Interdisciplinaridade

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação Instituto de Física Instituto de Química PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO DE CIÊNCIAS MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM ENSINO DE CIÊNCIAS Interdisciplinaridade no Ensino Médio: desafios e potencialidades Jairo Gonçalves Carlos Brasília – DF Janeiro 2007

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Carlos

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  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA Decanato de Pesquisa e Ps-Graduao

    Instituto de Fsica Instituto de Qumica

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ENSINO DE CINCIAS MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM ENSINO DE CINCIAS

    Interdisciplinaridade no Ensino Mdio: desafios e potencialidades

    Jairo Gonalves Carlos

    Braslia DF

    Janeiro 2007

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA Decanato de Pesquisa e Ps-Graduao

    Instituto de Fsica Instituto de Qumica

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ENSINO DE CINCIAS MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM ENSINO DE CINCIAS

    Interdisciplinaridade no Ensino Mdio: desafios e potencialidades

    Jairo Gonalves Carlos

    Dissertao realizada sob orientao da Prof. Dr. Erika Zimmermann e apresentada banca examinadora como requisito parcial obteno do Ttulo de Mestre em Ensino de Cincias rea de Concentrao Ensino de Fsica, pelo Programa de Ps-Graduao em Ensino de Cincias da Universidade de Braslia.

    Braslia DF Janeiro 2007

  • FOLHA DE APROVAO

    JAIRO GONALVES CARLOS

    Interdisciplinaridade no Ensino Mdio: desafios e potencialidades

    Dissertao apresentada banca examinadora como requisito parcial obteno do Ttulo de Mestre em Ensino de Cincias rea de Concentrao Ensino de Fsica, pelo Programa de Ps-Graduao em Ensino de Cincias da Universidade de Braslia.

    Aprovada em 25 de janeiro de 2007

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Erika Zimmermann (Presidente)

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Roberto Ribeiro da Silva (Membro interno PPGEC/UnB)

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Cristiano Alberto Muniz (Membro externo FE/UnB)

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Wildson Luiz Pereira dos Santos (Suplente PPGEC/UnB)

  • Dedico este trabalho minha famlia, especialmente minha me, Ana Domingas, minha esposa, Lorena e nossa filha Isabella, pelo esforo, inspirao e cumplicidade durante todo esse tempo.

  • Agradecimentos

    Nossa eterna gratido primeiramente a Deus, pela concretizao deste sonho, e Prof. Dr. Erika Zimmermann pela pacincia e sabedoria com que nos orientou nesse trabalho.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Ensino de Cincias da Universidade de Braslia, pela iniciativa e coragem em tornar possvel esse Mestrado, lanando as bases para a ascenso de uma nova gerao de professores pesquisadores em Ensino de Cincias no Centro-Oeste. Em especial, ao coordenador do Programa de Ps-Graduao, Prof. Dr. Ricardo Gauche, pela compreenso e incentivo nos momentos mais crticos e ao Jnior, por sua prestimosidade.

    Aos nossos colegas do Mestrado Profissionalizante em Ensino de Cincias, pela amizade e incentivo.

    Aos companheiros de trabalho que acreditaram e colaboraram com a nossa pesquisa e, especialmente, aos professores que responderam ao questionrio. direo da escola pela receptividade e apoio pesquisa realizada na escola.

    Nossos agradecimentos tambm a todos que colaboraram de alguma forma, ou que acreditaram em nosso trabalho. Certamente so muitos cujos nomes no podemos citar aqui, mas que merecem igualmente o nosso reconhecimento e gratido.

  • Resumo

    Esse trabalho dedicado ao estudo da interdisciplinaridade no ensino mdio. O processo de pesquisa comea com uma reviso bibliogrfica do tema, com a inteno de identificar o conjunto de conceitos mais comuns na literatura, que constituir o referencial terico.

    Com o objetivo de examinar as concepes de interdisciplinaridade dos professores e como esse tipo de abordagem poderia ser implementada na escola, foi aplicado um questionrio a um grupo de professores do perodo noturno de uma escola pblica do Distrito Federal. O conjunto desses dados, associados a informaes sobre a organizao pedaggica e administrativa da escola pesquisada, permite a definio do contexto escolar que serve de referncia para uma discusso das dificuldades e barreiras a serem enfrentadas pela escola na busca pela interdisciplinaridade, alm de, a partir do referencial terico e do conhecimento do contexto da escola pesquisada e da percepo que os professores tm de toda a situao, apontar possveis caminhos e solues.

    A partir dos documentos coletados na escola e de documentos oficiais do Ministrio da Educao, realizou-se uma pesquisa documental e, assim, foi feita uma anlise de contedo, tanto das respostas dos professores aos questionrios quanto dos documentos.

    Para dar mais sentido nossa pesquisa, encerramos o presente trabalho propondo um conjunto de aes a serem tomadas visando tentativa de se estabelecer progressivamente uma nova dinmica pedaggica em que a interdisciplinaridade no seja meramente um fim, mas um meio para se atingir os objetivos educacionais de interesse para a escola pesquisada.

    Palavras-chave: interdisciplinaridade, ensino mdio, concepo de professores.

  • Abstract

    This work is dedicated to the study of the interdisciplinarity in high schools. The research process starts with a bibliographical revision of the subject, with the intention to identify the set of more common concepts in the literature, that will constitute the theoretical referencial.

    Beyond the bibliographical revision, the research counted on the application of questionnaire for a group of teachers of the nocturnal period of a public school of the Distrito Federal. The objective of such questionnaire was to inquire the conceptions of interdisciplinarity of the teachers and as such this approach could be implemented in the school, although all the difficulties. The set of these data, associated with the information on the pedagogical and administrative organization of the searched school, will allow the definition of a particular frame to school context that will serve of reference to argue the difficulties and barriers to be faced for the school in the search for the interdisciplinarity. The set of data allow us to point possible ways and solutions from the theoretical referencial and of the knowledge of the context of the searched school and from the perception that the teachers have of all the situation.

    The methodology used in the research was the documental analysis, because the documents was an widely used resource in this work. In respect to the method used in the analysis of the data gotten in this research, we opt to the analysis of content, because its one technique that makes possible a systematic and organized treatment of the data and its distribution in well defined categories.

    To give more sense to our research, we lock up the present work considering a set of action to be taken with the goal to establish gradually a new pedagogical dynamics where the interdisciplinarity is not mere an end, but a way to reach the educational objectives of interest for the searched school.

    Key-words: interdisciplinarity, high school, teachers conceptions.

  • Sumrio

    INTRODUO ...............................................................................................10

    1 APORTE TERICO .....................................................................................22

    1.1 Histria da interdisciplinaridade ......................................................24

    1.2 Concepes de Interdisciplinaridade ..............................................35

    1.2.1 Classificaes da interdisciplinaridade ..........................................42

    1.3 Interdisciplinaridade no ensino........................................................56

    1.4 Os desafios da prtica interdisciplinar nas escolas .......................70

    2 ABORDAGEM METODOLGICA....................................................................84

    2.1 Foco do Trabalho ..............................................................................87

    2.2 Questes de Pesquisa ......................................................................87

    2.3 Escolha Paradigmtica .....................................................................88

    2.4 Abordagem Qualitativa .....................................................................89

    2.5 Pesquisa Interpretativa .....................................................................90

    2.6 Coleta e anlise de dados.................................................................90

    2.6.1. Observao participante...............................................................90

    2.6.2 Questionrio ..................................................................................91

    2.6.3 Anlise documental .......................................................................93

    2.6.4 Anlise de contedo ......................................................................94

  • 2.6.5 Anlise textual qualitativa ..............................................................96

    2.7 As etapas da pesquisa ......................................................................99

    3 APRESENTAO E ANLISE DOS DADOS ....................................................102

    3.1 Caracterizao da escola pesquisada ...........................................103

    3.2 O projeto poltico-pedaggico da escola.......................................107

    3.3 As concepes de interdisciplinaridade dos professores ...........111

    4 UMA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR ...........................................................136

    4.1 Os objetivos da proposta interdisciplinar .....................................139

    4.2 O perfil e papel do coordenador.....................................................141

    4.3 Atividades pedaggicas a serem desenvolvidas ..........................144

    4.3.1. Familiarizao com a realidade escolar......................................144

    4.3.2. Definio e implementao de estratgias de ao....................145

    4.3.3. Contato com teorias de aprendizagem e propostas oficiais ........146

    4.3.4. Incluso digital dos professores..................................................146

    4.3.5. Anlise dos resultados................................................................147

    4.3.6. Algumas consideraes sobre interdisciplinaridade....................148

    CONSIDERAES FINAIS E QUESTIONAMENTOS .............................................150

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................155

  • APNDICE .................................................................................................161

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    INTRODUO

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    No presente trabalho, nossa inteno pesquisar sobre como a interdisciplinaridade tem sido entendida e praticada no ensino mdio. Para isso, necessrio compreender a problemtica associada a interdisciplinaridade no ensino mdio e por que ela importante para esse nvel de ensino.

    Buscando dar sentido a essa discusso, que aqui iniciamos, entendemos que preciso antes de tudo contextualizar o pesquisador, ou seja, discutir as experincias pessoais que o levaram a propor este trabalho. Tambm se faz necessrio contextualizar o problema da prtica interdisciplinar no cenrio educacional em geral e nas pesquisas desenvolvidas nessa rea.

    Durante minha1 experincia escolar no ensino mdio numa escola pblica de grande porte no centro de Goinia, entre 1995 e 1997, a interdisciplinaridade ainda no se fazia presente no meio educacional, como ocorre atualmente, de maneira que no se ouvia esta palavra com a freqncia que se ouve hoje em dia. Alm do mais, nas atividades pedaggicas realizadas na escola, raramente acontecia qualquer tipo de atuao pedaggica que envolvesse duas ou mais disciplinas, seja no campo terico ou prtico do conhecimento escolar.

