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(In)tolerância religiosa e política no Brasil – caminhos cruzados (1964-1985) Mauro Passos * A Igreja vê-se hoje a braços com uma missão gigantesca: a de imprimir caráter humano e cristão à civilização moderna. (João XXIII, Materetmagistra, no. 248) O ser humano vem atingindo um grau de liberdade e maturidade em torno de si muito grande nos últimos séculos. As descobertas do campo científico contribuíram para transformar o mundo e transmitir às novas gerações o progresso da humanidade. Neste cenário tão conhecido e estudado, qual o lugar da religião / das religiões? O progresso e a liberdade humana influenciam o pensamento e o campo religioso. Na atualidade, o diálogo inter-religioso tem um papel significativo para todas as religiões. A boa notícia de que Deus está presente entre os homens não é monopólio de uma pessoa nem de uma religião. Deus está com todos. Somos convidados a entrar na caravana que busca Deus. Somos companheiros de uma viagem que é maior do que nós mesmos. A reflexão de Paulo nos * Doutor em Ciências da Educação pela UniversitàPontificia Salesiana (UPS), Roma / Itália. Professor do Mestrado em Ciências da Religião. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

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(In)tolerância religiosa e política no Brasil – caminhos cruzados (1964-1985)

Mauro Passos∗∗∗∗

A Igreja vê-se hoje a braços com uma missão gigantesca: a de imprimir caráter humano e cristão

à civilização moderna. (João XXIII, Materetmagistra, no. 248)

O ser humano vem atingindo um grau de liberdade e maturidade em torno de si

muito grande nos últimos séculos. As descobertas do campo científico contribuíram para

transformar o mundo e transmitir às novas gerações o progresso da humanidade. Neste

cenário tão conhecido e estudado, qual o lugar da religião / das religiões? O progresso e a

liberdade humana influenciam o pensamento e o campo religioso. Na atualidade, o diálogo

inter-religioso tem um papel significativo para todas as religiões. A boa notícia de que Deus

está presente entre os homens não é monopólio de uma pessoa nem de uma religião. Deus

está com todos. Somos convidados a entrar na caravana que busca Deus. Somos

companheiros de uma viagem que é maior do que nós mesmos. A reflexão de Paulo nos

∗Doutor em Ciências da Educação pela UniversitàPontificia Salesiana (UPS), Roma / Itália. Professor do Mestrado em Ciências da Religião. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

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ajuda neste sentido, quando aponta na Carta aos Hebreus que o ato iniciador da fé não está

no homem, mas em Deus (Hebreus 12, 2).

O diálogo entre as religiões e pessoas de diferentes credos teve no Concílio Vaticano II sua

grande expressão e avanço. O decreto conciliar Unitatisredintegratio faz a seguinte

proposição: “A reintegração da unidade entre todos os cristãos é um dos objetivos

principais do Sagrado Sínodo Ecumênico Vaticano Segundo” (CONCÍLIO VATICANO II,

1968: 309).

Nesta mesma linha de unidade, a declaração Nostraaetate afirma: “Todos os povos,

com efeito, constituem uma só comunidade”. (CONCÍLIO VATICANO II, 1968: 619). O

concílio deseja o diálogo entre todos e convida todos para a construção comunitária do

mundo. Com o intuito de impulsionar este propósito, o Papa Paulo VI criou o Secretariado

para os Não-cristãos. O diálogo entre as religiões adquiriu grande importância no século

presente. O cristianismo não pode ficar à margem deste processo, num momento em que se

aprecia o diálogo, a inclusão e a tolerância entre as pessoas, culturas e as diversas formas de

vida. Trata-se de um gesto maior, nobre e épico.

O vocábulo tolerância, etimologicamente vem do latim tolerantia, ae que significa,

paciência, constância em sofrer. Em 1694, no Dicionnaire de l`Academie, a tolerância é

definida como a "indulgência para com o que não se pode impedir". Em nossos dias, se

tornou base essencial das democracias atuais, isto é, o respeito pelas opiniões do próximo.

