanhou o Mestre da
Caridade, participou de diversas missões, usou manuais de devoções oferecidos pela sua Igreja,
divulgados pelos missionários no final das missões populares. Diante das atitudes de vários
líderes da Igreja, Antônio Conselheiro demonstrou consciência na missão, respeito pelas
autoridades religiosas, mesmo não sendo possível aceitar certas proibições, a seu juízo,
incompatíveis com a vontade de Deus.
3.4- Canudos: Igreja pobre acolhendo os pobres
Os estudiosos de Canudos, historiadores, sociólogos e religiosos concordam a respeito dos
moradores de Canudos: fugitivos das secas, ex-escravos, mendigos, desempregados, sem-terras,
índios, pequenos proprietários e trabalhadores vindos de fazendas nos arredores de Belo Monte.
Na missa do centenário da chegada de Antônio Conselheiro a Canudos, em 1993, durante a
homilia, Dom Pedro Casaldáliga , bispo Emérito de São Félix do Araguaia, afirmou: “Canudos
foi o primeiro acampamento de sem-terra do Brasil”. Então, que modelo de Igreja existiu em
Canudos? Qual o papel da Igreja Católica na gestação da experiência eclesial do povo de Belo
48 Assunto desenvolvido amplamente no Capítulo I, 1.6.
152
Monte? Por que a instituição mandou emissário a Canudos com o objetivo de dispersar os que lá
viviam, se a motivação maior era de ordem religiosa? Na pós-missão ela mesma não estimulava
as lideranças leigas, por meio de manuais religiosos para continuar o avivamento religioso no
sertão? A Igreja não poderia ter assumido uma atitude de diálogo ao invés de confronto? São
questões chaves para se entender o “novo jeito de ser Igreja pobre”, no meio dos pobres de
Canudos.
O surgimento de um novo jeito de ser Igreja em Canudos decorre, inicialmente, pelo
distanciamento da instituição eclesiástica do pobre, mas presente que era entre os ricos e classe
média; também da crise do Padroado, da separação entre Igreja e Estado e do processo de
romanização. A Igreja não conseguia ser presença e, portanto, satisfazer às reais necessidades
religiosas do sertanejo. O povo tinha sede de Deus. A Igreja dos pobres em Canudos, não foi uma
“outra Igreja” paralela. Foi a Igreja reinventada no meio dos pobres de Canudos. Antônio
Conselheiro fez com que os pobres em Canudos se apropriassem da Bíblia, dos valores
evangélicos, da doutrina cristã, da ética dos Dez Mandamentos, das orações diárias, dos manuais
de espiritualidade, do respeito pelas autoridades eclesiásticas e trouxe a Igreja, refém de uma
cúpula e desencontrada no fogo cruzado com o Estado, para o meio dos pobres.
Pablo Richard ensaiou algumas definições sobre a Igreja dos pobres que podem ser
aplicadas no caso Canudos: “é um movimento de renovação eclesial dentro da Igreja instituição
existente e em comunhão com ela”.49 Sendo um movimento dentro da própria Igreja, a Igreja dos
pobres é uma reação à inércia e ao distanciamento da instituição, com relação aos pobres e à falta
de opção evangélica por eles. Não é um movimento de ruptura com a instituição, como pensava
frei Evangelista. Antônio Conselheiro e sua gente aceitavam a Igreja, sua doutrina, seus
ensinamentos e seus líderes. Procuravam trazê-la para seu meio. Daí a necessidade de reinventar
49 RICHARD, Pablo, A espiritualidade da Igreja dos pobres, Petrópolis: Vozes, 1989, p. 28. Grifo do autor.
153
a Igreja, renovar suas práticas e refazê-la em seu modelo de Padroado ultrapassado, sem
compromisso com os pobres. O povo sentia a ausência da Igreja no acampamento e reagia ao
atendimento superficial, sem solidariedade com suas lutas. Sua presença era meramente
sacramentalista. Jesus“ foi tomado de compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor, e pôs-
se a ensinar-lhes muitas coisas" (Mc 6,34).
A compaixão de Jesus é motivada pela carência do povo. O Mestre não admite seu povo
abandonado. A imagem bíblica do rebanho sem pastor estigmatiza a incúria dos líderes políticos
e religiosos no seu tempo (cf. Mt 9,36). Na perspectiva de Mateus, Jesus equivale ao enviado de
Deus para as ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Mt 15,26; 10,6; Lc 19,10). Para a
comunidade de Mateus, Jesus procede como o pastor messiânico (cf. Ez 34,23; 37,24). No
Primeiro Testamento Deus pronuncia uma sentença para os pastores infiéis: “Ai dos pastores de
Israel que apascentam a si mesmos! Não é o rebanho que eles devem apascentar? Não
fortalecestes os animais fracos, não curastes o doente, não tratastes o que quebrou a pata, não
reconduzistes o que se perdeu, mas exercestes a vossa autoridade pela violência e a opressão”(Ez
34, 2.4). Deus reclama para Si o pastoreio de suas ovelhas: “Eu mesmo vou buscar meu rebanho
para cuidar dele. Eu mesmo farei meu rebanho pastar, eu mesmo o levarei ao repouso. A ovelha
perdida, eu a buscarei; a que quebrou a pata, eu a tratarei; a enferma, eu a fortalecerei” (Ez
34,11.15.16.).
Por deficiência da Igreja e pela insuficiência do clero da época, o povo de Canudos sentia-
se “ovelhas sem pastor”(Mc 6,34). A Igreja não conseguia chegar até Canudos. O Conselheiro,
então, trouxe a Igreja dos pobres para Belo Monte, sem desprezar ou fazer oposição à instituição
eclesiástica. Para Pablo, “a Igreja dos pobres desencadeia contradições, mas são justamente as
contradições próprias da renovação e da conversão que a Igreja dos pobres provoca na Igreja
154
atualmente existente”.50 De fato, a experiência de Canudos questionou o distanciamento da Igreja
no meio dos pobres. Ao falar do caráter escatológico dos movimentos populares, entre eles está
Canudos, João B. Libanio não deixou dúvidas:
E como pano de fundo está o modelo da Igreja primitiva, como relatam os Atos, onde os homens todos eram considerados iguais, sem distinções de fortuna. Repartiam-se os bens, colocando-os em comum. Aspirava-se a um retorno a tal comunidade carismática. As reivindicações religiosas e sociais misturavam-se.51
A estruturação da Igreja em Canudos era muito simples e pragmática. Havia uma divisão
social das atividades. Gente para cuidar da roça, os que plantavam e colhiam, os comerciantes da
comunidade, os que estabeleciam relações comerciais com cidades vizinhas, pessoas para
selecionar e exportar o coro do bode para a Alemanha. Tudo acontecia em nome da Igreja, sob a
coordenação do Peregrino, chamado por Deus para esse serviço.
3.5- Os colaboradores diretos na Igreja dos pobres em Belo Monte
Em Canudos, o poder era partilhado, as lideranças naturais. Antônio Conselheiro logo
percebia o dom de cada um. Com sensibilidade ia identificando líderes e confiando tarefas. Tudo
muito rápido, pois a comunidade crescia vertiginosamente. Nas conversas individuais, o Beato
procurava saber o que cada pessoa gostava de fazer. Diversos ministérios foram delegados pelo
Conselheiro e reconhecidos pela comunidade de Belo Monte. Havia espaço para todos. Euclides
da Cunha identificou diversas dessas lideranças. Muitos colocavam os dons a serviço de todos.
José Calazans classifica os ministérios de serviço em: beatos, combatentes, negociantes,
proprietários e outras figuras das redondezas.52 Cada líder tinha função definida e corroborada
pelos moradores, com anuência do Beato. A triagem era feita na chegada ao arraial, na entrevista
com Antônio Conselheiro.
50 RICHARD, Pablo, A força espiritual da Igreja dos pobres..., p. 28. 51 LIBANIO, João B., BINGEMER, Maria Clara L., Escatologia cristã..., p. 45. 52 Cf. CALAZANS, José, Quase biografia de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 11-87.
155
O autor de Os Sertões nomeou diversas pessoas, com funções específicas e lideranças
consagradas.53 A povoação de Canudos deixou Euclides surpreso, pois recebia pessoas de
“Todas as idades, todos os tipos, todas as cores”.54 Não havia restrição de qualquer ordem. Ali
havia velhos penitentes, beatas cravadas de pecados, mulheres solteiras, fisionomias ingênuas de
raparigas crédulas, formando uma estranha comunidade ou uma população multiforme:
constituída dos mais díspares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se faz a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela justaposição mecânica de levas sucessivas, à maneira de um polipeiro humano.55
Toda essa gente estava imersa no sonho religioso. “Os jagunços errantes ali armavam pela
derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus. [...] Não cogitava de instituições
garantidoras de um destino na terra. Eram-lhes inúteis. Canudos era o cosmos”.56 Mesmo no meio
dessa massa humana, “inconsciente” e “a crítica”, Euclides identificava uma série de lideranças
capazes de ocupar cargos de direção na comunidade. Um aluvião de líderes estava ao lado de
Antônio Conselheiro, proporcionando a direção partilhada das atividades comunitárias, sem a
qual não seria possível o crescimento ordenado da Canudos do povo. José Calazans afirma que
estavam subordinados ao Conselheiro “alguns beatos, como o beato Paulo, José Beatinho,
Antônio Beatinho, além de outros que não foi possível identificar”.57 Uns cuidavam das
atividades religiosas (orações, benditos, terços, ofício de Nossa Senhora, procissões, Trezenas de
Santo Antônio), outros do plantio no campo (milho, feijão, mandioca, gergelim, arroz, abóbora,
etc.). Não faltava quem cuidasse do criatório (bodes, carneiros, vacas, porcos), articuladores do
53 Cf. CUNHA, Euclides, Os Sertões..., p. 262-267. 54 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 262. 55 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 250-251. O português de Os Sertões soa um tanto arcaico. Porém, conservamos o original do texto de Euclides da Cunha. 56 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 251. 57 CALAZANS, José, Quase biografias de Jagunços: o séqüito de Antônio Conselheiro..., p. 13.