    Durante minha graduao, em Licenciatura de Fsica na Universidade Catlica de Gois, entre 1998 e 2001, o contato com a idia da interdisciplinaridade no ocorreu de forma apropriada, ou seja, no ocorreu estudo ou reflexo sobre seu significado e relevncia para o contexto de ensino a partir da legislao educacional. No entanto, a prpria Universidade mantinha um Programa de Atividades Interdisciplinares (CMARA, 1999), composto por um conjunto de disciplinas, de carter interdisciplinar, oferecidas por cada departamento da Instituio. Essas atividades interdisciplinares eram obrigatrias e, em todos os semestres letivos, os alunos deveriam optar por, no mnimo, uma disciplina do programa. Os temas eram os mais diversos possveis e essas atividades ocorriam, durante uma hora/aula, uma vez por semana. O objetivo dessas atividades era promover tanto o contato entre alunos de diversos cursos, quanto uma formao mais diversificada dos graduandos, oferecendo a oportunidade de envolvimento com temas distintos das vrias reas de formao. Em outras palavras, essas atividades promoviam uma espcie de abertura do currculo, uma flexibilidade que permitia aos alunos descobrir outras reas de interesse.

    1 Por se tratar da formao profissional do pesquisador, o tratamento ser feito na 1 pessoa do singular.

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    Particularmente, a oportunidade de cursar, disciplinas de reas do conhecimento diferentes da minha rea de formao foi uma experincia muito positiva, pois despertou meu interesse para outros temas, a partir da discusso e investigao de temas diversos. Acredito que esta formao tenha contribudo tambm para a minha disposio em dialogar e trabalhar em parceria com outros professores no atual exerccio da minha profisso de professor de Fsica.

    Apesar de ter vivido uma experincia de interao com estudantes de outras reas e ter conhecido teorias e mtodos de outras disciplinas durante a minha graduao, a minha conscincia sobre o papel da interdisciplinaridade no ensino e a importncia atribuda pela legislao educacional brasileira a esta abordagem ainda no estava suficientemente clara. Somente em 2003, com o incio da minha carreira como professor efetivo de Fsica no quadro de docentes da Secretaria de Estado de Educao do Distrito Federal, que percebi o quanto a interdisciplinaridade estava presente no discurso escolar, sem no entanto estar presente na prtica.

    Nos ltimos anos, nas escolas, fala-se muito em interdisciplinaridade, seja pensando em realizar provas, nos planejamentos, nos projetos escolares, no projeto poltico-pedaggico, nas reunies de coordenao e nos processos seletivos para ingresso no Ensino Superior. No entanto, por outro lado, percebi que tudo que se fazia sob o rtulo de interdisciplinar no era muito diferente das prticas comuns e rotineiras de ensino. As razes para isso, na minha opinio, so pelo menos trs, como pude observar ao longo dos meus primeiros meses de trabalho naquela escola.

    1. As provas do Programa de Avaliao Seriada da Universidade de Braslia (PAS - UnB) e do Vestibular da UnB so interdisciplinares. 2. Os Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Mdio (PCNEM e PCN+) incentivam fortemente as prticas interdisciplinares nas escolas. 3. A maioria das escolas pblicas e privadas do Distrito Federal, influenciadas pelo PAS, tem a prtica comum de aplicar uma prova interdisciplinar bimestral aos alunos. A principal finalidade das provas com abordagem interdisciplinar a de

    possibilitar aos professores e alunos a oportunidade de trabalharem com a interdisciplinaridade e a contextualizao, favorecendo a familiarizao dos alunos. Com isso, por um lado os alunos no se surpreenderiam com as provas contextualizadas e interdisciplinares dos exames vestibulares da UnB e do PAS/UnB

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    e, por outro lado, os professores cumpririam o seu papel de prepar-los para a seleo.

    necessrio ressaltar que a influncia do mtodo de avaliao dos exames de vestibular e do PAS da Universidade de Braslia sobre as escolas de ensino mdio reconhecida e assumida pelo prprio Conselho Especial para Acompanhamento do PAS/UnB. Ela sentida, com mais vigor, entre os professores que se sentem pressionados, por pais de alunos e direo das escolas, principalmente, nas escolas particulares, onde as presses por aprovao no PAS e no vestibular so maiores.

    Portanto, a questo da interdisciplinaridade est muito presente no ensino mdio por causa desses exames. Entretanto, o que se presencia nas escolas, sob a denominao de Prova Interdisciplinar, na maioria das vezes, representa um momento de avaliao que ocorre, geralmente, no final do bimestre. Ao final do bimestre, cada professor contribui com algumas questes aparentemente desconexas e no contextualizadas, que so posteriormente reunidas num nico caderno de provas que ento aplicado aos alunos. Essas avaliaes so elaboradas por rea de conhecimento, a saber: Linguagens e Cdigos, Cincias da Natureza e Matemtica e Cincias Humanas, assim como ocorre nas provas do PAS e do Vestibular. Apesar de tudo, se v pouca interdisciplinaridade nesta forma de proceder, pois nas escolas geralmente essas avaliaes no so elaboradas de forma efetivamente interdisciplinar, ou seja, no h discusso prvia sobre os temas, enfoque ou contextos dessas avaliaes. Na maioria das vezes, os professores sequer conversam entre si sobre o assunto, sobre o que esto ensinando e tambm no elaboram os itens da prova de forma colaborativa, tudo feito de forma muito isolada.

    No final das contas, o que acaba acontecendo uma sobreposio de questes diversas, desconexas e quase nunca relacionadas a um contexto ou aspecto do cotidiano. E mais, no h, na maioria das vezes, nenhuma espcie de trabalho ou atividade interdisciplinar, ou contextualizada, que anteceda essas avaliaes e que lhes sirva de inspirao ou fundamentao. E o pior que as abordagens interdisciplinares, em muitas escolas, se limitam somente a essa prova interdisciplinar, no havendo nenhuma interdisciplinaridade durante as aulas.

    A impresso que se tem de tudo isso de que a prova interdisciplinar acaba sendo um bom pretexto para se dizer que a escola prepara os alunos para o PAS e

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    para o Vestibular da UnB, pois ela inspirada por esses exames de seleo, que so elaborados por rea de conhecimento. Dessa forma, pode-se dizer que a prtica interdisciplinar, que tende a ocorrer nas escolas do Distrito Federal, tem como um de seus principais modelos o enfoque interdisciplinar e contextualizado dos exames de seleo da Universidade de Braslia, a saber: o Vestibular e o PAS (Programa de Avaliao Seriada). Ousaria at afirmar que as provas do PAS e do Vestibular da UnB so mais coercitivas em relao s prticas interdisciplinares na maioria das escolas do Distrito Federal do que a prpria legislao educacional, pois elas criam no ambiente escolar uma exigncia por aprovao e ingresso no ensino superior.

    Inclusive um dos pressupostos estabelecidos pela Comisso Especial de Acompanhamento do PAS/UnB, reconhece que

    Os sistemas de acesso Universidade tm uma influncia inegvel no ensino mdio, tanto no contedo ministrado quanto no seu enfoque epistemolgico. Os vestibulares, tais como vm sendo feitos na maior parte das instituies de ensino superior, tm privilegiado o adestramento, o ensino livresco, fragmentado, alienante e anacrnico, e a memorizao mecnica2.

    E justamente reconhecendo essa influncia e preocupados, tambm, em preparar nossos alunos para a cidadania, o que inclui a possibilidade de um eventual ingresso na Universidade Pblica, que percebemos a necessidade de investigar como se pode oferecer um ensino interdisciplinar e contextualizado que represente uma melhoria na qualidade da formao e preparao dos alunos para a vida, independentemente de sua opo pela formao em nvel superior. E nesse sentido, nossas preocupaes vo muito alm da preparao dos alunos para as provas do PAS e do Vestibular da UnB. Nosso interesse com esse trabalho se apia na idia de concretizar a interdisciplinaridade no dia-a-dia, e no apenas na prova final do semestre.

    Num documento intitulado Princpios Orientadores do PAS, a comisso, acima citada, tambm afirma adotar como eixo estruturador da avaliao a contextualizao e a interdisciplinaridade, com nfase no desenvolvimento de competncias e habilidades3.

    Essa citao no deixa dvida quanto influncia dos PCN na filosofia que permeia a elaborao dos exames de seleo da Universidade de Braslia. Diga-se

    2Princpios Orientadores do PAS. Disponvel em . Acesso em: 22 de julho de 2006.

    3 Ibid.

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    de passagem, essa tendncia, de assumir a interdisciplinaridade e a contextualizao como princpios orientadores para a elaborao dos processos seletivos, tm-se fortalecido entre as Instituies de Ensino Superior nos ltimos anos.

    Em virtude desse cenrio no Distrito Federal e levando em considerao o conjunto de fatores relacionados prtica da interdisciplinaridade acima discutida, propomos o seguinte esquema como um quadro representativo de como a interdisciplinaridade se concretiza no contexto do Distrito Federal e, particularmente, no contexto da escola pesquisada.

    claro que este esquema uma expresso de nossa percepo especulao acerca de como a interdisciplinaridade emerge no cenrio educacional do Distrito Federal, no se trata portanto de uma viso compartilhada pela comunidade local.

    Em sntese, a questo da interdisciplinaridade hoje, sob o nosso ponto de vista, inicia-se na instncia legal, representada pelas leis, diretrizes educacionais e parmetros curriculares, materializa-se (ou pelo menos, deveria materializar-se) na escola, enquanto prtica pedaggica, e nos exames de seleo para ingresso em Instituies de Ensino Superior e orienta-se para a vida.

    A interdisciplinaridade para a vida pode ser vista como uma nova maneira de conceber o mundo em sua multiplicidade e de propiciar ao aluno uma formao mais consciente e completa que lhe garanta as prerrogativas de um cidado atuante num

    Documentos oficiais

    LDBEN, DCNEM,

    PCNEM e PCN+

    VESTIBULAR/PAS ESCOLA

    VIDA

    Interdisciplinaridade

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    mundo globalizado marcado pela complexidade das interaes scio-ambientais e econmicas.

    Nesse sentido, acreditamos na importncia da interdisciplinaridade por defendermos que se trata de uma abordagem natural diante do conhecimento que no fragmentado e nem tampouco isolado. Ademais, a interdisciplinaridade busca a ampliao e o enriquecimento do saber, no no sentido de sobrecarregar o ensino de determinado assunto com futilidades e superficialidades, mas no sentido de vislumbrar possibilidades e enfoques que superem o reducionismo e o minimalismo do enfoque tradicional. Outra vantagem que a interdisciplinaridade no limita a utilizao de diferentes enfoques ou abordagens de ensino, nesse sentido ela favorece a aplicao de diversos enfoques, como: Cincia, Tecnologia e Sociedade (SANTOS; MORTIMER, 2000), Ilhas de Racionalidade (FOUREZ, 1994) Histria e Filosofia da Cincia (MATTHEWS, 1995).

