Integração Saúde e Educação: Contribuições da ... · potencializadora dos direitos humanos...

14
774 PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787 Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Cre- che em Sexualidade Infantil Integrating Health and Education: Psychology's Contributions to the Training of Educators from a Daycare Center in Childhood Sexuality Integración Salud y Educación: Contribuciones de la Psicología para la Formación de Educadores de una Guardería en Sexualidad Infantil Adriane Costa e Rocha Ciaffone, Psicóloga cursando especialização em Terapia Relacional Sistêmica no Instituto Familiare, Florianópolis - SC Marivete Gesser, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina Artigo http://dx.doi.org/10.1590 / 1982 – 3703000392013

Transcript of Integração Saúde e Educação: Contribuições da ... · potencializadora dos direitos humanos...

774

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde eEducação: Contribuições daPsicologia para a Formação

de Educadores de uma Cre-che em Sexualidade Infantil

Integrating Health and Education: Psychology's Contributions to theTraining of Educators from a Daycare Center in Childhood Sexuality

Integración Salud y Educación: Contribuciones de la Psicología para laFormación de Educadores de una Guardería en Sexualidad Infantil

Adriane Costa e Rocha Ciaffone,Psicóloga cursando especialização

em Terapia Relacional Sistêmica noInstituto Familiare, Florianópolis - SC

Marivete Gesser,Doutora em Psicologia pela

Universidade Federal de Santa Catarina

Arti

go

http://dx.doi.org/10.1590 / 1982 – 3703000392013

Resumo: Um dos grandes desafios para os educadores que atuam em creches é o de lidar comas expressões da sexualidade no contexto escolar. Os discursos higienistas, morais e religiososainda constituem a significação da sexualidade como um fenômeno ligado ao mundo adulto eà reprodução. O artigo ora apresentado é um relato de experiência de formação em serviço deeducadores de uma creche. O trabalho foi realizado por integrantes do PET Saúde da Famíliaem uma creche inserida no território de abrangência onde a equipe atuava. Após a identificaçãodas necessidades, foram realizadas sete oficinas que tiveram como principal referencial teórico-metodológico a metodologia de Círculos de Cultura. Os resultados evidenciaram que, a partirdo trabalho realizado, os professores conseguiram se instrumentalizar para lidar de forma maispotencializadora dos direitos humanos com as expressões de sexualidade na infância, bemcomo para atender os pais em suas dúvidas relacionadas ao tema.Palavras-chave: Educadores. Desenvolvimento psicossexual. Saúde da Família. Programa saúdeda família

Abstract: One of the greatest challenges for educators who work in daycare centers is to dealwith the expressions of sexuality a school context. The moral, religious, and hygienists discoursesstill constitute the meaning of sexuality as a phenomenon linked to the adult world and to re-production. The article here presented is a case study of in-service training of educators from adaycare center. The work was carried out by members of the Family Health Program ofEducation Through Work (PET Saúde da Família) at a daycare inserted in the area covered whereby the team. After identifying the needs, seven workshops were held whose theoretical-metho-dological background was Culture Circles (Círculos de Cultura). The results showed that, basedon the work, the teachers managed to learn mechanisms for dealing with greater regards tohuman rights with expressions of childhood sexuality, as well as guiding the parents in theirquestions related to the topic.Keywords: Educators. Psychosexual development. Family Health. Family health program

Resumen: Uno de los grandes desafíos para los educadores que actúan en guarderías es el deenfrentar las expresiones de la sexualidad en el contexto escolar. Los discursos higienistas,morales y religiosos todavía constituyen la significación de la sexualidad como un fenómeno re-lacionado al mundo adulto y a la reproducción. El artículo ahora presentado es un relato de ex-periencia de formación en servicio de educadores de una guardería. El trabajo fue realizadopor integrantes del PET Salud de la Familia en una guardería inserida en el territorio deinfluencia donde el equipo actuaba. Después de la identificación de las necesidades, fueronrealizados siete talleres que tuvieron como principal referencial teórico-metodológico lametodología de Círculos de Cultura. Los resultados evidenciaron que, a partir del trabajorealizado, los profesores consiguieron instrumentalizarse para tratar de forma más potenciadorade los derechos humanos con las expresiones de sexualidad en la infancia, así como paraatender a los padres en sus dudas relacionadas al tema.Palabras clave: Educadores. Desarrollo psicosexual. Salud de la Familia. Programa de salud fa-miliar

775

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

O presente trabalho relata uma experiênciade formação de educadores sobre o temasexualidade infantil, destinada a profissionaisque atuam em uma creche de um municípiodo sul do Brasil. Tal experiência foi realizadapor um grupo de acadêmicos do curso dePsicologia da Universidade Federal de SantaCatarina (UFSC) com a supervisão pedagógicade um professor da mesma área. O trabalhofoi solicitado pelos próprios educadores dacreche e o objetivo da formação foi o deinstrumentalizá-los a lidarem com expressõesda sexualidade na infância. Os documentosnorteadores foram a Proposta Curricular deSanta Catarina (2008), o Caderno de Orien-tação Sexual dos Parâmetros CurricularesNacionais (1997) e o Programa Saúde na Es-cola (instituído pelo Decreto Presidencial eInterministerial nº 6.286 de 2007).

O trabalho realizado na creche teve vinculaçãocom um Centro de Saúde (CS) do município,via Programa de Educação pelo Trabalhopara a Saúde/Saúde da Família – PET Saúde/SF– instituído pela Portaria Conjunta nº 2(2010). Conforme será explicitado adiante,a elaboração dos encontros teve como baseo recurso teórico-metodológico dos Círculosde Cultura de Paulo Freire.