156
comércio (exportação do couro do bode, comercialização de cereais com cidades vizinhas,
compra de outros produtos não produzidos no arraial) e da agricultura familiar.
Um personagem que ficou na história foi Antônio Beato, mais conhecido por Antônio
Beatinho. No final do massacre, quando o Arraial estava dominado, dia 2 de outubro de 1897, ele
apareceu agitando uma bandeira branca, em sinal de paz. Antônio Beatinho foi “zelador de
imagens, encarregado de tomar conta das coisas da igreja, com o direito de morar no Santuário,
perto do Santo Conselheiro”,58 afirma o historiador José Calazans. E continua: “Antônio
Beatinho, cujo nome de família não se guardou, foi o mais comentado dos grandes jagunços. O
único que ficou para a história na hora crepuscular da sua gente”.59 Euclides traça, com detalhes,
o perfil de Antônio Beato:
mulato espigado, magríssimo, adelgaçado, pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadriando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as novidades existentes.60
José Félix, apelidado Taramela, foi companheiro de Antônio Beatinho, com função
semelhante na comunidade: “quinhoneiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e
mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de
linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras
para as rezas”.61 Diversas informações dão conta ainda, de um certo Leão de Natuba, compadre
do Conselheiro, que o acompanhava como secretário, a quem o Conselheiro ditava ou mandava
copiar trechos de caráter religioso. Homem muito devoto de bela caligrafia. Morreu durante a
guerra, quando também pereceram quatro irmãos seus: Roseno, José, Manuel e Saturnino.
58 CALAZANS, José, Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 16. 59 CALAZANS, José, Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 17. 60 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 265. Grifo do autor. 61 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 265.
157
Manuel Quadrado recebeu a função de curandeiro, agindo na comunidade de Canudos
como um verdadeiro médico. Ocupava o dia-a-dia, “vivendo num investigar perene pelas
drogarias primitivas das matas”.62 Durante o final da década de 1890, circulou em larga escala o
Lunário Perpétuo, manual de medicina popular, possivelmente usado por Manoel Quadrado, na
preparação dos remédios caseiros. O povo não tinha acesso a qualquer benefício da saúde
especializada. As ervas eram as drogarias do povo e Manoel Quadrado prestava esse serviço na
grei conselheirista.
Timóteo Bispo de Oliveira, apelidado por Timotinho, também compadre de Antônio
Conselheiro, tinha a tarefa de tocar o sino, para lembrar os horários das orações e encontros
comuns. Durante a guerra, duas crianças de Timotinho foram recolhidas pelos soldados do
batalhão paulistano e levadas para São Paulo, conforme denúncia do Comitê Patriótico. Nunca
mais se teve notícia das criancinhas! Timotinho também foi “morto heroicamente no desempenho
de sua tarefa cotidiana, é uma das mais famosas figuras da guerra sertaneja de 1897. [...] atingido
por uma bala de canhão, na torre da igreja, que liquidou o sineiro e jogou longe o sino”.63
Tornou-se um dos mártires de Canudos. Francisco Cardoso de Macedo lamentou o sumiço do
sino, no final de tudo: “Nos últimos dias, eu estava no reduto, vi o grande sino se arrebentar
debaixo das balas, batendo no chão entre as pedras. Hoje ninguém sabe ao certo o destino do
sino, que se ouvia a uma légua por todas estas redondezas”.64 Percebe-se uma reação de lamento
pelo sumiço do sino, revestido de simbolismo na vida do sertanejo. Quantas vezes o repique
sinalizava o início das orações e encontros do Peregrinos com a comunidade eclesial! O sino
desapareceu!
62 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 265. 63 CALAZANS, José, Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 19-20. 64 Cit. in: CALAZANS, José, Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 20 (apud: TAVARES, Odorico, Bahia: imagem da terra e do povo, Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1952, p. 273).
158
José Félix, conhecido na grei por Taramela, oriundo de Nova Soure, encontrava-se no
séqüito desde o início da façanha, em 1893. Homem de toda confiança de Antônio Conselheiro,
Taramela gostava de relatar para as pessoas os “milagres” do Peregrino. De imaginação fértil,
passava horas contando estórias, à modo sertaneja. Não era capaz de inventar. Porém, tinha
capacidade de aumentar os “casos” do Arraial, proporcionando momentos agradáveis a todos. Há
várias informações sobre ele. Para Euclides, foi uma espécie de sacristão, chaveiro da Igreja e
guardião do Santo Conselheiro.65 Para Agostinho, sobrevivente ao massacre, o apelido Taramela
vinha do fato de lhe caber a responsabilidade de abrir as portas para a passagem de Antônio
Conselheiro.66 A informação de Calazans é divergente: “Taramela ou tramela quer dizer falador,
contador de estórias. A alcunha caía bem”.67 É a versão mais próxima do regionalismo
nordestino. Taramelar significa tagarelar, falar sem parar. Taramela vem de tramela de prender
porta sem fechadura. A tramela se movimenta rapidamente, à semelhança dos faladores ou com
“tramela na língua”.
Com poucos detalhes, Euclides lembra outros líderes com serviços especificados,
fundamentais na vida funcional do arraial: “Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que
alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável
aliciador de prosélitos (Animava os momentos festivos, soltando foguetes). José Gamo; Fabrício
de Cocobocó”.68 O depoimento de Vilanova confirma a força de lideranças no acampamento:
“Compadre Antônio, tanto quanto João Abade, ou Quinquim de Coiqui, o Major Sariema ou
Joaquim Tranca-Pés, foi um autêntico ‘chefe do povo’, um comandante de rua, um guerrilheiro
famoso de Canudos”.69
65 Cf. CUNHS, Euclides, Os Sertões..., p. 265. 66 Cf. CUNHA, Euclides da, Canudos: diário de uma expedição, Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1939. 67 CALAZANS, José, Quase biografias de Jagunços: o séqüito de Antônio Conselheiro..., p. 23. 68 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 264. 69 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova..., p. 22.
159
E como a vida gravitava em torno da religião, dividiam-se os afazeres; uns cuidavam das
orações em comunidade pela manhã, ao meio dia e ao cair da tarde – momento no qual o
Conselheiro dirigia a palavra a todos; outros encarregavam-se do toque do sino nos momentos
festivos, de entusiasmo e os que puxavam as excelências.i Tudo no Arraial podia ser visto a partir
de uma inspiração puramente sagrada da existência, orientando os seguidores numa direção de vida na linha de santificá-la com ritos religiosos, com predominância de valores religiosos, buscava-se instaurar na terra o reino de Deus, reino de paz e harmonia, com melhores condições de vida para o povo.70
Euclides descreve um gesto de profunda religiosidade envolvendo Antônio Beatinho,
diante da imagem do Cristo crucificado, seguido pelos fiéis, comprimidos no Santuário, durante a
celebração da comunidade:
Antônio Beatinho, o altaneiro, tomava de um crucifixo; contemplava-o com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variante, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente, todos os santos, e registros e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um, por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes inúmeros e, num crescente, extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas à meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas e reprimidas ainda, para que não se perturbasse a solenidade.71
Com a colaboração de diversas lideranças, a guia do Conselheiro, a Igreja em Canudos se
concretizava e se fortalecia a cada dia, no meio dos pobres e com os pobres.72 Porém, sem faltar o
respeito para com lideranças eclesiais que investiam para desfazer a experiência de uma Igreja de
pobre no meio dos pobres.
A forma de organização dos ministérios de serviços na comunidade de Canudos encontra
fundamentos teológicos nas Igrejas do Segundo Testamento e no batismo cristão. O batismo
incorpora o fiel a Cristo. O batizado, como membro da comunidade eclesial, faz parte do Corpo
70 LIBANIO, João B., e BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia cristã..., p. 52. 71 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 266. 72 No centro de Belo Monte, havia duas igrejas e um cemitério. A pequena igreja velha e a igreja nova. Esta não chegou ao término por causa da guerra.
