Interpretação e Integração de Lacunas
description
Transcript of Interpretação e Integração de Lacunas
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
§ 3
INTERPRETAÇÃO
I
A 2 de maio de 2012 entra em vigor a Lei n.º x/2012 (uma lei de autorização
legislativa) que dispõe o seguinte:
“ Artigo 1.º
Objeto
É concedida autorização legislativa ao Governo para alterar o Estatuto Geral das
Instituições de Ensino Superior Portuguesas, aprovado pela Lei n.º y/1999, de 1 de
dezembro.
Artigo 2.º
Sentido
A presente autorização legislativa é concedida para permitir ao Governo introduzir
limitações no consumo de bebidas alcoólicas em ambiente letivo, nas Instituições
de Ensino Superior Portuguesas.
Artigo 3.º
Extensão
A autorização habilita o Governo a:
a) Estabelecer proibições de consumo de bebidas alcoólicas para os
membros da comunidade educativa, em certos contextos;
b) Estabelecer limitações que dificultem o consumo dessas mesmas
bebidas;
c) […]”.
Nessa sequência é aprovado o Decreto-Lei n.º z/2012 (Decreto-Lei
autorizado), o qual entra em vigor a 13 de maio de 2012 e reza o seguinte:
“ Considerando que o Regime Geral das Instituições de Ensino Superior
Portuguesas é um instrumento legislativo que permite a prossecução de outro
objetivos de interesse público, além da definição da organização e funcionamento
dessas mesmas Instituições, o Governo decidiu revê-lo no sentido de introduzir
1
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
limitações ao consumo de álcool nas instituições de Ensino Superior Público
Portuguesas.
Assim:
No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º x/2011 e nos termos
das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição1, o Governo decreta o
seguinte:
Artigo 1.º
O artigo x do Estatuto Geral das Instituições de Ensino Superior Portuguesas,
aprovado pela Lei n.º y/1999, de 1 de dezembro, passa a ter a seguinte redação:
«Artigo x
Docentes
1 – É proibido o consumo de bebidas alcoólicas pelos docentes do
Ensino Superior no respetivo local de trabalho.
2 – A violação do disposto no número anterior constitui infração
disciplinar grave»”.
A 24 de maio de 2012 teve lugar a tradicional Festa da Cerveja organizada
pela Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, a qual se realiza à
noite e depois das aulas do turno noturno, nas instalações da própria Faculdade.
O Dr. FELISBERTO, jovem assistente de Teoria Geral do Direito Civil,
retomando uma prática seguida nos tempos de estudante, e para comemorar o
facto de, pela primeira vez, ter atribuído 16 valores em avaliação contínua, decide ir
à Festa e, acedendo ao convite de um amigo, lá bebe um copo de cerveja. Sai
porém, cedo e bastante lúcido, para continuar o serão trabalhando alegremente na
sua tese.
No dia seguinte é chamado ao gabinete do Diretor, o qual o informa de que
contra ele foi aberto um procedimento disciplinar por violação do disposto no artigo
x do Estatuto Geral das Instituições de Ensino Superior Público Portuguesas, na
redação do DL z/2012. O Dr. FELISBERTO considera que a proibição aí contida não
se aplica ao seu caso pois que tal interpretação violaria o seu direito ao livre
desenvolvimento da personalidade, constitucionalmente previsto (cf. artigo 26º/1
CRP). O Diretor, porém, não é da mesma opinião: segundo aquele, tendo em conta
que no Anteprojeto do atual Estatuto constava a proibição de consumo de bebidas
alcoólicas “no decorrer das aulas” e essa expressão foi substituída pela redação
atual, não haveria base para se estabelecer qualquer restrição. Quid iuris?
1 Esta fundamentação jurídico-positiva é real.
2
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
Variante – Suponha que, nesse mesmo dia, na “Festa da Sangria” da Universidade
Católica – a qual, tendo sido copiada da “Festa da Cerveja” da FDL, se realiza
exatamente nos mesmos moldes, de noite e depois das aulas – o Dr. ADALBERTO,
irmão do Dr. FELISBERTO e Assistente de Direitos Reais na UCP, consumiu uma
sangria. Pode ser-lhe instaurado um procedimento disciplinar com base no disposto
no DL z/2012?
Problema da relevância do Preâmbulo: constando apenas do
preâmbulo do DL a restrição da proibição a instituições de ensino
superior públicas, coloca-se a questão de saber em que medida ela
seria atendível: a sê-lo, então o Dr. Alberto não tinha feito nada de
proibido, pois que bebera uma sangria numa festa de uma Instituição
de ensino privada.
