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INTRODUÇÃO “...o passado só tem sentido à luz do presente, e que o presente só é como é e só pode ser compreendido à luz do passado, num processo recíproco entre essa dupla função da história.” 1 A preocupação central do presente estudo consiste na análise da particularidade do movimento social de defesa dos direitos da criança e do adolescente (MSDCA) enquanto formato das relações estabelecidas entre suas principais forças (sujeitos individuais e coletivos) no debate de uma nova concepção de infância e adolescência. Este processo permitiu alterações substanciais nos planos jurídico e social ao romper com os princípios contidos na doutrina 2 da situação irregular para a doutrina da proteção integral , bem como implicou num outro desenho da política pública de atenção à infanto-adolescência. O período privilegiado para esta análise é aquele que antecede o processo de elaboração e aprovação da doutrina da proteção integral, também muitas vezes chamada, neste estudo, de atual ordenamento institucional, 1975-1990, por 1 E.H. Carr (1978).O que é história?, in Leite, Ligia Costa (1991) - A Magia dos Invencíveis: os Meninos de Rua na Escola Tia Ciata, Vozes, Rio de Janeiro, p.22. 2 Doutrina é o conjunto da produção teórica elaborada sob a ótica do saber, da decisão ou da execução. Segundo o Novo Dicionário Aurélio, doutrina é o conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, científico etc. 1

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INTRODUÇÃO

“...o passado só tem sentido à luz do presente, e que o presente só é como é e só pode ser compreendido à luz do passado, num processo recíproco entre essa dupla função da história.”1

A preocupação central do presente estudo consiste na análise da

particularidade do movimento social de defesa dos direitos da criança e do

adolescente (MSDCA) enquanto formato das relações estabelecidas entre suas

principais forças (sujeitos individuais e coletivos) no debate de uma nova

concepção de infância e adolescência. Este processo permitiu alterações

substanciais nos planos jurídico e social ao romper com os princípios contidos na

doutrina2 da situação irregular para a doutrina da proteção integral, bem como

implicou num outro desenho da política pública de atenção à infanto-adolescência.

O período privilegiado para esta análise é aquele que antecede o

processo de elaboração e aprovação da doutrina da proteção integral, também

muitas vezes chamada, neste estudo, de atual ordenamento institucional, 1975-

1990, por considerá-lo fundamental na inscrição direito-necessidade, que permeia

a atual concepção da política para a infância.

Tomei esse período por considerá-lo fundamental na inscrição

direito-cidadania no campo da infância, pois permitiu a setores da sociedade

brasileira a busca, formulação e positivação de um novo direito para a infância.

Também porque foi nesse período que a sociedade vivenciou um dos lados mais

cruéis do Estado autoritário ao mesmo tempo que a resistência civil reconquista

espaços na cena política, sendo possível o surgimento de um leque de

1 E.H. Carr (1978).O que é história?, in Leite, Ligia Costa (1991) - A Magia dos Invencíveis: os Meninos de Rua na Escola Tia Ciata, Vozes, Rio de Janeiro, p.22.

2 Doutrina é o conjunto da produção teórica elaborada sob a ótica do saber, da decisão ou da execução. Segundo o Novo Dicionário Aurélio, doutrina é o conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, científico etc.

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movimentos sociais específicos, inclusive o de luta pelos direitos da infância. Foi

desse período, mais precisamente do início do marco histórico definido por mim

neste estudo, 1975, a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito do Menor

Abandonado da Câmara dos Deputados sobre a política de atendimento aos

“menores” assistidos quanto daqueles milhares de desassistidos pelo Estado, que

acabou gerando várias CEIs - Comissões Estaduais de Inquéritos colaborando

para o debate sobre a situação da infância das camadas populares.

Esse exercício pelas liberdades políticas permitiu que o MSDCA

chegasse ao final da década de 80,“(...) com um significativo saldo de conquistas

e realizações em favor da infância e juventude, com uma identidade, estrutura e

funcionamento diferenciados dos demais segmentos do movimento social,

exibindo ainda uma organização ampla e capilar em todo o país” nunca visto na

trajetória de luta pelos direitos da infância (Costa, s.d.: 15). Nesse tempo, tivemos

por outro lado, aquilo que os analistas políticos e econômicos colocam como a

década perdida, em se tratando dos indicadores de desenvolvimento da economia

brasileira.

A importância desse período reside também no acirramento do

debate sobre o lugar que a infância ocupa nos espaços do público e do privado.

Foi nesse embate de forças que o traço autoritário, conservador, segregacionista,

portanto ineficaz da PNBEM - Política Nacional de Bem-Estar do Menor foi

colocada em xeque, ficando cada vez mais difícil ao Estado sustentá-la.

Toda essa sorte de situações fez com que meninos e meninas das

camadas populares ganhassem as ruas, fazendo delas espaço de sobrevivência e

moradia, amedrontando a sociedade brasileira. As Fundações do Bem-Estar do

Menor - FEBEMs são trazidas de novo a público tendo que explicar sua ineficácia,

enquanto espaço protetor, educacional, ressocializador de menores. A instituição

responsável pela segurança pública e todo aparato policial, é questionado pela

omissão e violação dos direitos humanos e, assim, as operações cata-pivetes,

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pente-fino são rechaçadas pelo emergente MSDCA e também pelos familiares

dessas crianças. Uma série de denúncias surge por parte dos sujeitos envolvidos

na defesa dos direitos da criança sobre o descaso do Estado para com essa

situação, ao mesmo tempo que o emergente movimento social vai

experimentando proposições alternativas ao atendimento oficial.

Costa (s.d.), assim trata a questão:

“Era preciso aprender a olhar aqueles meninos a olho nu, com o olhar

desarmado das categorias estigmatizantes do Código de Menores

(Situação Irregular) e da PNBEM (Política nacional de Bem-Estar do

Menor). Chamá-los de menores era enquadrá-los nas categorias

inscritas nas leis de controle social da infância e da juventude que, só

agora, nos espíritos mais críticos, começavam a ser percebidas como

parte do entulho autoritário (grifo nosso) que a reconstrução

democrática da vida nacional, um dia, haveria de banir do panorama

legal brasileiro” (Costa, s.d.:16).

A importância desse período para análise da trajetória do MSDCA

por um novo desenho da concepção de infância, do Direito e das políticas públicas

têm então a ver com o fim dado aos demais ordenamentos nascidos no regime

autoritário, como os Atos Institucionais (atos de exceção), as Leis de Greve, de

Segurança Nacional, de Imprensa. Insurgir contra todo esse entulho autoritário e

no campo da infância contra a PNBEM e o Código de Menores, era buscar

principalmente o fim do controle e da violação aos direitos humanos impostos pelo

Estado ao povo brasileiro.

Analiso esse período também observando o papel desempenhado

por determinados agentes institucionais, particularmente a partir de 1982, quando

foi possível unir diversos sentimentos e percepções em torno de uma nova

concepção de infância e da política pública para esse segmento. É o que Costa

(s.d.) chamou de aprendendo com quem faz ao referir-se ao grupo de técnicos do

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UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), da FUNABEM (Fundação

Nacional do Bem-Estar do Menor) e da SAS (Secretaria de Ação Social) do

Ministério da Previdência e Assistência Social quando iniciaram o Projeto

Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua, um dos marcos fundamentais

para a construção da atual concepção de infância, do Direito e da gestão da

política pública: “(...)seu primeiro passo foi começar a aprender a fazer com quem

está fazendo. Assim, teve início o processo de identificação, registro e divulgação

das experiências bem sucedidas de atendimento a meninos e meninas que

estavam nas ruas ou nas comunidades pobres”. O resultado de toda essa

articulação foi sem dúvida, a imposição de “(...) uma crítica em ato (grifo nosso)

ao velho modelo assistencialista-correcional-repressivo resultante da articulação

entre o Código de Menores e a desgastada Política Nacional de Bem-Estar do

Menor ”3 (Costa, s.d.:17).

Tomei, como objeto de estudo, o papel dos sujeitos sociais

(individuais e coletivos) presentes à época, ao buscarem um novo patamar de

relação entre Estado e Sociedade Civil, onde os impasses da cidadania4 da

infância e adolescência brasileiras fossem desvelados.

Para proceder a tal análise, tomo como ponto de partida os estudos

de Heringer (1992) por concordar com suas contribuições acerca do papel

desempenhado pelo MSDCA na busca da atual concepção de infância e das

políticas sociais a ela destinada:

“(...) os movimentos sociais de luta pela defesa da criança e do

adolescente começam a ‘ganhar corpo’ na segunda metade da década

de 80, definindo-se a partir daí mais pela sua identidade política do que

vinha acontecendo até então. Isto porque, de início, aqueles atores que

começaram a destacar-se na luta pelos direitos de crianças e 3 O Código de Menores é de 1979 e a PNBEM de 1964. Para melhor visualização e compreensão dos conteúdos e dos resultados da combinação desses ordenamentos institucionais, apresento nos capítulos subsequentes vários quadros comparativos sobre a questão4 Expressão que dá nome ao livro do IBASE - Os Impasses da Cidadania: Infância e Adolescência no Brasil,

(1992), Rio de Janeiro.

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adolescentes eram os mesmos que realizavam trabalho de

atendimento direto a crianças e adolescentes privados de seus direitos

básicos, combinando, portanto, a sua atuação como prestadores de

serviços atuantes no vácuo deixado pelo Estado nesta área e, ao

mesmo tempo, como sujeitos políticos desta discussão.” (Heringer:

1992: 56).

Resumidamente, chamo esta relação luta-atendimento, dado o

caráter alternativo-alterativo presente na realização dos programas e serviços

sociais aos menores de idade5.

Para análise do papel dos sujeitos, privilegio aqueles protagonistas

engajados na luta no campo dos direitos humanos e sociais, diverso daqueles,

cuja atuação se restringia tão somente a prestação de serviços sociais à infância.

Desse modo, o olhar do presente estudo, centra-se na atuação dos sujeitos pela

busca dos direitos de cidadania da infância e adolescência6 e a sua expressão

política no cenário nacional.

Neste estudo tento desvelar o MSDCA no tocante à mobilização social

para o enfrentamento do paradigma de atendimento centrado na doutrina da

situação irregular da infância e da adolescência, presente no período de 1975 a

1990, substituído pelo atual paradigma da proteção integral7, circunscrito na

Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, seguido das legislações

complementares.

5 A questão do alternativo ao alterativo mereceu debate no capítulo IV desta dissertação.6 O debate direito-cidadania aparece no capítulo III desta dissertação.7 A base doutrinária do ECA é inspirada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança da Organização

das Nações Unidas (1989). Resumidamente, esta doutrina responsabiliza o Poder Público e a Sociedade como agentes promotores das garantias dos direitos e provedores das necessidades básicas de toda a infância e adolescência, sem qualquer tipo de discriminação, exclusão ou exceção. A doutrina da situação irregular, expressa no Código de Menores, trata de uma parcela do segmento de crianças e adolescentes, caracterizados por sua situação irregular, isto é, privados de condições essenciais à subsistência, vítimas de maus tratos, em perigo moral, privados de representação ou assistência, com desvio de conduta, ou autores de infração penal. Esta questão é tratada no corpo da dissertação, como um todo, e especificamente, nos capítulos I e II. Apresento, ainda, quadros sinóticos, ilustrativos, das doutrinas, na parte denominada Anexos.

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As principais políticas de atendimento que impulsionaram a realização

de programas de caráter alternativo frente às diretrizes programáticas até então

vigentes, serão estudadas, assim como a legislação sobre a criança, o Código de

Menores (1927 e 1979), a Constituição Federal (1988) e o Estatuto da Criança e

do Adolescente (1990). Auxiliará, neste debate, o exame das convenções e

recomendações internacionais que serviram de base para a formalização da atual

doutrina (proteção integral).

As contribuições advindas de profissionais, de organismos

governamentais e multilaterais da área serão aqui trabalhadas, no sentido de sua

relação entre as doutrinas e o processo de mobilização social em prol de uma

nova concepção de infância, do desenho e da gestão das políticas sociais.

Isto posto, saliento que, no decorrer deste trabalho, observarei as

diversas abordagens da concepção e visão de movimentos sociais. No entanto,

minha análise em relação ao MSDCA se sustenta no pensamento de Jacobi

(1989):

“(...) optamos por analisá-los a partir dos seus momentos específicos,

procurando pensá-lo como processos abertos (grifo nosso), sujeitos

a contradições internas e pautados por uma composição heterogênea

que potencializa a emergência de diferentes formas de ação coletiva e

de interação e/ou negação em face do Estado.” (Jacobi, 1989:16).

Para este estudo, o universo de pesquisa privilegiado são as fontes

primárias e secundárias. Como fontes primárias, incluem-se os documentos

oficiais, legislações, convenções e recomendações, nacionais e internacionais. Já

como fontes secundárias, utilizo documentos, textos, publicações produzidas pelo

próprio MSDCA, pela academia e pelos centros e pesquisas, além da bibliografia

estudada para compreensão da temática. Para balizamento da análise, busquei

alguns dos interlocutores participantes do processo de construção do novo olhar e

trato à infância e adolescência brasileiras.

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A escolha dos interlocutores não foi tarefa fácil, dada a expressão

social que os mesmos ocuparam no período de 75 a 90 no cenário da política de

defesa dos direitos humanos e sociais de crianças e adolescentes. A adoção de

critérios8 para a escolha dos interlocutores, num total de cinco, deu-se em razão

de limites inerentes ao tipo de estudo proposto (dissertação de mestrado), além do

tempo, recursos e distância geográfica entre a entrevistadora e os entrevistados.

Assim, dado o leque de interlocutores da área da infância existentes

no país, adotei como critério para a escolha dos cinco representantes, o tipo do

conhecimento/intervenção e o lugar que os mesmos ocupavam no período

privilegiado para a análise do papel do MSDCA na construção do novo paradigma.

Desse modo, escolhi representantes da área governamental e não-governamental,

consoante aos dois critérios estabelecidos.

Por se tratar de grupos distintos, adotei ainda outras variáveis para a

escolha da interlocução em cada plano. Tratando-se dos governamentais, acresci

a variável reconhecida capacidade de articulação política no estabelecimento de

relações entre Estado-Sociedade Civil, bem como a incorporação, enquanto

representante público, das demandas sociais trazidas pela sociedade. Dos não-

governamentais, acresci a variável impacto das ações frente à opinião pública na

construção do novo paradigma.

Suas contribuições foram tomadas através de entrevistas (abertas),

pelo contato cotidiano no processo de elaboração da dissertação, da leitura de

suas opiniões, relatos, intervenções e análises publicadas, revistas e livros, e

também da minhas anotações enquanto participante/expositora em oficinas,

seminários, palestras, em que muitos deles figuravam como debatedores.

8 Convém ressaltar que todo recorte adotado para análise de uma questão, pressupõe limites. No entanto, para a adoção dos critérios e das variáveis acima, tentei pautar-me nas contribuições de Sposati, Aldaíza (1988). 1971-1981: Da poesia à subversão, a trajetória do reconhecimento da burocracia municipal de assistência social, in Vida Urbana e Gestão da Pobreza, Cortez Ed., São Paulo.

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Considerando que os interlocutores aqui privilegiados representam

parte do pensamento nacional do MSDCA, aliada a minha contribuição como

profissional e participante ativa na construção desse movimento, no período

estudado, acredito estar contribuindo para o debate da temática.

Ao trazer para análise a fala dos sujeitos no período 1975-1990,

responsáveis, em parte, pela conquista da democracia, cidadania e a conseqüente

participação popular nos destinos da vida econômica, política e social, penso

estar contribuindo também na reflexão da atual crise9 pela qual vem se

debruçando os movimentos sociais, incluindo o MSDCA.

O processo de análise, de um período histórico determinado, carrega

em seu bojo a idéia de que,

“ (...)a história não é uma ato de criação intelectual dos historiadores.

Ela constitui um processo de autoliberação progressiva da massa do

povo. Os que precisam emancipar-se coletivamente é que a

conquistam - e a constróem. Isso, pelo menos, nos ensina o Brasil

moderno, o que nos situa de hoje para frente.” (Fernandes, 1986: 63)

Para exposição deste estudo, apresento no capítulo I a

contextualização da temática, contendo os principais aspectos que permearam o

debate sobre a concepção da infância, a movimentação dos sujeitos e as

diretrizes políticas desenvolvidas para o atendimento dessa população.

No capítulo II, trago o debate sobre a doutrina da situação irregular,

amparado nas convenções e recomendações internacionais, na legislação

nacional (Código de Menores de 27 e 79) e a sua operacionalização enquanto

diretriz da política de atendimento. Para a interlocução dessa doutrina, reporto-me 9 Na dissertação terá enfoque a questão da crise dos movimentos sociais ou “perda de vigor” de acordo com

as considerações de Nascimento, Elimar Pinheiro do, ob. cit..

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aos sujeitos presentes à época que, de certo modo, foram responsáveis pela

realização de muitas das ações.

No capítulo III, trato da doutrina da proteção integral à luz das

normativas e recomendações internacionais, da movimentação dos sujeitos

presentes no período delimitado (1975-1990), responsáveis pela atual concepção

da infância (sujeitos de direitos) e do ordenamento jurídico-institucional.

No capítulo IV, analiso as duas doutrinas na perspectiva da fala dos

sujeitos envolvidos com a política de direitos da criança e do adolescente,

apresentando as dificuldades, limites, negociações, impasses e conquista do

direito de cidadania dessa população. Esse movimento foi chamado pelos sujeitos

envolvidos com a questão de, do alternativo ao alterativo.

Como considerações finais procurei sistematizar as principais

questões que permearam o debate no período escolhido para análise da trajetória

empreendida pelo MSDCA na busca da cidadania de crianças e adolescentes

brasileiros.

Ainda, a título de complementação das informações e para melhor

visualização, procedi a elaboração de quadros sinóticos sobre as principais

convenções, recomendações internacionais que tratam do debate das doutrinas

da situação irregular e da proteção integral. Também, foram elaborados quadros

destacando e comparando as legislações que ordenaram o atendimento de

crianças e adolescentes no país, no período estudado. O mesmo procedimento foi

adotado para destacar os principais eventos e movimentos instituintes do

paradigma da proteção integral. Os mesmos estão dispostos nos capítulos, de

acordo com a referência estudada.

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CAPÍTULO I

CONTEXTUALIZAÇÃO: Os anos de luta pelos direitos da infância brasileira e seus múltiplos sujeitos.

Na década de 70, mais precisamente a partir de 1975, auge da crise

do poder autoritário, organizações civis de diferentes setores se articulam em

torno de uma bandeira de luta comum - liberdades democráticas, cidadania e

justiça - influindo decisivamente no processo da transição democrática no país.

Conforme salienta Aldaiza Sposati:

“(...)o final da década de 70, além de manifestar a agudização da crise

econômica e o desenvolvimento de ‘propostas sociais’ do governo

brasileiro buscando conformar um discurso distributivista é também o

momento no qual a questão social (grifo nosso) é reposta a partir de

nova posição da força de trabalho” (Sposati, 1987:21).

Nesse processo emerge, ou seja, “(...)recuperam o espaço vedado a

partir de 64...” (Sposati,1987:21) uma sorte de sujeitos individuais e coletivos com

novas demandas sociais que, colocadas na pauta de reivindicações da sociedade

brasileira, busca a ampliação dos direitos de cidadania. Por sujeitos sociais e

coletivos, cabe observar a definição de Éder Sader:

“(...)uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam

práticas através das quais seus membros pretendem defender seus

interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas”

(Sader,1988: 55).

Esse movimento social avança na conscientização e organização

popular, para as lutas específicas como moradia, saúde, educação; igualdade dos

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direitos da mulher, da criança, dos negros, dos homossexuais, do idoso; reforma

agrária, meio ambiente e melhores condições de vida nas grandes cidades -

reforma urbana, segurança, fim da violência. Dentre estes, destaca-se o

movimento social de defesa dos direitos da criança e do adolescente (MSDCA)10 que propugnava a infanto-adolescência como “...uma das dimensões

básicas da dívida social do país” (Carvalho e Almeida,1996:36).

A respeito da mobilização da época, observa Sposati:

“(...)O social torna-se campo de reivindicação coletiva onde os

segmentos espoliados se manifestam e exigem um novo

direcionamento das propostas sociais ... As formas de incorporação

dessas demandas sociais pelo Estado conformam as políticas sociais,

sendo necessário avaliar até onde tais políticas são ou não um avanço

para a população ... As classes subalternizadas, lutando por sua

sobrevivência, organizam-se e apelam para o atendimento de seus

direitos sociais, como trabalho, remuneração, alimentação, saúde,

moradia, educação. Este movimento envolve processos (grifo nosso)

de esclarecimento, arregimentação, debate e mobilização, que supõem

a liberdade e a resistência à opressão” (Sposati, 1987: 21-37).

A partir da metade dos anos 70, foram criadas novas articulações,

movimentos e entidades de defesa dos direitos da infância e adolescência com

ações voltadas à combinação denúncia/melhoria do atendimento/proposições.

Tais entidades, em sua maioria, de expressão política nacional, fazem parte do

movimento social urbano, que na década de 80, assume um novo espaço no

cenário social, conforme expressa Sousa Jr. (1988):

“(...) no Brasil hoje, a experiência de luta pela cidadania se expressa

como reivindicação de direitos e liberdades básicos e de instrumentos

10 Na investigação utilizamos a categoria movimento social para definir o MSDCA observadas as diferentes abordagens, presentes nos debates sobre a questão, trazidas nas contribuições de Jacobi (1989), Heringer (1992), Souza (1992), Abreu (1992), Sader (1988), Paoli (1988).

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de organização, representação e participação na estrutura econômico-

social e política da sociedade ... em afirmar o seu direito de cidadania

e em organizar formas concretas de defesa e de promoção dos seus

interesses.” (Souza Jr., 1988: 38).

Corroborando essas observações, Sposati, ao analisar o caráter

assistencial presente nas políticas sociais e na conquista da cidadania no período,

revela:

“(...) o avanço das políticas sociais terminam por ser menos a ação do

Estado em prover a justiça social e mais o resultado de lutas concretas

da população ... A luta pela nova cidadania se evidencia, também, no

movimento de retorno ao Estado de direito, no debate em torno da

questão dos direitos humanos. A crescente multiplicação de

movimentos sociais no Brasil, como forma de mobilização e criação de

espaços de prática e política, faz dos confrontos com o Estado (em

função de ‘reivindicações coletivas’ ) elementos fundamentais na

construção da cidadania ... A constituição coletiva da cidadania é, ao

mesmo tempo, um articulador de forças na direção da soberania

popular” (Sposati, 1987: 34-36-37).

Entre 1970 e 1985, destacam-se entidades e articulações como a

Pastoral do Menor (1979), como frente de ação da Conferência Nacional dos

Bispos do Brasil; o Movimento em Defesa do Menor (1979), constituído por

políticos e profissionais ligados ao direito, jornalismo, assistência social,

psicologia, em São Paulo/SP; a República do Pequeno Vendedor, (1970) ligada à

igreja católica, contemplando a participação de educadores sociais e dos próprios

meninos e meninas das camadas populares, em Belém/PA; a Associação dos Ex-

Alunos da FUNABEM, congregando ex-internos da instituição (1980), com sede no

Rio de Janeiro/RJ; o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (1985),

formado por educadores sociais e pelos próprios meninos e meninas em situação

de/na rua, com sede em Brasília/DF, entre outras de caráter regional.

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Um marco fundamental para o surgimento da mobilização social em

torno dos direitos da criança foi a instalação, em plena vigência do período

autoritário, da CPI do Menor Abandonado, em 1975, pela Câmara dos Deputados.

Esta CPI acabou desencadeando, em alguns Estados da federação, a instalação

de Comissões Especiais de Inquérito - CEIs para averiguar a real situação de

abandono e violência vivenciada pela infância brasileira das camadas populares.

Suas conclusões e importância política, mesmo diante das dificuldades impostas

pelos atos de exceção, serão debatidas na dissertação.

Outro marco relevante para a construção do MSDCA foi a

implementação no período de 82-84 do Projeto Alternativas de Atendimento a

Meninos de Rua, por constituir-se numa crítica em ato para o desenho da

concepção de infância, do Direito e da gestão da política pública. Esse projeto,

nasceu no seio da sociedade civil, àquela que vinha atuando desde os anos 70,

tendo como precursor a República do Pequeno Vendedor de Belém, Estado do

Pará que, mais tarde, foi engrossado por uma série de entidades não-

governamentais (Pastoral do Menor, CESAM, entre outras) e até por alguns

programas governamentais com grande participação comunitária, como por

exemplo, os programas desenvolvidos pela FEBEM do Estado de São Paulo em

convênio com a FUNABEM, iniciados a partir de 198311, as Casas da Juventude

(CAJUs) e os Centros de Convivência Infantil (CCIs).

Como vimos, o Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de

Rua contou com a cooperação técnico-financeira, em algumas regiões, do

UNICEF(Fundo das Nações Unidas para a Infância), da FUNABEM (Fundação

Nacional de Bem-Estar Social) e da SAS (Secretaria de Ação Social) do Ministério

da Previdência e Assistência Social. Costa (s.d.) assim diz sobre essa parceria:

11Algumas Casas da Juventude existem ainda hoje, como as dos municípios de Mauá, Ribeirão Pires, Embu e continuam sendo referências de políticas de atendimento por contemplar a primazia da doutrina da proteção integral. Tais projetos são realizados pelos executivos municipais.

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“O clima de criatividade institucional que marcou aquele período levou

o grupo a desenvolver uma estratégia de aprendizagem/ensino

chamado semitágio (termo resultante da fusão da palavra seminário

com a palavra estágio) que permitia a reflexão conjunta e aprofundada

sobre uma experiência na qual o grupo tinha oportunidade de imergir

de forma completa” (Costa, s.d.:17).

Essa estratégia só foi possível como bem mostra Bruno Sechi12, da

República do Pequeno Vendedor de Belém, após vários debates entre os três

parceiros e as entidades não-governamentais responsáveis pelos programas

alternativos. A perspectiva das entidades não era a institucionalização do projeto,

ou seja, de que o mesmo não fosse espraiado para os Estados e Municípios como

um modelo a ser seguido, e sim, como uma das referências, um ponto de partida.

Acreditava o emergente MSDCA que só assim cada localidade, de posse da

leitura de cenário de sua realidade e do envolvimento de pessoas da comunidade

e agentes institucionais, pudesse viabilizar sua proposta, colaborando para o

fortalecimento da mobilização coletiva em torno desses programas alternativos,

geradores de consciência de que a política para a infância devesse alcançar o

patamar direitos e não ficar apenas no plano das necessidades. Assim diz Sechi

sobre esse processo:

“(...) no Seminário promovido pelo Unicef, Funabem e SAS, reuniu-se

algumas experiências (...). Desse Seminário surge o Projeto

Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua. Inicialmente

propunha-se um projeto institucional, mas nós viramos a mesa, o que

ficou decidido é que o projeto teria como finalidade proporcionar o

intercâmbio, fortalecer e estimular o surgimento de outras experiências,

a partir da nossa experiência, da nossa prática.” (Padre Bruno)

12 Padre salesiano até 1997, fundador da República do Pequeno Vendedor e do Centro de Defesa do Menor de Belém do Para, coordenador do Fórum Nacional DCA e atualmente coordena a Rede Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente

15

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Foi realizada uma sorte de eventos - oficinas, reuniões, encontros,

produção de cartilhas e vídeos, socialização do conhecimento através dos

semitágios – constituindo-se em “(...) espaço de transmissão e produção de idéias,

conhecimentos e posturas, serviram também para propiciar a criação e o

estreitamento de laços de amizade entre as pessoas, gerando, desta maneira, um profundo sentido de pertinência e de vínculo entre os participantes dessas jornadas (grifo nosso)” (Costa, s.d.:18-19).

Foi esse profundo sentido de pertinência (presença) e de vínculo a

maior importância do Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua, para

a mobilização social em curso. “(...) é um patrimônio de idéias e experiências capaz de ser usado tanto para a geração de novos programas de atendimento,

como para a melhoria dos programas existentes. (...) foi um grupo de lideranças emergentes, conhecido e reconhecido em escala nacional, representativo do que havia de melhor em termos de compromisso político e de competência real nas atividades junto a meninos e meninas nas ruas e em suas comunidades

de origem (grifo nosso)” (Costa.s.d.: 18).

Um outro resultado significativo dessa empreitada foi que o Projeto

teve como desfecho político a realização do I Seminário Latino-Americano de

Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninos e Meninas de Rua , realizado

em Brasília, em novembro de 1984. Costa (s.d.) assim se expressa sobre esse

acontecimento: “(...) o atendimento alternativo revelou-se perante a Nação com toda sua força e com todo seu frescor de planta nova, emergindo com vigor na rica e diversificada floração do movimento social brasileiro naquele período (grifo nosso)” (Costa s.d.:18).

Enquanto articulação das diversas forças sociais presentes no

campo da infância e adolescência por um novo ordenamento institucional, foram

criadas a Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança (1985) constituída,

sobretudo, por agentes municipalistas de perfil progressista; o Fórum Nacional

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Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da

Criança e do Adolescente (1988), articulação de entidades da área da infância, de

capilaridade nacional.

No setor empresarial, uma das principais entidades surgidas foi a

Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança (1990) formada, inicialmente, por

empresários do setor de brinquedos e, hoje, abrangendo outros ramos da

atividade econômica.

O movimento sindical de trabalhadores também instituiu suas

comissões, grupos de trabalhos, secretarias, pressionado pelas suas bases,

principalmente, aquelas representativas do campo das políticas sociais, educação,

saúde, assistência social.

Nesse período ainda ganha destaque a criação e a revitalização dos

Institutos e Centros de Estudos e Pesquisas sobre criança e adolescente, ligados

às universidades e entidades não governamentais.

Observando a trajetória do MSDCA, pode-se afirmar que:

“(...) o que caracteriza a ação destes movimentos, sua eficiência e

capacidade de articulação de soluções (grifo nosso) é a convicção

de que sua ação encontra apoio num direito que não coincide

necessariamente com a legalidade oficial vigente.” (Sousa Jr., 1988:

38).

No processo constituinte, esses grupos, apesar de divergências de

conteúdo, método e gestão sobre políticas sociais, se articulam em torno da

inclusão de novos direitos à população infanto-juvenil. O resultado está na

incorporação e aprovação do artigo 227 da Constituição Federal13, elevando 13 C.F., art. 227 - “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com

absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a

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crianças e adolescentes, à categoria de cidadãos. Na análise do conteúdo legal,

percebe-se, conforme assinala Paoli (1988) que:

“(...)cada movimento destes se faz por conflitos distintos, formulam

sua opressão específica, reconhecem a si mesmo em espaços

políticos próprios. Todos no entanto, invadem o espaço público com

suas falas e lutas substantivas, exercidas através de uma ação

coletiva diferenciada não apenas pela sua formulação exclusiva, como

também porque mostram as muitas faces do poder estabelecido,

desvendadas em cada enfrentamento.” (Paoli, 1988: 144).

As forças integrantes do MSDCA, aliadas a outros movimentos,

visando a construção da cidadania da infanto-adolescência, elegeram para debate

nacional duas bandeiras de luta: Criança-Constituinte (julho de 1986) e Criança-

Prioridade Nacional (junho de 1987). Assim, foi realizada uma ampla mobilização

da sociedade, que incluiu a coleta de assinaturas e lobby junto ao Congresso

Nacional para a incorporação dos direitos de cidadania para esse segmento. Esta

articulação conseguiu o seu intento e as emendas propostas foram aprovadas

pela quase totalidade dos parlamentares presentes por ocasião da seção de

votação (435 votos a favor e 8 contra), incorporadas na redação dos artigos 227 e

228 da Constituição Federal de 1988.