160
Místico de Cristo que é a Igreja. Como membros desse corpo, participantes do múnus profético,
sacerdotal e real do Filho de Deus encarnado. Os líderes em Canudos puseram em prática o que é
“específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de Deus exercendo funções
temporais e ordenando-as segundo Deus.”73 Cabe aos leigos, afirma a Lumen Gentium, “de
maneira especial iluminar e ordenar de tal modo todas as coisas temporais, às quais estão
intimamente unidos, que elas continuamente se façam e cresçam segundo Cristo, para louvor do
Criador e Redentor”.74 Sem a diversidade dos serviços em Canudos, sem o empenho das
lideranças, não seria possível organizar uma comunidade com tanta gente. A missão de Antônio
Conselheiro sempre foi em nome da Igreja e, segundo o Vaticano II, “O apostolado dos leigos é
participação na própria missão salvífica da Igreja”,75mesmo que uma parte dos representantes da
Igreja não tenha sido capaz de interpretar a ação do Espírito de Deus na comunidade solidária de
Canudos.
Na Igreja de Canudos foi formando o que Alberto Parra chamou de ministerialidade “de
baixo” ou “de base”. “Essa ministerialidade “de baixo” e “de base” é claramente eclesial porque
o batismo e a vocação cristã estão gerando uma irrefreável potencialidade ativa no seguimento
histórico de Jesus para a transformação da Igreja e da sociedade”.76 Isso foi quantificado em Belo
Monte. A distância do Arcebispo da Bahia testemunhava um desequilíbrio próprio numa
arquitetura piramidal de Igreja, com a cúpula obviamente em cima e a base em baixo. A Igreja da
época de Antônio Conselheiro, “fraca no interior de suas próprias quadras, navegava entre crise e
reforma. Fechada no seu transcendentalismo estava muito distante do povo. Ignorava as
73 LG , 32. 74 LG , 32. 75 LG , 33. 76 PARRA, Alberto, Os ministérios na Igreja dos pobres..., p. 64.
161
necessidades dele como também a sua fé, até demonstrava – como as elites secularizadas – pudor
e horror às formas religiosas populares”.77
Na perspectiva da teologia do laicato, a ministerialidade emergente do povo de Canudos
“é profundamente eclesial e radicalmente sacerdotal porque as comunidades de pobres e de
crentes são os batizados e consagrado pelo Espírito do Crucificado Ressuscitado”.78 Em Canudos
havia a prática do batismo cristão. Lá os ministérios da “base”, isto é, a Igreja que acontece em
plenitude no acampamento, eram eclesiais porque os pobres e crentes recuperaram sua dignidade
sacerdotal e leiga. Toda a ação pastoral do Conselheiro foi realizada em nome da Igreja, mesmo
sem ser reconhecida em determinados momentos por alguns de seus setores condicionados por
fatores políticos e conjunturais republicanos. O que caracterizava a Igreja “da base” em Canudos
era o fato de ter sido privada de um futuro próprio, pois o poder “de cima” não lhe permitia criar
sua própria história mas, ao contrário, a mantinha em condição de objeto ou subjugada. Não
obstante certa incompreensão, a Igreja em Canudos esteve unida com profunda convicção de fé
do Conselheiro à grande Tradição eclesial. Como obra do amor de Deus à humanidade, tem sua
origem na vida e obra de Jesus Cristo, animada por seu Espírito.79 Ela nasceu uma vez por todas
do ministério e do destino histórico de Jesus de Nazaré, da cruz, do sepulcro aberto do
Ressuscitado, da obra da graça de Pentecostes e continua nascendo onde as pessoas estiveram
reunidas em Seu nome. A Igreja é uma comunidade continuamente criada por Jesus, recriada pelo
Ressuscitado e acompanhada pelo Espírito Santo. Não é algo estático. É o povo de Deus em
marcha, agindo em cada momento histórico, dinamizado pelo Ressuscitado.
A Igreja de Canudos deparou-se, de certo modo, com o que Comblin caracteriza de
“modelo hierárquico (de Igreja) que era o modelo dominante no segundo milênio – pelo menos
77 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 374. 78 PARRA, Alberto, Os ministérios na Igreja dos pobres..., p. 62. 79 Cf. DP, 237; 250.
162
na Igreja do Ocidente, e quase unanimemente aceito até 1940”.80 Frei João Evangelista, pelo
relatório apresentado ao Arcebispo da Bahia, Dom Jerônimo Tomé, em visita a Canudos, revelou
uma visão de Igreja do poder, distante do serviço aos pobres. Mesmo assim, a reação do
Conselheiro foi prudente e respeitosa.
Para Comblin, “diante da recusa da hierarquia e do clero, a consciência de povo
emancipou-se, secularizou-se e, no final, declarou-se contra uma Igreja hierárquica que lhe fazia
oposição”.81 E é enfático: “Essa Igreja hierárquica sentiu-se rejeitada. Condenou, condenou e
condenou, até que João XXIII veio dizer que o caminho das condenações não leva a nada”.82 É
sempre importante que os membros da hierarquia eclesiástica estejam atentos à ação do Espírito
de Deus que sopra na sua Igreja, apesar da nossa presença de clérigos. A
Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, embora fora de sua visível estrutura se encontrem vários elementos de santificação e verdade. Estes elementos, como dons próprios à Igreja de Cristo, impelem à unidade católica. 83
Não foi esse fenômeno, reconhecido pelo Concílio, que se deu em Canudos: “fora de sua
visível estrutura se encontram vários elementos de santificação e verdade”. Acolher os leigos
proporcionar-lhes espaço na missão não é uma concessão da parte da hierarquia, mas direito e
dever batismais. O Concílio Vaticano II esclareceu o papel dos leigos na Igreja e reconheceu que
eles “são especialmente chamados para tornarem a Igreja presente e operosa naqueles lugares e
circunstâncias onde apenas através deles ela pode chegar como sal da terra”.84 Quando os Padres
Conciliares expuseram a teologia do povo de Deus destacaram a missão dos leigos derivada
diretamente do Salvador. Os leigos participam diretamente do sacerdócio de Cristo,85 do seu
80 COMBLIN, José, O povo de Deus, São Paulo: Paulus, 2002, p. 52. 81 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 64. 82 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 64. 83 LG , 8. 84 LG , 33. 85 Cf. LG , 34.
163
múnus profético,86 e do múnus de reger sua Igreja.87 Por isso, os pastores da Igreja “reconheçam
e promovam a dignidade e a responsabilidade dos leigos na Igreja. De boa vontade utilizem-se do
seu prudente Conselho. Com confiança, entreguem-lhes ofícios no serviço da Igreja. E deixem-
lhes liberdade e raio de ação”.88
Mesmo quase um século antes, Antônio Conselheiro tinha clareza desse compromisso na
edificação da Igreja, de sua participação e co-responsabilidade na missão. O problema é que ele
não dispunha de instrumentos garantidores desses direitos na comunidade de Canudos. A visita
do frei João Evangelista teve como objetivo oficializar a posição do arcebispo da Bahia contrária
ao movimento sertanejo e por fim ao entusiasmo catequético das lideranças de Canudos. Antônio
Conselheiro assumiu uma postura de silêncio e contemplação diante do comportamento do
capuchinho. Diante da impotência dos leigos frente a autoridade dos “sagrados pastores”.
Comblin lança uma pergunta: “o que acontece se os “sagrados pastores” não seguem essas boas
recomendações (do Concílio)? Vê-se aí que os leigos estão totalmente impotentes. Não há meios
de obrigar o “sagrado pastor” a cumprir o seu dever. Isso não foi previsto pelo Concílio”.89 O
caminho mais sensato de Antônio Conselheiro diante do representante do Arcebispo da Bahia foi
o “silêncio obsequioso”.
Movimentos eclesiais como Canudos, a Ação Católica, as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) e outros movimentos no interior da Igreja ajudam na convivência familiar e colaboração
no crescimento da Igreja, entre leigos e pastores. A partir dessa convivência fraterna e de
cooperação mútua, “se reforça o senso da própria responsabilidade, é favorecido seu entusiasmo e
mais facilmente, os talentos dos leigos se unirão aos esforços dos Pastores. Estes, por sua vez,
ajudados pela experiência dos leigos, podem decidir-se mais clara e competentemente tanto nas
86 Cf. LG , 35. 87 Cf. LG , 36. 88 LG , 37. 89 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 47.
164
coisas espirituais como nas temporais”.90 Se isso tivesse ocorrido em Canudos, evidentemente,
haveria outro desdobramento. Um posicionamento da Igreja em defesa de Canudos certamente
teria inviabilizado a guerra.