O PET Saúde/SF, assim como o PET Saúdedo qual faz parte, tem a educação pelo tra-balho como pressuposto. Ambos os programascaracterizam-se como instrumentos para aqualificação dos profissionais de saúde e ini-ciação ao trabalho dos estudantes de gra-duação e estão instituídos no âmbito dosMinistérios da Saúde e da Educação. Os ob-jetivos dos programas são comuns, sendoque o PET Saúde/SF destina-se, mais especi-ficamente, ao fomento e articulação entreensino e serviço na Estratégia Saúde daFamília (ESF) por meio de grupos de apren-dizagem tutorial formados por tutores, pre-ceptores e estudantes-monitores. Esses grupostêm diversas atribuições, dentre elas a deproduzir conhecimentos relevantes na AtençãoBásica (AB) e relacionados às atividades de-senvolvidas no contexto do programa. Espe-

ra-se, ainda, que façam referência à condiçãode bolsistas nas publicações e trabalhos apre-sentados (Portaria Interministerial nº 421,Portaria Interministerial nº 422, & Portariaconjunta nº 2).

O psicólogo – assim como os assistentes so-ciais, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoau-diólogos, profissionais da educação física,nutricionistas, terapeutas ocupacionais e mé-dicos ginecologistas, homeopatas, acupun-turistas, pediatras e psiquiatras – está inseridona AB por meio dos Núcleos de Apoio àSaúde da Família (NASF), criados em 2008com o objetivo de

apoiar a inserção da Estratégia de Saúde daFamília na rede de serviços, além de ampliar aabrangência e o escopo das ações da AtençãoBásica e aumentar a resolutividade dela, refor-çando os processos de territorialização e re-gionalização em saúde. (Brasil, 2009, p. 10)

Os Centros de Saúde (CS) representam a ABcomo porta de entrada do Sistema Único deSaúde (SUS). Nesses, equipes de saúde dafamília operacionalizam a ESF e são respon-sáveis por um número definido de pessoas –até 4 mil – que residem no território delimi-tado para atendimento pelo CS.

O CS no qual se realizou a atividade ora re-latada em parceria com a creche atende auma população estimada em 11.442 habi-tantes1. Nele, estão alocadas quatro equipesde SF e duas equipes de saúde bucal, alémda equipe NASF2. Em março de 2011, esseCS contava, por meio do PET Saúde/SF, comestudantes-monitores nas áreas de Enferma-gem (2) e Odontologia (2). Estes, juntamentecom os preceptores e a tutora desse grupo,definiram como prioridade o trabalho comcrianças em idade pré-escolar, dando conti-nuidade ao trabalho iniciado em 2010 nacreche. Em julho de 2011, quando os estu-dantes-monitores da Psicologia (3) foramvinculados ao CS, já estavam definidas asdemandas de trabalho para essa área. Segundoo grupo que já estava atuando junto à creche,

776

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete Gesser

1. Recuperado de:<http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/s

aude/index.php?cms=populacao&menu

=0>. Acesso em:ago. 2012.

2. Recuperado de:<http://cs-

tapera.blogspot.com.br/>. Acesso em:

mar. 2013.

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,

2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

havia solicitação, por parte das educadoras,de maiores esclarecimentos quanto aos temasbullying e sexualidade infantil.

No primeiro contato com a diretora e comalgumas das educadoras da creche, perce-beu-se que a maior demanda dos profissionaisestava relacionada ao tema sexualidade in-fantil. Quanto ao tema bullying, tratava-sede uma demanda relatada à equipe de saúdedevido a um episódio específico que já haviasido encaminhado. A partir dessa constatação,propôs-se às presentes iniciar o trabalhocom as questões relativas à sexualidade in-fantil. Entende-se que instrumentalizar pro-fessores de uma creche a compreender asexpressões relacionadas à sexualidade comoinerentes ao desenvolvimento das criançaspode contribuir para o rompimento do pro-cesso de patologização dessas expressões e,consequentemente, para a promoção desaúde dessas crianças e dos educadores(Yared, 2011).

Documentos oficiais, como os ParâmetrosCurriculares Nacionais – PCN (Brasil, 1997),reconhecem que o tema sexualidade deveser trabalhado na escola. A política do Pro-grama Saúde na Escola – PSE (2007)3 tam-bém reitera a importância de se abordar aquestão no processo de formação de profes-sores para que estes sejam instrumentalizadosa lidar com as questões relativas à sexuali-dade no âmbito escolar.

Na proposta desenvolvida, compreendeu-seque a formação de educadores em sexuali-dade deve abranger o sujeito na suatotalidade, o modo como ele pensa, sente eage. Em conformidade com Gesser, Oltra-mari, Cord e Nuernberg (2012), entende-seque a contribuição de uma formação ético-política voltada a essa temática não deve serestringir à instrumentalização cognitiva doseducadores, mas contribuir também paraque estes recriem o modo como lidam comas expressões da sexualidade que emergemno cotidiano escolar. Os autores afirmamainda que o êxito do trabalho de formaçãode professores implica que este seja baseado

nas dificuldades, nem sempre explícitas,enfrentadas no cotidiano do espaço escolar,ou seja, com objetivos definidos a posteriori(Freitas, 1998) e em serviço (Leão, Ribeiro,& Bedin, 2010). A formação de educadoresdeve considerar também que o modo comoesses sujeitos lidam com a sexualidade estárelacionado aos discursos que permeiam ocontexto no qual se constituíram, preponde-rantemente influenciado por concepçõesbiomédicas ou morais e religiosas acerca dasexualidade (Yared, 2011).