Para Heringer (1992),

“...a mobilização para a apresentação de Emendas Populares, sem

dúvida, foi um marco de atuação no período, constituindo-se em um momento concreto de tradução das expectativas de mudança em propostas concretas (grifo nosso), em termos de lei.” (Heringer, 1992:

54)

salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

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Esse processo foi marcado por conflitos que, de certa forma,

sempre estiveram presentes no debate público na área da infância e adolescência

(filantropia/tutela e situação irregular/proteção integral), ganhando, sim, maior

complexidade devido ao jogo de forças e interesses da sociedade – governos,

sociedade civil, igrejas, judiciário, legislativo e a própria organização de crianças e

adolescentes – que, naquele momento, se fazia instituir.

Costa (1990) ao analisar esse movimento aponta, didaticamente, a

existência, no seu interior, de dois perfis básicos: i) programas em que

predominavam o atendimento direto; ii) grupos e entidades sociais que se

voltavam para a denúncia de omissões e transgressões do Estado e da

sociedade, em relação aos direitos da pessoa humana e da cidadania de crianças

e jovens. O primeiro perfil, referia-se às entidades sociais com atuação no campo

da infância e assistência social, já o segundo, de entidades que combinavam a

luta/atendimento de crianças e adolescentes.

Nesta definição o autor toma como referência a criação do

Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua – MNMMR, fundado em 1985,

por privilegiar, no processo de organização social, além da atuação dos

educadores sociais, a participação efetiva dos meninos e meninas de rua nas

decisões da política de ação, tornando-se símbolo da luta entre os anos 85/90.

Para análise da concepção alternativa do atendimento à concepção

alterativa da política de atenção aos direitos, o presente estudo, diferente de

Costa, toma como referência a instalação em 1975 da CPI do Menor Abandonado,

num dos momentos de acirrado autoritarismo do governo militar e que, parte da

sociedade exige medidas de enfrentamento à questão da violência

institucionalizada contra crianças e adolescentes no país. Assim, são retomadas

as principais referências legais estabelecidas no período de 75-90, os Códigos de

Menores (1927 e 1979) até o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990); as

propostas elaboradas pela sociedade civil; as políticas governamentais

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implementadas e, principalmente, as contribuições de especialistas e militantes da

área da infância e juventude, instituintes de um movimento político de defesa dos

direitos humanos e de cidadania14.

Para melhor compreender o processo atual de organização social da

infância, aqui considerado como movimento social, é importante verificar as ações

empreendidas no período anterior a 1988, conforme observa Amélia Cohn (1989):

“(...)desvendar a intrincada relação entre Estado e movimentos sociais

urbanos [significa privilegiar o foco de análise] sobre a reconstrução

dos movimentos sociais e da ação do Estado não como uma relação

de estímulo/resposta no jogo do poder, nem como um implacável

determinante estrutural stricto sensu, em que perdedores e

ganhadores já estão de antemão definidos, mas como uma intrincada,

complexa e por vezes ambígua relação.” (Cohn in Jacobi, 1989: XI-XII).

Também, Sposati considera que esta nova forma de busca da

cidadania se expressa tendo “...como eixo determinante de suas reivindicações, o

processo crescente de exclusão dos benefícios da urbanização” (Sposati, 1987:

36) e que a consciência das “carências coletivas” se transforma, na ação dos

movimentos sociais, em luta por direitos.

As contribuições de Abreu (1992), acerca da importância política dos

movimentos sociais emergentes para a sociedade brasileira, também reforçam a

preocupação do presente estudo, ao indicar que:

“A literatura do início dos anos 80 também aponta alguns fatores que

determinaram o auto-reconhecimento dos movimentos como sujeitos

novos da vida social, criando-se assim uma identidade própria e novos

atores. Esses fatores são as formas de manifestação desses

movimentos, reagindo às práticas autoritárias e de repressão política, avançando propostas de democracia direta e de base ou

14 Para melhor compreensão e visualização observar quadros constantes da dissertação.

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representação, questionando a distribuição do poder pela reação à sua centralização (grifo nosso), avançando idéias de autonomia

locais e de autogestão, opondo-se modelo econômico e

encaminhando novas formas de vida comunitária.” (Abreu, 1992:37).

A própria idéia de criação dos Conselhos de Direitos, Tutelares e dos

Fundos dos Direitos15 no campo da criança e do adolescente anuncia uma nova

perspectiva de relação Estado-Sociedade na definição, gestão e principalmente da

instituição do controle das políticas públicas e ações16.

No atual processo de implantação do ordenamento legal e

institucional, percebe-se que algumas questões têm inquietado os militantes e

gestores17: i) o papel dos Fóruns de Defesa dos Direitos da Criança e do

Adolescente; ii) a relação Conselhos de Direitos x Conselhos Tutelares x

Conselhos de Assistência Social; iii) a relação Conselhos e os poderes executivo,

judiciário, legislativo e ministério público; iv) a morosidade do reordenamento

institucional na realização da atual política de atendimento; v) a dificuldade do

Estado em conviver com a “partilha” do poder.

Aliada a estas questões, nota-se que alguns direitos fundamentais

da infância e adolescência continuam sendo violados, a despeito das ações

afirmativas que o MSDCA forjou nesses anos de luta, como crianças de/na rua;

trabalho infantil; exploração sexual e prostituição, violência institucional e familiar.

No debate das relações que permeiam estas violações, Guará (1994) coloca que

15 Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente nos três níveis da administração pública, como paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais” (art. 88, Inciso II); Conselhos Tutelares como “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente...” (art. 131); Fundo dos “órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular Direitos, criados segundo decretos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos de direitos para a captação de recursos e fomento financeiro às ações na área da infância” (art. 88, IV). 16 Para aprofundamento da questão da literatura no tocante à concepção, definição e papel dos movimentos sociais recorremos as contribuições de Nascimento, Elimar Pinheiro do em a Crise e movimentos sociais: hipóteses sobre os efeitos perversos, Rev. Serviço Social & Sociedade, no.43, ano XIV, dez., Cortez Ed., 1993. 17 Ao usar a expressão militante tomo-a no sentido da pessoa que atua em algum tipo de movimento social e gestor no sentido de técnico-administrativo dos programas e serviços públicos, estatais e não estatais.

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“...a associação entre democracia, direito e cidadania é representativa deste

tempo histórico que alcança incluir agora também, a infância e a adolescência.”

(Guará, 1994: 3)

Como esse movimento social gerou novas formas de mobilização e

de participação nos destinos da política pública para área, cabe aos novos

interlocutores e cientistas sociais,

“(...)pensar a construção de uma nova hegemonia através da

intervenção direta das massas, assegurando uma reconceituação da

política que amplie sua esfera e recupere, enquanto ação válida, o

vasto campo popular com seu cotidiano, aceitando, desse modo, o

desafio de visualizar um projeto social a partir do enfoque das classes

subalternas.” (Abreu, 1992:39).

Assim, o MSDCA se obriga a uma constante qualificação e

requalificação da sua intervenção para a garantia de suas proposições, pelas

inúmeras ações desenvolvidas por ele, principalmente, na formulação de novos

direitos que, na prática, acabaram colocando em questão, a política desenvolvida

pelo Estado, consubstanciada nos princípios da doutrina da situação irregular.

Cabe lembrar que as proposições relacionadas, no período,

constituíram-se no projeto político denominado Alternativas de Atendimento aos

Meninos de Rua (1982). Deste projeto, participaram setores da sociedade civil,

apoiados por alguns órgãos públicos governamentais (SAS/FUNABEM/CBIA) e

pelo UNICEF-Fundo das Nações Unidas para Infância, organismo multilateral,

preocupados com a violação dos direitos de crianças.

O documento do UNICEF/MPAS/SAS/FUNABEM sobre o Projeto

Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua, corrobora esta preocupação:

“Embora falte ainda muito para serem assimilados processos e

métodos específicos que parecem muito eficientes e produtivos no

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atendimento aos meninos de rua, alguns pontos têm sido reafirmados

ou solidamente apreendidos através dos levantamentos das

experiências. O problema ‘menino de rua’ tem causas econômicas e

sociais que não serão resolvidas a curto prazo ... sabemos que a

situação dos meninos de rua pode ser remediada e até prevenida de

agravamento mais cruciais. Para esse trabalho, os enfoques mais

efetivos são os menos dispendiosos e fornecem serviços de qualidade

dentro da comunidade a um preço muito menor do que os custos

decorrentes da institucionalização. O Governo sozinho não pode

apresentar a solução; seu papel fundamental é o de dar assistência às

iniciativas das comunidades para solucionar seus próprios problemas.

Conceitos e procedimentos administrativos tradicionais freqüentemente

são lentos demais, impessoais e rígidos, para efetivamente ajudar

esses esforços comunitários. É necessário desenvolver procedimentos através dos quais o Governo possa prestar esta assistência com maior flexibilidade e sensibilidade (grifo nosso),

apesar de continuar mantendo a necessária preocupação com

responsabilidade fiscalizadora” (UNICEF/MPAS/FUNABEM, 1983: 6).

Analisando os documentos da época e as práticas efetivadas,

principalmente, pela sociedade civil, algumas questões merecem ser melhor

debatidas no interior do MSDCA. Até que ponto essas ações anunciaram ou não a

retirada do Estado na realização de políticas e programas de sua competência?

Até que ponto se constitui em panacéia a busca “desenfreada”, das agências de

fomento de programas e serviços sociais dos indicadores de resultados na área

das políticas sociais, principalmente àquelas desenvolvidas pela sociedade civil?

Sobre estas questões, Evaldo A. Vieira, ao comentar o financiamento de políticas

sociais, lembra que, com a crise fiscal do Estado, a partir do final da década de 70,

surgem como epidemia uma sorte de propostas avaliatórias dos programas

sociais (Vieira, 1997:70).

A experiência, Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de

Rua, foi significativa para os sujeitos sociais envolvidos no atendimento direto, a

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combinarem os aspectos atendimento/denúncia/defesa de direitos no cotidiano de

suas práticas, forjando-se assim um novo desenho das políticas públicas

destinadas à infância e adolescência, baseadas no paradigma doutrina da

proteção integral, expresso nas principais convenções e recomendações

internacionais, em particular, a Convenção Internacional sobre os Direitos da

Criança (1989).

Este projeto é tido como um marco na instituição e na qualidade da

participação dos sujeitos sociais da área da infância na luta pela garantia e

ampliação dos direitos. Basta verificar que, no levantamento realizado pelos

executores do projeto, tinha-se aproximadamente 70 experiências com meninos e

meninas de rua no Brasil, e destas, cinco foram selecionadas como referência

para estudos e estágios, dado o seu caráter alternativo, cujas proposições

teórico- práticas, respondiam significativamente aos vários aspectos da vida dessa

população. Esses programas tinham, como perspectiva, imprimir um novo enfoque

ao atendimento de crianças e adolescentes, ou seja,

“(...)construir uma vida produtiva dentro do seu próprio ambiente,

fortalecendo seus laços com a família e a comunidade, a fim de

permitir que elas recebessem auxílio básico de que necessitavam para

criar suas próprias soluções e desfrutar um melhor futuro para si, para

sua família e sua comunidade” (UNICEF/MPAS/SAS/ FUNABEM,

1986: 3).

Barbetta (1993), avalia que esta experiência significou do ponto de

vista político “(...)a articulação de centenas de programas de atendimento na área

governamental e não-governamental, produzindo trocas de experiências,

propostas pedagógicas e um movimento de educação alternativa” (Barbetta, 1993:

43).

Com esse projeto foi possível conceber a dimensão alterativa dos

programas e ações de proteção à criança e ao adolescente frente à tradicional

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atuação do Estado e do olhar de parte da sociedade brasileira (assistencialista,

segregadora, repressiva) sobre a problemática que envolvia esse segmento. Para

Costa (1990), esse processo acabou gerando um conflito para o MSDCA: a

questão da luta por direitos dissociada do atendimento direto. Em suas

contribuições, o autor ressalta que “(...)está chegando ao fim, o caráter necessário

da vinculação luta-atendimento [e avança sua idéia ao colocar que] influir, neste

momento, nos parece mais importante do que fazer. Um influir que se dê mais

pela via do alterativo do que pela via do alternativo (grifo nosso)” (Costa,1990:

91).

Uma outra contribuição decorrente desse processo foi o debate que,

a FUNABEM trouxe, em 1986, sobre a Política de Atendimento ao Menor

(PNBEM)18. Colocava-se a necessidade de um repensar dessa política, bem

como da nova linha de atuação que a instituição deveria assumir para aquele final

de década. Para subsidiar a discussão, foi elaborado o Diagnóstico Integrado para

uma Nova Política de Bem-Estar do Menor privilegiando o exame da trajetória das

instituições e de seus programas, em vários níveis. Para esta reconstituição,

tomou-se como dimensões de análise, as questões que já vinham sendo

colocadas na época:

“(a) Qual o foco principal da política de atendimento ao menor - a

superação das carências generalizadas que afetam as crianças e os

adolescentes ou o tratamento de “populações-problema” definidas a

partir de critérios legais?

(b) Qual o tipo de gestão que tem predominado na implementação da

política - a centralização burocrática na sua formação e o controle

hierárquico de sua implementação ou um estilo mais descentralizado,

aberto à participação de atores mais próximos do problema (societários

e públicos) nas decisões das burocracias do sistema?

18 Em relação ao estudo da PNBEM observar entre as contribuições existentes a de Passeti, Edson no texto O Menor no Brasil Republicano, in Priore, Mary del , História da Criança no Brasil (1991).

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(c) Qual o nível de estabilidade na implementação das políticas - elas

apresentam um padrão evolutivo e cumulativo ou, pelo contrário,

pautam-se pela descontinuidade em termos de objetivos e prioridades?

(d) Como se processa a divisão do trabalho de atendimento aos

menores entre a instituição e outras agências públicas e privadas - há

complementaridade ou sobreposição de áreas, esforços e recursos?

(e) Quais os cenários que se desenham para o futuro da instituição -

fixar um papel compensatório ou definir como missão institucional e

promoção dos direitos de cidadania dos menores pobres, vistos como

um grupo de risco que o Estado tem a obrigação ética de defesa e

cobertura?” (FUNABEM /MPAS, 1987: 1-2).

Tal diagnóstico foi precedido da realização de seminários estaduais

internos à instituição e às fundações estaduais de bem-estar do menor (FEBEM),

com a participação de outros órgãos públicos da área da assistência social e

educação e de gestores de entidades sociais convidados. Estes seminários

propiciaram a reflexão crítica sobre as práticas institucionais até então

implementadas, onde os pontos de estrangulamento e avanços da política

mereceram aprofundamento. A avaliação de políticas sociais tiveram, como

parâmetro, o diálogo entre o Estado e a Sociedade Civil. O relatório apresenta,

sinteticamente, os principais temas e problemas da política de atendimento:

“(a) a emergência da criança e do adolescente como problema público

na sociedade brasileira;

(b) a estrutura de desigualdades que marginaliza os jovens carentes

dos direitos de cidadania;

(c) a formação e a implementação de políticas públicas de

atendimento, seguindo um modelo altamente centralizado de

organização e uma lógica compensatória de ação.” (FUNABEM/

MPAS, 1987: 5-6).

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O resultado desse trabalho levou a instituição FUNABEM à

“(...)definição de uma política social voltada para a redução das desigualdades e a

promoção dos direitos de cidadania dos jovens carentes, através de estratégias

descentralizadas de ação.” (FUNABEM/MPAS, 1987: 6).

Esta preocupação do Estado em redefinir sua diretriz política tem a

ver com o contexto social da época, ou seja, “(...)a crescente perda da

legitimidade do regime autoritário [que obrigava o Estado buscar] novos

mecanismos de articulação e intervenção a partir de pressupostos pautados pela

construção de uma nova institucionalidade política que recoloca as relações entre

Estado e demandas sociais.” (Jacobi, 1989:9).

São nesses momentos que os movimentos sociais demonstram sua

capacidade de intervenção política ao aliar ações contestatórias e reivindicativas,

transformando-as em proposições. O Estado, necessariamente, se vê obrigado a

absorver na redefinição e promoção dos direitos sociais e de cidadania. A esse

respeito, observa Pedro Jacobi (1989):

“(...)no Brasil, a crescente visibilidade dos movimentos urbanos

propicia uma multiplicidade de estudos que evidenciam a sua

importância enquanto fenômeno político (grifo nosso) de uma

sociedade em movimento. Desde fins da década de 60, nos países

europeus os conflitos urbanos e os movimentos de bairro vão

adquirindo uma significância crescente, tanto pelos seus efeitos

políticos e urbanos como pelas sua generalização e continuidade. “

(Jacobi, 1989: 11).

A articulação dos sujeitos envolvidos com a questão da política da

infância, no período estudado, dava-se nos mais variados espaços: i) no seio da

sociedade civil, tanto nos programas e serviços sociais quanto nas direções das

entidades sociais, sindicais, de defesa dos direitos humanos; ii) no interior dos

órgãos governamentais (planejamento e gestão da política), nas três esferas da

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administração pública; iii) na universidade, por meio dos centros de estudos e

pesquisas e iv) nos partidos políticos, pela criação dos grupos/comissões de

trabalho ligados à temática menor.

Essa movimentação impactou setores do poder Executivo, nas

várias instâncias da administração pública federal, estadual, municipal gerando

articulações como a Frente Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

(1985), o Fórum Nacional Permanente de Dirigentes de Órgãos Executores da

Política de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (1988), a campanha

nacional “Diga não a Violência”, o Projeto de Prevenção e Redução da Violência

contra Crianças e Jovens, ligada ao Ministério da Justiça, Ministério do Bem-Estar

Social e UNICEF (1986), a campanha “Criança-Constituinte” de iniciativa do

Ministério da Educação (1986). A título de exemplo, no Estado de São Paulo, foi

criado o Conselho de Representantes do Programa do Menor no Governo Franco

Montoro (1984) e o Fórum de Debates da Secretaria de Estado da Promoção

Social e Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (1985). Cabe ressaltar que

essas articulações contaram, em parte, com adesão de representantes do MSDCA

e, como também de outros representantes de movimentos sociais19.

Estes exemplos são significativos para repensar a definição de

estratégias sobre a relação Estado-Sociedade Civil e sua complexidade nas

sociedades modernas, internacionalizadas e interdependentes. Conforme observa

Heringer (1992) a respeito da relação do MSDCA e o Estado brasileiro, tem-se:

“Há que se perceber aí, também, a dificuldade de identificar, em

relação à experiência concreta de governo, as estratégias mais

adequadas. Estas só serão devidamente localizadas se for possível

definir de que forma o Estado está sendo encarado pelos movimentos.

Percebemos que, em muitos casos, predomina a visão do Estado

19

? A análise do impacto destas iniciativas será retomada no decorrer do estudo. Para melhor compreensão das ações/eventos da época, consultar quadros, constantes da dissertação.

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opositor, enquanto outros têm buscado relacionar-se com setores do

Executivo numa perspectiva do Estado como interlocutor, ao menos

em algumas ‘frentes’ concretas.” (Heringer, 1992: 55).

Assim, um dos impactos foi a aprovação do novo paradigma legal

consubstanciado na doutrina da proteção integral (liberdade, direitos e garantias),

ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA), em 1990, substituindo o

paradigma da situação irregular, disposto no Código de Menores (1979). O

Estatuto da Criança e do Adolescente, com certeza, é um dos resultados mais

significativos da mobilização ensejada pelo MSDCA, nas duas últimas décadas.

Esta ação político-pedagógica é chamada na área da infância como do alternativo

ao alterativo e, mais tarde, por Emílio Garcia Mendez (Unicef), como do avesso

ao direito (1993).

Esse ideário motivou o MSDCA, no período 80-90, a valorizar a ação

política na garantia dos direitos de cidadania no plano institucional (Pereira,

1995) e o Fórum Nacional DCA, foi um dos principais exemplos desta ação. Esse

Fórum, criado em março de 1988, reunia mais de duas dezenas de organizações

não governamentais da área da infância20. Suas propostas residiam na alteração

e reformulação da legislação existente e no reordenamento institucional dos

organismos responsáveis pela operacionalização e atendimento de crianças e

jovens.

O Fórum Nacional DCA surgiu “(...)num gesto de extraordinária

maturidade política” das entidades não governamentais, que mesmo “(...)com

identidade ideológica e composição social as mais diversas”, firmaram o

compromisso político com a defesa das crianças e adolescentes no plano dos

direitos porque esse desejo “(...)era o mesmo em todos eles” (Costa, s.d. 19-21).

Assim, se articularam no Fórum em torno de três princípios: respeito à identidade,

respeito à autonomia e respeito ao dinamismo de cada uma das entidades-

membros (Doc. Fórum Nacional DCA, 1988).20 Atualmente mais de cinqüenta entidades de capilaridade nacional fazem parte desta articulação.

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Essa articulação em nível nacional realizou centenas de encontros,

congressos, assembléias, seminários, reuniões, jornadas em todo o país,

recebendo a adesão de várias articulações estaduais e municipais que, mais

tarde, acabaram criando os Fóruns regionais, à luz do Fórum Nacional DCA. Além

disso, criou comissões de trabalho encarregadas de debater sobre direitos da

infância, constituindo um grupo de redação do estatuto, que mais tarde acabou

recebendo o nome de Grupo de Redação do ECA, que sistematizava as

contribuições e dava forma legal às mesmas.

Esse foi, sem dúvida, um marco fundamental de fortalecimento do

MSDCA, uma vez que se uniram em torno dele, três forças que participaram da

elaboração da proposta de regulamentação do Art. 227 da Constituição Federal de

1988, da luta pela revogação do Código de Menores e da Política Nacional de

Bem-Estar do Menor, conforme resume Costa (s.d.):

“a) o mundo jurídico: representado por juízes, promotores de justiça,

advogados e professores de Direito;

b) as políticas públicas: representadas por assessores progressitas da

FUNABEM e por dirigentes e técnicos dos órgãos estaduais, reunidos

do FONACRIAD - o Fórum Nacional de Dirigentes de Políticas

Estaduais para a Criança e o Adolescente;

c) o movimento social: representado pelo Fórum Nacional DCA e por

um considerável grupo de entidades não-governamentais que lhe

manifestaram apoio, solidariedade e incentivo durante a campanha,

como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a SBP (Sociedade

Brasileira de Pediatria) e a ABRINQ (Associação dos Fabricantes de

Brinquedos) que representou o mundo empresarial” (Costa s.d.:22).

Foi em torno das mudanças no panorama legal, no reordenamento

institucional e na melhoria das formas de atenção direta que, num raro momento

de compromisso com a infância brasileira, parte significativa da sociedade pôde

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discutir as problemáticas que envolvem o mundo da criança. Foi nesse período

que os mais variados espaços de socialização de crianças e adolescentes levaram

para o seu interior o debate acerca dos direitos dessa população,

independentemente de sua condição econômico-social, cultural e étnica. Podemos

dizer que essa ação do MSDCA, articulada na identidade Fórum Nacional DCA,

representou qualidade de intervenção da sociedade brasileira na questão da

infância, sem precedentes na história das políticas de atenção a esse segmento

(Costa, s/d).

Como salienta Heringer (1992), o Fórum Nacional DCA, é um

exemplo clássico de movimento social dos anos 90 que, além da realização de

ações políticas contestatórias e reivindicativas, passa a elaborar proposições na

área das políticas públicas.

O MSDCA, representado pelo Fórum Nacional DCA, continua

atuante após a promulgação do ECA, impulsionando o surgimento de outras

articulações como a rede dos centros de defesa gerando, em 1994, a ANCED-

Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do

Adolescente que conta, hoje, com mais de 30 Centros de Defesa, a ela filiados; o

Pacto pela Infância (1991), reunindo representantes da sociedade civil, governos

(nas três esferas da administração pública), personalidades, organismos

multilaterais presentes no país, com destaque para o UNICEF; a Frente

Parlamentar pela Criança (1992), movimento supra-partidário integrado por

parlamentares da Câmara e Senado e, mais recentemente, o Fórum Nacional de

Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (1996), composto por representantes

do governo federal, do movimento sindical de trabalhadores e empregadores, dos

organismos multilaterais, com destaque para a Organização Internacional do

Trabalho (OIT) e da sociedade civil representada pelo Fórum Nacional DCA.

Todavia, o maior impacto pela ação do MSDCA tem sido a criação e instalação,

nestes últimos anos, de mais de 3.000 Conselhos, dos Direitos e Tutelares.

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Isto posto, saliento que, no decorrer deste estudo, estarei atenta às

diversas abordagens da concepção e visão de movimentos sociais, centrando

minha análise, em relação ao movimento social de defesa dos direitos da criança

e do adolescente no pensamento de Jacobi (1989):

“(...)optamos por analisá-los a partir dos seus momentos específicos,

procurando pensá-lo como processos abertos (grifo nosso), sujeitos

a contradições internas e pautados por uma composição heterogênea

que potencializa a emergência de diferentes formas de ação coletiva e

de interação e/ou negação em face do Estado.” (Jacobi, 1989:16).

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Marcos referenciais do MSDCA* - período 1975 a 1982

Ano Evento Iniciativa/Movimento Fator de mobilização Questões/Lutas

1975/76 Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Menor abandonado**

Câmara dos Deputados/Movimento de Direitos Humanos***

Dimensão e perigo da marginalização do menor desamparado; menores carentes denunciam a realidade brasileira: pobreza; crescimento demográfico (52% da população na faixa etária de 0-19 anos); processo de distensão política; denúncias

Investigação do problema do menor no país; subsídios às autoridades públicas, principalmente ao Poder Executivo; conscientização da sociedade para uma ampla mobilização nacional contra os fatores e efeitos da marginalização social; violência policial e institucional

1979 Pastoral Ecumênica do Menor Igreja Católica/CNBB Caráter desumano do atendimento institucional; necessidade de novas alternativas de atendimento; quebra do ciclo perverso gerado pela institucionalização

Humanização do atendimento, valorização do atendimento não institucionalizado; atendimento na comunidade; melhoria da qualidade do atendimento prestado ao menor

1979 Movimento em Defesa do Menor Advogados, jornalista, profissionais liberais, políticos

Denúncia sobre a morte de meninos da periferia dos grandes centros urbanos e sobre a situação de degradação vivida pelos menores institucionalizados

Combate à violência policial e institucional sofrida pelos menores

1979 Ano Internacional da Criança UNICEF Revisão das condições gerais de vida da população infantil; avaliação de serviços e programas; realização de estudos, elaboração de planos, tornar públicas as questões relativas a situação das crianças; captação de recursos; sensibilização dos países industrializados para a situação vivida pelos menores nos países em desenvolvimento

Estabelecimento de base de referência para defesa da criança e conscientização de dirigentes acerca de suas necessidades fundamentais; inclusão da questão da criança nos planos de desenvolvimento social e econômico

*Movimento Social de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente** parlamentares de oposição/Comissão de Justiça e Paz*** outras CEIs foram instaladas no Brasil

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Ano Evento Iniciativa/Movimento Fator de mobilização Questões/Lutas

1980 Associação dos Ex-Alunos da FUNABEM

Congrega ex-internos da FUNABEM Organização para reivindicação dos direitos de cidadania

Reparação de direitos; mudança na concepção do atendimento; alteração da estrutura organizacional e política da instituição

1982 Eleições Estaduais/governos democráticos

Partidos incluem em seus programas a questão da infância

Pesquisa de opinião levanta ser esta uma das principais preocupações da população

Fim das instituições totais, revisão das diretrizes dos órgãos responsáveis pelo atendimento de menores; envolvimento da comunidade

Elaboração: Rosemary Ferreira de Souza Pereira

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Marcos referências do MSDCA - período 1983 a 1990

Ano Evento Iniciativa/Movimento Fator de mobilização Questões/lutas

1983 Revisão das diretrizes da FEBEM/SP*

Governo estadual, secretaria, FEBEM Violência institucional, péssimas condições do atendimento

Falência das instituições totais; descentralização; projetos alternativos

1984 I Seminário Latino-Americano de Alternativas Comunitárias a Meninos e Meninas de Rua

UNICEF/SAS/FUNABEM Busca de alternativas ao atendimento institucionalizado. Conhecer o trabalho realizado pelas organizações comunitárias.

Falência do Política Nacional de Bem Estar do Menor.

1985 Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua

Educadores e meninos dos chamados projetos alternativos

Mudança de concepção de criança e adolescente; alteração do atendimento

Cidadania de crianças e adolescentes; crianças e adolescentes sujeitos de direito

1985 Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente

Dirigentes municipais Municipalização dos programas de atendimento ao menor

Descentralização/municipalização das ações; propostas para a Assembléia Nacional Constituinte e à Nação Brasileira

1986 Campanha Nacional “Diga não a violência”

Governo federal e UNICEF Violência institucional e policial Prevenção e redução da violência contra crianças e adolescente

1986 Comissão Nacional Criança-Constituinte

Governo Federal, Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), Organização Mundial para Educação pré-escolar (OMEP), Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ), Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança (FNDdC), Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR).

Garantia de espaço específico para a criança e o adolescente na Constituição Federal

Ampla participação dos setores interessados na defesa dos direitos de crianças e adolescentes e na elaboração de propostas para o texto constitucional

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Ano Evento Iniciativa/movimento Fator de Mobilização Questão/Luta

1988 Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente

Entidades não-governamentais de atendimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente

Mudança na legislação, elaboração de proposta para a Assembléia Nacional Constituinte.

Alteração do panorama legal; articulação no nível nacional das entidades com atuação na área de defesa e promoção dos direitos da infância e da juventude

1987 Fórum Nacional Permanente de Dirigentes dos Órgãos Executores da Política de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente

Órgãos executores da Política Nacional do Bem Estar do Menor - FEBEMs

Pressão da sociedade civil para as mudanças dos serviços dirigidos à criança e ao adolescente

Violência institucional; revisão da prática institucional; descentralização do atendimento; participação da sociedade no processo de revisão do atendimento e melhoria da qualidade dos serviços

1989 II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua

MNMMR/Fórum Nacional DCA Lobby para aprovação do projeto de lei- Estatuto da Criança e do Adolescente

Regulamentação da Constituição Federal, art. 227.

1990 Fundação ABRINQ pelos Direitos da Criança

Empresários do setor de brinquedos Situação de pobreza vivida pela infância brasileira

sensibilização e mobilização do empresariado brasileiro; envolvimento do empresariado na política de atendimento à infância e adolescência

*o processo de revisão das diretrizes dos órgãos responsáveis pela execução da política estadual de atendimento ao menor aconteceu em vários Estados, como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, entre outrosElaboração: Rosemary Ferreira de Souza Pereira

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CAPÍTULO II

DA DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR21

“Mas enquanto a oscilação conceitual ensina que a

vida muda, a duração do esforço conceitual ensina que

a vida continua, não obstante conceitos tão diferentes

sejam formulados ... que, por isso mesmo, percebe-se,

não é a mesma coisa, aqui e lá, ontem e hoje, sendo

tantas infâncias quantas forem idéias, práticas e

discursos que em torno dela e sobre ela se organizem”

(Lajolo, 1997: 227).

A trajetória do MSDCA, enquanto instituinte de uma nova concepção

e trato à infância, no plano legal e cultural, procurou “(...)desconstruir a visão

preconceituosa e estigmatizante existente em relação às crianças e adolescentes

pobres no Brasil” e avaliar criticamente o processo de implementação das políticas

sociais, caracterizadas, em sua maioria, pela “(...)descontinuidade e clientelismo,

além do seu viés autoritário e repressor” (Pereira Jr., 1992: 10-11).

