INTERVENÇÕES ESTÉTICO-URBANAS: NOVAS … · escritas em inglês e espanhol, espalhadas pelas...
Transcript of INTERVENÇÕES ESTÉTICO-URBANAS: NOVAS … · escritas em inglês e espanhol, espalhadas pelas...
1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
INTERVENÇÕES ESTÉTICO-URBANAS: NOVAS POLÍTICAS DOS FEMINISMOS LATINO-AMERICANOS
Júlia Glaciela da Silva Oliveira1
Resumo: Entre as décadas de 1970 e 1980, muitos grupos e militantes feministas adotaram performances artísticas e intervenções culturais como forma de resignificar as estratégias de luta. Por meio de diversos elementos estéticos, como esquetes de teatros, afiches, painéis, publicações, grafites, entre outros, estes grupos têm ocupado os espaços públicos e realimentado a bandeira do “pessoal é político”. Assim, essas organizações têm reatualizando o imaginário cultural sobre temas inerentes aos feminismos latino-americanos como a violência de gênero, o aborto, a homofobia e as questões étnicas. Deste modo, o intuito desta apresentação é cartografar os grupos feministas latino-americanos que, desde os anos de 1980, têm utilizado a “arte ativista” como outra proposta de militância política. Busca-se, assim, perceber como esses grupos, por meio de suas intervenções estéticas nos espaços públicos, problematizam a construção das identidades, criticam as formas de representação e das relações de poder e possibilitam a constituição de novas formas de subjetividade. Palavras-chave: feminismos; América Latina; ativismo, arte, gênero
Desde os inícios dos anos de 1980, na América Latina, organizações feministas passaram a
conciliar aspectos artísticos à militância como uma nova forma de fazer política. Peças de teatro
chamando a atenção para a violência de gênero ou afiches e intervenções estéticas denunciando, de
forma humorada, a criminalização do aborto, constituíram-se como instrumentos políticos de
muitos dos novos feminismos. Tomando referência a definição de Guasch: “arte política é aquela
cujos temas refletem, de forma crítica e ironicamente, os problemas sociais. A arte ativismo assume
um papel testemunhal e ativo frente às contradições e conflitos gerados pelos sistemas” (Guasch,
2000, p.483). Essa nova estratégia política, que concilia arte, militância e as demandas dos
movimentos sociais, surgiu em meados da década de 1970 e se expandiu durante os anos de 1980.
No entanto, foi na década de 1990 que essa nova figuração política se difundiu e se ganhou espaço
nos países latino-americanos. Na análise de Felshin:
A arte feminista, através de uma grande variedade de meios, tem feito eco nos problemas e interesses de um novo feminismo emergente dando forma estética ao credo o “pessoal é político”, uma ideia que agitou grande parte da arte ativista na dimensão política da experiência privada. Muitas ativistas feministas adotaram a performance artista nos anos 70 resignificando o gênero de acordo com as estratégias do feminismo. (...) Temos que destacar também que, independente destas artistas surgirem nos anos 70, 80 ou 90, os temas
1 Mestra em História Cultural, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.
2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
feministas e de gênero têm alimentado a arte ativista de um modo predominante (FELSHIN,1996, p.86).
Esse ativismo tem elegido o espaço público, ao invés de lugares instituídos como campos da
arte, para realizar as intervenções, as exposições e as instalações. Isto é, essas organizações trazem
o drama e as concepções estéticas dos palcos e das galerias para o cotidiano da população buscando
interagir com o público e levantar novas reflexões sobre as questões de gênero. Ao trazer a arte
para a rua, fora dos redutos tradicionais, esses coletivos possibilitam que se estabeleça uma relação
entre as imagens e as cenas da contemporaneidade. Como reflete Canclini, as intervenções urbanas
funcionam como um contra poder às ordens e valores instituídos trazendo as inquietações populares
para confluir com o cenário urbano:
Grafites, cartazes comerciais, manifestações sociais e políticas, monumentos: linguagens que representam as principais forças que atuam na cidade. Os monumentos são quase sempre as obras com que o poder político consagra as pessoas e os acontecimentos fundadores do Estado. Os cartazes comerciais procuram sincronizar a vida cotidiana com os interesses do poder econômico. Os grafites (como os cartazes e os atos políticos da oposição) expressam a crítica popular à ordem imposta (CANCLINI, 2008, p. 8)
Entre as décadas de 1970 e 1980, algumas artistas, como as norte-americanas Nancy Spero,
Marta Rosler, Ilona Granet e Barbara Kruger e as mexicanas Monica Mayer e Maris Bustamante,
empregaram elementos estéticos para tratar das demandas dos feminismos. Em 1974, Nancy Spero
vinculou as questões de gênero à guerra na série Torture of Women (1974 -1976), na qual a artista
denunciou cenas de violência sexual vivenciada pelas mulheres. Já Barbara Kruger utilizou noções
estéticas da publicidade e da fotografia para tratar de temas como aborto e violência; e, Ilona Granet
compôs os Street Signs, placas irônicas e humoradas com “regras de conduta” para os homens.
Estas instruíam aos homens controlarem seus “instintos naturais” ao ver uma mulher na rua ou a
evitar um acidente de trânsito ao desviar o olhar e “assoviar” para as transeuntes. As placas foram
escritas em inglês e espanhol, espalhadas pelas ruas de Nova Iorque. Foi ainda neste período, que se
formaram importantes coletivos de artativismo feminista a exemplo do grupo de teatro inglês
Monstrous Regiment, em 1975, o coletivo mexicano Polvo de Gallina Negra, em 1983, e o norte-
americano Guerrilhas Girls, em 1985. Esses coletivos, formados por mulheres autônomas, fazem
uso do humor e da ironia para tecer suas críticas ao patriarcado, ao machismo e às relações
assimétricas de gênero que relegam às mulheres posições de sujeição na cultura e na sociedade.
3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
(Imagem 1: Curb your animal instinct, Série Street Signs, Ilona Granet, 1980)
Nos países do Cone Sul, onde o movimento feminista da segunda onda ressurgiu em meio
aos regimes militares e as lutas pela liberdade, os coletivos que fazem uso político da arte
organizaram-se, sobretudo, no final dos anos de 1980 e na década de 1990. O grupo anarquista e
indígena boliviano, Mujeres Creando, fundou-se em 1992 e ocupa o centro da cidade com frases
nos muros, além de performances teatrais, chamando a atenção para as questões de gênero, mas
também para as questões étnicas que cruzam o cotidiano das bolivianas, assim como a pobreza e a
ação governamental. Segundo Pedro essas apresentações ousadas e bem humoradas “buscam criar
impacto pelo escândalo que provocam” (Pedro, 2008, p.60). Do mesmo modo, no Brasil, o grupo de
teatro feminista Louca de pedra lilás, fundado em 1989, em Recife, inquieta as ruas com peças que
discutem com o público a violência doméstica e a criminalização do aborto. No Chile, as ativistas
da Red Chilena contra la violência doméstica y sexual, fundada em 1992, estampam grandes
painéis e distribuírem adesivos com frases tais como: “Si uma mujer disse no es no!” ou “Cuidado
el machismo mata!”; e, ainda em Santiago, as feministas do Malignas Influências levam
performances sobre a opressão das mulheres para os espaços públicos, mas também interveem nos
espaços instituídos como os museus. Em Buenos Aires, desde 2003, as Mujeres Publica trazem para
as ruas questionamentos sobre a identidade feminina e as relações de poder que ainda existem sobre
o corpo feminino. Esses coletivos, alguns formados por ativistas autônomas e outros
institucionalizados como ONGs, têm realimentado a militância política dos anos de 1960 e 1970
que abrangeu tanto os aspectos gerais da sociedade, bem como as questões específicas de gênero.
Nesse texto, abordarei um pouco da militância dos coletivos brasileiro e argentino elencados acima.
Pelas ruas do Recife e de Buenos Aires...
4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
O feminismo que surgiu nos países latino-americanos nas décadas de 1960 e 1970, em sua
maioria, tiveram como ponto de partida as experiências da militância na esquerda. O exílio de
muitas militantes na Europa ou nos Estados Unidos as aproximou das discussões feministas que ali
emergiam e fomentou a segunda onda feminista nos países do Cone Sul. Obviamente, como lembra
Moraes (1982), diferentemente das discussões feministas europeias ou norte-americanas que tinham
como alvo principal o patriarcado, as feministas latino-americanas necessitaram conciliar às
demandas femininas às questões das liberdades políticas, à carestia, à luta campesina e às questões
étnica. Essa pluralidade de situações que marcaram o feminismo latino-americano levou a conflitos
internos, como a separação de grupos específicos sobre as questões femininas e outros que
buscavam tratar tanto dos assuntos de gênero associado às questões gerais. Nos desdobramentos, a
falta de reconhecimento das demandas nas questões ditas específicas também levou a fragmentação
do feminismo em grupos idenitários como os das lésbicas, das negras, das indígenas ou das
camponesas. Junto a isso, as teóricas feministas discutiam a multiplicidade dos sujeitos e a crise da
representação, pois, como afirma Butler “se alguém é uma mulher, certamente não é tudo que esse
alguém é” (Butler, 2008, p.17).
Paralelamente, com a transição política, no início dos anos de 1980, as democracias que se
consolidaram na América Latina incorporam as questões de gênero e de etnia às suas políticas
públicas e designaram espaços institucionais voltados às questões femininas, tais como o Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) criado no Brasil, em 1985; o Consejo Nacional de la
Mujer, criado, em 1992 na Argentina. Ao mesmo tempo ocorreu a expansão das Organizações Não
Governamentais (ONGs), sobretudo no início dos anos de 1990, financiadas por agências de
fomento internacionais europeias e norte-americanas. A eclosão das ONGs resultou em uma
transformação da ação política dos movimentos sociais. No que se refere aos feminismos, muitas
militantes que outrora defenderam a autonomia dos movimentos frente ao Estado e aos partidos
políticos, passaram a ocupar cargos em espaços institucionais ou em ONGs, alterando o quadro de
“militante feminista” para o de “especialista em assuntos de gênero”. Segundo Alvarez (2000), nos
anos de 1990, muitas feministas afirmaram que levar seus discursos e práticas para diversas arenas
socioculturais e políticas poderia integrar as demandas e “causar impacto ou transformar de dentro
os discursos e práticas político-culturais dominantes” (Alvarez, 2000, p.392).
Todavia, essa reconfiguração das ações políticas cederam espaços para diversos
questionamentos, especialmente no que concerne a radicalidade dos feminismos. Com a conquista
5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
de algumas medidas liberais que visam uma suposta igualdade de gênero, passou-se a interrogar se
os feminismos, sobretudo aqueles que dependem de financiamento do Estado ou das agências de
fomento, teriam adotado uma prática menos incisiva à crítica ao patriarcado e aos discursos que
tentam definir um lugar e um destino específico para as mulheres.
Refletindo sobre estes pontos que encontrei na militância dos novos feminismos, isto é, os
grupos formados após o período de redemocratização, um caminho para pensar sobre estas
questões. O coletivo de teatro feminista brasileiro, Louca de pedra lilás, foi fundado logo após a
redemocratização do país e tem entre suas “artartivistas” fundadoras, como se definem, Ana Bosch,
Gigi Blander, Cristina Nascimento e Cristina Maia, militantes que nas décadas anteriores estiveram
presentes nas discussões e lutas pelas questões específicas e gerais. O coletivo foi formado, segundo
depoimento Nascimento, “a partir do desejo e da necessidade de inquietas militantes feministas em
criar imagens fortes, simples e bem humoradas para ilustrar as questões das mulheres e as demandas
do movimento” (Garcia, 2008, p. 22).
Em 1996, o grupo oficializou-se enquanto ONG, momento em que conseguiram uma sede
própria, o Galpão das loucas e uma Kombi com os equipamentos de som que possibilita ao grupo
levar as peças de teatro para cidades do interior do estado de Pernambuco. Para o coletivo, o teatro
de rua é um instrumento político que permite desconstruir as identidades de gênero e, por meio da
interação humorada com o povo, desmistificar a própria imagem do feminismo e trazer para a
reflexão demandas dos direitos humanos das mulheres que, mesmo diante de todas as inserções e
conquistas do movimento, ainda se fazem urgentes. Além das questões de gênero, o grupo de teatro
aborda outros temas contemporâneos que cruzam os problemas de gênero como a crítica às
desigualdades étnicas e à questão ambiental.
A experiência do teatro engajado de rua fez parte da trajetória de resistência, no Brasil,
durante o período de luta contra o regime militar. O grupo de teatro popular União e Olho Vivo,
fundado na década de 1970, levava para a periferia da cidade de São Paulo as discussões sobre as
condições de vida da população. Do mesmo modo, os grupos de Teatro do Oprimido, presentes em
diversos países da América Latina, buscam, além de democratizar o teatro, estabelecer uma
linguagem e uma comunicação direta entre espectadores e atores fazendo com que haja uma
reflexão sobre as questões sociais e o a importância dos indivíduos dentro de suas comunidades. De
acordo com Bennaton, as ações do teatro engajado propicia, também, transformações no espaço
urbano, no sentido “da experiência de realização pessoal e política de resistência perante estruturas
rígidas da sociedade atual” (Bennaton, 2009, p.21).
6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
As “Loucas”, como se intitulam, trazem para as ruas cenas cotidianas que buscam, de
maneira humorada, escandalizar a população e a fazer pensar sobre questões que parecem não se
tratarem de temas políticos. Em 2001, o grupo circulou a peça de teatro Mamy Blue em cinco
cidades da região metropolitana do Recife. O tema central da peça era a morte das mulheres e um
dos elementos utilizados na performance era a exposição nas ruas de pares de sapatos femininos
com uma placa vermelha na qual constava as inicias do nome da falecida, sua idade e cidade de
nascimento, ao lado eram colocadas rosas. Na peça apresentada pelo coletivo, a morte sucessiva de
mulheres não passava pelas relações violentas vividas nas relações familiares e afetivas, como é
visível e reconhecido em grande parte dos países latino-americanos; mas pelo descaso do poder
Estatal que não disponibiliza um programa de saúde adequado às mulheres no nordeste brasileiro.
Chamando a atenção para o caso a partir da pergunta “quem faz o parto?”, as atrizes dramatizaram
situações cotidianas enfrentadas pelas jovens mães nordestinas que são destinadas à morte pela falta
de acesso ao atendimento médico, o que tem levado o nordeste a um grande índice de mortalidade
materna.
Imagem 2 e 3: Peça Mamy Blue, Loucas de pedra lilás, Jaboatão, 2001.
Se o descaso do Estado com a maternidade foi tema de uma das peças itinerantes das
“Loucas”, a morte provocada pelo aborto inseguro foi o enredo da série de vídeos “educativos e
provocativos” intitulada “Loucas pelo direito de decidir”. A série divide-se em oito partes que
percorrem o caminho das discussão sobre a descriminalização do aborto: as aflições, onde você
mora?, a clandestinidade, o poder médico, o maltrato, o Estado Laico, a Luta Legal e Quem
Decide? Disponível na internet, a s aborda as questões culturais apontando, por exemplo, lugares
onde o aborto é uma decisão das mulheres e outros países em que, mesmo o aborto sendo
criminalizado, há uma grande incidência de abortamento de fetos femininos, dado o pouco valor
que as mulheres recebem nesta sociedade. Com os rostos pintados de branco e com roupas simples,
7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
as ativistas também dramatizam, de forma didática, os dilemas que as mulheres passam, tanto no
aspecto familiar, quanto social, para tomarem a decisão sobre o aborto, assim como os desafios a
serem enfrentados para levar adiante a decisão sobre seu corpo. De maneira bem humorada, as
questões levantadas pela série também foram levadas para as ruas no intuito de trazer o
questionamento para a população e colher assinaturas para a Frente Nacional pelo Fim da
Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, no Dia de Luta pela Legalização do
Aborto na América Latina e Caribe, em 2009.
Figura 4: Manifestação pela descriminalização do aborto, Loucas de Pedra Lilás, Recife 2009.
É também de forma irônica e humorada que o coletivo argentino de “ativismo visual”
Mujeres Pública ocupa as ruas de Buenos Aires trazendo novas e antigas bandeiras dos feminismos.
Desde 2003, o grupo formado por três artistas têm utilizado elementos gráficos e estéticos de baixo
custo para colocar nas ruas os questionamentos acerca da misoginia cultural. Como está exposto no
site do coletivo:
Uno de nuestros objetivos es denunciar y hacer visibles situaciones y lugares de opresión que vivimos las mujeres como sujetos sociales a través de la producción y puesta en circulación de herramientas simbólicas. Intentamos, a través de nuestras acciones, denunciar y desnaturalizar prácticas y discursos sexistas que encontramos profundamente arraigados en nuestra cultura. Desde un principio pensamos el espacio público como el lugar más apropiado para desplegar y poner en diálogo lo que producimos. Con la intención de alentar a la reapropiación, elegimos utilizar materiales de bajo costo para hacer afiches, objetos y acciones que pegamos en la calle (...). (Disponível em: < http://www.mujerespublicas.com.ar>. Acesso: 05/07/2013).
8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
O grupo se inspira na vanguarda artística e política argentina dos anos de 1960, como
Tucumán Arde, caracterizada pela “forte ideia de revolucionar a relação clássica entre a obra e o
espectador, que coloca a este um lugar de contemplação, para outorga-lhe um papel de participador
ativo” (Longoni; Mestman, 2008, p.60). Utilizando material de baixo custo, as ativistas do Mujeres
Públicas buscam mobilizar os espectadores por meio de intervenções que utilizam o escândalo e a
ironia como estratégias políticas. Em 2004, por exemplo, as ativistas espalharam pelas ruas da
capital argentina uma “estampita” na qual se encontra uma oração pelo direito ao aborto. A oração,
que traz ao lado a figura da Virgem Maria, suplica pelo direito de decidir sobre o próprio corpo,
sem interferência da Igreja ou do Estado e agradece por não ser nem virgem, nem mãe.
Figura 5: Estampita, Mujeres Publica, 2004.
O grupo se apropriou de um simbólico tradicional da Igreja Católica, os “santinhos”, e o
reverteu. De forma sarcástica, o coletivo transformou a linguagem adotada pela instituição para
difundir a proposta de descriminalização do aborto a qual a Igreja se opõe fortemente, exercendo
influência sobre a discussão política nos Estados considerados laicos. Durante todo o ano de 2004, o
coletivo distribuiu periodicamente a “estampita política” nas esquinas de Buenos Aires, nas portas
de faculdades, incluindo diversa igrejas da capital.
As problematizações sobre o aborto, assim como o uso do espaço público não são algo novo
para os feminismos. Desde os anos de 1970, com as bandeiras “pessoal é político” e “nosso corpo
nos pertence”, as feministas latino-americanas têm ocupado as ruas com passeatas, manifestações e
debates sobre as formas de controle sobre o corpo feminino e as assimetrias que convergem na vida
das mulheres. No entanto, como Rosa (2010) chama a atenção, os movimentos de artativismo,
9 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
como o Mujeres Publica, têm dado novos significados políticos para o uso do espaço urbano ao
inserirem imagens irônicas que apontam e questionam as formas de opressão e violência que
entrecruzam o cotidiano feminino. Como a autora analisa, as Mujeres Públicas fazem uso de “una
iconografía que contiene ironía, humor, mordacidad y que cuestiona y exhibe situaciones desde
riesgosas a trágicas por las que atraviesan las mujeres” (Rosa, 2010)
Essa forma incisiva e chocante de colocar as questões políticas do feminismo se fez
presente, em 2006, durante a Marcha do Orgulho LGBTTSI, na intervenção “Té Taz”. O grupo
colocou nas ruas uma mesa, cadeiras, um bule branco e saquinhos de chá para imersão onde
encontravam-se duas questões: “digerir para não vomitar? Ou “vomitar para não digerir?” A
intervenção, como explica o coletivo, tinha, a princípio, o objetivo questionar o silêncio acerca da
violência física, sexual e social cometida contra as lésbicas. Contudo, as inquietações levantadas
podem ser deslocadas sobre a violência cometida contra o gênero feminino, isto é, sobre todos os
sujeitos que se aproximam ou performatizam o que é definido como gênero feminino.
Em nossa atualidade, como argumenta Segato, não podemos falar em um “tempo de paz”
para as mulheres, pois o uso rotineiro de formas de violência e apropriação do corpo feminino nos
espaços públicos ou privados, nos tempos de paz ou de guerras convencionais, “penalizam uma
quantidade muito grande de mulheres” (Segato, 2010, p. 56). A relação entre a violência contra o
corpo feminino e a guerra também foi abordada pelo coletivo na série “Troféu de Guerra”, onde as
ativistas colocaram em pequenos soldados de brinquedo, que fazem parte da cultura infantil
masculina, uma etiqueta marrom com a frase “mulher violentada = troféus de guerra”. A crítica é
direcionada ao uso do corpo feminino como estratégia de guerra nos conflitos armados. Carmem
Rial (2007), em trabalho recente sobre violações cometidas pelos soldados norte-americanos no
Iraque, enfatiza que o binômio “mulher-guerra” remete, além dos casos de estupros, também aos
raptos, aos casamentos forçados, à prostituição ou ainda aos abusos sexuais em troca da preservação
de bens necessários à sobrevivência. Isto é, o corpo feminino é percebido como lócus de
demonstração de poder do masculino, portanto, profanar este é invadir o espaço histórico do outro,
do masculino. Nesta chave, o corpo das mulheres serve como passaporte para a destruição não da
mulher em si, mas do homem, pois o estuprador ocupa o lugar que seria reservado ao marido e ao
filho deste. Deste modo, a intervenção feita pelo grupo, joga com os elementos que trazem na
constituição da subjetividade masculina o direito e o dever de dominar o corpo feminino, como um
território a ser explorado e dominado. Ambas as intervenções traz, de forma contundente, uma
crítica aos discursos que visam silenciar a gama de violências que são cometidas diariamente contra
10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
as mulheres. Hoje, frente a conquista de algumas leis nacionais que visam inibir a violência
doméstica contra as mulheres, encontram-se diversos discursos que tentam reafirmar no imaginário
social que as formas de relações de poder sobre o corpo feminino foram extintas. Essas
intervenções, ao contrário, não deixam que se apaguem das paisagens sociais as relações de poder,
perpetradas por cenas de violência, que se fazem presente cotidianamente na vida das mulheres.
Figura 7 e 8: Té Taz e série Trofeo de Guerra, Mujeres Pública, 2006 e 2007.
Considerações finais
A pluralização do movimento feminista, entre as décadas de 1980 e 1990, possibilitou a
intensificação das lutas contra as descriminações raciais e sexistas, ampliou as reflexões e a
visibilidade sobre a violência de gênero e a necessidade de continuar resistindo às formas de
controle sobre o corpo feminino. Os coletivos de intervenções artísticas-urbanas aqui apresentados
têm recuperado e renovado as demandas dos feminismos latino-americanos por meio da criatividade
que utiliza a cidade, o corpo e as estéticas visuais, irônicas e humoradas, para falar de forma direta
sobre os problemas que, mesmo diante das conquistas nas últimas quatro décadas, ainda residem
sobre a vida das mulheres. O riso que as ativistas do Loucas de pedra lilás causa com suas peças
realizadas no centro de Recife ou nas pequenas cidades do nordeste brasileiro, não trata-se de um
riso leve, é um riso constrangedor, denso. As subjetividades construídas como inerentes aos sujeitos
são colocadas em jogo nas cenas que dramatizam as situações vivenciadas no dia a dia, permitindo
que os “espectadores” deem outros olhares para aquelas cenas. Do mesmo modo, a linguagem
mordaz utilizada pelas ativistas do Mujeres Pública permite que temas que estão acomodados
11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
dentro de um suposto discurso da igualdade, no qual as mulheres já conquistaram tudo o que
desejavam, venha à tona e inquiete pelo choque e impacto que causa aos transeuntes. Em suma, ao
invés de uma perda da radicalidade, como muitos têm criticado o feminismo, acredito que a
militância destes grupos têm reativado a crítica feminista ao patriarcado presente nas diversas
instituições sociais e mantido viva a necessidade de resistência aos discursos misóginos, sexistas e
raciais que insistem em delinear destinos naturais e inquestionáveis aos indivíduos.
Bibliografia
ALVAREZ, Sonia. A ‘globalização’ dos feminismos Latino-Americanos: tendências dos anos 90 e
desafios para o novo milênio. In: ALVAREZ, S. DAGNINO, E, ESCOBAR, A. (Org.) Cultura e
Política nos movimentos sociais Latino-Americanos: Novas Leituras. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2000, p. 383-426.
BENNATON, Pedro Diniz. Deslocamento e Invasão: Estratégias para a construção de situações de
intervenção urbana. 2009. Dissertação (Mestrado em Teatro). Programa de Pós-graduação em
Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato
Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização, 2008.
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997
FELSHIN, Nina. But it is Art? The Spirit of Art as Activism. Seattle: Bay Press, 1996.
GARCIA, Luana T. Teatro feminista: uma abordagem sobre as teorias, as práticas e a experiência.
Trabalho de Conclusão de Curso, Departamento de Artes Cênicas. Universidade Federal de Santa
Catarina, 2008.
GUASCH, Ana M. El arte del ultimo siglo XX. Del minimalismo a lo multicultural. Madri: Alianza
Editorial, 2000.
LONGONI, Ana; MESTMAN, Mariano. Del Di Tella a “Tucumán Arde”: vanguardia artística y
política en el 68 Argentino. Buenos Aires: Eudeba, 2008.
MORAES, Maria L. Q. Família e feminismo no Brasil: Reflexões sobre papéis femininos na
imprensa para mulheres. Tese (doutorado), Departamento de Ciências Sociais, Universidade de São
Paulo, 1982.
12 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
PEDRO, Joana Maria. Os feminismos e os Muros de 1968, no Cone sul. In: Clio - Série Revista de
Pesquisa Histórica, nº. 26, 2008, p.59-82.
RIAL, Carmem. Guerra de imagens e imagens da guerra: estupro e sacrifício na Guerra do
Iraque. In: Estudos Feministas, Florianópolis, vol.15, nº1, 2007, p.131-151.
ROSA, Maria L. Entre el malestar y el placer. Mujeres Públicas, ¿cuestiones privadas? Revista
Labrys Estudos Feministas, nº17, jan/jun, 2010.
SEGATO, Rita. Crimes de gênero em tempos de ‘paz’ e de guerra. In: STEVENS, C; BRASIL,
K.C.T.; ALMEIODA, T.M.C.; ZANELLO, V. (Org.). Gênero e Feminismos: convergências (in)
disciplinares. Brasília: Ex Libris, 2010, p. 53-68.
Esthetic-Urban Interventions: the new political of Latin American feminisms Abstract: Since the 1970s, many feminist groups have adopted artistic performances and cultural
interventions as a way to reframe the strategies to fight. Through various aesthetic elements such as
plays, afiches, panels, posts, graffiti, among others, these groups have occupied public spaces and
invigorate the banner of "personal is political". Thus, these organizations are reviving the cultural
imagination on issues inherent to Latin American feminisms and gender violence, abortion,
homophobia and ethnic issues. In this way, the aim of this presentation is to map the Latin
American feminist groups that since the 1980s have used "activist art" as another proposal for
political activism. Seeks to understand how these groups, through their aesthetic interventions in
public spaces, problematize the construction of identities and criticize the forms of representation
and power relations enabling the creation of new forms of subjectivity.
Keywords: Feminism, Latin America, activism, art, gender.