    Diante de tudo o que foi dito, nos vemos diante de um dilema envolvendo a questo da interdisciplinaridade e sua prtica no meio escolar. desse contexto que surgem as dvidas que nos conduzem a essa pesquisa. J que a interdisciplinaridade to falada e no se vincula, na maioria das vezes, a nenhuma ao pedaggica diferenciada, ento, o que interdisciplinaridade e a que fins pode servir? Como a interdisciplinaridade pode ser implementada no ensino mdio?

    Diante desses questionamentos, nossa especulao a de que a interdisciplinaridade no implementada de forma efetiva no ensino mdio porque ela no compreendida, decorrendo que os professores no sabem como e nem porque implement-la. Essa especulao, no entanto, no exclui a possibilidade de que, embora conhecida, os professores no se interessem pela abordagem interdisciplinar ou no acreditem em sua eficcia como abordagem de ensino comprometida com uma formao mais completa e adequada diante dos desafios do mundo moderno.

    Esses questionamentos acabaram por me trazer para o curso de Ps-Graduao com o intuito de debater a prtica interdisciplinar. Minha maior dvida apontava para a busca de uma prtica que realmente agregasse algum diferencial que pelo menos justificasse o uso do adjetivo interdisciplinar e que, at ento, eu no conseguia perceber na prtica pedaggica da maioria dos professores.

    O primeiro passo, portanto, seria consultar a literatura para indagar como a interdisciplinaridade entendida no meio acadmico e cientfico. E a nos

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    surpreendemos ao constatar que as poucas obras encontradas no apresentavam o assunto com muita clareza, notamos que o conceito de interdisciplinaridade ainda est longe de um consenso (CARLOS; ZIMMERMANN, 2005), mesmo no meio acadmico. As idias, conceitos e classificaes vigentes so muito variados e em alguns casos chegam at a ser antagnicos como ser discutido mais adiante nessa dissertao.

    Acreditamos que esse verdadeiro mosaico conceitual acaba deixando os professores de ensino mdio mais confusos, na medida em que a discusso acadmica sobre a interdisciplinaridade pouco esclarecedora. Alm do mais, as pesquisas no ensino de cincias tm nos mostrado que a prtica da interdisciplinaridade ainda se apresenta como um desafio para os professores nos diferentes nveis de ensino, pois o esforo de integrao das disciplinas mediante a aproximao dos professores, no mbito escolar, envolve a superao de barreiras administrativas, organizacionais e pedaggicas difceis de serem superadas e profundamente arraigadas ao modelo tradicional de gesto escolar (HARTMANN; ZIMMERMANN, 2005); (RICARDO; ZYLBERSTAJN, 2002).

    Dessa maneira, pesquisas tm sido realizadas para investigar como determinadas iniciativas interdisciplinares tm contribudo para a vivncia de novas experincias no Ensino de Cincias e os dilemas enfrentados pelos professores nessa busca (TRINDADE; CHAVES, 2005); (CARDOSO et al, 2005); (LAVAQUI; BATISTA, 2005); (AUGUSTO; CALDEIRA, 2005).

    Alm disso, nossa experincia diria nas escolas tem revelado que poucos professores se aventuram na busca da interdisciplinaridade. Embora muitas vezes, em seus discursos, aparea a palavra interdisciplinaridade e at exista o reconhecimento das potencialidades e necessidade de uma abordagem deste tipo, na prtica no se propem a romper as barreiras da inrcia, incorporando assim o termo "interdisciplinaridade" ao seu vocabulrio, sem que se busque o exerccio da mesma de forma mais compromissada (LCK, 1995, p. 16). Todavia, como se trata, de uma ao inter disciplinas, preciso buscar a participao e a integrao, enfim, buscar o trabalho coletivo. Portanto, o estudo da interdisciplinaridade, no presente trabalho, passa pelo exame conceitual do tema, a partir da investigao das concepes de interdisciplinaridade presentes na literatura e tambm no discurso dos professores, para, posteriormente, articular uma estratgia de ao interdisciplinar, tendo em vista as especificidades da escola pesquisada e os

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    objetivos postos pela coletividade dos professores. Essa busca conjunta da interdisciplinaridade pela coletividade dos

    professores deve, entretanto, ser fruto de uma iniciativa voluntria, de uma reflexo conjunta e, acreditamos que fortalecer o trabalho da equipe e dinamizar as reunies de coordenao pedaggica semanais que, at o momento, tem se caracterizado predominantemente como um momento de informes administrativos. Esperamos, com essa dissertao, contribuir para a prtica do trabalho interdisciplinar, ampliando os conhecimentos e experincias, aproximando a equipe e melhorando a qualidade do ensino em nossa unidade escolar.

    Levando em considerao a complexidade e a multidimensionalidade do mundo moderno (MORIN, 2001), como, a partir da legislao educacional, formar nossos alunos com uma viso, integrada e conexa do conhecimento, ou seja interdisciplinar, preparando-os para a vida e, eventualmente, para a continuidade dos estudos em nvel superior?

    Com a implantao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN) N0 9.394/96 e dos Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio (PCNEM), a Educao Brasileira viveu um clima de efervescncia. Sancionada em dezembro de 1996, a LDBEN (ou simplesmente LDB), parece oferecer um espao de flexibilidade para que os sistemas de ensino operem, criativamente, os seus ordenamentos (BERTANI, 2002). Esta lei, elaborada por especialistas, excluiu a comunidade de professores das discusses e elaboraes de propostas relacionadas educao escolar. Assim, o professor acaba desempenhando apenas o papel de executor das propostas criadas por especialistas. Essa idia, tambm sustentada por Giroux (1997) quando este afirma que:

    Os professores so reduzidos tarefa de implementao. O efeito no se reduz somente incapacitao dos professores para afast-los do processo de deliberao e reflexo, mas tambm para tornar rotina a natureza da pedagogia de aprendizagem e de sala de aula (GIROUX, 1997, p.160).

    De acordo com as consideraes desse autor, possvel compreender que existe um arqutipo governamental que objetiva, em ltima instncia, a constituio de um corpo docente como expectador, afastando-o de sua capacidade de planejamento, execuo e avaliao das realidades escolares. Assim, essas imposies, situadas em um perfil do professor, impedem a construo de novas prticas e o conduz a atividades de rotina, inibindo o surgimento de questionamentos e incidindo na reproduo e manuteno das ordens impostas

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    sobre a prpria prtica social docente. Portanto, essa pesquisa defende o constante questionamento, e ope-se a

    toda e qualquer forma de imposio. As determinaes assumem mecanismos diversos em funo dos espaos sociais, tambm diversos, mas o que est no seu ncleo constitutivo o controle e uniformizao de prticas sociais. Este estudo diz respeito s prticas docentes e como esses as entendem. Ao uniformizar as prticas, as relaes de poder, alojadas nos rgos governamentais, impem-se, levando os professores a ignorarem suas histrias de vida. Essas imposies, longe de deixar de serem um fenmeno social, culminam em concepes de mundo e Educao, implicando em prticas, comportamentos, valores e crenas e acabam reproduzindo esteretipos de imposies nos espaos escolares, que so forjados para serem consumidos e validados pelos demais agentes sociais, inclusive pelos prprios professores.

    Contra estas imposies podemos lutar para uma formao que possibilite ao professor ser um sujeito de sua prpria prtica. Essa formao consistir da articulao dos conhecimentos especficos e pedaggicos, somados a uma prtica que possibilite ao futuro professor explorar, questionar, criticar sua atuao docente, ou seja, uma prtica fundamentada na reflexo na ao e sobre a ao (SCHN, 2000).

    Eis, portanto, um cenrio crtico, oportuno e propcio para a apresentao de um trabalho de pesquisa que objetiva debater a prtica interdisciplinar. Essa prtica um processo dinmico, ou seja, que capacita no somente o aluno ao debate, reflexo e s aes que permitam novos redimensionamentos, mas leva tambm o professor a ter uma nova viso de educao e de aprendizagem, no fragmentadas, mudando, assim, a sua prtica. Desta forma, presenciam-se novas discusses sobre a prtica interdisciplinar e pode-se vislumbrar a promoo de um novo profissional.

    Reformas de ensino, como a que passamos com a LDB N 9.394/96, so geralmente entendidas e planejadas pelos rgos governamentais para regular as atividades docentes. As leis educacionais, em geral, procuram estabelecer padres sobre o que deve ser ensinado, como, quando e por quem. Alm disso, elas ditam os modos de testar o que foi aprendido. Esse tipo de avaliao de aprendizagem tem por objetivo direcionar as habilidades que o aluno deve adquirir no decorrer de sua formao escolar. No caso da Fsica, por exemplo, o objetivo de ensino o de desenvolver, no aluno, a habilidade de perceber e lidar com fenmenos naturais e

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    tecnolgicos a partir de princpios, leis e modelos, capacitando-o a comunicar-se apropriadamente atravs da linguagem cientfica e atuar conscientemente em situaes comuns como, por exemplo, crises de energia, problemas ambientais, leitura de manuais de aparelhos, compreenso de exames mdicos, leitura de notcias de jornais, dentre outros (BRASIL, 2002c).

    As minhas experincias, somadas ao que diz a literatura, levam a formular a pergunta central deste trabalho de pesquisa:

    O que significa a interdisciplinaridade no mbito escolar? Esta questo implica em outras, tais como: Como o professor entende interdisciplinaridade? Como o professor v a prtica interdisciplinar? Que habilidades um professor deve desenvolver para ser interdisciplinar? Quais so os fundamentos tericos necessrios para que o professor

    entenda a prtica interdisciplinar? At que ponto a formao tem ajudado os professores a articular suas

    idias e desenvolver suas habilidades para consolidar uma prtica interdisciplinar?

    Tendo em vista o exposto acima, este trabalho de pesquisa objetiva identificar as vises de interdisciplinaridade no mbito escolar. Buscaremos, portanto, identificar e analisar as vises de interdisciplinaridade dos professores de uma escola de Ensino Mdio do Distrito Federal. E, a partir dessa anlise, pretendemos organizar uma proposta de prtica interdisciplinar factvel para essa escola.

    Estrutura da Dissertao

    Para investigar os aspectos relacionados aos dilemas da interdisciplinaridade nas escolas, esta dissertao est dividida em quatro captulos. O trabalho comea por essa introduo que tem como objetivo dar uma viso geral de como se chegou idia desse trabalho, contextualizando o pesquisador, a partir do caminho trilhado por ele at chegar a propor este trabalho.