Todavia, percebe-se hoje, quase dez anos de aprovação da última

Constituição Federal e oito anos da promulgação do Estatuto da Criança e do

Adolescente, a prioridade do MSDCA centrada na construção da democracia

participativa em relação à gestão das políticas de atenção à criança e ao

adolescente. O papel instituinte do MSDCA na consecução dessa democratização

da gestão, constitui um dos pilares de construção do novo olhar e trato às crianças

e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos, pressupondo a sua inclusão, no

cotidiano, à categoria de cidadãos. 21 Para melhor compreensão desta doutrina verificar os quadros, constantes nas páginas n 69,70, 71, 72, 73 e 74.

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O Estatuto da Criança e do Adolescente concretiza os direitos desse

segmento etário, universalizando-os. Assim, rompe com a tradição nacional e

latino-americana em termos da concepção geral de infância, da gestão da política

e do processo de elaboração de leis. O ECA ao trazer os princípios fundantes da

Declaração Universal dos Direitos da Criança,

“(...)afirma o valor intrínseco da criança como ser humano, a

necessidade especial de respeito à sua condição peculiar de pessoa

em desenvolvimento, o valor respectivo da infância e da juventude,

como portadoras da continuidade de seu povo, da sua família e da

espécie humana e o reconhecimento de sua vulnerabilidade, o que

torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral

por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar por

meio de políticas específicas para o atendimento, a promoção e a

defesa de seus direitos” (Costa s.d.: 24).

Assim, o atual ordenamento abrange o campo dos direitos individuais

(vida, liberdade e dignidade) e o campo dos direitos coletivos (econômicos, sociais

e culturais). O que vale destaque é que essa assimilação dos direitos “ (...) não foi

mera cópia dos dispositivos da normativa internacional”. Ao contrário, cada

elemento incorporado teve de passar pelo crivo da experiência dos representantes

do movimento social, das políticas públicas e do mundo jurídico, envolvidos na

elaboração da nova lei. (Costa, s.d.:26).

E, ao tratar de direitos universais, o Estatuto aponta, enquanto

mudança de método, o estado de necessidade de crianças e adolescentes (os

carentes) “(...)a superação do assistencialismo como o princípio definidor das

relações entre os pobres e o ramo social do Estado, ou seja, as políticas e

programas governamentais voltados para o atendimento de suas necessidades”.

Mas essa transformação do portador de carências em sujeitos de direitos implica

em mudanças das velhas práticas enraizadas na estrutura, no funcionamento e na

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cultura organizacional de órgãos e instituições responsáveis pelo atendimento da

população empobrecida. Portanto, ela é “(...)difícil, contraditória e complexa”,

conforme sinaliza Costa:

“Para mudar essas relações, faz-se necessário substituir o

assistencialismo por um novo tipo de trabalho social e educativo

emancipado, baseado na noção de cidadania, mudando

profundamente o entendimento e as ações ainda prevalecentes nessa

área. Só assim, será possível às nossas crianças e adolescentes

transitar das necessidades para os direitos da condição de menor (diminuído social) para a condição de cidadão, detentor do direito de ter direitos (grifo nosso)” (Costa s.d.:27).

Para a compreensão do papel desempenhado pelo MSDCA no novo

desenho da concepção de infância e das políticas a ela destinada, é necessário

observar a história do atendimento para verificar “(...)estereótipos, inversões de

sentido e banalizações construídos ao longo de séculos” sobre a criança no Brasil,

comparada a de outros países e tipos de sociedades. (Pereira Jr., 1992: 13)

Philippe Ariès, em a História Social da Criança e da Família, cuja

primeira publicação data de 1960, assevera que:

“(...)a descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e

sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na

iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu

desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e

significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII.”

(Ariès, 1981: 65).

O referido autor postula que, a partir do fim do século XVII, houve

uma mudança considerável nas abordagens sobre a infância com a instituição da

escola como meio principal de educação da infância, assim formulando:

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“A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso

quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de

aprender a vida diretamente, através do contato com eles ... a criança

foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de

quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a

escola, o colégio. Começou então um longo processo de

enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das

prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome

de escolarização.” (Ariès, 1981:11).

Hoje, convivemos com as expressões infância e adolescência

estabelecendo diferenciações de comportamento e de inserção social sem

observar, muitas vezes, o longo processo de construção dessa categoria e ainda

mais, sem perceber que,

“(...)especialmente em nosso país, esse processo de construção de

concepções vem permeado por um brutal mascaramento e

desvirtuamento da realidade. O estereótipo de infância construído no

senso comum (criança branca de classe média assistida por uma

família nuclear estruturada) está longe de refletir o rosto mestiço e

desnutrido da maioria de nossa população de 0 a 17 anos” (Pereira Jr.,

1992: 15).

Chauí (s/d) lembra que a idéia de criança como um adulto aparece

de modo mais claro no período da Ilustração, século XVIII, período aquele em que

houve “(...)todo um esforço para dizer que todos os homens são iguais em direito

e essa igualdade para estes pensadores, é dada pelo fato de que nós somos

todos seres racionais ... [e assim] a igualdade se estabelece no instante em que

se nota que temos o direito ao uso público da razão, caracterizado pela emissão

de opiniões em público.” (Chauí, s/d: 19).

Esta situação, presumida de igualdade, reporta-se ao que Chauí

considera como sendo a “maioridade”. E, olhando a história, percebe-se que nem

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todos conseguiram alcançar o status de maioridade. Para ela “essas figuras são

chamadas ‘o menor’. O ‘menor’ é a criança, a mulher, o não-proprietário, o

trabalhador. O maior é o adulto, o homem, o proprietário” (Chauí, s/d; 19).

Observando a posição que a criança ocupou na vida familiar e

social, na história da humanidade, depreendemos que “se o século XVIII

‘descobre’ a escola como o lugar de produção da ordem e homogeneização da

categoria criança, o século XIX se encarrega da tarefa de conceber e colocar em

prática os mecanismos que recolhem e ‘protegem’ aqueles que foram expulsos ou

não tiveram acesso ao sistema escolar” (Mendez, 1991:12). De certo modo, a

história do controle social e formal da infância, se estabelece nesse tempo e a

proteção que deveria constituir-se um direito, acaba em imposição. Surge então, a

partir do século XIX concepções políticas de atenção aos menores de idade numa

perspectiva segregacionista, amparadas “(...) no contexto ‘científico’ do positivismo

criminológico e nas conseqüentes teorias da defesa social [onde] a preservação

da integridade das crianças está subordinada ao objetivo de proteção da

sociedade contra os ‘futuros’ delinqüentes” (Mendez, 1991: 13).

No século XX, a formalização, no plano legal, do novo ideário de

infância, dá-se com a realização do Primeiro Congresso Internacional de

Tribunais de Menores22. Nele foram expostos, de modo sistemático e pela

primeira vez, temas relativos à legislação especial para menores, como: i) os

princípios e diretrizes para o funcionamento dos Tribunais visando a obtenção do

máximo de eficiência na luta contra a criminalidade juvenil; ii) o papel das

instituições de caridade frente a esses Tribunais e ao Estado e iii) a instituição da

medida judicial, liberdade vigiada. Estes temas objeto de debate na atualidade,

foram fundamentais, na época, para se construir a definição da concepção de

infância e adolescência e para a conceituação da proteção jurídico-social e ainda

para a formulação da legislação específica.

22 realizado, entre 29 de junho e 01 de julho de 1911, em Paris.

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Mendez (1991), analisando as atas desse Congresso, destaca que

em alguns discursos ficava claro o objetivo principal dos Tribunais de Menores:

“(...) recuperar a infância decaída, como também a protegê-la contra o perigo

moral”, servindo também como “(...) auxiliares das leis escolares e das leis do

trabalho”. Convém observar que já se discutia o papel da iniciativa privada na

atenção à infância decaída como também era enaltecida a necessidade dessa

colaboração, sem a qual “(...)a ação dos poderes públicos não poderia ser eficaz”

(Actas 1911, in Mendez, 1991: 11).

É a partir do século XX, que o caráter sócio-penal se sobressai na

legislação e nas diretrizes das políticas sociais destinadas a infância, tendo como

“(...)pontos de referência a ‘ciência’ psicológica e uma estrutura diferenciada de

controle penal”, através da criação dos Tribunais de Menores (Mendez, 1991:15-

16). De 1919 a 1939, todos os países da América Latina já haviam criados leis

específicas para sua infância. No Brasil, a primeira lei é o Código de Menores de

1927, também chamado de Código Mello Matos.

Estas leis tinham como princípios norteadores os resultados do

referido Congresso e constituíam uma resposta às:

“(...) espantosas condições de vida nos cárceres, onde as crianças

eram alojadas de forma indiscriminada com os adultos, e a formalidade

e inflexibilidade da lei penal que, obrigando o respeito, entre outros,

aos princípios de legalidade e de determinação da sentença impediam

a tarefa de repressão-proteção própria, do direito de menores.”

(Mendez, 1991:15-16).

Essas legislações, segundo Pereira Jr. (1992) espelharam visões

correntes de que,

“(...) somente determinada parcela desta população figura como objeto

a ser disciplinado, assistido e controlado ... as leis e códigos

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específicos formulados destinam-se a dar conta do denominado

MENOR. Como ‘menor’ entendendo-se não a totalidade da população

infanto-juvenil, mas especificamente a sua parcela pauperizada e em

potencial situação de abandono e delinqüência” (Pereira Jr, 1992:15).

Analisando as implicações presentes nas doutrinas de proteção à

infância e a trajetória de suas afirmações jurídicas, justifica-se que “o que se

monta é uma estrutura de leis e ações repressivas/assistencialistas que atuam

sobre o ‘menor’, apresentado sempre como uma minoria em situação irregular”

(Pereira Jr, 1992:16). A promulgação e decretação de leis e Códigos de Menores

tinham como objetivo cobrir o vácuo de socialização àquelas parcelas excluídas

do sistema produtivo e do sistema de educação. A leitura crítica dos conteúdos

presentes nessas legislações, também realizada por Mendez (1993) diz que:

“Qualquer análise das legislações vigentes, baseadas na doutrina da

situação irregular, permite demonstrar que à primeira categoria

(crianças e adolescentes) as leis de menores são, no mínimo,

absolutamente indiferentes. A discricionalidade da legislação vigente

permite - e fico tentado a utilizar exige - que seus eventuais conflitos

com a lei penal se resolvem por canais distintos daqueles previstos no

texto da lei. De igual maneira os conflitos de natureza não penal

resolvem-se normalmente através do Código Civil ou das leis conexas.

A expressão criança impune-proprietária (grifo nosso) constitui a

melhor síntese do espírito da lei nesta hipótese. Para os outros - ‘os

menores’ - as leis baseadas na doutrina da ‘situação irregular’

condicionam e determinam sua existência cotidiana desde o

nascimento até sua eventual ‘transferência social’, via adoção ou

submissão a algum tipo de confinamento institucional, através da

internação. A expressão criança sancionada-expropriada (grifo

nosso) constitui a síntese acabada desta segunda hipótese” (Mendez,

1993:15).

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Na verdade, todo esse processo de discussão e formalização de

instâncias de proteção ao menor tem a ver com o lugar que a criança ocupa “(...)

em distintos momentos e lugares da história humana” (Lajolo, 1997:227).

Assim no Brasil, antes dos processos de industrialização e

urbanização, a infância não era “foco de atenção especial”. As crianças “não eram

percebidas, nem ouvidas. Nem falavam, nem delas se falava” (Leite, 1997: 19). Os

registros sobre a infância, limitavam-se à literatura, à pintura, às memórias de

viajantes, à documentação das instituições de caridade.

A mudança do modo de produção e das novas relações sociais

forjadas com o capitalismo vão alterar o olhar e trato à infância. Estas mudanças

têm a ver com o novo lugar da realização do trabalho (fábricas), com a nova

forma de ocupação do espaço urbano (vilas operárias) e com a nova forma de

sociabilidade trazida pela industrialização e urbanização.

A infância ganha visibilidade e a preocupação social do Estado e da

sociedade em geral, na relação da família com o novo mundo do trabalho, pois

fica claro, a dificuldade da família em “(...) administrar o desenvolvimento dos

filhos pequenos. (Leite, 1997:18) Esta visibilidade não significou, portanto,

proteção e cuidados no sentido do seu desenvolvimento bio-psico-social sadio e

adequado.

A não incorporação da força de trabalho disponível na sociedade

pela produção capitalista23, gerou uma massa de trabalhadores, muitos deles,

vindos das zonas rurais, com baixa ou nenhuma escolaridade e qualificação

profissional para adentrarem ao chão da fábrica, jogada à margem do

desenvolvimento econômico-social e ao acesso aos bens e serviços.

23 “... Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se fosse criado e mantido por ele. Ela proporciona o material humano a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital e sempre pronto para ser explorado ...”. Karl Marx, O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I, vol. 2, cap. XXIII, 3ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, pp. 733/4.

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Assim, famílias inteiras passam a ser objeto de controle social.

Crianças e adolescentes, elos mais fracos desta cadeia e objetos da intervenção

do Estado, acabam se transformando em menores, cuja tradução tem sido o

estigma de abandonados, carentes, pivetes, delinqüentes e marginais.

Ao atentar para a questão da situação irregular de crianças e

adolescentes, Pereira Jr (1992) e Violante (1985) revelam que:

“Não devemos, no entanto, embarcar na face ou armadilha de

contrapor a esta diferenciação (menor X criança) uma generalização

igualmente estigmatizadora em que toda a população pobre de 0 a 17

anos figuraria como potenciais ‘pivetes’” (Pereira Jr., 1992: 16).

“Do mesmo modo que se explica a marginalidade, justificam-se e

legitimam-se as intervenções para a integração social. De modo

aparentemente contraditório por um lado o modo capitalista de

produção produz, necessariamente, a marginalidade e, por outro, cria

entidades para ‘reintegrar’ o Menor marginalizado.” (Violante, 1985:

22).

Assim, a formalização, no plano legal, da doutrina da situação

irregular, no Brasil, data do século XX, e a sua concepção, passa por uma

“(...)visão cartorial das relações indivíduo/sociedade/Estado” (Sêda, 1991:01),

fundadas nas concepções do direito português. Enquanto, nos países de formação

anglo-saxã, a relação do Estado e da Sociedade com os seus menores de idade

era baseada na concepção de crianças e jovens, no Brasil esta relação se dava

com menores.

Já, em fins do século XIX, outras leis, como o Código Criminal

(1830), o Código Penal (1890) e o Decreto-Lei 1313 (1891), continham alguns

aspectos relativos à infância e juventude reguladores da “(...) delinqüência e a

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vadiagem apresentadas como decorrente da não absorção da mão-de-obra livre”

(Pereira Jr, 1992:17)

Em 1917, entra em vigor o Código Civil Brasileiro que tratava das

crianças e jovens, e também das mulheres, como uma extensão do direito do

homem.

Em 1921, a lei 4242, autorizava o Estado a organizar o serviço de

assistência e proteção à infância abandonada e delinqüente, abrindo caminho na

alteração do tratamento dado às crianças e jovens pelo Direito Consuetudinário

para o Direito Positivo.24 (Sêda, 1991).

A partir daí, o Governo Federal encarrega o juiz Mello Mattos25 para

elaborar uma lei, para esse segmento, visando a assistência e proteção a

menores. Surge, assim, o primeiro Código de Menores, aprovado em 12 de

outubro de 1927, pelo Decreto Lei 17943-A. A concepção que permeia tal

legislação é a tutela e a coerção, entendida como reeducação e os menores

passam a ser definidos, em razão de sua condição sócio-econômica e de atitude,

ou seja, delinqüentes e abandonados.

O Código Mello Mattos estabelece que os menores de 18 anos são

abandonados por não terem, ou se encontrarem, eventualmente, sem habitação

certa e/ou meios de subsistência, em decorrência das condições de vida ou

incapacidade dos pais, tutor ou pessoa encarregada de sua guarda em provê-los.

É pressuposto de abandono, também, o próprio comportamento do menor

(vadiagem, mendicância, libertinagem e freqüência a lugares de moralidade

duvidosa) e dos seus responsáveis, quando praticantes de atos contrários à moral

e aos bons costumes, ou em decorrência de crueldade, abuso de autoridade,

24 Direito Consuetudinário: complexo de normas não escritas, originárias dos usos e costumes tradicionais de um povo; Direito Positivo: conjunto de normas de caráter obrigatório impostas pelo Estado, e que compreende o Direito escrito e o Consuetudinário, o mesmo que direito objetivo. (Novo Dicionário Aurélio) 25 José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, magistrado do antigo Distrito Federal e primeiro Juiz de Menores do Brasil

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negligência ou exploração, ou ainda quando envolvidos em crimes previstos no

Código Penal.

São considerados delinqüentes, os menores de 7 a 18 anos autores

ou cúmplices de fato qualificado como crime ou contravenção, sendo que o menor

até 14 anos não era submetido a processo penal de espécie alguma, diferente do

tratamento destinado àqueles com idade superior a 14 anos, submetidos a

processo especial.

É interessante esclarecer ainda que o Código de 1927, trabalha

também com a categoria infantes expostos para designar as crianças de até sete

anos de idade que se encontravam em estado de abandono.

Tal legislação possuía cunho intervencionista e eliminava todo e

qualquer tipo de formalidades jurídicas, estabelecendo à figura do Juiz de

Menores que, em nome do Estado, cabia a tutela e assistência aos menores.

Mendez (1991) assim pensa sobre o caráter da legislação que se decretou no

Brasil:

“O caráter principal desses tribunais é a simplicidade. Simplicidade na

organização. Simplicidade nas práticas de julgamento. Simplicidade na

aplicação de medidas de caráter educativo e coercitivo ... Basta um juiz

para julgar. Mas esse juiz deve ser exclusivamente um juiz de

menores; não deve, não pode exercer outra função ... Tais juizes têm a

missão espinhosa e dificílima de se tornarem familiares com esse

mundo misterioso quiçá impenetrável que é a alma infantil. Cada qual

deles será um juiz calmo, amorável, dedicado ao seu sacerdócio. Juiz-

pai, eis a expressão que melhor o deveria caracterizar ... Nada de

afecções prejudiciais. Nada de inquirições públicas, Nada de

acusações e de defesa” (Mendez, 1991:21).

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O Código de Menores de 1927, buscou então regular o menor vadio

e o menor trabalhador . Pereira Jr., trata desta questão, afirmando que

“(...) vistos numa escala crescente de periculosidade, do

abandono à delinqüência, os ‘menores’ deveriam ser alvo de uma ação

mais incisiva do Estado, caracterizada pelo intervencionismo direto e

até implantação de ações de isolamento em instituições totais,

intermediadas pelo juizado de menores” (Pereira Jr., 1992: 18).

Resumidamente, a concepção norteadora desta legislação, segundo

contribuições de Costa (1991) e Sêda (1991) era a seguinte:

“crianças e adolescentes são enfocadas pelo que não são, pelo que

não sabem, pelo que não têm, pelo que não são capazes ...

dirige-se à parcela da população infanto juvenil que tem menos de

18 anos e seja abandonada ou delinqüente ... e por isso dirigi-se à

porção atingida pela falência da família e da sociedade da época.

é intervencionista, ao introduzir o Estado-Juiz de forma coercitiva

nas questões relativas à população infanto-juvenil dita abandonada

ou delinqüente.

dá amplíssimo poderes a autoridade judiciária, a ponto de torná-la

legisladora através de Provimentos que impõe normas gerais de

conduta à sociedade civil.” (Sêda, 1991:4).

Ainda, em relação a esse Código, Sêda (1991) aponta mais um dado

sobre a evolução do pensamento, no tocante a alguns aspectos da gestão da

política para infância e adolescência, qual seja, a presença dos princípios da

descentralização política e da descentralização administrativa. Formula, o autor,

sobre a questão:

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“descentralização política - “o código fixava normas gerais federais e

deixava para Estados e Municípios fixarem, na legislação local,

normas adequadas as suas peculiaridades”;

descentralização administrativa – “o código cria um sistema de

vigilância preventiva do abandono e da delinqüência, afeto a vários

agentes distribuídos entre Estados e Municípios” (Sêda, 1991:4).

É interessante observar que na atual legislação sobre a infanto-

adolescência, estes mesmos princípios são reafirmados (ECA, art.88, inciso I e

III), acrescidos de outros que indicam a construção da democracia participativa na

gestão da política para infância (ECA, art. 88, incisos II, IV e VI). Estes princípios

assim figuravam no Código de Menores de 1927:

“Art. 11 – Os Estados e municípios determinarão em leis e

regulamentos:

I – os modos de organização do serviço e vigilância instituído por

esta lei;

II – a inspeção médica e de outras ordens, a criação, as atribuições e

os deveres dos funcionários necessários;

III – as obrigações impostas às nutrizes, aos diretores de escritórios

ou agências e todos os intermediários de colocações de crianças;

IV – a forma das declarações, dos registros, certificados ou atestados,

e outras peças necessárias.”

Nos anos 40 e 41, são dois os fatos jurídicos, importantes a

considerar:

em 1940, o novo Código Penal, amplia o limite da inimputabilidade penal para

18 anos e o Decreto-Lei 2024, “fixa as bases da organização da proteção à

maternidade, à infância e à adolescência em todo país” possibilitando a criação

do Departamento Nacional da Criança, no Ministério da Educação e Saúde,

que implementa em todo o país serviços de proteção materno-infantil,

indicando uma perspectiva de atenção integral à criança.

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em 1941, contraditoriamente, é criado, pelo Decreto-Lei 3779, o Serviço de

Assistência a Menores (SAM), com a “atribuição de prestar, em todo o

território nacional, amparo social aos menores desvalidos e infratores”. O SAM,

subordinado ao Ministério Justiça e, vinculado ao Juizado de Menores do

Distrito Federal, veio consolidar, no plano legal e da política de atendimento, a

dicotomia menor – criança/adolescente.

A criação do SAM estava pautada na concepção do Código de 1927

que, segundo Pereira Jr. (1992),

“(...) o ‘menor’ (delinqüente ou abandonado) necessita passar por um

processo de ressocialização, pautado na coerção, para que distorções

fossem corrigidas, possibilitando sua reintegração na sociedade.

Corresponde, portanto, a uma instrumentalização da máquina do

Estado para cumprir as determinações penais do Código de Menores”

(Pereira Jr, 1992:19)

O Decreto-Lei 3779/41 instituía os “centros de observação

destinados à internação provisória e ao exame antropológico e psicológico dos

menores cujo tratamento ou educação exijam um diagnóstico especial” e

determinava que os órgãos da administração federal, estadual e municipal

cooperassem, “de modo regular e permanente, com a Justiça de Menores, a fim

de que se assegure à criança, colocada por qualquer motivo sob a vigilância da

autoridade judiciária, a mais plena proteção.” (Decreto Lei, in Sêda, 1991:06).

Assim, dá inicio, no Brasil, o processo de valorização das ciências do

conhecimento e, sobretudo, na área da infância, da valorização dos instrumentos

da psicologia criminal que, “utilizados sob o prisma do positivismo, determina

objetivamente a destruição do princípio da legalidade. O delinqüente –

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principalmente a criança – não é mais o comprovado infrator da lei, mas se torna

toda uma categoria de indivíduos frágeis a quem os instrumentos científicos

permitem detectar exatamente como delinqüentes em potencial.” (Mendez,

1991:22).

Em 1943, a revisão do Código de Menores, feita à luz do Código

Penal de 1940, pelo Decreto 6.026, chamado também de Lei de Emergência,

estabelece uma nova noção de periculosidade, “abandonando a categoria

‘delinqüente’ para utilizar a ‘infrator’ o que vem a cristalizar de vez a visão da

menoridade como caso de polícia” (Pereira Jr., 1992:19).

Tanto o SAM quanto o Departamento Nacional da Criança são meios

utilizados pelo Estado para concretizar a proposição de enfrentamento da questão

da menoridade na lógica do pão e palmatória, resultando também na dicotomia

assistência/punição. Estes mecanismos foram criados “na ótica da defesa da

sociedade contra os potenciais marginais, visualizando-os como o cerne do

problema” (Pereira Jr., 1992:19-20). Cada órgão desse tinha um papel: o

Departamento Nacional da Criança se ocupava da política materno-infantil e o

SAM tratava da ressocialização, através da internação dos menores, resultando

numa política totalmente contrária aos direitos da pessoa humana.

Vale destacar as contribuições Morelli (1996) ao analisar a

concepção presente no Código de Menores de 1927:

“É nítida a preocupação em criar ou estabelecer os locais certos para

cada atividade, a casa, o local de trabalho, a escola, a igreja, lugares e

momentos de lazer. Este último torna-se a principal preocupação,

apresentando normalmente como algazarra, vagabundagem, hábitos

contrários à concepção do homem trabalhador.” (Morelli, 1996:91).

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Nesse sentido, em 1939, uma nova portaria foi editada pelo Juízo de

Menores, regulamentando a ação dos agentes responsáveis pela repressão ao

que se considerava vadiagem de menores. Destaco aqui os principais incisos da

referida portaria enquanto concepção da doutrina da situação irregular presente à

época:

“I – serão detidos e apresentados ao juízo, que tomará as medidas que

em cada caso couber, os menores encontrados vagando nas ruas,

esmolando, tomando traseiras de veículos ou praticando o foot-ball na

via pública.

II – (...)

III – serão recolhidos, desde logo, ao Instituto 7 de Setembro, para

apresentação posterior a este juízo, os menores que forem

apreendidos como vadios – depois da hora de encerramento do

expediente do juízo – fazendo o referido comissário a apresentação

direta àquele estabelecimento;

IV – solicitar a colaboração da Política Civil no serviço de repressão

dos menores vadios que forem encontrados na cidade” (Netto, in

Morelli, 1996:92).

Coube ao Poder Judiciário, com auxílio da instituição policial, o papel

mantenedor do bem estar da criança, como bem esclarece os artigo 55 e 157 do

Código de 1927:

“art. 55 – A autoridade, a quem incumbir a assistência e proteção aos

menores, ordenará a apreensão daqueles de que houver notícia, ou

lhe forem presentes, como abandonados, os depositará em lugar

conveniente e providenciará sobre sua guarda, educação e vigilância,

podendo, conforme a idade, instrução, profissão, saúde, abandono ou

perversão do menor e a situação social moral e econômica dos pais ou

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tutor, ou pessoa encarregada de sua guarda, adotar uma das

seguintes decisões:

a) entregá-lo aos pais ou tutor ou pessoa encarregada de sua guarda,

sem condição alguma ou sob as condições que julgar úteis a saúde,

segurança e moralidade do menor;

b) entregá-lo a pessoa idônea, ou interná-la em hospital, asilo, instituto

de educação, oficina, escola de preservação ou de reforma;

c) ordenar as medidas convenientes aos que necessitem de

tratamento especial, por sofrerem de qualquer doença física ou mental;

d) decretar a suspensão ou a perda do pátrio poder ou a destituição da

tutela;

e) regular, de maneira diferente das estabelecidas nos dispositivos

deste artigo, a situação do menor, se houver para isso motivo grave e

for do interesse do menor”

“Art. 157 – O menor que for encontrado abandonado, nos termos deste

Código, ou que tenha cometido crime ou contravenção, deve ser

levado ao Juízo de Menores, para o que toda autoridade judicial,

policial ou administrativa deve, e qualquer pessoa pode, apreendê-lo

ou detê-lo”

Morelli (1996), analisando ainda o Código de 1927, apreende uma

questão que salta-nos à curiosidade, ao esclarecer que:

“(...) esta lei, como característica das leis brasileiras, não

regulamentava uma prática, mas instituía novas formas de atuação,

exigindo espaço físico adequado, profissionais especializados e

difundindo uma nova visão sobre a relação criança/crime. O curioso,

aqui, é o fato de que “o sistema judiciário, longe de ser um simples

cumpridor das definições do legislativo e do executivo, atua e interage

com outras áreas, produz conhecimento e esta presente na

sociedade.” (Morelli, 1996:106-107).

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Aqui, como na América Latina, diferente dos países do norte, os

Tribunais de Menores não foram plenamente instalados, conforme previam as

legislações específicas, sendo rotina o encaminhamento de crianças e

adolescentes para estabelecimentos penais de adultos

Entre as décadas 20-40, a questão da transdiciplinaridade, ganha

espaço e influência na ação de caráter mais pedagógico, tendo em conta o

conhecimento produzido pelas ciências humanas e sociais, em detrimento da

punição/repressão/confinamento, que permeava as ações de atendimento. Assim,

relata Sêda (1991):

“Os pediatras (que passaram a cumprir importante papel na política

pública brasileira a partir da ação do Departamento Nacional da

Criança), os educadores, os psicólogos, os cientistas políticos e

sociais, ao trabalharem com crianças e adolescentes, passaram cada

vez mais a educar o país a ver como eles são, o que sabem, o que

têm, o de que eles são capazes. Já o mundo jurídico continuou a vê-

los como ‘menores’ e, portanto neles identificando os incapazes, os

que não são, os que não sabem, os que não têm.” (Sêda, 1991:78).

É a partir de 1921, com a lei orçamentária de n. 4.242,

regulamentada pelo decreto 16.272 de 1923, que a assistência e proteção à

infância abandonada e aos delinqüentes passa a ser objeto de cuidados do

Estado brasileiro, através de instituições e patronatos. Essa atenção “(...) passou a

ser proposta como um serviço especializado, diferenciado, com objetivos

específicos. Isso significava a participação dos saberes como os do higienista, que

devia cuidar da sua saúde, nutrição e higiene; os do educador, que devia cuidar

de disciplinar, instruir, tornando o menor apto para se reintegrar à sociedade; e os

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do jurista, que devia conseguir que a lei garantisse essa proteção e essa

assistência” (Londoño, 1991:142).

No pós-guerra, inicia-se nos chamados países do norte, o processo de

implantação de programas de bem-estar-social, que vão compor o Estado de

Bem-Estar Social e as propostas implementadas no campo da política social,

buscam a justiça social, o atendimento ao direitos. São décadas de

reconhecimento de direitos. Assim, no plano internacional, é aprovada a

Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, estabelecendo a

necessidade de propiciar à criança proteção especial e em 1959, é promulgada a

Declaração Universal dos Direitos da Criança.

O decreto-lei 2848 de 1940, representou um outro marco na trajetória

da atenção à criança e ao adolescente no Brasil, pois foi fixada a idade de dezoito

anos como o momento da separação da menoridade da responsabilidade penal.

Também é com a Constituição de 1946, num dos períodos de relativa liberdade

política no país, mantém-se a proteção dos menores de idade, definindo a idade

mínima para o trabalho aos quatorze anos e ampliando para dezoito anos, a idade

de aptidão para o trabalho noturno.

No Brasil, só em meados da década de 60, as possibilidades de

alteração da concepção e trato da infância, advindas da implantação de políticas

sociais de caráter público-estatal, apontavam para o abandono dos desajustes de

caráter psicológico (individual), dando ênfase ao caráter sociológico (fatores

estruturais).

No entanto, em se tratando de crianças e adolescentes, Mendez

(1994) esclarece parte do motivo do processo de exclusão social:

“(...) sociedades baseadas historicamente em processos de exclusão,

existe a dicotomia das palavras crianças menores, niños menores,

bambine menore. ... culturas que não conhecem a exclusão como uma

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característica estrutural do conjunto social não existe o equivalente à

palavra menor. Em alemão criança é “kilder” e não existe uma

denominação para outras categorias, vinculadas a determinados

comportamentos de tipo patológico e de infração penal mas não se

caracterizando como uma categoria social de exclusão” (Mendez,

1994:17).