3.6- Outras manifestações religiosas em Canudos
A comunidade conselheirista reuniu pessoas de religiões diferentes. Lá conviveram
brancos católicos, afro-descendentes e índios. Ainda não se desenvolveram estudos, por exemplo,
sobre a presença dos índios Kaimbé de Massacoará, Kiriri de Mirandela, Tuxá de Rodelas e um
grupo significativo de caboclos de Natuba (Nova Soure), em Canudos. Há uma lacuna no
aprofundamento sistemático sobre à etinicidade específica dos índios do Nordeste. É uma página
a ser escrita. Não se tem notícia de conflitos religiosos no acampamento belo-montense, mesmo
vivendo na mesma comunidade brancos, negros e índios. Os motivos dessa paz religiosa são
desconhecidos. Talvez a ausência de protestantes justifique a convivência tão harmônica entre os
conselheiristas. Não havia dúvidas da predominância quase absoluta do catolicismo. Supõe-se
que os negros e índios, como na época da colonização, manifestavam sua religiosidade, cultuando
seus deuses e exercendo suas práticas religiosas. Nesse tempo, o protestantismo não tinha
chegado ao sertão. Segundo Francisco Cartaxo Rolim, as duas primeiras comunidades
protestantes só chegaram ao Brasil no início do século XX. A Assembléia de Deus chegou ao
Pará, em 1920. A Congregação Cristã no Brasil instalou-se no País em 1922 no Bairro do Bexiga,
em São Paulo. O missionário italiano Luís Francescon tornou-se o primeiro protagonista com o
objetivo de “transmitir aos imigrantes italianos a experiência pentecostal trazida dos Estados
Unidos”.91 Dados estatísticos da passagem do século XIX paro o XX revelam pouca influência
90 LG , 37. 91 ROLIM, Francisco Cartaxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina..., p. 49.
165
dos protestantes no País, conforme levantamento do censo da época, apresentado por Rolim, em
1890: “os evangélicos perfaziam 1% da população total; em 1900, 1,1%.”92
Essa influência protestante foi ainda menor no alto e médio São Francisco. Surge uma
interrogação. Se a protestantismo não teve tanta influência nos meios sertanejos, por que Antônio
Conselheiro os elegeu entre seus inimigos? Ele os equiparou aos maçons e aos republicanos,
como inimigos de Deus, que confundiam o povo. Eles “também só acreditam na Lei de Moisés,
espalhando doutrinas falsas e errôneas aos ignorantes, arrastando assim tantas almas para o
inferno, além das perseguições que eles fazem à religião do Bom Jesus; nunca eles vão triunfar,
porque Deus protege a sua obra”,93 que é a Igreja verdadeira.
Seguramente essa ojeriza aos protestantes vem da doutrina católica, propugnada pelo
Concílio de Trento e reafirmada pelo Concílio Vaticano I e bastante divulgada na Europa. O
Conselheiro seguiu, à risca, as doutrinas conciliares. Não existe outra explicação. Aliás, ele se
referiu poucas vezes com hostilidade aos protestantes.94 Rolim afirma que muitos protestantes
não declaravam sua igreja “como estratégia para se pouparem às perseguições, claras ou veladas,
movidas pelo catolicismo clerical”.95 Antônio Conselheiro não se sentiu incomodado pelos
protestantes. Combatê-los interessava ao clero e missionários pregadores de missão. Isso não
fazia parte do conteúdo dos ensinamentos do Peregrino. Não há informações sobre a existência de
evangélicos no acampamento conselheirista que pudessem se contrapor ao pensamento do
Conselheiro; nem se encontram relatos que comprovem conflitos entre católicos, afro-
descendentes e índios. Significa que havia tolerância religiosa no interior da comunidade. No
acampamento de Canudos, existiu um número significativo de índios e negros, sem maiores
problemas de convivência entre eles.
93 MAC , p. 548. 94 Cf. MAC , p. 548. 95 ROLIM, Francisco, Cartoxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina..., p. 32.
166
3.7- Características fundamentais da Igreja de Canudos
3.7.2- Uma Igreja fundada pelo Bom Jesus
A Igreja de Canudos não deve ser entendida como antitética à Igreja Católica, Apostólica
Romana, como se fosse uma outra “igreja paralela” ou um movimento à revelia da verdadeira
Igreja. Antônio Conselheiro sempre agiu em nome da Igreja fundada por Jesus Cristo, “obra de
Aquele que diz não ter vindo destruir a lei, mas aperfeiçoá-la”.96 Na sua concepção a Igreja é
obra do Bom Jesus, é protegida por Deus Pai.97 Como a comunidade do povo de Deus do Belo
Monte, a Igreja sempre foi protegida pelo Bom Jesus, provando “os tesouros da sua infinita
bondade e misericórdia”.98 Para os membros da Igreja de Jesus Cristo, presente plenamente na
comunidade de Canudos, o Bom Jesus não falta aos que recorrem à sua graça, agindo na Igreja
militante. Diante do crescimento da Igreja, comunidade de Canudos, Antônio Conselheiro
assumiu uma atitude contemplativa, de agradecimento e louvor ao seu fundador: “Cabe-me ainda
o prazer de declarar-vos que já rendi as devidas graças ao Bom Jesus por me ter prestado o seu
poderoso auxílio a fim de eu levar a efeito a obra do seu servo, que a não ser tão belíssima
pessoa, certamente não conseguiria realizá-la”.99 É pela graça de Cristo que a comunidade
prosperava. Se a Igreja Católica, Apostólica Romana é a única fundada por Jesus Cristo, então,
“nela não há erro, porque o seu fundador é a fonte de toda sabedoria, santidade e perfeição”.100
O Peregrino de Canudos trouxe para seus manuscritos a citação de Mt 16, 18, que confere
a Pedro uma posição especial no círculo dos doze, precedida por um reclame aos inimigos da
Igreja: “Não tendes paciência para esperar a promessa que o adorável Jesus fez a São Pedro,
dizendo: tu és Pedro e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não
96 MAC , p. 542. Português diferente do atual. 97 Cf. MAC , p. 550. 98 Cf. MAC , p. 553. 99 MAC , p. 552-553. 100 MAC , p. 550.
167
prevalecerão contra ela”.101 Jesus, ao fundar sua Igreja, deu autoridade para seus seguidores
agirem em seu nome. Ele “é a única esperança da nossa salvação; fora dele não há salvação em
parte alguma. [...] Eu sou a porta e se alguém por mim entrar será salvo. Acreditem pois, fiéis, na
lei da graça, que é a verdadeira lei que devem observar irrepreensivelmente para vossa
salvação”.102 A construção da Igreja de Santo Antônio de Canudos foi da vontade de Deus e para
o bem dos moradores do Belo Monte.
3.7.2- Uma Igreja alicerçada na sucessão apostólica
O ideário do Beato foi ortodoxo, atribuiu a origem divina da Igreja,103 reconheceu a
liderança de Pedro na qualidade de sucessor dos Apóstolos, coordenador da comunidade
apostólica, na qualidade de Pedra, sobre a qual a verdadeira Igreja de Cristo estaria alicerçada.104
Nos Textos extraídos da Sagrada Escritura105 o Beato fundamentou a autoridade doutrinal da
comunidade apostólica, que age em nome de Cristo, articulando seu pensamento com Mt 18,18:
“tudo o que vós ligardes sobre a terra será ligado também na céu; e tudo que vós desatardes sobre
a terra será desatado também no céu”.106
Motivava suas prédicas com os argumentos das escrituras, apelava para a autoridade dos
apóstolos e a confirmação dos evangelistas. Um dos exemplos é quando fala da ressurreição
gloriosa de Jesus:
foi Nosso Senhor Jesus Cristo morto e sepultado: e ao terceiro dia ressuscitou com brilhante resplendor e majestade e glória, e foi visto, por muitas vezes, de sua santíssima mãe e depois apareceu a seus discípulos e às santas mulheres. E tudo isto que vos tenho dito o confirmaram vários autores; e os santos evangelistas o confirmam como testemunhas de vista (Mat. 28, Mar. 15, Luc. 24, J0. 21).107
101 MAC , p. 614. 102 MAC , p. 549. 103 Cf. MAC , 550 104 Cf. MAC , p, 614. 105 Cf. MAC , 427-485. 106 MAC , p. 454-455. 107 MAC , p. 468-469.
168
Nos mesmos Textos extraídos da Sagrada Escritura, trabalhou com citações dos quatro
evangelhos, das cartas de Paulo, Pedro, Apocalipse de São João, etc., e articulou citações do
profeta Isaías, para não deixar dúvidas a respeito da messianidade de Jesus.108 Além disso, usa
citações dos Salmos, Eclesiástico e de Jó. Podemos dizer, ainda, que a comunidade de Canudos
foi uma Igreja da Palavra ou centrada na Palavra de Deus revelada. Antônio Conselheiro venerou
os Apóstolos como sucessores legítimos da continuidade da missão de Jesus; os Santos Padres,
como “colunas da Igreja Católica, Apostólica Romana e luz do cristianismo”109; os bispos e
lideranças comunitárias eram continuadores da missão apostólica, entregue por Jesus. O
Peregrino de Canudos demonstrou, pelos manuscritos, a sucessão apostólica da Igreja, o
embasamento evangélico de suas pregações, a utilização relativamente bem articulada de autores
cristãos, corroborando, por um lado, o domínio da linguagem teológica e religiosa e, por outro,
contradizendo os que o acusavam de ignorante, sem autoridade religiosa. E, o mais importante: à
semelhança do Mestre de Nazaré, “Antônio Conselheiro demonstrava uma invejável segurança
em se comunicar com os pobres do campo, de sorte que as multidões o seguiam como quem
segue um líder, pois o povo percebia que estava diante de alguém que trazia uma novidade para
os “mal-aventurados””,110 e pouco letrados do sertão, ponto fraco da linguagem teológica do
clero.
Antônio Conselheiro teve um profundo senso de unidade na Igreja. Não promovia
divisões; suas convicções revelavam preocupação com a unidade da única Igreja de Jesus Cristo.
