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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X INTERVENÇÕES ESTÉTICO-URBANAS: NOVAS POLÍTICAS DOS FEMINISMOS LATINO-AMERICANOS Júlia Glaciela da Silva Oliveira 1 Resumo: Entre as décadas de 1970 e 1980, muitos grupos e militantes feministas adotaram performances artísticas e intervenções culturais como forma de resignificar as estratégias de luta. Por meio de diversos elementos estéticos, como esquetes de teatros, afiches, painéis, publicações, grafites, entre outros, estes grupos têm ocupado os espaços públicos e realimentado a bandeira do “pessoal é político”. Assim, essas organizações têm reatualizando o imaginário cultural sobre temas inerentes aos feminismos latino-americanos como a violência de gênero, o aborto, a homofobia e as questões étnicas. Deste modo, o intuito desta apresentação é cartografar os grupos feministas latino- americanos que, desde os anos de 1980, têm utilizado a “arte ativista” como outra proposta de militância política. Busca-se, assim, perceber como esses grupos, por meio de suas intervenções estéticas nos espaços públicos, problematizam a construção das identidades, criticam as formas de representação e das relações de poder e possibilitam a constituição de novas formas de subjetividade. Palavras-chave: feminismos; América Latina; ativismo, arte, gênero Desde os inícios dos anos de 1980, na América Latina, organizações feministas passaram a conciliar aspectos artísticos à militância como uma nova forma de fazer política. Peças de teatro chamando a atenção para a violência de gênero ou afiches e intervenções estéticas denunciando, de forma humorada, a criminalização do aborto, constituíram-se como instrumentos políticos de muitos dos novos feminismos. Tomando referência a definição de Guasch: “arte política é aquela cujos temas refletem, de forma crítica e ironicamente, os problemas sociais. A arte ativismo assume um papel testemunhal e ativo frente às contradições e conflitos gerados pelos sistemas” (Guasch, 2000, p.483). Essa nova estratégia política, que concilia arte, militância e as demandas dos movimentos sociais, surgiu em meados da década de 1970 e se expandiu durante os anos de 1980. No entanto, foi na década de 1990 que essa nova figuração política se difundiu e se ganhou espaço nos países latino-americanos. Na análise de Felshin: A arte feminista, através de uma grande variedade de meios, tem feito eco nos problemas e interesses de um novo feminismo emergente dando forma estética ao credo o “pessoal é político”, uma ideia que agitou grande parte da arte ativista na dimensão política da experiência privada. Muitas ativistas feministas adotaram a performance artista nos anos 70 resignificando o gênero de acordo com as estratégias do feminismo. (...) Temos que destacar também que, independente destas artistas surgirem nos anos 70, 80 ou 90, os temas 1 Mestra em História Cultural, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

INTERVENÇÕES ESTÉTICO-URBANAS: NOVAS POLÍTICAS DOS FEMINISMOS LATINO-AMERICANOS

Júlia Glaciela da Silva Oliveira1

Resumo: Entre as décadas de 1970 e 1980, muitos grupos e militantes feministas adotaram performances artísticas e intervenções culturais como forma de resignificar as estratégias de luta. Por meio de diversos elementos estéticos, como esquetes de teatros, afiches, painéis, publicações, grafites, entre outros, estes grupos têm ocupado os espaços públicos e realimentado a bandeira do “pessoal é político”. Assim, essas organizações têm reatualizando o imaginário cultural sobre temas inerentes aos feminismos latino-americanos como a violência de gênero, o aborto, a homofobia e as questões étnicas. Deste modo, o intuito desta apresentação é cartografar os grupos feministas latino-americanos que, desde os anos de 1980, têm utilizado a “arte ativista” como outra proposta de militância política. Busca-se, assim, perceber como esses grupos, por meio de suas intervenções estéticas nos espaços públicos, problematizam a construção das identidades, criticam as formas de representação e das relações de poder e possibilitam a constituição de novas formas de subjetividade. Palavras-chave: feminismos; América Latina; ativismo, arte, gênero

