Interpretando a Epistemologia Qualitativa
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Interpretando a Epistemologia Qualitativa
Alice Marques*
A Epistemologia Qualitativa é uma proposta de González Rey (2005) que
objetiva sustentar, em primeiro plano, um pensamento epistemológico que acolha
formas de produção de conhecimento, as quais possam reconhecer as necessidades
de determinados objetos de estudo que contenham especificidades próprias em sua
constituição, como por exemplo, a singularidade e a complexidade – essas peculiares
a estudos no campo da subjetividade.
Verificando a dificuldade de trato a essas especificidades dentro do
instrumentalismo dominante na pesquisa qualitativa, o qual, por vezes, busca medir,
comparar, concluir, generalizar, classificar, González Rey (2005) necessitou
desenvolver um aporte metodológico que pudesse contar com um instrumental de
pesquisa adequado para resolver problemáticas nas quais os objetos de estudo
possuíssem qualidades do ‘impreciso’, do ‘incerto’, do ‘invisível’, do subjetivo.
Primeiramente, tres atributos epistemológico-metodológicos são estabelecidos
pelo autor em questão: construtivo-interpretativo, singular e dialógico.
1) Construtivo-interpretativo – compreensão do “conhecimento como
produção e não como apropriação linear” da realidade - esta referida como
um “domínio de campos inter-relacionados” (p. 5). Em um objeto dotado de
complexidade, cujo estudo não determine resultados exatos, medidos, ou
esperados, o atributo em questão contribui para que o pesquisador possa
produzir conhecimento do objeto utilizando possibilidades interpretativas.
2) Singular – valorização do singular como instância de produção científica.
As informações oriundas dos casos singulares afirmam-se como legítimos
construtos de desenvolvimento teórico, esse considerado pelo autor em
questão como uma “construção permanente de modelos de inteligibilidade”
que permitem tornar consistente e coerente “um campo ou problema na
construção do conhecimento” (p. 11).
“O teórico não se reduz a teorias que constituem fontes de saber preexistentes em relação ao processo de pesquisa, mas concerne, muito particularmente, aos processos de construção intelectual que acompanham a pesquisa” (p. 11).
3) Dialógico – compreensão da pesquisa como uma atividade comunicativa,
centrada em problemáticas humanas, sociais e em cuja produção científica
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inclui-se a comunicação entre pesquisador e pesquisado, entre teoria e
prática.
Todos os atributos contribuem para o desenvolvimento de modelos teóricos
próprios pelo pesquisador durante sua pesquisa.
Após imbuir-se desses tres princípios epistemológicos, o pesquisador deve
contar com as categorias de trabalho efetivo em sua pesquisa. Trata-se de categorias
conceituais e não classificatórias.
Compreendendo as categorias
Para González Rey (2005) “as categorias são formas de concretização e
organização do processo construtivo-interpretativo” (p. 138), o qual tem início desde o
primeiro momento da pesquisa. As categorias originam o corpo teórico, e inédito do
trabalho, esse resultante da “atividade pensante e construtiva do pesquisador” (p. 11).
Para se compreender a formação das categorias dois grandes conceitos são
pontuados como relevantes: sentido subjetivo (unidade) e subjetividade (sistema). Por
serem interconectados não permitem uma concepção isolada. O entendimento desses
conceitos influi integralmente na compreensão e no desenvolvimento teórico do
trabalho.
a) Os conceitos de sentido subjetivo e subjetividade
“O sentido caracteriza o processo da atividade humana em seus diversos
campos e ação”, na forma de uma “unidade integradora” (González Rey, 2005, p. 21).
Pode-se considera-lo como produto resultante dos processos vivenciais do sujeito.
Processos esses vivenciados externa e internamente pelo sujeito, mas, articulados em
seu interior. Por meio de sua qualidade integradora, o sentido subjetivo está presente
em todas as produções subjetivas, constituindo e instituindo outras matrizes
categoriais.
A subjetividade é o sistema responsável pela produção, organização e
articulação de sentidos subjetivos.
Após a compreensão dos conceitos de sentido e subjetividade torna-se
possível estabelecer e articular as demais categorias: núcleo de sentido e
configuração subjetiva.