Adotou-se, para orientação do desenvolvi-mento deste trabalho, o conceito de sexua-lidade proposto pela cartilha Gênero e Di-versidade na Escola (Brasil, 2009). A opçãoocorreu pelo fato de esse documento subsi-diar uma política pública intersetorial, com-posta pelas seguintes secretarias: SecretariaEspecial de Políticas para Mulheres da Presi-dência da República (SPM); Secretaria Espe-cial de Direitos Humanos (SEDH); Secretariade Educação Continuada, Alfabetização eDiversidade (Secad) e Secretaria Especial dePolíticas de Promoção da Igualdade Racial(Seppir). De acordo com a cartilha:

As definições atuais da sexualidade abarcam,nas ciências sociais, significados, ideais, desejos,sensações, emoções, experiências, condutas,proibições, modelos e fantasias que são con-figurados de modos diversos em diferentescontextos sociais e períodos históricos. Trata-se, portanto, de um conceito dinâmico quevai evolucionando e que está sujeito a diversosusos, múltiplas e contraditórias interpretações,e que se encontra sujeito a debates e adisputas políticas. Refere-se às elaboraçõesculturais sobre os prazeres e os intercâmbiossociais e corporais que compreendem desdeo erotismo, o desejo e o afeto, até noções re-lativas à saúde, à reprodução, ao uso de tec-nologias e ao exercício do poder na sociedade.(Brasil, 2009, p. 112)

Não só o conceito de sexualidade mas todaa proposta do Programa de Formação deProfessores “Gênero e Diversidade na Escola”(Brasil, 2009) apontam a sexualidade como

777

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete Gesser

3. O PSE é um pro-grama interministe-

rial (Ministério daSaúde e Ministério

da Educação).

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,

2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

algo inerente à condição humana. Alémdisso, ressalta a complexidade da temática,subsidiando a criação de estratégias de in-tervenção emancipadoras de todos os sujeitosnessa dimensão da vida.

A Educação Popular também foi um dospressupostos deste trabalho. Ela se refere auma estratégia política e metodológica ado-tada pelo Ministério da Saúde, embasandoa Educação Popular em Saúde. Essa propostadenota a importância de que todas as práticaseducativas desenvolvidas no âmbito do SUSimpulsionem “movimentos voltados para apromoção da participação social no processode formulação e gestão das políticas públicasde saúde, direcionando-as para o cumpri-mento efetivo das diretrizes e dos princípiosdo SUS: universalidade, integralidade, eqüi-dade, descentralização, participação e controlesocial” (Brasil, 2007, p. 16).

A seguir, explicitar-se-á a construção do per-curso metodológico realizado no decorrerdos encontros. Na sequência, serão apre-sentados os principais resultados e, por fim,algumas considerações finais.

Percurso metodológico

Conforme brevemente explicitado na intro-dução deste artigo, o trabalho foi realizadoem uma creche vinculada ao CS no qualocorreu o PET Saúde/SF. Após um levanta-mento de necessidades realizado junto aprofissionais da creche, foi constatado quehavia demanda pela temática relacionada àsexualidade infantil. Esses assuntos foramencaminhados aos estudantes-monitores dePsicologia quando estes se juntaram àequipe do PET.

Após a inserção desses estudantes, foi realizadauma escuta com o intuito de refinar a de-manda. A partir desta, ficou evidente que asdificuldades que mais mobilizavam os edu-cadores naquele momento se referiam àsexpressões de sexualidade que ocorriam nocotidiano de trabalho desses profissionais.

As principais dificuldades relatadas pelosprofissionais da creche estavam relacionadastanto ao modo como eles poderiam lidarcom as expressões de sexualidade advindasdas crianças quanto aos questionamentosque os pais faziam sobre esse assunto. Tam-bém se percebeu que algumas professorasapresentavam um julgamento moral no quese refere aos gostos, de algumas crianças edemais pessoas da comunidade na qual acreche estava inserida, por músicas do estilofunk que, na opinião delas, contribuía paraa erotização precoce das crianças. Por fim,identificou-se que as educadoras da crechepercebiam as crianças como seres assexua-dos e demonstravam grande dificuldadepara lidar com as expressões da sexualidadeinfantil quando essas apareciam no cotidianoda escola.

Destaca-se que esse refinamento da demanda,por meio da escuta das educadoras, é con-sonante com os pressupostos da EducaçãoPopular e vai ao encontro do preconizadopor Freitas (1998), a qual afirma que os tra-balhos no âmbito comunitário devem serorientados pelas necessidades da comunidade.Outra preocupação levada em consideraçãono desenvolvimento das atividades foi a deincluir todos os atores sociais, tanto na ca-racterização da demanda quanto no plane-jamento das ações e na avaliação destas.Dessa forma, os objetivos norteadores destetrabalho foram definidos a posteriori.

Os encontros promovidos para os educadoresda creche foram coordenados por três aca-dêmicos do curso de Psicologia da UFSC,todos monitores do PET Saúde/SF. Foram rea-lizados sete encontros, o primeiro com duashoras e meia de duração e os subsequentescom cerca de uma hora e meia de duraçãocada, quinzenalmente, durante o segundosemestre de 2011. Participaram dos encontrosnove educadoras com idades entre 25 e 47anos, sendo três professoras, cinco auxiliaresde sala e a diretora da creche. Destas, seiseram pós-graduadas, uma possuía nível su-perior completo, uma nível superior incompletoe uma havia cursado o magistério.

778

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

779

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Em consonância com a Educação Popularem Saúde, utilizaram-se os Círculos de Culturade Paulo Freire como recurso teórico-meto-dológico para o desenvolvimento das ativida-des. Estes podem ser definidos “como um es-paço dinâmico e horizontal de aprendizagem,onde os sujeitos participantes investigam ques-tões que lhes são significativas, problematizandosituações da sua própria vivência de mundo”(Simão, Zurba, & Nunes, 2012, p.85).