Desde os inícios dos anos de 1980, na América Latina, organizações feministas passaram a

conciliar aspectos artísticos à militância como uma nova forma de fazer política. Peças de teatro

chamando a atenção para a violência de gênero ou afiches e intervenções estéticas denunciando, de

forma humorada, a criminalização do aborto, constituíram-se como instrumentos políticos de

muitos dos novos feminismos. Tomando referência a definição de Guasch: “arte política é aquela

cujos temas refletem, de forma crítica e ironicamente, os problemas sociais. A arte ativismo assume

um papel testemunhal e ativo frente às contradições e conflitos gerados pelos sistemas” (Guasch,

2000, p.483). Essa nova estratégia política, que concilia arte, militância e as demandas dos

movimentos sociais, surgiu em meados da década de 1970 e se expandiu durante os anos de 1980.

No entanto, foi na década de 1990 que essa nova figuração política se difundiu e se ganhou espaço

nos países latino-americanos. Na análise de Felshin:

A arte feminista, através de uma grande variedade de meios, tem feito eco nos problemas e interesses de um novo feminismo emergente dando forma estética ao credo o “pessoal é político”, uma ideia que agitou grande parte da arte ativista na dimensão política da experiência privada. Muitas ativistas feministas adotaram a performance artista nos anos 70 resignificando o gênero de acordo com as estratégias do feminismo. (...) Temos que destacar também que, independente destas artistas surgirem nos anos 70, 80 ou 90, os temas

1 Mestra em História Cultural, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.

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feministas e de gênero têm alimentado a arte ativista de um modo predominante (FELSHIN,1996, p.86).

Esse ativismo tem elegido o espaço público, ao invés de lugares instituídos como campos da

arte, para realizar as intervenções, as exposições e as instalações. Isto é, essas organizações trazem

o drama e as concepções estéticas dos palcos e das galerias para o cotidiano da população buscando

interagir com o público e levantar novas reflexões sobre as questões de gênero. Ao trazer a arte

para a rua, fora dos redutos tradicionais, esses coletivos possibilitam que se estabeleça uma relação

entre as imagens e as cenas da contemporaneidade. Como reflete Canclini, as intervenções urbanas

funcionam como um contra poder às ordens e valores instituídos trazendo as inquietações populares

para confluir com o cenário urbano:

Grafites, cartazes comerciais, manifestações sociais e políticas, monumentos: linguagens que representam as principais forças que atuam na cidade. Os monumentos são quase sempre as obras com que o poder político consagra as pessoas e os acontecimentos fundadores do Estado. Os cartazes comerciais procuram sincronizar a vida cotidiana com os interesses do poder econômico. Os grafites (como os cartazes e os atos políticos da oposição) expressam a crítica popular à ordem imposta (CANCLINI, 2008, p. 8)

Entre as décadas de 1970 e 1980, algumas artistas, como as norte-americanas Nancy Spero,

Marta Rosler, Ilona Granet e Barbara Kruger e as mexicanas Monica Mayer e Maris Bustamante,

empregaram elementos estéticos para tratar das demandas dos feminismos. Em 1974, Nancy Spero

vinculou as questões de gênero à guerra na série Torture of Women (1974 -1976), na qual a artista

denunciou cenas de violência sexual vivenciada pelas mulheres. Já Barbara Kruger utilizou noções

estéticas da publicidade e da fotografia para tratar de temas como aborto e violência; e, Ilona Granet

compôs os Street Signs, placas irônicas e humoradas com “regras de conduta” para os homens.

Estas instruíam aos homens controlarem seus “instintos naturais” ao ver uma mulher na rua ou a

evitar um acidente de trânsito ao desviar o olhar e “assoviar” para as transeuntes. As placas foram

escritas em inglês e espanhol, espalhadas pelas ruas de Nova Iorque. Foi ainda neste período, que se

formaram importantes coletivos de artativismo feminista a exemplo do grupo de teatro inglês

Monstrous Regiment, em 1975, o coletivo mexicano Polvo de Gallina Negra, em 1983, e o norte-

americano Guerrilhas Girls, em 1985. Esses coletivos, formados por mulheres autônomas, fazem

uso do humor e da ironia para tecer suas críticas ao patriarcado, ao machismo e às relações

assimétricas de gênero que relegam às mulheres posições de sujeição na cultura e na sociedade.