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b) As categorias
b1) Zona, eixo ou núcleo de sentido1
A “zona de sentido” é conceituada pelo autor (2005) como um “espaço de
inteligibilidade” (p. 6), e representa uma unidade básica interpretativa demarcada pelo
agrupamento de conteúdos subjetivos (palavras e outros sinais) percebidos pelo
pesquisador. Já de modo inicial, o agrupamento aponta para um delineamento
subjetivo e particular do sujeito pesquisado, o que torna possível o avanço do
pesquisador em seu processo de descobertas. Mediante as zonas de sentido, o
pesquisador pode formular ou expandir suas hipóteses teóricas. O conhecimento
produzido nessa etapa pode suscitar, ampla e crescentemente, novos campos de
inteligibilidade teórica.
b2) Configuração Subjetiva
A configuração subjetiva é de natureza psicológica e caracteriza “formas
estáveis de organização individual dos sentidos subjetivos” (González Rey, 2005, p.
21). É uma delimitação que abrange as zonas ou núcleos de sentidos.
A configuração subjetiva abarca os sentidos - seus processos e contextos – e
define de certa maneira, a forma como o indivíduo sustenta e organiza seus sentidos
subjetivos.
Compreendendo os sentidos
Após a reunião de informações e o estabelecimento de unidades interpretativas
- trabalho gradual e profundo desde o início e continuamente desenvolvido em um
ambiente interpretativo - conforme coloca González Rey (2005), prossegue-se para o
produto teórico final.
Segue-se abaixo uma organização e planejamento de ações necessárias para
compor o espectro teórico ambicionado:
Passo 1. Obtenção de indicadores de sentido subjetivo: Os indicadores são
sinalizadores das primeiras células interpretativas e apresentam os aspectos que irão
justificar futuras proposições teóricas. Os indicadores se revelam mediante palavras,
sinais, gestos, entonações, entre outros, percebidos pelo pesquisador durante as
observações de seu objeto de estudo.
1 Os tres termos são utilizados por González Rey: Eixo (p.); Zona (2005, p. 6), e Núcleo (p. 131).
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Passo 2. Composição de núcleos de sentido por meio do agrupamento de
indicadores: Após a identificação dos indicadores, segue-se o agrupamento de
sentidos reunidos por afinidade, que resultarão na conformação de núcleos de sentido.
Passo 3. Configurações subjetivas: Os núcleos de sentido contribuirão para a
elaboração teórica final, qual seja a configuração subjetiva do objeto de estudo.
Instrumental de pesquisa
O instrumental de pesquisa é concebido pela EQ como um espaço de
interseção e interação entre o pesquisado e pesquisador e constitui-se mediante um
conjunto de estratégias relacionáveis que hão de compor “um sistema único de
informação” (González Rey, 2005, p. 43).
Não há normas de uso quanto aos instrumentos, considerando-se que o valor
encontra-se em habilitar o instrumento como “espaço portador de sentido subjetivo”
(González Rey, 2005, p. 45). Os instrumentos possuem a finalidade maior de provocar
e facilitar a expressão do sujeito pesquisado utilizando “estímulos e situações que o
pesquisador julgue mais convenientes” (p. 43). Não são buscadas respostas
determinadas e nem resultados específicos, mas composições expressivas da
subjetividade do pesquisado com as quais o pesquisador possa explorar teoricamente.
De modo ideal, a escolha dos instrumentos deve integrar formas orais e
escritas, pois dessa forma o sujeito pode alocar-se em diferentes posições de reflexão
gerando uma visibilidade e criticidade sobre sua própria experiência. González Rey
(2005) indica a opção escrita para “os sujeitos que conseguem se expressar por
escrito”, pois a finalidade do uso de instrumentos é “deslocar (o sujeito) de um sistema
de expressão, qualquer que seja” inserindo-o “em zonas alternativas de sentido
subjetivo em relação àquela que concentrava sua atenção em outro instrumento” (p.
50).