À crescente exclusão social, advinda do modelo de desenvolvimento

instalado no país, as constantes denúncias sobre a precariedade do atendimento

prestado pelo SAM e a aprovação pela ONU da Declaração Universal dos Direitos

da Criança (1959), trouxeram preocupações ao governo brasileiro. A Igreja que,

historicamente, foi quem se incumbiu do atendimento à crianças, foi procurada

para propor e encaminhar sugestões para o problema. Em 1956, a Ação Social

Arquidiocesana - ASA, do Rio de Janeiro, elaborou “um primeiro esboço de

anteprojeto de lei, que extinguiria o SAM e criaria um novo órgão para traçar a

política do menor”. (Flores da Cunha, FUNABEM, 1984:16). Em 1960, após a

aprovação da Declaração Universal dos Direitos da Criança, a ASA encaminha à

Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, ante-projeto de lei que, entre

outras disposições, criava o Conselho Nacional do Bem-Estar do Menor. A título

de ilustração, cito parte da exposição de motivos que justificaram tal ação:

“A nação e todas as forças vivas devem, na medida do possível,

procurar resolver tão magno problema. Mas, insistimos: não será com

os atuais processos antiquados e onerosos de internação em massa,

segregando o menor da família, que conseguiremos resultados

concretos. Amparando a família, assistimos o menor porque o

problema do menor é, sobretudo, um problema de família”. (Exposição

de motivos, in FUNABEM, 1984: 18).

Para elaboração do anteprojeto foram ouvidos técnicos, profissionais,

voluntários de vários pontos do país. Os juristas ligados a área da menoridade são

meros observadores deste processo. A tramitação do projeto, reflexo das

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profundas mudanças políticas que passava o país, deu-se de forma bastante

demorada e conturbada.

No governo João Goulart (1963), um jovem de 18 anos, cuja primeira

entrada no SAM ocorrera aos 11 anos, assassina no Rio de Janeiro, o filho do

jornalista Odylo Costa, e assim, o anteprojeto ganha como aliado, a imprensa

carioca. É nomeada, pelo presidente da República, uma Comissão com a

incumbência de recuperar e rever o ante-projeto proposto pela ASA. Dessa

comissão fizeram parte o presidente do SAM, o Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro,

assistente sociais, advogados e um profissional da área de pedagogia. Findo os

trabalhos da Comissão, uma, só, diferença foi apontada entre as proposições “(...)

da ASA, que estava na Câmara desde 1960, (...) indicava um Conselho Nacional

de Bem-Estar do Menor; e a Comissão preferiu a figura de Fundação.” (Flores da

Cunha in FUNABEM, 1984:24).

A proposta elaborada pela Comissão é de certa forma imposta ao

governo militar resultando na Lei 4.513 (1964) que, no lugar de resolver “a

dicotomia criada em 1940, criou a Política Nacional do Bem Estar do Menor”

(Sêda, 1991:9).

Passetti (1991) ao estudar a implementação da PNBEM, após a sua

apresentação em setembro de 1965, nove meses depois da criação da

FUNABEM, diz que “a lei invoca a participação das comunidades para que junto

ao governo participem da “tarefa urgente” de procurar encontrar soluções para o

problema do menor no Brasil.26” (Passetti, 1991: 151).

Pereira Jr, ao analisar a política instalada em 01 de dezembro de

1964, por essa lei, assinala que:

26 O principal responsável pela articulação de “nova” política foi o Dr. Mário Altenfelder de São Paulo, médico pediatra, juntamente com a comissão formada por Eduardo Barlett Gomes, D. Cândido Padim, Helena Iracy Junqueira (assistente social), Luiz Carlos Mancini, Maria Celeste Flores da Cunha, Odylo Costa Filho e Pedro José Meirelles Vieira.

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“(...) a visão do ‘menor’ como ameaça social cede lugar à da criança

carente e abandonada. As práticas assistencialistas passam a ter uma

prioridade maior que as práticas punitivas ... se reforça a visão de que

o estado de abandono e delinqüência seria decorrente da pobreza e

desestruturação das famílias dos ‘menores’, devendo ser estas o

principal alvo da ação.” (Pereira Jr., 1992:20).

Essa política não altera o paradigma da doutrina da situação

irregular. O que se questionava era o equivoco da medida de internação de

crianças e adolescentes das camadas populares, de modo massivo, propondo

como solução ao problema do menor, o trabalho com as famílias. Reafirmava-se

a contribuição dos magistrados à causa do menor por defenderem “os fracos, os

incapazes, os órfãos; defendem os que são presas fáceis da desonestidade, da

cobiça, da traição”. (Altenfelder in Funabem, 1984: 38).

O Estado autoritário, tratou de organizar e difundir a Política Nacional

de Bem-Estar do Menor - PNBEM, que tinha como objetivo o bem-estar dos

menores de idade que fossem marginalizados ou que estivessem em vias de

marginalização, reeducando-os. Conforme Marques (1976), o governo federal,

“(...) sentindo a gravidade do problema e a necessidade de se afirmar

diretrizes, até então inexistentes, pois tínhamos um bom Código de

Menores, mas não tínhamos, regra geral, os equipamentos previstos

naquele código, decidiu ... criar um organismo independente, em forma

de fundação, que viesse a implantar uma verdadeira política de

menores neste país e que desse aos Juizados de Menores aqueles

recursos mínimos indispensáveis a reintegração social do menor

abandonado e infrator”. (Marques, 1976: 68).

A contradição de novo se instala pois, se as crianças e adolescentes

não eram os culpados do seu próprio desajustamento, as famílias passam a ser

responsáveis pelo problema do menor. Então, “(...) a prática (...) termina

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consolidando a FUNABEM com a mesma lógica carcerária com a qual dizia querer

romper, ampliando o controle e centralizando o poder de tutela do Estado [e] a

execução de suas diretrizes ficava atrelada ao sistema construído em torno do

Juizado de Menores” (Pereira Jr., 1992:20).

A esse respeito Vicente (s/d), esclarece que,

“(...) no Brasil, aos mais pobres estruturou-se um processo de

espoliação mais sofisticado: retirar das famílias fragilizadas seus filhos

e transformá-los em órfãos de pais vivos. ... Estes pais passavam a ser

tratados e considerados como incapazes de criar e educar, por

omissão, negligência ou desamor. “ (Vicente, s/d: 11).

Esse sistema, composto de Centros de Observação e Triagem e

Unidades de Internação, serviu como modelo para todo o país e o seqüestro dos

conflitos sociais foi a prática desenvolvida pelo regime autoritário (Vicente, s/d). A

esse respeito são esclarecedores os comentários de Marques (1976), durante as

“III Jornadas Internacionais de Criminologia”, realizada em 1973, sobre a

instalação da FUNABEM:

“(...) uma nova fase no atendimento do Menor, através de critérios

técnicos, impregnados de amor, pois através dos equipamentos

existentes na Guanabara o Juizado de Menores passou a ter um

suporte real para suas decisões. Desapareceram as expressões:

‘Interne-se, mas onde?’, ‘interne-se em estabelecimento adequado e,

onde se encontra esse estabelecimento?’ ‘interne-se sob liberdade

vigiada e a fiscalização?’, etc.” (Marques, 1976:69).

Nas normas para aplicação da Política Nacional de Bem-Estar do

Menor, de junho de 1966, como último item constava as ações de prevenção,

dirigidas à menores, moradores das áreas urbanas, objetivando a “(...)ocupação

mais completa possível das horas livres.” Nessas ações a participação da

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comunidade constava como requisito de implantação do programa (FUNABEM,

1984:65).

A FUNABEM, em 1968, lança o programa Plano Experimental, em

convênio com o Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF para

implantação de centros de treinamento e iniciação profissional, incentivando a

formação de associações e cooperativas. Esse Programa atravessou a década de

70 e deu origem a elaboração de um grandioso projeto preventivo implantado em

todo o território nacional, desfazendo desta forma o princípio fundante dos

programas de base comunitária, o respeito às especificidades locais. Esse

programa, de elaboração centralizada, ficou conhecido pela sigla PLIMEC - Plano

Integrado do Menor e Comunidade.

Segundo Passetti (1991), “(...) a nova proposta de atendimento ao

menor está ancorada na idéia de que a FUNABEM, e suas correlatas nos demais

estados brasileiros, não serão instituídas dentro de fundamentos paliativos, mas

no de ser uma instituição diferente, onde o importante não será a internação” ,

trechos da proposta oficial esclarecem a atenção proposta:

“(...)vai proteger a criança na família: vai estimular obras que ajudem

neste mister; vai ser auxiliar dos juizes de menores; vai cuidar da

formação de pessoal especializado para o trato com menores; vai dar

assistência técnica especializada aos Estados, Municípios e entidades

públicas ou privadas que solicitarem; vai, enfim, atualizar os métodos

de educação e reeducação de menores infratores ou portadores de

graves problemas de conduta. E, mais que tudo, vai adotar meios

tendentes a prevenir ou corrigir as causas do desajustamento27

“(Passetti, 1991:151).

27

?Este trecho consta da apresentação da Lei dos Estatutos da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, 30/09/1965, Altenfelder, Mário (1977). Bem-Estar e Promoção Social, São Paulo, Secretaria da Promoção Social.

60

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Observando o arcabouço técnico-legal de criação da FUNABEM,

continua Passetti (1991) “(...) o chamado problema do menor foi inserido nos

aspectos psicossociais da política de segurança. O menor foi pensado como um

dos objetivos nacionais permanentes, isto é, aqueles que se realizam em ‘longo

processo histórico através da definição dos elementos fundamentais da

nacionalidade como a terra, o homem e as instituições28, (...) a FUNABEM teria

por função exercer a vigilância sobre os menores, principalmente a partir de sua

condição, de carenciado, isto é, próximo a uma situação de marginalização social.”

(Passetti, 1991:151).

A instalação da FUNABEM acabou forjando quadros técnicos

expressivos, especializados na área da infância e adolescência que, anos mais

tarde, colaboraram na elaboração de subsídios aos ante-projetos e no desenho

das políticas sociais, interferindo na processo de mobilização social.

Ainda, em meados da década de 70, esse sistema de atendimento

volta a ser amplamente questionado. De um lado, “(...) o acirramento das

desigualdades transforma as ruas em espaços de sobrevivência. Para o senso

comum fixa-se a relação causal entre pobreza e violência” e, por outro, a violência

institucional e as falhas próprias desse tipo de sistema começaram a se desvelar

diante de um amplo e contínuo quadro de denúncias (Pereira Jr., 1992:21). Nesse

período, surgem os primeiros projetos alternativos de enfrentamento aos oficiais,

pela ação das comunidades.

O Diagnóstico da Situação elaborado pela Comissão Parlamentar de

Inquérito destinada a investigar O Problema da Criança e do Menor Carente no

Brasil, a CPI do Menor Abandonado, instalada em 29 de abril de 1975, apontava

as “(...) as excepcionais dimensões e periculosidade imanentes da realidade do

menor desamparado, num país predominantemente jovem, em cuja população

global de 110 milhões de habitantes compreende-se o impressionante segmento

28Altenfelder, Mário (1973), O menor e a Segurança Nacional, in Segurança e Desenvolvimento, ADESG, Rio de Janeiro, nº 5.

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de 52,6% desse total na faixa etária de 0 a 19 anos” (Câmara dos Deputados,

1976: 17).

O relatório produzido pela Comissão aponta como causas da

marginalização do menor:

“(...) profundas transformações sociais que atingem a sociedade,

refletindo-se principalmente na família. ... A causa mais próxima a

condicionar a marginalização é, sem dúvida alguma, a desagregação

da família, em decorrência da pobreza e da rápida mudança de

valores. Há crianças abandonadas por morte ou incapacidade dos

pais; por rejeição ou deserção do lar; por indigência, quando exercem

atividades aleatórias para o sustento próprio ou da família, e crianças

que vivem ao lado da família bem constituída, mas são vítimas da

situação de carências que cerca os adultos. De qualquer forma, elas

sempre estão ausentes dos bancos escolares, expostas nas ruas como

um atestado de nosso subdesenvolvimento.” (Câmara dos Deputados,

1976: 31).

O Diagnóstico da Situação produzido pela Comissão indicou grande

volume de investimentos da área federal na implantação de estruturas e

treinamento de pessoal, bem como quinze Unidades da Federação organizadas

em conformidade com a PNBEM tendo avaliado assim, o desempenho desse

modelo de atendimento na solução do problema, como abaixo indicado:

“A Fundação Nacional do Bem Estar do Menor – FUNABEM,

incumbida da assistência ao menor no âmbito federal, não possui

condições para solucionar o problema, cada vez mais agravado pelo

crescimento demográfico. Suas atividades restringem-se basicamente

ao Centro-Piloto, no Rio de Janeiro. As Fundações Estaduais não

dispõem de recursos suficientes para enfrentar a magnitude do

problema. Idêntica é a situação dos municípios. Era necessário agora

atualizar o Código Mello Matos ...” (Câmara dos Deputados, 1976: 49)

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O Relatório apontou ainda para a necessidade de “uma ação mais

eficaz, ditada pela Presidência da República (...) centralizando um sistema de

atendimento”; de reformas legislativas parciais que atualizassem o Código de

Menores, para facilitar a implantação da PNBEM. Porém, no que diz respeito à

Justiça de Menores, o Relatório explicitou: “(...) em se tratando de Menores,

sempre quis o nosso direito positivo que sua atuação não dependesse, sempre, de

provocação, o que, na opinião dos mestres, merece ser mantido.” (Câmara dos

Deputados, 1976: 50-51). Era imprescindível a manutenção dos poder absoluto do

magistrado para a solução do problema do menor.

Alguns depoimentos prestados junto à Comissão Relatora da

Câmara dos Deputados são ilustrativos do debate sobre o problema do menor ao

indicarem contradições, confrontos políticos e ideológicos que, mais tarde, ficam

claros na trajetória de luta do movimento social de defesa dos direitos da criança e

do adolescente. Ou seja, a centralização na definição das políticas públicas, a

tradição na execução da política de atendimento pelo Poder Judiciário, o concurso

dos saberes na prática do atendimento propiciado pelo desenvolvimento das

ciências humanas e sociais, o papel das normativas e recomendações

internacionais para o debate sobre a inscrição necessidades-direitos de crianças e

adolescentes.

Vejamos, alguns exemplos trazidos pelo documento final produzido

pela CPI (1976)29:

“O Código de Menores deve ser atualizado. Não pode mais ser apenas

jurídico. Há uma parte social, assistencial, que deve ser levada em

consideração. O juiz deve ser apenas judicante, sendo a terapia

aplicada pelos técnicos e pelo pessoal administrativo.” (Secretário de

Promoção e Bem-Estar-Social do Estado de São Paulo, 1976). 29 Pela ordem, os depoentes são: Mário Altenfelder Silva; Altair Costa e Souza; Osvaldo Sangiorgi; Maurício Sirotski Sobrinho; Ioni Pacheco Sirotski; João Guilherme de Pontes; Irna Marília Kaden; João Jorge Saad; Divaldo Pereira Franco; Fábio de Araújo Mota; Mary D’Aché Assumpção Harmon; Júlio de Mesquita Neto.

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“A melhor solução para o menor de 0 a 6 anos é a adoção ou a

colocação familiar. (...) De 6 a 14 anos, será feita a profissionalização

nas empresas locais, concomitantemente com a educação regular nas

escolas” (Juiz de Menores de Curitiba, 1976).

“A UNESCO declarou que o cidadão atual precisa de, no mínimo, 12

anos de escolarização para, modestamente, habilitar-se a sobreviver.

Diante disso, a Constituição brasileira ficou obsoleta quanto ao limite

de idade do trabalho do menor” (Professor da Universidade Mackenzie

e da Universidade de São Paulo, 1976).

“A prevenção e solução da marginalização do menor só será possível

se houver participação comunitária nos projetos elaborados pelo

Governo” (Diretor-Presidente da Rede Sul Brasileira de Comunicações

– RS, 1976).

“A comunidade participa como voluntária e colabora financeiramente.

Colabora quando solicitada, e o dinheiro arrecadado é empregado

depois de cuidadosa programação” (Presidente do Movimento Gaúcho

do Menor – RS, 1976).

“O planejamento familiar é a solução indicada para reduzir-se a

proliferação da população de baixa renda” (Presidente da Febem/PE,

1976).

“A criança deve freqüentar, mesmo interna, a escola da comunidade

para ter contato com outras crianças e com o mundo que a cerca”

(Presidente da Febem/RJ, 1976).

“As ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo estão repletas de menores

abandonados. Vão-se tornando a fonte que povoará mais tarde as

penitenciárias, de onde não retornam” (Diretor-Presidente da Rádio e

TV Bandeirantes – SP, 1976).

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“A experiência mundial tem demonstrado que não se dever retirar a

criança do lar. Em se tratando de crianças de lares carentes,

procuramos, através de uma técnica de valorização humana, através

da assistência escolar, aproximarmo-nos da família, ajudando o seu

chefe a encontrar uma atividade melhor remunerada” (Presidente da

Entidade Filantrópica Mansão do Caminho, Salvador, BA, 1976).

“A utilização do tempo livre das famílias carentes deveria ser feita (...)

através de planejamento governamental (...) a instituição do estágio

ocupacional para o menor carenciado, sem vínculo empregatício,

permitirá a capacitação da mão-de-obra de inúmeros jovens. (Diretor

do Serviço Social da Indústria de Minas Gerais, 1976).

“Precisamos propiciar uma profissão, um ‘miniemprego’ ao menor, para

que ele possa prosseguir seus estudos, como engraxate, pintor,

jornaleiro etc.” (Vice-Presidente da Cruz Vermelha brasileira do Rio de

Janeiro, 1976).

“A legislação sobre o menor envelheceu e precisa ser reformulada. No

plano jurídico, impõe-se uma corajosa revisão da situação atual, que

outorga excessivos poderes ao juiz de menores, com a consideração

de que a Magistratura não tem condições de resolver problemas que

extravasam a área estritamente jurídica. O amparo ao menor e a sua

família compete a órgãos que, dentro da comunidade, estejam mais

habilitados” (Diretor do Jornal o Estado de São Paulo, Câmara dos

Deputados, 1976: 208-248).

Assim, o Código de Menores, sancionado em 10 de outubro de 1979,

pela Lei 6679, foi a resposta no plano jurídico sobre o problema do menor.

“(...) el discurso de alarma social, en el que se hipertrofia el peligro de

la delincuencia y, dentro de ésta, la minoril por sí misma, pero

principalmente como necesidad de prevención de la delincuencia

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adulta, esto es, el planteo de defensa social, a través de la ‘protección’

de la infancia.” (Larrandart, 1991:21).

Com a aprovação do Código de Menores, a criança e o adolescente

“(...) privado de condições essenciais a sua subsistência, saúde e instrução

obrigatória, ainda que eventualmente” (Código de Menores) eram considerados

menores em situação irregular.

Com o rótulo de menores em situação irregular, passaram a figurar

no cenário nacional crianças e adolescentes das camadas populares,

considerados autores de ato infracional; vítimas de maus-tratos; crianças e

adolescentes cujos pais ou responsáveis não possuíam rendimento suficiente para

lhes proporcionar uma vida digna. O Código trata, então, de uma parcela da

população, menor de 18 anos de idade, cuja condição sócio-econômica os coloca

em situação de patologia jurídico-social.

Com o Código de 1979, o Juiz de Menores teve suas funções

ampliadas e seu poder de tutela lhe permitia legislar, através de Portarias, sobre

assuntos de ordem geral, que diziam respeito à criança. O Magistrado recebia de

qualquer pessoa do povo e das autoridades administrativas (polícia e comissários

de menores) o menor que se encontrava em situação irregular, determinando o

tratamento que lhe achasse adequado, buscando os fatos, denunciando,

defendendo, sentenciando e fiscalizando as decisões, além de que lhe era

permitida a aplicação de medidas sem a apuração dos fatos, sem a verificação de

provas referidas à prática de ato infracional (Sêda, 1991).

Esta condição de tutela do Juiz de Menores, está amparada nos

princípios e diretrizes da política de segurança nacional, ditada pelo regime da

época, onde o controle social da pessoa era de fundamental importância para a

consecução dos propósitos políticos do governo militar.

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A lei para menores vigente, no Brasil, na década de 80 (Código de

1979), não tratou de direitos, mas de medidas de proteção. Os argumentos de

Marquez (1976) são esclarecedores quanto a análise da justificativa de tal

propositura:

“(...) o trabalho foi inspirado numa filosofia humanista, tendo sempre

em mente as necessidades básicas do menor, ou seja: amor,

compreensão, educação, profissionalização, segurança social e

recreação. (...) É claro que estes novos caminhos estão ligados a uma

melhoria da estrutura social, econômica e política. Somente com

melhor renda, mais educação, saúde, pleno emprego, salários

condignos, participação política, enfim desenvolvimento, poderemos,

efetivamente, diminuir a conduta anti-social, a carência e a

marginalização. Mas essa é uma luta de gerações e, enquanto não

atingimos o pleno desenvolvimento, temos que adaptar a nossa

estrutura jurídica a uma melhor e mais efetiva assistência, proteção e

vigilância ao menor.” (Marquez, 1976:120).

O Código de Menores de 1979, conforme afirma Mendez (1991), foi

uma produção tecnicamente pura, realizada por um grupo de juristas, que

formularam “(...) com algum ar de modernidade os velhos modelos do direito

assistencial-autoritário” (Mendez, 1991:38). O Código de Menores de 1979, foi a

mais acabada obra brasileira da doutrina da situação irregular e regulamentou a

vida de criança e adolescente durante toda a década de 80.

A Doutrina da Situação Irregular presente no Código de Menores e

na PNBEM resumidamente expressa que “(...) menor é, portanto, a forma jurídico-

social do controle estatal sobre as crianças e jovens do proletariado que estão

condenados ao estigma pela sua condição de possível infrator, identificado como

delinqüente pelo saber das instituições austeras.” (Passetti, 1991:172).

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Legislação Brasileira - Evolução

Normas/Decretos/Leis Ano Assunto

Lei 4242 (regulamentada pelo Decreto n 16272 de 1923 1921 Autorizava a organização de serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinqüente

Decreto Lei 17943-A 1927 Estabeleceu o Código de Menores

Decreto Lei 2024 1940 Fixou as bases da organização de serviços de proteção à maternidade, à infância e à adolescência em todo país

Decreto Lei 2848 1940 Fixou a idade de 18 anos para imputabilidade penal

Decreto Lei 3779 1941 Instituiu os Centros de Observação para diagnósticos especiais de menores

Decreto Lei 6026 1943 Revisou o Código de 1927, intituindo a categoria do ‘infrator’

Lei 4513 1964 Estabeleceu a Política Nacional de Bem Estar do Menor

Lei 6697 1979 Estabeleceu o novo Código de Menores

Lei 8069 1990 Estabeleceu o Estatuto da Criança e do Adolescente”

Elaboração: Rosemary Ferreira de Souza Pereira

As leis brasileiras sobre a infância: uma comparação

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Código de Menores - 1927 – Direito Penal Código de Menores – 1979 - Situação Irregular Estatuto da Criança e do Adolescente – 1990 - Proteção Integral

Menores abandonados e delinqüentes

Menores em situação irregular conjunto da população de crianças e adolescentes: universal

proteção e vigilância Proteção e vigilância proteção integral

abandonados e delinqüentes Carentes e abandonados todas as crianças e adolescentes

controle social controle social da pobreza desenvolvimento social

objeto de medidas alvo de medidas sujeito de direitos: cidadania

natureza jurídica e de segurança pública natureza jurídica natureza jurídico-social

Estatizante centralizador e estatizante descentralizador e participativo

elaborado por um jurista* elaborado por juristas proposto pela sociedade civil, incorporado por setores governamentais e parte do sistema de justiça

estigmatiza e segrega estigmatiza e segrega integra

*o Governo encarrega o 1o. Juiz de Menores do Brasil a providencia e consolidação das leis de Assistência e Proteção a MenoresElaboração: Rosemary Ferreira de Souza Pereira Fonte: Código de Menores de 1927, Código de Menores de 1979, Estatuto da Criança e do Adolescente

Comparativo entre os Códigos de Menores (1927 e 1979) e o Estatuto da Criança e do Adolescente

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Aspecto Considerado

Código de menores (Decreto n 17943, de 12/10/27)

Código de Menores (Lei n 6697/79) e Lei 4513/64

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n 8069/90)

Base doutrinaria Intervencionista. Introduz o Estado- Juiz. Dirigia-se aos menores abandonados e delinqüentes

Direito Tutelar do menor. Os menores eram objeto de medidas judiciais quando se encontravam em situação irregular, assim definida legalmente

Proteção Integral. A lei assegura direitos de todas as crianças e adolescentes sem discriminação de qualquer tipo

Concepção política-social implícita

Instrumento de proteção e vigilância da infância e adolescência, vítima da omissão e transgressão da família, em seus direitos básicos

Instrumento de controle social da infância e da adolescência vítima da omissão e transgressão da família, da sociedade e do Estado em seus direitos básicos

Instrumento de desenvolvimento social, voltado para o conjunto da população infanto-juvenil do país, garantindo proteção especial àquele segmento considerado de risco social e pessoal

Visão da criança e do adolescente

Menor abandonado ou delinqüente, objeto de vigilância da autoridade pública (juiz)

Menor em situação irregular, objeto de medidas judiciais

Sujeito de direitos e pessoa em condição peculiar de desenvolvimento

Posição do magistrado

Tinha poderes absolutos no que concerne à proteção e assistência ao menor abandonado e delinqüente. A internação era a prática corrente

Não exigia fundamentação das decisões relativas a apreensão e confinamento de menores. De caráter subjetivo

Garante à criança e ao adolescente o direito de ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes. Limita os poderes do juizado

Em relação à apreensão

A autoridade judicial, policial ou administrativa devia, e qualquer pessoa podia apreender ou deter o menor abandonado ou delinqüente

Anti-juridico. Preconizava (art.. 99) a prisão cautelar, inexistente para adultos

Restringe à apreensão apenas a dois casos: a) flagrante delito de infração penal; b) ordem expressa e fundamentada do juiz

Objetivo Dispunha sobre a assistência e proteção a menores de 18 anos abandonados ou delinqüentes

Dispunha sobre a assistência a menores entre zero e dezoito anos, que se encontravam em situação irregular, e entre 18 e 21 anos, nos casos previstos em lei

Garantia dos direitos pessoais e sociais, através da criação de oportunidades e facilidades com vistas ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condição de liberdade e dignidade

Aspecto Considerado Código de menores (Decreto n 17943, de Código de Menores (Lei n 6697/79)

e Lei 4513/64Estatuto da Criança e do Adolescente

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12/10/27) (Lei n 8069/90)

Princípios da política de atendimento

Comando do Poder Judiciário e execução através de instituições de caridade e de ações da segurança pública

Através da política de assistência social, implementada com forte caráter assistencialista, compensatório e centralizado. Sem articulação com as demais políticas sociais

Ações de atenção se dão nos municípios, e são por eles controladas. A formulação da política conta com a participação da sociedade organizada em nível municipal, estadual e federal

Direito de defesa Previa a atuação do Promotor Público, no caso de menores abandonados quando o juiz julgasse oportuno. Previa a participação de advogado

Considerava que o menor acusado de ato infracional contasse com a defesa do curador de menores (promotor público)

Garante ao adolescente, a quem se atribua autoria de ato infracional, defesa técnica por profissional habilitado (advogado)

Mecanismos de participação

Institui o Conselho de Assistência e Proteção ao Menores, como associação de utilidade pública, com personalidade jurídica. As funções dos Conselheiros, nomeados pelo Governo, eram auxiliar o Juízo de Menores, sendo os Conselheiros denominados “Delegados da Assistência e Proteção aos Menores

Não abria espaço à participação de outros atores, limitando os poderes da autoridade policial judiciária e administrativa

Institui instâncias colegiadas de participação (Conselhos de Direitos, paritários, Estado e Sociedade Civil), nas três instâncias da administração, e cria no nível municipal os Conselhos Tutelares, formado por membros escolhidos pela sociedade local e encarregados de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes

Vulnerabilidade sócio-econômica

Menores abandonados e delinqüentes eram de responsabilidade do Juiz de Menores

Menores carentes, abandonados e infratores deviam passar todos pelo Juiz de Menores

Crianças e adolescente em situação de risco pessoal e social são atendidos pelo Conselho Tutelar

Infração Todos os casos de delinqüência passavam pelo Juiz Todos os casos de infração penal passavam pelo Juiz

Os casos de infração penal que não impliquem grave ameaça ou violência à pessoa podem ser beneficiados pelo instituto da Remissão (perdão)

Internamento Medida aplicável a menores de 18 anos, sendo lícito a não aplicação da suspensão do pátrio poder caso o pai ou a mãe comprometesse internar seu filho(a) ou filhos, em estabelecimento educacional

Medida aplicável a menores de 18 anos que se encontravam em situação de pobreza (manifesta incapacidade dos pais para mantê-los), sem determinação de tempo

Medida aplicável a adolescentes autores de ato infracional grave, obedecidos os princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito a sua condição peculiar de desenvolvimento

Caráter social Toda sua fundamentação era calcada no conceito de “desestruturação familiar”, sendo esta motivo para cassação do pátrio poder e para internação

Toda sua fundamentação era calcada no paradigma da “situação irregular”, sendo esta motivo de cassação do pátrio poder e de imposição de medida de internação

A falta ou insuficiência de recursos, e a desorganização familiar, deixam de ser motivo para perda ou suspensão do pátrio poder, na medida em que desjurisdiciona os casos exclusivamente sociais

Aspecto Estatuto da Criança e do Adolescente

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considerado Código de Menores (Decreto n 17943, de 12/10/27)

Código de Menores (Lei n 6697/79) e Lei 4513/64

(Lei n 8069/90)

Crimes e infrações cometidos contra crianças e adolescentes

Punia o abuso do pátrio poder e dos crimes cometidos com o menor pelos seus responsáveis

Foi omisso a este respeito Pune o abuso do pátrio poder, das autoridades e dos responsáveis pelas crianças e adolescentes

Fiscalização do cumprimento da lei

Era de competência do Juiz, auxiliado pelo Conselho de Assistência e Proteção aos Menores

Era de competência exclusiva do Juiz e de seu corpo de auxiliares

Cria instâncias de fiscalização na comunidade, podendo estas utilizarem os mecanismos de defesa e proteção dos interesses difusos e coletivos para casos de omissão e transgressões por parte das autoridades públicas

Internação provisória

Uma rotina Medida rotineira Para os casos que envolvam crimes cometidos com grave ameaça ou violência à pessoa

Política Nacional Estrutura vinculada ao Juízo de Menores (Abrigo Provisório, Escolas para Internação e entidades filantrópicas).

Estrutura vinculada ao poder executivo. A Fundação do Bem Estar do Menor - FUNABEM e as Fundações Estaduais - FEBEM(s) – constituindo em retaguarda do Juiz de Menores

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e órgão vinculado ao Executivo Federal. No nível central não há mais execução de ações. Há a descentralização das ações.

Funcionamento da política

Organizava a estrutura do Distrito Federal, e não estabelecia a forma de organização nos Estados. Neste sentido garantia o respeito as realidades regionais

Estrutura centralizada, com modelo definido e subsidiado (FEBEM) nacionalmente pela Fundação Nacional de Bem Estar do Menor – FUNABEM

À instância federal cabe a função de traçar normas gerais e coordenar a política no âmbito nacional.

Estrutura Justiça de Menores, Segurança Pública e filantropia FUNABEM, FEBEM(s), Justiça de Menores, Segurança Pública, programas municipais e comunitários

Conselhos paritários, Fundos financeiros nas três esferas da administração pública, Conselhos Tutelares (nível municipal), Justiça da Infância e Juventude

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Aspecto considerado

Código de Menores (Decreto n 17943, de 12/10/27)

Código de Menores (Lei n 6697/79) e Lei 4513/64

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n 8069/90)

Elaboração Elaborado pelo primeiro Juiz de Menores (1924), José Cândido Albuquerque de Mello Mattos

Elaborado por um seleto grupo de juristas, por solicitação do Governo

Elaborado pelo MSDCA, articulado pelo Fórum Nacional DCA, contando com a participação de setores Governamentais e parte do sistema de justiça

Elaboração: Rosemary Ferreira de Souza Pereira, fonte: Código de Menores de 1927, Quadro sinóptico comparativo entre as Leis 6697/79 e 4513/64 (Código de Menores e Política Nacional de Bem-Estar do Menor) e o projeto ECA-Projeto de Lei 1506 (Câmara Federal/Dep. Nelson Aguiar) e 193/89 (Senado Federal/Sen. Ronan Tito), elaborado por Antônio Carlos Gomes da Costa e reproduzido pelo Fórum Nacional DCA.