Não há outra. Por isso, sofria com os que caluniavam a Igreja. Eles são inimigos do Bom Jesus.111
108 Cf. MAC . 471-472. Pela importância do sentido de esperança que estas citações do profeta representam para o contexto de sofrimento do povo de Canudos, transcrevo a íntegra dos citações, da própria Bíblia. 471: Is 25,9: “Dir-se-á nesse dia: É ele o nosso Deus. Nós esperamos nele e ele nos liberta. É o Senhor em quem pusemos nossa esperança. Exultemos, jubilosos, pois ele nos salva”. Is 35,4: Dizei àqueles que estão conturbados: Sede fortes, não tenhais medo. Eis o vosso Deus: é a vingança que vem, a retribuição de Deus. Ele mesmo vem salvar-nos”. Is 45,15: Seguramente, tu és um Deus que se mantém escondido, o Deus de Israel, aquele que salva”. 109 MAC , 474-475. 110 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 67. 111 Cf. MAC , p. 560-563.
169
Portanto, partindo dos manuscritos de Antônio Conselheiro, de sua prática eclesial e
coerência de vida, fica claro, não se pode acusá-lo de despreparado, sem conhecimento doutrinal
e contra a unidade da Igreja. De fato, segundo Congar, a unidade da Igreja é apostólica. A
catolicidade está ligada à unidade, à apostolicidade ligada à obra de Jesus Cristo. Assim, “existe
uma espécie de presença e de interioridade mútua, de “circuminsessão” das notas entre si, um
pouco como as diversas funções de Cristo não são mais do que as emanações de sua unção pelo
Espírito Santo e de sua plenitude de graça, de maneira que sua realeza é profética e sacerdotal;
seu sacerdócio, profético e real; seu profetismo, real e sacerdotal”.112
Para Antônio Conselheiro, a única Igreja verdadeira é a Católica, que nasceu do Bom
Jesus, entregue à direção dos Apóstolos, que passa pelos Santos Padres e continua pelos bispos e
cristãos crentes que professam, com palavras e obras: Jesus Cristo é a luz da verdade, o
verdadeiro Redentor e Salvador do gênero humano.113 Apesar de ser acusado pelo frei João
Evangelista de falta de ortodoxia católica e ser contra as autoridade civis e religiosas,114 Antônio
Conselheiro reconheceu a legitimidade da hierarquia católica e sua ação pastoral em nome da
Igreja. Os ministros ordenados da Igreja do Bom Jesus abençoaram o povo:
Estas bênçãos se vêm lançar os papas, cardeais, bispos e todas mais pessoas constituídas em dignidade eclesiástica, no fim da missa e mais cerimônias da Igreja, quando abençoa o povo cristão, invocando nela as três Pessoas da Santíssima Trindade, que as formou e dirigiu para nosso bem. Na vara do sumo pontífice se vêem expressamente estas três cruzes, símbolo do supremo poder daquele supremo ministro de Deus. Esta cruz se vê levarem todos os arcebispos e bispos diante de si nos seus arcebispados: aos primazes por todo o reino onde o são.115
112 CONGAR, Yves, Propriedades essenciais da Igreja, in: Mysterium Salutis, IV/3, Petrópolis: Vozes, 1976, p. 9. 113Cf. MAC , p. 474-475. 114 Relatório do Frei João Evangelista...,p. 5. 115 MAC , p. 500-501 .
170
3.7.3- Uma Igreja de pobre e para os pobres
Os pobres foram protagonistas na Igreja de Canudos. As alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias do povo sofredor foram assumidas pela Igreja dos pobres no Belo Monte.
Em Canudos, os pobres sentiram-se acolhidos. Os leigos foram protagonistas em uma Igreja que
assumiu as dores e as alegrias, as esperanças e as tristezas, as angústias e os sonhos dos
sertanejos. A Igreja identificou-se com as causas do sertanejo e o sertanejo sentiu-se acolhido
pela Igreja.
Um desafio que sempre acompanhou a Igreja tem sido harmonizar o binômio fé e vida, fé
e compromisso social, amor a Deus e ao próximo, por em prática a proposta do evangelho de
implantar o reino de Deus aqui na terra. Jesus advertiu seus seguidores da incoerência: “Não
basta dizer: ‘Senhor, Senhor!’ para entrar no Reino dos céus; é preciso fazer a vontade do Pai que
está nos céus” (Mt 7,21). O cristianismo é a religião da alteridade, do coletivo, da
responsabilidade pelo “outro”, do “amor a Deus “de todo o teu coração , com toda a tua alma e
com todo o teu pensamento” Mt, 22, 37; cf. Dt 65; Js 22,5) e do amor ao “teu próximo como a ti
mesmo” (Mt 22, 39; cf. Lv 19,18; Mt 5, 43; 19,9).
Seguindo a linha da construção do Reino de Deus, Reino que não é deste mundo, mas
começa aqui, não é só comida, bebida o Concílio ampliou o conceito de Igreja; destacou o papel
do coletivo, da comunidade humana, do povo de Deus, ao introduzir novos conceitos sobre a
Igreja. Foi da vontade do Pai “santificar e salvar os homens não singularmente, sem nenhuma
conexão uns com os outros, mas constituí-los num povo, que O conhecesse na verdade e
santamente O servisse”.116 A nova eclesiologia emergente do Vaticano II estimulou a reflexão
teológica, a partir do viés eclesiológico laical, de comunhão, repensando as estruturas da Igreja, o
116 LG , 9.
171
compromisso com os pobres, missão e inserção no mundo. A Igreja, Corpo Místico de Cristo,117
povo santo, reunido em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,118 povo de Deus,119 é
sacramento universal de salvação.120
A Igreja em Canudos se organizou a partir dos leigos, numa simbiose entre fé e vida, sem
que uma ou outra fosse subestimada. Em Belo Monte os cristãos leigos, sob a guia do Peregrino,
harmonizaram as atividades terrenas e a construção do Reino de Deus, conforme preconiza a
Lumen Gentium. Conciliar “ambas harmoniosamente entre si, lembrados de que em qualquer
situação temporal devem conduzir-se pela consciência cristã, uma vez que nenhuma atividade
humana, nem mesmo nas coisas temporais, pode ser subtraída ao domínio de Deus”.121 A prática
de vida em Canudos foi orientada pela mística do amor a Deus e ao próximo(cf. Mt 22,37-39). O
amor ao próximo se concretizou na comunidade pela acolhida aos pobres e mal-aventurados que
lá chegavam. Ao mesmo tempo em que o Beato condenava a escravidão, acolhia os ex-escravos
vindos das senzalas; criticava a República, porém, acolhia os empobrecidos por ela na
comunidade solidária; orientava a todos para o trabalho e ensinava a virtude da partilha com os
necessitados; sabia conciliar oração e trabalho, seguindo à fileira da tradição nordestina e Padre
Ibiapina: orar e trabalhar. A ordem estabelecida pela República não correspondia à vontade de
Deus. “Neste caso, para manter-se fiel a Deus era necessário dedicar-se a orações, mas também à
prática social de contestações no sentido de abrir e criar novos espaços onde reine a comunhão de
bens e a vivência fraterna”.122 Foi implacável com os que se apropriavam dos bens alheios. O
homem, por mais pobre que fosse, não podia justificar o roubo. O Peregrino aplicou o
pensamento de São João Crisóstomo para os que enriqueciam ilicitamente. Os “que furtam os
117Cf. LG , 7. 118 LG , 4. 119 Cf. LG , 24-43. 120 Cf. Ad Gentes, 5. Citado por AD . 121 LG , 36. 122 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo…, p. 61.
172
bens alheios são piores que as feras e que os demônios; e como tais os deviam riscar do catálogo
dos homens. Porque as feras, quando acometem aos outros animais, estando satisfeitos os
deixam; porém os que furtam, de nenhum roubo ficam satisfeitos, porque ficam com fome para
fazerem outro: e quanto mais roubam mais sede têm de furtar”.123
A Igreja de Canudos foi samaritana com os caídos, misericordiosa com os necessitados e
exigente com os que insistiam na acumulação desonesta de riquezas, em detrimento dos
necessitados. Nos textos seletos, extraídos das escrituras, aplicava a sentença de Jesus aos
aproveitadores da República: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que
um rico se salvar”124 (cf. Mt 19,24). E mais na frente: “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua
justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo”125 (Mt 3,33). Também ensinava: “Amai a
vossos inimigos, fazei o bem a quem vos tem ódio e orai pelos que vos perseguem e caluniam”126
(cf. Mt 5,44). Esse espírito cristão tornou-se o fio que costurou as relações humanas na
comunidade canudense.