A Educação Popular é baseada no diálogo.Neste, os participantes se reconhecemmutuamente e colaboram entre si. Assimconsiderado, não há hierarquia entre edu-cador e educando, ambos são sujeitos doprocesso ao educarem-se enquanto media-tizados pelo mundo (Freire, 1987). Noentanto, entende-se que a horizontalidadedessa relação não implica a omissão dosaber por parte daqueles que o detêm; essedeve ser disponibilizado para que possa serconstituinte do processo educativo. Outropressuposto que se buscou preservar nestetrabalho foi o caráter político da EducaçãoPopular. Para Simão et al. (2012, p. 90), éconsiderada intervenção política “a ação emque o sujeito reflete criticamente sobre aprodução de sua realidade e a partir delatransforma sua relação com a produçãodessa realidade”. Para tanto, o exercício dereflexão crítica foi estimulado durante todoo processo e foi incentivada a construção deuma proposta de trabalho que pudessematerializar os conteúdos trabalhadosdurante os encontros.

Antes do início do trabalho na creche, os es-tudantes-monitores de Psicologia participaramde uma série de encontros de formação du-rante os quais foram efetuados leituras, dis-cussões e compartilhamento de conhecimentossobre o trabalho no SUS e Educação Popularem Saúde, bem como Círculos de Cultura. Aformação, organizada por acadêmicos docurso de Psicologia da UFSC, foi realizada noformato de Círculo de Cultura, com o intuitode se treinar o papel de coordenador e de vi-venciar o de participante nesse tipo de ativi-dade. Dessa forma, foi possível o esclareci-

mento de dúvidas, a experimentação da me-todologia e, a partir dessa experiência, o pla-nejamento das atividades que seriam desen-volvidas na creche.

O trabalho foi desenhado a partir de temasgeradores, conforme estes iam surgindo aolongo dos encontros, de acordo com os pres-supostos da Educação Popular. Esses temas,obrigatoriamente, deviam ser eleitos pelogrupo e, por este, considerados relevantes.Os temas geradores foram compreendidospelos coordenadores como demonstrativosdo conhecimento prévio e dos significadosatribuídos pelos participantes às questões le-vantadas, o que possibilitou um melhor contatocom a realidade dos educadores e favoreceuo diálogo.

Cada um dos encontros foi estruturado basi-camente em três momentos: aquecimento,atividade principal e compartilhamento, aná-logos às etapas do método psicodramático,que são aquecimento, dramatização e com-partilhamento (Holmes & Karp, 1992; Bustos,2005). Para o aquecimento e a atividadeprincipal, foram utilizadas diferentes estratégiasteórico-metodológicas como mediadoras paraa discussão dos temas. Essas estratégias foramadaptadas de acordo com as características edemandas do grupo e a partir de diferentesjogos dramáticos, com o objetivo de favorecero engajamento dos participantes à atividade,além de fazer emergir temas a serem traba-lhados durante o encontro (Yozo, 1996). Ocompartilhamento incluía a reflexão sobre otrabalho realizado, a sintetização dos principaispontos pelos coordenadores e a escolha, pelogrupo, do tema para o próximo encontro.

O primeiro encontro, diferentemente dosdemais, foi realizado durante a parada pe-dagógica, sendo, portanto, acessível a todosos educadores e auxiliares de classe dacreche. Contou com a participação de 23funcionários e teve duas horas e meia deduração. Visando conhecer melhor os parti-cipantes e suas significações em relação àsexualidade, foi solicitado, durante o primeiromomento do encontro, que cada um dissesse

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

seu nome e a primeira palavra que haviapensado ao ouvir o termo sexualidade. Essaspalavras foram anotadas em papel pardo eforam utilizadas tanto como subsídios paranortear os encontros seguintes como também,ao final do trabalho com o grupo, paraavaliar os resultados obtidos. Em seguida,dividiu-se os participantes em quatro pe-quenos grupos e, nestes, discutiu-se sobreas brincadeiras sexuais das quais participavamna infância. No terceiro momento, os gruposapresentaram o que havia sido discutido edaí vieram as primeiras sugestões de temaspara os próximos encontros. As principaisquestões referiam-se a como lidar com ascrianças que apresentam comportamentosexual considerado inadequado, como no-mear corretamente os órgãos genitais, quala influência das letras e coreografias dosfunks atuais no desenvolvimento das crianças,como conversar com os pais sobre os assuntosrelacionados à sexualidade, entre outras.

No segundo encontro, foram distribuídasafirmações relacionadas à sexualidade e aodesenvolvimento infantil para que os parti-cipantes dissessem se concordavam ou nãocom elas. Essa atividade permitiu aos coor-denadores conhecerem mais a respeito dasconcepções de sexualidade que permeavamo grupo. No momento seguinte, os partici-pantes foram divididos em pequenos grupose procederam à leitura de um material sobreo tema. Em seguida, discutiram experiênciasde sala de aula à luz do texto lido e relataramexperiências pessoais da infância. Discutiu-se ainda sobre como a curiosidade sexualda criança está relacionada ao seu desen-volvimento e processo de aprendizagem, eos tabus que permeiam o olhar do adultodiante de tais questões. O tema escolhidopelo grupo para o encontro seguinte foi “co-municação com a família das crianças”.

No terceiro encontro, solicitou-se aos parti-cipantes, divididos em dois grupos, que com-partilhassem cenas, reais ou imaginárias, re-lacionadas à sexualidade dos alunos sobreas quais teriam maior constrangimento deconversar com os pais. Os grupos discutiram

e, então, pediu-se que escolhessem a cenaque melhor representasse a apreensão dogrupo para ser representada. Nesse encontro,houve tempo para uma representação apenas,sendo esta a de uma cena real que haviaocorrido na creche e que os educadores ti-veram muita dificuldade para representar,visto que sua ocorrência acarretou brigas eteve um desfecho indesejável. A partir dacena escolhida, as participantes levantarampontos como o lugar adequado para conversarcom os pais, a importância do cuidado naescolha dos termos empregados nesse diálogo,a necessidade de conversarem entre si ecom a diretora para juntas construírem oprocedimento a ser adotado. Também seconversou sobre a angústia que os paissentem ao discutir questões referentes à se-xualidade de seus filhos e o papel das edu-cadoras nesses momentos. Ficou combinadoque o próximo encontro seria iniciado pelosegundo grupo.