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CAPÍTULO III

DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

“Extinguindo a concepção de que a falência das

políticas públicas transformava crianças e

adolescentes em ‘menores em situação irregular, o

novo Direito introduz o conceito (inexistente no Direito

anterior) de que crianças e adolescentes são sempre

sujeitos de direitos30 e portanto a falência das políticas

públicas coloca seus responsáveis (e não a população

infanto-juvenil) em situação irregular.” (Sêda, 1991:12).

Em se tratando da infância o debate teórico da questão de crianças e

adolescentes enquanto sujeito de direitos-cidadania ganha dimensão conflituosa

nos mais variados ramos do conhecimento, principalmente no campo das ciências

sociais e políticas, dado o seu interesse particular em temáticas dessa natureza.

Observando a trajetória do MSDCA e a construção da política de

direitos no sentido da evolução da doutrina da situação irregular para a doutrina da

proteção integral, no período aqui estudado (1975-1990), a perspectiva de sujeitos

de direitos para a criança e o adolescente implicou no entendimento de que o

exercício da cidadania devia se dar desde a tenra idade. Assim, as políticas

públicas voltadas a este segmento deviam oportunizar esse exercício, ou seja, o

reconhecimento dos direitos fundamentais como inerentes à pessoa, no sentido do

desenvolvimento da capacidade de expressão das crianças e adolescentes nos

diversos espaços da vida cotidiana.

30 “Toda pessoa é sujeito de Direito quando na sua conduta gera expectativa de obrigatoriedade. Ou seja, quando cria uma dupla expectativa, tendo de um lado obrigações a cumprir e de outro a faculdade de exigir o cumprimento dessas obrigações...” Sêda, Edson, O Estatuto da Criança e do Adolescente e a participação popular-Conselho de Direitos e Conselho Tutelar, São Paulo, CBIA/SITRAEMFA, Forja Ed., 1991, pág.6.

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No campo do Direito e das Ciências Sociais, o debate da concepção

de infância enquanto sujeito de direitos, ganha relevância, principalmente, na era

moderna e nas sociedades ocidentais, dada a “mudança de status da infância” na

relação familia-sociedade-Estado31.

Benevides (1994) ao tratar da questão da cidadania esclarece que

“(...) as conquistas da Revolução Americana e da Revolução Francesa mudaram o

mundo ocidental, com uma nova visão dos direitos do indivíduo e do cidadão"

(Benevides, 1994:mimeo).

Na elaboração do novo marco legal sobre criança e adolescente

brasileiros, a questão paradigma das necessidades e paradigma dos direitos32

ganhou destaque, no plano das idéias, por invocar a esse segmento:

“(...) uma condição positiva de cidadania, uma vez que a temática das

necessidades tem merecido pouca reflexão entre as ciências, e

equivocadamente tem sido associado à Assistência Social (onde

historicamente o movimento social da infância se abriga), no sentido de

‘carência de’ ou ‘falta de’ algo ou alguma coisa.” (Guará, 1994: 25-29).

A autora acima, à luz das contribuições marxianas33 sobre as

categorias necessidades naturais e necessidades socialmente determinadas

(Agnes Heller), mostra que as necessidades naturais aceitas historicamente como

necessárias para o desenvolvimento da criança vai cedendo lugar às

influências/necessidades indicadas pelo movimento de modernização da

sociedade, pelas novas influências pedagógicas, pelo advento da psicanálise, na

focalização na formação de crianças-cidadãs (Guará, 1994:30-38).

31 A este respeito observar as contribuições de Dos Santos, Benedito Rodrigues, no estudo A Emergência da Concepção Moderna de Infância e Adolescência - Mapeamento, Documentação e Reflexão sobre as Principais Teorias, dissertação de mestrado, PUC/SP, 1996.32 Sobre as categorias necessidades naturais e necessidades socialmente determinadas é importante destacar as contribuições de Agnes Heller, principalmente em Teses de las Necessidades em Marx, 1986.33 Interessante ver a esse respeito as contribuições de Guará, Isa Maria Ferreira da Rosa, na dissertação de mestrado Crianças e Adolescentes: Necessidades e Direitos, PUC/SP, 1994.

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Historicamente, o conceito de cidadania tem assumido diferentes

formas em função dos contextos culturais específicos. Assim, a idéia de cidadania

enquanto “direito a ter direitos” (H. Arendt) tem se prestado à diversas

interpretações.

Na compreensão da condição de cidadania de crianças retomamos

as contribuições de Benevides (1994) ao afirmar que para

"(...) discutir a consciência da cidadania é necessário partir do

conhecimento da distância que separa, por um lado, leis e princípios

fundantes de liberdades e direitos e, por outro lado, a própria

consciência de tais direitos, além da existência (ou não) dos

mecanismos institucionais e dos recursos para garantir a sua prática,

ou a sua função" (Benevides, 1994:mimeo).

A referida autora, lembra ainda que tanto “(...) a idéia de cidadania,

assim como de direitos, estão sempre em processo de construção e de mudança,

[e que] (...) não podemos congelar, num determinado período ou numa

determinada sociedade, uma lista fechada de direitos específicos", dado que os

direitos são historicamente determinados. Citando H. Arendt, assinala que "(...) o

que permanece inarredável, como pressuposto básico, como direito essencial, é

‘o direito a ter direitos’". (Benevides, 1994: mimeo).

Desse modo, a cidadania não pode ser encarada apenas no campo

do legal e/ou teórico como algo abstrato, de fora, mas uma cidadania constituída

por um conjunto de direitos legítimos e não naturais. A percepção de sua

ausência e a luta pela sua presença é o que move o MSDCA, visando a

efetividade desses direitos no cotidiano dos pequenos e a própria politização

desse cotidiano.

O MSDCA ao eleger a cidadania como categoria estratégica

(Barbetta, 1993) por possibilitar à criança e ao adolescente o status de cidadão,

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obriga-nos necessariamente a recorrer a uma conceituação mais precisa do

termo dada a existência de um leque de interpretações.

Retomando o conceito, cidadão significa o habitante das cidades, e

está ligado à organização social que tem como eixo a produção industrial que

determina a vida de todos os que habitam o Estado-Nação. Ser cidadão significa

pois, ser sujeito de direitos e deveres, portanto a pessoa capacitada a participar

dos destinos econômico, social, político, cultural da sociedade (Manzini-Covre

1986:73- 83).

Benevides (1994), nas suas contribuições sobre as concepções de

cidadania, democracia e participação coloca que, no esplendor da polis grega e

das cidades-estado romanas,

"(...) eram cidadãos apenas os homens que participavam da vida

pública na cidade, eram os únicos detentores dos direitos políticos.

Trata-se de uma fase exclusivamente política da cidadania, na qual era

negligenciada a liberdade individual na vida privada. Estavam

excluídos da cidadania as mulheres, os estrangeiros, os comerciantes,

os artesãos e, evidentemente, os escravos. Para Aristóteles as crianças não eram cidadãos, pois ‘são cidadãos em perspectiva’, portanto afastados da cidadania (grifo nosso). Na Idade Moderna, a

cidadania pode ser entendida como uma reação individualista, a partir

da Revolução Inglesa (séc. 17 em diante) e das revoluções burguesas

do séc. 18. As conquistas da Revolução Americana e da Revolução

Francesa mudaram o mundo ocidental, com uma nova visão dos

direitos do indivíduo e do cidadão." (Benevides, 1994:mimeo).

Marshall (1967), ao definir os elementos constitutivos da cidadania

inglesa nos séculos XIX e XX, subdivide-a como civil, política e social. Enquanto

direito civil, entende-se a liberdade individual de que todos são iguais perante a lei

- o direito de ir e vir, de pensamento, de propriedade, de defesa, de justiça, de

estabelecer relação contratual. Portanto, os tribunais são os espaços privilegiados

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para a garantia dos direitos. Os direitos políticos tratam da possibilidade de acesso

e de participação no poder político, concretizado no direito de escolher e ser

escolhido e no direito à associação. Já, os direitos sociais, são os mecanismos

capazes e necessários de correção das desigualdades. Eles dizem respeito ao

direito do indivíduo de ter um mínimo necessário, cabendo à responsabilidade das

instituições a consecução dos serviços sociais e do sistema (Marshall, 1967:62-

63).

O autor postula ainda que há uma espécie de igualdade humana

básica associada com o conceito de participação integral na comunidade - da

cidadania - o qual não é inconsistente com as desigualdades que diferenciam os

vários níveis econômicos da sociedade. Portanto, a desigualdade do sistema de

classes sociais pode ser aceitável desde que a igualdade de cidadania seja

reconhecida.

Listz Vieira (1995), ressalta também o surgimento, na metade deste

século, dos direitos de terceira geração34, ou seja, aqueles que tem como titular

não o indivíduo, mas grupos como o povo, a nação, as coletividades étnicas ou a

própria humanidade. Estes direitos tratam dos interesses juridicamente difusos e o

direito da criança e do adolescente aí se abriga.

Benevides (1994), ao estudar a relação entre cidadania e democracia

toma-a como processo, formulando que:

"Os cidadãos numa democracia não são apenas titulares de direitos já

estabelecidos - mas existe, em aberto, a possibilidade de expansão, de

criação de novos direitos, de novos espaços, de novos

mecanismos"(Benevides, 1994, mimeo).

Na busca da ampliação do conceito de cidadania, na conquista dos

direitos auto-evidentes, o MSDCA luta por uma sociedade democrática em relação

à infância. O MSDCA tem colocado, obrigatoriamente, o Estado como um dos 34 A esse respeito observar as contribuições trazidas por Norberto Bobbio, principalmente em A Era dos Direitos (1982).

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pólos de interlocução, o que tem levado a exigência de sua participação nas

decisões da vida de crianças e adolescentes.

Tendo a cidadania como uma categoria estratégica no trato à

infância e juventude brasileiras Barbetta (1993) mostra que, a despeito de fatores

conjunturais, houve um avanço substancial nas conquistas desse movimento em

termos dos direitos para a infância. Estas conquistas foram possíveis pela

combinação de ações de enfrentamento com o Estado - denúncia-atendimento-

proposição – sobre a violação dos direitos humanos, a incipiente oferta de

programas e serviços sociais e a recorrente exclusão social das camadas

empobrecidas da população.

A cidadania de crianças e adolescentes deve ser pensada no

conjunto das contradições sócio-econômico-políticas ao longo da história, dado o

traço conservador da sociedade no trato a este segmento, com reflexo numa

oferta de bens e serviços sociais descolada da idéia de direitos. Como a condição

sócio-econômico-cultural tem sido definidora da condição de incluído e/ou excluído

na sociedade brasileira, “(...) a condição de menoridade é a contra-face da

cidadania. E a não-cidadania é que define a condição de ser cidadão e impulsiona

para a sua conquista" (Barbetta, 1993:235-238).

Numa sociedade desigual há, de um lado, a condição de criança e

adolescente desprotegidos - ausentes da condição de cidadania - e, de outro, a

conquista e a defesa dos seus direitos civis, sociais e políticos - que fazem parte

da condição de cidadão. Esta condição exige a passagem da letra jurídica à

realidade.

Pode-se afirmar então que a cidadania tem duas dimensões

fundamentais: uma que é dada, a priori, pela natureza do Estado de Direito (que

pressupõe a igualdade, a liberdade e a participação política) e outra, que se

constrói a partir da própria realidade na qual se insere a população subalternizada,

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a partir das faltas percebidas como necessidades. A superação dessas

necessidades, entendidas como direitos, passa pela dimensão individual e

coletiva.

A Constituição Federal (1988) e o Estatuto da Criança e do

Adolescente (1990), ao estabelecerem a garantia de políticas sociais básicas

como direito de todas as crianças e adolescentes e o dever do Estado para sua

realização, universalizam as oportunidades para o exercício da autonomia desse

segmento ao longo de sua vida. A infância assume, assim, dimensão política de

cidadã, no plano do Direito.

A autonomia aqui pensada passa pela observância do Direito

enquanto norma, e do Direito, enquanto ciência. O que permeia essas imbricações

no ramo do Direito é que elas funcionam como “(...)institutos próprios, princípios e

métodos inconfundíveis capazes, agora sim, de elevar o Direito da criança e do

adolescente à categoria de Direito autônomo”. (Amaral e Silva,1997: apostila

digital)

Assim, o atual Direito da criança e do adolescente passa a garantir a

esse segmento “(...) todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,

assegurando-lhes oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o

desenvolvimento físico, mental, espiritual e social em condições de liberdade e

dignidade.” (ECA, art.3º). Amaral e Silva (1997) comenta que no atual

ordenamento legal,

“(...) não há mera carta de intenções, mas normas com direitos

objetivamente colocados, capazes de possibilitar a inovação subjetiva

para o cumprimento coercitivo (...). Não mais um Direito-norma, como o

Código de Menores, que não mencionava direitos, mas um novo ramo

capaz de ‘assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos

referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao

lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à

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liberdade, à convivência familiar e comunitária’” (Amaral e Silva, 1996,

apostila digital).

Esses princípios estão ancorados na Convenção Internacional sobre

os Direitos da Criança35 (1989), ratificada pelos Estados-membros das Nações

Unidas em 1990, quando, juridicamente, é reafirmada uma gama de direitos

fundamentais eliminando qualquer dúvida que pudesse perdurar sobre o lugar da

criança no Direito internacional:

“(...) não é o mero objeto do direito a uma proteção especial, senão

sujeito de todos os direitos reconhecidos pela norma internacional

como o direito de toda e qualquer pessoa ... a confirmação do status

da criança como sujeito dos direitos fundamentais da pessoa humana,

por exemplo, tem conseqüências que transcendem amplamente o

âmbito jurídico. O reconhecimento dessa condição de sujeito de

direitos constitui o ponto de partida de todo esforço de reflexão e

conscientização relativas à criança e seu lugar na sociedade, ou seja,

sua relação conosco, adultos” (O’Donnell, 1997: apostila digital).

Tratando-se então do debate direitos-cidadania de crianças e

adolescentes, cabe observar que a Convenção Internacional não abarca duas

ordens de direito: o conceito de direitos políticos (scrito sensu) e o direito da livre

determinação dos povos. Considerando os direitos políticos scrito sensu , os

direitos próprios dos “cidadãos”, tais como o direito de votar, de ser candidato e

de ter acesso à função pública, e as condições para o seu exercício, i.e., a

nacionalidade e a maioridade, verificamos conflitos quanto à atribuição (ou não) de

status de cidadania à criança. Segundo O’Donnell,

“(...) a omissão dos direitos políticos scrito sensu não implica na

negação da criança como sujeito dos direitos político no sentido amplo

35 A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, foi aprovada, no Brasil, após a promulgação do ECA, pelo Decreto Legislativo n. 28 de 14 de setembro de 1990 e sua ratificação se deu pelo Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990.

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(...) a Convenção reconhece a criança como sujeito da liberdade de

expressão e de reunião, sujeito unicamente aos limites inerentes a tais

liberdades (quer dizer, as mesmas aplicáveis às pessoas em geral) e

as considerações de caráter geral estabelecidas no artigo 5º da

Convenção, ou seja, em consonância com a evolução das faculdades

da criança e a correspondente orientação e direcionamento dos pais.”

(O’Donnell, 1997: apostila digital).

O que se observa no debate da questão criança sujeito de

direitos-cidadania é a contribuição à ideologia dos direitos dessa população. As

inovações contidas na legislação da infanto-adolescência podem ser traduzidas

“como um aparato legal estratégico, que acena não para uma realidade

consolidada, mas para um processo de criação de condições necessárias para a

garantia e respeito dos direitos das crianças e adolescentes.” (Pereira Jr., 1992:

22).

Para compreensão da doutrina da proteção integral é necessário

reportar-nos a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada

em 20 de novembro de 1989, dez anos após o Ano Internacional da Criança 36

(1979) e trinta anos depois da promulgação da Declaração Universal dos Direitos

da Criança (1959).

A Convenção é o resultado de onze anos de trabalho e discussão

entre representantes de diversos países para estabelecer “os direitos humanos

comuns a todas as crianças, capazes de abranger as diferentes conjunturas sócio-

culturais existentes entre os povos.” (Programa de atualização em Direito da

Criança,1997: 23).

36 No ano de 1976, a Assembléia Geral das Nações Unidas, deliberou, que o ano de 1979, seria o Ano Internacional da Criança, designando o UNICEF como órgão de coordenação das atividades. Os objetivos gerais do Ano Internacional da Criança eram: “a) estabelecer uma base de referência para a defesa da criança e para a conscientização por parte de dirigentes e do público quanto às suas necessidades fundamentais; b) promover o reconhecimento de que os programas em favor da criança devem fazer parte integral dos planos de desenvolvimento social e econômico, com vistas a lograr a continuidade de atividades, a longo e a médio prazo, em benefício do menor, aos níveis nacional e internacional” (MPAS, 1978:05)

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São quatro os documentos fundantes da doutrina da proteção

integral:

a Declaração de Genebra (1924), destinada exclusivamente à criança, que

reconhece o dever da humanidade em “protegê-la acima de qualquer

consideração de raça, nacionalidade ou crença”;

a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), que trata de alguns

princípios de proteção à família e a seus membros, e no artigo 25, II ,

declarando que “a maternidade e a infância têm direito a cuidados e

assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do

matrimônio gozarão da mesma proteção social”;

a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), que já reconhece que a

criança, por sua condição peculiar, merece cuidado e proteção especial;

a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida também como

“Pacto de San José” (1969), que estabelecia normas específicas de proteção à

família e à infância e, no artigo 19, declara que “toda criança tem direito às

medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte de sua

família, da sociedade e do Estado”.

Outros instrumentos jurídicos de caráter internacional somam-se à

Convenção, na proteção aos direitos:

as Regras Minimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça

Juvenil ou Regras de Beijing (1985), definidora dos mínimos aceitáveis no

tratamento de adolescentes considerados autores de infração penal;

as Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade

(1990), que estabelecem as garantias mínimas a serem respeitadas para

adolescentes com medida restritiva de liberdade;

as Diretrizes das Nações Unidas para Administração da Justiça Juvenil ou as

Diretrizes de Riad para a prevenção da delinqüência juvenil (1990), que

indicam a instalação de programas e serviços de caráter comunitário e

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estabelecem que a medida de privação de liberdade deve ser aplicada

somente em último caso e por curto espaço de tempo (ver Quadro)

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança rompe com

a doutrina da situação irregular ao indicar uma nova concepção de infância e da

política de atendimento dirigida a essa população, sistematizando as questões

fundamentais trazidas em declarações anteriores e incorporando questões

específicas sobre a infância, que estavam em discussão e teriam aprovação

posterior a ela.

Legislações Internacionais: referências para o ordenamento jurídico brasileiro

Normas de Proteção Ano Princípios básicos

Declaração de Genebra 1924 Estabelece a necessidade de proporcionar à criança proteção especial

Declaração Universal dos Direitos do Homem

1948 Estabelece a necessidade de cuidados e assistência especial

Declaração Universal dos Direitos da Criança

1959 Estabelece o cuidado e a proteção especial por considerar a condição peculiar da criança

Convenção 138 1973 Estabelece a idade mínima de admissão ao trabalho, não devendo ser inferior à idade de conclusão da escolaridade compulsória ou, em qualquer hipótese, não inferior a 15 anos

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Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José*

1992 Estabelece que todas as crianças têm direito às medidas de proteção por parte da família, da sociedade e do Estado, na medida em que sua condição de criança requer

Regras de Beijing 1985 Estabelece as normas mínimas para administração da Justiça da infância e juventude

Convenção Internacional sobre os direitos da Criança

1989 Estabelece regras de proteção para criança e adolescente, dada a sua condição peculiar de desenvolvimento

Diretrizes de Riad 1990 Estabelece diretrizes para prevenção da delinqüência juvenil

Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade

1990 Define regras para a medida de privação de liberdade

Declaração Mundial sobre a sobrevivência, a proteção e o Desenvolvimento da Criança nos anos 90 e Plano de Ação para sua implementação

1990 Estabelece o compromisso de prioridade aos direitos da criança, à sua sobrevivência, à sua proteção e ao seu desenvolvimento

*ratificada pelo Brasil em 1992Elaboração: Rosemary Ferreira de Souza PereiraFonte: Declarações e Convenções.

Os anos 70 e 80, do ponto de vista da normatização internacional,

podem ser considerados, para a infância e adolescência, décadas de

transformações jurídicas fundamentais para a mudança da concepção do “(...)

menor, como objeto de compaixão-repressão, à infância-adolescência, como

sujeito pleno de direitos” (Mendez, 1991:5). Para O’Donnell (1997), essa normas

se constituem em instrumentos de trabalho e arsenal de luta pela efetivação dos

direitos de crianças e adolescentes.

Na América Latina, o processo de discussão da Convenção acontece

na década de 80. Nesse período, também no Brasil, a dimensão jurídica das

questões relativas à concepção de criança e adolescente passam a figurar

enquanto preocupação e ação do MSDCA. Segundo Mendez (1991) e Amaral e

Silva (1997),

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“(...) uma parte importante do movimento social que trabalha em

diversos níveis no campo da infanto-adolescência, começou a

perceber a importância e a necessidade de mudanças no plano

jurídico-institucional: a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito

da Criança cumpre um papel fundamental neste sentido.” (Mendez,

1991:39)

“(...) tais movimentos enfatizaram a impropriedade da Doutrina da

Situação Irregular e insistiram na nova Doutrina da Proteção Integral,

baseada nos documentos de direitos humanos das Nações Unidas (...)

invocavam-se o projeto da Convenção, as regras mínimas para a

Justiça Juvenil (...), as Diretrizes para a Prevenção da Delinqüência

Juvenil (...), o projeto de Diretrizes para a Proteção do Jovens Privados

de Liberdade (...)” (Amaral e Silva, 1997, apostila digital)

As normativas internacionais, ao alterarem substantivamente a

concepção de infância, acabam por reforçar os aspectos da “(...) universalidade e

a crença na aptidão deste grupo etário para reivindicar obrigações e para cumprir

os deveres de uma vida cidadã.” (Guará, 1995:54-55) Elas acabam constituindo-

se em normas que irão regular os direitos e deveres desse segmento não mais,

daquela parcela de população “(...) pauperizada e em potencial situação de

abandono e delinqüência” (Pereira Jr, 1992:15), os chamados menores em

situação irregular.

O’Donnell (1997), analisando a Convenção Internacional afirma que

esta altera a concepção da infância transformando

“(...) a criança, de um objeto que tem direito a receber proteção

especial, em um sujeito com uma ampla gama de direitos e liberdades

humanas; esclarece o significado de praticamente todas a gama de

direitos humanos para as crianças e os adolescentes; estabelece um

Comitê Internacional de Experts, especializados em direitos da criança,

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com novas possibilidades para concretizar tais direitos.” (O’Donnell,

1997: apostila digital)

A Convenção, ratificada pelo Estado brasileiro em novembro de

1990, define que criança é toda a pessoa com menos de 18 anos, exceção feita

àquelas em que, em seu país, a lei determine que a maioridade se dê em idade

mais baixa. O’Donnell (1997) assim trata a questão:

“(...) o uso de critérios diferentes quanto à maioridade para efeito de

legislação interna, (...) não deve se confundir com o uso de critérios

diferentes para efeito de reconhecimento e de proteção dos direitos

fundamentais da pessoa humana (...) toda disposição do direito interno

que restrinja sua aplicação teria que ser justificada, levando-se em

conta tanto as realidades sociais do país como os princípios

fundamentais que inspiram a Convenção e os princípios gerais do

direito internacional sobre os direitos humanos (...) quanto maior for a

discrepância entre os 18 anos e a norma nacional, mais difícil será

fundamentá-la.” (O’Donnell, 1997: apostila digital).

Estes são os princípios estabelecidos pela Convenção:

a igualdade de direitos a todas as crianças, sem exceção;

a obrigação do Estado de proteger as crianças de qualquer forma de

discriminação, inclusive aquela decorrente das características de seus pais ou

tutores;

dever do Estado de não violar qualquer direito e de tomar as medidas no

sentido do atendimento aos direitos de crianças e adolescentes;

a consideração, nas ações relacionadas à criança, do seu interesse superior,

no caso de conflitos de interesse entre uma criança e outra pessoa ou

instituição.

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Até o advento da Convenção, as legislações específicas não

possuíam o caráter de universalidade, ou seja, não compreendiam a totalidade

infanto-juvenil. A Convenção, ao definir que toda pessoa com idade inferior a 18

anos é criança, estabelece a igualdade de direitos a todas as crianças, sem

exceção, e

“(...) preconiza que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos,

gozam de todos os direitos fundamentais da pessoa humana

relacionados na Constituição, nos tratados, nas convenções

internacionais e leis e, além disso, desfrutam de proteção especial, um

plus, decorrente da ‘condição peculiar de pessoa em

desenvolvimento’.” (Amaral e Silva, 1997, apostila digital)

Desaparece, então, o viés constante na Doutrina da Situação

Irregular que legislava, como vimos, para um determinado grupo de crianças e

adolescentes identificados como em situação de patologia social, conforme bem

esclarece Amaral e Silva (1997),

“(...) a Doutrina da Situação Irregular preconizava a necessidade de

restringir o alcance das normas de Direito do Menor, que não deveriam

mencionar direitos; a Doutrina da Proteção Integral apregoava a

necessidade de disposições capazes de garantir todos os direitos

fundamentais ...” (Amaral e Silva, 1997: apostila digital).

A Convenção Internacional, diferentemente das legislações de cunho

assistencialista-repressor, considera a família o “(...) grupo fundamental da

sociedade e ambiente natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus

membros, e em particular das crianças”, estabelecendo que cabe à família prover

a educação e a orientação apropriada para que a criança possa exercer os direitos

reconhecidos na Convenção, cabendo ao Estado respeitar a “dinâmica entre pais

e filhos [e] ajudar os pais e as mães no cumprimento de suas responsabilidades. ”

(O’Donnell, 1997: apostila digital). O princípio geral da Convenção que norteia a

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relação criança-família-Estado, é o de que “nenhuma criança será separada de

seus pais contra a vontade destes, exceto quando (...) tal separação for

necessária por interesse superior da criança.” (O’Donnell, 1997, apostila digital).

Essa questão, assim figura na Convenção Internacional:

Art. 5º - “Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os

direitos e os deveres dos pais ou, quando for o caso, dos membros da

família ampliada ou da comunidade, conforme determinem os

costumes locais dos tutores ou de outras pessoas legalmente

responsáveis por proporcionar à criança instrução e orientação

adequadas e acordes com a evolução de sua capacidade, no exercício

dos direitos reconhecidos na presente Convenção.”

Art. 9º - “Os Estados Partes deverão zelar para que a criança não seja

separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando

sujeitas à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem,

em conformidade com a lei e os procedimentos legais cabíveis, que tal

separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal

determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo,

nos casos em que a criança sofre maus-tratos ou descuído por parte

de seus pais, ou quando estes vivem separados e uma decisão deve

ser tomada a respeito do local da residência da criança”

Art. 18º, inciso 2º - “A fim de garantir e promover os direitos enunciados

na presente Convenção, os Estados Partes prestarão assistência

adequada aos pais e aos representantes legais para o desempenho de

suas funções no que tange à educação da criança, e assegurarão a

criação de instituições e serviços para o cuidado de crianças.”

Art. 27 - “Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança a um

nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental,

espiritual, moral e social.

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I - Cabe aos pais, ou a outras pessoas encarregadas, a

responsabilidade primordial de propiciar, de acordo com suas

possibilidades e meios financeiros, as condições de vida necessárias

ao desenvolvimento da criança.

II - Os Estados Partes, de acordo com as condições nacionais e dentro

de suas possibilidades, adotarão medidas apropriadas a fim de ajudar

os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo

esse direito e, caso necessário, proporcionarão assistência material e

programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao

vestuário e à habitação.

As propostas contidas na Convenção, referentes ao apoio à família,

partem das reflexões que consideram que, na atualidade, as famílias têm sofrido

enormes pressões de como prover e se relacionar com seus membros, dado o

aumento significativo da taxa de pessoas sozinhas e de rupturas da unidade

familiar; as modificações na organização e composição do grupo familiar; o

aumento do número de famílias chefiadas por um só dos cônjuges; o aumento da

tendência à dissolução dos vínculos matrimoniais; a variação nos períodos em que

as pessoas solteiras ou descasadas permanecem sozinhas, além da pressão dos

movimentos sociais pelos direitos de cidadania (Pereira e Pereira, in

Iades,1996:56).

Nesse sentido, não cabe disciplinar, penalizar as famílias, declarando

previamente sua incapacidade no cuidados com as crianças e adolescentes, como

arbitrava a doutrina da situação irregular. Cabe, sim, indagar das famílias suas

razões de ser como são, as dificuldades que encontram, as pressões que vivem,

as mudanças que gostariam de construir. (AMAS/CBIA-MG, 1995).

Destaco as contribuições de Vicente (1994) acerca do direito à

convivência familiar e comunitária, objeto de preocupação da Convenção,

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“A criança inicia sua história dentro da história de sua família, de sua

comunidade e de sua nação. Mais amplamente, ela participará de um

período histórico dos homens. Será marcada e afetada pelas diversas

dimensões de seu tempo. Será aí também que dará sua contribuição

enquanto ser e cidadão (Vicente, 1994:).

Sem se descuidar das crianças e adolescentes privadas temporária

ou permanentemente do seu meio familiar, ou cujo interesse maior exija que não

permaneçam nesse meio, a Convenção incorpora em seu conteúdo o direito da

criança à proteção especial, sendo obrigação do Estado prover esta proteção

através de ações que privilegiem a manutenção do ambiente familiar e

comunitário, bem como a adequação das instituições à pessoa em condição

peculiar de desenvolvimento.

Em relação à privação de liberdade, medida sócio-educativa aplicada

aos adolescentes a quem se atribua autoria de ato infracional, merecem destaque

os artigos 37 e 40 da Convenção. O artigo 37 dispõe que a medida de privação de

liberdade deverá ser efetiva, em conformidade com a lei, por período breve e

sempre como o último recurso a ser utilizado pela Justiça da Infância e da

Juventude. Já o artigo 40 trata da necessidade de que os Estados Partes

estabeleçam a “(...) idade mínima antes da qual se presumirá que a criança não

tem capacidade para infringir as leis penais” e da importância dos mecanismos de

remissão (perdão), quando possível. No inciso 4, do mesmo artigo, são tratadas

as medidas alternativas à internação (privação de liberdade), com objetivo de

“garantir que as crianças sejam tratadas de modo apropriado ao seu bem-estar e

de forma proporcional às circunstâncias e ao tipo de delito”.

Não cabe mais, em nome da compaixão-repressão, conforme

determinava a doutrina da situação irregular, abandonar princípios e colocar de

lado regras fundamentais do Direito, cujo objetivo é “(...) tutelar a liberdade jurídica

da pessoa, garantindo-a contra possíveis abusos de poder.” (Amaral e Silva, 1997:

apostila digital).