No aspecto religioso, Antônio Houaiss esclarece a liberdade de cada um para praticar a

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religião que professa. O teólogo Panikkart afirma em seus estudos que uma religião que se

fecha fica sufocada e morre. Quem conhece apenas sua religião nem mesmo a conhece.

Atravessamos uma época de grandes transformações e mudanças no mundo. Se

durante muito tempo, o Concílio de Trento e seus defensores foram campeões da

intolerância religiosa e de gestos e atitudes apologéticas, o Concílio Vaticano II vem

resgatar a mensagem evangélica para “que todos sejam um”(João 17, 21). O tradicional

princípio Extra ecclesiamnullasalus1 já não tem sentido, pois todas as religiões são

mediações de salvação.

A questão da defesa dos direitos dos cidadãos balança a marcha do catolicismo no

Brasil no período compreendido entre 1964 e 1985, particularmente. Outras religiões

também levantaram suas vozes. O posicionamento das religiões demonstrou seu

envolvimento nesta causa, em oposição às aleivosias do regime militar. As religiões

tornaram-se mais populares e foram assumindo "a voz dos que não têm voz", questionando,

interrogando e exercendo pressão e oposição contra as arbitrariedades do regime. Nesta

mesma linha, outras religiões foram motivo de unidade e esperança. Militantes políticos se

encontravam na defesa de uma causa comum – a liberdade e os direitos do cidadão. Eliseu

Lopes, ex-domicano, faz a seguinte afirmação sobre seu envolvimento em questões sociais

e políticas durante o regime militar: "Antes, eu nunca tinha me dado conta de uma

1Esta expressão latina expressa o pensamento da Igreja Católica, praticamente, até a década de 1960 e significa: “Fora da Igreja Católica não há salvação”. Portanto, todas as pessoas que não pertenciam a este credo religioso estavam condenadas.

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militância propriamente política. Mas também nunca tive muita abertura para esse negócio,

para questões de ordem política. Quer dizer, eu comecei a sentir a barra através das

pessoas". (DEPOIMENTOS: 2000). Um pastor luterano que pediu para não se identificar

fez o seguinte depoimento: “A bíblia foi o ponto de encontro entre os presos. Quando ia à

prisão, rezava com todos um salmo e de mãos dadas fazíamos um silêncio pedindo força,

coragem e esperança. Buscávamos a Deus no contato com os outros, com a dor e o

sofrimento”.

Este artigo pretende analisar o significado do encontro das religiões na defesa dos

direitos humanos e sociais, em oposição à intolerância política orquestrada pela ditadura

militar. O envolvimento nessas questões contribuiu para renovar a prática religiosa e

ampliar a relação dialogal entre as diversas religiões. Estarei privilegiando a atuação de

militantes religiosos. Esses interlocutores acompanharam e atuaram em suas igrejas após o

golpe militar de 31 de março de 1964. Para considerar o tema deste estudo, vou indicar

alguns pontos que antecederam o período demarcado

A década de 1960 pode ser dividida em duas fases. A primeira antecedeu ao regime

militar autoritário e corresponde aos quatro primeiros anos. A segunda teve sua marca

inicial em 1964 e corresponde à implantação desse regime. No seu conjunto, foi um período

complexo, caracterizado pelo cultivo e frustração de diferentes utopias. Era preciso vencer

a perplexidade, superar o medo e plantar as sementes de uma revolução ou, então,

mobilizar forças para diversas reformas sociais. Período rico de elaboração política e

religiosa, de acertos e erros. Os retalhos que restam na memória abrigam crises,

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insurgências, heroísmos de uma realidade em movimento. Diante desta situação, o diálogo

entre as religiões tem diversas tarefas. Cada religião deve procurar compreender-se, avaliar-

se, sem perder a referência com a realidade histórica, por um lado. Por outro, encontrar o

sentido e o serviço dado aos seres humanos, à vida, enfim.