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(Imagem 1: Curb your animal instinct, Série Street Signs, Ilona Granet, 1980)

Nos países do Cone Sul, onde o movimento feminista da segunda onda ressurgiu em meio

aos regimes militares e as lutas pela liberdade, os coletivos que fazem uso político da arte

organizaram-se, sobretudo, no final dos anos de 1980 e na década de 1990. O grupo anarquista e

indígena boliviano, Mujeres Creando, fundou-se em 1992 e ocupa o centro da cidade com frases

nos muros, além de performances teatrais, chamando a atenção para as questões de gênero, mas

também para as questões étnicas que cruzam o cotidiano das bolivianas, assim como a pobreza e a

ação governamental. Segundo Pedro essas apresentações ousadas e bem humoradas “buscam criar

impacto pelo escândalo que provocam” (Pedro, 2008, p.60). Do mesmo modo, no Brasil, o grupo de

teatro feminista Louca de pedra lilás, fundado em 1989, em Recife, inquieta as ruas com peças que

discutem com o público a violência doméstica e a criminalização do aborto. No Chile, as ativistas

da Red Chilena contra la violência doméstica y sexual, fundada em 1992, estampam grandes

painéis e distribuírem adesivos com frases tais como: “Si uma mujer disse no es no!” ou “Cuidado

el machismo mata!”; e, ainda em Santiago, as feministas do Malignas Influências levam

performances sobre a opressão das mulheres para os espaços públicos, mas também interveem nos

espaços instituídos como os museus. Em Buenos Aires, desde 2003, as Mujeres Publica trazem para

as ruas questionamentos sobre a identidade feminina e as relações de poder que ainda existem sobre

o corpo feminino. Esses coletivos, alguns formados por ativistas autônomas e outros

institucionalizados como ONGs, têm realimentado a militância política dos anos de 1960 e 1970

que abrangeu tanto os aspectos gerais da sociedade, bem como as questões específicas de gênero.

Nesse texto, abordarei um pouco da militância dos coletivos brasileiro e argentino elencados acima.

Pelas ruas do Recife e de Buenos Aires...

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O feminismo que surgiu nos países latino-americanos nas décadas de 1960 e 1970, em sua

maioria, tiveram como ponto de partida as experiências da militância na esquerda. O exílio de

muitas militantes na Europa ou nos Estados Unidos as aproximou das discussões feministas que ali

emergiam e fomentou a segunda onda feminista nos países do Cone Sul. Obviamente, como lembra

Moraes (1982), diferentemente das discussões feministas europeias ou norte-americanas que tinham

como alvo principal o patriarcado, as feministas latino-americanas necessitaram conciliar às

demandas femininas às questões das liberdades políticas, à carestia, à luta campesina e às questões

étnica. Essa pluralidade de situações que marcaram o feminismo latino-americano levou a conflitos

internos, como a separação de grupos específicos sobre as questões femininas e outros que

buscavam tratar tanto dos assuntos de gênero associado às questões gerais. Nos desdobramentos, a

falta de reconhecimento das demandas nas questões ditas específicas também levou a fragmentação

do feminismo em grupos idenitários como os das lésbicas, das negras, das indígenas ou das

camponesas. Junto a isso, as teóricas feministas discutiam a multiplicidade dos sujeitos e a crise da

representação, pois, como afirma Butler “se alguém é uma mulher, certamente não é tudo que esse

alguém é” (Butler, 2008, p.17).

Paralelamente, com a transição política, no início dos anos de 1980, as democracias que se

consolidaram na América Latina incorporam as questões de gênero e de etnia às suas políticas

públicas e designaram espaços institucionais voltados às questões femininas, tais como o Conselho

Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) criado no Brasil, em 1985; o Consejo Nacional de la

Mujer, criado, em 1992 na Argentina. Ao mesmo tempo ocorreu a expansão das Organizações Não

Governamentais (ONGs), sobretudo no início dos anos de 1990, financiadas por agências de

fomento internacionais europeias e norte-americanas. A eclosão das ONGs resultou em uma

transformação da ação política dos movimentos sociais. No que se refere aos feminismos, muitas

militantes que outrora defenderam a autonomia dos movimentos frente ao Estado e aos partidos

políticos, passaram a ocupar cargos em espaços institucionais ou em ONGs, alterando o quadro de

“militante feminista” para o de “especialista em assuntos de gênero”. Segundo Alvarez (2000), nos

anos de 1990, muitas feministas afirmaram que levar seus discursos e práticas para diversas arenas

socioculturais e políticas poderia integrar as demandas e “causar impacto ou transformar de dentro

os discursos e práticas político-culturais dominantes” (Alvarez, 2000, p.392).

Todavia, essa reconfiguração das ações políticas cederam espaços para diversos

questionamentos, especialmente no que concerne a radicalidade dos feminismos. Com a conquista

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de algumas medidas liberais que visam uma suposta igualdade de gênero, passou-se a interrogar se

os feminismos, sobretudo aqueles que dependem de financiamento do Estado ou das agências de

fomento, teriam adotado uma prática menos incisiva à crítica ao patriarcado e aos discursos que

tentam definir um lugar e um destino específico para as mulheres.

Refletindo sobre estes pontos que encontrei na militância dos novos feminismos, isto é, os

grupos formados após o período de redemocratização, um caminho para pensar sobre estas

questões. O coletivo de teatro feminista brasileiro, Louca de pedra lilás, foi fundado logo após a

redemocratização do país e tem entre suas “artartivistas” fundadoras, como se definem, Ana Bosch,

Gigi Blander, Cristina Nascimento e Cristina Maia, militantes que nas décadas anteriores estiveram

presentes nas discussões e lutas pelas questões específicas e gerais. O coletivo foi formado, segundo

depoimento Nascimento, “a partir do desejo e da necessidade de inquietas militantes feministas em

criar imagens fortes, simples e bem humoradas para ilustrar as questões das mulheres e as demandas

do movimento” (Garcia, 2008, p. 22).

Em 1996, o grupo oficializou-se enquanto ONG, momento em que conseguiram uma sede

própria, o Galpão das loucas e uma Kombi com os equipamentos de som que possibilita ao grupo

levar as peças de teatro para cidades do interior do estado de Pernambuco. Para o coletivo, o teatro

de rua é um instrumento político que permite desconstruir as identidades de gênero e, por meio da

interação humorada com o povo, desmistificar a própria imagem do feminismo e trazer para a

reflexão demandas dos direitos humanos das mulheres que, mesmo diante de todas as inserções e

conquistas do movimento, ainda se fazem urgentes. Além das questões de gênero, o grupo de teatro

aborda outros temas contemporâneos que cruzam os problemas de gênero como a crítica às

desigualdades étnicas e à questão ambiental.

A experiência do teatro engajado de rua fez parte da trajetória de resistência, no Brasil,

durante o período de luta contra o regime militar. O grupo de teatro popular União e Olho Vivo,

fundado na década de 1970, levava para a periferia da cidade de São Paulo as discussões sobre as

condições de vida da população. Do mesmo modo, os grupos de Teatro do Oprimido, presentes em

diversos países da América Latina, buscam, além de democratizar o teatro, estabelecer uma

linguagem e uma comunicação direta entre espectadores e atores fazendo com que haja uma

reflexão sobre as questões sociais e o a importância dos indivíduos dentro de suas comunidades. De

acordo com Bennaton, as ações do teatro engajado propicia, também, transformações no espaço

urbano, no sentido “da experiência de realização pessoal e política de resistência perante estruturas

rígidas da sociedade atual” (Bennaton, 2009, p.21).

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As “Loucas”, como se intitulam, trazem para as ruas cenas cotidianas que buscam, de

maneira humorada, escandalizar a população e a fazer pensar sobre questões que parecem não se

tratarem de temas políticos. Em 2001, o grupo circulou a peça de teatro Mamy Blue em cinco

cidades da região metropolitana do Recife. O tema central da peça era a morte das mulheres e um

dos elementos utilizados na performance era a exposição nas ruas de pares de sapatos femininos

com uma placa vermelha na qual constava as inicias do nome da falecida, sua idade e cidade de

nascimento, ao lado eram colocadas rosas. Na peça apresentada pelo coletivo, a morte sucessiva de

mulheres não passava pelas relações violentas vividas nas relações familiares e afetivas, como é

visível e reconhecido em grande parte dos países latino-americanos; mas pelo descaso do poder

Estatal que não disponibiliza um programa de saúde adequado às mulheres no nordeste brasileiro.

Chamando a atenção para o caso a partir da pergunta “quem faz o parto?”, as atrizes dramatizaram

situações cotidianas enfrentadas pelas jovens mães nordestinas que são destinadas à morte pela falta

de acesso ao atendimento médico, o que tem levado o nordeste a um grande índice de mortalidade

materna.

Imagem 2 e 3: Peça Mamy Blue, Loucas de pedra lilás, Jaboatão, 2001.

Se o descaso do Estado com a maternidade foi tema de uma das peças itinerantes das

“Loucas”, a morte provocada pelo aborto inseguro foi o enredo da série de vídeos “educativos e

provocativos” intitulada “Loucas pelo direito de decidir”. A série divide-se em oito partes que

percorrem o caminho das discussão sobre a descriminalização do aborto: as aflições, onde você

mora?, a clandestinidade, o poder médico, o maltrato, o Estado Laico, a Luta Legal e Quem

Decide? Disponível na internet, a s aborda as questões culturais apontando, por exemplo, lugares

onde o aborto é uma decisão das mulheres e outros países em que, mesmo o aborto sendo

criminalizado, há uma grande incidência de abortamento de fetos femininos, dado o pouco valor

que as mulheres recebem nesta sociedade. Com os rostos pintados de branco e com roupas simples,

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as ativistas também dramatizam, de forma didática, os dilemas que as mulheres passam, tanto no

aspecto familiar, quanto social, para tomarem a decisão sobre o aborto, assim como os desafios a

serem enfrentados para levar adiante a decisão sobre seu corpo. De maneira bem humorada, as

questões levantadas pela série também foram levadas para as ruas no intuito de trazer o

questionamento para a população e colher assinaturas para a Frente Nacional pelo Fim da

Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, no Dia de Luta pela Legalização do

Aborto na América Latina e Caribe, em 2009.

Figura 4: Manifestação pela descriminalização do aborto, Loucas de Pedra Lilás, Recife 2009.

É também de forma irônica e humorada que o coletivo argentino de “ativismo visual”

Mujeres Pública ocupa as ruas de Buenos Aires trazendo novas e antigas bandeiras dos feminismos.

Desde 2003, o grupo formado por três artistas têm utilizado elementos gráficos e estéticos de baixo

custo para colocar nas ruas os questionamentos acerca da misoginia cultural. Como está exposto no

site do coletivo:

Uno de nuestros objetivos es denunciar y hacer visibles situaciones y lugares de opresión que vivimos las mujeres como sujetos sociales a través de la producción y puesta en circulación de herramientas simbólicas. Intentamos, a través de nuestras acciones, denunciar y desnaturalizar prácticas y discursos sexistas que encontramos profundamente arraigados en nuestra cultura. Desde un principio pensamos el espacio público como el lugar más apropiado para desplegar y poner en diálogo lo que producimos. Con la intención de alentar a la reapropiación, elegimos utilizar materiales de bajo costo para hacer afiches, objetos y acciones que pegamos en la calle (...). (Disponível em: < http://www.mujerespublicas.com.ar>. Acesso: 05/07/2013).

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O grupo se inspira na vanguarda artística e política argentina dos anos de 1960, como

Tucumán Arde, caracterizada pela “forte ideia de revolucionar a relação clássica entre a obra e o

espectador, que coloca a este um lugar de contemplação, para outorga-lhe um papel de participador

ativo” (Longoni; Mestman, 2008, p.60). Utilizando material de baixo custo, as ativistas do Mujeres

Públicas buscam mobilizar os espectadores por meio de intervenções que utilizam o escândalo e a

ironia como estratégias políticas. Em 2004, por exemplo, as ativistas espalharam pelas ruas da

capital argentina uma “estampita” na qual se encontra uma oração pelo direito ao aborto. A oração,

que traz ao lado a figura da Virgem Maria, suplica pelo direito de decidir sobre o próprio corpo,

sem interferência da Igreja ou do Estado e agradece por não ser nem virgem, nem mãe.

Figura 5: Estampita, Mujeres Publica, 2004.

O grupo se apropriou de um simbólico tradicional da Igreja Católica, os “santinhos”, e o

reverteu. De forma sarcástica, o coletivo transformou a linguagem adotada pela instituição para

difundir a proposta de descriminalização do aborto a qual a Igreja se opõe fortemente, exercendo

influência sobre a discussão política nos Estados considerados laicos. Durante todo o ano de 2004, o

coletivo distribuiu periodicamente a “estampita política” nas esquinas de Buenos Aires, nas portas

de faculdades, incluindo diversa igrejas da capital.

As problematizações sobre o aborto, assim como o uso do espaço público não são algo novo

para os feminismos. Desde os anos de 1970, com as bandeiras “pessoal é político” e “nosso corpo

nos pertence”, as feministas latino-americanas têm ocupado as ruas com passeatas, manifestações e

debates sobre as formas de controle sobre o corpo feminino e as assimetrias que convergem na vida

das mulheres. No entanto, como Rosa (2010) chama a atenção, os movimentos de artativismo,

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como o Mujeres Publica, têm dado novos significados políticos para o uso do espaço urbano ao

inserirem imagens irônicas que apontam e questionam as formas de opressão e violência que

entrecruzam o cotidiano feminino. Como a autora analisa, as Mujeres Públicas fazem uso de “una

iconografía que contiene ironía, humor, mordacidad y que cuestiona y exhibe situaciones desde

riesgosas a trágicas por las que atraviesan las mujeres” (Rosa, 2010)

Essa forma incisiva e chocante de colocar as questões políticas do feminismo se fez

presente, em 2006, durante a Marcha do Orgulho LGBTTSI, na intervenção “Té Taz”. O grupo

colocou nas ruas uma mesa, cadeiras, um bule branco e saquinhos de chá para imersão onde

encontravam-se duas questões: “digerir para não vomitar? Ou “vomitar para não digerir?” A

intervenção, como explica o coletivo, tinha, a princípio, o objetivo questionar o silêncio acerca da

violência física, sexual e social cometida contra as lésbicas. Contudo, as inquietações levantadas

podem ser deslocadas sobre a violência cometida contra o gênero feminino, isto é, sobre todos os

sujeitos que se aproximam ou performatizam o que é definido como gênero feminino.

Em nossa atualidade, como argumenta Segato, não podemos falar em um “tempo de paz”

para as mulheres, pois o uso rotineiro de formas de violência e apropriação do corpo feminino nos

espaços públicos ou privados, nos tempos de paz ou de guerras convencionais, “penalizam uma

quantidade muito grande de mulheres” (Segato, 2010, p. 56). A relação entre a violência contra o

corpo feminino e a guerra também foi abordada pelo coletivo na série “Troféu de Guerra”, onde as

ativistas colocaram em pequenos soldados de brinquedo, que fazem parte da cultura infantil

masculina, uma etiqueta marrom com a frase “mulher violentada = troféus de guerra”. A crítica é

direcionada ao uso do corpo feminino como estratégia de guerra nos conflitos armados. Carmem

Rial (2007), em trabalho recente sobre violações cometidas pelos soldados norte-americanos no