Posição maioritária: não vinculatividade do Preâmbulo (não tem o
mesmo valor do articulado); dá apenas um pré-entendimento
(Menezes Cordeiro) uma imagem de partida da regulação subjacente
ao diploma, que tem que ter o mínimo da consagração na letra do
articulado (cf. artigo 9.º/2) não podendo por este ser contrariada. Em
caso de contradição, prevalece o articulado.
Logo, a proibição não estava restrita a instituições de ensino superior
públicas, abrangendo igualmente as privadas. O seu âmbito, contudo,
deveria ser recortado de forma semelhante ao que se fez na parte
anterior do caso (não visava o local de trabalho em sentido “físico”,
mas só em certos contextos).
II
Na sequência de uma grave crise económica e financeira, e depois de terem
sido tornadas públicas estatísticas do INE que davam conta da insolvência e do
encerramento de centenas de pequenas e médias empresas incapazes de resistir à
crise, só no ano de 2089, é aprovada, sob proposta do partido do Governo (cuja
principal promessa eleitoral, inscrita no respetivo programa, era tomar medidas de
auxílio às empresas em crise) a Lei n.º 1/2090, de 3 de janeiro, que adita ao
Código do Emprego, entre outros, os seguintes preceitos: «(artigo 281.º) 1 – As
empresas que, por motivos de mercado, atravessem uma situação de quebra da
3
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
procura dos seus serviços, poderão reduzir temporariamente o período de trabalho
dos respetivos trabalhadores».
Após a passagem do Carnaval, o hotel «Quem fica, Paga, Lda.» situado em
Faro, registou uma acentuada quebra na procura dos seus serviços, ficando
praticamente sem hóspedes e só recebendo esporadicamente alguns eventos. Essa
quebra era mais ou menos normal naquela época do ano e depois compensada nos
meses seguintes. Porém, invocando o disposto na Lei n.º 14/90, a administração
decidiu, a 1 de março, reduzir até junho o período de trabalho dos seus
funcionários, com a corresponde redução na retribuição.
RICARDO REIS, rececionista do Hotel «Quem Fica, paga, Lda», foi um dos
trabalhadores atingidos pela redução, o que o indignou profundamente. Considera o
trabalhador que a Lei não visava este género de situações; mas a Administração do
Hotel contrapõe i) que nada literalmente o exclui, invocando ainda a seu favor o
ii) facto de este regime da redução do período de trabalho dos trabalhadores ter
sido inserido numa Secção autónoma do Código do Emprego intitulada
«mecanismos de gestão» (o que sugeriria que a medida é uma decisão normal de
gestão da empresa) e não junto do já existente regime da suspensão de contratos
de trabalho por motivo de crise empresarial.
Esta suspensão, por seu turno, nos termos do artigo 29.º desse Código,
depende “da indispensabilidade da medida para assegurar a viabilidade económica
da empresa” – o que a administração reconhece, em nenhum momento, ter estado
em causa. Quid iuris?
1. O que deve entender-se por “por motivos de mercado” para
efeitos da L 1/2090. Isto é: pode esta lei aplicar-se ante normais
flutuações de mercado?
2. Elemento gramatical: expressão da linguagem corrente de
origem económica, comportando duas possibilidade
entendimento: tanto razões de crise como as flutuações
normais das forças de mercado (oferta e procura). Subsídio
interpretativo: esta possibilidade também se aplicaria a
flutuações da procura de serviços, logo à situação da empresa
em questão.
Circularidade do elemento gramatical: é um ponto de partida,
devendo prosseguir-se para os elementos lógicos (cf. 9.º/1) e
4
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
devendo aqui regressar-se para apurar se o sentido apurado
através daqueles elementos tem na letra da lei o mínimo de
correspondência (9.º/2);
3. Elementos lógicos:
a. elemento histórico:
Occasio legis: lei foi aprovada em contexto de crise
económica em que estava em causa viabilidade de
empresas (insolvências); Subsídio interpretativo: visa
apenas situações de crise;
Promessas eleitorais do partido que suporta o Governo,
traduzidas no seu programa como intenção subjetiva
do legislador histórico? coloca alguns PROBLEMAS:
o Um partido, ainda que maioritário será o
legislador? O legislador não será antes a AR?
o Se se responder que é o legislador, deve discutir-
se se, de harmonia com a posição expendida por
AA como Pires de Lima e A Varela ou Galvão
Telles, o conhecimento da intenção do legislador
é suficiente para fixar o sentido da lei. Mesmo
aceitando-se esta posição (e é duvidoso que ela
seja admissível à face do artigo 9.º2) é duvidoso
que a situação de facto relatada se enquadre nos
termos da mesma: a intenção não tem tradução
em elementos “internos” ao processo legislativo
(anteprojeto, relatórios, atas de debates, etc)
que é o que parece ser exigido por estes Autores.