A conferência de Puebla advertiu a Igreja da necessidade de conhecer as causas da miséria
na América Latina. “A situação interna de nossos países encontram, em muitos casos, sua origem
e apoio em mecanismos que, por estarem impregnados não de autêntico humanismo, mas de
materialismo, produzem, em nível internacional, ricos cada vez mais ricos às custas de pobres
cada vez mais pobres”.127 Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro procuravam combater a miséria;
aquele, no início do século XIX; este, no final. A prática libertadora da comunidade de Canudos,
vista com desconfiança por setores da Igreja, foi reconhecida em Puebla. A Igreja “deve fazer
123 MAC , p, 368. 124 MAC , p. 442-443. 125 MAC , p. 443. 126 MAC , p. 444. 127 Cit. in: DP, 30.
173
ouvir a sua voz, denunciando e condenando estas situações, sobretudo quando os governos ou
responsáveis se confessam cristãos”.128
Canudos preconizou o novo jeito de ser Igreja, praticado pelas Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), a partir de 2960, no Brasil e na América Latina. As CEBs só foram reconhecidas
por um documento pontifício na Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, falando “destas “pequenas
comunidades” ou “comunidades de Base””.129 As CEBs “brotam e desenvolvem-se, salvo
algumas exceções, no interior da Igreja, e são solidárias com a vida da mesma Igreja e
alimentadas pela sua doutrina e conservam-se unidas aos seus pastores”.130 São comunidades
semelhantes à experiência de Canudos: “reúnem os cristãos daqueles lugares em que a escassez
de sacerdotes não favorece a vida ordinária de uma comunidade paroquial”.131 Para Leonardo
Boff, assessor das CEBs, elas “são mais que extensões das tradicionais instituições da Igreja,
como as paróquias e associações pias. Elas significam a presença de toda a Igreja na base, quer
dizer, a Igreja dentro do povo pobre e humilde”.132 O povo de Canudos tinha amor à Igreja,
sentia-se responsável, não somente pela construção das igrejas velha e nova, como também pelas
diversas outras capelas nas cercanias do arraial belo-montense. No Belo Monte, o povo pobre
apropriou-se da liturgia, coordenava as liturgias da Palavra, participava das missas, fazia
procissões, cantava os benditos, animava pela oração a vida machucada.
3.8- Fundamentos bíblicos e teológicos da eclesiologia da comunidade de Canudos
Antônio Conselheiro destacou os pontos fundamentais da fundação da Igreja: origem
divina, sucessão apostólica, Tradição eclesial, referência aos Santos Padres, bispos, sacerdotes e
128 Puebla, 42. 129 Evangelii Nuntiandi, 58. Cit. por EN. 130 EN, 58. 131 EM , 58. 132 BOFF, Leonardo, Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho, Campinas (SP): Verus Editora, 2004, p. 66-67.
174
diversas outra lideranças cristãs. Essa é a conclusão dos que têm acesso aos seus manuscritos.
Eles revelam um autêntico católico orientado pelos ensinamentos da fé cristã. Eduardo Hoornaert
não deixa dúvidas ao falar dos manuscritos do Conselheiro, utilizados na sua catequese. As
“prédicas do Beato apresentavam uma doutrina católica perfeitamente ortodoxa”.133 Não deixou
dúvidas de que a Igreja é de instituição divina: “Foi Nosso Senhor Jesus Cristo, fiéis, que fundou
a sua Igreja”.134 Sentiu-se indigno de ser encarregado de construir a igreja de Santo Antônio de
Canudos.135 A Igreja é obra de Jesus, que veio aperfeiçoar a lei antiga e apresentar as novidades
do Reino de Deus.136 Trabalhou com textos bíblicos, defendeu a sucessão apostólica, estimulou a
prática dos sacramentos do batismo. Não escapou ao fundamento evangélico da regeneração
batismal: “para fazê-lo mais patente vejam o que diz Nosso Senhor Jesus Cristo [...] O que crer e
for batizado será salvo, o que porém não crer será condenado”.137 Procurava instruir os membros
da comunidade ao sacramento da penitência.138 Transmitia aos fiéis: “O apóstolo diz aos
romanos: não foi tão grande o pecado como o benefício. Onde o pecado abundou, superabundou
a graça”.139 A confissão só seria incontestavelmente necessária para a salvação140 se houvesse
arrependimento e reconciliação. Os pecadores “devem penetrar-se de viva dor de haver cometido
tantas misérias, e daí por diante fazerem firme propósito de emenda, assim como satisfizeram a
penitência que for imposta pelo confessor”.141
O Beato usou o texto evangélico da sucessão de Pedro (cf. Mt 16,18);142 apresentou os
Santos Padres como colunas da Igreja, na continuidade da sucessão apostólica; ensinou a seus
133 DOORNAERT, Eduardo, Os anjos de Canudos: uma revisão histórica..., p. 115. 134 MAC , p. 550. 135 Cf. MAC , p. 537. 136 Cf. MAC , p. 542. 137 Cf. MAC , p. 565. Os textos tirados da Bíblia não aparecem entre aspas. Porém, acompanha sempre a citação antes e depois do texto. 138 MAC , 565. 139 MAC , 432. 140 Cf. MAC , p. 525. 141 MAC , p. 527-528. 142 Cf. MAC , 435.
175
fiéis que quando a Igreja, por meio de seus ministros legitimamente ordenados, abençoa o povo
de Deus, invocando a Trindade Santíssima, essa bênção chega até Deus.1 Antônio Conselheiro
cultivou a Igreja em Canudos sem desconsiderar suas notas fundamentais: Igreja Una, Santa
Católica e Apostólica. Admitiu a hierarquia, instruiu o povo para os sacramentos, especialmente
eucaristia, Batismo e Penitência. Para ele, participar da eucaristia era a melhor obra do cristão. A
missa é carregada de significações e mistérios.2 Era uma Igreja, portanto, alimentada pelos
sacramentos. Não faltaram os elementos essenciais da Igreja de Cristo. Foi uma Igreja
samaritana, acolhia os pobres; uma Igreja misericordiosa, tolerante com os fracos; uma Igreja
pobre, organizada pelos pobres, alimentada pelos sacramentos e pela mística dos Dez
Mandamentos. Canudos continua sendo uma luz para iluminar a experiência da Igreja dos pobres
hoje. É cantado hoje pelo povo nas romarias do Nordeste, nas missas e celebrações populares,
conforme Roberto Malveze (Gogó), ao compor o hino da Romaria do centenário do massacre de
Canudos, em 1997:3
Levantei cedo Eu também peguei a estrada. Hoje eu não perco por nada. A romaria de Canudos. Fiz a oração. Pedi bênção, pedi luz. Vou à grande romaria. Do arraial do bom Jesus. Vou, vou a Canudos. Do Conselheiro. E de tantos meus irmãos. Vou, vou celebrar. Esses cem anos de paixão e ressurreição. Cheguei a Canudos. E fiquei emocionado. É gente de todo lado. Que se achega no sertão. Lembrei da guerra. E de Antônio Conselheiro. E de tantos sertanejos. Que morreram neste chão. Já faz cem anos. E o sertão não mudou nada. Continua abandonado. Na miséria e solidão. Já faz cem anos. Eu tô na mesma caminhada. Tô na luta pela terra.. Pelo pão e pela água. Do nosso povo. Roubam tudo o que ele tem. Roubam terra, roubam sonhos. Roubam a vida também. E é movido. Por tanta necessidade que o povo segue em frente. Atrás de FELICIDADE.
1 Cf. MAC , 500-501. 2 Cf. MAC , 509-512. 3 COMISSÃO DA ROMARIA E INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, 100 anos do massacre no sertão: Cantos, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1997, p.1
176
Conclusão
A formação religiosa de Antônio Conselheiro, sua experiência nas andanças com Padre
Ibiapina e Padre Cícero, garantiram-lhe um legado útil ao trabalho desenvolvido no Belo Monte,
especialmente nos três anos de vida comunitária. Percebemos a natureza eclesial da experiência
desenvolvida em Canudos: a intensa vida comunitária, a vivência dos sacramentos, o amor à
Igreja, admissão da hierarquia eclesiástica e o entusiasmo dos integrantes do movimento.
Este terceiro capítulo nos possibilitou um aprofundamento maior do pensamento de
Antônio Conselheiro. Ele escreveu e desenvolveu, nas prédicas ao povo, temas como os
sacramentos (batismo, penitência e eucaristia), a Bíblia, a Igreja, a sucessão apostólica, os Santos
Padres. Teceu duras críticas ao sistema republicano, reagiu ao latifúndio, não aceitou estabelecer
relações com parte do clero omisso diante das injustiças e subserviente às oligarquias rurais.
Canudos se aproximou da harmonização entre carisma e poder, fé e vida, conhecimento
doutrinal e vivência da fé. Antônio Conselheiro adotou como regra reagir às formas de poder que
não estivessem a serviço dos moradores de Canudos: desvalidos, fracos, pobres e excluídos. Ele
adotou como regra em sua prática pastoral, a primazia do carisma sobre o poder, a prática sobre a
teoria, a ortopráxis da fé sobre a ortodoxia doutrinal – mesmo sabendo que a doutrina da Igreja
ensinada pelo Beato não se diferenciava da adotada pelos padres do sertão. Com um diferencial:
havia exigências e proibições na comunidade.
Eram proibidos: uso de bebidas alcoólicas, prostituição, viver por conta própria sem se
preocupar com os pobres. Essa novidade aconteceu sem que o Conselheiro adotasse uma postura
polêmica. Seu envolvimento com a comunidade, o cuidado com os ministérios, a luta para
plantar, comercializar, prover as necessidades básicas da população e superar os problemas
internos não permitiam margem para disputas ideológicas. A vida do Conselheiro foi ocupada
com as atividades no acampamento. As reações partiram das autoridades da República, da
177
imprensa oficial, de coronéis da região, de setores da Igreja e do Juiz de Juazeiro. O último ano
de vida em Canudos foi de luta intensa para se defender da ação do governo republicano, do
governador da Bahia, dos coronéis do sertão e dos que se sentiam ameaçados pelo que acontecia
em Canudos.