O quarto encontro tinha a proposta de darcontinuidade ao exercício de dramatizarcenas que envolvessem familiares dos alunosem comunicações sobre eventos relativos àsexualidade ocorridos no contexto da salade aula. A cena foi apresentada e a partici-pante que fez o papel da educadora mos-trou-se ansiosa ao tentar explicar para a“mãe” o que ela havia observado quanto aocomportamento da criança e não conseguiutransmitir a mensagem. O grupo levantoudiversos pontos para discussão: quanto àlinguagem, quanto à ansiedade, quanto aofoco da mensagem a ser transmitida e quantoaos motivos que fazem com que seja tãodifícil falar sobre sexualidade na infância.

Pautadas na técnica psicodramática da tomadade papel, que consiste na assunção do papelde um personagem, o que proporciona aoindivíduo a possibilidade de entrar em contatocom outras formas de pensar, sentir e percebersituações (Dias, 1996), as dramatizações rea-lizadas pelos professores evidenciaram oquanto mitos e preconceitos relacionados àsexualidade infantil, que consideram as crian-ças como seres assexuados, estavam presentes

780

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

e eram elementos mediadores do modocomo eles lidavam com as expressões da se-xualidade infantil. Partindo-se do pressupostoda indissociabilidade entre as dimensões dopensar, sentir e agir, esses foram problemati-zados a partir da historicidade. Ou seja, bus-cou-se resgatar a construção da noção deinfância e os discursos que reduzem a se-xualidade ao coito pênis-vagina e a associamà idade adulta e à reprodução. Ficou definidoque, no próximo encontro, seriam discutidasmídia e erotização infantil, ainda com o pro-pósito de que os professores pudessem termelhor entendimento, reflexão e capacidadede lidar com o assunto nas diversas situaçõesem que são demandados.

A proposta do quinto encontro foi debatersobre a polêmica da erotização nas músicasde funk por meio do texto “Mulher, mídia emovimentos culturais” de Feghali (2001)..Para tanto, foram sorteadas as posições quecada participante teria no debate (a favor,contra ou mediação) e distribuído o textoem questão. O motivo da utilização dessaestratégia é o de que ela favorece a percepçãoda alteridade, ou seja, de que nas relaçõessociais (interpsicológicas), os sujeitos se cons-tituem e se diferenciam uns dos outros (Za-nella, 2005).

O grupo que foi sorteado para defender ofunk mostrou-se desconfortável no início,visto que estava representando uma posiçãocom a qual não concordava. Após breve de-bate realizado pelos integrantes de cadagrupo, iniciou-se a discussão. Notou-se queas participantes do grupo contrário ao funkargumentaram sem sair do seu papel de edu-cadoras; o grupo favorável, no entanto, as-sumiu o papel da família dos alunos. Ao as-sumirem o papel das famílias, as educadoraspuderam empatizar com o significado que ofunk tem na vida dessas pessoas, colocando-se em uma relação de alteridade no que serefere a essa questão. Além disso, as educa-doras se surpreenderam com a sua perfor-mance e afirmaram sentir-se mais sensíveisem relação às famílias da comunidade. Asintegrantes do grupo contrário afirmaram que

teriam de rever suas posições, visto que hámais de um ponto de vista possível com re-lação a esse tema. Uma das educadorasdesse grupo defendeu que é necessário quea escola não se preste apenas a criticar oque considera inapropriado, mas que propi-cie aos alunos o contato com formas alter-nativas de cultura além daquelas às quaiseles já têm acesso. Percebeu-se que essa ati-vidade propiciou um estranhamento com oque estava naturalizado, evidenciando o po-tencial de reflexão e transformação produ-zido por ela.

Considerando que o sexto encontro seria openúltimo, optou-se por retomar alguns pon-tos e iniciar o processo de fechamento eavaliação do trabalho. Diante disso, foi pro-posto às educadoras que dissessem a primeirapalavra que pensassem ao ouvir o termo se-xualidade. Discutiu-se que as palavras esco-lhidas pelos educadores nesse encontro es-tavam mais relacionadas ao cotidiano pro-fissional, ao papel do educador na orientaçãosexual dos alunos no contexto escolar, queaquelas utilizadas para a confecção do cartazrealizado no primeiro encontro. Após essadiscussão, foi resgatada a proposta, feita poralguns educadores nos encontros anteriores,de convidar os pais no início do ano letivopara dialogar sobre a sexualidade na infância,já que eles avaliaram que dessa forma aescola poderia auxiliar os pais em suas ques-tões sobre como lidar com as curiosidades evivências dos filhos sobre a sexualidade.

O sétimo encontro – e último dessa formação– teve como proposta a elaboração deprojetos de intervenção no espaço escolar apartir dos conhecimentos e reflexões reali-zados no transcorrer dos encontros sobresexualidade infantil. Todos deveriam conterobjetivos e um plano de execução. Paratanto, foram organizados três grupos de edu-cadoras e cada um deles apresentou umprojeto diferente, porém complementares.O primeiro grupo propôs um trabalho comtodos os educadores da creche com o objetivode difundir, por meio de atividades diversas,os conhecimentos relacionados à sexualidade

781

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

infantil adquiridos e vivenciados durante aformação. O segundo e o terceiro gruposelaboraram propostas de trabalho voltadasaos pais dos alunos. Um deles propôs a in-clusão, na ficha de identificação da criançaque é preenchida no início do ano, de umespaço de preenchimento opcional no qualos pais pudessem expor suas dúvidas ou su-gerir temas sobre sexualidade infantil e outrosassuntos. Dessa forma, seria possível fazerum levantamento das dúvidas e, então,buscar formas de esclarecê-las. O últimogrupo sugeriu a montagem de uma peça deteatro que abordasse a temática da sexuali-dade infantil seguida de uma roda de conversacom os pais para que esses pudessem fazerseus questionamentos. O terceiro grupo in-cluiu em sua proposta a participação detodos os funcionários da creche, não só edu-cadores ou auxiliares de classe, tanto comoatores da peça quanto na discussão sobre ostemas que seriam contemplados.