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A Convenção, além de consolidar e interpretar os documentos

internacionais que trataram dos direitos de crianças e adolescentes, teve também

o papel fundamental de colocar na agenda dos movimentos sociais e dos setores

mais avançados das políticas públicas, que lutavam por melhores condições de

vida da infanto-adolescência, a discussão das normas jurídicas que as regulavam.

No Brasil, entre 1970 e 1985, o MSDCA incorpora a necessidade de

debater a dimensão jurídica sobre crianças, e passa a influir na elaboração de um

novo desenho da política social consoante aos princípios da Convenção.

A Pastoral do Menor inicia seus trabalhos junto a adolescentes

autores de ato infracional, entre 1978 e 1979, através do projeto chamado

Liberdade Assistida Comunitária. Também nesse período, os meninos e meninas

de rua passam a fazer parte das preocupações e da atenção da Pastoral do

Menor. Em 1981, realizou a primeira Semana Ecumênica do Menor, repetindo-se

até 1992. Na época, a participação em cada evento desse era de

aproximadamente mil pessoas. Conforme analisa Coelho (1996),

“A dimensão ecumênica dessa tentativa expressou-se, não só nas

relações entre as igrejas cristãs, mas na tendência de buscar o que

une a diversidade dos segmentos da sociedade que intervêm na área

da criança e do adolescente emprobrecidos (...) Uma das conquistas

de toda essa ação ecumênica é a emergência da alteridade. As

meninas e meninos, na década de 80, deixam de ser vistos por muitos

setores da sociedade como objeto de intervenção dos adultos, das

autoridades ou das leis, e resgataram seu reconhecimento como

cidadãos, como sujeito de direitos, como partícipes da construção da

sociedade humana ...” (Coelho, 1996: 5 e 9).

O Movimento em Defesa do Menor - MDM, tinha como finalidade a

defesa dos direitos da criança e do adolescente. Com atuação voltada

basicamente à violação de direitos, ampliou o debate sobre as questões relativas

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à legislação de menores e denunciou, no que se refere ao jovem autor de ato

infracional, o caráter anti-jurídico constante no Código de Menores. Entre 1980 e

1985, realizou quatro Encontros sobre os Direitos do Menor, além de participar de

outros eventos organizados por diferentes setores da sociedade.

Teve o mérito de dar visibilidade às questões relativas à criança e ao

adolescente no tocante à sua institucionalização em espaços não compatíveis

com sua condição de pessoa em desenvolvimento; a violência institucional, policial

e familiar praticada contra crianças e adolescentes e o desrespeito aos demais

direitos fundamentais da criança inscritos na Declaração Universal do Direitos da

Criança.

A República do Pequeno Vendedor, de Belém do Pará, precursora

de experiências comunitárias na área da infanto-adolescência, tinha reconhecida

sua ação, enquanto integrante do MSDCA, de práticas alternativas, colocando-se

de forma crítica às ações desenvolvidas pelo Estado.

Frente a essas intervenções, o governo brasileiro, em 1981, com o

apoio do Fundo das Nações Unidas para Infância - UNICEF, institui grupo de

trabalho para conhecimento e aprofundamento das experiências alternativas,

tendo em conta suas perspectivas, demanda, metodologia e recursos (humanos e

materiais).

Assim, em 1982, foi elaborada uma proposta de ação conjunta entre

os três orgãos participantes do grupo de trabalho (SAS, FUNABEM, UNICEF),

conforme atestam os documentos oficiais da época:

“Em 1982, um projeto conjunto foi formalizado entre os três órgãos

(SAS-FUNABEM e UNICEF) a fim de desenvolver com mais

profundidade este enfoque baseado na comunidade; seu objetivo era a

construção de uma base de conhecimentos, necessária para ajudar os

órgãos executores a serem bem sucedidos nesta nova perspectiva, e

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possibilitar que inúmeras atividades de treinamento e de comunicação

disseminem informações úteis às pessoas que delas necessitam.”

(UNICEF/MPAS/SAS/FUNABEM, 1983: 4 e 5).

O projeto Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua cumpriu

sua função no sentido de sistematizar “idéias e princípios emergentes [e] utiliza

como parte de sua estratégia, reuniões regionais e estágios, para criar um livre

trânsito de informações e de aprendizagem entre as experiências.” (UNICEF/MPAS/SAS/FUNABEM, 1983: 5).

O trabalho desenvolvido pela República do Pequeno Vendedor e de

mais quatro outras experiências (Centro Salesiano do Menor - Cesam, de Belo

Horizonte/MG; Salão do Encontro, de Betim/MG; Cerâmica Educacional Boa

Nova, de Ipameri/GO; Centro de Orientação Sócio-Educativa do Menor

Trabalhador – COSEMT, de São José dos Campos/SP), de um total de setenta

levantadas pelo projeto, se constituíram em referências de ação, em pólos

irradiadores de uma nova metodologia de trabalho, de um novo modo de tratar e

atender às necessidades/direitos de crianças e adolescentes, ou seja, a

combinação dos aspectos atendimento/denúncia/defesa de direitos no cotidiano

de suas práticas, forjando um novo desenho das políticas públicas destinadas à

infância e à adolescência, baseado no paradigma doutrina da proteção integral,

expresso nas principais convenções e recomendações internacionais.

Barbetta (1993), analisando o projeto Alternativas de Atendimento

aos Meninos de Rua, no período compreendido entre 1982 -1984, denominado,

também de “aprendendo com quem faz”, relata que:

“(...) as experiências locais de organizações e articulações de projetos

era uma realidade em várias cidades, implementadas ou não pelo

Projeto Alternativas, e a necessidade de fortalecimento das

experiências se impunha, (...) os grupos locais se configuravam num

embrião do que mais tarde veio a se constituir numa organização social

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de defesa da criança e do adolescente e desembocaria num amplo

movimento de luta por direitos do qual o Movimento Nacional de

Meninos/as de Rua é um dos expoentes” (Barbetta, 1993:135).

Nessa movimentação pelos direitos da criança, cento e um ex-alunos

da FUNABEM, fundaram, em 23 de fevereiro de 1980, na cidade do Rio de

Janeiro, a Associação dos Ex-alunos da FUNABEM - ASSEAF, com a finalidade,

segundo estatutos da entidade, de: “a) manter e estreitar as relações de amizade

e o convívio dos ex-alunos da FUNABEM, entre si, suas famílias e antigos

mestres; b) desenvolver o espírito de fraternidade e mútua assistência moral,

material e profissional; c) proporcionar aos associados meios que contribuam para

a boa convivência cultural, recreativa, esportiva e assistencial”;

A articulação do Movimento Negro do Rio de Janeiro com os ex-

alunos da FUNABEM, dá origem ao Centro de Articulações de Populações

Marginalizadas – CEAP37 (1989), entidade reconhecida nacional e

internacionalmente pela defesa incondicional dos direitos da infanto-adolescência

e por pautar, na agenda local e global, temas como o extermínio, o trabalho e a

prostituição de crianças e adolescentes.

A articulação dos programas comunitários em torno do projeto

Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua, foi a base de formação do

Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua – MNMMR. O I Encontro

Nacional de Grupos Locais38 (1985) possibilitou a organização dos grupos locais

em nível estadual e nacional e caracterizou-se como a assembléia de criação do

Movimento.

37 “O CEAP é uma ONG (organização não-governamental), sem fins lucrativos, fundada em fevereiro de 1989, originária dos Movimentos Negros e de ex-alunos da FUNABEM ( informativo CEAP)38 Os grupos locais, também chamados de comissões locais, reuniam, de forma espontânea, pessoas envolvidas com a questão da criança e tinham como objetivo “manter, no nível local, a mobilização da comunidade, o acompanhamento de trabalhos e a discussão dos problemas decorrentes do atendimento a meninos de rua.” (Relatório Final do Projeto Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua, in Barbetta, Alfreto, dissertação de Mestrado, PUC/SP, 1993:139)

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O I Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua (1986),

realizado em Brasília, reuniu 432 meninos(as), que contaram com o estímulo e a

orientação de educadores para a organização das oficinas temáticas, plenárias e

elaboração de relatórios. Como proposta aprovada no Encontro é oficialmente

criado o MNMMR, com o objetivo de organizar os meninos e meninas de rua do

Brasil, na luta por seus direitos.

O discurso oficial demonstra a força e a amplitude desse movimento

social de defesa dos direitos da criança e do adolescente, ao afirmar:

“(...) a sociedade civil se organizou ao longo destes anos difíceis e

geralmente ultrapassou com generosa coragem e eficiência aos

programas do Governo. ... São numerosíssimas essas experiências de

apoio a ‘meninos e meninas de rua’ da Arquidiocese de São Paulo.

Hoje, o ‘Movimento Alternativas Comunitárias de Atendimento a

Meninos e Meninas de Rua’, com sede em Belém do Pará, já conta

com uma Comissão Nacional. ... Aos ex-alunos da FUNABEM, declaro

que é meu desejo integrar as experiências vindas de vocês, já agora

reunidos na Associação de Ex-alunos da FUNABEM ...”

(FUNABEM/MPAS, 1986: 20 e 23)

Em 1985, nasce a Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança

e do Adolescente – FNDdC., objetivando a mobilização da sociedade brasileira

para o debate de questões que circundavam a criança e o adolescente – o

problema do menor – e à proposição de subsídios ao processo constituinte que

estava para ser instalado. A bandeira de luta da FNDdC era a municipalização do

atendimento, daí contar com o apoio dos governos municipais em sua luta.

Os principais objetivos da Frente, conforme inscritos em documentos

oficiais, eram:

“(...) defender, por todos os meios possíveis, os interesses da criança e do

adolescente e os programas positivos de atendimento ao menor;

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(...) estimular o debate sobre a questão da criança e do adolescente, em todos os

níveis;

(...) levantar, organizar e remeter às Comissões Regionais, Estaduais e Nacional,

teses e subsídios a serem debatidos e lavados à Constituinte; ” (FNDdC, 1986: 15).

O Movimento Pró-Constituinte, à época, concentra os esforços da

sociedade – entidades, grupos e setores governamentais, - na articulação e

mobilização, tendo como lema comum a democratização do país. Na área da

infância e adolescência, duas campanhas são representativas dos esforços dos

sujeitos individuais e coletivos: Criança Constituinte (1986) e Criança Prioridade

Absoluta (1987).

A campanha Criança Constituinte, teve o estímulo e a coordenação

da Comissão Nacional Criança Constituinte, instituída por Portaria Interministerial,

integrada pelos representantes dos Ministérios da Educação, da Saúde, da

Previdência e Assistência Social, do Trabalho, da Justiça, da Cultura e da

Secretaria de Planejamento da Presidência da República; pelos organismos

multilaterais, Fundo das Nações Unidas para a Infância, Organização Mundial

para a Educação Pré-Escolar; e pelas organizações Conselho Nacional dos

Direitos da Mulher, Ordem dos Advogados do Brasil, Sociedade Brasileira de

Pediatria, Federação Nacional dos Jornalistas, Frente Nacional de Defesa dos

Direitos da Criança, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e Pastoral

do Menor. A Comissão Nacional se pretendia facilitadora do debate das questões

relativas a infanto-adolescência, e buscava garantir

“(...)um espaço específico para a criança e o adolescente na

Constituição, [na] certeza de um avanço na direção do respeito às suas

necessidades e direitos. Para o Estado, será a definição básica de um

novo ordenamento jurídico baseado na valorização da infância e da

adolescência no seu projeto político. E para os que lutam pela sua

causa significará, ainda, um instrumento legal de pressão.” (Comissão

Nacional Criança e Constituinte, 1987: 04)

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A Campanha Criança Constituinte estrategicamente instituiu vinte e

seis Comissões Estaduais e envolveu, no debate, mais de 600 instituições

públicas e privadas de todo o país. Em 1986, realizou o Encontro Nacional Criança

e Constituinte, objetivando recolher as propostas elaboradas em cada Estado. Em

abril de 1987, delegados de todos os Estados brasileiros, instituições convidadas e

a Comissão Nacional organizadora do evento, elaboraram documento contendo

recomendações com o propósito “de assegurar para a criança e o adolescente as

condições políticas, econômicas, sociais e culturais adequadas às suas

necessidades.” (Comissão Nacional Criança e Constituinte, Doc.1987: 04). Tal

documento foi o primeiro encaminhado à presidência da Assembléia Nacional

Constituinte para subsidiar os legisladores nas proposições sobre a infância.

Dos Santos (1992) afirma, a par da mobilização social empreendida

pela Campanha, que “(...) tensões, conflitos políticos e divergências marcaram o

processo de elaboração da proposta, até sua entrega ao Presidente da

Assembléia Nacional Constituinte” (Dos Santos, 1992: 67). A principal divergência

se dava na questão da proteção especial à criança e ao adolescente, contida no

documento:

“As crianças e adolescentes em situação irregular (grifo nosso), sem

prejuízo da responsabilidade civil e penal dos pais, terão direito a

especial atenção e proteção da Sociedade e do Estado, contra todos

os tipos de discriminação, opressão ou exploração, com total amparo,

alimentação, educação, saúde, afeto.” (Comissão Nacional Criança e

Constituinte, Doc, 1987:22)

A proposta da Comissão reconhecia a criança em situação irregular,

mantendo-a como objeto do direito a uma proteção especial, e não sujeito de

todos os direitos. Diante disso, o MSDCA elaborou, em junho de 1987, emenda

popular, forjando um amplo movimento, chamado de Criança- Prioridade Nacional.

O impacto dessa mobilização social foi a adesão de 250.000 pessoas que

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subscreveram a Emenda Popular Criança-Prioridade Nacional, também

encaminhada ao Congresso Nacional.

A campanha Criança-Prioridade Nacional reuniu organizações,

representantes das diversas forças sociais presentes no campo da infância e

adolescência, numa ação conjunta e articulada pelo MSDCA pela instituição de

um novo ordenamento legal e institucional. Essas organizações, em março de

1988, se organizaram criando o Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-

Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – Fórum

Nacional DCA, um “(...) movimento social nacional com propostas e capacidade

alterativa.” (Carvalho e Pereira, 1993: 7). Segundo Dos Santos (1992),

“(...)o Fórum passou a ser, a partir de então, o principal interlocutor da

sociedade civil para a questão da criança e do adolescente junto ao

Congresso Nacional e o principal interlocutor da ampla mobilização

social pela inclusão da Emenda na Constituição” (Dos Santos, 1992:

68)

O Fórum Nacional DCA constituiu-se em espaço de ação política

coletiva de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, incorporando em sua

organização entidades, movimentos sociais e pessoas comprometidas com a

causa da criança, acima de distinções religiosas, raciais e ideológicas, partidárias

e de classe. O perfil das entidades e movimentos que integraram o Fórum já

acenava a natureza do caráter alterativo da política de atenção à criança e ao

adolescente – o sistema de garantia de direitos39.

As contribuições de Costa (1991) esclarecem a origem do caráter

alterativo das proposições, hoje contidas na Constituição Federal e no Estatuto da

Criança e do Adolescente:

39 Para melhor compreensão deste Sistema de Garantia de Direitos, ver quadro 5, página 108.

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“Na vigência do autoritarismo era pouco viável e, ademais bastante

arriscada a proliferação de programas que tivessem como núcleo de

sua atuação a luta política pela promoção e defesa dos direitos da

criança e do adolescente. Assim, a opção pela ênfase no atendimento,

teve, à sua época, um claro sentido tático. (...) Os que lutavam por

direitos e apenas por direitos, sem se vincularem a nenhuma outra

forma de trabalho social ou educativo, eram vistos como oportunistas

políticos pela gente de base dos programas, ou como militantes

políticos pelos governamentais.” (Costa: 1991: 87)

Nesse sentido, ainda conforme o autor, a reunião dos sujeitos

individuais e coletivos em torno do Fórum Nacional DCA, para a proposição da

emenda popular Criança-Prioridade Nacional e, depois para a elaboração do

Estatuto da Criança e do Adolescente, guarda o entendimento de que influir pela

via do alterativo era naquele momento mais importante do que o fazer alternativo.

(Costa, 1990: 91)

Como resultado inequívoco dessa mobilização, destacam-se, na

Constituição Federal de 1988, os artigos 204 e 227. O artigo 204 trata da

descentralização político administrativa dos programas e da participação da

população na formulação e no controle da política de atendimento à criança e ao

adolescente; e o artigo 227 eleva a criança e o adolescente à categoria de

cidadão, dispondo que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a

criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito (grifo nosso) à vida, à

saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de

colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,

violência, crueldade e opressão" (Constituição Federal, Cap. VII, art. 227).

O então projeto de Convenção Internacional do Direitos da Criança,

sendo amplamente debatido no período de 1978 a 1989, tornou-se a referência do

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Movimento Social de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum

Nacional DCA) para o estabelecimento do novo direito de crianças e adolescentes

brasileiros. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei Federal n.

8069/90, de 13 de junho de 1990, constitui, segundo Costa (1993),

“(...)no elo de ligação entre a Constituição Federal e a Convenção

Internacional dos Direitos da Crianças, aprovada pela Assembléia

Geral das Nações Unidas, em 1989, ano 30º do aniversário da

Declaração Universal dos direitos da Criança” (Costa, in Cendhec

1993: 9-10)

O padrão de articulação e mobilização alcançado pelo Fórum DCA

permitiu, nos Estados e depois nos municípios, a organização da sociedade em

Fóruns DCAs, com o intuito de continuar o debate sobre os direitos da criança e,

ao mesmo tempo, subsidiar o processo de elaboração das Constituições

Estaduais e das Leis Orgânicas. Iniciava-se também nacionalmente o processo de

elaboração do projeto de lei para regulamentação dos artigos relacionados à

política para a infância (204, 227 e 228), constante na Constituição Federal.

Conforme expressa Dos Santos (1992):

“(...) duas iniciativas – do Fórum DCA e da Coordenação de Curadorias

do Menor de São Paulo – (...) resultaram no Projeto de Lei ‘Normas

Gerais de Proteção à Infância e à Juventude’ apresentado à Câmara

dos Deputados em fevereiro de 1989 (...) uma terceira iniciativa, da

Assessoria Jurídica da Funabem, é apresentada ao Fórum DCA,

decidindo-se então pela criação de um grupo de redação com vistas a

sistematizar e compatibilizar as propostas elaboradas. O grupo foi

constituído por representantes do movimento social (Fórum DCA),

juristas (juiz, promotor público, advogados), consultores do UNICEF e

outros experts.” (Dos Santos, 1992: 68 e 69).

Em relação à dinâmica dos trabalhos, Dos Santos (1992), afirma

ainda:

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“(...) o grupo sistematizava as contribuições; o secretariado do Fórum

DCA dava sustentação político-organizativa e fazia circular as

propostas; a assembléia apreciava e contribuía com novas sugestões.

Foram elaboradas cerca de seis versões até a apresentação do

substitutivo à Câmara. (...) intensifica-se o debate (...) de agosto a

dezembro de 1989 foram realizadas centenas de debates, seminários

e manifestações visando mobilizar diferentes setores da sociedade

para lutarem pela aprovação do projeto.” (Dos Santos, 1992:69)

Assim, em 13/07/90, a população infanto-juvenil foi contemplada com

uma carta de direitos, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei Federal

8069/90, com um grau de participação popular sem precedentes na história

brasileira, concretizando “um notável avanço democrático, ao regulamentar as

conquistas relativas aos direitos de crianças e adolescentes, consubstanciadas no

artigo 227 da Constituição Federal.” (Cendhec, 1993:9)

Para Sêda (1991), o Estatuto representa

“(...) o conjunto de regras preparadas há décadas por diferentes

setores da sociedade brasileira (e transformada em Lei pelo Estado em

1990) para que indivíduos, grupos e coletividades modelem sua

participação social como pais, mães, irmãos, amigos, companheiros,

patrões, clientes, sacerdotes, políticos, policiais, autoridades"

(Sêda,1991:6)

Costa (1991), assinala que com a regulamentação daqueles artigos

presentes na Constituição Federal, a sociedade brasileira experimentou uma

radical transformação do “(...) padrão de relacionamento vertical, centralizado,

manipulador, clientelista e sonegador da iniciativa e criatividade dos destinatários

que, historicamente sempre marcou no Brasil a relação entre os pobres e o ramo

social do Estado" (Costa,1991: mimeo).

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O Estatuto da Criança e do Adolescente propõe um sistema de

atendimento e garantia de direitos e uma nova forma de gestão40, “(...) através de

um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais da União,

dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.” (ECA, art. 86).

A política de atendimento e de garantia de direitos nessa área

realiza-se através de:

Políticas Sociais Básicas - saúde, educação, cultura, esporte, lazer, habitação,

trabalho... - direitos de todos e dever do Estado;

Política de Assistência Social, em caráter supletivo para quem dela necessitar;

Ações de Proteção Especial, corte específico da política de assistência,

destinadas à crianças e aos adolescentes em situação de risco pessoal e

social.

Nesse sentido, a Constituição Federal no artigo 227,

“(...)ao elencar o feixe de direitos de cidadania do conjunto de crianças

e adolescentes brasileiros, faz uma revolução na setorialização das

políticas brasileiras. Deixa claro que a proteção integral, direito de

cidadania, é incompatível com a setorialização, que só podemos

chegar à proteção integral com políticas integradas

intercomplementares, com uma política integral. Deixamos de falar em

políticas setoriais e passamos a falar em direitos de um segmento

populacional, crianças e adolescentes.” (AMENCAR/FAMURS/FEBEM-

RS/FMSS, in Plano da Política Municipal de Atendimento dos Direitos

da Criança e do Adolescente, 1997:13).

Na formulação das políticas sociais básicas, Costa (1993) sugere o

seguinte esquema:

40 Sobre a questão ver quadros Capítulo II.

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Eixos Centrais Políticas Prioritárias Direitos

Sobrevivência Saúde À vida, a saúde, a alimentação

Desenvolvimento pessoal e social

Educação À educação, à profissionalização, à cultura, ao lazer

Integridade física, psicológica, moral e social

Ações de proteção especial Convivência familiar e comunitária, liberdade, dignidade, respeito

Com isso atende-se, pelas políticas sociais básicas, o universo da

população infanto-juvenil. Estarão ainda protegidas, pelas medidas de proteção

especial, contantes do artigo 98, incisos I e II do ECA41, as crianças e

adolescentes vítimas de abandono, tráfico; as que ingressam precocemente em

trabalho abusivo e explorador; as vítimas de abuso, negligência e maus-tratos pela

família, instituições; as crianças e adolescentes de/nas ruas; as crianças e

adolescentes exploradas sexualmente; crianças e adolescentes excluídos ou

precariamente incluídos nas políticas sociais básicas. Ainda, estão protegidos

pelas medidas sócio-educativas, os adolescentes considerados autores de ato

infracional, conforme inciso III do referido artigo.

O ECA compreende que a política de direitos está apoiada em um

sistema de atendimento e garantia de direitos que prevê a promoção, o controle e

a defesa. A promoção dos direitos é realizada pelas políticas sociais e pelas ações

de proteção especial; o controle e vigilância dos direitos deve ser realizado nos

espaços públicos, constituídos formalmente (Conselhos de Direitos) e

informalmente pelos Fóruns DCAs; e ainda, o Estatuto prevê uma sorte de

medidas punitivas para os órgãos competentes que realizarem atendimento

irregular ou violarem os direitos individuais e coletivos do segmento infanto-juvenil,

41 ECA-Art. 98, As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados: I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis; III – em razão de sua conduta

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através das medidas jurídicas (habeas corpus, ação civil pública) e administrativas

(advertências, multas), conforme demonstra o quadro a seguir.

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Outro aspecto abordado pelo Estatuto são os princípios básicos de

descentralização político-administrativa e da participação popular, apontando para

duas questões básicas do Estado de Direito, qual seja, a relação entre União,

Estados e Municípios e entre o Governo e Sociedade Civil.

Assim, a municipalização da política de atenção à infância e à

juventude ganha relevância no processo de implantação da política de direitos,

depois de estabelecidas no ECA. E, estando a população mais próxima dos

programas sociais, tem ela condições de acompanhar e direcionar de maneira

mais adequada o desenvolvimento das políticas públicas, possibilitando assim uma

efetiva participação da comunidade nos destinos do poder local.

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“É no município que o cidadão nasce, vive e constrói a sua história. É

no município que o cidadão se relaciona, participa. É lá que ele tem

nome, rosto, endereço. E é no município, portanto, que ultrapassamos

a fria lógica dos números para encontrar cada criança, cada jovem,

cada cidadão para restituir-lhes a dignidade e seus direitos ... Assim,

é preciso trabalhar a municipalização do atendimento pensando na

participação comunitária e, lembrando que municipalização não é

prefeiturização, envolve todo o coletivo local, sendo mais ampla do que

a figura do prefeito e seus assessores.” (AMENCAR/FAMURS/FEBEM-

RS/FMSS, in Plano da Política Municipal de Atendimento dos Direitos

da Criança e do Adolescente, 1997:18).

Assim, a nova política de atendimento (promoção e defesa)

dos direitos da infância e adolescência será realizada através de um conjunto

articulado de ações governamentais e não-governamentais, segundo as seguintes

diretrizes (art. 88, ECA):

Criação de conselhos de direitos

Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente nas três esferas da administração pública, de caráter deliberativo e controladores das ações em todos os níveis, constituídos paritariamente, assegurada a participação popular através das organizações da sociedade civil (inciso II).

Criação dos conselhos tutelaresConselhos Tutelares são órgãos permanentes e autônomos, de ordem jurisdicional, em nível municipal, encarregados pela sociedade de zelar pelos direitos da criança e do adolescente (art.131).

Criação e manutenção de fundos

Fundos dos Direitos da Criança, criados e mantidos pelos Conselhos de Direitos, nos

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três níveis da esfera pública (inciso IV).

Criação e manutenção de programas específicos

Realização de programas de atendimento à criança e ao adolescente, observados os princípios da descentralização político-administrativa e a municipalização do atendimento (inciso III).

Integração das instâncias competentes

A integração das instâncias que operam na área da criança e do adolescentes: Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente num mesmo local, para agilização do atendimento inicial a adolescentes autores de ato infracional (inciso V).

Mobilização da opinião públicaA mobilização pública refere-se à indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade (inciso VI).

Municipalização do atendimento

As ações de atendimento serão desenvolvidas prioritariamente nos municípios, através da articulação entre as três esferas da administração no sentido da garantia das competências e responsabilidades pela sua realização (inciso I)

Dada a complexidade da situação vivida por crianças e adolescentes

brasileiros, as ações nessa área exigem a continuidade de ampla articulação entre

os diversos setores e níveis governamentais, bem como entre governo e

sociedade civil, para superar a fragmentação e a setorialização das várias políticas

e a freqüente superposição de ações de organismos governamentais e não-

governamentais (Pereira e Blanes, 1994).

“A doutrina da proteção integral nos remete a vislumbrar uma nova

forma de execução das políticas setoriais e de seus respectivos

agentes. Nenhum serviço, programa ou equipamento social pode ser

pensado como tendo um fim em si mesmo ... Trabalho em rede é

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estratégia, é meio, é a efetiva operacionalização da acalentada

integração, parceria, interface e tantos outros nomes ... Falar em rede

de atendimento significa falar de construção coletiva, de conexão, onde

cada elemento tem sua especificidade e é indispensável para a

harmonia do conjunto.” (AMENCAR/FAMURS/ FEBEM-RS, FMSS, in

Plano da Política Municipal de Atendimento dos Direitos da Criança e

do Adolescente, 1997:19)

No tocante à gestão dessa política, cabe destaque especial aos

Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e os Conselhos Tutelares. O

art. 88, inciso II, trata da criação dos Conselhos de Direitos nos três níveis da

administração, com caráter deliberativo, formuladores das políticas e controladores

das ações, assegurada a paridade na sua composição. Já os Conselhos Tutelares,

instância formal de atendimento à violação de direitos, em âmbito municipal, vêm

garantir a participação democrática dos cidadãos nos destinos de suas crianças e

jovens, conforme estabelece o artigo 131.

“A gestão pública, em nível municipal, proposta pelo ECA, assenta-se

num tripé: política integral (e não mais políticas setoriais

fragmentadas); direcionamento específico (criança e adolescente);

território delimitado (o município)” (AMENCAR, FAMURS, FEBEM-RS,

FMSS, in Plano da Política Municipal de Atendimento dos Direitos da

Criança e do Adolescente, 1997:19).

A Lei estabelece, também, a criação dos Fundos dos Direitos (fundos

financeiros) nas três esferas da administração pública, geridos pelos Conselhos de

Direitos, objetivando a implementação do ordenamento político-institucional

(art.88, inciso IV) e da democratização da gestão do atendimento. A manutenção

do Fundo é uma das diretrizes da política de atendimento, pois ele foi criado para

aporte de recursos em áreas consideradas prioritárias, como a da proteção

especial. O gerenciamento dos Fundos demanda, dessa forma a abertura de

espaços para que a sociedade participe da implementação das políticas públicas.

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A criação destes mecanismos possibilita, de forma concreta,

mudanças significativas no campo das políticas sociais de promoção e defesa dos

direitos da infância e juventude brasileiros.

O desafio posto aos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e

do Adolescente, aos Conselhos Tutelares, em articulação com Conselhos das

Políticas Setoriais (Saúde, Educação, Assistência Social, Cultura) é o de alterar a

concepção de criança e adolescente presente no imaginário coletivo da sociedade,

o que significa

"(...) desmontar o estigma da criança e do adolescente menorizados;

confrontar e ampliar radicalmente o pequeno espaço oferecido à

criança nos planos governamentais e não-governamentais; erradicar a

idéia de criança como valor de uso, valor de troca, de braços para o

futuro e instituí-la como valor hoje, enquanto sujeito em condição

peculiar de desenvolvimento, e por isso prioridade absoluta" (Carvalho,

1993: 9).

Retomando o pensamento de Heringer trabalhado em toda a análise

sobre o MSDCA, podemos considerar que as mudanças efetivadas estão assim

expressas:

“[há]... um terreno comum – o Estado – e dois atores institucionais – os

governos e as entidades da Sociedade Civil organizada -, ambas

exercitando novos papéis, rompendo uma postura histórica alheia à co-

gestão, marcada por traços centralizadores, intervencionistas e

autoritários de lado a lado. Hoje esses atores institucionais situam-se,

de acordo com o Estatuto, dentro do Sistema de Garantias, o que torna

um pouco mais complexa a nova relação, os novos papéis a serem

desempenhados. Não é suficiente assumir novas posturas. Há que

articular novos espaços e instrumentos, obedecendo à lógica do

Sistema e ao espírito da democratização.” (Cendhec, 1993: 40)

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O papel desempenhado pela nova instância pública de gestão das

políticas de atenção à criança e ao adolescente - Conselho de Direitos – deve ser

observado à luz dos limites que esta instância carrega no processo de mudança

de gestão: de centralizada, estatal e não participativa para a gestão

descentralizada, pública (estatal e não-estatal) e participativa. Outro limite ainda é

a sua inovação enquanto instância pública, uma vez que difere de experiência por

nós conhecida como os conselhos de “participação administrativa” onde se inclui a

participação dos usuários na gestão dos serviços públicos (Benevides, 1991:18) e

os conselhos populares, aqueles construídos fora do âmbito do Estado.

Os Conselhos de Direitos devem ser vistos no atual processo de

implementação, tomando-se como referência as análises de Benevides (1991)

que a realização plena da participação popular é tida como uma “possibilidade de

criação, transformação e controle sobre o poder ou poderes, pelo exercício de

uma ‘cidadania ativa’. “ (Benevides, 1991: 19-20).