Logo: esta referência não era vinculativa, era
apenas mais um contributo para se conhecer a
origem da lei. De resto, mesmo em termos de
razoabilidade se concluiria que a interpretação
de um diploma na base de promessas políticas
poderia conduzir a resultados inadequados: nem
2 Poderá, contudo, argumentar-se que o artigo 9.º não é vinculativo.
5
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
sempre a “vontade” do legislador no momento
em aprovou a lei corresponde a essas
“promessas” (p. ex. as circunstâncias podem ter-
se alterado).
b. Elemento sistemático:
Argumento na base do sistema externo:
o localização do preceito na seção intitulada
“mecanismos de gestão”. Subsídio
interpretativo? Abrange qualquer decisão de
gestão da empresa (da sua organização interna)
independentemente de crises, pelo que também
visa a situação em exame;
o Contexto horizontal – Lugar paralelo: o artigo
29.º que regula figura próxima (suspensão de
contratos). Se aí é necessário crise da empresa,
sendo as figuras (esta e aquela que estamos a
interpretar) aparentemente (externamente)
semelhantes, o argumento que daqui se retira é
que o artigo 281.º deve ser sistematicamente
interpretado à face do artigo 29.º (estamos a
utilizar um argumento de analogia/semelhança).
Subsídio interpretativo: apenas situações em que
a viabilidade económica da empresa estivesse
em causa, logo, aqui não era o caso.
Incompatibilidade entre os 2 argumentos de sistema externo
resolve-se perscrutando o sistema interno (segundo Canaris,
SI
prevalece sobre SE). Consideração do SI impõe que se
evitem contradições valorativas dentro do sistema ou de um
subsistema, e a melhor forma de o fazer é orientar a
interpretação de uma disposição a princípios. Num
6
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
primeiro nível de resolução, estando em causa o subsistema
Dto do Trabalho, poderia orientar-se a interpretação da
disposição ao princípio do favor laboratoris (dar a
solução/tratamento que mais favoreça o trabalhador). O
sentido que dava mais concretização a esse princípio era o
de que a medida só visava situações de crise, pelo que era
esse o subsídio que tirava do SI.
c. Elemento teleológico: relevante para evitar situações de
fraude à lei (Prof. MTS), o que poderia estar em causa.
Aqui a teleologia da norma não era unívoca: proteger
empresas em situação de crise ou assegurar mecanismos
normais de gestão? De novo relevam princípios: melhor
teleologia é a que mais der concretização ao favor
laboratoris – esse sentido é a restrição a situações de
crise, pelo que é esse o subsídio interpretativo.
4. Sentido apurado nos elementos lógicos: apenas situações de
crise. Tem correspondência na letra da lei (artigo 9.º/2).
5. Resultado da interpretação: interpretação restritiva. Também
era defensável interpretação declarativa média (há não o
mínimo, mas TOTAL coincidência entre o espírito da lei o
sentido mais habitual da expressão “motivos de mercado”).
III
Suponha que, nos termos do artigo x da Lei n.º 1/2012, que regula os
contratos celebrados à distância por consumidores finais:
«O consumidor que contratou o fornecimento de um bem à distância pode
“desistir” do contrato sem pagamento de indemnização e sem necessitar de indicar
qualquer motivo no prazo de 15 dias contados da data da celebração do mesmo».