Após a apresentação das propostas, discu-tiu-se sobre a importância do envolvimentode todos os educadores na temática sexuali-dade infantil antes de se trabalhar visandoao acolhimento dos pais, o que poderia serfeito de acordo com o primeiro projeto. Oencontro foi finalizado com a apresentação,pelos coordenadores, de um esquema con-tendo todas as questões discutidas nos seisencontros anteriores, como uma forma desintetização e materialização dos conceitos,reflexões, dúvidas e propostas que surgiramnesse processo.

Resultados e Discussão

A necessidade de realização deste trabalhosurgiu a partir de inúmeras dificuldades queos educadores da creche tinham em lidarcom as expressões de sexualidade infantilque emergiam no cotidiano da sala de aula.Essas dificuldades podem ser explicadas, deacordo com Leão (2009) e Silva (2010),como decorrentes de esses temas não seremoferecidos na formação inicial e continuadade professores de forma sistemática. Os au-

tores destacam que, quando emergem nessesespaços, são abordados de forma esponta-neísta e sem um caráter histórico crítico, de-sencadeando a repetição desse modelo emsuas práticas cotidianas.

O trabalho ora apresentado propôs-se, apartir das necessidades identificadas juntoaos educadores, a promover um espaço dediscussão e reflexão voltado ao aprofunda-mento da temática sexualidade de acordocom as questões que eles vivenciavam nocotidiano da sala de aula. Os resultados ob-tidos, a partir da avaliação da experiência,evidenciaram que ocorreu a ressignificaçãodo modo como os educadores se relaciona-vam com as expressões da sexualidade nainfância.

Em avaliação realizada antes do período dasoficinas, constatou-se que as educadoras dacreche se sentiam despreparadas para lidarcom o tema da sexualidade infantil e, emconsequência, acabavam por desconsiderarou até repreender muitas das expressõesque surgiam no cotidiano da sala de aula.Esse dado foi identificado também no estudorealizado por Costa (2009) junto a profissionaisda educação. Por outro lado, havia umapreocupação, por parte das educadoras dacreche, com o respeito à curiosidade sexualmanifestada pelas crianças como inerenteao seu processo de desenvolvimento, o queevidencia um compromisso ético-políticodelas.

A partir do trabalho realizado, as educadorasconseguiram produzir novas significações re-ferentes às expressões de sexualidade na in-fância, passando a percebê-las como inerentesao processo de desenvolvimento das crianças.Esse resultado é bem significativo, haja vistaque, a partir dessa mudança de olhar sobreesse fenômeno, é possível evitar a patologi-zação das expressões de sexualidade infantilque, muitas vezes, são interpretadas comodistúrbio ou até perversão infantil (Santa Ca-tarina, 2008). A reprodução de mitos rela-cionados à sexualidade nas práticas educativasinfantis pode ser um elemento obstaculizador

782

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

do desenvolvimento da criança na dimensãoda sexualidade. O fornecimento de infor-mações incorretas ou simplesmente a difi-culdade de o educador tocar no assuntopode dificultar o processo de identificaçãode situações de abuso sexual e demais vio-lências no campo dos direitos sexuais e re-produtivos.

O tema da violência sexual infantil suscitouquestionamentos diversos por parte das edu-cadoras. Após discussões sobre o tema, nasquais foram abordadas as formas e a identi-ficação de situações de violência sexual,concluiu-se que a creche, ao assumir o seupapel na educação sexual das crianças, con-tribui, principalmente, com um trabalho deprevenção da violência. Como já afirmadopor Silva, Souza e Santos (2007), a prevenção,realizada por meio de orientação, informaçãoe sensibilização de todos os atores sociais,“é a melhor forma de evitar as várias formasde violência sexual” (p. 101). As educadorasressignificaram ainda o preconceito emrelação a músicas e modos de lidar com asexualidade diferentes do padrão naturalizadopor elas. A partir da atividade realizada noquinto encontro, elas também realizaramreflexões importantes sobre o papel das ins-tituições de ensino de, sem desqualificar osgostos dos alunos e suas famílias, disponibi-lizarem novas possibilidades culturais e in-formativas.

Considera-se ainda que uma das contribuiçõesdesse trabalho foi o reconhecimento, porparte das educadoras, de que a creche temum papel importante em relação à famíliade seus alunos. Ao se sentirem melhor pre-paradas e, consequentemente, mais segurascom relação ao tema da sexualidade infantil,as educadoras perceberam que podem aco-lher as angústias familiares oriundas das ex-pressões de sexualidade das crianças. En-tenderam também que podem contribuirorientando as famílias, por meio de açõesde esclarecimento pontuais ou amplas, comrelação às expressões da sexualidade queocorrem, de diferentes formas e intensidades,no decorrer do desenvolvimento infantil.

Durante e no fim do trabalho realizado, des-tacou-se o reconhecimento das participantesdo grupo quanto à importância de discutiras questões relacionadas à sexualidade inte-gradas ao desenvolvimento infantil. Alémdisso, como foi evidenciado nas propostasconstruídas no último encontro, as própriaseducadoras identificaram a necessidade deo trabalho ser realizado com todos os atoressociais da creche e desde um ponto de vistaque entenda a sexualidade a partir de umaperspectiva biopsicossocial, rompendo assimcom discursos morais, religiosos e biomédicos,reproduzidos cotidianamente nas práticaseducativas (Gesser et al., 2012; Yared, 2011).