CAPÍTULO IV

DO ALTERNATIVO AO ALTERATIVO42: A TRAJETÓRIA DOS SUJEITOS INSTITUINTES DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

42 Interessante observar o conceito de alteridade as contribuições de Sposati: “a concepção de alteridade – ou dessa presença em decisão do outro trata-se de um conceito emprestado da psicologia. O que é preciso marcar é como se dá, numa mesma situação, a presença de pessoas que pensam de modo diferente e que decidem também de modo diferente. (...) o conceito de alteridade, por esse caráter substantivo, permite o significado de oposição em presença (...).” Sposati, Aldaíza em Controle democrático e protagonismo popular (1993), in Revista do Fórum DCA, Políticas e prioridades políticas, Forja Editora, São Paulo

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A mobilização da sociedade brasileira na construção do novo olhar e

trato à criança e ao adolescente é fruto de um processo anterior à conquista do

Estatuto da Criança e do Adolescente.

Vários foram os sujeitos que colaboraram na construção da

concepção atual de criança – sujeito de direitos - como também vários foram os

obstáculos, limites, avanços, conquistas e impactos.

Sobre a trajetória do Movimento Social de Defesa dos Direitos da

Criança e do Adolescente, no período de 75-90, trago neste capítulo as

contribuições de alguns dos interlocutores que vivenciaram e realizaram as ações

fundantes desse movimento, ora instituído.

Um dos principais resultados desse movimento foi a conquista da

concepção de infância e do lugar que essa ocupa na Carta Magna (art. 227) e na

lei complementar Estatuto da Criança e do Adolescente: criança sujeito de direitos

e prioridade absoluta das políticas públicas. Essa condição “(...) representa um

salto qualitativo não apenas pelo modo de conceber a criança, mas pela

proposta abrangente da atenção que faz, pelo reordenamento institucional

proposto e, especialmente, porque envolve a sociedade civil na discussão,

decisão e controle das políticas de atenção à criança e ao adolescente” (Carvalho

e Pereira, 1993: 8).

Cabe observar ainda que esse movimento tem como principais

protagonistas representantes da sociedade civil de pensamento não homogêneo

que, amparados por alguns agentes governamentais e organismos multilaterais

compromissados com o atual paradigma, realizaram uma gama de estudos e

eventos visando a mobilização do conjunto da sociedade brasileira para a causa.

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A sintonia destes sujeitos se expressa na criação de um novo tipo de

articulação social na busca do paradigma da doutrina da proteção integral, o

Fórum Nacional DCA. Essa articulação assumiu assim “contornos de um movimento social nacional com propostas e capacidade alterativa no plano legal e no plano processual interventivo. (grifo nosso)” (Carvalho e Pereira, in

Revista Fórum DCA, 1993:7).

A grande alteração estabelecida em decorrência do Estatuto é que

as políticas de educação, saúde, cultura e assistência social e das ações de

proteção especial “tornam-se temas e bandeiras de luta de segmentos mais

amplos alterando o comportamento corporativo e fechado das políticas setoriais”.

(Carvalho e Pereira, in Revista Fórum DCA, 1993:8)

Esse movimento instituinte tem a partir da década de 90, no plano

processual e interventivo, cinco níveis de prioridade: i) assegurar com qualidade

de intervenção as bases instituídas da gestão da política (Conselhos de Direitos,

Tutelares e Fundos); ii) acompanhar a concepção da doutrina da proteção integral

na rede de serviços anunciados pelo ECA; iii) acompanhar e proceder o

monitoramento das prioridades estabelecidas pelas instâncias gestoras das

políticas de atenção da criança e do adolescente; iv) continuar com a mobilização

social em torno da garantia e realização do sistema de direitos (promoção-

atendimento direto; controle-vigilância; defesa-responsabilização), visando a

ampliação dos direitos; v) processar avaliações do impacto das políticas e

prioridades traçadas. (Carvalho e Pereira, in Revista Fórum DCA, 1993)

Para debater o processo, no momento de construção da doutrina da

proteção integral, escolhi interlocutores que ocuparam, no período de 75-90, papel

destacado no cenário da política de defesa dos direitos humanos e sociais de

crianças e adolescentes. Os critérios para a escolha desses interlocutores, num

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total de cinco, foram o tipo do conhecimento/intervenção e o lugar que ocupavam

à época43.

Para facilitar o conhecimento da trajetória de cada um na construção

da doutrina da proteção integral, apresento e situo-os no quadro a seguir.

Interlocutor Localidade Formação Percurso

Edson Sêda Campinas/SP Advogado Educador, gestor público na área da infância, membro do Grupo de Redação do ECA, atualmente consultor do Unicef

Maria Cecília Ziliotto São Paulo/SP Assistente Social

Especialista na área da infância, professora universitária, gestora pública e atualmente consultora na área de políticas sociais

Lia Junqueira São Paulo/SP AdvogadaFundou e presidiu o Movimento em Defesa do Menor de São Paulo; atualmente é coordenadora do Centro de Referência da Criança e do Adolescente – CERCA

43 Os interlocultores são representantes das áreas governamental e não-governamental. Tratando-se dos governamentais, acresci a variável reconhecida capacidade de articulação política no estabelecimento de relações entre Estado-Sociedade Civil. Dos não-governamentais, acresci a variável impacto das ações frente à opinião pública na construção do novo paradigma.

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Carlos Alberto Ivanir dos Santos

Rio de Janeiro/RJ Pedagogo Fundou, na condição de ex-interno (usuário) da Funabem, a Associação dos Ex-Alunos da Funabem – ASSEAF, membro do Fórum Nacional DCA, atualmente coordenador do Centro de Articulações de Populações Marginalizadas

Bruno Sechi Belém/PA Religioso Padre salesiano até 1997, fundador da República do Pequeno Vendedor e do Centro de Defesa do Menor de Belém do Para, coordenador do Fórum Nacional DCA e atualmente coordena a Rede Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente

No tocante à construção da doutrina de proteção integral no Brasil,

Sêda indica a existência, no início da década de 60, de uma conformação crítica à

doutrina da situação irregular, vinda daqueles que trabalhavam com as crianças e

adolescentes. Relata que a preocupação com o paradigma de direitos remonta

àquela época ao afirmar que: “(...) eu entrei nisso por que já eram agudos os

problemas que perpassavam a infância na década de 60 [e] era necessário

encontrar caminhos efetivos e reais de enfrentamento dos problemas que os

países, inclusive o Brasil, passaram a ter com a aprovação da Declaração

Universal dos Direitos da Criança (...). Na época eu trabalhava no SAT – Serviço de Abrigo e Triagem, em São Paulo, no Tatuapé, e já se discutia se o juiz

deveria ser ou não executor das políticas (...) Na CPI de 1975, este foi um dos

elementos levantados.”

Cecília Ziliotto, também como agente institucional, coloca “(...)que a

sociedade civil teve fundamental importância em todo processo de busca dos

direitos da criança e que esta preocupação começou no final dos anos 60 e início dos anos 70.” Em sua entrevista relata que nessa época já havia “(...)

programas nucleares e pontuais que foram implementados como resposta ao

‘fenômeno’ meninos de rua [e que] estes programas surgiram em decorrência da

força das denúncias contra a institucionalização da violência, em particular da

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violência policial.”44 Esclarece ainda que “(...) os meninos eram da periferia da

cidade, destacando-se a necessidade de construir programas o mais próximo

possível dos seus locais de moradia, para que eles não viessem para o centro. O

ganho dessa ação foi que possibilitou à Secretaria de Bem-Estar Social do

Município de São Paulo - SEBES detectar a problemática que envolvia essas

crianças, ou seja, a luta pela sobrevivência, a expulsão das crianças de casa, a

violência contra as crianças na periferia das cidades.”

Lia Junqueira destaca que a sua atuação se deu em período anterior

à criação da Fundação Paulista de Promoção Social do Menor – Pró-Menor, pela

lei n 185 de 1973, na época do Recolhimento Provisório de Menores-RPM,

criado em 1954 pela lei n 2705, modelo que já mostrava o seu esgotamento.

Lembra, na entrevista, que o antigo RPM era destinado aos infratores e estava

sob a órbita do Poder Judiciário. Na sua visão, era fundamental romper com esse

tipo de política de atendimento, pois no RPM “(...) a polícia militar era quem

mandava lá dentro (...) existindo toda uma hierarquia, ficando assim muito difícil

‘estourar’ aquele negócio, pois eles tinham seus meios e maneiras de agir (...) era

muito difícil o controle dentro do RPM”. Relata que numa de suas idas a

instituição, a situação foi constrangedora pois os meninos “(...) mal tinham shorts

inteiros. Eu comecei a ver meninos se tapando de vergonha porque estavam

seminus. Eu não tive nenhum medo deles até porque não sabia das histórias

sensacionais que se diziam deles, dos crimes, daquelas coisas todas, dos

horrores que se falam deles (...) Eu fui ser advogada por causa desses meninos.”

Padre Bruno relata que a preocupação social com crianças e

adolescentes surgiu de sua inserção nas obras sociais da congregação dos Salesianos, em 1970, época que trabalhava numa escola profissionalizante

situada num bairro periférico de Belém, Estado do Pará. Assim diz: “(...)a idéia da 44 No início dos anos 70 numa ação articulada entre Secretarias Municipal e Estadual de Promoção Social elaborou-se um projeto para atender meninos de rua que vendiam limões – Os meninos do limões - no cruzamento das avenidas Senador Queiroz com a Prestes Maia, na cidade de São Paulo. Esta é a origem do programa OSEM – Orientação Sócio-Ecucativa ao Menor.

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República do Pequeno Vendedor nasceu nessa época, quando iniciamos o

trabalho social com jovens da periferia. Desse contato começamos a olhar a

realidade da cidade e procuramos nos inserir nessa realidade. A cidade já contava

com uma presença significativa de meninos trabalhadores, principalmente no

centro comercial de Belém, no mercado Ver-o-Peso (...) Reuníamos com o grupo

de jovens da Congregação Salesiana após o horário de trabalho. Íamos ao centro

comercial onde estavam os meninos trabalhadores e procuramos fazer amizade

com eles. Encontrávamos no restaurante e ali almoçávamos juntos. O almoço não

era de graça, pagávamos alguns centavos e, a partir daí, começou o nosso

trabalho. Este restaurante foi aberto para que os meninos trabalhadores de rua

pudessem ter um local para fazer as refeições. Em 1971, por conta de toda uma

relação que se estabeleceu entre nós e os grupos de meninos que trabalhavam

nas ruas, o restaurante passou a se chamar República do Pequeno Vendedor.

No início desse trabalho contávamos com mais ou menos uma centena de

meninos trabalhadores. Éramos uma espécie de animadores de grupo. Estes

grupos passaram a receber o nome de Núcleos de Trabalho.”

Relata também que em 1972, “(...) colado ao trabalho da República

surgiu a iniciativa de mobilização da cidade para apoio a essa experiência,

nascendo assim a companha de Emaús. Esse nome representa uma passagem

bíblica que, numa leitura moderna, significa que a construção de uma sociedade

nova só ocorrerá quando houver a partilha na sociedade, a partilha de bens, a

partilha de oportunidades, a partilha do pão que simboliza a partilha das

oportunidades, da riqueza, da terra. (...) Esta Campanha teve e ainda tem um forte

impacto enquanto mobilização ampla da sociedade de Belém. (...) Cada ano

trabalhamos um tema que funciona como uma estratégia de educação para a

discussão de determinadas situações emergentes. A temática da primeira

Campanha foi ‘se não estou usando já não me pertence, pertence a quem não tem

nada’ e, nesses anos todos, houver várias temáticas ligadas aos direitos da

criança e do adolescente, que hoje estão consolidados no ECA. A deste ano é a

impunidade.” (Padre Bruno).

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A Campanha de Emaús é preparada durante um longo período,

sendo veiculada nos meios de comunicação, com o objetivo também de recolher

objetos usados para serem recuperados nas oficinas da República e revendidos a

preços simbólicos na periferia de Belém. A campanha é realizada “(...)todo o

último domingo do mês de agosto reunindo mil e quinhentos jovens que percorrem

a cidade toda em aproximadamente cem caminhões.” (Padre Bruno).

Ivanir dos Santos, enquanto usuário dos complexos implantados pela PNBEM, esclarece que o movimento de resistência e contestação dos alunos

da ex-Funabem, à doutrina da situação irregular, deu-se a partir de 1970, período

em que esteve interno na Escola XV de Novembro, unidade da Funabem, no Rio

de Janeiro. Relata que o primeiro ato de organização dos internos foi a criação do jornal O Grito, em 1971, que “(...)era um jornal feito pelos alunos,

principalmente, da 3ª e 4ª séries [antigo ginásio, atualmente 7ª e 8ª séries do ensino

fundamental] e era óbvio que ele continha muita crítica à administração.

Assumíamos O Grito de forma crítica e questionávamos uma série de coisas. Nós

não tínhamos muita clareza do que era a ditadura, você estava ali dentro e não via

o que se passava na sociedade. O jornal foi cassado mas, um ano depois, criamos

O Sombra, eu e um grupo de ex-alunos. (...) Muita gente ligada ao O Grito foi

mandada para outros lugares como castigo. O castigo para quem não era infrator

era ser mandado para uma escola de infrator, para conviver com o infrator, era um

castigo interno (...) O Sombra era feito clandestinamente e distribuído à noite,

debaixo das portas das superintendências (...) isso dava um rebuliço danado,

porque todo mundo queria saber quem é que trazia O Sombra. O pessoal da

administração tinha uma desconfiança, mas não sabia quem era. O jornal era feito

com o apoio de um funcionário que, na época, trabalhava no Setor Pedagógico e

rodava o jornal para nós.” Ivanir, ao contar esta história, reflete “(...) que esse

grupo já apresentava uma resistência, uma contestação e que isso nunca foi

registrado. (...) Acho que como na Escola XV, em outras Escolas da Fundação

houve coisas semelhantes.”

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Segundo ainda Ivanir, a movimentação dos alunos foi ganhando

corpo, partindo para uma organização própria, “(...) 1973, conheci um inspetor que

era professor de matemática, que acabou sendo uma referência na minha vida, do

mesmo modo que o professor de música que cuidava da Banda de Música da

Fundação. Este acabou convidando-me para participar do grupo. E assim, a gente

andou tocando para inaugurar todas as FEBEMs do Estado de São Paulo (1976).

Das minhas conversas com o inspetor, professor de matemática, ele me auxiliou a

elaborar um Estatuto para a criação do Grêmio Estudantil da Escola XV, contendo

as competências e atribuições do presidente, vice-presidente, tesoureiro. (...)

Ficou um Estatuto muito bonito.”

Ao longo da entrevista observo que, pelas ações e atividades

desenvolvidas por Ivanir dos Santos, ele de fato acabou se transformando em uma

liderança junto aos internos. Numa das passagens diz: “(...)engraçado que a

minha liderança vai se dar internamente pela questão cultural. Eu organizava

bailes, tocava no conjunto e levava as pessoas para dançar (...) o trabalho do

jornal O Sombra e a organização do Grêmio foi acontecendo ao mesmo tempo.”

A formação da Associação dos Ex-alunos da FUNABEM, ASSEAF,

1980, acontece depois do desligamento de Ivanir dos Santos da instituição, sendo

interessante relatar o seu momento da tomada de consciência sobre o processo

de socialização dos internos. Relata que, ao partir em busca de informações sobre

aspectos da sua vida familiar, vai ao presídio da Ilha Grande e se depara com

vários ex-alunos, não infratores, que ali estavam presos: “(...) disse para

eles [ex-alunos e colegas] vocês não aproveitaram a grande oportunidade que foi

dada e eu aproveitei. No momento eu não sabia que dizia uma grande bobagem.

(...) Hoje percebo que era esse o sentimento que eles [a instituição] te colocam,

‘os alunos que são bons e se esforçam crescem; os que não tem esforço não

crescem’. Voltei com a firme determinação de criar uma associação, isso em final

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de 1973, uma associação que desse apoio aos ex-alunos, porque eles nada

tinham.”

Observa-se, pelo relato dos entrevistados, a existência de

controvérsias a respeito do principal marco de construção da doutrina da proteção

integral. A movimentação dos sujeitos nas décadas de 60-70 já mostrava a

preocupação com a concepção e gestão da política de atenção à criança e ao

adolescente. Sêda assim trata a questão: “(...) eu acho que sempre houve um

movimento da sociedade civil de cobrança dessas situações, mas o problema era

como fazer para desligar essa cobrança social dos parâmetros jurídico-legais.

Como era o Juiz que determinava o parâmetro legal, era quase impossível fazer

essa mudança, porque tudo estava ligado à decisão judicial. O Juiz era quem dizia

qual era a ‘verdade verdadeira’ sobre a criança e o adolescente.”

Sêda via na época uma dificuldade relativa ao enfrentamento da

chamada doutrina da situação irregular dada a posição central ocupada pelo juiz

de menor: (...)a tutela da infância e juventude, independente de onde era realizado

o atendimento, seja na comunidade ou nos internatos oficiais (...) onde estivesse o

psicólogo, o assistente social, o educador; qualquer lugar, num programa

governamental ou na favela, num centro social, numa escola ou num órgão de

serviço social de menores (...) a única autoridade para dizer coisas de verdade, de

lei, era o juiz. Era preciso mudar isso, porque o juiz seguia o seu próprio arbítrio, a

lei dizia ‘seu prudente arbítrio’. A ação do juiz não tinha limite, isto não era justiça,

isto era arbítrio. Então, o que os técnicos falassem não passava de meros

palpites.”

Através dos relatos dos sujeitos envolvidos com a questão da

infância, percebemos a preocupação com a participação popular nos destinos da

política para a infância e adolescência, e a sua trajetória na releitura das

instituições então existentes e na elaboração de proposições voltadas para

mudança na gestão desta política.

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É certo que uma série de proposições foram articuladas para solução

do problema do menor. Uma delas, a da Arquidiocese do Rio de Janeiro,

elaborada em meados dos anos 50, é fundante de um novo modelo, conciliatório

entre governo e setores da sociedade, que se estabelece em 1964. Cria-se então

um modelo Fundacional, que já previa a participação de governo e de

representantes da sociedade - a FUNABEM, em nível nacional assim como as

suas congêneres (FEBEM) em nível estadual. A consecução desse propósito foi

desastrosa, dada a conjuntura política (ditadura militar) que não favorecia o

estabelecimento da interlocução entre as partes, ou seja, o aprofundamento das

relações Estado-Sociedade Civil no desenho e realização da política para infância.

Sobre esse processo, Sêda relata que com a criação da FUNABEM,

duas correntes ligadas ao Poder Judiciário, uma de São Paulo e outra do Rio de

Janeiro, se envolveram na indicação da presidência e naquele jogo de forças “(...)

ganhou a corrente de São Paulo. Mário Altenfelder era uma pessoa que tinha

prestígio entre aquelas que estavam assessorando o General Castelo Branco, o

então Presidente da República.” Sobre a participação do Tribunal de Justiça, ele

afirma que “(...) São Paulo sempre teve um Tribunal de Justiça muito austero e

também realizava sistematicamente jornadas para o debate sobre a situação do

‘menor’, as conhecidas Semanas de Estudo do Menor.”

A intenção do primeiro presidente da Fundação, observa Sêda, foi a

de “(...) limpar o SAM e mostrar para o povo que era possível fazer um negócio

limpo.” A lei que criou a Fundação, confirma ele, “(...) previa criar comissões

regionais para o norte, nordeste, sul e centro-oeste: comissão para descentralizar

e não descentralizada. Descentralizaram de maneira equivocada porque criaram,

nos Estados, fundações à imagem e semelhança do sistema SAM do Rio de

Janeiro (...) Fizeram um padrão e reproduziram-no em todos os Estados.”

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O que se depreende das colocações de Sêda é que sempre houve,

no âmbito do Poder Judiciário do Rio de Janeiro e de São Paulo, uma disputa na questão da política de atendimento à criança e ao adolescente. A resistência

de São Paulo em assumir o novo modelo é tão grande, que só em 1974, momento

em que o primeiro presidente da FUNABEM assume a Secretaria de Estado da

Promoção Social, cria-se a FEBEM/SP.

O resultado da Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM)

foi a troca da idéia de menor, enquanto ameaça social, para a idéia de menor, carente e abandonada. A PNBEM não altera o paradigma da doutrina da

situação irregular, ao contrário, reafirma a lógica carcerária, ampliando o controle

e poder de tutela do Estado e estabelecendo a execução de suas diretrizes

segundo as práticas do Poder Judiciário, da Justiça de Menores.

Em meados da década de 70, parte da sociedade civil volta a

questionar o sistema de atendimento, dado o acirramento das desigualdades

sócio-econômicas, que obriga famílias a empurrarem seus filhos para a busca de

estratégias de sobrevivência. A rua passa a se constituir no espaço privilegiado

dessa sobrevivência, principalmente nos grandes centros urbanos. Crescem os

índices de abandono e do uso da violência contra essa população. Cecília Ziliotto,

afirma que “(...) foram os movimentos populares que se organizaram para

trabalhar com essa população de rua.” Corroborando estas afirmações, verifica-se

que é desse período a criação da República do Pequeno Vendedor de Belém/PA,

o COSEMT de São José dos Campos/SP, a Cerâmica Educacional Boa Nova de

Ipameri/GO, o Salão do Encontro de Betim de Betim/MG, entre outras. É nesse

período que surgiram os programas comunitários alternativos à política oficial, a

PNBEM.

Para as instituições governamentais, adeptas da prática do seqüestro

dos conflitos sociais, estava posto um novo desafio: como trabalhar com essa

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população de rua. A esse respeito Cecília Ziliotto diz que “(...)a preocupação que

aflorava era como trabalhar efetivamente com esses meninos. A SEBES, no

município de São Paulo, em 1972, tentou implementar programas e até iniciou o

projeto Meninos dos Limões, mas ela não se fixa nessa ação e vai para a periferia.

Acontece que os meninos continuaram a ir para as ruas. Foram os grupos

populares que iniciaram o trabalho com meninos de rua.”

Analisando a trajetória do atendimento no município de São Paulo, à

luz das contribuições dos entrevistados, podemos afirmar que houve um equívoco na diretriz do atendimento do executivo municipal, qual seja, a do investimento

em ações sociais basicamente voltadas ao atendimento no interior dos

equipamentos. Foi desse período a criação do OSEM – Orientação Sócio-

Educativa ao Menor.

Sobre a pedagogia de rua, Padre Bruno coloca que “(...)sem termos

um projeto acabado, começamos a fazer todo um ato de presença, [enfrentando

os conflitos sociais] primeiro na rua, durante um certo tempo, depois, logo em

seguida, estabelecemos um ponto de referência, um ponto que seria catalisador

de um processo pedagógico, de presença. Tínhamos um ponto de referência no

centro, em Belém, que era o Restaurante Pequeno Vendedor. (...) Era neste lugar

que acontecia uma série de coisas: os meninos se reuniam, se organizavam para

o trabalho, tendo em conta aquele trabalho que fosse o menos explorado. Tudo

era decidido coletivamente e por isso acabou se chamando República. Por conta

dessa relação, tudo era decidido em grupo ou seja, coletivamente. Nos éramos

apenas animadores. Esse projeto ia se construindo com os meninos.”

O trabalho da República não contou com nenhum apoio oficial de

governo e nem de organismos internacionais. O próprio grupo, ampliado com

outros jovens da comunidade, famílias, vizinhos é que coordenava a organização

das ações. Segundo Padre Bruno, “(...)éramos a única entidade que não tinha

convênio com o governo, nem com a Funabem e nem com a Fubesp. Na época,

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recusávamos os recursos por não concordarmos com os termos do convênio que

se estabelecia para o repasse de verbas às entidades de atendimento, uma vez

que era necessário se adequarem à política Nacional de Bem-Estar do Menor

ditada pela FUNABEM. E nós não concordávamos com ela.”

A CPI do Menor Abandonado (1975), instalada num dos períodos

mais duros do regime autoritário, quando não se permitiam avanços sobre as ruas

e o direito à livre manifestação não existia, indica, dentre outras questões, a

falência da Política Nacional de Bem Estar do Menor e a urgente necessidade de

atualização do Código Mello Matos (1927). Sêda, na época, foi chamado para

participar da Comissão de Redação do Novo Código, mas se colocou contrário à

simples atualização da lei. “(...) Propunha uma lei para crianças e adolescentes,

achava que o momento era propício para esta mudança (...) mas a proposta era

fazer a mudança do código vigente, atualizá-lo. (...) Não participei da Comissão,

porque não aceitava que se mantivesse a mesma estrutura baseada em

parâmetros antigos. (...). O argumento para se proceder apenas a uma atualização

era de que o Brasil não estava preparado para mudanças e de que tínhamos que

manter a tradição, pois, os juizes não iriam autorizar que aquela mudança fosse

feita.” Diante das argumentações colocadas, Sêda reflete: “(...) quem nessa

área dizia qual era a ‘verdade verdadeira’ eram os juizes.”

Dois grupos de juristas e alguns especialistas na área da infância,

um do Rio de Janeiro e outro de São Paulo, elaboraram propostas de atualização

do Código Mello Mattos. Foi a proposta do Rio de Janeiro, elaborada com a

participação dos juizes Alírio Cavalieri e Liborni Siqueira, que se transformou em

lei. Lia Junqueira, conta que "(...) quando o Código de Menores foi sancionado, o

pessoal de São Paulo ficou muito revoltado, principalmente por causa da parte

referente aos infratores, pois eles poderiam ser presos sem flagrante e sem

mandado judicial. Aquele momento representou o início da luta para a mudança do Código de Menores.”

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Segundo Lia, “(...) a aprovação do Código de 79 ampliou o debate

sobre a infância. Combater esta lei era tranqüilo, pois era uma falta de liberdade,

de justiça e de defesa para os meninos. Eu acredito que no período do Código de

Menores sensibilizamos mais pessoas do que no período de aprovação do ECA.

O Movimento de Defesa do Menor foi fundado no mesmo ano de aprovação do Código, contando com a adesão de muita gente importante, como o Fernando

Henrique Cardoso, o Mário Covas. O MDM tinha também o apoio da imprensa”, na

pessoa do jornalista Antônio Carlos Luppi da Folha de São Paulo. Como lembra

Cecília, “(...) o MDM cumpriu a função de aglutinação das forças que passaram a

lutar pelos direitos da criança”.

É nesse período que o emergente movimento social de defesa dos

direitos da criança tem suas preocupações incorporadas nas lutas dos demais

movimentos populares, principalmente, em São Paulo. E a questão dos meninos

de rua e dos meninos da FEBEM ganha destaque.

Nessa movimentação surge uma proposta de atendimento aos

infratores, conforme aponta Cecília, “(...) muito em função das preocupações de

Dom Luciano Mendes de Almeida e da assistente social da FEBEM/SP, Ruth

Pistore, o atendimento aos infratores se inicia, através do programa Liberdade

Assistida Comunitária. Foi a partir do desenvolvimento desse trabalho que a

Pastoral do Menor de São Paulo (1979) é criada, dando inicio a outros trabalhos

da Igreja, como os Centros Educacionais Comunitários e o trabalho com os

meninos de rua.”

A ação da Pastoral junto à FEBEM/SP, naquele momento, foi

possível pela necessidade dessa Fundação de oferecer alternativas para a

solução dos diversos problemas levantados pela sociedade e pela Comissão Especial de Inquérito da Assembléia Legislativa -CEI quando da sua

instalação, em 1979, com o apoio do Movimento de Direitos Humanos e do

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Movimento de Defesa do Menor, para investigar as condições de vida dos

menores abandonados do Estado.

Foi a partir da instalação da CPI do Menor Abandonado na Câmara

do Deputados, das CEIs que o legislativo começa a incorporar as lutas demandadas pela sociedade civil no tocante aos direitos da criança. Essa

incorporação foi o ponto de partida para a definição do papel do parlamento nos

assuntos da infância, resultando na criação da Frente Nacional Parlamentar pela

Criança, por ocasião da elaboração e aprovação do Estatuto da Criança e do

Adolescente. A Frente tem, até os dias de hoje, participação decisiva nos assuntos

da infância, quer no legislativo, quer na opinião pública.

Nesse período, também, teve destaque a ação da Igreja Católica junto às crianças de rua, principalmente pela experiência da República do

Pequeno Vendedor, em Belém. Padre Bruno relata que: “(...) o Irmão Mesquita,

antes de iniciar o trabalho dos Salesianos em Belo Horizonte e o pessoal que

começava a Pastoral do Menor em São Paulo, foram a Belém para ver como era a

nossa experiência com os meninos de rua. Isso de alguma forma deu uma certa

visibilidade ao nosso trabalho, nós estávamos no fim do mundo, numa relação

bastante periférica com o resto do Brasil. A partir de 74, começamos a ficar mais

conhecidos, estivemos algumas vezes nas Semanas Ecumênicas realizadas pela

Pastoral do Menor, já na década de 80. Dessa forma, a nossa experiência foi

sendo mais debatida.”

Do ponto de vista dos agentes institucionais, Cecília relata que “(...)

a FEBEM/SP, nessa época, inicia um trabalho de abertura para a comunidade,

deixando claro que esta abertura não significava colocar o menino na comunidade,

mas sim, fazer com que a comunidade, de alguma forma, fosse para dentro da

FEBEM/SP; (... )a ação do Esquadrão da Morte, na perseguição a bandidos e

marginais na periferia da cidade, não isenta adolescentes e jovens saídos da

Febem. (...)Em 1978, eu era do Conselho da Febem e houve uma denúncia de

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assassinato de meninos da Febem na periferia. O jornalista Antônio Carlos Luppi, da Folha de São Paulo, exigiu pronunciamento da presidência da Febem, como também os movimentos populares em particular, o MDM. A

Febem acabou fazendo uma reunião pública para responder às denúncias. Foi

muito difícil, pois ela não conseguia prestar contas do que acontecia, na medida

em que ela só se responsabilizava pelos meninos enquanto estavam intra-muros.

Quando os meninos fugiam ou eram liberados, a Febem se eximia de toda e

qualquer responsabilidade. Não se acompanhava os meninos na comunidade.

Esta situação causou grande polêmica na audiência. Os técnicos da Febem

colocavam que os meninos que tinham sido mortos estavam foragidos ou tinham

sido colocados em liberdade. A reação do público presente foi de cobrança. (...)

‘Mas, então, ninguém se responsabiliza por esses meninos? Vocês só são

responsáveis enquanto eles estão aqui dentro? Então quem é que trabalha com

eles lá fora? O que se faz para garantir a vida deles, para garantir a inserção

social dos mesmos?’.”

Foi a partir de situações concretas como essas, que setores ligados

à infância vão adquirindo o status de movimento organizado na defesa dos direitos

da criança e do adolescente. Começa-se a desenhar a necessidade de uma nova

concepção de infância e não mais o menor como objeto de intervenção do Estado,

mas como pessoa a ser protegida pelo Estado e pela sociedade. Portanto, era

fundamental um novo desenho da política de atendimento.

Sobre essa necessidade, Padre Bruno relata que “(...) próximo aos anos 80 ocorreu a primeira manifestação dos meninos organizada durante a

preparação da festa do Círio de Nazaré, festa essa religiosa. Que eu saiba, aquela foi a primeira manifestação organizada de meninos no Brasil. Na

época do Círio, a política sempre fazia operação pente fino para tirar os meninos

das ruas. Eles se organizaram na Praça da Sé, em Belém, ao todo mais de

trezentos meninos, e foram em passeata até à frente do Palácio do Governo.

Escolheram uma comissão e foram recebidos pelo governador. Nós, como

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animadores de grupo, fomos junto, mas eles é que falaram. Disseram ao

governador: ‘não somos nós o lixo da cidade’. Foi a primeira vez, o primeiro fato

de que se tem noticia, no Brasil, de uma manifestação de meninos para garantir

sua própria dignidade.”