JOANA, pobre octogenária que vive da sua reforma, foi contactada no
passado dia 1 de janeiro de 2013 telefonicamente pela sociedade Banguecoque,
Lda., e aceitou por esse mesmo meio contratar um serviço semanal de massagens
tailandesas com o custo de 1.000 Euros por sessão. Depois de conversar com a
filha, apercebeu-se que tinha cometido um erro e decide desistir do negócio. Nesse
7
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
sentido, manifesta essa mesma intenção à Banguecoque, Lda., no dia 5 de janeiro
de 2013 invocando o disposto no artigo x da Lei n.º 1/2012. Chegando à conversa
com o gerente, o mesmo defende que tal só será possível se indemnizar a
Sociedade dos danos que sofreu com a resolução do contrato, argumentando:
que as massagens tailandesas são um “serviço” e não um “bem”, conforme
enuncia o artigo x da Lei n.º 1/2012
que, em caso de dúvida, aquele normativo sempre deveria interpretar-se
em face do artigo y da Lei n.º 2/2010, que regula os contratos celebrados à
distância entre empresas, nos termos do qual: “A empresa que adquira o
bem ou subscreva o serviço pode revogar a sua declaração negocial antes
de esta ser conhecida da contraparte; depois deste momento, só poderá
desistir do negócio indemnizando os danos causados”;
com uma anotação ao artigo x da Lei n.º 1/2012, elaborada pelo Professor
Doutor ÁLVARO DE CAMPOS, ilustre catedrático da Faculdade de Direito da
Amadora, encarregue do Anteprojeto desse diploma onde pode ler-se:
“entende-se, efetivamente, como opção mais adequada em termos de
política legislativa que a prestação de serviços não fique sujeita ao mesmo
regime que a aquisição de bens”. QUID IURIS?
IV
Suponha que no artigo xº do Código das Sociedades Comerciais se dispõe:
“No caso das sociedades por quotas, é proibida a celebração de quaisquer negócios
entre a sociedade e o sócio”.
CARLOS PEDRO, jovem executivo promissor, é sócio único da sociedade por
quotas unipessoal “CÃEZINHOS DE LOIÇA”, Lda. Poderá CARLOS PEDRO vender a
mobília do seu escritório particular à sociedade, a fim de mobilar a respetiva sede?
Redução teleológica: segundo o seu sentido (teleologia) a norma
deveria conter uma restrição para sociedades unipessoais, pois que aí
não se punha o problema de conflito de interesses. Para Larenz e
doutrina alemã, redução teleológica é forma de integração de lacunas
ocultas (lacunas resultantes da ausência de uma restrição que o
sentido subjacente a um regime jurídico impunha que existisse).
Diferente conceito de lacunas ocultas face à posição do Prof. MTS.
Aqui, contudo, essa redução é discutível (v. Larenz, p. 535).
8
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
Admissibilidade da redução teleológica no Direito Português? –
Controversa, pois que viola o limite imposto pelo 9.º/2 (por isso há
quem diga quem é inadmissível: vg David Duarte).
Variante – Suponha que CARLOS PEDRO com 17 anos, já revelava uma maturidade
excecional para a idade: cuidava dos negócios de uma loja da família, era
responsável pelos irmãos mais novos e discutia política “como gente grande”.
Poderia, invocando que as razões subjacentes ao disposto no artigo 122.º do Código
Civil já estão, quanto a ele, asseguradas, exigir votar nas eleições presidenciais de
2011?
Normas sobre prazos, maioridade, etc, não escondem uma finalidade
específica (no sentido em que há nenhuma justificação específica
para que sejam 18 e não 19 ou 20 anos): a estas normas chama-se
normas plenas (MENEZES CORDEIRO) e elas não comportam
redução teleológica.
V
Suponha que na Lei Eleitoral da Assembleia da República, aprovada pela Lei
n.º x/76, de 25 de abril, se dispõe: “ (artigo 1.º) No exercício do direito de voto, o
eleitor deverá deslocar-se sozinho até à cabine de voto. (artigo 2.º) A violação do
disposto no número anterior constitui crime eleitoral, punível com pena de seis
meses a um ano de prisão, no caso do eleitor, e de um a dois anos de prisão, no
caso acompanhante”.
FILOMENA, fiadeira octogenária residente no Vale de Santarém, cegou de
tanto chorar pelo neto CARLOS, que partiu para a guerra. Impossibilitada de ler os
boletins de voto e assinalar o seu voto, nas últimas eleições legislativas, deslocou-
se à Assembleia eleitoral na companhia da neta JOANINHA – que a acompanhou à
cabine, leu os partidos que concorriam e assinalou o “x” na opção correspondente à
vontade da avó.
Agora estão ambas acusadas do crime previsto na Lei x/76.
Inconformada que a avozinha passe os últimos dias de vida na prisão,
JOANINHA, que fez o primeiro ano de Direito na FDL, argumenta que nenhuma das
duas cometeu crime algum pois que “ao criar a lei o legislador não pensou em
casos como estes e se tivesse pensado não teria querido que a lei lhes fosse
aplicável”. Quid iuris?