    O primeiro captulo traz uma breve discusso da histria da interdisciplinaridade, acompanhada de uma reviso bibliogrfica dos conceitos de interdisciplinaridade na literatura. No segundo captulo, discutimos a metodologia utilizada para a pesquisa das concepes de professores sobre a

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    interdisciplinaridade e sua adequao. O terceiro captulo dedicado a apresentao e anlise dos dados obtidos na pesquisa luz dos conceitos identificados no primeiro captulo. E, finalmente, no captulo quatro finalizamos a dissertao, propondo um roteiro com sugestes para a prtica interdisciplinar na escola pesquisada e que pode ser uma referncia para professores e coordenadores de ensino mdio de outras escolas.

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    1 APORTE TERICO

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    Na introduo desse trabalho de dissertao apresentou-se o problema que guia esse trabalho de pesquisa. Tendo em vista esse problema, iniciaremos nossa discusso sobre a interdisciplinaridade pela anlise dos significados atribudos a ela na literatura. Portanto, esse captulo apresenta um breve histrico do surgimento da interdisciplinaridade e dos significados associados a esse termo ao longo dos tempos.

    Embora a interdisciplinaridade tenha emergido h algumas dcadas como uma possvel abordagem para o ensino, o que ainda vemos, na maioria das Instituies de Ensino, a distribuio das disciplinas de forma nitidamente fragmentada como Portugus, Matemtica, Cincias, Fsica e outras. Alunos adentram salas de aula e estudam pequenos compartimentos sobre o comportamento humano e natural, como se a prpria natureza e a vida fossem compartimentadas. Por exemplo, alunos adentram as aulas de biologia para estudar a taxionomia dos seres vivos e isso feito como se a prpria natureza tivesse dividido o mundo entre mamferos e rpteis. Mesmo admitindo-se a necessidade de estudar esses compartimentos, chamados de disciplinas, o professor na sala de aula acaba esquecendo que a diviso uma simplificao humana com objetivo de tornar o estudo menos complexo. Assim, o professor no chama a ateno dos alunos para o fato de que a natureza no se divide em, por exemplo, Cerrado e Mata Atlntica. Ele no deixa claro que essas simplificaes foram inventadas para facilitar o estudo e a aprendizagem, e no para torn-la problemtica como vem acontecendo. Esse ensino feito por migalhas bastante criticado no apenas do ponto de vista educacional, mas mesmo do ponto de vista da pesquisa, como o faz Gastal (2000) num artigo que ela inicialmente denominou de Taxionomia: Como difcil enquadrar zebras4.

    Esse trabalho de dissertao , portanto, uma reflexo sobre a fragmentao do conhecimento como conseqncia da disciplinaridade. Essa ponderao sobre a compartimentalizao dos currculos escolares nos leva a pensar a educao como o faz Santom (1998):

    As metas educacionais, que servem como base para desencadear a atividade curricular nas salas de aula, no devem levar a atomizaes nos contedos e nas tarefas escolares; do contrrio perder-se- de vista a

    4 Este artigo foi publicado com outro nome, conforme a referncia a seguir:

    GASTAL, M. L. A. Sobre taxonomias e distrbios. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, So Paulo, v. 5, n. 3, p. 2002.

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    estrutura que d sentido ao trabalho escolar e, na maioria dos casos, conceitos como motivao, significado e relevncia passam a ser meras palavras de ordem de qualquer contedo (SANTOM, 1998, p. 8).

    Porm, antes de discutirmos os dilemas da abordagem interdisciplinar nas escolas, apresentaremos um breve histrico da interdisciplinaridade que nos ajudar a compreender como este tema adquiriu importncia ao longo dos tempos.

    1.1 Histria da interdisciplinaridade

    A origem da interdisciplinaridade, assim como o entendimento que se tem desse termo, ainda no consensual entre estudiosos do assunto. H aqueles que afirmam ter a interdisciplinaridade surgido na Antigidade Clssica, atravs de alguns filsofos que almejavam o domnio do saber em sua totalidade. Santom dedica uma parte de sua obra Globalizao e Interdisciplinaridade: o currculo integrado (1998) abordagem histrica da interdisciplinaridade e, segundo ele, essa orientao para a unificao do conhecimento uma tendncia antiga que ganhou fora recentemente na dcada de 70. No entanto, o autor afirma que os primeiros passos em direo a um saber mais global e unificado remontam Antiguidade, sendo Plato considerado um dos primeiros pensadores a vislumbrar a necessidade de uma cincia unificada, propondo que esta tarefa fosse desempenhada pela filosofia.

    Os sofistas gregos ainda foram responsveis pelo estabelecimento de uma enkuklios paidia, uma espcie de currculo de ensino que proporcionava aos alunos um exame geral das disciplinas constitutivas da ordem intelectual e que, posteriormente, na poca medieval, manifestou-se atravs da diviso do conhecimento em dois grandes segmentos: o trivium (gramtica, retrica e dialtica) e o quadrivium (aritmtica, geometria, astronomia e msica), que juntos representaram o papel de programas pioneiros de um ensino integrado que agrupa os mbitos do conhecimento tradicionalmente denominados letras e cincias.

    Este programa se perpetuou por muitos sculos at seu fim por volta dos anos de 1760 e 1770, quando cedeu lugar a outros mtodos de ensino mais fragmentados e disciplinares, dando incio organizao curricular vigente at os dias de hoje, predominantemente fragmentria e positivista. Portanto, nas dcadas de 1760 e 1770, segundo Gusdorf (1983), a pedagogia da totalidade materializada no programa milenar da enkuklios paidia foi destruda, em seu lugar estabeleceu-se

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    a proliferao canceriforme do saber traduzida pela desorientao do pensamento moderno em matria de formao intelectual. Foi este o momento do rompimento com a totalidade do saber e com a formao mais ampla e unificada do homem.

    Outra importante iniciativa de unificao do saber na Antigidade foi a Escola de Alexandria, centro de pesquisa e ensino de carter neoplatnico, que pode ser considerada a instituio mais antiga a assumir um compromisso com a integrao do conhecimento (aritmtica, mecnica, gramtica, medicina, geografia, msica, astronomia etc.) a partir de uma tica filosfico-religiosa. Nesta instituio, segundo Santom (1998), concentravam-se sbios de todos os centros intelectuais do mundo helenstico; as influncias judias, egpcias e gregas misturavam-se com outras mais distantes, trazidas por mercadores e exploradores (p. 46). J na poca renascentista, segundo Santom (1998), o pensador Francis Bacon vislumbrou a necessidade de unificar o saber e props em sua obra New Atlantis (Nova Atlntida) uma nova utopia cientifica, que descreve a Casa de Salomo, um centro de pesquisa cientfica interdisciplinar a servio da humanidade, uma espcie de sociedade paradisaca onde reina a sabedoria e cujos integrantes dedicam suas energias ao mtodo baconiano.

    Outros partidrios da unidade do saber no sculo XVII foram Ren Descartes, Auguste Comte, Immanuel Kant, os enciclopedistas franceses etc. Conforme Gusdorf (1983), Leibniz, um dos artfices mais eficazes da criao das academias cientificas, filsofo, sbio e talentoso matemtico, foi um dos grandes defensores do conhecimento interdisciplinar, chegando a afirmar que

    O gnero humano, considerado em relao com as cincias que servem a nossa felicidade, me parece semelhante a um rebanho de gente que marcha em confuso pela escurido, sem ter chefe nem ordem nem palavra nem outro sinal com que regular a marcha e reconhecer-se. Em lugar de caminhar com orientao para guiar-nos e assegurar nossos passos, corremos louca e perdidamente, chocando uns contra os outros, longe de ajudarmo-nos e sustentarmo-nos [...]. Vemos que o que mais poderia nos ajudar seria unificar nossos trabalhos, compartilh-los com vantagens e regul-los com ordem; mas, no momento, apenas se chega ao difcil que ningum havia esboado ainda, e todos correm em massa ao que os outros j tem feito e o copiam ou o combatem eternamente [...] (LEIBNIZ apud GUSDORF, 1983, p. 34, traduo nossa).

    O manifesto de Leibniz expressa com clareza o seu descontentamento com as iniciativas disciplinares, fragmentadas e isoladas. A falta de um dilogo, de uma orientao, de uma coordenao so os marcos caractersticos desta aparente confuso gerada pelas aes isoladas de grupos na busca do conhecimento.

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    Todavia, mesmo antes deste manifesto de Leibiniz, outro grande pensador e pedagogo tcheco Jean Amos Komenski (Comenio) havia denunciado com vigor, em 1637, o escndalo da fragmentao do saber em disciplinas sem que haja unio de umas com as outras (dilaceratio scientarum); o remdio para este esfacelamento interno seria a pedagogia da unidade (pansophia).

    Uma verdadeira cincia, seja qual for, no pode constituir-se isoladamente e manter-se em um egosmo epistemolgico margem da comunidade interdisciplinar do saber e da ao. com essa preocupao que no seio do Iluminismo surge o movimento dos enciclopedistas, sob a direo de DAlembert e Diderot. O projeto enciclopdico se prope a reunir e condensar a imensa massa do saber disponvel em um espao cada vez mais reduzido. Espelho no qual se projeta a totalidade do domnio mental, a Enciclopdia deve no s justapor os dados das cincias, seno tambm ordenar racionalmente as disciplinas, umas com relao as outras e tentar realizar uma extrao das razes comuns do saber. Esse projeto enciclopedista teve como fundamento a epistemologia gentica de Locke, segundo a qual todas as disciplinas derivam de uma origem comum, sendo possvel ento faz-las retroceder de maneira a se resgatar seus elementos unificadores.

    J em 1825, em sua obra Discurso sobre a unidade da cincia, Michelet, grande historiador romntico francs afirma que:

    A cincia perde seu atrativo mais vivo, sua principal utilidade, quando considera os diversos ramos como estranhos entre si, quando ignora que cada estudo esclarece e fecunda os demais. As Musas so irms, nos diz a geniosa Antiguidade [...]. A cincia uma; as Lnguas, a Literatura, a Histria, a Fsica, as Matemticas e a Filosofia, os conhecimentos mais aparentemente distantes se tocam realmente, ou melhor, formam todo um sistema cujas diversas partes considera sucessivamente nossa debilidade. Um dia tentareis captar esta majestosa harmonia da cincia humana [...] (MICHELET, 1825 apud GUSDORF, 1983, p. 37, traduo nossa).