Essa postura vai ao encontro do que pro-põem os PCN (Brasil, 1998), bem como oPSE, que dão ao educador um lugar centralno trabalho de educação sexual no âmbitoda escola. Segundo os PCN (Brasil, 1998), oseducadores devem se mostrar disponíveispara esclarecer questões referentes à sexua-lidade, problematizar e debater as diferentesnoções de sexualidade presentes na socie-dade, assim como os preconceitos a elasrelacionados e reconhecer, na busca do pra-zer e curiosidades manifestadas pelascrianças e adolescentes, a legitimidade ine-rente a essa dimensão do processo dedesenvolvimento.

A utilização dos Círculos de Cultura propicioua problematização dos diversos aspectos re-latados a partir do repertório de conheci-mentos prévios dos educadores em articulaçãocom o conhecimento científico atualizado epesquisado para atender aos objetivos defi-nidos no decorrer do trabalho. Em conso-nância com o preconizado por Freire (1996),a escuta e consideração dos conhecimentosprévios, resultantes da “pura experiência”,foram necessárias para a superação do sensocomum e estimulação da capacidade criadorados educadores. Além disso, a compreensãodo papel político que os educadores assumemperante as crianças e famílias ao incluíremessa importante dimensão do desenvolvimentoinfantil os potencializa a descobrirem dife-rentes formas de educar.

783

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

Conforme a proposta de formação de profes-sores “pautada em uma perspectiva ético-política de sexualidade e de educação inclu-siva” apresentada por Gesser et al. (2012), oprocesso foi norteado pela compreensão deque a sexualidade deve ser entendida comointegrada à vida. Para tanto, levou-se emconta a “totalidade de dimensões constitutivasdo sujeito” por meio da disponibilização deum espaço que possibilitasse a reflexão sobreo tema e a revisão de valores, sentimentos,tabus e preconceitos pessoais em relação àsexualidade (Figueiró, 2009). A partir da po-tencialização das discussões e reflexões, foipossível a construção de propostas e estratégiasrelacionadas às dificuldades cotidianamentevivenciadas pelas educadoras.

Considerações finais

A formação de professores em sexualidadeinfantil é uma das diversas possibilidades deatuação de psicólogos no contexto escolar.A particularidade dessa formação, desenvol-vida a partir do vínculo da creche com o CS,permitiu que desde a entrada na instituiçãoos estudantes-monitores da Psicologia pu-dessem propor um trabalho com foco naprevenção e promoção da saúde. Entende-se que essa característica da experiência foiessencial para que a expectativa dos educa-dores fosse diferente daquela historicamenterelacionada à Psicologia no âmbito escolar:o foco no problema oriundo do aluno ou desuas famílias.

Os pressupostos teórico-metodológicos dosCírculos de Cultura pautados em Paulo Freire(Simão et al., 2012) propiciaram uma práticade educação alternativa àquelas tradicional-mente utilizadas nas formações de educa-dores. Estes, ao serem incluídos na construçãodo processo, tornaram-se corresponsáveispelos resultados obtidos no mesmo e puderamconstatar a importância de sua implicaçãopara a revisão de suas posturas quanto aotema da sexualidade. Além disso, a utilização

de estratégias metodológicas grupais, comodramatizações, colagens, discussão de pe-quenos textos e construção de projetos deintervenção baseados na realidade da creche,por serem subversivas em relação à lógicabancária (Freire, 1987) de formação de edu-cadores, mostrou-se eficaz para se atingir oobjetivo do trabalho.

Entende-se que os efeitos desse trabalhosejam de difícil mensuração e que um acom-panhamento da implementação dos projetosconstruídos pelos educadores seria necessário,o que não foi possível. Verificou-se, entretanto,que ocorreu uma desestabilização dos con-ceitos relativos à sexualidade infantil, o quepôde abrir espaço para a apropriação denovos olhares que vão contribuir de diferentesformas para a construção de novas práticasrelacionadas ao tema.

A experiência possibilitou aos estudantes-monitores a oportunidade de integraçãoentre o aprendizado da sala de aula e a rea-lidade de trabalho de seu campo profissional.Além disso, experimentou-se tanto o contatocom a estratégia baseada no Círculo de Cul-tura quanto o relacionamento com diferentesatores com os quais um profissional da saúdepública lida no seu cotidiano de trabalho. Ocontato com esses atores incitou uma intensareflexão sobre as variadas práticas e visõesdos profissionais de diferentes campos dasaúde que trabalham conjuntamente e asdificuldades daí decorrentes.

A experiência proporcionou ainda a aquisi-ção de conhecimentos sobre o sistema desaúde, em especial sobre a importância dotrabalho territorializado e em rede. Consi-dera-se que a inserção de graduandos daPsicologia no PET Saúde/SF pode contribuirpara a mudança do perfil desses futuros pro-fissionais a partir da repercussão que asvivências práticas provocam nos alunos eque estes, consequentemente, provocamnas instituições formadoras às quais estãovinculados.

784

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

785

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

Adriane Costa e Rocha Ciaffone,Psicóloga cursando especialização em Terapia Relacional Sistêmica no Instituto Familiare,Florianópolis - SC e Psicóloga clínica em consultório particular. E-mail: [email protected].

Marivete Gesser, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação emPsicologia da UniversidadeFederal de Santa Catarina.E-mail: [email protected]

Endereçopara envio de correspondência: Rua Rosa, 119, apto 301, Pantanal, Florianópolis, SC, 88040-270

Recebido 09/03/2013, 1ª Reformulação 15/01/2014 Aprovado 04/08/2014.

Brasil, Ministério da Educação. Secretaria de Edu-cação Fundamental. (1997). Parâmetros Cur-riculares Nacionais: pluralidade cultural/orien-tação sexual. Brasília, DF: Autor

Brasil, Ministério da Saúde (2007). Cadernos deEducação Popular e Saúde. Brasília, DF: Autor.