178
CONCLUSÃO GERAL
Não é preciso enfatizar a importância de se “revisitar” Canudos. Cada estudo sobre o Belo
Monte e Antônio Conselheiro contribui para demitologizar e desmistificar o caráter incruento e as
tensões que fizeram com que Canudos ressurgisse, não obstante a ação violenta do Estado. Do
ponto de vista objetivo, a Guerra de Canudos foi uma perversidade humana. Mesmo com os
argumentos usados pelos patrocinadores da carnificina, realizada há mais de cem anos
(“justificativas injustificáveis”), Canudos desafia às ciências criminalista, sociais, políticas e a
própria ciência teológica.
O massacre ocorrido na comunidade de Antônio Conselheiro precisa continuar passando
por uma adequada reavaliação histórica. “Revisitar Canudos” é aprimorar a verdade histórica do
ponto de vista dos “vencidos” e elucidar o que podemos aprender desse episódio que provocou
uma mancha nas páginas da historiografia brasileira. O pluralismo nessa abordagem revela a
importância que Canudos deixou para os religiosos, acadêmicos, pesquisadores e escritores. Um
grande passo foi dado.
Somente a partir das últimas décadas, as ciências sociais estão conseguindo ultrapassar o
preconceito dos chamados movimentos “messiânicos”.1 Essa “demora” pode ser atribuída às
dificuldades dos acadêmicos em despertar o interesse pela religião ou o fenômeno religioso,
1 Cf. Rossi, Luis Alexandre S, Messianismo e modernidade: repensando o messianismo..., p. 17-61.
como objeto de estudos pelas universidades. A preocupação com a religião na academia quase
sempre ficou “esquecida” ou relegada a plano secundário.
O positivismo francês, o marxismo ortodoxo e seus continuadores no Brasil quase sempre
tiveram um olhar “atravessado” para o fenômeno religioso e a religiosidade popular. A história da
positivismo nasceu com o empirista inglês D. de Hume, mas teve como seu principal
representante o francês Augusto Conte, de quem nossos intelectuais brasileiros são herdeiros. A
idéia da religião como “ópio do povo” ou a ser superada pela “ciência positiva”, marcou o
pensamento acadêmico no Brasil e atrasou a compreensão do papel da religião na história
humana.
Para o professor de ciências da religião, no curso de Pós-Graduação na Universidade
Metodista (SP), Dr. Antônio G. Mendonça, a “pesquisa científica da religião no Brasil, segundo a
concepção mais ou menos generalizada, ganha corpo com os trabalhos de Emílio Willems (1967),
Beatriz Muniz de Souza Camargo (1969), Cândido Procópio F. de Camargo (1973) e Valdo
César (1973) antes dos anos 80”.2 Surgiram muitas dúvidas quanto à necessidade de ocupar a
Universidade com a Ciência da Religião, enquanto objeto científico. Como a Ciência da Religião
vem se afirmando como área de conhecimento, ainda há uma certa busca de identidade. Em 1981,
Donald Wiebe lança um livro, traduzido no Brasil em 1998, fazendo diferenciação entre ciências
da religião e ciência da religião. Donald Wiebe trabalha com a distinção semântica:
Por via de regra, em discussões metodológicas antigas e recentes, distingue-se de maneira bastante clara a expressão “ciência da religião” das expressões “as ciências da religião e “o estudo científico da religião”. Entende-se, em geral, que as últimas referem-se à aplicação aos fenômenos religiosos das metodologias e técnicas das várias ciências sociais (por exemplo, psicologia, antropologia, sociologia etc.), juntamente com suas presunções e pressupostas concomitantes. Por outro lado, entende-se que a expressão “ciência da religião” indica uma disciplina totalmente diferente, que é, em termos metodológicos,
2 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, Dois pioneiros e um passeur de frontières, in: TEIXEIRA, Faustino (org.), A(s) Ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica, São Paulo: Paulinas, 2002, p. 235.
180
distinta das outras ciências e que, por conseguinte, é completamente autônoma ainda que se utilize “resultados” obtidos pelas ciências sociais.3
O mesmo acontece com os movimentos messiânicos e milenaristas. É do início da década
de 2960 que surgem as primeiras obras, a exemplo de O Messianismo no Brasil e no mundo, de
Maria Isaura de Queiroz, com primeira edição em 1963 e o livro de Douglas Teixeira Monteiro,
de 1974.4 Esses dois autores abriram uma discussão profícua sobre os movimentos messiânicos e
milenaristas, na universidade.
Um outro fator foram os estudos a respeito do catolicismo popular no campo teológico,
sua tipologia e relação com o catolicismo oficial. Nesse contexto eclodiram também as pesquisas
sobre o movimento de Canudos, a valorização da religiosidade popular e a força revolucionária
da mística cristã.
Aos poucos a religião vai deixando de ser objeto de alienação e dando lugar à força
revolucionária. A Teologia da Libertação, as CEBs – com seus encontros Intereclesiais – o
Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), os encontros de Conjuntura Nacional, a fundação do Partido
dos Trabalhadores, etc., tiveram uma função preponderante na compreensão do papel da
religiosidade popular na transformação social. A teologia da Libertação estabeleceu uma conexão
com as CEBs e suas implicações mútuas. As reflexões de Leonardo Boff sobre Teologia da
Libertação e CEBs são reveladoras: “as comunidades eclesiais representam a prática da libertação
popular e a teologia da libertação, a teoria desta prática”.5
O estudo sobre Canudos, na perspectiva dos vencidos, beneficiou-se desse movimento na
área das ciência humanas, sociais e teológica, dentro e fora da Igreja. No tocante ao
acontecimento da guerra contra o povo do Conselheiro, o início das Romarias, a partir de 1983,
3 DREHER, Luís Henrique, Ciência(s) da religião: teoria e Pós-Graduação no Brasil, in: TEIXEIRA, Faustino (org.), A(s) Ciências da religião no Brasil..., p. 272-272. 4 Cf. Bibliografia no final. 5 BOFF, Leonardo, Novas Fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho, Campinas (SP): Verus Editora, 2004, p. 145.
181
deu um novo impulso à versão da história ao reverso e a popularização das causas do massacre. A
história das romarias iniciou em 1983, com o envolvimento de dioceses do sertão da Bahia:
Senhor do Bonfim, Rui Barbosa, Juazeiro e Paulo Afonso. A partir de 1993, ano do centenário da
chegada de Antônio Conselheiro em Canudos, a Comissão da Romaria ampliou abriu-se, para
outras entidades. Foram convidadas para fazer parte da coordenação ampliada da Romaria
Centenária diversas entidades: a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Sub-regionais 6 e 7 da
CNBB, Conselho Indigenista Missionário (CIME), Igreja Batista Nazarth (Salvador), Instituto
Regional da Pequena Agricultura Apropriada (IRPAA), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e
Grupo de Peregrinos do Nordeste. Nesse mesmo ano do centenário, a Comissão Ampliada da
Romaria criou o Instituto Popular Memorial de Canudos, com o objetivo de estimular a reflexão
sobre o exemplo histórico de Canudos, revelar a viabilidade de modelos sociais e da luta nos dias
atuais e preservar o acervo histórico que vier a ser adquirido sobre Canudos.
Alexandre Otten reconheceu o valor das ciências sociais e humanas na reflexão sobre
Canudos. As “ciências humanas e sociais, em suas pesquisas sobre os movimentos por elas
chamados “messiânicos”, desfizeram o preconceito social que pesava sobre os integrantes desses
movimentos”.6 Com isso a pesquisa sobre Canudos ganhou o impulso merecido. Esta dissertação
vem na esteira desse movimento e procurou contribuir para a história dos “vencidos”, mas,
principais protagonistas, mesmo sendo vítimas na história.
Será que este trabalho abriu pistas novas na discussão sobre a experiência religiosa e
sociopolítica de Canudos? Canudos foi mais que um acontecimento qualquer. Foi um fato
histórico ainda não esgotado no meio científico. Prevaleceu nele a experiência de um povo
indefeso e vítima do jogo das elites daquele tempo.
6 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 357.
182
Fizemos um caminho. No primeiro capítulo, apresentamos a figura histórica de Antônio
Conselheiro, sua família, vida, formação, conversão, influências dos padres Ibiapina e Cícero de
Juazeiro. Mostramos a relação entre Antônio Conselheiro e os dois padres: semelhanças e
especificidades. O Beato deu um passo além. Enquanto os padres Ibiapina e Cícero cuidavam dos
pobres, criavam estruturas (Casas de Caridade, etc.), não “incomodavam” às elites políticas e ao
latifúndio. A prática de Antônio Conselheiro e a forma de organização social incomodaram as
estruturas políticas e eclesiais. Antônio Conselheiro antecipou a opção preferencial pelos pobres,
protagonizada por Medelín (1968), aprofundada em Puebla (1979) e explicitada pela Teologia da
Libertação. Conclui-se o primeiro capítulo com uma reflexão crítica sobre a contextualização do
Nordeste brasileiro no tempo de Antônio Conselheiro: a problemática política, a queda da
Monarquia, a crise econômica, a separação entre a Igreja e o Estado, a questão religiosa, o
processo de romanização e o catolicismo popular de tradição portuguesa.