A travessia desse tempo pontua lembranças, situações, acontecimentos, discursos,

menções. O posicionamento das religiões diante da sociedade e da política foi sendo

alterado. As diversas instituições religiosas começaram a abrir novos espaços de atuação

em sua práxis. Esta articulação com o universo social é um aspecto importante para a

compreensão do diálogo entre as religiões. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no

Brasil (IECLB) sai do silêncio e começa a se expressar diante das questões políticas, a

partir da década de 19702. Um pronunciamento oficial foi o “Manifesto de Curitiba” que

afirma: “A Igreja não pode condicionar seu testemunho público aos interesses de ideologias

políticas e de governos. [...] nem situações excepcionais podem justificar práticas que

violam os Direitos Humanos”. (MANIFESTO DE CURITIBA, 1970: 8).

Trata-se de um período bastante ambíguo, pois a realidade que circunda as diversas

religiões e intriga seu percurso no contexto brasileiro. Como se situar frente às incertezas

do presente e avizinhar-se de temas e situações que bradam por justiça, liberdade,

participação? Como articular experiência de fé e compromisso social num regime

2 Um momento importante da IECLB foi a “Manifestação de Curitiba” na década de 1970. A partir deste período seus membros começam a se pronunciar mais ostensivamente, considerando o regime de exceção e as questões que afetavam os direitos humanos no Brasil. Um estudo sobre este tema está nos Cadernos do ISER no. 7, 1977.

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autoritário e intolerante? Uma característica desse período foi buscar caminhos mais bem

sintonizados com os desafios da realidade brasileira. A atitude fundamental face a esta

realidade é procurar eliminar os obstáculos que se opõem ao diálogo religioso e político. A

dimensão comunitária do ser-homem é inseparável de sua dimensão intramundana. A

transformação, o progresso e o desenvolvimento do mundo criam vínculos de união entre

os seres humanos. Se os homens se unem neste sentido, torna-se incompreensível a

intolerância religiosa no mundo atual.

Nas diversas situações da vida, a fé cristã deve ver, julgar e agir e estabelecer

critérios para uma discussão crítica e presença ativa na história. Esse exercício ajudará a

florescer novos campos de trabalho. A religião permeia e engloba e engloba as dimensões

da ida, por isso, também a dimensão política. O elo religioso com o mundo possibilita a

objetivação de frentes de trabalho e quando ocorre o diálogo entre as religiões, seu alcance

é maior. A expressão religiosa deve fazer uma análise crítico-política da sociedade e, ainda,

ter / tomar uma atitude consequente com esta análise. Muito diferente de oposição, a

unidade e o pluralismo religioso se complementam mutuamente.

1. A mudança de lugar... a mudança do olhar

As religiões reconhecem a secularidade do mundo atual, embora isso aconteça em

níveis diferentes. Nas atividades políticas, econômicas e culturais, o ser humano não

precisa mais da tutela religiosa. Autonomia e liberdade são características do homem

moderno e contemporâneo.

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O catolicismo brasileiro e as outras religiões comportam uma diversidade de atos e

atores. Como dar sentido ao seu passado? O tecido histórico da década de 1960 nos convida

a um movimento no olhar que vislumbre a pluralidade do período. O pensamento religioso

não evolui sozinho no espaço simbólico. Ele interage com outras formas de pensamento e

outras esferas de organização social, política e cultural. Em se tratando do Brasil,

argumenta Roger Shutz:

Nada mais sugestivo para o ecumenismo contemporâneo que a situação dos cristãos \na América Latina. Convém deter-nos nesse ponto, pois esse continente apresenta, por assim dizer, uma lente de aumento para alguns de nossos defeitos e de nossas esperanças, o que nos leva a uma reflexão mais lúcida sobre nós mesmos. (SHUTZ, 1967: 47)

Na realidade brasileira, não houve guerras de religião. Tanto os católicos como os membros

de outras religiões têm uma convivência social e cultural. As questões sociais fazem com membros

de comunidades religiosas se encontrem para a construção de uma sociedade mais justa e mais

humana.

A sociedade brasileira apresenta outras características nas décadas de 1960 e 1970.

Nas periferias das grandes cidades, ocorre uma ampliação e mobilização popular. Grupos,

associações, iniciativas locais foram-se multiplicando, mesmo com a intolerância do regime

militar. Respirava-se política por todos os poros, inclusive no campo religioso.

Na resposta concreta do religioso às necessidades sociais e políticas, diversos

organismos, institutos e frentes de trabalho foram criados. Sob a orientação da Conferência

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Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com o objetivo de preparar os religiosos e os

agentes de pastoral para o trabalho abriu-se o campo das pastorais sociais católicas. O

mesmo acontecia com outras igrejas cristãs. Essa tomada de consciência foi-se ampliando

na confluência de outras igrejas, pela volta do estado de direito e clamando pelos direitos

humanos. Assim, membros da IECLB publicam um manifesto e afirmam:

Numerosos cristãos sentem-se perturbados pelo fluxo de notícias alarmantes sobre práticas deshumanas (sic) que estariam ocorrendo em nosso país, com relação principalmente ao tratamento de presos políticos, donde surge uma atmosfera de intranqüilidade, agravada com a carência de informações precisas e objetivas. [...] Entendemos mesmo, como Igreja, que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos. (MANIFESTO, 1970: 17)

O Manifesto traz indícios de engajamento nas questões sociais. A consciência

religiosa dos pastores torna-se mais aguda, lúcida e histórica. O caminho do diálogo será o

caminho do equilíbrio com religião, cultura e sociedade.

Em 1984, os bispos do Nordeste fazem uma denúncia sobre a situação precária e

desumana das camadas populares. Esses elementos contribuíram para continuar e dinamizar

o envolvimento do catolicismo nas questões sociais e na defesa dos direitos humanos. O

documento faz a seguinte denúncia:

As causas da precariedade da situação do nordeste devem ser procuradas, antes de mais nada, na história sócio-econômica-política do Brasil, no contexto da economia mundial. Portanto, não são o resultado da fatalidade, do destino, da

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natureza, mas o resultado da ação ou omissão política dos homens e da forma através da qual se apropriam e usam dos recursos naturais e estabelecem relações entre si. Neste sentido, o seco e pobre Nordeste e, sobretudo, uma produção política.(CNBB, 1984: 31).

Há um convite, no documento, para uma análise de conjuntura estrutural, dando

ênfase à vontade política. A dificuldade está em articular sociedade, economia e política

com o propósito de atingir às necessidades sociais.

Neste mesmo caminho de defesa dos direitos sociais, o Supremo Concílio da Igreja

Presbiteriana do Brasil, reunido na cidade do Rio de Janeiro, em 1962 fez um importante

pronunciamento e declara ser sua missão:

Clamar contra a injustiça, a opressão e a corrupção, e tomar a iniciativa de esforços para aliviar os sofrimentos dos infelicitados por uma ordem social iníqua, colaborando, também, com aqueles que, movidos por espírito de temos a Deus e respeito à dignidade do homem, busquem esses mesmos fins, assim como aceitando sua colaboração. (PRONUNCIAMENTO SOCIAL, 1962: 35).

O novo lugar que, progressivamente, algumas religiões foram ocupando na

sociedade, neste período, modificou sua forma de atuação e sua presença na sociedade. A

articulação com o universo social e político foi, portanto, importante para o encontro das

religiões e para um novo tipo de relação com a sociedade.

A Conferência do Episcopado Latino Americano em Medellín, em 1968, foi a

primeira tomada de consciência, em nível continental, do religioso, particularmente do

catolicismo da América Latina. Frente ao colonialismo religioso, cultural, político e

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econômico, as igreja deveria tomar uma posição. Foi o futuro da primeira teologia latino-

americana – a teologia da libertação. A escuta do Outro frente à intolerância do regime

militar, do seu silêncio e de sua arbitrariedade. De mero consumidor, o leigo passa a sujeito

participante, sujeito ativo. Com ele, o percurso popular de grupos das igrejas da Igreja

Latino-Americana foi ganhando outros contornos e novas formas de atuação para articular

o religioso com a justiça social a paz e a promoção humana. Houve, na verdade, maior

articulação entre os valores populares com o religioso. Assim, a opção pelos pobres norteou

todo o trabalho. Significou solidariedade, apoio e incentivo para que as camadas populares

pudessem se organizar e, assim, tivessem capacidade real de participação.

2. Bravos momentos – o religioso e o político

As religiões que assumem um projeto renovado e, ainda, implicado pela construção

de uma sociedade nova, participativa e transformadora foram ganhando corpo em várias

regiões, grupos e comunidades. Souberam caminhar e preparar o amanhã em cadência de

união com a história, como o cotidiano da vida. Neste sentido, a IECLB afirma a

necessidade de aliar-se à Igreja Católica em favor das causas populares, conforme Gerd

Kliever:

O diálogo ecumênico com a Igreja Católica em 1957 e reforçado a partir do Concílio Vaticano, promoveu o encontro e fez com que os teólogos da IECLB participassem da discussão em torno dos novos posicionamentos surgidos no catolicismo. Já em 1970 o pastor presidente da IECLB se manifestou no sentido de que, diante da pouca expressão popular da IECLB perante o governo, seria

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necessário aliar-se à Igreja Católica em questões de ordem política e social. (KLIEVER, 1977: 12)

Este texto nos revela uma nova visão do trabalho das igrejas – a troca de experiência

e a aproximação em busca de um bem maior. Esses elementos externos, aparentemente ao

religioso, contribuíram para que a tolerância ganhasse novas dimensões e fosse ampliando

seu horizonte. Os programas e as atividades desenvolvidas contribuíram para ampliar o

diálogo entre as religiões.

Durante a XI Assembleia Geral da CNBB, em maio de 1970, foi produzido um

documento que denunciava os abusos do regime militar e sua intolerância diante daqueles

que lutavam a favor da justiça social:

Não podemos admitir as lamentáveis manifestações da violência, traduzidas na forma de assaltos, sequestros, mortes ou quaisquer outras modalidades de terror. [...] Pensamos no exercício da JUSTIÇA, [...] que, sinceramente, cremos estar sendo violentado, com frequência, por processos levados morosa e precariamente, por detenções efetuadas em base a suspeitas ou acusações precipitadas, por inquéritos instaurados e levados adiante por vários meses, em regime de incomunicabilidade das pessoas e em carência, não raro, do fundamental direito de defesa. (CNBB, 1970-1971: 85-86).

Este documento revela como a posição da Igreja foi-se modificando durante o

regime militar, mesmo não tendo sido uma atitude de todos os membros. A Igreja

participou ativamente desse momento histórico e descobriu a face trágica do regime militar.

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Com isso, empreende um posicionamento diferente no seu interior e na sua forma de se

relacionar com as pessoas, os grupos organizados e os militares.

A Comissão Justiça e Paz, instalada oficialmente em outubro de 1969, adotaria os

mesmos princípios da encíclica Populorumprogressio. Nesse mesmo ano, como resposta ao

AI-5, a CNBB manifestava sua preocupação para com a política econômica adotada e

criticava qualquer sistema que colocava o lucro acima da pessoa humana. Essa Comissão

foi o órgão do laicato na ação da Igreja como "voz das injustiças sem voz". Denunciou,

dialogou, testemunhou, num esforço de comunhão com os silenciados. Essa mudança

afetou, ao mesmo tempo, sua visibilidade histórica e sua própria auto compreensão.

A década de 1960 foi uma época de implantação do planejamento pastoral no Brasil.A

renovação da Igreja no Brasil exigia um Plano de Pastoral que dialogasse com o Concílio

Vaticano II. Isso significava outro diálogo, isto é, entre as (arqui)dioceses, a CNBB, o

Concílio, outras religiões e a realidade local.

Diante de um mundo em mudança, carregado de contradições, ambiguidades e

ambivalências, diversas igrejas contribuíram para a construção de um novo mundo, mais

humano e solidário. A intolerância política provocou uma onde de repressão, extremamente

violenta, em todo o país. Nesse contexto, a luta a favor dos direitos sociais e humanos

possibilitou uma movimentação de vários setores sociais, particularmente do grupo dos

católicos progressistas. Aos ataques difamatórios, a Igreja Católica respondeu com

denúncias, lutas e seu envolvimento contra a intolerância política. Em 1968, uma série de

manifestações de protesto contra o regime militar ocorreu na celebração da missa de 7º dia,

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pelo assassinato do estudante Edson Luís (COMISSÃO ARQUIDIOCESANA DE

PASTORAL DOS DIREITOS HUMANOS E MARGINALIZADOS, 1978: 8) 3. Outras

igrejas também se manifestaram diante deste fato e participaram de atos ecumênicos contra

a repressão militar. O governo reagia contra esses fatos, através da repressão.

Em novembro desse mesmo ano, ocorre em Belo Horizonte a prisão de três padres

franceses e um diácono brasileiro. A reação da arquidiocese foi imediata. Dom Serafim

Fernandes de Araújo e Dom João Resende Costa escreveram as homilias para serem lidas

nas missas. Recuperando a lembrança desse vivido, afirma Dom João:

O episódio dos padres franceses foi uma situação difícil. Dias muito duros, Naquele momento, eu fiz algumas homilias para serem lidas nas paróquias. Eu não gosto dessas coisas, gosto de trabalhar com mais harmonia, tranquilidade, mas tivemos que conviver com aquela efervescência. Mas, pelo menos, orientamos o povo. Isso fez com que a Igreja fosse respeitada. Os militares viram que não estávamos de olhos fechados (ANTONIAZZI, 2002: 58-59).

Nesse panorama, a Comissão Central da CNBB publicou uma nota com o título:

"Igreja na atual conjuntura". Faz uma análise sobre os acontecimentos nacionais, os abusos

de autoridade, a injustiça social e os atentados contra a dignidade da pessoa humana. No

final afirma: "Fazemos nossas as conclusões de Medellín, as diretrizes Conciliares

3 Esse documento traz um histórico sobre a repressão militar e política na Igreja do Brasil e a causa dos direitos humanos. Apresenta também uma estatística sobre os índices de perseguição, morte e atentados à população brasileira. Elenca os textos oficiais da CNBB a favor dos direitos humanos.

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Pontifícias, em matéria de filosofia social. [...] para que o Brasil, de fato, se reencontre, sob

a inspiração da justiça e da liberdade, do amor e da verdade" (CNBB, 1977: 35).

O regime de exceção imposto pelo golpe militar de 1964 não anulou da agenda

social dos brasileiros a luta pelos direitos civis, políticos e trabalhistas. O movimento da

sociedade pela redemocratização do país contribuiu, a seu modo, e teve grande participação

de membros das diversas igrejas. Como se sabe, os fatos registrados nos jornais,

particularmente nos alternativos, nos documentos das igrejas, expressam interesses,

demandas e contribuem para novas formas de ação, novas práticas.

Em 1963, o jornal: Brasil, Urgente editava seu primeiro número, sob a orientação

do dominicano Frei Carlos Josaphat, em São Paulo. Era um instrumento de reflexão sobre

os problemas sociais e políticos dos militantes católicos. Teve um importante papel para a

reflexão e organização política, particularmente, nos centros urbanos, tais como:

congressos, passeatas, manifestações estudantis e operárias 4. Os frades dominicanos

tiveram uma atuação muito significativa nesse período. A presença junto aos jovens, a

preocupação e promoção social demonstram sua força e atuação junto aos setores mais

progressivos da Igreja Católica. Estavam presentes em diversas regiões do Brasil e sempre

militando pelos direitos sociais e humanos. Isso passou uma imagem de que eram

simpatizantes aos movimentos de esquerda. Muitos afirmavam ser a esquerda católica.

Eliseu Lopes, ex-dominicano, faz a seguinte afirmação sobre a Conferência de Medellín:

4 A reconstituição da história desse jornal e, particularmente, dos personagens cristãos que antecedem ao golpe de 1964, está no estudo feito por BOTAS (1983).

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"A grande passagem de Medellín foi isso: em vez de ficar fixado em Cristo é preciso fixar-

se no homem real que está aí, no homem latino-americano".

A resposta mais significativa das diversas instituições religiosas foi sua união. Esta

unidade teve seus desdobramentos na opção pelos pobres e defesa dos direitos humanos.

Houve um compromisso sócio-político de líderes, hierarquia e membros dos diversos

credos religiosos. A publicação de documentos e as manifestações públicas ecumênicas

ampliaram o significado do ecumenismo entre as igrejas e, assim, houve um

redescobrimento da esperança e liberdade que une a todos. Neste aspecto tem particular

importância, a forma como Frei Cláudio compreende o papel da religião:

Não existe Deus isolado em si. (...) Então não é pela religião que você serve a Deus, é pela vida que você serve a Deus. Se a religião estiver bem ligada à vida, ela vai me ajudar a viver melhor, mas servir a Deus, só é possível servindo aos outros. E marcando presença no mundo, nas relações que levam a história para frente ou para trás (DEPOIMENTOS: 2000).

As religiões não são instituições abstratas, a-históricas ou cofre de verdades. Têm a

missão de servir e caminhar com as pessoas. O Concílio Vaticano II foi um canteiro de

obras em prol do ecumenismo. O seu futuro é também sua construção. Segundo Karl

Rhner: “foi apenas o começo de um começo” (RAHNER, 1966: 24). Seu futuro está

marcado por propostas, trabalhos, contradições e ameaças. As mudanças não virão de

graça, serão consequências de um esforço coletivo.

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De acordo com os estudos de HERVIEU-LÉGER (1993), a situação de mobilidade,

típica de uma modernidade religiosa tecida pelas experiências pessoais, favorece a

emergência de novos cenários no campo religioso. Foi o que aconteceu com o catolicismo e

as outras religiões – a busca de união, com perspectivas para mudar as condições de vida

das pessoas e de um futuro melhor para a humanidade. Neste sentido, afirma Frei Carlos

Josaphat:

Um desafio geral é assim lançado a todas as religiões. Elas têm de se empenhar na busca de sua identidade, de encaminhamento das pessoas e da sociedade para os valores éticos e espirituais, para a elevação de todos à transcendência, ao sentido de Deus e à promoção dos valores e direitos fundamentais.(JOSAPHAT, 2003: 143).

A evangelização feita pelas igrejas não é apenas transmissão de um conteúdo

doutrinário, mas um processo que conduz as pessoas a transformarem as realidades

históricas, atentas à justiça e às estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais.

A luta pela justiça social, na teoria e na prática, abriu novos horizontes para o

cristianismo5. Novos serviços e novas experiências foram surgindo. As religiões foram

ensaiando novos modos de agir e novas linguagens, em sintonia com os desafios da

realidade brasileira. No entanto, estavam entrecortadas por tendências diversas e

divergentes. Isso acontecia também com outras igrejas. João Dias Araújo analisa em seu

estudo as posições tradicionais do protestantismo diante do Estado brasileiro e afirma:

5 Sobre esse tema lembro o estudo de: PASSOS; DELGADO (2003).

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Não podemos ignorar, todavia, que cristãos evangélicos e líderes como Lysâneas Maciel, e grupos protestantes de vanguarda já tomaram a sua decisão de ficarem ao lado do povo e lutar pelos direitos humanos. Esses cristãos e esses grupos evangélicos, hoje, estão mais irmanados com líderes e grupos do cristianismo Católico, e, cada vez mais encontram neles pontos em comum na luta pela Justiça. (ARAÚJO, 1977: 23-310.)

A tensão ideológica influenciou a tensão institucional, impregnada por

determinações históricas de profundidade multissecular. Esse aspecto requer outros

estudos, pois a intolerância política encontrou parceria em muitos membros das igrejas.

Havia grupos que defendiam a dinâmica da manutenção do poder e outros a dinâmica de

serviço à causa libertadora. Sob os mais variados temas e orientações, vários projetos foram

folheados com o objetivo de resistir à intolerância política.

A Ordem dos Ministros Batistas do Brasil, em Assembleia Geral, realizada em

Vitória (ES), escreveu um Manifesto à nação brasileira. Ao abordar o tema dos direitos da

pessoas humana, o Manifesto argumenta que:

Entendemos estar a legitimidade de qualquer regime, sistema ou instituição condicionada à medida em que possibilita à criatura a plena realização da sua humanidade. Esta convicção nos faz, desde sempre, intransigentes defensores da liberdade em todas as suas forma de expressão – liberdade de consciência, de religião, de imprensa, de associação, de locomoção, etc., bem como de autodeterminação dos povos livremente manifesta – como condição imprescindível a vida humana. Por corresponderem à nossa concepção dos direitos e deveres da pessoa humana, insistimos em que os princípios a esse respeito consagrados na Constituição Federal de 1946, na Carta das Nações Unidas, e na Declaração dos Direitos do Homem, sejam universalmente

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aplicados. (MANIFESTOS DA ORDEM DOS MINISTROS BATISTAS DO BRASIL, 1977: 37)

Como se pode perceber, a defesa dos direitos humanos e sociais congregou os

diversos credos cristãos, pois se trata de um elemento presente em todas as religiões.

Assim, o olhar das religiões cristãs estava direcionado não para as diferenças, mas para as

questões que dizem respeito à vida.

Com a Lei da Anistia, em 1979, autores diferentes interagiram na construção do

futuro. Tratava-se de uma era social nova. Em seu depoimento, Frei Cláudio adverte:

Eu tenho a dizer que Deus já salvou todo mundo. Só falta aproveitarmos da riqueza que está por todo canto. Dentro de nós, ao redor de nós, nos problemas que nos cercam. Lá dentro não tem só problema, ameaça é também oportunidade. Mas nós é que temos que enxergar, assumir, trabalhar isso (DEPOIMENTOS, 2000).

As diversas formas de intolerância – religiosa e política tiveram caminhos

diferentes. O período de intolerância, constituído pelo regime militar, repercutiu de maneira

diferenciada junto à s religiões. A resistência como trincheira de luta contra os abusos e a

intolerância da ditadura marcaram a história e a memória das comunidades religiosas. Hoje

o conceito de tolerância implica também harmonizar as religiões, aceitar as diferenças e as

novas experiências que colocam o ser humano e a vida no centro. O essencial, de acordo

com o texto de João XXIII, citado na epígrafe é “imprimir o caráter humano e cristão à

civilização moderna / contemporânea”. A grande sabedoria do atual momento histórico é o

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exercício da tolerância que abraça, suporta e confirma. Jesus Cristo é a união na

pluralidade.

Referências bibliográficas

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