9
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
Pela expressão “ se (o legislador) o tivesse pensado não teria querido
que a lei lhes fosse aplicável” sugeria-se estar aqui em causa
interpretação corretiva, naquelas situações em que se procuram
corrigir “erros de intuição do legislador”.
Contudo, nessas situações, do ponto de vista metodológico, a figura
não tem autonomia: opera através de integração de lacunas, redução
teleológica, etc. Aqui poderia mesmo invocar-se inconstitucionalidade
desta norma por omissão (violava-se p. da igualdade porque não se
criavam condições para invisuais exercerem o direito de voto).
Quando opera através de outras figuras, a interpretação corretiva não
tem autonomia: utilizar este nome é “figura de estilo”. Contudo,
deveria referir-se a posição da lei portuguesa sobre a mesma (cf.
artigo 8.º CC ).
VI
Suponha que está em vigor a Lei nº 1/2015, que se reporta ao
funcionamento dos Jardins Zoológicos e outros espaços lúdicos com animais,
abertos ao público. Nos termos do artigo 1.º dessa Lei: “1 – É proibido alimentar os
animais. 2- Esta proibição não se aplica aos visitantes”. FELISBERTO decidiu levar a
filha, NININHA, ao ZOO no dia de 1 de junho e, como não é particularmente versado
em Direito, pergunta-lhe a si se, face a esta Lei, NININHA poderá ou não dar
amendoins aos macacos.
Interpretação ab-rogante lógica singular: conteúdo da fonte é
ininteligível. A fonte não comunica qualquer regra (não se percebe a
quem se dirige a proibição pois que, não se reportando aos visitantes,
também não faz sentido que se aplicasse aos “tratadores”… nem
muito menos aos animais! A quem se dirige então?) pelo que surge
uma lacuna oculta. Limites impostos à admissibilidade da figura:
vinculação à lei (artigo 8.º CC e 203.º CRP) e presunção de
razoabilidade da lei (artigo 9.º/3).
10
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS E INTERPRETAÇÃO ENUNCIATIVA
VII
MÁRIO, operário de construção civil, é mortalmente atropelado por DUARTE,
estudante de Direito que vinha a conduzir embriagado depois de sair da Festa da
Cerveja da FDL.
MÁRIO tem cinco filhos menores e é o único “sustento” da casa pois que a
esposa, EPIFÂNIA, está há mais de dez anos impossibilitada de trabalhar.
Privado do apoio do marido, e sem ter como sustentar a família com a sua
parca pensão de reforma, EPIFÂNIA exige de DUARTE, em tribunal, o pagamento de
uma pensão de alimentos por este ter provocado ilícita e culposamente a morte do
marido.
Admitindo que esta pretensão não tem qualquer cobertura legal (e, portanto,
desconsiderando o Código Civil ou outros diplomas “reais”), diga como pensa que o
juiz deveria decidir o caso.
Omissão intencional correspondendo a “vontade” do legislador não
admitir essa possibilidade: não é uma lacuna (enquanto falha no
plano); será antes um erro ou falha de política legislativa de Direito.
VIII
Suponha que ao direito a pensão de alimentos por falecimento de familiar
próximo, se reporta a Lei n.º x/2010, nos termos da qual: “(artigo único) Quem
ilícita e culposamente provocar a morte de uma pessoa, de quem depender o
sustento económico da respetiva família, fica obrigado ao pagamento de uma
pensão de alimentos: a) ao cônjuge; b) aos filhos; c) a quem com ela viva em união
de facto”.
Admita que o operário referido na hipótese anterior morre nas mesmas
circunstâncias, mas é viúvo e tem a seu cargo dois “enteados” menores, filhos do
primeiro casamento da esposa. Poderão estes reclamar, junto de DUARTE, uma
pensão de alimentos, com base no disposto na Lei n.º x/2010?
11
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
Enumeração taxativa é matéria sujeita a proibição de analogia. Por
isso, a atribuição desta pensão a “enteados” só poderá fazer-se por
interpretação extensiva do conceito de “filhos”. Admissibilidade, em
concreto, desse resultado interpretativo enquanto interpretação
extensiva: v.g., seguindo a posição de LARENZ, “enteados” estaria na
“franja marginal” do conceito de “filhos”.
Variante – Suponha que MÁRIO não era casado, nem tinha filhos ou enteados, mas
tinha a seu cargo uma velha prima tetraplégica, sem mais parentes, e impedida de
trabalhar, que dele dependia para sobreviver (visto receber uma exígua pensão de
reforma). Poderia essa prima exigir de DUARTE o pagamento de uma pensão de
alimentos?