Iraque, enfatiza que o binômio “mulher-guerra” remete, além dos casos de estupros, também aos

raptos, aos casamentos forçados, à prostituição ou ainda aos abusos sexuais em troca da preservação

de bens necessários à sobrevivência. Isto é, o corpo feminino é percebido como lócus de

demonstração de poder do masculino, portanto, profanar este é invadir o espaço histórico do outro,

do masculino. Nesta chave, o corpo das mulheres serve como passaporte para a destruição não da

mulher em si, mas do homem, pois o estuprador ocupa o lugar que seria reservado ao marido e ao

filho deste. Deste modo, a intervenção feita pelo grupo, joga com os elementos que trazem na

constituição da subjetividade masculina o direito e o dever de dominar o corpo feminino, como um

território a ser explorado e dominado. Ambas as intervenções traz, de forma contundente, uma

crítica aos discursos que visam silenciar a gama de violências que são cometidas diariamente contra

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as mulheres. Hoje, frente a conquista de algumas leis nacionais que visam inibir a violência

doméstica contra as mulheres, encontram-se diversos discursos que tentam reafirmar no imaginário

social que as formas de relações de poder sobre o corpo feminino foram extintas. Essas

intervenções, ao contrário, não deixam que se apaguem das paisagens sociais as relações de poder,

perpetradas por cenas de violência, que se fazem presente cotidianamente na vida das mulheres.

Figura 7 e 8: Té Taz e série Trofeo de Guerra, Mujeres Pública, 2006 e 2007.

Considerações finais

A pluralização do movimento feminista, entre as décadas de 1980 e 1990, possibilitou a

intensificação das lutas contra as descriminações raciais e sexistas, ampliou as reflexões e a

visibilidade sobre a violência de gênero e a necessidade de continuar resistindo às formas de

controle sobre o corpo feminino. Os coletivos de intervenções artísticas-urbanas aqui apresentados

têm recuperado e renovado as demandas dos feminismos latino-americanos por meio da criatividade

que utiliza a cidade, o corpo e as estéticas visuais, irônicas e humoradas, para falar de forma direta

sobre os problemas que, mesmo diante das conquistas nas últimas quatro décadas, ainda residem

sobre a vida das mulheres. O riso que as ativistas do Loucas de pedra lilás causa com suas peças

realizadas no centro de Recife ou nas pequenas cidades do nordeste brasileiro, não trata-se de um

riso leve, é um riso constrangedor, denso. As subjetividades construídas como inerentes aos sujeitos

são colocadas em jogo nas cenas que dramatizam as situações vivenciadas no dia a dia, permitindo

que os “espectadores” deem outros olhares para aquelas cenas. Do mesmo modo, a linguagem

mordaz utilizada pelas ativistas do Mujeres Pública permite que temas que estão acomodados

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dentro de um suposto discurso da igualdade, no qual as mulheres já conquistaram tudo o que

desejavam, venha à tona e inquiete pelo choque e impacto que causa aos transeuntes. Em suma, ao

invés de uma perda da radicalidade, como muitos têm criticado o feminismo, acredito que a

militância destes grupos têm reativado a crítica feminista ao patriarcado presente nas diversas

instituições sociais e mantido viva a necessidade de resistência aos discursos misóginos, sexistas e

raciais que insistem em delinear destinos naturais e inquestionáveis aos indivíduos.

Bibliografia

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Esthetic-Urban Interventions: the new political of Latin American feminisms Abstract: Since the 1970s, many feminist groups have adopted artistic performances and cultural

interventions as a way to reframe the strategies to fight. Through various aesthetic elements such as

plays, afiches, panels, posts, graffiti, among others, these groups have occupied public spaces and

invigorate the banner of "personal is political". Thus, these organizations are reviving the cultural

imagination on issues inherent to Latin American feminisms and gender violence, abortion,

homophobia and ethnic issues. In this way, the aim of this presentation is to map the Latin

American feminist groups that since the 1980s have used "activist art" as another proposal for

political activism. Seeks to understand how these groups, through their aesthetic interventions in

public spaces, problematize the construction of identities and criticize the forms of representation

and power relations enabling the creation of new forms of subjectivity.

Keywords: Feminism, Latin America, activism, art, gender.