A conversação representa, para o autor referido, uma das fontes principais de
produção de informação, no entanto, outros instrumentos – orais e escritos - podem
ser criativamente elaborados para os fins que lhe são cabidos. Segue abaixo exemplo
de dois instrumentos – oral e escrito: a conversação e o completamento de frases.
a) De conversa em conversa
A conversação possui, dentro da pesquisa, uma condição de processadora da
relação desenvolvida entre pesquisado e pesquisador, vindo a superar seu caráter
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instrumental. Seu objetivo “é conduzir a pessoa estudada a campos significativos de
sua experiência pessoal” (González Rey, 2005, p. 126).
Dentro do “sistema conversacional” (González Rey, 2005, p. 45), o pesquisador
torna-se um conversador e não um perguntador. A conversa se baseia, naturalmente,
no diálogo e no desenvolvimento temático de modo conjunto. Outros instrumentos
podem atuar complementarmente como indutores para a produção de sentido:
fotografias, registros fonográficos, redação, e outros, já que as lembranças trazidas
geram no “sujeito pesquisado [...] verdadeiras construções implicadas nos diálogos
nos quais se expressa“ (p. 55).
b) Completamento de frases
A técnica de completamento de frases sugerida por González Rey (2005) se
propõe a deduzir indicadores de sentido advindos de respostas simples fornecidas
pelo preenchimento de frases incompletas. A técnica não recorre a nenhuma dedução
simples pela frase em si e nem busca elaborar textos por meio das relações de sentido
simples entre as mesmas. As frases devem apontar para informações relevantes que
nem sempre se apresentarão evidenciadas literalmente. As mesmas são processadas
teoricamente mediante agrupamentos e adotados os seguintes passos:
Passo 1: Compondo unidades de análise: Após o preenchimento de todas as
frases, as mesmas são agrupadas a cada 10 (dez) frases. Cada agrupamento
fundamenta uma unidade de análise, a qual é estabelecida mediante a sinalização de
indicadores no grupo de frases observado. Os indicadores são classificados da
seguinte forma:
a) Indicadores diretos – a frase preenchida apresenta uma possibilidade
verdadeiramente explícita de sentido, revelando de modo mais nítido algum
aspecto pontual de conteúdo. Ex. Tenho medo do meu pai;
b) Indicadores indiretos – no caso de a frase sinalizar uma mensagem
subjacente. Os indicadores indiretos “não possuem valor pelo conteúdo que
expressam, [...] mas encontram sentido em sua interação com outros
indicadores, alcançando nestas inter-relações” a relevância para a
informação desejada (González Rey e Mitjáns Martinez, 1989, p. 89);
c) Indicadores não relevantes
Passo 2: Síntese interpretativa: As unidades de análise compõem “uma síntese
interpretativa com elementos reveladores” (González Rey e Mitjáns Martinez, 1989, p.
80). Essa contribui, compõe igualmente o resultado interpretativo final.
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Os autores citados anteriormente não consideram com exclusividade o critério
de frequência para a análise das frases e suas unidades. O principal critério pelos
mesmos observados refere-se à facilidade e à utilidade para a compreensão integral
que a frase ou a unidade proporciona “à construção de um processo interpretativo”,
representando a frase ou a unidade um elemento fundamental interpretativo. O
resultado interpretativo dessa atividade deverá ser aderido e articulado junto aos
outros instrumentos (González Rey e Mitjáns Martinez, 1989, p. 89). Segue abaixo um
exemplo extraído de González Rey (2005). As palavras em negrito (grifo do próprio
autor) são apresentadas ao pesquisado para a elaboração de uma frase completa
utilizando uma palavra ou frase incompleta. A frase que acompanha as palavras em
negrito exemplifica possibilidades de resposta.
“Gostaria: de saber o que se passa comigo;
Lamento: estar deprimida;
Não posso: trabalhar;
Sofro: quando penso na minha situação” (p. 60).
A pesquisa se encerra quando o pesquisador entender como prima sua obra
interpretativa.
GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. Trad. Marcel A. F. Silva. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.
GONZÁLEZ REY, Fernando e MITJÁNS MARTÍNEZ, Albertina. Personalidad: su educación y desarollo (la). Habana: Pueblo y Educación, 1989.
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* Alice Marques é doutora em Educação pela Universidade de Brasília com a tese Eu músico: configurações subjetivas a duas ou três vozes (dezembro de 2010). É oboísta e professora do Centro de Educação Profissional - Escola de Música de Brasília desde 1991.