É a partir de 1975, já com uma série de experiências alternativas em

curso junto às comunidades, que se inicia uma fase no movimento social da

infância conhecida como denuncismo. Segundo Barbetta (1993), foi naquela

primeira etapa do movimento que “se incorporou uma reflexão crítica de ordem

educacional que se configurou numa proposta alternativa de atendimento ao

menor. Já se percebe uma grande proximidade entre as experiências alternativas

em curso e o movimento social, especialmente aqueles influenciados pela Igreja e

pelo movimento de educação libertadora.” Foi dessa atuação, em meados da

década de 75, que começa a ganhar corpo a idéia da “defesa jurídica dos

menores e a denúncia do modelo oficial (FUNABEM-FEBEM)” (Barbetta, 1993:

149).

Na busca de uma nova concepção de infância e de um novo

desenho das políticas, é interessante lembrar que entre 78-79, a experiência

desenvolvida pela República em Belém já anunciava os princípios da doutrina da

proteção integral. Padre Bruno assim trata a questão: “(...)nós já falávamos dos

meninos como sujeito de direitos. Esta terminologia começava a aparecer na

nossa prática. Não era muito clara no início, mas a verdade era que os meninos

participavam, eles decidiam as coisas junto conosco, pois isso era a marca da

República.”

Cecília lembra que a ação do MDM, na linha de defesa e denúncia é

histórica, pois as denúncias que se faziam “(...)não eram só contra a instituição

FEBEM, eram contra qualquer tipo de instituição fechada, foi uma época de

efervescência na condenação das instituições totais (...) a questão da criança

entra no bojo a questão da violência institucional. O MDM prioriza esse tipo de

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denúncia, o da violência contra os adolescentes institucionalizados, ao mesmo

tempo que inicia um trabalho de acolhimento de meninos de rua, nas

proximidades da PUC, onde o MDM se instala.”

Retomando o debate sobre a aplicação do Código de Menores de

1979, é bom lembrar a observação de Mendez (1991) ao dizer que o Código

apresentou, “(...) com algum ar de modernidade os velhos modelos do direito

assistencial-autoritário” (Mendez, 1991:38), representando a mais acabada obra

da doutrina da situação irregular. O depoimento de Sêda é esclarecedor a esse

respeito pois “(...)quando o Código de 79 foi aprovado eu trabalhava na

FUNABEM, no Instituto Padre Severino, no Rio de Janeiro. A lotação na época era

de 60 internos, em média, e em um mês e meio de vigência da lei, este número foi

para 600. Os Comissários de Menores faziam rifas, faziam concurso para ver

quem é que catava mais meninos na rua para levar para o Instituto, aplicando a

lei.” Segundo a avaliação de Sêda, o Código de Menores de 1979 foi bem

aplicado, porque “(...)ele mandava recolher, eles recolhiam e mandavam para a

FUNABEM, (...) o cumprimento legal destruía qualquer proposta/sistema

pedagógico.”

No tocante à interlocução do Estado com a Sociedade Civil, Sêda

lembra que, já em 1979, essa relação era muito difícil e que, acreditando nas

proposições desta, foi-se estreitando a relação com este setor da sociedade: “ (...)

cada vez mais a corrente da sociedade civil se mostrava forte e buscava mudar

essa ordem de coisas [doutrina da situação irregular]. Pois veja, muito antes do

ECA, já se tinha essas tentativas”.

Dado o impacto das ações do emergente MSDCA na questão da

defesa da infância, outros desafios apareceram no cotidiano das ações, como por

exemplo, as proposições de atendimento direto que vislumbrassem não mais o

menor nas grandes instituições, segregado, longe da família e da comunidade.

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Assim, em 1980, inicia-se o processo de articulação e aglutinação

dos sujeitos envolvidos com o processo de construção da proteção

integral ,através da realização do Seminário entre o Unicef, a SAS e as

comunidades que vinham realizando os chamados projetos alternativos de

enfrentamento às diretrizes oficiais. Participaram desse evento aproximadamente

70 experiências e, dentre elas, tiveram destaque as do CESAM de Belo

Horizonte/MG, da República do Pequeno Vendedor de Belém/PA, a Cerâmica

Educacional Boa Nova/GO, o Salão de Encontro de Betim de Betim/MG e o

COSEMT de São José dos Campos/SP. Desse Seminário nasce o Projeto Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua. Conforme relata Padre

Bruno, “(...)eles propuseram um projeto de caráter institucional, mas nós viramos a

mesa. Ficou decidido que o projeto teria como finalidade proporcionar o

intercâmbio, fortalecendo e estimulando o surgimento de outras experiências a

partir da nossa prática. Isso possibilitou realmente um intercâmbio de educadores,

pois foram propiciados estágios e realizados seminários em vários lugares do

Brasil. Isso criou realmente uma rede, não só para quem já estava trabalhando,

mas ajudou e estimulou o surgimento de outras experiências.” Essa estratégia

possibilitou o não enquadramento dos participantes numa nova proposta política, e

a aglutinação dos mesmos na construção de uma nova postura político-

pedagógica de ver e tratar as crianças e adolescentes.

O projeto de intercâmbio e troca de experiência durou quatro anos

“(...)e possibilitou o aprimoramento e a consolidação de uma proposta pedagógica

de atendimento de meninos na comunidade (...) propiciou uma relação entre os

educadores no nível nacional e, ainda, a organização dos meninos, idéia que foi

ganhando maior consistência no nível macro (...). Isso acabou ganhando corpo e a

nova postura e a nova concepção de atendimento aos meninos começaram a

fazer parte da construção de uma política pública diferente. É aí que entra o

alternativo com o alterativo” (Padre Bruno).

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Assim, em vários pontos do país, começou o debate de como deveria

se dar a organização dos meninos no nível macro, ou seja, “(...)não uma

organização de base isolada, de participação numa experiência localizada, pois

ela precisava ganhar uma dimensão enquanto categoria de classe [enquanto

segmento social]. Foi aí que o trabalho se abriu para outros meninos, se abriu

para a sociedade e, assim, passou a fazer parte do movimento mais amplo, do

movimento popular, mas diferente da organização dos adultos. Esse aspecto

sempre foi o nó da organização dos meninos, embora eu considere que ele foi

bem trabalhado, mas ainda existe a questão do fato deles serem meninos e

meninas” (Padre Bruno).

O MSDCA teve impacto à medida em que houve a agudização dos

problemas sociais e econômicos e os movimentos sociais, como um todo, se

mobilizaram na busca de respostas a essas questões. A área da criança, realizou

vários encontros, seminários, debates sobre a questão dos direitos da infanto-

adolescência e essa ação ganhou corpo com o processo de redemocratização da

vida política nacional, colocando a criança como preocupação política. Foi nesse

momento que o debate menor caso de polícia para menor caso de política foi

retomado. A realização de uma pesquisa de opinião pública45, em 1982, por

ocasião das eleições diretas para governadores de Estado, levantou a questão do

menor abandonado como a primeira preocupação dos paulistanos.

A conjuntura política era favorável ao acirramento das contradições

no campo dos direitos da pessoa humana, dado o processo eleitoral e de

distensão política. Foi nesse momento que os partidos políticos começaram a incluir em seus programas de governo a questão da infância enquanto direitos. As principais propostas passavam pelo fim das instituições totais, pela

revisão das diretrizes dos órgãos responsáveis pelo atendimento ao menor e pelo

envolvimento da comunidade nos destinos da política para esse segmento.

45 Pesquisa de opinião, realizada em 1981, pelo MDB, para elaboração de seu plano de governo.

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Com a vitória da oposição sobre os governos dos principais Estados

da Federação começaram a ser realizados programas de atendimento com forte

componente comunitário. As instituições totais tiveram de adequar-se à proposta

de abertura à participação popular e, assim, deu-se início ao processo de

desinstitucionalização dos menores das FEBEMs, principalmente daqueles que

tinham algum tipo de vínculo familiar e comunitário. Uma nova linha de convênios

foi instituída entre a FUNABEM, FEBEMs e as comunidades. Com a vitória da

oposição foi possível iniciar os debates sobre as responsabilidades dos executivos

municipais na área da infância e muitos convênios foram firmados, já trazendo a

questão da municipalização da política de atendimento.

A discussão nesse período foi profunda, porque já se colocava,

quando do estabelecimento de convênios e apoio às propostas, a questão da

concepção de infância, de método e de gestão das políticas. Sobre esta questão

assim expressa Cecília: “(...)a filosofia introduzida com a democratização do

Estado, em 1983, levou para dentro dele o que a sociedade já vinha expressando

há décadas, transformando essas preocupações em linhas programáticas de suas

instituições. Isso era inegável pelas respostas sociais que os governos deram.

Mas cabe lembrar que essas ações eram de responsabilidade de parte das

instituições públicas e não do governo como um todo.”

O impacto dessa movimentação foi que alguns sistemas oficiais de

atendimento (FEBEMs) começaram por fazer a revisão de suas diretrizes, no

âmbito da violência institucional, das péssimas condições de atendimento, da

falência das instituições totais (da massificação do atendimento), da

descentralização de alguns programas para os municípios e do apoio aos projetos

alternativos. Como exemplos, temos as FEBEMs de São Paulo, Minas Gerais,

Pernambuco e Rio Grande do Sul. Todo esse processo de construção das

diretrizes pela conjuntura política mais favorável à participação da sociedade

(governos democraticamente eleitos), obrigou que os responsáveis pela realização

da PNBEM debatessem estas questões junto aos funcionários, às entidades e aos

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movimentos, cabendo destaque as ações realizadas na FEBEM/SP, pelas

presidentes Maria Cecília Ziliotto e Maria Ignês Bierrembach e em Minas Gerais,

por Antônio Carlos Gomes da Costa.

Dado o papel ocupado pelo MSDCA em São Paulo, foi possível no

Governo Montoro a construção de dois espaços para o debate das questões da

infância: um, o Programa do Menor (1984), que instituía ações programáticas

entre as diversas áreas das políticas sociais governamentais e não-

governamentais para a melhoria do atendimento. Este programa tinha um

Conselho de Representantes, formado por representantes do governo e da

sociedade civil. Outro, na área da Assistência Social, chamado Fórum de Debates

SEPS/FEBEM (1985), que objetivava a integração da política de assistência

promovida pelos dois órgãos, FEBEM e Secretaria Estadual de Promoção Social.

A novidade desse Fórum consistiu no fato da articulação e coordenação ser feita

por funcionários dessas duas instâncias de governo. Essas duas ações também

foram precursoras na definição da atual concepção de infância, no desenho da

política e da gestão e da abertura a participação popular.

No Rio de Janeiro, uma outra movimentação em torno da questão do

menor foi a criação da ASSEAF-Associação dos Ex-Alunos da FUNABEM pelos

próprios ex-internos da Fundação. O surgimento da ASSEAF se deu pela

conscientização dos ex-internos na falta do acompanhamento, pela Fundação,

daqueles que se desligavam ou eram desligados da instituição. A criação dessa

associação causou impacto na época, tanto assim que a sua direção participou de

várias articulações e debates acerca da infância. Teve ampliada, através de suas

ações, a aproximação com o movimento negro no Rio de Janeiro. Dessa

aproximação nasceu uma outra entidade especializada no debate e estudo da

exclusão social, da defesa dos negros e da defesa jurídico-social de crianças e

adolescentes, o CEAP – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas.

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Ivanir dos Santos assim trata desse processo de construção da

ASSEAF: “(...)a nossa relação foi um pouco conflituosa com outros movimentos,

porque, na condição de ex-internos, alguns achavam que poderiam nos dirigir.

Cada um queria colocar o seu projeto. Ninguém entendia que nós poderíamos ter

um projeto próprio. Na época, não tínhamos muita clareza de qual projeto

era ,mas a gente já o estava construindo (...) O conflito também se estabelecia, e

é obvio que hoje eu compreendo melhor, porque não tínhamos nenhuma

organização política conferindo a nós legitimidade. Em muitos momentos,

começamos a ser execrados por alguns segmentos. Mas a Associação foi

crescendo. No início, ela tinha uma preocupação imediata, que era a de arrumar

emprego para os ex-alunos. Até conseguimos alguns, mas depois eles foram

escasseando. Também fazíamos serviço jurídico de acompanhamento aos ex-

alunos que eram presos. Esse trabalho foi mostrando que não dava para ficar

trabalhando a questão do ex-aluno, sem entender a questão chamada menor. Foi

aí que começamos a entender que a sociedade tinha dois tipos de criança: o

menor e a criança. Essa foi a primeira vez que percebi a existência desse discurso

diferenciado na sociedade brasileira.”

Algumas questões polêmicas que permeavam a relação da ASSEAF

com outras entidades eram, segundo Ivanir dos Santos, decorrentes de sua

própria composição, envolvendo ex-internos da FUNABEM e educados dentro dos

parâmetros da doutrina da situação irregular sob os ditames da Lei de Segurança

Nacional. Outra questão era a forma com que se dava a inserção na sociedade,

muitas vezes pela inclusão nos quadros das forças armadas ou na própria

instituição. Tal inserção só era possível porque grande parte dos ex-internos eram

da Escola XV, escola esta que se diferenciava das demais escolas da Fundação,

uma vez que representava a vitrine do Sistema.

Um dos eventos importantes da ASSEAF foi a realização, no início

de 1984, “(...)de uma Passeata-Ato Público, em que pleiteávamos o direito da

criança em ser criança e não menor, uma figura jurídica. (...) Nesta manifestação

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tínhamos mais cartazes e imprensa do que manifestantes. Cada três pessoas

seguravam duas faixas. Até cartazes escritos ‘Pátria Amada’ tínhamos. Andamos

a Avenida Rio Branco toda, pedindo respeito ao direito das crianças. Essa

passeata teve uma grande repercussão na época e, pelo que eu conheço, essa foi

a primeira manifestação pública de rua que falava dos direitos da criança. Essa

ação custou a minha demissão, enquanto funcionário da instituição.”

Dentro desse período de efervescência do MSDCA, de mobilização e

realizações de programas descentralizados, alternativos, comunitários, houve uma

diversidade de propostas e de atitudes sobre o modo de realizar o atendimento.

Uma coisa era sabida: os programas deveriam ser em meio aberto,

descentralizados nos municípios e comunitários. Sêda chama a nossa atenção

para o fato de que muitos desses programas que foram descentralizados

continuavam com o controle centralizado da instituição, afirmando que: “(...)esse

aberto era só porque estava fora do intra-muros da instituição, mas era, em sua

concepção e realização cotidiana, um verdadeiro internato. (...) Descentralizar é

dar poder à comunidade para ela controlar as ações. Isso fazia-se naquela época.

Hoje, o Estatuto é que estabelece isso.”

Podemos depreender do período 1980-1985 uma mobilização de

vários grupos voltados especialmente para o debate da questão da doutrina da

proteção integral, em substituição à norma vigente amparada na doutrina da

situação irregular. Os eventos já traziam expressões tais como crianças

adolescentes, meninos e meninas, direitos, cidadãos, cidadania, sujeitos de

direitos, numa clara intenção de necessidade de mudanças no plano legal e

institucional. Uma outra figura emergente nesse período foi o educador de rua e

essa presença no cenário das cidades, principalmente dos grandes centros

urbanos alterou a lógica instituída, ou seja, deu um novo trato à criança pela

política de atendimento. Tudo isso contribuiu para a visibilidade da política de

atendimento com novos parâmetros.

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A conjunção desses fatores e a capacidade organizativa dos próprios

meninos de rua levou, em 1985, à realização do I Encontro Nacional de Grupos

Locais, possibilitando a organização de grupos locais no nível estadual e nacional,

constituindo-se, assim, na Assembléia de Criação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.

Barbetta (1993) analisa o impacto social do MSDCA ao “(...) fazer

com que os fatos do cotidiano dos menores deixassem de ser apenas fatos

‘corriqueiros’ (uma morte a mais que só o educador tomava conhecimento) e se

configurassem em acontecimentos politicamente significativos, ou seja,

possibilitou que os fatos adquirissem um sentido especial para toda a sociedade,

para a comunidade internacional e para os próprios menores. Foi se formando

uma nova atitude, mais solidária, mais política e mais comprometida com a

transformação imediata das condições de vida da criança e do adolescente

menorizado.” (Barbetta, 1993:150)

Em 1986, acontece o primeiro Encontro Nacional de Meninos e

Meninas de Rua no Brasil. A importância desse encontro reside na ruptura entre

as formas de organização popular sobre os direitos da infância. Deu-se voz e

decisão aos próprios meninos e meninas, em nível nacional. Essa abertura vinha

sendo vivenciada pelas experiências alternativas, principalmente a da República

do Pequeno Vendedor de Belém, desde 1970. Esse evento ganhou visibilidade

também no plano internacional. Cabe salientar que os próprios meninos decidiram

(e decidem ainda hoje) o temário, o tipo de metodologia, as proposições e as

estratégias de ação de suas proposições. Paralelamente à direção nacional da

entidade, eles demonstraram ter sua própria direção, participando de igual para

igual na tomada de decisões. Esse fato levou as entidades governamentais e não-

governamentais que definiam a política de atendimento aos menores de idade a

perceber o reflexo dessa nova idéia e concepção de trabalho com esses meninos.

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As ações da Frente Nacional dos Direitos da Criança (1985), da

Comissão Nacional Criança-Constituinte (1986) e do Fórum Nacional Permanente

de Entidade não-governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do

Adolescente (1988), guardadas as diferenças no modo de ver e tratar a infância,

participaram de todo o processo convocado pela Assembléia Nacional

Constituinte, mobilizando a sociedade, encaminhando propostas e elaborando

documentos sobre os direitos da criança e o desenho da política relativa à

questão.

Das principais articulações surgidas à época, o Fórum Nacional DCA

foi a que deu a marca na definição da concepção de crianças e do desenho da

política pública. Estava em jogo, naquele momento histórico, a ruptura com os

princípios fundantes da doutrina da situação irregular, através do estabelecimento

da doutrina da proteção integral. A UNICEF deu apoio destacado às ações do

Fórum Nacional DCA.

O processo de negociação das propostas encaminhadas à

Assembléia Nacional Constituinte exigia várias formas de intervenção do MSDCA:

desde lobby junto ao parlamento, realização de eventos, até a coleta de

assinaturas para subscritar a Emenda Popular que propugnava a criança enquanto sujeito de direitos e prioridade absoluta das políticas públicas.

Sobre essa movimentação, Cecília comenta: “(...)com a Constituinte,

teve início uma grande articulação social que deu corpo à criação do Fórum

Nacional DCA. Este Fórum conseguiu congregar forças sociais representantes de

entidades de capilaridade nacional na busca da incorporação, pela Assembléia

Constituinte, de uma proposta relativa aos direitos de crianças e adolescentes. As

ações desse Fórum encontraram amparo nas articulações estaduais e municipais

ligadas ao movimento social.”

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Ela lembra que, já em 1986, no Estado de São Paulo, foi realizado o

Encontro Menor e Constituinte patrocinado pelo Governo Montoro para se debater

os direitos da criança. “(...) Desse encontro resultou a Carta de São Paulo, em

que foram consignados quais os direitos que deveriam estar presentes na

Constituição. O combate à violência institucional foi a marca desse evento.”

Segundo Ivanir dos Santos, a participação da sociedade no processo

constituinte foi fundamental para o debate das questões da infância e ainda para a

criação de uma articulação nova, de âmbito nacional que congregasse o novo

pensamento sobre a concepção e a política de atendimento. Ivanir assim relata:

“(...) começamos nesse período a fazer crítica às políticas compensatórias

existentes. Enquanto ASSEAF, participamos do Fórum DCA, (...) por essa época.

Em plena Constituinte, o CEAP divulga o primeiro relatório que tratava do

extermínio de crianças e adolescentes no Brasil. Isso criou um impacto nacional e

internacional muito grande. Lançamos a campanha ‘Não matem nossas crianças’,

que teve adesão popular sem precedentes na história do movimento da infância.

(...) A realização e divulgação da pesquisa, a exposição de fotografias na Europa,

retratando a violência contra crianças no Brasil, repercutiram positivamente no

imaginário social e coletivo, em particular, no parlamento.”

Sobre esse processo de mobilização, Padre Bruno destaca: “(...)a

mobilização pelos direitos da criança na Constituição não se limitou ao MNMMR e

nem à Pastoral do Menor. Foi um movimento mais amplo. Surgiu o Fórum e é

importante dizer que as questões relativas à criança e ao adolescente que sempre

ficaram à margem dos movimentos populares, dos movimentos de trabalhadores e

dos sindicatos, ganhou espaço dentro desses movimentos. (...) Nesse período,

tivemos um significativo avanço na organização social no campo da infância. De

qualquer forma, cabe lembrar que o movimento amplo da criança e do

adolescente nunca foi homogêneo (...) por isso é um movimento rico.”

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Após a vitória da Emenda Popular que deu origem ao artigo 227 na

Constituição Federal, que estabeleceu que criança é sujeito de direitos, retoma-

se a mobilização nacional para o processo de elaboração da regulamentação

deste artigo, ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Vencida essa primeira parte da batalha, inicia-se a elaboração das

Constituições Estaduais. O Fórum Nacional DCA (1988), estrategicamente,

insere, nesse processo, ações facilitadoras para a elaboração do Estatuto. Foram

criados fóruns estaduais, municipais, grupos de estudos, grupos de crianças para

se debater os direitos e substituir o Código de Menores de 1979 e a PNBEM.

Nesse sentido, a elaboração do Estatuto foi aberta à participação popular e não

mais a um grupo de pessoas ligadas a um poder ou outro.

Para facilitar o debate e a sistematização das contribuições foi

constituída uma Comissão de Redação do Estatuto, coordenada pelo Fórum

Nacional DCA. Dessa comissão participaram pessoas representantes e

especialistas das variadas áreas do conhecimento e de intervenção social.

Padre Bruno assim vê esse processo: “(...)Eu acho que com o

Estatuto aconteceu um ‘negócio’ interessante, diferente de qualquer outro

processo de construção da lei, porque na verdade a luta pelo Estatuto continua. E

isso é que eu considero significativo, porque não foi somente a luta pela

formulação e aprovação do ECA, mas foi a luta pela constituição dos Conselhos

de Direitos e Tutelares.”

Ainda sobre esse processo de participação Cecília lembra que havia

uma demarcação clara dos espaços de discussão e encaminhamento das

propostas: “(...)o Fórum Nacional DCA congregava o setor da sociedade civil, o

que impedia a participação, no seu interior, de representantes de órgãos públicos.

Nós, muitas vezes, éramos chamados a participar na condição de convidados.

Observando essa trajetória, vejo que já se tinha claro uma separação entre Estado

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e Sociedade Civil [público e privado], e a sociedade civil ia definindo o seu papel.

O Estado não sabia bem o que estava fazendo e não sabia qual era o papel do

governo naquele momento histórico.”

A realização do II Encontro de Meninos e Meninas de Rua teve um

marco significativo na aprovação do ECA, ao se constituir num verdadeiro lobby

da própria meninada pela aprovação do seu Estatuto, indo para a mídia, para o

congresso, fazendo a votação simbólica e chamando os candidatos à Presidência

da República (Lula, Covas e Gabeira) para participarem desta votação. Este fato

tornou-se o grande acontecimento político nacional, ganhando, inclusive, destaque

internacional. (Barbetta, 1993: 155-156)

O resultado dessa mobilização foi a aprovação do Estatuto no

Congresso Nacional e sua sanção em 1990 pela Presidência da República.

A trajetória do MSDCA no período de 1985-1990 indica que a

mobilização empreendida mudou o caráter da participação popular: de denuncista,

reivindicativa, passa para a combinação das ações denúncia/reivindicação e

proposição. A sociedade civil articulada nas demandas do Fórum Nacional DCA

soube responder com ações afirmativas ao processo de construção de uma nova

concepção de criança e adolescente e, ao mesmo tempo, propor o desenho da

política de atenção a esse segmento consubstanciada nos princípios da doutrina

da proteção integral, conforme estabelecem as Convenções e Normativas

internacionais sobre o direito da infância.

O engajamento na busca de uma causa exigiu do MSDCA, na figura

do Fórum Nacional DCA, que empreendesse “(...) táticas no sentido de aglutinar

apoios éticos e estratégicos (grifo nosso), ampliando dessa maneira sua base

social (...) trata-se de movimento(s) portador(es) de valores universais que

ultrapassam as fronteiras de classe, sexo, raça, idade, cultura, pois a criança e o

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adolescente tem o potencial de incorporação associado à toda a humanidade.

Está diretamente ligado às possibilidades de um futuro” (Barbetta, 1993: 156-159).

Por fim, no sentido da efetivação prática do Estatuto, implementada a

partir de 90, Padre Bruno esclarece que hoje ”(...)vivemos numa outra conjuntura e

as práticas não podem ser as mesmas de ontem. Precisamos de uma maior

competência para esse momento novo. Nós tivemos níveis de competências para

outros momentos. Eu não sou otimista, nem pessimista, isto é, eu vejo que

estamos dando continuidade a um processo de efetivação dos princípios do

Estatuto e que vai levar tempo (...). Não me iludo, a realidade de hoje me deixa

extremamente preocupado, pois estamos vivendo quase que um retrocesso em

alguns aspectos (...). Não podemos descolar a questão da criança da questão da

reforma agrária, da reforma urbana, da política de emprego e renda. É nesta

direção que vai a minha preocupação (...) não podemos deixar à sombra aquilo que é a base do Estatuto, ou seja, a garantia de políticas básicas (...) não

vivemos um momento de derrota, até porque a constituição dos Conselhos é uma

ampliação do nosso poder de participação e construção de nossa autonomia. Eles

apresentam muita variedade, muita diversidade.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esclarecer o papel do Movimento Social de Defesa dos Direitos da

Criança e do Adolescente - MSDCA, no período anterior à aprovação da doutrina

da proteção integral, estabelecida na Lei 8069/90, exigiu observar o lugar que a

infância ocupou em distintos momentos da história da humanidade e especificar

esse lugar na sociedade brasileira. Para análise procurei utilizar múltiplas lentes,

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focando os diversos espaços ocupados pela infanto-adolescência, no período

privilegiado de análise (1975-1990).

A infância tem lugar e papel definido na sociedade ocidental após a

revolução industrial. No entanto, esse processo de diferenciação do olhar sobre a

infância ainda traz muitas referências do universo dos adultos. Apesar de

estarmos quase às portas do século XXI, a influência desse modo antigo de olhar

e tratar a infância ainda permanece.

Neste estudo tive por objeto a análise da trajetória do MSDCA num

período de efervescente debate, organização e mobilização social em torno das

liberdades democráticas, direitos e cidadania. Porém, a análise estendeu-se aos

anos 60, por considerar importante dissertar sobre a mobilização da sociedade

para a implantação da Política Nacional de Bem-Estar do Menor (1964) e dada a

atuação de alguns dos interlocutores, selecionados para balizar o estudo,

remontar àquele período.

O principal eixo do MSDCA foi a concepção de criança-sujeito de

direitos. Daí a luta do MSDCA na ruptura com a concepção e trato à infância

vigente até 1990, consubstanciada nos princípios da doutrina da situação irregular,

aquela que considerava crianças e adolescentes enquanto categoria menorizada.

Verifiquei durante o estudo alguns aspectos importantes na

construção da doutrina da proteção integral.

1. A exacerbação da situação de rua de crianças e adolescentes e o desvelar das

instituições totais é que desencadeou a ação da sociedade civil para a

resolução do problema. As questões até então tratadas dentro do âmbito do

privado – família e instituição – ganharam uma dimensão pública exigindo a

ação das famílias, da sociedade e do Estado. As experiências alternativas ao

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modelo oficial, já no início da década de 70, indicaram uma nova proposta de

atendimento dos conflitos sociais considerando crianças e adolescentes pelo

que eram, pelo que sabiam, pelo que tinham e pelo que eram capazes. O

MSDCA – Fórum Nacional DCA, cumpriu o papel fundamental de aglutinar

esses sujeitos individuais e coletivos pela conquista dos direitos de crianças e

adolescentes.

2. A evolução da doutrina da situação irregular para a doutrina da proteção integral

tem como uma de suas fontes a crise da Justiça de Menores e do Direito do

Menor, gestada nas experiências alternativas de atendimento. A ação de parte

dos agentes institucionais, dos usuários, dos movimentos de defesa, e das

entidades sociais que propunham um atendimento alternativo esbarravam no

poder discricionário do Juiz. Este impasse exigiu o direcionamento da ação

desses sujeitos para a alteração da legislação de menores. Assim, entrou em

cena, na área da infância, um novo sujeito, o Poder Legislativo, articulado pelo

MSDCA – Fórum Nacional DCA.

3. A infância ganha status de maioridade com a aprovação e promulgação do

Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, lei que complementa o conceito

já estabelecido de criança-sujeito de direitos no artigo 227, da Constituição

Federal de 1988. A partir desse momento, no plano legal, passa a vigorar o

princípio da doutrina da proteção integral, o que implica na possibilidade do

exercício da cidadania de crianças, desde a tenra idade. O arcabouço legal

vigente marca a mudança de paradigma na concepção e trato à infância ao

inverter a questão paradigma das necessidades para paradigma dos direitos.

Essa mudança de paradigma indica o avanço da condição do ser criança até

então aceito pelas sociedades, como também demonstra o amadurecimento

das proposições do MSDCA no tocante à sua luta, ou seja, do alternativo ao

alterativo.

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4. O momento presente impõe a tarefa de realização de políticas públicas voltadas

ao exercício da cidadania de crianças que, necessariamente, diminua a

distância entre o plano legal e o plano real. A concretização de políticas

consoantes ao direito das crianças e adolescentes decorrentes do atual

ordenamento institucional (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do

Adolescente, Lei Orgânica da Assistência Social, Lei de Diretrizes e Bases da

Educação, entre outras) e das prioridades estabelecidas nos planos de ação

das instâncias definidoras de políticas (os Conselhos) é imperiosa para a

superação do trato assistencialista-repressor que ainda persiste nas diversas

instâncias de execução da política de atendimento.

5. A possibilidade do direito de ter direito pela criança brasileira supõe ainda, a

superação do estigma presente em parte da sociedade quanto à criança das

camadas populares. Permanece o conceito de delinqüente, abandonado e

carente que marcou a trajetória da atenção institucional. Assim, o debate das

questões relativas a criança deve buscar a superação desse estigma e o

entendimento da sociedade brasileira sobre o direito de ter direitos. Para o

MSDCA, a cidadania não pode ser enfocada apenas do ponto de vista legal

e/ou teórico, i.e., de forma abstrata, distanciada da realidade concreta, em que

seu conceito é construído por um conjunto de direitos legítimos, conquistados,

e, portanto, não naturais. A percepção de sua ausência e a luta por sua

presença é que tem movido o MSDCA na efetivação desses direitos no

cotidiano de crianças e adolescentes e na própria politização desse cotidiano.

Com o aparecimento, na metade deste século, dos direitos de terceira geração,

conjunto de interesses coletivos e juridicamente legitimados que abriga o

interesse pelos direitos da infância, a sociedade tem em suas mãos o poder

para efetivar a superação da condição de menor, dada à criança, para levá-la

ao status de cidadã.

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O atual ordenamento estabelece a garantia de políticas sociais

básicas como direito de todo o segmento criança-adolescente, universalizando as

oportunidades para o exercício da cidadania desse grupo etário ao longo de sua

vida. Este arcabouço legal deve ser visto enquanto contribuição ao debate

ideológico sobre os direitos da criança e ainda “como um aparato legal estratégico,

que acena não para uma realidade consolidada, mas para um processo de criação

de condições necessárias para a garantia e respeito dos direitos das crianças e

adolescentes” (Pereira Jr., 1992:22).

“Sin un fuerte movimiento social que tenga sus raíces en la

sociedad civil no hay una chance para una efectiva

implementación de los princípios y las normas de la

Convención en la legislación, pero sobre todo en la praxis

administrativa y judicial de los estados.”( Baratta, 1995:45)

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