    Como se pode notar essa dicotomia entre o saber especializado e o conhecimento do todo sempre assombrou a mente dos sbios, desde a Antigidade at os dias de hoje. Periodicamente, observamos que iniciativas insurgem no sentido de se resgatar a unidade do saber.

    Segundo Gusdorf,

    [...] o sculo XIX est marcado na histria do saber pela expanso do trabalho cientfico. As tecnologias da investigao, em todos os campos, se enriquecem prodigiosamente; mas esta riqueza crescente tem como contrapartida uma desmultiplicao das tarefas. Chegou a poca dos especialistas; o territrio epistemolgico, ampliando-se, no deixa de fragmentar-se; as certezas se estreitam ao precisar-se. O especialista,

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    segundo a frmula de Chesterton, sabe cada vez mais de um campo cada vez menor, em marcha at esse limite escatolgico em que saber tudo de nada. O positivismo, o cientificismo, corresponde a esse novo estatuto do saber, onde cada disciplina se encerra no esplndido isolamento de suas prprias metodologias, fazendo da linguagem das cincias rigorosas uma espcie de absoluto [...]. A tnica sem costuras da cincia unitria parece desgarrada de forma irremedivel. A pulverizao do saber em setores muito limitados condena o homem de cincia a uma paradoxal solido, conseqncia da perda do sentido de causa comum que agregava os enciclopedistas e seus sucessores, os idelogos. A este respeito, o sculo XIX parece caracterizado por um retrocesso da esperana interdisciplinar; a conscincia cientfica parece vencida e sufocada pela massa crescente de suas conquistas. A acumulao quantitativa das informaes parece exigir o preo de um desmantelamento da inteligncia (GUSDORF, 1983, p. 37-38, grifo e traduo nossa).

    No sculo XIX, portanto, houve, de certa maneira, uma proliferao da fragmentao das reas do conhecimento. Napoleo, em 1808, funda, sob o nome de Universidade Imperial, um sistema de ensino na Frana que distingue, pela primeira vez na histria, as faculdades de letras e de cincias. Tal iniciativa gerou protestos, tais como o de um fisiologista da Universidade de Berlim, E. du Bois Reymond. Segundo ele, esta mutilao geraria graves deformaes profissionais:

    O estudo exclusivo da natureza, como qualquer outra ocupao exclusiva, estreita o crculo das idias. As cincias da natureza limitam sua viso ao que temos ante nossos olhos, ao alcance da mo, ao que proporciona experincia imediata dos sentidos com uma certeza que parece quase absoluta. Desviam o esprito das especulaes gerais e menos seguras, e o desacostumam a mover-se no campo do indeterminado. Em certo sentido, vemos isto como uma vantagem das mais preciosas; mas, quando estas se tornam exclusivas, no se pode negar que o esprito se faz pobre de idias, que a imaginao perde suas cores, a alma sua sensibilidade e as conseqncias disso tudo so uma viso estreita, seca e dura, abandonada das Musas e das Graas (REYMOND, 1881 apud GUSDORF, 1983, p. 39, traduo nossa).

    Nessa perspectiva fragmentria do conhecimento, o saber deixa de ser fruto de uma relao com o mundo real e se torna resultado do desenvolvimento de sistemas de abstraes cada vez mais restritos e sem comunicao entre si. Segundo Gusdorf (1983), esse texto de du Bois Reymond foi citado pelo reitor da Universidade de Berlim em 1880, protestando contra uma eventual especializao da Faculdade de Filosofia, que havia separado o cientfico do literrio, seguindo o modelo da universidade napolenica.

    Entretanto, a resistncia contra o modelo francs no ocorreu apenas entre os alemes, mesmo na Frana alguma resistncia s mudanas curriculares se fizeram notrias ao final do sculo XIX, entre elas a de um orador parlamentar chamado Charles Dupuy, ento presidente da Comisso de Ensino Superior, cujo

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    discurso parcialmente transcrito a seguir:

    Essa palavra universidade no mais que uma palavra [...], porque no encerra uma organizao cujos elementos sejam solidrios, cujas partes se sintam rgos de um mesmo todo [...]. Cada qual tira por seu lado; os homens de Direito, os de Letras, formam outros tantos grupos parte; em cada uma dessas faculdades, as especialidades formam grupos dessa maneira, eu no diria zelosos, mas sim bastante separados uns dos outros. de conhecimento pblico [...] que em Sourbonne, por exemplo, est o grupo dos historiadores, o dos filsofos e que existem muito pouco contato e ainda menor penetrao entre eles [...]. No momento, tudo se submete especializao (DUPUY, 1911 apud GUSDORF, 1983, p. 39, traduo nossa).

    Apesar da intensificao da fragmentao, e do isolamento disciplinar ocorridos no sculo anterior, no decorrer do sculo XX que (res)surge o termo interdisciplinaridade, que caracteriza a idia de unificao disciplinar mais aceita atualmente. Segundo Domingues (2001), o adjetivo interdisciplinar foi registrado no dicionrio francs Robert em 1959, e o substantivo interdisciplinaridade, registrado em 1968. Entretanto, a interdisciplinaridade no tem uma origem meramente lxica, na verdade, os termos ou palavras se incorporam ao vocabulrio aps j terem sido apropriados na prxis diria dos homens. Assim sendo, Fazenda (1994) relata que a interdisciplinaridade surge tambm como um movimento, uma tendncia em resposta a um contexto scio-poltico:

    O movimento da interdisciplinaridade surge na Europa, principalmente na Frana e na Itlia, em meados da dcada de 1960 [...], poca em que se insurgem os movimentos estudantis, reivindicando um novo estatuto de universidade e de escola (p. 18).

    Ainda segundo essa autora, a primeira proposta de um projeto interdisciplinar teria sido encaminhada a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) no ano de 1968, pelo francs Georges Gusdorf. Em seu projeto, Gusdorf propunha a unificao das cincias humanas que seria alcanada mediante uma maior e urgente aproximao das diversas disciplinas de humanidades, que tem a favor de si o fato de compartilharem um mesmo objeto de estudo, a saber o homem.

    Entretanto, para uma melhor compreenso dos fatores que culminaram no (re)surgimento da interdisciplinaridade, precisaremos analisar o contexto histrico dessa poca.

    Na dcada de 60, a Frana passava por uma crise poltica e social, movimentos estudantis surgiram e o descontentamento era manifestado atravs de muitos protestos envolvendo confrontos com a polcia. Um dos aspectos que

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    figurava entre as reivindicaes dos estudantes era a melhoria da qualidade do ensino superior (pois, muitos desses estudantes eram universitrios), assim sendo, os estudantes lutavam por um ensino mais sintonizado com os problemas sociais, polticos e econmicos da modernidade. Lutavam, portanto, contra o profundo isolamento e fragmentao das disciplinas, que sozinhas no contribuam suficientemente para o confronto com tais problemas, que exigiam quase sempre uma perspectiva interdisciplinar e holstica para a conquista de um resultado mais eficaz.

    A interdisciplinaridade teria sido, portanto, a resposta a essas reivindicaes. Tratava-se de um comprometimento com uma aproximao das disciplinas na busca da unificao do saber e do resgate de uma unidade do conhecimento perdida em algum momento da histria da humanidade. Foi com essa perspectiva que a interdisciplinaridade ganhou ateno no meio acadmico. Follari (1995), ao analisar esse momento histrico do surgimento da interdisciplinaridade, identifica alguns aspectos ideolgicos que merecem destaque. Segundo ele, a interdisciplinaridade teria um forte apelo ideolgico, pois ela representou uma resposta dada s reivindicaes da comunidade estudantil num contexto de instabilidade poltica. Dessa maneira, a interdisciplinaridade teria sido mais uma tentativa de se atenuar os nimos, e de se aplacar a revolta estudantil, do que um compromisso efetivo para o enriquecimento e o engrandecimento do saber.

    Em seu trabalho, Follari (1995) afirma que, alm de exercer funo socialmente ideolgica, a interdisciplinaridade tambm atua como elemento propagandstico de uma classe social em sua luta scio-poltica usada pelas classes sociais hegemnicas como:

    1. Forma pretendidamente superior de construo do conhecimento cientfico, representando uma nova cincia que supera a obsoleta disciplinaridade;

    2. Soluo para os problemas prticos urgentes que a sociedade capitalista no pode estruturalmente resolver e que geram preocupao na populao. Nesse caso, a interdisciplinaridade ideolgica em duplo sentido: primeiro, aparece como representao falsa para a soluo de um problema; segundo, apresenta-se como uma boa justificativa da situao de domnio dos fatos por parte da classe social hegemnica. Ou seja, no se soluciona o problema, mas se convence de que se pode

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    faz-lo, e para isso a renovao, a inveno de uma soluo moderna sempre imprescindvel; e

    3. Soluo tcnica parcial a problemas prticos. Segundo Follari, esta seria uma forma de interdisciplinaridade mais funcional, no havendo nela engano nem ocultao. Trata-se de uma concepo de interdisciplinaridade cientificamente aceitvel, do ponto de vista da teoria do conhecimento, mas que mesmo assim ainda pode ser fonte de legitimao e de apoio poltico de grupos ideolgicos, todavia, nesse quesito, no se diferencia de qualquer outra atividade cientfica, tambm consideradas ideolgicas na perspectiva gramsciana.

    Um exemplo da contribuio que a interdisciplinaridade pode trazer para a soluo de problemas prticos pode ser obtido da anlise do desenvolvimento cientfico proporcionado pelas pesquisas militares no perodo ps-guerra. Mais precisamente, na primeira metade do sculo XX, o mundo passou por uma reestruturao poltica, social e diplomtica profunda. Nesse perodo, a humanidade passou por duas grandes guerras mundiais. Se compararmos, do ponto de vista militar e estratgico, notaremos que num intervalo de cerca de 20 anos, passamos basicamente de uma guerra de trincheiras (I Guerra Mundial) a uma guerra de avies bombardeiros e bomba atmica (II Guerra Mundial), houve, portanto nesse perodo, um grande desenvolvimento tecnolgico e cientifico a servio de uma corrida armamentista que perdurou at quase o final do sculo e que causou muita tenso nas relaes diplomticas entre os pases do mundo (Guerra Fria). Esse desenvolvimento armamentcio mobilizou a comunidade cientfica em diversas partes do mundo e consumiu por dcadas quantidades substanciosas de recursos financeiros. Dessas pesquisas com fins militares, surgiram muitas tecnologias modernas, como o computador, as usinas nucleares, a telecomunicao via satlite e outros. Tais iniciativas envolveram diversos cientistas de diferentes reas em mega-projetos, dos quais, via de regra, nem tinham clareza de suas finalidades, pois eram - na maioria das vezes - sigilosas.

    O desafio de colocar especialistas de diferentes disciplinas e formaes a servio de um mesmo projeto certamente configurou uma ao interdisciplinar bem sucedida, que permitiu o desenvolvimento da tecnologia e da cincia, mesmo que a finalidade desse empreendimento tenha sido exclusivamente militar. At ento, a interdisciplinaridade se limitava a iniciativas dessa envergadura, mas no perodo

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    ps-guerra esse novo paradigma de pesquisa rapidamente se ampliou para a indstria de tecnologia que comeou a agregar cientistas e a fornecer-lhes estrutura para o desenvolvimento de pesquisas tecnolgicas, o caso, por exemplo, dos laboratrios da AT&T, da BELL e da agncia espacial americana NASA dentre outros.

    Modernamente, a pesquisa interdisciplinar e a constituio de Centros de Pesquisas de carter interdisciplinar so cada vez mais comuns nos diversos ramos do saber e tem oferecido resultados interessantes. No que diz respeito ao mbito acadmico, apesar de toda ideologia que cerca a prtica e o discurso interdisciplinar, essa idia ganhou fora principalmente aps sua aceitao por parte de muitos estudiosos e principalmente pela UNESCO. Nos anos que se seguiram ao surgimento da interdisciplinaridade, houve grande repercusso e difuso desta inovao na Europa e mesmo em outros continentes. Eventos de grande envergadura foram realizados e coletneas de artigos e trabalhos sobre o assunto foram publicados com o incentivo da UNESCO.

    Outra instituio, cujo envolvimento com a ascenso da interdisciplinaridade foi comprometedor, a Organizao de Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE). Segundo Follari (1982), um livro da OCDE (Innovation dans lenseignement superieur, trois universits allemandes), publicado em 1970, sobre inovaes universitrias denuncia a falta de ateno das autoridades acadmicas aos problemas do ensino, dentre os quais figura o da interdisciplinaridade e mais, atribuem a esta falta de ateno responsabilidade pela intensificao do nervosismo e da violncia estudantil. Conforme o autor, este livro teria sido publicado (no casualmente) na Frana em 1970, h dois anos dos fervorosos protestos estudantis e, pior, publicado por uma instituio como a OCDE, segundo ele, comprometida com fins de expanso da economia e cujos pases-membro so todos pertencentes ao mundo capitalista avanado, muitos dos quais duramente sacudidos pelos protestos estudantis.

    Segundo Santom (1998), no mesmo ano de 1970, a OCDE e o Ministrio da Educao francs promoveram um Seminrio Internacional sobre Pluridisciplinaridade e Interdisciplinaridade nas Universidades, realizado na Universidade de Nice (Frana). Seu objetivo era elucidar a interdisciplinaridade e, na medida em que esta trabalhada nas Universidades, analisar se realmente positiva para um ensino e uma pesquisa adaptados evoluo do conhecimento e

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    de nossa sociedade. Neste seminrio havia uma certa falta de consenso em torno da conceitualizao da interdisciplinaridade e dele participaram representantes de 21 pases, inclusive personalidades do meio acadmico que tiveram grande envolvimento com o assunto, tais como: Leo Apostel, Guy Berger, Guy Michaud, Marcel Boisot, Eric Jantsch, Heinz Heckhausen, Asa Briggs, Jean Piaget e outros. Esse congresso foi de grande importncia para a proliferao da interdisciplinaridade a nvel mundial e foi o ponto de partida para a realizao de outros eventos e a consolidao da pesquisa sobre o assunto. Segundo Follari (1982), Piaget ocupou um papel central no lanamento das bases epistemolgicas da interdisciplinaridade ao participar da formulao cannica da interdisciplinaridade proposta pelos governos da Europa Ocidental.

    Embora, a interdisciplinaridade em sua apario tenha servido ideologicamente aos propsitos capitalistas e relegitimao deste sistema, Follari (1995b) afirma que a interdisciplinaridade no serviu somente aos intentos de quem estava no poder, mas tambm surgiu simetricamente como demanda dos setores anticapitalistas. Deste modo, a interdisciplinaridade foi invocada a partir de posies crticas, chegando inclusive a fundamentar currculos diferentes e a ser parte da transformao institucional de universidades inteiras. o caso da Universidade Autnoma Metropolitana em Azcapotzalco (Mxico) que foi fundada com a finalidade central de oferecer um ensino interdisciplinar.

    Entretanto, em alguns casos, estas posies que tentavam ser alternativas ao dominante no estipularam uma justificativa prpria, mas simplesmente retomaram com uma linguagem parcialmente diferente a proposta difundida pela OCDE. Ainda assim, Santom (1998) afirma que, curiosamente nesses mesmos anos, as universidades em geral estavam mais obcecadas em promover maiores nveis de aprofundamento e especializao. Isso, a nosso ver, refora a idia, defendida por Follari, segundo a qual a interdisciplinaridade representou uma resposta ideolgica de uma classe hegemnica mais preocupada em sufocar a clera estudantil do que em promover mudanas profundas no ensino universitrio. Entretanto, a interdisciplinaridade acabou despertando o interesse de muitos estudiosos que contriburam seriamente para o desenvolvimento do tema.

    A difuso da interdisciplinaridade promovida pelos seminrios internacionais realizados na Europa com a cooperao da OCDE e da UNESCO fez com que essa discusso chegasse tambm Amrica Latina num contexto semelhante ao

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    europeu, pois, nesse momento, movimentos estudantis anticapistalistas tambm estavam acontecendo no Mxico e Brasil, em 1968, e na Argentina, em 1969. Na Amrica Latina, a interdisciplinaridade vinculou-se a polticas modernizadoras em sade, educao e meio ambiente. Sendo que aqui tambm esse apelo serviu ideologicamente aos interesses dominantes, assim como na Europa.

    Acerca da chegada da interdisciplinaridade no Brasil, Fazenda relata que:

    [...] o eco das discusses sobre interdisciplinaridade chega ao Brasil ao final da dcada de 1960 com srias distores, prprias daqueles que se aventuram ao novo sem reflexo, ao modismo sem medir as conseqncias do mesmo (FAZENDA, 1994, p. 23).

    O modismo decorrente da rpida e superficial assimilao da interdisciplinaridade no sistema educacional brasileiro ainda perdura at hoje. Podemos at afirmar que se tornou um jargo no meio educacional, pois a interdisciplinaridade aparece com muita freqncia no discurso de professores, em projetos pedaggicos e planos de curso. Entretanto, a prtica da interdisciplinaridade amide resulta em conquistas aqum das expectativas e, alm disso, a execuo, controle e avaliao das iniciativas interdisciplinares apresentam dificuldades que desafiam e, muitas vezes, desanimam os professores. Conforme afirma Lck (1995), diante desses desafios e incertezas, os educadores mostram-se resistentes e inertes. E, embora aprovem intelectualmente a necessidade da ao interdisciplinar para uma construo mais integrada do conhecimento, no se propem a romper as barreiras da ao, incorporando assim o termo "interdisciplinaridade" ao seu vocabulrio, sem que se busque seu exerccio de forma mais compromissada. E tudo isso contribui para o "modismo" associado ao termo.

    Tendo a interdisciplinaridade chegado ao Brasil no final da dcada de 60, num contexto de mudanas polticas, em que o sistema educacional tambm passava por modificaes, esta foi ento rapidamente incorporada Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de N 5.692/71, e acabou por influenciar a legislao educacional brasileira. Desde ento, a presena da interdisciplinaridade tem se fortalecido cada vez mais na legislao educacional brasileira e hoje se faz presente nos Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio (PCNEM), onde figura como princpio pedaggico norteador das prticas de ensino nas diversas reas do conhecimento.

    Entretanto, como acontece com muitas outras tendncias estrangeiras, a interdisciplinaridade foi rpida e superficialmente assimilada pelo sistema

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    educacional brasileiro, sem um trabalho mais rigoroso de reflexo e adequao s peculiaridades de nosso sistema de ensino. Em nome da interdisciplinaridade, a lei 5.692/71 sugeriu, de 1 a 4 srie do antigo 1 grau, a integrao dos contedos de Histria e Geografia, dando lugar a Estudos Sociais, e Cincias Fsicas e Biolgicas, que se transformaram em Cincias. Essas integraes, segundo Fazenda (1994), baratearam o processo de aprendizagem, e os contedos passaram a ser trabalhados superficial e confusamente conduzindo perda da identidade das disciplinas e vulgaridade do termo interdisciplinaridade. A autora, critica esse aspecto ao afirmar que

    Em nome da interdisciplinaridade, todo o projeto de uma educao para a cidadania foi alterado, os direitos do aluno/cidado foram cassados, atravs da cassao aos ideais educacionais mais nobremente construdos. Em nome de uma integrao, esvaziaram-se os crebros das universidades, as bibliotecas, as pesquisas, enfim toda a educao. Foi tempo de silncio, iniciado no final dos anos 50 que percorreu toda a dcada de 1960 e a de 1970. Somente a partir de 1980 as vozes dos educadores voltaram a ser pronunciadas. A interdisciplinaridade encontrou na ideologia manipuladora do Estado seu promotor maior. Entorpecido pelo perfume desse modismo estrangeiro, o educador se omitiu e nessa omisso perdeu aspectos de sua identidade pessoal (FAZENDA, 1994, p. 30).

    Esta leitura crtica de Fazenda nos remete aos aspectos ideolgicos evocados pela interdisciplinaridade em suas origens europias e denunciados por Follari (1995). Interessante como esta conotao ideolgica da interdisciplinaridade serviu to bem aos propsitos governistas no perodo da ditadura militar brasileira, assim como bem serviu aos propsitos ideolgicos do governo francs.

    Entretanto, apesar da maneira como a interdisciplinaridade serviu, e ainda serve, aos interesses hegemnicos no invalida o seu potencial como estratgia de ensino, de maneira que uma reflexo acerca das potencialidades e limitaes que cercam o tema da interdisciplinaridade nos parece vlido, ainda que esta reflexo seja tardia. com esse propsito que realizamos o presente trabalho, buscando iluminar aspectos ainda obscuros e pouco esclarecidos que rondam esta temtica e, para isso, nos dedicamos inicialmente a uma anlise conceitual da interdisciplinaridade em suas principais vertentes e correntes de interpretao. Acreditamos que a clareza conceitual, alm de facilitar o planejamento e a implementao das estratgias interdisciplinares no ensino, contribuir para uma reduo da suscetibilidade dos educadores a aes e discursos ideolgicos e hegemnicos mascarados sob a gide da interdisciplinaridade. Portanto, nas prximas sees, nos dedicaremos a analisar algumas concepes de maior

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    aceitao acadmica e a partir da discutiremos os potenciais e limitaes da interdisciplinaridade no ensino de cincias.

    1.2 Concepes de Interdisciplinaridade

    Conceituar interdisciplinaridade no tarefa simples. De maneira geral, encontramos alguns tericos discorrendo a respeito do assunto numa anlise de maior amplitude, sem entretanto apresentar um conceito claro e conciso sobre o tema. Observamos tambm, na pesquisa bibliogrfica, que a interdisciplinaridade no um assunto consensual nem mesmo entre os estudiosos do assunto, o que acaba por se refletir na falta de clareza do tema entre os professores do ensino bsico.

    Apesar disso, aps a anlise do conceito de interdisciplinaridade apresentado em algumas obras e artigos, achamos conveniente enquadrar as concepes identificadas em duas fases distintas, conforme seu perodo de predominncia na literatura nacional. Vale ressaltar que essa diviso, por ns proposta, no se fundamenta em aspectos meramente histricos ou cronolgicos; na verdade, trata-se de uma classificao baseada em aspectos tericos. O que difere nas duas fases, em nosso ponto de vista, o campo terico no qual a interdisciplinaridade concebida e analisada.

    A primeira fase iniciou-se com a publicao do livro Interdisciplinaridade e patologia do saber (1976) de Hilton Japiass, que praticamente lanou as bases tericas da interdisciplinaridade no Brasil; a referida obra foi baseada em sua tese de doutorado, defendida na Frana. importante destacar aqui que Japiass realizou seus estudos de doutorado no perodo de maior efervescncia da interdisciplinaridade na Frana. Dessa maneira, acreditamos que o seu livro apresenta muitos traos caractersticos das primeiras idias sobre interdisciplinaridade difundidas na Europa no final da dcada de 60. Tal constatao torna sua obra especialmente valiosa para a nossa pesquisa.

    Esta primeira fase tambm conta com a vasta contribuio de Ivani Fazenda que tem se dedicado h mais de 20 anos ao estudo do tema, o que a levou a publicar numerosas obras sobre essa questo. Algumas de suas publicaes so fontes de grande importncia para a presente pesquisa, principalmente, no que diz respeito a pesquisas e estudos de interdisciplinaridade voltados para o ensino

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    bsico, segmento que, por incrvel que parea, conta com poucas publicaes sobre o assunto no nosso pas (FAZENDA,1993, 1994, 1998).

    As idias predominantes nesta primeira fase, principalmente as defendidas por Japiass (1976), guardam uma semelhana muito grande com as primeiras idias de interdisciplinaridade propagadas pelos pioneiros na Europa. Elas so caracterizadas por uma forte oposio fragmentao do conhecimento em disciplinas, excessiva especializao e ao isolamento das cincias e primam pela busca da unidade do saber. Nas palavras de Gusdorf (1976), um dos estudiosos pioneiros da interdisciplinaridade na Frana:

    Quanto mais se desenvolvem as disciplinas do conhecimento, diversificando-se, mais elas perdem contato com a realidade humana. Nesse sentido, podemos falar de uma alienao do humano, prisioneiro de um discurso tanto mais rigoroso quanto mais bem separado da realidade global, pronunciando-se num esplndido isolamento relativamente a ordem das realidades humanas (p. 15).

    Apesar das concepes de interdisciplinaridade sofrerem variaes (ainda que pequenas) de autor para autor, observamos que todas elas naturalmente se fundamentam na idia de interao entre as disciplinas ou reas do conhecimento. Assim, a maioria dos autores pesquisados percebe a interdisciplinaridade como uma interao entre as vrias disciplinas. As variaes do conceito, de autor para autor, ficam por conta do grau de interao ou finalidade do empreendimento interdisciplinar. Japiass (1976) apresenta algumas classificaes dos sucessivos graus de relao entre as disciplinas que conduzem interdisciplinaridade na pesquisa. A classificao mais aceita entretanto a que foi proposta por Eric Jantsch (1972 apud JAPIASS, 1976), e composta por quatro nveis, a saber: multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade.

    Multidisciplinaridade

    Descrio geral: gama de disciplinas que propomos simultaneamente, mas sem fazer aparecer as relaes que podem existir entre elas. [...] Tipo de sistemas: sistema de um s nvel e de objetivos mltiplos; nenhuma cooperao (JAPIASS, 1976, p. 73). Pluridisciplinaridade

    Descrio geral: justaposio de diversas disciplinas situadas geralmente no mesmo nvel hierrquico e agrupadas de modo a fazer aparecer as relaes existentes entre elas. [...] Tipo de sistema: sistema de um s nvel e de objetivos mltiplos; cooperao, mas sem coordenao (JAPIASS, 1976, p. 73).

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    Interdisciplinaridade

    Descrio geral: axiomtica comum a um grupo de disciplinas conexas e definida no nvel hierrquico imediatamente superior, o que introduz a noo de finalidade. [...] Tipo de sistema: sistema de dois nveis e de objetivos mltiplos; coordenao procedendo do nvel superior (JAPIASS, 1976, p. 73).

    Transdisciplinaridade

    Descrio geral: coordenao de todas as disciplinas e interdisciplinas do sistema de ensino inovado, sobre a base de uma axiomtica geral. [...] Tipo de sistema: sistema de nveis e objetivos mltiplos; coordenao com vistas a uma finalidade comum dos sistemas (JAPIASS, 1976, p. 73-74).

    Este ltimo nvel, o da transdisciplinaridade, no foi originalmente proposto por Eric Jantsch, trata-se de uma proposta de Jean Piaget que tem se fortalecido no meio acadmico recentemente. No Brasil h inclusive um Centro de Educao Transdisciplinar na Universidade de So Paulo (CETRANS-USP). Uma das prerrogativas de desses estudos a busca da superao do paradigma interdisciplinar, no entanto, cremos que a interdisciplinaridade por si mesma j representa um grande desafio para o ensino bsico ainda no atingido de forma satisfatria, por isso nesse trabalho nos limitaremos anlise do paradigma interdisciplinar.

    Voltando a nossa discusso, Japiass (1976) afirma que o que distingue a interdisciplinaridade das outras duas modalidades que a antecede, na citao acima, que ela se caracteriza pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integrao real das disciplinas, no interior de um projeto especfico de pesquisa. Ou seja, para o autor, a multi- e a pluridisciplinaridade no representam mais do que o resultado de um trabalho de especialistas de duas ou mais disciplinas;

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    uma espcie de justaposio dos resultados de seus trabalhos, no havendo integrao conceitual, metodolgica etc. Por outro lado,

    [...] a interdisciplinaridade um empreendimento que se vale do intercmbio de instrumentos e tcnicas metodolgicos, esquemas conceituais e anlises de diversos ramos do saber, afim de faz-los integrarem e convergirem, depois de terem sido comparados e julgados. Ao entrar num processo interativo, duas ou mais disciplinas ingressam, ao mesmo tempo, num dilogo em p de igualdade. No h supremacia de uma sobre as demais. As trocas so recprocas. O enriquecimento mtuo. So colocados em comum no somente os axiomas e os conceitos fundamentais, mas os prprios mtodos. Entre elas h uma espcie de fecundao recproca. Fecundao esta que d origem a uma nova disciplina: bioqumica, geopoltica, psicossociologia, biofsica etc. Trata-se de um tipo de interdisciplinaridade que no se efetua por simples adio nem to pouco por mistura. O que h uma combinao das disciplinas correspondendo ao estudo de novos campos de problemas (JAPIASS, 1976, p. 81).

    Do pargrafo anterior, notamos que Japiass (1976) na nsia de distinguir interdisciplinaridade de outros termos similares, como multi- e pluridisciplinaridade, mostra o que e o que no considerado interdisciplinaridade, o que torna difcil a identificao de um conceito preciso. Todavia, no somente na obra desse autor, mas tambm em muitas outras, no h uma clara definio de interdisciplinaridade e se feita no explicitada de maneira facilmente identificvel. Apesar disso, vale a pena nos aplicarmos a uma anlise mais detida do conjunto de idias apresentadas no pargrafo anterior.

    Primeiro, para Japiass (1976) a interdisciplinaridade ocupa um nvel mais avanado de integrao entre as disciplinas, caracterizado por um intercmbio mais intenso de conhecimentos entre especialistas no mbito de um projeto especfico de pesquisa. O destaque dado ao trecho em negrito se justifica, pois, para o autor, a interdisciplinaridade reivindica as caractersticas de uma categoria cientfica, dizendo respeito pesquisa; enquanto a pluridisciplinaridade seria uma prtica de ensino. Em outras palavras, o nvel de integrao terica e metodolgica entre dois ou mais domnios do conhecimento necessrios para a legitimao de uma abordagem interdisciplinar, s pode ser atingido no mbito da pesquisa cientfica. Nesse sentido, o grau de interao no ensino se limitaria justaposio dos resultados dos trabalhos de dois ou mais especialistas, sem que haja uma real integrao conceitual e metodolgica dos conhecimentos.

    Diante de tais evidncias, somos forados a acreditar que, ou a definio de interdisciplinaridade de Japiass (1976) no se aplica ao ensino ou ela est equivocada. Um exame mais detalhado das idias do autor nos revela que, para ele,

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    a interdisciplinaridade atinge um grau de confrontao e interao entre domnios do conhecimento distintos que culmina numa espcie de fecundao recproca, ou seja, as teorias, os mtodos e conceitos de cada disciplina, antes distintos e bem definidos, se fundem de maneira que novas teorias e mtodos surgem e um novo campo de pesquisa emerge na cincia, uma nova disciplina que distinta das disciplinas que a originou. o caso, por exemplo, da bioqumica, biofsica, psicopedagogia dentre outras. Se esta a prerrogativa bsica, uma condio sine qua non para a legitimao da interdisciplinaridade, ento para Japiass (1976) esta uma modalidade exclusivamente de pesquisa.