A aplicação da pensão a “primos” seria um resultado interpretativo
sem qualquer correspondência na letra da lei pelo que inadmissível.
Assim, a aplicação a estes parentes só poderia fazer por analogia
(legis).
IX
Na sequência de uma grave crise económica e financeira, e depois de terem
sido tornadas públicas estatísticas do INE que davam conta da insolvência e do
encerramento de centenas de pequenas e médias empresas incapazes de resistir à
crise, só no ano de 2089, é aprovada, sob proposta do partido do Governo (em cujo
programa eleitoral, constava a promessa de tomar medidas de auxílio às empresas
em crise) a Lei n.º 1/2090, de 3 de janeiro, que adita ao Código do Emprego, entre
outros, os seguintes preceitos: «(artigo 281.º) 1 – As empresas que, por motivos de
mercado, atravessem uma situação de quebra da procura dos seus serviços,
poderão reduzir temporariamente o período de trabalho dos respetivos
trabalhadores. 2 – A redução do tempo de trabalho será acompanhada de uma
redução proporcional na retribuição. (artigo 282.º) Durante o período de execução
da medida, a empresa não poderá aumentar a retribuição dos membros dos seus
corpos sociais, distribuir lucros ou dividendos aos sócios, ou pagar juros
de“empréstimos” que lhe tenham sido feitos».
12
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
Após a passagem do Carnaval, o hotel «Quem fica, Paga, Lda.» situado em
Faro, registou uma acentuada quebra na procura dos seus serviços, ficando
praticamente sem hóspedes e só recebendo esporadicamente alguns eventos. Essa
quebra era mais ou menos normal naquela época do ano e depois compensada nos
meses seguintes. Porém, invocando o disposto na Lei n.º 14/90, a administração
decidiu, a 1 de março, reduzir até junho o período de trabalho dos seus
funcionários, com a corresponde redução na retribuição. Além disso, querendo
compensar o seu gerente BERNARDO SOARES, pelos excelentes serviços prestados,
mas não desejando desrespeitar o disposto no artigo 282.º daquela Lei, decidiu, no
final desse mês, aumentar de 1.000 para 2.000 Euros o plafond do cartão de crédito
da empresa, que este poderia livremente utilizar – e que, aliás, esgotava todos os
meses.
Tendo em conta apenas os dados fictícios fornecidos, pronuncie-se quanto às
seguintes questões:
1. Na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 14/2090, os sócios do Hotel
«Quem Fica, Paga Lda.» pretendem saber se podem exigir ao gerente
BERNARDO SOARES a “devolução” de 5.000 euros, correspondentes ao
aumento do plafond mensal do cartão de crédito de que este beneficiou a
partir de março de 2090, e que, desde aí, todos os meses, esgotou.
Exigem ainda de OFÉLIA EFICIENTE, secretária do gerente, 250 euros,
correspondentes a igual aumento do plafond do seu cartão de crédito (esse
plafond aumentou de 50 para 100 euros), que esta também esgotou todos
os meses.
Tendo presente que, em ambos os casos, a disponibilização de um cartão de
crédito da empresa era um dever contratual, embora não com o plafond
resultante do aumento realizado em março, o que lhes responderia?
2. RICARDO REIS, sócio do Hotel «Quem fica, Paga, Lda»., “emprestou” à
empresa 2.500 Euros. A obrigação de pagamento da quantia emprestada
vencia a 1 de maio de 2090, mas a Administração recusa-se a pagar
invocando o disposto no artigo 282.º do Código do Emprego. RICARDO REIS,
por seu turno, sustenta que o referido preceito apenas proíbe o pagamento
de juros, não do capital “emprestado”. Quid iuris?
3. No dia 1 de abril de 2090, a Administração do «Quem Fica, Paga, Lda.»,
como fazia todos os anos por essa altura, doou cerca de 25.000 Euros a
instituições de caridade do concelho de Faro. A Comissão de Trabalhadores
considera porém que tal não seria possível na pendência da medida de
13
Casos Práticos de Introdução ao Estudo do Direito – 2011/2012
redução – pois que, embora nenhum preceito do Código do Emprego o
interdite expressamente, da articulação do artigo 282.º com outras
disposições que proibiam, designadamente, que uma empresa nessa
situação (i) renuncie a direitos com valor patrimonial ou (ii) se constitua
como fiador de obrigações de terceiros, resultava que tal é proibido. Terá
razão?
14