No segundo capítulo, através dos Manuscritos deixados pelo Conselheiro, fez-se uma
leitura do universo religioso do Beato. Fontes como a Bíblia Sagrada, a Missão Abreviada, As
Horas Marianas ajudaram na compreensão da formação de Antônio Conselheiro e a solidez de
seu projeto pastoral. A partir dessas fontes e do aprendizado nos conflitos de terra, pobreza e
crise econômica no Nordeste, desenvolvemos uma leitura sistemática do pensamento teológico de
Antônio Conselheiro.
No terceiro capítulo, aprofundamos a eclesiologia propriamente dita. Partindo dos
Manuscritos do Peregrino muitos mitos podem ser superados. O primeiro foi a acusação feita
pelo Frei João Evangelista, emissário do Arcebispo da Bahia: “É meu pesar esse, é uma doutrina
errada a vossa”7, afirma o capuchinho. Tanto as fontes usadas por ele (Bíblia, Missão Abreviada,
etc.), quanto os Manuscritos revelam o contrário. A doutrina ensinada por Antônio Conselheiro à
7 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4.
183
sua gente, não se diferenciava da que a Igreja doutrinava seus fiéis. Os manuscritos revelaram
uma doutrina sistemática (sobre Deus, Jesus Cristo, Espírito Santo, sacramentos, mandamentos,
fé, etc.), ortodoxa, coerente e clara.
A Pergunta fundamental que foi trabalhada nesta pesquisa foi: se Antônio Conselheiro
apropriou-se da doutrina oficial da Igreja, qual a novidade na sua experiência eclesial? Eis a
questão fundamental. O Peregrino trabalhou em sua comunidade eclesial um gargalo que sempre
desafiou à Igreja: a doutrina cristã e sua prática. Ao visitar as Prédicas do Conselheiro foi
possível perceber que não há dois tipos de discurso – um religioso e o outro político – que se
justaponham. Mesmo sem querer fundir os discursos – semanticamente são diferentes – o
discurso de Antônio Conselheiro foi religioso. Neste estava embutida uma proposta política. Frei
Beto esclarece:
não é tanto pelo objeto ou pela temática que aborda que o discurso religioso se distingue do discurso político. É a estrutura de um e outro discurso que difere. As regras que comandam o discurso religiosos não são as mesmas regras que comandam o discurso político. O primeiro se dá a partir da esfera do sagrado, supõe a adesão da fé a uma revelação sobrenatural, fala sobretudo do deve ser. O segundo se dá a partir da esfera do real, dentro da racionalidade científica, fala sobretudo do que é e visa a transformação da realidade.8
O viés do Conselheiro sempre foi o sagrado. Fiorim também faz uma distinção entre o
discurso religioso e o discurso político. “No primeiro aparecem os semas /universalidade/,
transcendência/, eternidade/; no outro estão presentes /contingencialidade/, /imanência/,
temporalidade/, com todas as marcas-morfo-sintáticas que isso implica”.9 O discurso religioso e o
discurso político procura, ao seu modo, dá uma resposta ao mistério da vida. O discurso religioso
do Conselheiro era militante e, portanto, prático e transformador. Ele acreditava que a Igreja tinha
8 BETO, (Frei), Da prática da pastoral popular: encontros com a civilização brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 99. 9 FIORIN, José Luis, A ilusão da liberdade discursiva..., p. 260. Segundo o dicionarista Aurélio, sema vem do grego (sêma, atos) e significa “Traço semântico mínimo não possível de ocorrência independente”. In: Sema, FERREIRA, Aurélio, Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1832.
184
um papel determinante na construção da liberdade e da libertação do povo. Canudos foi uma
resposta religiosa a um problema que extrapolava o âmbito meramente religioso. O discurso
religioso em Canudos tinha como objetivo:
oferecer ao homem parâmetros para a compreensão da História, por meio de um sentido meta-histórico. O meio de o ser humano suportar a história, numa sociedade de classes, é proclamar o seu fim, projetando numa utopia a realização do ideal cristão de igualdade, liberdade e fraternidade, que é intrínseco à doutrina do cristianismo, uma vez que todos são filhos do mesmo Pai e irmãos em Cristo.10
A Igreja em Canudos uniu os sertanejos, abriu espaço para os ministérios de serviços,
alimentou a utopia e trouxe sentido para a vida de quem chegava. Em Canudos, o povo encontrou
esperança. A projeção da resolução dos problemas em Deus, não levava o povo ao comodismo.
Ao contrário, cada pessoa tinha uma função na comunidade. Antônio Conselheiro, à semelhança
dos santos, intuiu a vontade de Deus e o desejo de libertação do sertanejo. Boff afirma:
Não é sem razão que os grandes movimentos renovadores, as novas formas de piedade, os grandes profetas, santos e místicos irromperam do meio popular, onde a experiência de Deus e de Jesus Cristo, livre do superegos da doutrina oficial, podia ensaiar uma nova mediação. Sem o catolicismo popular não vive o catolicismo oficial, sem o catolicismo oficial não se legitima em seu caráter católico o catolicismo popular.11
A Igreja em Canudos favoreceu criatividade ao povo, deu vazão para a experiência
religiosa e alimentou o sonho de uma Igreja comprometida com as causas do povo. O silêncio de
Antônio Conselheiro frente às autoridades eclesiásticas revelou um homem consciente de sua
missão, crente que estava vivendo o Batismo cristão e continuador da missão aprendida com o
Padre Ibiapina. Ao tentar proibir a ação missionário de Antônio Conselheiro, a Igreja Católica no
Brasil perdeu a oportunidade de apoiar uma iniciativa genuinamente leiga, de fortalecer o laicato
e encontrar um caminho novo, diante do imobilismo eclesial do final do século XIX, trazido pela
10 FIORIN, José Luis, A ilusão da liberdade discursiva..., p. 290. 11 BOFF, Leonardo, Igreja, Carisma e poder: ensaios de eclesiologia militante, Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 181.
185
separação entre Igreja e Estado e aprofundado pela romanização. A experiência de Canudos era
uma luz que ia se ascendendo, no coração da Igreja.
Mesmo que a experiência de Antônio Conselheiro tenha sido de pouca duração, Canudos
deixou alguns exemplos para nossa história. Diante dos conflitos devemos ter prudência. Por falta
de cautela, a Igreja comemorou em vários lugares a massacre de Canudos. Além de o Relatório
do capuchinho ter sido favorável aos militares, a hierarquia católica apoiou o alto comando da
guerra e comemorou a vitória do Exército sobre os brasileiros de Canudos, em vários estados:
O general Savaget, quando voltou ferido de Canudos, ficou hospedado no palácio do arcebispo, em Salvador. Em agosto ordenou a realização de preces públicas em todo o Estado da Bahia apoiando a ação do Exército. No Pará, antes do embarque da milícia paraense para a Bahia, houve uma missa campal, com o arcebispo dando as bênçãos da Igreja aos soldados. Quando do retorno das tropas foi rezada uma missa campal em Salvador, na Praça Duque de Caxias, ao lado do monumento aos heróis de 2 de julho de 1823. Também em São Paulo, o batalhão policial paulista foi recebido com uma missa na igreja da Sé. 12
Essa marca na Igreja poderá servir para alimentar nosso discernimento diante da
voracidade das forças do Estado ao destruir o povo do próprio País. Faltou um pouco mais de
percepção diante das causas da guerra. Canudos foi vítima de um sistema político em decadência.
A bravura, os trabalhos de mutirão, a mística da luta, a experiência da Igreja de pobre para
pobres, são exemplos deixados pelo povo de Antônio Conselheiro. Finalmente, Canudos continua
contado na alegria dos romeiros durante cada ano na Romaria de Canudos:13
ALEGRIA POVO MEU, POIS CANUDOS NÃO MORREU ESTÁ VIVO NA UNIÃO, TÁ NA FÉ NO CORAÇÃO, NO CORAÇÃO.
12 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 222-223. 13 COMISSÃO DA ROMARIA E INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, 100 anos do massacre no sertão: cantos..., p. 5.
186
Tá no homem na mulher, tá na flor da minha fé. Tá na terra na alegria no amor, na rebeldia. Pois Canudos é uma paixão, uma luta um sonho bom. Um caminho, um sacrifício pra vencer o Precipício. Tá na dor, tá no tormento, tá na vida que irradia, tá na coragem e amamenta a criança que se cria. Tá na terra repartida, tá na fé que vai crescer tá na vida tão sofrida tá na dor que vai morrer.
187
BIBLIOGRAFIA 1
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os acontecimentos de Canudos, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2. ed. [2 ed. 1899],
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Coração de Maria por ocasião do mistério da Anunciação: a presente obra mandou
subscrever o Peregrino Antônio Vicente Mendes Maciel no povoado do Belo Monte,
Província da Bahia em 12 de janeiro de 1887 (manuscrito publicado por Ataliba Nogueira).
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séquito no Arraial de Canudos, 1895, [apresentação de José Calazans], Salvador: Centro de
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1 A divisão que se segue é principalmente de ordem prática, visto que tantos títulos poderiam ocupar outro lugar que aquele que aqui se segue. Ela indica principalmente a perspectiva com que foram usados no decorrer deste trabalho.
II. História de Canudos e Antônio Conselheiro
BLOCH , Didier (org.), Canudos, 100 anos de produção: vida cotidiana e economia dos
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