    Dessa forma, nos deparamos com a questo: a interdisciplinaridade uma modalidade de pesquisa infactvel no ensino? Certamente que no. Defender que a interdisciplinaridade no aplicvel ao ensino, a esta altura, nos pareceria, no mnimo, um absurdo. Na realidade, acreditamos que a idia defendida por Japiass (1976) no representa uma concepo abrangente, o suficiente, para incluir a possibilidade da interdisciplinaridade no ensino. Nesse sentido, precisamos alargar os horizontes de nossa investigao do conceito de interdisciplinaridade, analisando a concepo de outros autores estudiosos do assunto para, finalmente, encontrarmos caminhos que apontem para a prtica da interdisciplinaridade nas escolas.

    No ano da publicao da obra de Japiass, Ivani Fazenda iniciava o seu mestrado e tambm a sua jornada de pesquisa sobre interdisciplinaridade que se estende at hoje (FAZENDA, 1994). Desde o incio, Fazenda dedicou seu trabalho investigao da interdisciplinaridade no ensino. Sua contribuio bastante ampla, contando com vrios livros publicados sobre o assunto e com a consolidao de um grupo de pesquisa, no seio do qual se formaram outros pesquisadores do assunto. Sua viso de interdisciplinaridade est fortemente baseada na idia de cooperao e parceria, como podemos notar a partir do trecho a seguir:

    A parceria, presente em nossas coletneas, categoria mestra dos trabalhos interdisciplinares. [...] A parceria, portanto, pode constituir-se em fundamento de uma proposta interdisciplinar, se considerarmos que nenhuma forma de conhecimento em si mesma racional. A parceria consiste numa tentativa de incitar o dilogo com outras formas de conhecimento a que no estamos habituados, e nessa tentativa a possibilidade de interpenetrao delas. [...] A parceria, pois, como fundamento da interdisciplinaridade surge quase como condio de sobrevivncia do conhecimento educacional (FAZENDA, 1994, p. 84-85).

    Apesar de sua vasta contribuio ao longo das ltimas trs dcadas

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    dedicadas pesquisa da interdisciplinaridade, no observamos em Fazenda o mesmo rigor terico de Japiass na conceituao de interdisciplinaridade. Apesar disso, reconhecemos que a percepo da autora predominantemente influenciada pela prtica e vivncia da interdisciplinaridade em projetos escolares, algo que a coloca numa posio diferenciada em relao a outros pesquisadores, que pouco ou nada se dedicaram ao estudo da interdisciplinaridade no meio educacional e se limitaram anlise ou discusso terica do tema. Em sua viso de interdisciplinaridade como uma ao em parceria, Fazenda (1994) no deixa claro que critrios e condies devem guiar essa ao a fim de que se atinja um ideal de interdisciplinaridade especfico e preciso. Essa ausncia de clareza do que seja interdisciplinaridade e das condies para sua prtica efetiva na escola obscurece, a nosso ver, a viso de interdisciplinaridade apregoada pela autora e abre espao para crticas como as realizadas por Jantsch e Bianchetti (1995), como veremos a seguir.

    A segunda fase de desenvolvimento da interdisciplinaridade no Brasil, segundo nosso ponto de vista, tem como marco a publicao da obra Interdisciplinaridade: para alm da filosofia do sujeito, trata-se de uma coletnea de artigos organizada por Ary Jantsch e Lucdio Bianchetti publicada em 1995. A anlise dos artigos que compem esta obra nos leva a crer que a inteno dos organizadores do livro era reunir uma srie de trabalhos publicados por alguns pesquisadores nacionais e estrangeiros, que permitissem deslocar a discusso da interdisciplinaridade para um novo campo terico. De modo geral, o livro apresenta uma crtica viso de interdisciplinaridade predominante na primeira fase; consideram-na a-histrica, baseada na filosofia do sujeito5 e ingnua. E, em contrapartida, colocam a necessidade de se abordar o assunto numa concepo histrico-dialtica, numa viso assumidamente marxista. Da a razo pelo qual propomos a diviso da interdisciplinaridade no Brasil em duas fases distintas. A primeira caracterizada por uma viso mais idealista, na medida em que, a interdisciplinaridade concebida como uma negao/oposio compartimentalizao do conhecimento em disciplinas ou, ainda, como uma ao conjunta de professores numa parceria que permita o intercmbio de conhecimentos

    5 Segundo Jantsch e Bianchetti (1995), a filosofia do sujeito no articulada/elaborada por nenhuma escola/tendncia/corrente filosfica especfica. Ela pe-se, de fato, em vrias acepes. Grosso modo, caracteriza-se por privilegiar a ao do sujeito sobre o objeto, de modo a tornar o sujeito um absoluto na construo do conhecimento e do pensamento. O sujeito , a, um autnomo.

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    e informaes. E a segunda fase caracterizada por uma perspectiva mais histrica, quando se admite que a interdisciplinaridade no se ope, mas ocorre com e atravs das disciplinas; uma viso que se compromete mais com o rigor cientfico e se volta a aspectos que transcendem a filosofia do sujeito e analisa o tema luz do materialismo dialtico, levando a discusso da interdisciplinaridade para o campo ideolgico e epistemolgico, para alm do metodolgico e pedaggico.

    Segundo Jantsch e Bianchetti (1995), a interdisciplinaridade tem sido tratada de forma equivocada e segundo uma viso redentora em que, em se partindo da vontade do sujeito (coletivo) e numa ao em parceria contra o mal representado pela fragmentao do conhecimento (disciplinas), alcanar-se- a superao de tal fragmentao mediante a unificao do conhecimento.

    No , a nosso ver, um trabalho em equipe ou em parceria que superar a reduo subjetivista prpria da filosofia do sujeito. [...] a "interdisciplinaridade da parceria, ao contrrio do que supem os que se orientam pela filosofia do sujeito, no abarca, ordena e totaliza a realidade supostamente confusa do mundo cientfico. Ou seja, a frmula simples do somatrio de individualidades ou de sujeitos pensantes (indivduos) que no apreende a complexidade do problema/objeto no milagrosa nem redentora. Muito menos o ser o ato de vontade que leva um sujeito pensante a aderir a um projeto de parceria (JANTSCH; BIANCHETTI, 1995, p. 12).

    Claramente, na citao acima, a interdisciplinaridade da parceria defendida por Fazenda criticada. Essa crtica Ivani Fazenda evidencia o advento de uma concepo de interdisciplinaridade que se difere das idias predominantes inicialmente. Essa nova maneira de conceber a interdisciplinaridade, no entanto, no implica na aniquilao da anterior. Tais idias passam, portanto, a coexistir e disputar espao entre pesquisadores e estudiosos do assunto.

    Segundo Jantsch e Bianchetti (1995), a premissa da interdisciplinaridade da parceria peca pela inobservncia da construo histrica do conhecimento, ao ignorar que o conhecimento humano elaborado de diversas formas e em diferentes contextos. Assim sendo, seria ingnuo considerar que, de uma mera juno das reas de conhecimento, surgisse uma ao interdisciplinar, sem considerar a complexidade do construto disciplinar. Para eles, abdicar da percepo histrico-dialtica da interdisciplinaridade

    significa conceber o conhecimento como um estranho sopo epistemolgico e metodolgico, no qual se confundiriam o objeto como algo secundrio e o sujeito como mera soma de indivduos aleatoriamente distribudos nas diversas cincias e/ou disciplinas.[...] No se trata de destruir a interdisciplinaridade historicamente construda e

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    necessria mas de lhe emprestar uma configurao efetivamente cientfica (JANTSCH; BIANCHETTI, 1995, p. 18).

    Entre outras idias defendidas por Jantsch e Bianchetti (1995), destacamos a de que a interdisciplinaridade tambm pode ser exercida individualmente, ou seja, que apenas um professor, por exemplo, possa ministrar sua disciplina de forma interdisciplinar e, principalmente, que a aceitao e o exerccio da interdisciplinaridade no implica na negao e/ou anulao da disciplinaridade; antes, a interdisciplinaridade construda a partir do conhecimento disciplinar.

    Jantsch e Bianchetti (1995), afirmam concordar com Etges (1995) ao conceber que a interdisciplinaridade consiste precisamente na transposio, no deslocamento de um sistema construdo para outro. (p. 21). O termo sistema construdo, entende-se aqui por conhecimento disciplinar, j o termo transposio, acima citado, refere-se a exigncia de comunicao que impele o cientista a transpor, a deslocar, a traduzir, constante mas assistematicamente, seu sistema para o campo de representaes e experincias familiares dos outros, o que para Etges (1995) caracteriza uma ao interdisciplinar.

    Alm desses conceitos e classificaes apresentados at o momento, h ainda uma variedade de outras concepes encontradas na literatura nacional e internacional. A seguir, apresentaremos algumas delas.

    1.2.1 Classificaes da interdisciplinaridade

    Alm da classificao dos nveis de interao entre disciplinas proposta por E. Jantsch (1972 apud Japiass, 1976), outras classificaes tambm foram propostas, como a que apresenta os tipos de relaes interdisciplinares (em ordem crescente de "maturidade"). Segundo H. Heckhausen (1972 apud Japiass, 1976, p. 79) tem-se a interdisciplinaridade heterognea, pseudo-interdisciplinaridade, interdisciplinaridade auxiliar, interdisciplinaridade compsita, interdisciplinaridade unificadora; Interdisciplinaridade linear ou cruzada e Interdisciplinaridade estrutural, abaixo explicitadas.

    1) Interdisciplinaridade heterognea

    Pertencem a esse tipo os enfoques de carter enciclopdico, combinando programas diferentemente dosados. Tais programas objetivavam garantir uma

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    formao ampla e geral. Entretanto, segundo Japiass (1976), as idias gerais so geradoras de imobilismo.

    2) Pseudo-interdisciplinaridade

    Pertencem a este tipo as diversas tentativas de utilizao de certos instrumentos conceituais e de anlise, considerados epistemologicamente neutros, tais como os modelos matemticos, por exemplo, para fins de associao das disciplinas, todas devendo recorrer aos mesmos instrumentos de anlise que seriam o denominador comum das pesquisas. Para Japiass (1976), o emprego desses instrumentos comuns no suficiente para conduzir a um empreendimento interdisciplinar. E por isso que este tipo de colaborao pode ser tachado de falso interdisciplinar.

    3) Interdisciplinaridade auxiliar

    Este tipo de associao consiste, essencialmente, no fato de uma disciplina tomar de emprstimo a uma outra seu mtodo ou seus procedimentos. Em alguns