Interculturalidade efetiva

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Interculturalidade efetiva: de que tipo de educação escolar indígena estamos falando? 1 Antonio Dari Ramos 2 - FAIND/UFGD Cássio Knapp 3 - FAIND/UFGD 1. Considerações Iniciais Os últimos vinte anos têm sido marcados pela ampla entrada da instituição escola nas comunidades indígenas. Entre 1996 e 2006, por exemplo, segundo o censo do Ministério da Educação, o número de escolas em áreas indígenas passou de 1400 para 2400. 4 Acompanha esse aumento significativo da quantidade de escolas entre os indígenas a defesa de que elas devam ser interculturais. Por ser a interculturalidade um dos conceitos centrais nos debates que envolvem a Educação Escolar Indígena, este texto tem o objetivo de discuti-lo, almejando a busca de uma proposta de interculturalidade efetiva que rompa com a perspectiva simplista presente nos discursos e nas práticas, inclusive de muitos defensores da Educação Escolar Indígena diferenciada. Em termos de organização textual, partiremos da análise da lógica ocidental que guiou o encontro entre a colonização europeia e as sociedades indígenas americanas. Essa mesma lógica continua até o presente naquilo que se entende por colonialidade. Após passar por uma discussão sobre a relação entre interculturalidade e descolonização, e pela retórica da educação intercultural, propomos, ao final, uma discussão sobre a educação escolar indígena que leve em conta o referencial teórico apresentado pela interculturalidade crítica, tomando como base a experiência de reestruturação do Projeto Pedagógico da Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu. O pano de fundo das análises que realizamos é a premissa de que a inserção da escola no mundo indígena se deu a partir da imposição de um modelo específico de 1 Uma primeira versão de algumas das discussões apresentadas nesse texto foi publicada em RAMOS, Antonio Dari & KNAPP, Cássio. Para uma interculturalidade efetiva: um diálogo a partir dos estudos descoloniais. In.: TEDESCHI, Losandro A. (Org). Leituras de Gênero e Interculturalidade. Dourados, MS: UFGD, 2013. Nesta versão, inserimos uma avaliação sobre a apropriação teórica da interculturalidade crítica no processo de reestruturação do Projeto Pedagógico da Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu, da Faculdade Intercultural Indígena, FAIND, da Universidade Federal da Grande Dourados, UFGD. 2 Grupo de Pesquisas em Educação Escolar Indígena (GPEEI) e Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Estudos Interculturais (NEPEIN/FAIND/UFGD). Atualmente é diretor da FAIND. Contato: [email protected]. 3 Grupo de Pesquisas em Educação Escolar Indígena (GPEEI) e Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Estudos Interculturais (NEPEIN/FAIND/UFGD). Docente na Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu, na FAIND/UFGD. Contato: [email protected]. 4 cf. D’ANGELIS. Aprisionando sonhos: a educação escolar indígena no Brasil. Campinas: Editora Curt Nimuendajú, 2012, p. 124.

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Interculturalidade efetiva: de que tipo de educação escolar indígena estamos falando?1

Antonio Dari Ramos2 - FAIND/UFGD

Cássio Knapp3 - FAIND/UFGD

1. Considerações Iniciais

Os últimos vinte anos têm sido marcados pela ampla entrada da instituição escola nas comunidades indígenas. Entre 1996 e 2006, por exemplo, segundo o censo do Ministério da Educação, o número de escolas em áreas indígenas passou de 1400 para 2400.4 Acompanha esse aumento significativo da quantidade de escolas entre os indígenas a defesa de que elas devam ser interculturais. Por ser a interculturalidade um dos conceitos centrais nos debates que envolvem a Educação Escolar Indígena, este texto tem o objetivo de discuti-lo, almejando a busca de uma proposta de interculturalidade efetiva que rompa com a perspectiva simplista presente nos discursos e nas práticas, inclusive de muitos defensores da Educação Escolar Indígena diferenciada.

Em termos de organização textual, partiremos da análise da lógica ocidental que guiou o encontro entre a colonização europeia e as sociedades indígenas americanas. Essa mesma lógica continua até o presente naquilo que se entende por colonialidade. Após passar por uma discussão sobre a relação entre interculturalidade e descolonização, e pela retórica da educação intercultural, propomos, ao final, uma discussão sobre a educação escolar indígena que leve em conta o referencial teórico apresentado pela interculturalidade crítica, tomando como base a experiência de reestruturação do Projeto Pedagógico da Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu.

O pano de fundo das análises que realizamos é a premissa de que a inserção da escola no mundo indígena se deu a partir da imposição de um modelo específico de

1 Uma primeira versão de algumas das discussões apresentadas nesse texto foi publicada em RAMOS,

Antonio Dari & KNAPP, Cássio. Para uma interculturalidade efetiva: um diálogo a partir dos estudos descoloniais. In.: TEDESCHI, Losandro A. (Org). Leituras de Gênero e Interculturalidade. Dourados, MS: UFGD, 2013. Nesta versão, inserimos uma avaliação sobre a apropriação teórica da interculturalidade crítica no processo de reestruturação do Projeto Pedagógico da Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu, da Faculdade Intercultural Indígena, FAIND, da Universidade Federal da Grande Dourados, UFGD. 2 Grupo de Pesquisas em Educação Escolar Indígena (GPEEI) e Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre

Estudos Interculturais (NEPEIN/FAIND/UFGD). Atualmente é diretor da FAIND. Contato: [email protected]. 3 Grupo de Pesquisas em Educação Escolar Indígena (GPEEI) e Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre

Estudos Interculturais (NEPEIN/FAIND/UFGD). Docente na Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu, na FAIND/UFGD. Contato: [email protected]. 4cf. D’ANGELIS. Aprisionando sonhos: a educação escolar indígena no Brasil. Campinas: Editora Curt

Nimuendajú, 2012, p. 124.

racionalidade5 que por muito tempo desconsiderou as especificidades indígenas, sendo unicamente pautada na cosmovisão do homem ocidental cristão/europeu. Isso decorre do fato de que, na descoberta da América pelo Velho Mundo, a Europa apenas transpôs o que compreendia como razão ao Novo Mundo, dentro de um projeto específico de modernidade.

Compreender o projeto de racionalidade que esteve por trás da colonização significa compreender o projeto de civilidade que a Europa pretendia trazer para a América. Nessa perspectiva, a conquista sempre esteve atrelada à negação da alteridade6 e da humanidade de homens e mulheres que foram tomados como inferiores por pensarem, codificarem, imaginarem e racionalizarem o mundo de forma diferente ao que propunha o esquema ocidental/cristão/masculino/branco. 2. A lógica da colonização e os indígenas

O descobrimento da América e do Brasil foi efetivado através da negação do direito do colonizado e da afirmação do direito do colonizador; significou a negação de um direito coletivo por um direito individual7. Ele tem como centro a razão sobre o imaginário do outro, como se só existisse uma forma de ver o mundo. O que podemos pensar é que esta sociedade ocidental homogênea – destacamos a palavra por sabermos que nenhuma sociedade humana é homogênea –, com o descobrimento, de

5 Filosoficamente, desde o período grego, a razão foi tomada como o principal atributo humano, vindo a

ser tomada como a constituinte primeira da essência humana, entretanto a ideia ou entendimento sobre essa categoria filosófica foi se transformando/consolidando ao longo do tempo. A ideia de razão no século XV e XVI não é a mesma razão dos tempos das Luzes, que difere da atualidade. A conquista da América, a partir do século XVI implicou não somente no desenvolvimento econômico e político moderno, mas também a forma como a Europa passou a pensar-se. Na verdade, a conquista americana é fruto das grandes transformações filosóficas, técnicas e científicas no/do universo europeu, começada há mais de três séculos. A partir do século XIII, a Europa assiste à retomada dos conhecimentos greco-romanos, tendo como consequência o grande processo de transformações, da teologia à ciência, incluindo o campo das artes e a busca de conquista e desbravamento do universo até então desconhecido. Mesmo assim, “não devemos confundir o século XVI com Renascimento, pois nem todos os quinhentistas eram ‘renascentes’, a marca do Renascimento foi a ambiguidade. Se então se inicia o processo de desimbricamento da ciência física e a história relativamente a um discurso teológico englobante; se a filologia e arqueologia, no contexto de um espírito geral de dúvida, prenunciam a passagem de um providencialismo transcendental para uma história antropocêntrica, o misticismo continuava presente mesmo em Copérnico, Kepler e outros inovadores”. (WOORTMANN, Klass. O Selvagem e o Novo Mundo: Ameríndios, humanismo e escatologia. Brasília: UNB, 2004. p. 83). Na Europa do século XVI, o mundo das ideias tinha uma forte base no cristianismo, já que ele foi a base de toda racionalidade durante a Idade Média. Desse modo, não seria diferente que o Novo Mundo, o homem selvagem e a natureza fossem pensados a partir da cristandade. Neste contexto, o Renascimento foi um momento de dúvidas e audácias, enquanto as escrituras continuaram contendo a verdade absoluta. 6 Alteridade é a concepção que parte do princípio de que cada homem (e mulher) interage de forma

diferente com o outro. Isso significa compreender que cada indivíduo, ou comunidade, pode partilhar de maneiras diferentes de interagir no mundo em que vive. Mais além, poderíamos compreender que a forma de interagir com o mundo também tem referência na maneira como ocorre a relação entre o “eu” e o “outro”. Assim, o “eu” apenas existe a partir do “outro”, e da visão que o “outro” tem sobre o “eu”, o que me permite também compreender o mundo a partir de um olhar diferenciado, partindo tanto do diferente quanto de mim mesmo, sensibilizado que estou pela experiência do contato. 7 CLAVERO apud LANDER Edgardo. A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais –

perspectivas latino americanas. In: Ciências Sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. Bueno Aires: Clacso, 2005. p. 27.

alguma forma também é descoberta. Ou seja, em um campo abstrato toda a descoberta é recíproca: quem descobre também é descoberto8, nasce e se recria em oposição a outros saberes, a outros tempos, a outras formas de apropriação das riquezas naturais. Contudo, há aspectos que se opõem a essa visão romântica e nos deixam evidente quem é o descobridor e quem é o descoberto, e para que polo tende negativamente a descoberta:

Porque, sendo a descoberta uma relação de poder e de saber, é descobridor quem tem mais poder [...] e, com isso, a capacidade para declarar o outro como descoberto. É a desigualdade de poder e de saber que transforma a reciprocidade da descoberta na apropriação do descoberto

9.

Há, nesse sentido, uma relação de força e de poder que transforma toda a

relação da descoberta em uma ação de controle e submissão. Logo “toda a descoberta tem, assim, algo de imperial”10, pois os processos de transformação do descobridor e de submissão do descoberto passam pela produção da inferioridade do outro, mas “a descoberta não se limita a assentar nessa inferioridade, legitima-a e aprofunda-a”11.

Baseados na teoria da superioridade europeia, os conquistadores negam a própria racionalidade indígena, negação que se estendeu a todos os meandros da vida humana ameríndia, colocando em xeque a própria humanidade dessas pessoas.

Pautando-se nas transformações ocorridas entre o final da Idade Média e início da Idade Moderna, e como forma de resolver suas crises internas, a Europa, no final do século XV e início do século XVI, utilizará o processo de conquista e colonização da América para se afirmar frente ao diferente. Se o Renascimento foi um momento de dúvidas e de audácias no encontro com uma nova humanidade12, foi também um encontro com uma natureza distinta a ser conquistada e dominada. Em torno das discussões sobre a humanidade indígena, eram comuns explicações que relacionavam os ameríndios a animais, pois não teriam Lei, Fé e Rei devido a sua ‘incapacidade’ de desenvolvimento social, segundo o modelo europeu. Ou também, segundo Nóbrega, “acá pocas letras bastan, porque es todo papel blanco y no ay más a que escribir a plazer”13. Nesse processo de nomear e classificar o outro não somente está presente a intenção de domínio, mas também a necessidade crescente que a Europa demonstra em manter a diferenciação; e, para isso, recorre aos estudos greco-romanos clássicos e à tradição cristã, onde encontra as imagens perfeitas nas quais os indígenas deveriam ser enquadrados: selvagens, bestas, feras, pagãos, infiéis.

O novo, porém, é mais complexo do que as categorias existentes para nomeá-lo! Como as Escrituras Sagradas não davam conta de explicar satisfatoriamente todas as perguntas surgidas em face do Novo Mundo, o pensamento cristão, por exemplo, teve de ser remodelado a fim de responder às perguntas postas em torno da existência das sociedades indígenas e de suas distinções com relação à sociedade europeia. Nesse contexto, uma das principais dificuldades com relação à América foi “localizar o 8 SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim das descobertas imperiais. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa e SGARBIi,

Paulo (orgs.). Redes culturais, diversidade e educação. Rio de Janeiro: DP&A. 2002. 9 Santos, 2002, Op. Cit., p. 23.

10 Idem, ibidem.

11 Idem, ibidem.

12 Woortmann, 2004, Op. Cit.

13 apud PAULA, Eunice Dias de. A interculturalidade no cotidiano de uma escola indígena. Cadernos

Cedes. Campinas. n. 49, p. 76-91, 1999. p. 78.

selvagem recém-descoberto no espaço da revelação, já que parecia estar fora dele”14. Se o objetivo dos missionários era angariar súditos para o rei e fiéis para o papa, os contatos com o outro diferente e inexplicável lhes possibilitará construir todo um discurso pautado no heroísmo e na bravura, qualidades cantadas em verso e prosa que teriam sido assumidas por eles frente às adversidades e aos perigos encontrados na tarefa divina de salvar as almas dos ameríndios, tirando-as das garras do demônio.

Segundo mentalidade da época, a cristianização “provocaria a ruína do império maligno e, pela conversão, promoveria a liberdade dos antigos escravos de Satã”15. O demônio foi, de fato, um apelo discursivo bastante utilizado na cristianização do Novo Mundo, pois a América foi representada como o lugar predileto de refúgio de Satã, já que nela o Maligno teria tido a chance de ficar distante da ação da Igreja por um longo período. Os indígenas foram apresentados como sequazes do demônio. Ao direcionarem suas ações aos indígenas, os missionários queriam atingir mais ao demônio que aos indígenas:

Os espanhóis, contudo, mais afeitos à demonologia que os portugueses, foram grandes demonizadores em seu esforço de extirpar a idolatria, já condenada desde o Velho Testamento como obscenidade ou como cegueira que impedia ver o Deus verdadeiro [...]. A percepção do ameríndio foi então, em boa parte, moldada pelo ambiente escatológico/demonológico da época. O ameríndio, mesmo que por ignorância, seria agente de Satã, tanto quanto, judeus e muçulmanos, embora estes o fossem deliberadamente. [...] Via-se no Outro selvagem o próprio demônio dos europeus

16.

A lógica que acompanha o contato entre os dois mundos é uma lógica perversa, pois “todos nós criamos uma série de relacionamentos imaginários porque sempre presumimos que o mundo é tal como o vemos e os outros, tais como os imaginamos”17. O mundo em que vivemos é o mundo como imaginamos; relacionamo-nos com o mundo como o projetamos. E essa forma de projetar o mundo está relacionada à forma como comparamos o nosso mundo com o mundo no qual os outros vivem. A projeção do mundo está ligada também ao tipo de contato que estabelecemos com os outros grupos com os quais nos relacionamos, e aos objetivos que possuímos com relação a esse contato. Assim, as assimetrias sociais são alimentadas por um imaginário que se mantém em virtude dos ganhos que um grupo impõe sobre o outro, e essa regra pode ser aplicada aos contatos entre indígenas e não-indígenas desde o período colonial.

De uma perspectiva histórica, é natural a existência de uma imagem negativa do homem primitivo, porque o contraste assegurava ao civilizador a confirmação de sua duvidosa superioridade. Os relatos de Colombo e dos viajantes do século XVI eram, portanto, a validação “empírica” de um mito eterno, e nesse sentido a catequese dos indígenas assume ares de uma repetição da Criação. Civilizá-los seria o mesmo que moldar de novo a argila corrupta à imagem do autor. Os jesuítas fincaram o pé no Novo Mundo com esse objetivo, e convencidos de que a argila era má. Nada está em discussão. Os índios já eram conhecidos muito antes de serem encontrados, porque a imagem por meio da qual seriam percebidos

14

RAMINELLI, Ronald. Imagens da Colonização: A Representação do Índio de Caminha a Vieira. São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp, Fapesp, Jorge Zahar, 1996. p. 58. 15

Raminelli, 1996, Op. Cit. p.23. 16

Woortmann, 2004, Op. Cit., p.79 17

GAMBINI, Roberto. Espelho Índio: A formação da alma brasileira. São Paulo: Axis Mundi. Terceiro Nome, 2002. p.30.

sempre existiu na psique do homem civilizado, aguardando apenas o momento certo para ser projetada – o que se deu com a velocidade de uma flecha (grifo nosso)

18.

Se a cor da pele, a língua e os costumes afastavam os ameríndios dos europeus, a leitura dos conquistadores feita sobre a humanidade indígena projetava as postulações do que o europeu entendia por raça, língua e por costumes. Para a Europa,

a humanidade há muito tinha abandonado os filhos da América, pois estes seres comportavam-se como alimárias, sem política, sem prudência e possuíam inúmeras perversões, dados à preguiça, à mentira, à gula e à bebedeira. Neles, a luz da razão há muito já havia se extinguido. Caso ainda houvesse algum vestígio dessa chama, ela seria quase da mesma intensidade daquela encontrada entre as feras

19.

A relação que se estabeleceu entre a desumanidade indígena e os hábitos dos animais estava pautada na separação, no pensamento europeu, entre cultura e natureza. Os indígenas, tal como os animais, pertenceriam à natureza. A natureza, considerada indômita deveria ser dominada, assim como os indígenas e os demais animais. No caso dos indígenas, a religião seria a forma mais perfeita de tirá-los do mundo da natureza e inseri-los no mundo da cultura, portanto, no mundo humano.

A natureza e o ameríndio eram considerados, como dissemos, selvagens e bárbaros, uma invenção que desde

el descubrimiento de América significó un enorme trasvasijamiento del imaginário europeo en las nuevas tierras descubiertas. Los mitos, las leyendas, el mundo teratológico, las quimeras, todo va a adquirir carta de ciudadanía en América, y todo va a ser buscado allí con ahínco por los rastreadores de fortuna y los cazadores de sueños [...]. Las fuentes de estos mitos eran antiguas leyendas. Venian de los griegos, incluso algunos desde antes. Las difundieron las obras de Erastóstenes, Herodoto, Estrabón y Plinio. Y, en el siglo III, fueron recopiladas en la Collectanea Rerum Memorabilium de Solinus, para ser redifundidas por una serie de autores durante la Edade Media, pero sobre todo em la víspera del descubrimiento de América, por las obras de Marco Polo y Mandeville

20.

De fato, o selvagem é uma invenção da cultura europeia projetada para a realidade americana a fim de tornar inteligível a diversidade encontrada. Entretanto, contrastivamente, os indígenas eram também vistos como bons selvagens: “a solidariedade, a higiene, o cuidado com as crianças, a ingenuidade e a inocência aproximavam-nos do reino da concórdia e do equilíbrio e à chamada natureza herbal”21. A diferença de julgamento acerca do que seria o bom ou o mau selvagem depende não só da aproximação/distanciamento de seus hábitos do modo de ser europeu como da forma como reagem ao contato. Se aceitassem o domínio, seriam considerados bons; se o questionassem, seriam considerados maus e dignos de sofrer as consequências da guerra santa, portanto, justa.

Compreendemos que o que desencadeia o desrespeito a outras racionalidades que não a europeia, outras formas de ver, perceber e sentir o mundo, na América, está

18

Gambini, 2002, Op. Cit., p. 90. 19

Raminelli, 1996, Op. Cit., p. 27. 20

MIX, Miguel Rojas. Los Monstruos: mitos de legitimacións de la conquista? In: PIZARRO, Ana. América latina: Palavra, Literatura e Cultura. São Paulo: memorial. Campinas: Unicamp, 1993. p. 125 – 126. 21

Idem, ibidem.

ligado a uma estrutura de eventos que nos remetem à própria história do continente. A América passa a ser América somente após o contato com os europeus. Nesse sentido, ela é uma construção de fora, uma invenção da Europa. Antes deste contato, os povos que aqui viviam já mantinham contatos entre si; já disputavam o espaço físico e o espaço simbólico; os povos mais fortes belicamente já submetiam aos demais povos. O que se verá, após a chegada dos europeus, é que um novo paradigma de dominação é posto em prática, pois fazia parte das práticas mercantilistas. Nesse sentido, devemos considerar que

os paradigmas não caem do céu. Os paradigmas são instituídos por sujeitos social, histórica e geograficamente situados [...] Afinal, desde que se deu esse extraordinário encontro moderno-colonial [...], emergiram culturas e povos diferentes mostrando-nos um mundo muito mais diverso do que faz crer o olhar colonial eurocêntrico ou que vê mais a lógica do capital do que as lógicas dos que a ele resistem

22.

Na intenção de entender e relativizar a episteme unilateral que invisibilizou povos e minorias sociais é que pensamos que o paradigma da descolonização e da interculturalidade crítica podem trazer um contraponto às lógicas do mundo moderno, assunto sobre o qual nos dedicamos no próximo item.

3. A busca pela descolonização via interculturalidade crítica Vivemos o momento das palavras politicamente corretas. Hoje não se admitem, de sã consciência, termos, expressões excludentes ou depreciativas para designar grupos, pessoas ou experiências humanas. Dentre estas palavras politicamente corretas está a interculturalidade. Propomo-nos, nessa parte do texto, pensar sobre algumas armadilhas presentes no uso acrítico da interculturalidade para designar o contato entre os diferentes. Tomando por base o processo de ‘higienização’ ao termo proposto pelo pensamento crítico latino-americanista, pretendemos definir o que entendemos por ele, uma vez que, por ser polissêmico, pode significar um conjunto de coisas, inclusive o que se pretende combater com o seu uso: o preconceito e a discriminação.

Mesmo que seja preciso, já de antemão, levar em conta a distância existente entre a fala e a ação, expressões como a interculturalidade, ao alojarem-se no imaginário social como designativas de condutas politicamente corretas, passam ao nível da normatividade, isto é, passam a fazer parte da moral, e atingem a construção de realidades. O intuito teórico que nos guia é fazer o exercício de tomar a interculturalidade como uma categoria analítica, como um instrumento de análise dos contatos estabelecidos entre os grupos humanos, mas também como projeto político, assim a percebendo enquanto atitude. Subsidiariamente, buscamos debater as bases de uma ética intercultural em um momento em que a globalização atinge a praticamente todas as gentes, deflagrando processos socioculturais os mais diversos nos âmbitos locais e que desembocam, por vezes, em crises morais23. É somente no

22

PORTO-GONSALVES, Carlos Walter. Da Geografia às Geo-grafias: Um mundo em busca de novas territorialidades. s/d. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/cecena/porto.pdf. Acesso 15/06/2012. p. 4. 23

CULLEN, Carlos. Fenomenología de la crisis moral. Buenos Aires: Castañeda, 1978.

âmbito de uma ética intercultural que se poderão realizar análises dos conflitos inter e intraculturais. Entendemos, como tese, que, concomitantemente ao estabelecimento de uma ética contextual, alicerçada nas especificidades, há que se buscar uma ética universalista, aberta, já que a globalização põe em contato grupos e pessoas com escalas valorativas bastante discordantes. Ao final, o desafio é um só: fazer com que a interculturalidade dê conta de, via compreensão do outro, minimizar as assimetrias entre grupos e pessoas, tanto na escala global quanto local.

Nossas análises partem da premissa de que a interculturalidade está sendo tomada como uma forma de resolver a crise moderna dos contatos entre as diferenças. As saídas encontradas para resolver essa crise são as mais diversas. No entanto, há que se pensar no escopo ideológico das opções tomadas, pois concordamos com Escobar que “la crisis moderna es una crisis de los modelos de pensamiento y las soluciones modernas, al menos bajo la globalización neoliberal, sólo agudizan los problemas”24. Isso nos leva diretamente à classificação dos tipos de interculturalidade em uso nas Ciências Sociais e Humanas.

O filósofo Fidel Tubino, da Universidad Católica del Perú, tem sido enfático ao afirmar que existe um uso do conceito de interculturalidade que não questiona as regras da lógica do modelo econômico neoliberal, por ele chamada de interculturalidade funcional. Esse uso deve ser contraposto pela interculturalidade enquanto projeto ético-político de ação transformativa e democracia radical. Ele chama a esse tipo de interculturalidade de interculturalidade crítica. A diferença entre o interculturalismo funcional e o crítico, segundo o autor, não é nominal, mas substantiva. Assim, na Bolívia, o interculturalismo funcional é chamado de interculturalismo neoliberal. No mundo anglo-saxão, o interculturalismo não seria outra coisa que o multiculturalismo da ação afirmativa e discriminação positiva. Em linhas gerais, no entanto, no interculturalismo funcional se buscaria promover o diálogo e a tolerância sem tocar nas causas da assimetria social e cultural vigentes. Por outro lado, no interculturalismo crítico, a busca de supressão dessas assimetrias daria a tônica à ação ético-política realizada através de métodos políticos não violentos. O pressuposto defendido pelo pensador é que não é possível o diálogo intercultural autêntico em ambientes com assimetria social e discriminação cultural. Assim, antes do diálogo, haveria de se pensar nas condições sociais, econômicas, políticas e culturais desse diálogo, para que não se caia na ideologia de um diálogo descontextualizado que favorece somente aos interesses criados pela civilização dominante. Daí, a necessidade do uso de um discurso de crítica social que dê visibilidade às causas de não diálogo. A interculturalidade crítica por ele defendida ficaria constituída nos seguintes termos. Embora longo, transcrevemos o conceito por ele proposto:

La Interculturalidad es, pues, una oferta ético-política de democracia inclusiva de la diversidad alternativa al carácter occidentalizante de la modernización social. No se trata de un anti-modernismo o de un pre-modernismo camuflado. La Interculturalidad como proyecto societal de democracia radical no es un antes sino un después de la Modernidad. Por ello, los filósofos que han reflexionado sobre el tema nos recuerdan que no hay que confundir la interculturalidad ni con el llamado nostálgico a un pasado idealizado que nunca existió (la

24

ESCOBAR, Arturo. Más allá del tercer mundo. Globalización y diferencia. Bogotá, Colômbia. 2005. p. 23-24.

utopía arcaica) ni con el rechazo maniqueo y en bloque a la Modernidad Occidental. Lo que se rechaza en la modernización es su sesgo homogeneizante y occidentalizador. Optar por la interculturalidad como proyecto societal es optar por ‘crear formas nuevas de modernidad’. Lo que está en juego y en discusión, entonces, es la posibilidad de crear y recrear la modernidad desde múltiples tradiciones

25.

A recriação da modernidade26 a que Tubino se refere estaria ligada à suplantação da situação de colonialidade vivenciada pela América ainda no presente. Em nossa percepção, se defendêssemos a interculturalidade sem considerarmos a maneira como a modernidade ocidental constitui e continua a constituir, epistemicamente, a América, estaríamos camuflando a realidade, pois o fim do colonialismo não significou a ruptura com as formas coloniais de dominação, aqui entendida como colonialidade.

O estudo da relação modernidade/colonialidade e diferença, realizado a partir de um grupo heterogêneo de pensadores latino-americanos e estadunidenses participantes do “Programa de Investigação de Modernidade/Colonialidade”, dedicados aos Estudos de Fronteira, pode embasar as análises que estamos realizando. Esse grupo tem produzido importantes análises desde o início do século XXI. Tomando elementos da Teologia e da Filosofia da Libertação, da Teoria da Dependência, dos Estudos Subalternos e Feministas, o grupo busca, no pensamento latino-americano, as vozes silenciadas pelo processo colonial, ao mesmo tempo em que traz uma crítica contundente à racionalidade moderna. Com isso, pretende intervir decisivamente na discursividade própria das ciências modernas para configurar outra geopolítica do conhecimento. De seus esforços, além de diversos textos em separado, surgiram duas obras que consideramos das mais evidenciadoras sobre o assunto: La colonialidad del saber, eurocentrismo y ciencias sociales, organizada por Edgardo Lander, e El giro decolonial, reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global, organizada por Santiago Castro-Gomez e Ramón Grosfogel.

25

TUBINO, Fidel. La interculturalidad crítica como proyecto ético-político. Encuentro continental de educadores agustinos, Lima, enero 24-28, 2005. In.: http://oala.villanova.edu/congresos/educacion/lima-ponen-02.html. Acesso em 08/06/2012. 26

“Historicamente, la modernidad tiene orígenes temporal y espacialmente identificados; el siglo XVII de la Europa del norte, alrededor de los procesos de la Reforma, la Ilustración y la Revolución Francesa. Estos processos cristalizaron al final del siglo XVIII y se consolidaron con la Revolución Industrial. Sociológicamente, la modernidad es caracterizada por ciertas instituciones, particularmente el Estado-nación, y por algunos rasgos básicos, tales como la reflexividad, la descontextualización de la vida social del contexto local y el distanciamiento espacio/tiempo, dado que relaciones entre ‘ausentes otros’ devienen más importantes que la interacción cara a cara (Giddens, 1990). Culturalmente, la modernidad es caracterizada en términos de la creciente apropiación de las hasta entonces dadas por sentadas competencias culturales, por formas de conocimiento experto asociadas al capital y a los aparatos administrativos del Estado – lo que Habermas (1987) describe como una creciente racionalización del mundo-vida . Filosóficamente, la modernidad implica la emergência de la noción de ‘Hombre’ como fundamento de todo conocimiento del mundo, separado de lo natural y lo divino (Foucault 1973; Heidegger, 1977). La modernidade es también vista en términos del triunfo de la metafísica, entendida como una tendencia – extendida desde Platón y algunos presocráticos hasta Descartes y los pensadores modernos, y criticada por Nietzsche y Heidegger entre otros –, que encuentra en la verdad lógica el fundamento para una teoría racional del mundo compuesto por cosas y seres cognoscibles y controlables. Vattimo (2000) enfatiza la lógica del desarrollo – la creencia en el perpetuo mejoramiento y superación – como crucial para la fundación filosófica del orden moderno” (ESCOBAR, 2005, Op. Cit., p. 25-26).

O livro La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, editado por Lander e publicado em Buenos Aires no ano de 2000, é fruto de um seminário organizado por Lander na Universidad Central de Venezuela, com o apoio da CLACSO, e debate a continuidade, na América Latina, do espírito colonial de dominação. De forma similar, no livro El giro decolonial, ao apresentar o termo ‘decolonialidade’ pretende-se transcender a suposição de diversos discursos acadêmicos e políticos segundo os quais, com o fim das administrações coloniais e com a formação dos Estados-Nação na periferia do sistema-mundo, vive-se agora em um mundo descolonizado e pós-colonial. Pelo contrário, considerando-se a divisão internacional do trabalho entre centros e periferias, assim como a hierarquização étnico-racial das populações, formada durante vários séculos pela expansão colonial europeia, houve a manutenção da organização social do colonialismo, procedendo-se à transformação do colonialismo moderno em colonialidade global, processo que certamente tem transformado as formas de dominação utilizadas pela modernidade, mas não a estrutura das relações centro-periferia em escala mundial. Decolonialidade é entendida como a segunda descolonização, já que a primeira teria sido incompleta por ter apenas caráter político-administrativo de rompimento com as metrópoles. Dentro da luta decolonial estariam contempladas mudanças nas relações raciais, étnicas, sexuais, epistêmicas, econômicas e de gênero. Seria uma descolonização epistêmica. No entanto, essas mudanças aconteceriam dentro de um processo de ressignificação de longo prazo27, no qual a educação teria grande importância.

Ao mesmo tempo em que vai além da teoria da dependência, esse grupo de teóricos sustenta a necessidade de uma crítica profunda ao eurocentrismo (logocentrismo), entendido como a variável cognitiva da colonialidade do poder28. Ao lado da colonialidade do saber29 e do poder, haveria uma colonialidade do ser30, formando uma estrutura triangular da colonialidade. A decolonialidade incidiria sobre estes três aspectos, através de uma resistência semiótica presente na episteme de fronteira, a qual incorporaria os conhecimentos subalternizados pelos processos de produção do conhecimento.

27

CASTRO-GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial, reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Siglo del Hombre Editores, Bogotá. 2007. p. 13 a 17. 28

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/Racionalida”. In: Perú Indígena, 29, 1991, 11-21; _______. “Raza”, “Etnia” y “Nación” en Mariátegui: Cuestiones Abiertas, In: ROLAND Morgues (org.), José Carlos Mariátegui y Europa: El Otro Aspecto del Descubrimiento. Lima, Perú: Empresa Editora Amauta S.A., 1993. 167-187; _______. La colonialidad del poder y la experiencia cultural latinoamericana, In; Roberto Briceño-León; Heinz R. Sonntag (orgs.), Pueblo, época y desarrollo: la sociología de América Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 1998. 139-155. De forma bastante sucinta, Escobar sintetiza a noção de colonialidade do poder desenvolvida por Quijano: “La colonialidad del poder es entendida como un modelo hegemónico global de poder instaurado desde la conquista que articula raza y trabajo, espacio y gentes, de acuerdo con las necesidades del capital y para el beneficio de los blancos europeos”. (ESCOBAR, 2005, Op. Cit., p. 35) 29

Existiria um saber universal, um corpo de conhecimentos-padrão (ciências) a partir dos quais se podem analisar e detectar as carências, os atrasos, os freios e impactos perversos que se dão como produto do primitivo ou o tradicional em todas as outras sociedades (LANDER, Edgardo, 2005, Op. Cit.). 30

Igualmente é de Escobar a síntese do que Nelson Maldonado-Torres entende por colonialidade do ser: “La colonialidad del ser, como la dimensión ontológica de la colonialidad, en ambos lados del encuentro; la colonialidad del ser apunta hacia el "exceso ontológico" que ocurre cuando seres particulares se imponen sobre otros y, además, encara críticamente la efectividad de los discursos con los cuales el otro responde a la supresión como un resultado del encuentro”. (Idem, ibidem)

Baseando-nos nesse argumento, defendemos que a interculturalidade torna-se retórica se não considerar a ética colonial que gera as assimetrias entre os grupos sociais tanto em nível mundial (divisão social e racial do trabalho) quanto em níveis locais (subalternização de pessoas e grupos de minorias sociais). A interculturalidade somente seria plena se acompanhada do fim do “racismo epistêmico” que grassa nos ambientes acadêmicos, mas também nas políticas dos estados nacionais direcionadas às minorias. Embora se refira ao espaço norte-americano, a análise abaixo proposta por Grosfogel é elucidativa de um fenômeno bastante amplo no cenário mundial:

El racismo a nivel social, político y económico es mucho más reconocido y visible que el racismo epistemológico. Este último opera privilegiando las políticas identitarias (identity politics) de los blancos occidentales, es decir, la tradición de pensamiento y pensadores de los hombres occidentales (casi nunca incluye las mujeres) es considerada como la única legítima para la producción de conocimientos y como la única con capacidad de acceder a la «universalidad» y la «verdad». El racismo epistémico considera los conocimientos no-occidentales como inferiores a los conocimientos occidentales

31.

Grosfoguel parte do pressuposto de que os paradigmas eurocêntricos hegemônicos que ao longo dos últimos quinhentos anos inspiraram a filosofia e as ciências ocidentais do sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/ moderno pretendem assumir um ponto de vista universalista, neutro e objetivo, apesar de serem expressões de conhecimentos locais da Europa que conseguiram se impor como verdade em grandes extensões territoriais, fazendo-se passar por conhecimentos universais, desideologizados e, portanto, científicos. Para o pensador, é difícil escapar às classificações e hierarquizações de classe, sexuais, de gênero, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais do referido sistema-mundo. Assim, “ao esconder o lugar do sujeito da enunciação, a dominação e a expansão coloniais europeias/euro-americanas conseguiram construir por todo o globo uma hierarquia de conhecimento superior e inferior e, consequentemente, de povos superiores e inferiores”32.

Por considerar as variáveis políticas envolvidas nos diálogos entre as culturas é que pensamos que a interculturalidade efetiva poderia ser entendida, seguindo a percepção de Escobar, como "un diálogo de culturas en contextos de poder"33. Não se trata, no entanto, de um simples diálogo entre culturas, mas aquele que acontece em um contexto específico de poder. Por outro lado, não existe interculturalidade efetiva quando não há “un abrirse a ser impregnado y transformado por el outro”34. Interculturalidade de uma só via, não é interculturalidade, mas discriminação e exclusão.

Em termos teóricos, o que se busca é o rompimento da objetificação do outro: “La epistemologia eurocêntrica se caracteriza no solamente por privilegiar um canon de pensamento occidental sino también por estudiar al ‘outro’ como objeto y no como sujeto que produce conocimientos”35. Acompanha este movimento o cuidado para que a interculturalidade não se torne um argumento a fim de que as identidades fechem-

31

GROSFOGUEL, Ramón. Los dilemas de los estudios étnicos estadounidenses: multiculturalismo identitario, colonización disciplinaria y epistemologías decoloniales. Revista Universitas Humanística, pp: 35-47 Bogotá – Colombia no. 63 enero-junio de 2007. p. 38. 32

Idem, p. 47. 33

Idem, p. 94. 34

Idem, ibidem. 35

Idem, p. 37.

se sobre si mesmas, celebrando sua própria identidade, mirando seu próprio umbigo, mantendo intactas as hierarquias etno/sociais presentes intra e extra grupos.

No campo da ética, portanto das práticas sociais, um projeto de interculturalidade que não se debruce sobre as diferenças culturais que justificam as desigualdades de classe e o não acesso aos bens culturais e econômicos produzidos pela humanidade, comporá, no máximo, a interculturalidade funcional. Cotejando essa percepção com as características da colonialidade acima expostas, a interculturalidade teria a seguinte matiz, na brilhante escrita de Catherine Walsh:

Más que la idea simple de interrelación (o comunicación, como generalmente se lo entiende em Canadá, Europa y EE.UU.), la interculturalidad señala y significa processos de construcción de un conocimiento otro, de una práctica política otra, de un poder social (y estatal) otro y de una sociedad otra; una forma otra de pensamiento relacionada con y contra la modernidad/colonialidad, y un paradigma otro que es pensado a través de la praxis política

36.

Mas, como a interculturalidade tem aparecido na retórica da Educação Escolar Indígena?

4. A retórica da interculturalidade na escola diferenciada Nos debates iniciados a partir da década de 1970,37 elaboraram-se discursos

que pretenderam solucionar as diferenças culturais, pautados no respeito e na valorização da diversidade. Nesse sentido, a escola surge como palco de muitos desses debates, tanto pela variedade de temas que ela permite abarcar, quanto pela potencialização de soluções que as discussões pretendem atingir. Percebemos assim, a criação e a alimentação de uma retórica em torno da escola diferenciada38 que se apresenta como proporcionadora de uma educação mais alinhada à especificidade, de qualidade e de respeito, enfim, como um espaço intercultural. Mas o que caracteriza, de fato, essa escola diferenciada?39 Afinal, não é toda a escola que deveria ser diferenciada das demais, não é toda escola que é específica e única, “uma vez que, por mais semelhanças de situação que possam existir entre duas comunidades e duas escolas [...] cada comunidade é única, com especificidades e com uma história

36

WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder Un pensamiento y posicionamiento “otro” desde la diferencia colonial. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramón. Op. Cit., 2007. p. 47. 37

A preocupação com a interculturalidade está presente nas políticas educacionais que normatizam as escolas indígenas, não sendo uma prerrogativa apenas no Brasil. Na América Latina, diferentes documentos proclamam essa preocupação. Como exemplo, citamos a proposta de Direção Nacional de Educação Intercultural Bilíngüe do Equador (Dineib) e a lei da Academia das Línguas Maias, da Guatemala. No Brasil, os movimentos que defendiam uma educação voltada a uma “cultura popular” e consequentemente a uma “educação popular” específica e diferenciada, contribuíram para que se valorizassem elementos culturais de diferentes grupos. Já nos anos de 1950 e 1960, os Centros Populares de Cultura, CPC, movimento ligado à União Nacional dos Estudantes UNE, e ao Movimento de Educação de Base MEB, defendiam a educação através da arte popular. Contudo, depois do Golpe Militar de 1964, esses grupos foram suprimidos e vão retornar com força no final da década de 70, com as crescentes lutas sindicais dos anos 80. 38

KNAPP, Cássio. Retórica da educação escolar indígena: entre o mesmo e o diferente. Dissertação (Mestrado em História) UFGD, Dourados 2011. 39

Para uma discussão sobre a não concretização dessa escola que se pretende diferenciada, ver o capítulo “Por que a escola que sonhamos não é a escola que vivemos? os desafios para a efetivação de uma educação escolar indígena específica e diferenciada”

particular”?40 Esse aspecto nos leva a pensar no caráter homogeneizador da retórica da educação diferenciada que não diferencia uma especificidade de outra, embora esse debate esteja presente na definição do que seja uma escola diferenciada.

O desejo da escolar diferenciada – pautada no direito, no respeito e na igualdade – surge como negação da escola presente até então. É dessa forma que o discurso que a sustenta nasce como inovador.

Em contraposição a uma escola que se constituía pela imposição do ensino da língua portuguesa, pelo acesso à cultura nacional e pela perspectiva da integração é que se molda um outro modelo de como deveria ser a nova escola indígena, caracterizada como uma escola comunitária (na qual a comunidade indígena deveria ter papel preponderante), diferenciada (das demais escolas brasileiras), específica (própria a cada grupo indígena onde fosse instalada), intercultural (no estabelecimento de um diálogo entre conhecimentos universais e indígenas) e bilíngue (com a consequente valorização das línguas maternas e não só de acesso à língua nacional)

41.

Esse modelo regeu o discurso da escola diferenciada, e está presente na legislação que a institui e nos processos posteriores de sua normatização, conquanto os modelos de escolarização missionária e de uma escola civilizadora ficaram ultrapassados. Buscava-se, com isso, superar a retórica da escola que pretendia salvar as sociedades indígenas. No caso das escolas indígenas, essa retórica se apoiou em três premissas fundamentais: a primeira, no apoio do Estado à garantia de uma política diferenciada, não mais ancorada na tutela e no assistencialismo, “mas em novos procedimentos normativos e administrativos”42; a segunda, no combate ao caráter religioso do ensino escolar indígena, também garantido na Constituição Federal de 1988; e a terceira, na garantia do protagonismo indígena nas escolas, com direito à formação diferenciada para que se efetuasse a troca de missionários ou professores não-indígenas por professores indígenas habilitados.

A retórica sobre a escola indígena diferenciada se fortalece em argumentos que estão do lado de fora da escola. Ao observar as escolas indígenas, nota-se que o discurso sobre a escola diferenciada, presente no currículo ou em muitos de seus projetos político pedagógicos, acaba por folclorizar a cultura indígena.

Observei que, na maior parte das vezes, o que é chamado de “apropriação” seria na verdade uma adaptação do modelo escolar convencional ao que se nomeia “cultura indígena”. Os professores indígenas são estimulados a utilizar “elementos de sua cultura” nas atividades escolares, o que seria, na prática, partir sempre de seus rituais, línguas, meio ambiente, etc. como na forma de contextualizar o conteúdo que deve ser passado aos alunos

43.

Enfoques baseados na transposição dos conteúdos escolares tradicionais para os alunos indígenas em nada, ou em muito pouco, transformam a educação em diferenciada. Percebemos que uma forma de conceber a educação diferenciada seria

40

D’ANGELIS, Wilmar R. Ensino Conteudístico na Escola Indígena: Atitudes indiferenciadas na escola “diferenciada”. Digital, 2007, p. 38. 41

GRUPIONI, Luís Donisete B. Olhar Longe, Porque o Futuro é Longe Cultura, Escola e Professores Indígenas no Brasil. Tese de doutorado em Antropologia Social. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2008. p. 37. 42

Idem, p. 38. 43

Colet apud D’Angelis, 2007, Op. Cit., p. 4.

partir, na composição do currículo, do que cada comunidade compreende como importante para sua educação escolar, em função dos projetos étnicos de futuro, mas também o que entende por educação no sentido amplo da palavra. O que nos move a tal expectativa é que tanto a educação escolar quanto a educação no sentido de aprendizagem de valores e práticas sociais são historicamente produzidas pela humanidade. “Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram”44. Seguindo esse pensamento, Brandão nos mostra que a educação existe inclusive onde não há escola. O desafio é, na escola, fazer esses dois tipos de educação dialogarem entre si, pois não há educação escolar indígena diferenciada se ela não dialogar com a educação indígena. Quando se pensa em valorizar os processos próprios de aprendizagem é disso que se está tratando.

A relação entre ensinar e aprender está ligada a um conjunto de símbolos (signos e significados) que define a vida em comunidade, e que é específico e marca a diferença de cada grupo. Esse processo gera a identificação entre os pares, resultando na construção do compartilhamento do cotidiano e na socialização dos valores da comunidade. Ele indica, ao mesmo tempo, os caminhos para tornar a aprendizagem escolar significativa para os estudantes.

Na escola indígena ocorrem encontros de diferentes ‘educações’: escolar e não-escolar. A escola ensina, assim, tanto conteúdos do mundo letrado quanto da ética do contexto onde ela está inserida (é isso que a torna um espaço privilegiado para ensinar o modo de ser não indígena, ou o seu contrário). A escola vem a ser também um espaço do encontro entre diferentes – diferentes pessoas, diferentes projetos de futuro, diferentes intencionalidades – mas também “é essencialmente um espaço de relações grupais”45. Disso decorre o dilema sempre presente na escola como um todo, mas principalmente na indígena:

Somos todos iguais ou somos todos diferentes? Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes? Houve um tempo que a resposta se abrigava segura de si no primeiro termo da disjuntiva. Já faz um quarto de século, porém, que a resposta se deslocou. A começar da segunda metade dos anos 70, passamos a nos ver envoltos numa atmosfera cultural e ideológica inteiramente nova, na qual parece generalizar-se, em ritmo acelerado e perturbador, a consciência de que nós, os humanos, somos diferentes de fato [...], mas somos também diferentes de direito

46.

Portanto, a escola é um espaço constituído de múltiplas diferenças onde se estabelecem relações de poder e de interesse. Levando isso em consideração, “a escola constitui-se em território de enfrentamentos invisíveis, onde as diferenças são marcadas por aspectos visíveis”47. Logo, podemos afirmar que a diferença também na escola se constrói sobre as tensões do contato entre indígenas e não-indígenas. Assim, ela se torna “uma instituição privilegiada, na medida em que possibilita o contato

44

BRANDÃO, Carlos. Rodrigues. A Educação como Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 9-10. 45

DAYRELL, Juarez. Escola como espaço sociocultural. In: DAYRELL, J. (org.) Múltiplos Olhares sobre Educação e Cultura. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. p. 148. 46

PIERUCCI, Antonio Flavio. Ciladas da Diferença. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 7. 47

FLEURI Reinaldo Matias. Cultura uma categoria plural. In: Intercultura: estudos emergentes. p. 7-18, Ijuí: Editora Unijuí, 2001. p. 13.

entre atores com diferentes visões de mundo, podendo promover o seu encontro e a troca de significados e vivências”48.

A escola indígena se configura como um espaço para a socialização do aluno na vida em comunidade, mas também um espaço de troca de significados e de interação com outras culturas. Ela se presta ao papel de ser um local onde as diferenças emergem, mas também onde as especificidades desaparecem. É nesse sentido que é preciso que se tenha cuidado para que a escola indígena não se torne apenas uma ferramenta de inclusão para a homogeneização.

O simples argumento de que escola é diferenciada não garante a especificidade, tampouco que o fim último a se alcançar seja a alteridade indígena. A opção por uma escola que valoriza a especificidade do povo ao qual ela se destina, de forma a possibilitar a desconstrução democrática da hierarquia existente entre o conhecimento indígena e não indígena, seria um bom começo para a depuração da retórica da escola diferenciada. Nesse mesmo sentido, é preciso que a escola compreenda que os currículos e os projetos pedagógicos devem ser concebidos a partir do contexto e da construção histórica e social das comunidades, de suas especificidades em relação ao mundo e ao seu lugar, de como elas se enxergam e se definem, da maneira como se compreendem e querem se apresentar para o mundo, para o outro e para si mesmas. Se a escola não interpretar isso, será incapaz de se conceber (como se pretende) como diferenciada. Em outras palavras, ela somente será diferenciada se conseguir interpretar a realidade social na qual os indígenas e os não-indígenas estão imersos, e em contato, e transformar isso em currículo.

Na escola indígena estão presentes conhecimentos e experiências de vida das mais diferentes matizes e matrizes. O status que esses conhecimentos e experiências possuem – uns em relação aos outros – acabam gerando um terceiro espaço, o da interculturalidade. O peso que conhecimentos e experiências diferentes possuem é o que define que tipo de interculturalidade se pratica na escola. No plano ideal, a educação intercultural visa a desenvolver práticas pedagógicas que reconheçam, valorizem e respeitem outros grupos culturais, mas que também permita a afirmação das identidades culturais. Pensada a partir da interculturalidade crítica, esse tipo de educação deveria visar à busca de preservar as identidades culturais de forma não eurocêntrica, tampouco centrada somente na cultura indígena, possibilitando a troca de experiências e o enriquecimento recíproco no campo dos saberes humanos.

Acreditamos, no entanto, que apenas o mero contato dos saberes de dois grupos culturalmente diferentes não propiciará a interculturalidade. Pelo contrário, é preciso que haja uma revisão crítica dos métodos e dos conteúdos desse contato. O que precisa ser dito é que se faz necessário criarem-se condições para garantir a igualdade dos direitos em todos os domínios da vida e, ao mesmo tempo, garantir o reconhecimento da especificidade de cada cultura. Ao falar de sociedades indígenas, faz-se necessário criar um ambiente que assegure a alteridade não somente de cada povo, mas de cada localidade, tendo como ponto de partida a especificidade da

48

DAUSTER, Tânia. Construindo Pontes – a prática etnográfica e o campo da educação. In: DAYRELL, J. (org.). Op. Cit., 2001. p. 70.

organização social de cada grupo indígena, e de como cria/inventa49 e transforma, a partir de seus segmentos, suas formas próprias de pensar o mundo.

É preciso que se reconheça que, dentro de um agrupamento indígena, a escola é apenas um dos aspectos da vida social. A escola “se instala dentro de um domínio propriamente humano de trocas: de símbolos, de intenções, de padrões de cultura e de relações de poder”50. Não se pode pretender, por isso, que ela responda por toda a complexidade dos contatos que os indígenas estabelecem entre si e com o entorno social.

Acreditamos que a escola pode ser apropriada pelas sociedades indígenas, e, através de uma ação política, ser utilizada como ferramenta para a construção de um mundo diferenciado, pautado em lógicas outras, como definimos no item anterior. Isso nos aproxima da interculturalidade crítica que considera não apenas o processo de contato entre culturas, mas também as relações econômicas, políticas e sociais de poder51 nele envolvidas. Nesse sentido, concordamos com Tubino que “la interculturalidad no es un concepto, es una manera de comportarse. No es una categoría teórica, es una propuesta ética. Más que una idea es una actitud”52.

Para que evitemos cair na interculturalidade funcional, é necessário que se diga que a interculturalidade também pode ser usada no que compreendemos ser sua face perversa. Na Europa, alguns programas de educação intercultural são pensados para os imigrantes de ex-colônias no sentido de integrá-los à sociedade envolvente53. Por sua vez, na América Latina, o conceito de interculturalidade é pensado prioritariamente para dar uma resposta à educação das comunidades tradicionais, para que se possa realizar uma abordagem pedagógica de educação bi-multilíngue que procura garantir o reconhecimento de uma identidade diferenciada.

Infelizmente, a realidade das escolas diferenciadas leva-nos a pensá-las no âmbito da interculturalidade funcional, justamente por cumprir programas de estudo propostos pelos sistemas de ensino, sem questionar suas bases epistemológicas, tampouco as causas das assimetrias sociais. Para romper com essa realidade, seria necessário colocar em suspenso a própria racionalidade científica ocidental, a mesma que dá suporte à organização dos currículos escolares. A única forma de relativizar esse modelo de racionalidade, que supõe a “não existência” dos grupos indígenas, é através da sociologia das ausências e das emergências, propostas por Santos. O objetivo principal dessa sociologia das ausências é, efetivamente, converter fatores impossíveis em possíveis, convertendo as ausências em presenças.

Só assim será possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje. Por outras palavras, só

49

Invenção é usada aqui no sentido de “um conjunto de práticas reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, numa continuidade em relação ao passado” (HOBSBAWM, Eric. Introdução: A Invenção das Tradições, In: HOBSBAWM, Eric & RANGER T. (Orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 9). 50

BRANDÃO, Carlos. Rodrigues. O que é Educação. 22. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 14. 51

NOBRE Domingos. Uma Pedagogia Indígena Guarani Numa Escola, Pra Quê? Campinas - SP: Curt Nimuendaju, 2009. p. 19. 52

TUBINO, Fidel. Del Interculturalismo Funcional al Interculturalismo Crítico. 2004. Disponível em: <http://www.pucp.edu.pe/ridei/pdfs/inter_funcional.pdf>. Acesso 10/05/2012. p. 2. 53

Idem, p. 3.

assim será possível evitar o gigantesco desperdício da experiência de que sofremos hoje em dia. Para expandir o presente, proponho uma sociologia das ausências; para contrair o futuro, uma sociologia das emergências [...] Em vez de uma teoria geral, proponho o trabalho de tradução, um procedimento capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis sem destruir a sua identidade

54.

Pelo menos no seu aspecto ideológico, naquilo que se deseja, é assim que compreendemos a prática da interculturalidade. De todo modo, devemos considerar também as importantes análises e abordagens da antropologia que vão contra a forma única de pensar o “sistema mundo”, fora do qual não haveria possibilidade de sobrevivência por populações diferenciadas. Essas novas abordagens enfatizam a capacidade de culturas e de tradições cultivarem seu próprio saber em diferentes escalas de relações sociais, mesmo em ambientes totalmente adversos, tendo a capacidade de manter seus valores e práticas sociais.

Como referência dessa perspectiva antropológica, poderíamos citar o trabalho de Sahlins que demonstra que as relações de trabalho de moradores do Pacífico são diferentes das relações de trabalho em outras partes do mundo55. Sahlins defende que diferentes culturas têm modelos próprios de ação, consciência de determinação histórica, ou que em diferentes culturas podemos encontrar racionalidades diferentes56. Dessa forma, é lógico afirmar que cada cultura expressa sua racionalidade por meio de representações diversas. Essas representações levam à elaboração de maneiras diferentes de perceber o mundo e a si, as quais podem não parecer ‘racionais’ à vista de seus observadores externos.

A escola não pode furtar-se de considerar que estabelece pontes entre as pessoas de um mesmo grupo social, e deste grupo com outros grupos. Contudo, no caso das populações indígenas, é preciso que se perceba que essas relações não são exclusivas do contexto do presente. O contato sempre existiu, as populações indígenas sempre estiveram em contato umas com as outras mesmo antes dos mais de cinco séculos de presença europeia na América. “A ideia central desse argumento é que as diferenças culturais e étnicas emergem justamente em virtude do contato e não apesar dele”57.

Mesmo que as fronteiras estejam, no presente, mais fluidas, e de alguma forma mais próximas ou latentes, é preciso ressaltar que as relações culturais continuarão se transformando e se ressignificando ao longo dos tempos. A escola, ao considerar a historicidade dessas relações, em uma perspectiva intercultural, auxilia as pessoas a situarem-se criticamente no mundo globalizado (para muitos, glocalizado):

Cabe atualmente à investigação antropológica explorar os processos de produção da diferença num mundo interconectado cultural, social e economicamente e com espaços interdependentes. Em outros termos, a proposta é entender a diferença cultural como

54

SANTOS, apud COTA, Maria das Graças. Os Tupinikim e a questão da luta pela terra. In. Revista Dimensões. Vitória, n. 21. 2008. p. 86-87. 55

TASSINARI, Antonela. Maria. Da Civilização a Tradição: Os projetos de escola entre os índios do Uaçá. In: Antropologia, História e Educação: A questão indígena e a escola. LOPES da SILVA, A. ; FERREIRA, M. K. L. (Orgs.). São Paulo: Global, 2001. 56

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 62. 57

Tassinari, 2001, Op. Cit., p. 54.

produto de processos históricos compartilhados que diferencia o mundo bem como o conecta

58.

A escola necessita estar atenta a isso, pois ela é um espaço de intercâmbio. Isso, contudo, não a isenta de gerar resistência tanto das sociedades indígenas quanto não indígenas, dependendo da função social que se impõe. Esse aspecto foi considerado ao efetuarmos, na Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu, a revisão e a reestruturação do seu projeto pedagógico.

5. A Licenciatura Intercultural Indígena e a Interculturalidade Não é porque a Licenciatura Intercultural Indígena e a Unidade Acadêmica da

Universidade Federal da Grande Dourados que a hospeda, a Faculdade Intercultural Indígena, têm o designativo intercultural em seus nomes que isso as tornem interculturais de fato. Por termos chegado à conclusão de que a interculturalidade é menos constatação do que busca, sentido, direção, é que passamos por um processo de estudos que visavam à depuração do que entendíamos e praticávamos como interculturalidade. Na verdade, conceitos como esse, quando se tornam expressão de um ideal, e são defendidos por pessoas e grupos com formações teóricas e interesses sociais tão díspares, tendem a se tornar polissêmicos e a se esvaziarem de sentido, necessitando sempre que se diga do que se está falando quando é evocado para indicar a qualidade de algo, de uma ação. Nesse caso, uma ação educativa intercultural, supostamente, seria mais bem intencionada e construiria melhor a dignidade humana do que uma ação do tipo monocultural. Vejamos como isso se apresentou no interior da Licenciatura Intercultural Indígena.

A crítica que fizemos do caráter monocultural e colonialista da educação escolar dirigida aos indígenas encontrou eco na constatação de que tínhamos muita dificuldade em fazer dialogar, de fato, na formação de professores indígenas, os saberes indígenas, os quais foram historicamente negados pela lógica ocidental da colonialidade, e os saberes academizados – dizemos saberes academizados, pois nenhum saber é, de antemão, acadêmico. Eles adquirem esse status quando chancelados pelos trâmites acadêmicos, os quais não são neutros do ponto de vista político. Isso nos levou, na depuração que realizamos do conceito de interculturalidade, e na opção teórica e ética por seu viés crítico, à avaliação do currículo que vínhamos praticando na Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu.

O Curso, fruto de um esforço de indígenas e indigenistas preocupados em construir uma educação escolar de fato indígena, desde seu início, em 2006, seguiu caminhos muito diversos se comparado com os demais cursos indiferenciados da universidade: seu corpo discente é totalmente composto por indígenas; acontece em tempos e espaços diversos; possui calendário diferente do restante da universidade; valoriza e intenta uma aproximação aos movimentos sociais indígenas e indigenistas. Em seu cotidiano, realiza formação de formadores, através de estudos coletivos; efetua preparação e avaliação coletiva das etapas acontecidas na universidade e nas terras indígenas; possui, durante a estada dos acadêmicos na universidade, uma reunião semanal, organizada pelos acadêmicos, na qual são discutidos assuntos ligados

58

Idem, p. 55.

à realidade indígena, chamada de Noite Política, e um encontro artístico-cultural, chamado de Noite Cultural. Todos os dias a comunidade acadêmica é abençoada pelos mestres tradicionais indígenas, com um ritual pela manhã e outro ao final do dia. Os acadêmicos recebem atendimento pedagógico regular nas terras indígenas. Em todos os Componentes Curriculares se faz um esforço para valorizar os saberes indígenas, sem contanto prescindir dos saberes academizados.

Pelo acima exposto, em tese, não seria necessário mudar em nada o curso, já que ele tem, em tese, sido bastante fiel ao projeto étnico inicial. Os problemas começaram a aparecer, no entanto, quando a visita da comissão do INEP (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) foi anunciada com a finalidade de reconhecimento do curso. Naquele momento, toda a diferença necessitava de ser institucionalizada, via regularização dos procedimentos e organização documental. No mesmo período, realizamos, juntos a acadêmicos, ex-acadêmicos, docentes, servidores técnico-administrativos e Movimento dos Professores Guarani e Kaiowá, uma avaliação contundente das práticas realizadas no curso e percebemos um gradativo distanciamento da proposta inicial, devido à mudança de equipe docente e de perfil dos ingressantes, mas também devido à percepção de que a primeira proposta de curso possuía muitas lacunas, principalmente se considerada a relação entre a formação de professores em nível superior e a realidade da escola básica indígena.

A (re)adequação do projeto do curso aos contextos apresentados levou a que nos reaproximássemos da leitura de mundo inicial, efetuando um aggiornamento da proposta, e isso nos conduziu à discussão sobre a necessidade constante de mantermos vigilância quanto ao espírito de colonialidade embutido sorrateiramente no currículo, inclusive dos cursos diferenciados, fazendo com que se pratiquem, não raras vezes, interculturalidade funcional. Por conta disso, investimos nos estudos sobre a teoria da descolonização do saber, do poder e do ser e nas formas de aplicá-los, ou não, no curso.

Os estudos sobre a descolonização desembocaram na constatação de que a formação de professores indígenas não pode abandonar o desejo de colocar em movimento projetos éticos transformativos59. E é aí que surge uma contradição quando consideramos o motivo que levam os Guarani e os Kaiowá à escola. Aqueles que defendem uma educação não indígena como forma de auxiliar os indígenas na impostação frente ao mercado de trabalho, de integração econômica sem questionamento de suas bases, buscam, por certo, conscientemente, a mudança; mas, aqueles que defendem uma educação diferenciada, como sinônimo de qualidade social, têm demonstrado que não é a mudança de si ou de sua cultura que buscam, mas a mudança das estruturas sociais que impedem a vivência plena daquilo que os Guarani e os Kaiowá chamam de verdadeiro modo de ser, o avá reko (ou ainda o modo virtuoso de ser, o teko katu). Por conta disso, fizemos a (re)opção pela transversalização em todos os Componentes Curriculares de estudos sobre as assimetrias sociais que geram as desigualdades. Aliás, esse é o pressuposto para entender os três eixos que sustentam e perpassam todo o currículo da Licenciatura Intercultural Indígena: o teko (cultura, modo de ser), o tekoha (espaço, território guaranizado) e a e’ (língua).

A centralização dos debates em torno da descolonização do currículo fez com que aprofundássemos a noção de alternância, atitude praxiológica que toma o 59

D’Angelis, 2012, Op. Cit. p. 86.

indígena tanto como ponto de partida como ponto de chegada do currículo. Isso não se dá, no entanto, apenas na perspectiva teórica. O fim último que se almeja é a intervenção social e pedagógica dos acadêmicos indígenas nos espaços de onde provêm. Pensamos que não se pode abdicar dessa intervenção a fim de que o curso não permaneça apenas no campo teórico, não conseguindo imergir na prática. Se assim não for, corremos o risco de estudarmos a transformação das estruturas sociais sem contanto pensar em estratégias para mudá-las.

Para dar conta de pensar consequentemente a realidade na qual os indígenas estão inseridos, a matriz curricular dedica parte do tempo inicial do curso para um mergulho qualificado do acadêmico indígena na sua cultura, pois descobrimos que boa parte deles, na chegada, está bastante distante das tradições e dos projetos indígenas. As causas são diversas, mas as mais comuns são: o tipo de formação que tiveram nas escolas; a participação em algumas igrejas cristãs que demonizam as culturas indígenas e que estabelecem padrões de relacionamento sociais alheios ao universo guarani e kaiowá; e as relações voltadas para o mundo externo das terras indígenas (de trabalho, políticas, sociais). Porque os indígenas são fruto das relações históricas que têm estabelecido com o entorno colonialista, os acadêmicos são motivados, desde o início do Curso, a expulsarem de dentro de si o colonizador. Quem tem ajudado muito nessa tarefa são os mestres tradicionais, as lideranças e o Movimento dos Professores Guarani e Kaiowá que participam do cotidiano da Licenciatura.

Outro aspecto importante a ser destacado quanto à descolonização do currículo, é a ênfase na valorização dos saberes indígenas e de seus especialistas no cotidiano acadêmico através do incentivo à pratica do rituais indígenas, à participação dos mestres tradicionais nas aulas, nas pesquisas que os acadêmicos fazem junto a eles, seja para buscar entender os fenômenos próprios da cultura, seja para pedir auxílio no planejamento de suas atividades, à valorização da língua indígena através da definição de uma política linguística.

Quanto à política linguística, a entendemos como um conjunto de escolhas conscientes referentes às relações entre língua(s) e vida social60. E, para dar conta da diversidade linguística presente no Cone Sul do Estado de Mato Grosso do Sul, em resposta ao desafio de considerar a língua indígena como um dos eixos do curso, optou-se em investir na língua Guarani como primeira língua e na língua portuguesa como segunda língua. Os desafios que o corpo docente possui nesse sentido é o aprendizado da língua dos acadêmicos, embora quatro docentes e um servidor técnico administrativo sejam falantes das línguas indígenas (Guarani e Kaiowá).

Uma ação visando a dar resposta à política linguística pela qual optamos foi pensarmos a colocação de Componentes Curriculares na matriz do Curso que desenvolvam competências e habilidades comunicativas orais e escritas na língua Guarani e na língua portuguesa, além da criação de Componentes Curriculares que possibilitem o aperfeiçoamento do uso oral e escrito da língua portuguesa, com ênfase em métodos e materiais específicos para o seu ensino como segunda língua. Outras ações no sentido da valorização da língua indígena é o investimento no Processo Seletivo específico e diferenciado dos candidatos para a Licenciatura, valorizando a língua materna, o reconhecimento, ao lado da língua Guarani, de uma língua Kaiowá, dando sentido ao registro do que se desenvolve em sala de aula, em termos de

60

CALVET, L.J. Les politiques Linguistiques. Col. Que sais-je? 3.075. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.

conteúdos e discussões, tornando funcional o que chamamos de Memorial, tanto em português quanto na língua indígena, valorizando o uso da língua indígena nos momentos de reuniões propostas pelos acadêmicos para discutir os mais variados assuntos.

Outro aspecto que destacamos com relação à descolonização do currículo acadêmico e à interculturalidade crítica é a busca do que sejam os processos próprios de aprendizagem dos Guarani e dos Kaiowá. A definição do que seja a pedagogia guarani e kaiowá tem sido uma das demandas sobre a qual temos nos debruçado no Curso. A intenção é encontrar a melhor metodologia para ensinar, tanto no Curso de formação de professores quanto nas escolas de educação básica. Aquilo que os Kaiowá e os Guarani chamam de mosambyhy tem trazido boas perspectivas de avanço no entendimento dessa pedagogia. Pensado como o ato de conduzir, acompanhar, tomar pela mão, mostrando como se faz, essa prática indígena mostra que o ensino meramente teórico é de pouca valia para esses povos. Para eles, o professor somente ensina quando mostra como se faz. Como pensamos que a universidade nem sempre sabe como se faz, tampouco sabe o que é mais pertinente que se faça, temos dialogado muito para descobrirmos juntos os caminhos a trilharmos na formação dos docentes indígenas. Os critérios para a definição desses caminhos têm sido dados pelos projetos étnicos expressos pelos acadêmicos, mas principalmente pelo Movimento dos Professores Guarani e Kaiowá, entidade indígena que se dispõe a colocar em prática uma política cultural em defesa da tradicionalidade indígena em oposição ao movimento de homogeneização ocidental.

A defesa das práticas culturais indígenas, no Curso, não se dá, no entanto de forma acrítica. Esse é outro aspecto da interculturalidade pela qual optamos. Na verdade, indígenas e não indígenas se propõem, na Licenciatura Intercultural Indígena, a analisar criticamente as potencialidades e as fragilidades que todas as culturas possuem, inclusive as culturas indígenas. Com isso, visa-se a não romantização das culturas indígenas, tampouco a demonização automática de todos os aspectos das culturas que compõem o que chamamos de ocidente. Isso tem impactado o Curso no sentido positivo, pois a negociação de sentido é algo que se dá constantemente em nosso cotidiano. Ao nos debruçarmos sobre as virtudes e os vícios que todas as culturas possuem, o que procuramos é pensar a interculturalidade como um espaço de diálogo verdadeiro entre as culturas. Mesmo que consideremos as relações de poder envolvidas nesse diálogo, não podemos abdicar do senso crítico com relação a nós mesmos e ao outro, representado pelo diferente. A interculturalidade supõe a leitura crítica de ambos os lados, visando ao trânsito num espaço comum onde o respeito e o entendimento estejam presentes.

Para que não caiamos naquilo que queremos evitar, e assim reproduzirmos resultados inócuos para as discussões sobre a educação intercultural, no que se refere à proliferação de uma retórica que não consegue superar as ladainhas sobre as escola indígenas, optamos por desenvolver com os acadêmicos trabalhos que discorram sobre os principais conceitos que fundamentam os debates de Educação Escolar Indígena, pois percebemos que expressões como interculturalidade, bilinguismo, cultura, alteridade, diferença, identidade e memória precisam ser melhores compreendidas e interpretadas. Além disso, verifica-se que existe uma lacuna entre o que a antropologia compreende e a forma como traduz as exigências dos povos

indígenas, para a forma como pensam agentes públicos que não participam da elaboração de políticas públicas, mas são os encarregados da sua execução.

Compreender a alternância como constitutiva do processo de educação, nas Licenciaturas Interculturais para professores indígenas, é tarefa fundamental para desenvolver uma ação pedagógica que possibilite aos acadêmicos uma graduação que se faz em tempos e espaços diferentes. Isso permite que haja o entendimento de que o Curso se dá a partir da construção da prática reflexiva da diferença que, por sua vez, constrói essa perspectiva de formação. Além disso, essa opção de desenvolvimento do Curso possibilita ao acadêmico obter uma formação que se constrói em momentos para além sala, a partir das necessidades das comunidades na qual os alunos fazem parte.

Por fim, outro aspecto que consideramos dos mais sugestivos para demonstrar o envolvimento do curso com a supressão das assimetrias sociais, base da interculturalidade crítica, é a participação da comunidade educativa do curso nas causas dos povos Guarani e Kaiowá, principalmente aquelas que se direcionem à construção da dignidade humana. Por conta disso, aliamos as análises voltadas a entender as diferenças culturais, através dos estudos sobre as culturas, capitaneados principalmente pela Antropologia, com análises de classe. Na nossa percepção, as diferenças culturais dos indígenas com relação aos não indígenas não podem ser analisadas somente a partir da diferença em si mesma. As desigualdades de classe, quando apoiadas na diferença cultural, tem tido como resultados o ódio e a xenofobia, sentimentos tão comuns e que são direcionados aos indígenas brasileiros. A maneira de apoiar os indígenas em suas causas tem acontecido na forma como as assimetrias sociais são tratadas nos componentes curriculares, buscando entender as relações sociais que as criam, mas também na participação de discentes e docentes nas lutas que envolvem os povos Guarani e Kaiowá, principalmente aquelas ligadas aos problemas fundiários e de afronta à dignidade humana. 6. Considerações Finais As discussões que estabelecemos ao longo do texto levam-nos a cinco postulados, sintetizados nos seguintes tópicos: a) persiste, na América, uma assimetria epistemológica e social que impossibilita o diálogo intercultural efetivo com os povos indígenas, mas também com outras minorias sociais. Para nós, não existe qualquer possibilidade de diálogo intercultural em situação de assimetria. Quando dizemos que essa assimetria é ao mesmo tempo epistemológica e social, está evidente que há uma relação direta entre poder e saber hegemônicos. Socialmente relegados a status inferiores, as minorias têm também seus saberes diminuídos. Perverter a lógica da colonialidade do saber e do poder significa considerar que o processo sócio-histórico em meio ao qual os grupos subalternizados chegam ao presente também é assimétrico. Porém, a simples crítica, ou a mudança de perspectiva não basta para reparar o estrago da discriminação cultural historicamente constituída. A saída estaria condicionada a uma ética intercultural; b) se a sociedade colonial – e sua persistência no espírito de colonialidade – teve grande importância na construção social do imaginário sobre os grupos subalternizados e suas culturas, a opção pela interculturalidade crítica a põe em uma

posição privilegiada também para desconstruí-lo, praticando uma ética intercultural que dê conta de responder aos problemas que a própria civilização técnico-científica criou e que não dá conta de resolver; c) a interculturalidade não pode ser tomada apenas como contato entre culturas. Em situação de assimetria social e epistemológica, há que se pensar nas condições sociais que instituíram as desigualdades e as assentam na diversidade como justificativa para manutenção do sistema mundo que divide os espaços entre centros e periferias. Essa mesma regra é válida para pensar a diversidade dentro da diversidade, isto é, as culturas são respostas do ser humano aos problemas da existência. Todas possuem virtudes, mas também defeitos, e elaboram saberes que dão conta da existência localizada, mas podem também servir de alternativas para os problemas globais. De outra sorte, há que se ter cuidado ao tratar das culturas locais (indígenas ou não) tomando-as como espaços homogêneos, esquecendo-se que também elas são perpassadas de interesses de grupos internos e externos e que ao privilegiarem-se alguns aspectos culturais, faz-se opção política por determinados grupos; d) a escola, como qualquer outra instituição social, é um espaço que pode mascarar as desigualdades ao não se debruçar sobre os fundamentos de sua constituição enquanto aparato social de reprodução de sentidos e significados, que se tornaram hegemônicos por efeito das relações de dominação de povos e grupos que acontece desde o período colonial. A interculturalidade crítica é contra-hegemônica e incide na crítica da construção da sociedade e de suas instituições; e há, na Faculdade Intercultural Indígena, um esforço em descolonizar-se e ser, de fato,

um instrumento dos povos indígenas para construir a autonomia.