Brasil, Presidência da República. (2007). Decretopresidencial e interministerial n. 6.286 de 5de dezembro de 2007. Institui o ProgramaSaúde na Escola. Brasília, DF: Diário Oficialda União, seção I.

Brasil, Ministério da Saúde (2009). Cadernos deAtenção Básica: Diretrizes do NASF Núcleo deApoio a Saúde da Família. Brasília, DF.

Brasil, Secretaria de Políticas para as Mulheres.(2009). Gênero e diversidade na escola: for-mação de professoras/es em Gênero, OrientaçãoSexual e Relações Étnico-Raciais. Rio deJaneiro: CEPESC; Brasília: SPM.

Bustos, D. M. (2005). Psicodrama: aplicações datécnica psicodramática. São Paulo: Ágora.

Centro de Saúde da Tapera. (2013). Serviços. Re-cuperado em 12 março, 2013, de http://cs-tapera.blogspot.com.br/p/servicos.html.

Costa, A. P. (2009). As concepções de sexualidadede um grupo de alunas do curso de Pedagogia:uma análise a partir do recorte de gênero.Dissertação de Mestrado, Universidade EstadualPaulista, Araraquara, SP.

Dias, V. R. C. da S. (1996). Sonhos e psicodramainterno na análise psicodramática. São Paulo:Ágora.

Feghali, J. (2001). Mulher, mídia e movimentosculturais. Presença da Mulher, 39(1), pp. 19-22. Recuperado em 19 agosto, 2012, dehttp://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPREMSP072001039.pdf.

Figueiró, M. N. D. (2009). Educação Sexual:como ensinar no espaço da escola. In M. N.D. Figueiró (Org.), Educação sexual: múltiplostemas, compromissos comuns (pp. 141-171).Londrina, PR: UEL.

Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio deJaneiro: Paz e Terra.

Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberesnecessários à prática educativa. São Paulo: Paze Terra.

Freitas, M. F. Q. (1998). Inserção na comunidadee análise de necessidades: reflexões sobre aprática do psicólogo. Psicologia: Reflexão eCrítica 11(1), 175-189. doi http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79721998000100011.

Gesser, M., Oltramari, L. C., Cord, D., & Nuern-berg, A. H. (2012). Psicologia Escolar e for-mação continuada de professores em gêneroe sexualidade. Psicol. Esc. Educ., 16(2), 229-236. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-85572012000200005

Holmes, P., & Karp, M. (1992). Psicodrama Inspi-ração e Técnica. São Paulo: Ágora.

Leão, A. M. C. (2009). Estudo analítico-descritivodo curso de Pedagogia da Unesp-Araraquaranas temáticas de sexualidade e orientaçãosexual na formação de seus alunos. Tese deDoutorado, Universidade Estadual Paulista,Araraquara, SP.

Leão, A. M. C., Ribeiro, P. R. M., & Bedin, R. C.(2010). Sexualidade e orientação sexual naescola em foco: algumas reflexões sobre aformação dos professores. Linhas. 11(1), 36-52.

Prefeitura Municipal de Florianópolis – PMF.(2012). População Florianópolis 2012. Recu-perado de http://www.pmf.sc.gov.br/e n t i d a d e s / s a u d e / i n d e x .php?cms=populacao&menu=0

Portaria conjunta n. 2 (2010, 03 de março).Institui no âmbito do Programa de Educaçãopelo Trabalho para a Saúde (PET Saúde), oPET Saúde/Saúde da Família. Diário Oficial daUnião, seção 1.

Portaria interministerial n.421 (2010, 03 de março).Institui o Programa de Educação pelo Trabalhopara a Saúde (PET Saúde) e dá outras provi-dências. Diário Oficial da União, seção 1.

Portaria interministerial n. 422 (2010, 03 demarço). Estabelece orientações e diretrizestécnico-administrativas para a execução doPrograma de Educação pelo Trabalho para aSaúde - PET Saúde, instituído no âmbito doMinistério da Saúde e do Ministério da Edu-cação. Diário Oficial da União, seção 1.

Santa Catarina. Secretaria de Estado da Educação.(2008). Proposta curricular de Santa Catarina.Santa Catarina: SEE.

786

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil

Referências

Silva, M. C. P. da, Souza, P. O. de, & Santos, Z.dos (2007). Violência sexual infantil. In M. C. P.da Silva, (Org.), Sexualidade começa na infância(pp. 95-111). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Silva, L. R. G. (2010). Sexualidade e orientaçãosexual na formação de professores: uma análiseda política educacional. Tese de Doutorado,Universidade Estadual Paulista, Araraquara, SP.

Simão, C. R. P., Zurba, M. do C., & Nunes, A. deS. B. (2012). Educação popular em saúde: ocírculo de cultura como ferramenta de pro-moção de participação popular no SUS. InM. do C. Zurba (Org.), Psicologia e saúde co-letiva (pp. 75-101). Florianópolis, SC: Triboda Ilha.

Yared, Y. B. (2011). A educação sexual na escola:tensões e prazeres na prática pedagógica deprofessores de ciências e biologia. Dissertaçãode Mestrado, Universidade do Planalto Cata-rinense, Lages, SC.

Yozo, R. Y. K. (1996). 100 Jogos para Grupos:Uma abordagem psicodramática para empresas,escolas e clínicas. São Paulo: Ágora.

Zanella, A. V. (2005). Sujeito e alteridade: reflexõesa partir da psicologia histórico-cultural. Psico-logia & Sociedade, 17(2), 99-104. doi:h t t p : / / d x . d o i . o r g / 1 0 . 1 5 9 0 / S 0 1 0 2 -71822005000200013..

787

Adriane Costa e Rocha Ciaffone & Marivete GesserPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 774-787

Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil