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INTRODUÇÃO
A sociedade moderna foi modelada pelos homens servindo-se do Direito para se
organizar. Já o Direito, ao menos no estágio atual de nossa civilização, pressupõe a
existência ainda do Poder Legislativo, como órgão elaborador principal da produção
normativa. Ao mesmo tempo, no Estado Democrático de Direito, a própria ordem
jurídica impõe limites à atuação dos poderes instituídos, definindo seus direitos e
obrigações1.
Firmada basicamente sobre tais estruturas, com algumas variações mundo a
fora, a nossa sociedade contemporânea, constantemente em mutação de valores, já
não desfruta da certeza dessa concepção como forma adequada para solucionar os
seus conflitos no âmbito do Poder Judiciário. Não – ao menos na concepção rígida
de separação dos poderes instituída por John Locke, no século XVII e formatada no
século seguinte por Montesquieu. Atualmente, a doutrina passa a discutir a
necessidade de elaboração de uma concepção nova de cultura política capaz de
racionalizar de forma mais eficaz a aplicação do Direito.
Dois aspectos, por exemplo, dão dimensão ingente a essa questão: um está no
fato de que “ao legislador é praticamente impossível prever todas as hipóteses de
aplicação das leis, quer por limitações de ordem técnica, quer por nuanças de ordem
pública” 2; outro é que, para acompanhar a evolução da sociedade, sem ter que vir a
alterar constantemente a norma legislada, foram multiplicadas pelo Poder Legislativo
as situações de amplitude e indeterminação dos textos legais.
Não por menos, tais fatos passaram a exigir dos magistrados postura diversa da
que eram costumeiramente chamados a tomar perante os conflitos, tanto que “a
esfera judicial vem apresentando cada vez maior articulação com a esfera política,
1 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 31 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 129.
2 D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito. Revista do Tribunal Regional Federal da
1ª Região. Brasília, v.13, n. 7, p. 15-27, jul./2001, p. 19.
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originando um intenso debate sobre o alcance e possibilidades dessas conexões” 3,
haja vista um acentuado crescimento do papel do Estado, em especial na área
social, redundando na criação, por via legislativa, de inúmeros direitos sociais, os
quais têm exigido permanente ação do Estado para sua implementação4.
Mas não é só. No âmbito da iniciativa privada, em que se observa uma dinâmica
social intensa, com novas fórmulas de negócios jurídicos surgindo a cada dia,
também o Poder Judiciário tem despendido um esforço interpretativo intenso no
sentido de adequar as normas existentes a situações conflituosas totalmente
inéditas5. Assim, a atividade judicial na forma concebida nos séculos passados,
porque já não mais responde aos anseios sociais na plenitude, necessita de uma
adequação à contemporaneidade, para que possa resguardar os direitos dos
cidadãos, dirimindo os conflitos com a efetividade que o ordenamento jurídico
moderno impõe.
Esse novo instigante e cenário impõe ao juiz a criação do direito na medida do
caso concreto posto à sua apreciação. Mas seja feita a ressalva: a doutrina ainda
não chega a dizer com fervor se as circunstâncias contextuais já autorizam o
magistrado a criar a norma jurídica em oposição clara ao texto legislado. Confere-
lhe, apenas, a opção para extrapolar os estritos limites da lei em sentido formal,
quando necessária tal postura diante do caso concreto. É nesse propósito que se
discute o ativismo judicial e a politização do Direito – ou a juridicização da Política –
como binômios efetivamente atuais na agenda dos debates no âmbito da filosofia do
direito6.
Nesse contexto sociopolítico, o tema da criação judicial do direito redunda em
debate fértil na doutrina, mormente quando não se desconhece que a temática traz
no seu bojo questões ainda não completamente dirimidas. Podem ser citados como
exemplos dessa aflição os seguintes questionamentos: a criação judicial é legítima?
Ou: qual seria a origem da legitimação de referido procedimento? E mais: ainda se
pode falar, nos dias atuais, que a criação judicial do direito afronta o princípio da
3 MONTEIRO, Cláudia Sevilha. A racionalidade da decisão judicial política. Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 96, p. 191-217, jul./dez. 2007, p. 193. 4 D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito.... ob. cit., p. 19.
5 MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 18. 6 MONTEIRO, Cláudia Servilha. A racionalidade da decisão judicial política.... ob. cit., p.194.
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separação dos Poderes? Além de tudo, qual a influência da criação judicial do direito
na eterna polêmica entre dois aspectos filosóficos que, aparentemente, são
antagônicos: a segurança e a justiça?
Tais questões serão abordadas na primeira parte deste estudo – embora longe
de se pretender o esgotamento do tema – mas sempre com o foco no papel que a
atividade judicial hoje tem nesse cenário de crise contemporânea, motivada pelo
inconformismo que a sociedade demonstra com as estruturas predominantemente
montadas há séculos para a realização do direito.
Já na segunda parte do trabalho, a pretensão é demonstrar como os temas
acima delineados têm contribuído para esquentar o debate sobre a crise da teoria
das fontes do direito. Nos dias atuais, ainda se discute se a jurisprudência é fonte ou
não do direito. Antes de se chegar ao final do segundo capítulo, serão analisados
alguns outros temas que sugerimos como influxos dessa polêmica. Exemplo: tomou-
se por partida o processo de codificação. Os demais processos – descodificação,
microssistemas e a recodificação do direito – foram igualmente analisados, bem
como suas consequências e derivativos.
No que diz respeito à elaboração dos textos normativos, sabe-se que o Poder
Legislativo tem atualmente abusado das cláusulas gerais e conceitos
indeterminados, demonstrando uma postura clara de permitir uma flexibilização da
atuação do juiz na produção jurisdicional, em prol de uma melhor difusão do
sentimento de justiça na sociedade. Essa utilização maciça, pelo legislador, de
cláusulas gerais, foi observada como fator preponderantemente ligado à importância
que o precedente passou a ter na fundamentação da decisão judicial.
No último estágio do capítulo, ainda que de forma superficial, tratou-se de
apontar como a reestruturação do nosso sistema recursal tem apresentado um viés
diferenciado do de outrora. A intenção básica das reformas processuais levadas a
efeito não é apenas aperfeiçoar a forma de acesso ao segundo grau, por conta de
uma natural irresignação do ser humano7.
7 Melhor explicando: a principal – ou a natural – razão de ser dos recursos sempre foi o de pacificar o
inconformismo do ser humano. Nas palavras de Marinoni, a irresignação quanto ao teor de uma sentença proferida por um magistrado “é algo bastante natural, e, por isso mesmo, os sistemas processuais normalmente apresentam formas de impugnação das decisões judiciais, autorizando a
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Além dessa principal razão, o sistema recursal também foi estruturado como
um mecanismo de controle de erros. Não era só a insatisfação do jurisdicionado
contra a tese escolhida pelo magistrado na solução do caso concreto que se tornou
a razão de ser da existência dos recursos, foi também o socorro daquelas situações
onde havia defeito claro na prestação jurisdicional. Como qualquer pessoa, o
julgador pode cometer equívocos, sendo necessário que o ordenamento jurídico
apresente mecanismos de controle próprios e eficazes a fim de dar solução também
a esses indesejáveis desacertos.
Todavia, acontece que a objetivação para que os juízes promovam decisões
mais justas tem gerado um efeito obstativo do sucesso de outro anseio do
jurisdicionado que é a obtenção de respostas judiciais céleres para as suas lides. Na
prática judiciária é que se verifica o quanto é difícil obter, de maneira rápida,
decisões boas e bem fundamentadas quando o magistrado está diante da aplicação
de uma cláusula geral, por exemplo.
Não raro, quando boas, as decisões demoram a vir. E quando são rápidas,
geralmente pecam na consistência da fundamentação8.
Compatibilizar esses dois objetivos não tem sido tarefa das mais fáceis para
os que fazem o Poder Judiciário. O primeiro objetivo (a fundamentação precisa)
exige do julgador tempo e apuro no seu ofício, enquanto o segundo (celeridade)
impede que o próprio magistrado crie um filtro natural em relação ao primeiro, que
terá que ser feito irremediavelmente pelo segundo grau. Eis aí um paradoxo: uma
vez que a garantia constitucional de acesso ao Judiciário exige que as portas dos
tribunais estejam escancaradas no seu piso inferior, enquanto no andar de cima o
revisão dos atos judiciais”. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 541. 8 Vários juristas demonstram preocupações próximas com as colocações postas acima. Como
exemplo, Rui Portanova e Ari Pargendler expõem, respectivamente, o seguinte: 1)“Seja como for, não parece próxima a solução do debate em torno do que seja melhor para o sistema processual: o risco de decisões irrecorríveis, porém céleres e com maior proximidade entre o julgador e a parte; ou o risco de decisões com julgadores distantes (no tempo e no espaço) das partes, mas resguardado o direito natural de inconformidade do prejudicado”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 7. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 263. 2) “Há uma tensão muito grande entre qualidade e efetividade. Se você quer um Judiciário com
qualidade, perde em rapidez. Se você quer apenas rapidez, então a gente faz como em alguns países onde primeiro se corta a mão de depois vê se a pessoa furtou ou não”. <http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=24236>. Acesso em 05.07.2011.
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ajuste é para que a serventia se afigure sovina, sob pena da justiça demorar
demasiadamente para ser ofertada a quem de fato a merece.
Tal fato é fácil de verificar pela forma como o legislador elaborou a estrutura
vertical dos direitos. Isto é, para a variedade de direitos ele pretendeu fosse
correspondente um número de ações (p. ex., art. 83 do Código de Defesa do
Consumidor e art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988). Já em relação
ao exercício das faculdades recursais a possibilidade prática dessa abertura, ou
melhor, a relação entre demandas propostas e recursos interpostos não teve
resposta na mesma proporcionalidade. Talvez isso se explique pelo fato de que ao
jurisdicionado já foi concedida, no primeiro grau, uma resposta ao seu pleito. Daí
então, em prol de uma agilização, o direito de recorrer tendeu a ser exposto em lei
de maneira bem menos flexível por parte do legislador (por esse ângulo pode ser
explicada a previsão de recursos, em numerus clausus, no art. 496 do Código
Processo Civil) 9.
Mesmo delimitado o número de instrumentos recursais, o congestionamento
das vias do Poder Judiciário no segundo grau continua intenso. Tal panorama
justifica o motivo de a maior parte das últimas reformas do Código de Processo Civil
ter se concentrado no sistema recursal. Segundo noticia Fabiano Carvalho, “dos
setenta e dois artigos dedicados à tábua dos recursos, nada mais, nada menos que
quarenta e sete artigos foram reformados, desde o início da vigência do CPC” 10.
Por meio da promulgação da Lei nº 9.756/98, o Poder Legislativo ampliou
ainda mais os poderes do relator indubitavelmente buscando com essa medida
promover uma tutela jurisdicional mais célere ao jurisdicionado. Muito embora tenha
sido essa pretensão do legislador, não resta dúvida que outro propósito tem se
revelado marcante no cenário dessas reformas: a uniformização da jurisprudência11.
9 MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 2. ed., rev. e atual.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 281. 10 CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos: art. 557 do CPC. São Paulo: Saraiva, 2008,
p.1. 11
“Nessa última hipótese – o agravo nos Tribunais – esse recurso acaba operando também como
fator de uniformização da jurisprudência, na medida em que possibilita que o entendimento esposado por um órgão monocrático do Tribunal (Relator, Presidente, Vice-Presidente), venha a ser debatido pelo colegiado, assim contribuindo para a estabilização interna da jurisprudência”. MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p. 281.
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Essa tendência do legislador para ofertar ao jurisdicionado uma jurisprudência
uniforme12, não deixa de ser um claro reflexo do reconhecimento da força normativa
com que os precedentes vêm se revestindo gradativamente em nosso sistema
jurídico13.
Nesse panorama, dois guiões – uniformização da jurisprudência e respeito ao
precedente – estão sendo apresentadas paralelamente ao nosso sistema jurídico, de
tal forma que, quando o primeiro é observado, inevitavelmente vislumbra-se o
segundo.
Seja como for, é de se observar a autonomia ou o poder regencial com que
alguns artigos, postos no Código de Processo Civil, deram ao relator do processo –
é o caso do atual art. 557, por exemplo, que confere ao relator do recurso poderes
não só para obstar o processamento do recurso, mas para julgá-lo de imediato, sem
que o colegiado participe da decisão. Se, em algum período remoto de nossa
história processual, ainda se negava com veemência a força normativa dos
precedentes, hoje, com a redação desse e de outros mais dispositivos de nosso
ordenamento processual, tal afirmação repercute no mínimo desatenta de nossa
realidade.
Observe-se, ainda, o que diz o Superior Tribunal de Justiça a respeito do
tema:
12 Já em 2002, assim se manifestava Cândido Dinamarco: “A crescente opção pela singularidade no julgamento em diversas situações representa uma legítima tentativa de inovar sistematicamente na luta contra a lentidão dos julgamentos nos tribunais. Sabe-se que o aumento do número de juízes não resolve o problema, como não resolveu no passado remoto e próximo. É preciso inovar sistematicamente. O que a Reforma e o que agora vem de fazer a lei de 1998 representa uma escalada que vem da colegialidade quase absoluta e aponta para singularização dos julgamentos nos tribunais, restrita a casos onde se prevê que os órgãos colegiados julgariam segundo critérios objetivos e temperada pela admissibilidade de agravo dirigido a eles”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 5 ed., vol 2. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 1104. 13
Para alguns, como Eduardo Parente, o legislador, com as reformas na estrutura recursal, procurou
acomodar o espírito dos jurisdicionados com a força vinculadora das súmulas: “Na verdade, como dito, pouco a pouco o legislador vinha acostumando o espírito da comunidade jurídica (e, principalmente, dos inúmeros contrariados com o instituto) à idéia final de sumular com tenacidade. Essa concepção era de certa forma encoberta sob a idéia geral de poderes do relator. Claro que a intenção do legislador foi também, tecnicamente, o que está óbvio na lei, ou seja, desafogar os Tribunais e agilizar o procedimento recursal (outro braço do movimento geral de potencializar o armamento judicial – que, por vezes, parece desconsiderar ser da natureza do due process of law a premissa de controlar – limitar – o poder estatal)”. PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização. São Paulo: Atlas, 2006, p.76.
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A reforma introduzida pela Lei nº 9.756/98, que deu nova redação ao
artigo 557 da Lei Processual Civil, teve o intuito de desobstruir as
pautas dos tribunais, dando preferência a julgamento pelas turmas
apenas dos recursos que realmente reclamam apreciação pelo órgão
colegiado (STJ - REsp 108.4437, Rel. Min. Luiz Fux, j. 12.05.2009,
Primeira Turma, DJe 03.06.2009).
O poder conferido ao relator, pela novel sistemática do CPC,
visa desestimular o abuso do direito de recorrer, mercê de
autorizar o relator a evitar que se submeta ao ritualismo do
julgamento colegiado causas manifestamente insustentáveis (STJ-
AgRg no Ag 800.650/MG, Rel. Min. Castro Filho, j. 09.08.2007,
Terceira Turma, DJ 10.09.2007).
Os princípios da celeridade e economia processual apontam as
hipóteses em que os recursos podem receber decisões
monocráticas do relator, que age como delegado do órgão
colegiado (STJ – AgRg no AgRg no REsp 1.038.446/RG, Rel. Min.
Luiz Fux, j. 20.05.2010, Primeira Turma, DJ 14.06.2010).
O que se verifica então é que o nosso sistema recursal está conseguindo se
desenvolver, além daqueles dois objetivos historicamente apresentados pela
doutrina (revisão e controle), com outros bem delineados, já que o foco do
legislador, nos dias atuais, está insistentemente voltado à uniformização da
jurisprudência, ao respeito aos precedentes, e à busca célere dos julgamentos.
Todo esse processo de reforma do Código de Processo Civil, que norteia a
vontade do legislador em prol da uniformização da jurisprudência – a fim de
proporcionar celeridade à prestação jurisdicional e segurança jurídica à sociedade –,
termina colocando, como na verdade coloca, as decisões dos tribunais como centro
das expectativas do sistema jurídico, a ponto de se tornar premente a pesquisa
sobre os principais motivos que estão por trás dessas reformas legislativas.
Foi com esse pano de fundo que se principiou a análise dos tópicos da última
parte do trabalho.
Portanto, após a abordagem de temas que têm relação direta com o assunto
principal do trabalho, pretendeu-se, no último capítulo, debater sobre algumas
questões atuais: a importância que os julgadores estão dando aos precedentes no
8
instante de fundamentar a sentença e a conseqüência dessa exagerada utilização, a
ponto de, no mais das vezes, violar-se o princípio da motivação da decisão judicial.
É verdade que em todos os sistemas jurídicos as decisões judiciais são
fundamentadas, não só em normas, mas também em precedentes14
.
Ocorre que, muito embora tradicionalmente o sistema jurídico brasileiro
integre a família do civil law, de origem romano-germânica15, onde o magistrado
geralmente se socorre do dispositivo legal no instante de fundamentar a decisão,
ninguém desconhece a tendência atual, cada vez mais marcante em nosso
Judiciário, de se utilizar precedentes no auxílio desse processo decisório.
Decerto que o emprego dos precedentes sempre fez parte de nosso cotidiano
forense. Todavia, não raro, o que se tem observado nos dias atuais são sentenças
fundamentadas unicamente em outras decisões judiciais, ou, o que parece mais
danoso, em ementas, no mais das vezes, para espanto de todos, transcritas sem
sua completude, numa pretensão de se reduzir o caso em discussão em simples
tese jurídica. Muita vez, nessas hipóteses, nem uma linha sequer da fundamentação
é destinada a citar uma norma legal, muito menos um argumento de doutrina. Esse
fator, como bem adverte Michele Taruffo, condiciona o desprezo atual dos
magistrados pela argumentação jurídica, com base na estrutura silogístico-dedutiva,
impondo uma fundamentação jurídica nos moldes da estrutura tópica, no sentido
estudado por Viehweg16.
A propósito ainda desse posicionamento, Michele Taruffo17 dá aviso de que
pesquisas, realizadas em diversos países, demonstram que essa tendência à
fundamentação, com base apenas no precedente judicial, longe de se limitar aos
ordenamentos filiados ao common law, alastra-se por vários sistemas, em especial
14
TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. In: <http://cadernodeestudosjurídicos.blogspot.com/2010/03/precedente-e-jurisprudencia.html>. Acesso em 14.12.2010. Tradução Rafael Zanatta, p.1. 15
Segundo Ovídio Baptista: “Embora nos consideramos descendentes do direito romano, que muito ainda acrescentam do direito romano-germânico, a verdade é que estamos a anos-luz do legítimo direito romano clássico. Somos muito mais romano-cristãos, do período bizantino, do que autênticos descendentes do direito romano clássico. As diferenças mostram-se claras quando, na experiência de nossos tribunais – comparam-se as fontes do direito, daquele período – no qual não existiam ou, no máximo, eram muito raras, as leis escritas – e a realidade legislativa moderna, que nos envolve”. SILVA, Ovídio Baptista da. Justiça da lei e justiça do caso. Disponível em
<http://www.baptistadasilva.com.br/artigos.htm>. Acesso em 02.01.2011. 16 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência... ob. cit., p.1. 17
TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência... ob. cit., p.1.
9
naqueles em que predomina a tradição romano-germânica. Essa tendência,
portanto, não está sendo observada unicamente em nosso sistema jurídico, daí tal
fator não se dever só ou especificamente a um sincretismo de cunho particular entre
as duas principais famílias.
A importância da análise dessa problemática tem razão de ser em face da
modificação que os precedentes provocam na estrutura da argumentação jurídica. É
dizer, a utilização dos precedentes na fundamentação da sentença chega, em
muitos casos, a alterar a base tradicional da argumentação jurídica do sistema
romano-germânico calcada na fórmula silogístico-dedutiva18.
No nosso sistema jurídico, algumas alterações processuais recentes levadas
a cabo pelo legislador contribuem decisivamente para a constatação da tendência
referida. Com efeito, os poderes conferidos ao relator para “negar seguimento a
recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto
com súmula ou jurisprudência” (art. 557, caput, do Código de Processo Civil), ou
mesmo ao magistrado de piso, “quando a matéria controvertida for unicamente de
direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros
casos idênticos...” (art. 285-A, do Código de Processo Civil), são apenas dois
exemplos entre outras situações semelhantes, facilmente verificáveis.
Interessou, pois, neste estudo, abordar basicamente a dimensão dos efeitos
deletérios na argumentação jurídica que a utilização dos precedentes, em alguns
momentos de prática excessiva, hoje exerce na atuação dos aplicadores do direito,
em especial dos magistrados, no instante de proferir suas sentenças, a ponto de se
poder dizer que o julgador deixou de ser “o boca da lei” para ser simplesmente “o
boca da jurisprudência”.
18
Segundo Michele Taruffo: “Os precedentes representam de fato os topoi (categorias que ajudam a delinear a relação entre as idéias, do grego topos) que orientam a interpretação da norma na complexa fase dialética da Rechtsfindung, e dão suporte à interpretação adotada como válida no âmbito da argumentação justificativa (por exemplo, na motivação da sentença)”. TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência... p.1.
10
1. A DECISÃO JUDICIAL COMO ATIVIDADE CRIATIVA
1.1 O cenário atual
Fincado principalmente nas raízes da teoria da tripartição dos Poderes
(Montesquieu), a atividade judicial, durante vários séculos, limitou-se simplesmente
a esclarecer ao jurisdicionado o que se encontrava expresso na lei (“boca da lei”)19.
Com o transcorrer da história, diante de uma realidade social em constante
mutação, e onde as leis genericamente formuladas nem sempre demonstram
aptidão para instrumentalizar eficazmente a fundamentação das sentenças, a
atividade jurisdicional tornou-se ato de relativa complexidade, sendo, hoje, um
eterno e instigante processo de busca de uma decisão adequada ao caso concreto.
Para tanto, os aplicadores do direito passaram a utilizar-se dos meios
interpretativos disponíveis.
Algumas teorias hermenêuticas foram idealizadas para fornecer aos magistrados
subsídios suficientes para aplicação da Justiça ao caso em debate (escolástica ou
dogmática, v.g.). Essa atividade interpretativa, em um primeiro momento, realizou-se
“na aplicação das fórmulas hermenêuticas na análise de determinado dispositivo
legal (visão da doutrina tradicional)” 20
. Todavia, verificou-se, com o passar do
tempo, que interpretar é algo diferente de criar o direito - embora ao criar o direito o
aplicador da norma certamente utiliza-se de processos hermenêuticos os mais
diversos.
Interpretar é explicar, esclarecer, dar o significado de vocábulo, atitude ou
gesto; reduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido
19 “A segurança psicológica do indivíduo – ou sua liberdade política – estaria na certeza de que o
julgamento apenas afirmaria o que está contido na lei. Ou melhor, acreditava-se que, não havendo diferença entre o julgamento e a lei, estaria assegurada a liberdade política. Não foi por outro motivo que Montesquieu definiu o juiz como a bouche de la loi (a boca da lei). Ainda que admitindo que a lei pudesse ser, em certos casos, muito rigorosa, conclui Montesquieu, no seu célebre Do Espírito das leis, que os juízes de uma nação são ‘mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor”. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 30. 20 GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa e realização do direito: Bagaço, 2000, p.22.
11
verdadeiro de uma norma expressa; extrair de frase, sentença ou lei, tudo o que na
mesma se contém21.
Destarte, criar o direito é algo que vai além da interpretação pura e simples. Não
é ato que se encerra quando o magistrado esclarece o sentido da lei, ou quando
demonstra como há de ser aplicada uma norma pronta ou acabada, mas trata-se de
ato edificativo do Direito, uma construção nova, algo não pensado, podendo essa
criatividade ser maior ou menor, dependendo das peculiaridades do caso concreto22.
Seguindo essa linha de raciocínio, Elival da Silva Ramos entende que há, sim,
diferença entre interpretação – que ele chama de criativa – para criação judicial. A
interpretação criativa estaria presa aos parâmetros normativos e o aplicador do
direito utilizaria, nesse caso, a interpretação sistemática e as técnicas de
interpretação para adequar a norma à realidade social. Já a criação judicial (ou
ativismo, como ele pretende atribuir ao fato) é quando o tribunal ultrapassa esse
limite do texto normativo e passa a criar o direito em si23.
Modernamente, já não mais se admite que o juiz tenha uma atuação mecânica
ao julgar. Rejeita-se assim, hoje em dia, a noção dogmática clássica de que ao juiz
somente é dado expressar o sentido da norma, adequando-a, quase que
matematicamente, ao caso concreto.
Ora, se nos dias atuais prevalece na doutrina que esse deve ser o
posicionamento, ou melhor, que essa é uma função inerente à magistratura,
algumas questões se impõem, como, por exemplo: (i) em que dimensão essa
postura hermenêutica dos magistrados, em especial dos componentes dos Tribunais
Superiores, não arrosta o princípio da separação dos poderes?; e (ii) de onde vem a
legitimidade do magistrado para criar o Direito?
21
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 09. 22 GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 24. 23
RAMOS, Elival da Silva: Consultor Jurídico. In: <http://www.conjur.com.br/2009-ago-01/entrevista-elival-silva-ramos-procurador-estado-sao-paulo>. Acesso em 27.06.2010.
12
1.2 O Estado Democrático de Direito
Convém analisar no cenário contemporâneo, o locus onde todas essas
polêmicas restaram instaladas: o Estado Democrático de Direito.
Deveras, as sucessivas quedas dos regimes monárquicos na Europa,
perceptíveis, basicamente, a partir do Século XVIII, alteraram o panorama legislativo
em face das Constituições. O que se observava antes era uma sobrevalorização da
supremacia da lei e do Parlamento produzindo uma inevitável debilidade do valor
jurídico da Constituição, que, naquele contexto histórico, não se encontrava
protegida dos excessos do Poder Legislativo24. Naquela quadra histórica, a função
de interpretação da lei era vista, na essência, como uma postura de coroamento da
função legislativa, de sorte que pensar em controle judicial de constitucionalidade,
por exemplo, “era tão teratológico que nem sequer se estimou necessária a sua
proibição específica, bastando a vedação genérica, em outros preceitos normativos
da época, a que o juiz deixasse, por qualquer motivo, de conferir aplicação às leis”
25.
Em síntese,
O judiciário era tido como órgão destinado a realizar a aplicação mecânica da lei, por meio de um silogismo, no qual a premissa maior era a lei, a menor, os fatos, daí redundando numa construção única e inexorável – a decisão judicial 26.
É bom, porém, já nesse passo, dar atenção para a afirmação de Marinoni de que
supremacia do Parlamento Britânico tinha significado “completamente distinto ao da
supremacia do Legislativo e ao do princípio da legalidade, tais como visto pela
Revolução Francesa”27 e explica por que28:
24
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 24. 25 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação... ob. cit., p. 26. 26
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação... ob. cit., p. 25. 27
MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedente no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais. Revista de Processo, ano 34, n. 172, jun./2009, p. 194. 28
MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law... ob. cit., p. 194-195.
13
...ao invés de pretender instituir um novo Direito mediante a afirmação da superioridade – na verdade absolutismo – do parlamento, nos moldes da Revolução Francesa, a Revolução Inglesa instituiu uma ordem em que os poderes do monarca estivessem limitados pelos direitos e liberdades do povo inglês.
....
O ordenamento da Revolução Inglesa caracterizou-se pela submissão do poder do monarca, em seu exercício e atuação, a determinadas condições, assim como pela existência de critérios reguladores da relação entre o parlamento e o rei.
.....
Embora a Revolução Inglesa tenha vencido o absolutismo, com ela o parlamento não assumiu o poder absoluto, como aconteceu na Revolução Francesa.
....
Assim, enquanto na França o parlamento revestiu-se do absolutismo por meio da produção da lei, na Inglaterra a lei representou, além de critério de contenção do arbítrio real, um elemento que se inseriu no tradicional e antigo regime do common law.
...
Como a lei era imprescindível para a realização dos escopos da Revolução Francesa, e os juízes não mereciam a sua confiança, a supremacia do parlamento aí foi vista como sujeição do juiz à lei, proibido que foi, inclusive, de interpretá-la para não distorcê-la e, assim, frustrar os objetivos do novo regime. Ao contrário, tendo-se em vista que, na Inglaterra, a lei não objetivava expressar um direito novo, mas representava mero elemento introduzido em um direito ancestral — que, antes de merecer repulsa, era ancorado na história e nas tradições do povo inglês —, e ainda que o juiz era visto como “amigo” do poder que se instalara — uma vez que sempre lutara, misturado ao legislador, contra o absolutismo do rei —, não houve qualquer intenção ou necessidade de submeter o juiz inglês à lei.
Durante a história do pensamento iluminista, então, não havia razão para se
falar em uma Constituição com poder normativo. As constituições iluministas eram
tratadas pelo poder político ou por quem detivesse nas mãos esse poder
(imperadores, etc.) como figuras ornamentais. Somente com o advento do Estado
Democrático de Direito e, via de consequência, da inserção nas constituições do
controle constitucional das normas, é que se pôde começar a falar propriamente em
14
jurisdição constitucional, e, finalmente, dar-se ênfase ao debate sobre a criação
judicial do direito29 .
José Afonso da Silva adverte para o fato de que democracia é um conceito muito
mais abrangente do que o Estado de Direito. A democracia é a realização de valores
(igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, que surgiu
como expressão jurídica da democracia liberal 30. Logo, o Estado Democrático de
Direito concilia os princípios do Estado Democrático e o do Estado de Direito, “não
como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela
um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente de
transformação do status quo” 31.
Tratando em passant pelo processo evolutivo do Estado, ninguém desconhece
que antes das sociedades democráticas atingirem o atual estágio, prevaleceu
primordialmente a noção de um Estado liberal, cujas características marcantes eram
a submissão à lei, a separação dos poderes, e o enunciado e garantia dos direitos
individuais32. Mas como o intento do Estado liberal era basicamente combater a
teoria absolutista, evidentemente que, de resto, não produziu justiça social
desejável, já que o seu individualismo excessivo provocou imensas injustiças33. Eis
como se manifesta Carlos Alberto Simões de Tomaz sobre esse aspecto:
O Estado liberal, na verdade, revela o que se convencionou denominar “Estado policial”, porque apenas reconheceu, fazendo vazar em normas jurídicas, as chamadas liberdades públicas, não se preocupando em estabelecer meios para que os direitos reconhecidos fossem efetivados. Com isso, o Estado assumia uma atitude passiva, abstendo-se de prestações voltadas para imprimir
29
Essa afirmação tem um equacionamento interessante no tempo feito por Dimitri Dimoulis, para
quem “uma simples pesquisa indica que o controle judicial de constitucionalidade realizou-se, de maneira consolidada, em países europeus já no século XIX. A possibilidade de afastar leis inconstitucionais foi firmada na Grécia e na Noruega tendo ocorrido várias declarações de inconstitucionalidades apesar da falta de explícita previsão constitucional nesse sentido. Em paralelo, na Suíça, a Constituição Federal de 1874 previa explicitamente o controle de constitucionalidade das leis estaduais (cantonais) pelo Tribunal Federal, mas não autorizava o controle das próprias leis federais, introduzindo um controle judicial de constitucionalidade de alcance limitado...da mesma maneira, é notório que, no Brasil, o controle de constitucionalidade foi introduzido como controle difuso desde a proclamação da República”. DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMENTO, Daniel (coord.) Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2009, p. 216-217. 30
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 112. 31
SILVA, José Afonso da. Curso de direito ... ob. cit., p. 119. 32
SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 113. 33
SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 115.
15
eficácia aos direitos fundamentais. Enfim, quem já era livre continuava a ser, como igualmente quem não gozava de liberdade, não obstante agora a tivesse expressamente reconhecida, continuava na condição de alijado desse direito inerente à natureza
humana34
.
Nada obstante todo esse processo histórico-político, vale dizer, apesar de todas
as deficiências em relação aos direitos do cidadão do “Estado policial”, o liberalismo
constitui decerto ponto de partida válido para o processo final de democratização da
sociedade, em função da luta vitoriosa que em especial os revolucionários franceses
realizaram contra o absolutismo, visando obter do Estado o reconhecimento dos
direitos fundamentais do homem.
Restaram assim pavimentados os caminhos que levaram ao surgimento do
Estado Social de Direito, “no qual a expressão social sinaliza para o propósito de
corrigir/superar o individualismo clássico de caráter liberal pela afirmação dos
direitos sociais, com a conseqüente realização da justiça social” 35. Mas o propósito
de prover o cidadão com necessidades públicas capazes de garantir, ao menos,
minimamente, programas de amparo, como, por exemplo: saúde, educação e
proteção ao trabalho, também não foram plenamente alcançadas pelo Estado Social
de Direito.
Em uma análise, José Afonso da Silva ressalta algumas das razões pelas quais
naufragou a proposta de bem-estar social do Welfare State. Principia sua crítica pelo
próprio termo utilizado para qualificar o Estado: “social” 36. E assinala:
Sua ambigüidade, porém, é manifesta. Primeiro, porque a palavra social está sujeita a várias interpretações. Todas as ideologias, com sua própria visão do social e do Direito, podem acolher uma concepção do Estado Social de Direito, menos a ideologia marxista que não confunde o social com o socialista.
Paulo Bonavides tem opinião semelhante, porém, mais abrangente, quando
afirma exatamente que:
34
TOMAZ, Carlos Alberto Simões de. Juridicização da política. Brasília: Revista de Informação Legislativa, ano 45, n. 177, p. 95-112, jan./mar, 2008, p. 100. 35
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 69. 36
SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 115.
16
Daí compadecer-se o Estado social no capitalismo com os mais variados sistemas de organização política, cujo programa não importe em modificações fundamentais de certos postulados econômicos e sociais.
A Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, o Portugal salazarista foram, e continuam sendo, nos dois últimos casos, “Estados sociais”. Da mesma forma, Estado social é a Inglaterra de Churchill e Attlee; os Estados Unidos, em parte, desde Roosevelt; a França, com a Quarta República, principalmente; e o Brasil, desde a Revolução de 30.
....
Ora evidencia tudo isso que o Estado social se compadece com regimes políticos antagônicos, como seja, a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. E até mesmo, sob certo aspecto, fora da
ordem capitalista, com o bolchevismo37
.
Sendo essa seguramente a opinião predominante, pode-se dizer que a
“insuficiência maior do Estado Social de Direito residiria em não ter conseguido
realizar a desejada e sempre prometida democratização econômica e social” 38.
A fim de superar tais modelos (Liberal e Welfare State), o Estado Democrático
de Direito se desenvolve com o propósito de tornar todas as exigências do homem
moderno (econômicas, políticas e sociais) concretas. Esse desafio ingente, que se
ancora, basicamente, no respeito ao princípio da soberania popular, como forma de
legitimar as ações dos agentes públicos, visa “realizar a síntese do processo
contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para
configurar um Estado promotor de justiça social” 39.
1.3 Os princípios da separação dos poderes e da legalidade na perspectiva
contemporânea da criação judicial do direito e a legitimação das decisões.
1.3.1 Princípio da legalidade
37
BONAVIDES. Paulo. Do estado liberal ao estado social. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 181. 38
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito... ob. cit., p. 69. 39
SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 120.
17
Dois princípios que integram o Estado Democrático de Direito interessam aqui
no momento: o princípio da separação dos poderes e o princípio da legalidade, em
decorrência da força normativa que impõem nas estruturas do Estado moderno.
Nosso país tem uma forte preponderância para o direito codificado. É fácil
aceitar tal fato, pois a nossa ligação com a família romano-germânica (civil law) é
indiscutível – muito embora certo mesmo seja que a tendência de aproximação com
a família do common law torne esse parâmetro difícil de ser vislumbrado nos dias
atuais. Disso resulta, à evidência, que o primado da norma legal difunde-se por
alguns dispositivos constitucionais, como por exemplo, o art. 5º, caput (princípio da
igualdade) e art. 5º, inciso II (princípio da reserva legal). Portanto, para nosso
sistema jurídico, a lei é a principal fonte do direito.
Para José Afonso da Silva “o princípio da legalidade é princípio basilar do
Estado Democrático de Direito” 40. É princípio multifuncional, cujo núcleo essencial,
se “espraia” no âmbito de todo sistema jurídico de tal forma que dá origem a um sem
número de expressões umbilicalmente interligadas: processo legislativo, devido
processo legal, supremacia, reserva da lei, etc. 41. Nada obstante essa honraria ao
texto legal, de resto justificável no contexto de transformação do Estado Liberal em
Estado Democrático de Direito, fato é que tal princípio, ao menos na forma
originariamente concebido, dá, no presente, sinais evidentes de fadiga, em face da
força normativa das Constituições.
Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni:
A noção de norma geral, abstrata, coerente e fruto da vontade homogênea do parlamento, típica do Direito da Revolução Francesa, não sobreviveu aos acontecimentos históricos. Entre outras coisas, vivenciou-se a experiência de que a lei poderia ser criada de modo contrário aos interesses da população e aos princípios de justiça.
.....
A lei passa a encontrar limite e contorno nos princípios constitucionais, o que significa que deixa de ter apenas legitimação formal, restando substancialmente amarrada aos direitos positivados na Constituição.
.....
40
SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 121. 41
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito... ob. cit., p.180.
18
O próprio princípio da legalidade passa a ter outro significado, deixando de ter um conteúdo apenas formal para adquirir conteúdo substancial. O princípio da legalidade passa a se ligar ao conteúdo da lei, ou melhor, à conformação da lei com os direitos
fundamentais42
.
Como se observa, o princípio da legalidade, agora formatado pelo conteúdo dos
direitos fundamentais plasmados nas Constituições democráticas, distancia-se da
representação conceitual dos iluministas que não concebiam a presença de uma
força normativa no texto constitucional.
A partir do momento, então, que a lei perde perante o magistrado a supremacia
anteriormente concedida pelo arcabouço do Estado Liberal, porque agora se
submete aos contornos constitucionais, o aplicador do direito não está mais obrigado
a sentenciar unicamente conforme o modelo silogístico do período iluminista,
podendo decidir não só negando a validade da lei, em face da Constituição, como
até elaborando comando decisório capaz de realizar direito fundamental43.
Portanto, diante dessa nova postura a que parecem estar irremediavelmente
sujeitos notadamente os juízes com assento nas Cortes Constitucionais nos Estados
democráticos, ou seja, postura de acolher ou realizar ao máximo as demandas
sociais de um Estado cada vez mais complexo, é que Walber Agra alerta para uma
“falência da exclusividade do Direito legislado” 44 45, sobretudo quando afirma que “a
expansão de atuação dos tribunais constitucionais não é apenas um fenômeno
42
MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common
law... ob. cit., p. 208-209. 43
“Ao se admitir que o juiz pode decidir que uma lei é inválida por estar em conflito com a Constituição, quebra-se o dogma da separação estrita entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, e, desta forma, abre-se oportunidade para se dizer que o juiz do civil law também cria o direito”. MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law... ob. cit., p. 189. 44 AGRA, Walber. A expansão da jurisdição constitucional. Revista Advocatus Pernambuco. Recife.
Publicação da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da OAB/PE. ano 2, n. 3, p. 05-114, out./ 2009, p. 107. 45
Alertando para a problemática da crise do direito legislado em relação tanto ao Poder Executivo
quanto ao Poder Judiciário, eis a crítica de Inocêncio Mártires: “Nesse contexto de ‘modernização’, esse velho dogma {principio da separação dos poderes} da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias – que são editadas com força de lei – bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é freqüente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade”. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito... ob. cit., p.178.
19
restrito à jurisdição constitucional, ocorrendo com o Poder Judiciário também em sua
esfera ordinária” 46. Eis os motivos pelos quais, para o referido autor, tais fatos vêm
se sucedendo:
... em primeiro lugar, há uma crise no arcabouço normativo, fruto da sociedade pós-moderna, que cada vez exige leis mais flexíveis. E em segundo lugar, porque diante da caótica e abundante produção legislativa faz-se necessário, cada vez mais, uma interpretação técnica para saber qual a disposição normativa que vai ser aplicada ao caso concreto. Essa produção caótica esquece de uma parêmia clássica do processo legislativo: de que as leis devem ser simples e claras, construídas de maneira a mais precisa possível, a fim de
evitar problemas de interpretação47
.
É possível acrescentar ainda outro aspecto. O direito originariamente concebido
sempre bem serviu a sociedades restritas, ou melhor, a sociedades com uma base
cultural e raízes históricas comuns. Esse tipo de sociedade é difícil de se encontrar
na civilização moldada pela globalização. Na contemporaneidade, o que mais existe
– se não é só o que existe – são sociedades multiculturais, onde é difícil apontar o
predomínio de um pensamento ou ideia por parte de um grupo de pessoas. A
tomada de posição sobre um tema varia notoriamente até mesmo entre indivíduos
de um mesmo grupo social48. Ora, se nossa realidade é assim, ou muito próxima a
isso, certamente a dificuldade do Poder Legislativo de equacionar essa diversidade
é enorme. A saída do parlamento tem sido partir para a elaboração de um sistema
jurídico com textos abertos que comportem ou legitimem a subjetividade
interpretativa, já que as referências do texto passam a ter função meramente
instrumental para o magistrado, porquanto as razões para a decisão judicial já foram
por ele tomadas antecipadamente.
Não por outra razão, João Maurício Adeodato49 dá alerta para o entendimento
da escola realista de assumir a defesa do ponto de vista de que o Poder Legislativo
não cria mais a norma jurídica, “cria textos, dados de entrada válidos”. Só o
aplicador do direito é que cria norma.
46
AGRA, Walber. A expansão da jurisdição... ob. cit., p.108. 47
AGRA, Walber. A expansão da jurisdição... ob. cit., p.109. 48 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Tradução: Bruno
Miragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 62. 49
ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação dos poderes? Revista Advocatus Pernambuco.
Recife. Publicação da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da OAB/PE, ano 2, n. 3, p. 77-82, out./2009, p. 81.
20
É com esse enredo que se passa a enfrentar o princípio da separação dos
poderes.
1.3.2 Princípio da separação dos poderes (juridicização da política ou politização
do judiciário)
Para Eros Roberto Grau, o princípio da separação dos poderes constitui “um dos
mitos mais eficazes do Estado liberal”50. Isso porque, entende o autor, a construção
teorética de Montesquieu não se relaciona propriamente a uma separação de
poderes, porque tem por alvo equacionar uma distinção de Poderes visando dar
mostras que eles podem atuar em consonância51.
Mito porque, realmente, sequer na pós-monarquia francesa foi possível efetivar
uma real e equitativa distribuição de atribuições entre os Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário. Nesse contexto, registra Mancuso, (i) o Legislativo era o
Poder dominante (podado, evidentemente, do que havia de excesso por parte do
regime monárquico); (ii) o Executivo vinha depois; e (iii) em último, fora do eixo
central do Poder, estava o Judiciário52 53.
Com efeito, no contexto histórico do iluminismo oitocentista, o princípio da
separação dos poderes, representando a principal coluna sedimentadora do Estado
Liberal, preconizava uma supremacia do Parlamento sobre os demais poderes,
tendo em vista sua legitimidade popular. Melhor dizendo: pelo fato dos membros do
Parlamento serem representantes eleitos diretamente pelo povo, havia uma
preponderância clara da concepção de que a instituição da lei formal pelo Poder
Legislativo era o único instrumento válido de criação do direito.
50
GRAU, EROS ROBERTO. O direito posto e o direito pressuposto. 7 ed. São Paulo: Malheiros
Editores Ltda., 2008, p. 225. 51
GRAU, EROS ROBERTO. O direito posto... ob. cit., p. 230. 52
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 285. 53
Segundo ainda Mancuso, uma primeira leitura da teoria da separação entre os Poderes “pode levar
à equivocada persuasão de que ela tinha por premissa uma real trifurcação, equitativa, das tarefas do Estado, entre o Legislativo, Executivo e Judiciário, quando em verdade não havia o nivelamento deste último aos dois primeiros; a equiparação harmônica dessa tríade é relativamente recente, e ainda não está completamente firmada, havendo resistências e críticas, notadamente no campo do controle judicial das políticas públicas, dando azo ao binômio judicialização da polítca – politização do Judiciário”. Idem. p. 289.
21
Ainda de acordo com os princípios da Revolução Francesa, cabia apenas ao
Judiciário aplicar contenciosamente a lei, servindo de mero instrumento de ligação
entre a norma geral posta pelo legislativo e o caso individualizado e único que lhe
era levado no conflito concreto54. Isto é, nada de decisões caprichosas ou
julgamentos sumários de um monarca déspota, nem julgamentos arbitrários de
juízes a seu soldo, mas a lei, impessoal e abstrata, feita pelos representantes do
povo é que deveria prevalecer55.
A consequência da força desse processo histórico é consabida entre nós: na
Constituição Federal de 1988, o princípio da “separação dos poderes” obteve
assento logo no art. 2º, no título dedicado aos princípios fundamentais, além de
constituir uma das quatro cláusulas pétreas do ordenamento jurídico brasileiro (art.
60, § 4º, III) 56.
A bem da verdade, nada obstante formalmente expresso na Carta Constitucional
de 1988, o referido princípio representa, nos dias atuais, nos Estados Democráticos
de Direito, uma forma útil de repartir as funções gerais do poder estatal, distribuindo
moderadamente o exercício das principais forças sociais entre os diferentes órgãos
do Estado.
Aliás, o aspecto de moderação é de vital importância para o entendimento do
propósito de Montesquieu, haja vista que, para o filósofo, havendo concentração de
poder, o governo abre caminho para o despotismo57.
54 ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação... ob. cit., p. 77-82. 55
GALINDO, Bruno. Princípio da legalidade oblíqua e súmula vinculante: a atuação legislativa da
jurisdição constitucional nos 20 anos da Constituição de 1988. In: BRANDÃO, Cláudio, CAVALCANTI, Francisco e ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da Legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 175-202. 56
ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação ......... ob. cit., p. 77. 57 Eis o trecho elucidativo da obra: “Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o
poder executivo das coisas que emendem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado. A liberdade política, em um cidadão, é esta tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder
22
À parte, portanto, uma possível noção de que o princípio da separação dos
poderes possa representar a completa ausência de interferência de um poder sobre
o outro, resta a análise de alguns (ao menos os principais) motivos pelos quais
agrava-se no Estado Democrático de Direito a perspectiva harmônica do exercício
dos poderes.
Para Elival da Silva Ramos, as Constituições dos Estados Democráticos de
Direito sempre indicam “quais são os órgãos titulados ao exercício do poder estatal
(os Poderes com ‘p’ maiúsculo, na terminologia do constitucionalismo brasileiro)” 58.
Assim, a despeito de um compartilhamento interorgânico constitucionalmente
expresso na Carta Magna/88, haverá sempre um núcleo essencial59. Núcleo esse
que, nos seus limites, vem, na opinião desse autor, sendo violado pela função
jurisdicional, “em detrimento da função legislativa, mas, também, da função
administrativa e, até mesmo, da função de governo” 60.
Verdade seja dita, as decisões judiciais sempre foram criativas. Sempre se criou
o direito, principalmente se levarmos em conta a forma como eram proferidas as
decisões pelos jurisconsultos romanos. Aqui e acolá na história da humanidade,
como no período oitocentista de nossa era, é que se pretendeu que não houvesse
tal criação. Porém, não há como negar, jamais no nosso país vimos decisões como
as recentemente proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, sobretudo relacionadas
às políticas públicas, à problemática da aplicação de recursos mínimos destinados
às ações e serviços públicos de saúde, reformas do Judiciário e da Previdência61, e,
muito recente mesmo, a que reconheceu a possibilidade de união estável entre
pessoas do mesmo sexo.
legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares. Na maioria dos reinos da Europa, o governo é moderado, porque o príncipe, que possui os dois primeiros poderes, deixa a seus súditos o exercício do terceiro”. MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat de. In: <http://Lenin/Rede Local/Equipe/Michele/MONTESQUIEU - O Espírito das Leis2.txt>, p. 75. Acesso em 12.07.2011. 58
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 115. 59 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial..., ob. cit., p. 116. 60
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial..., ob. cit., p. 116. 61
GALINDO, Bruno. Princípio da legalidade oblíqua e súmula vinculante... p. 180.
23
A despeito dessa última decisão ter sido unânime62, vozes foram ouvidas
contestando o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal63. Destaca-se, por
exemplo, a opinião do jurista Ives Gandra Martins que, em dois artigos publicados
em jornais de grande circulação no país, condenou o ativismo judicial, expondo o
seguinte:
A questão que me preocupa é este ativismo judicial, que leva a permitir que um Tribunal eleito por uma pessoa só substitua o Congresso Nacional, eleito por 130 milhões de brasileiros, sob a alegação de que além de Poder Judiciário, é também Poder Legislativo, sempre que considerar que o Legislativo deixou de
cumprir as suas funções64
.
Para Elival da Silva Ramos, é essa a subversão dos limites impostos pela
criatividade jurisprudencial que afeta “as demais funções estatais, máxime a
legiferante, o que, por seu turno, configura gravíssima agressão ao princípio da
separação dos Poderes” 65.
Do que já foi apresentado, não há como fugir da evidência factual de que
vivemos em uma República em que prevalece entre os Poderes uma fortíssima zona
de tensão66. Zona de tensão essa designada indistintamente pelos juristas
62 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto e ADPF 132/RJ, rel. Min.
Ayres Britto. Informativo Mensal do Supremo Tribunal Federal STF: Brasília, maio de 2011 - nº 9. Compilação dos Informativos nºs 625 a 629. <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoInformativoTema/anexo/Informativo_mensal_maio_2011.pdf>, acesso em 12.07.2011. 63
Nesse sentido é a opinião de Saul Tourinho Leal: “A Constituição Federal coloca o Supremo como
guardião da Constituição. A ele não é dado representar o povo. Assim quis o Poder Constituinte Originário e assim o é. É órgão composto por especialistas, sem mandato popular, aí os constantes questionamentos acerca de sua atuação política em esferas que deveriam ser alvo de deliberação tão somente pelas instâncias que representam o povo por meio de mandato popular”. In: <http://www.conjur.com.br/2011-mai-23/apesar-abertura-sociedade-supremo-nao-representa-povo>. Acesso em 23.05.2011. 64 MARTINS, Ives Gandra da Silva. In:
<http://www.lawmanager.com.br/manager/clientes/8/arquivos/FRAN%C3%87A.pdf>,
<http://www.lawmanager.com.br/manager/clientes/8/arquivos/CONFORME%20O%20STF.pdf>,
acessos em 12.07.2011. 65
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial..., ob. cit., p. 120. 66
Cf. Walber Agra: “A relação entre o Direito e a Política configura-se como uma das relações mais
tensas existentes no Estado Democrático Social de Direito. A política simboliza as decisões tomadas pela sociedade com a finalidade de alcançar os objetivos escolhidos pela sua população, tendo como uma de suas principais características a discricionariedade de sua escolha. O Direito tem como uma de suas principais características, de modo inverso, a previsibilidade de sua normatização. Assim, devido ao caráter diverso de suas principais características, o Direito e a Política podem gerar atritos...Vários autores consideram que a delimitação entre a política e o direito pode ser facilitada pelo legislador constituinte. Se o texto constitucional for escrito de forma precisa, sem o recurso de
24
comumente por dois termos: “juridicização da política” ou “politização do
judiciário”67. A questão, portanto, de maior complexidade que está subjacente ao
debate sobre a “politização do judiciário” é saber se, ao decidir, o magistrado pode –
em determinadas situações – invadir a esfera de atribuições constitucionais de
algum dos outros dois poderes, fundamentando suas decisões apoiado em
convicções políticas próprias; e, se pode, se há ou não limite para fundamentar
essas decisões. Ou seja, até que ponto os juízes, quando criam as normas, podem
substituir o legislador68 69.
O fato é que a denominada judicialização da política torna-se circunstância
“inevitável diante das funções básicas que o poder judiciário precisa exercer no
panorama constitucional da segunda metade do século XX e início do século XXI” 70.
Até porque o juiz já não é mais visto praticamente por ninguém como um agente
termos vagos ou ambíguos, a atuação da jurisdição constitucional poderá ser melhor definida, impedindo a prática de decisões políticas porque a estrutura do seu texto permite antever um direcionamento das decisões. Se, ao contrário, o texto constitucional não for escrito de forma precisa, agasalhando muitas normas programáticas, haverá a ausência de uma definição para a atuação da jurisdição constitucional, o que ensejará a prática de decisões judiciais de cunho político”. AGRA, Walber. A expansão da jurisdição... ob. cit., p.111-112. 67
É oportuno trazer, nesse ponto, a opinião de Lenio Streck que faz distinção entre judicialização da
política e ativismo: “Judicialização é contingencial. Num país como o Brasil, é até mesmo inexorável que aconteça essa judicialização (e até em demasia). Mas não se pode confundir aquilo que é próprio de um sistema como o nosso (Constituição analítica, falta de políticas públicas e amplo acesso à Justiça) com o que se chama de ativismo. O que é ativismo? É quando os juízes substituem
os juízos do legislador e da Constituição por seus juízos próprios, subjetivos ou, mais que subjetivos, subjetivos(solipsistas)”. In: <http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=96&Itemid=2>. Acesso em 12.07.2011. 68 Para Dworkin, “as decisões que os juízes tomam devem ser políticas em algum sentido”... “quero
indagar, porém, se os juízes devem decidir casos valendo-se de fundamentos políticos, de modo que a decisão seja não apenas a decisão que certos grupos políticos desejariam, mas também que seja tomada sobre o fundamento de que certos princípios de moralidade política são corretos. Um juiz que decide baseando-se em fundamentos políticos não está decidindo com base em fundamento de política partidária. Não decide a favor da interpretação buscada pelos sindicatos porque é (ou foi) membro do partido Trabalhista, por exemplo. Mas os princípios políticos em que acredita, como, por exemplo, a crença de que a igualdade é um objetivo político importante, podem ser mais característicos de um partido político que de outros”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução: Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 3; 69
Lenio Streck e Walber de Moura Agra discutem esse tema a partir de dois eixos analíticos: o
procedimentalismo e o substancialismo. Numa síntese apertadíssima, os autores expõem o seguinte: a tese procedimentalista, capitaneada por Habermas, critica a invasão da política e da sociedade pelo Direito (Streck); ao passo que a tese substancialista permite mais atuação das decisões do Supremo Tribunal Federal, mesmo que exorbite os limites impostos pelo princípio da separação dos três poderes (Agra). STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (em) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7 ed., rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 40-54 e AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p 185-267. 70
GALINDO, Bruno. Princípio da legalidade oblíqua e súmula vinculante... ob. cit., p. 181.
25
neutro, mero aplicador da lei71. A sociedade exige dele que faça valer o texto
normativo: de preferência os princípios instalados na Constituição, de modo que
sejam concretizados os inúmeros direitos assegurados ao indivíduo, isolado ou
como membro de um agrupamento. É se opor ao caráter meramente declaratório de
uma decisão judicial, para reclamar do Poder Judiciário a realização dos direitos
fundamentais.
Se por um lado, a comunidade jurídica nacional, em grande parte, ainda que
ciente dos perigos dos excessos praticados pelos juízes72, tem acatado essa nova
postura do Judiciário73, que assume um novo papel, de natureza declaradamente
política, de outro lado, carente de respostas efetivas por parte do Poder Público, a
sociedade brasileira tem batido incessantemente às portas do Judiciário para obter o
71
Cf. Marinoni: “A evolução do civil law, particularmente em virtude do impacto do constitucionalismo, deu ao juiz um poder similar ao do juiz inglês submetido ao common law e, bem mais claramente, ao poder do juiz americano, dotado do poder de controlar a lei a partir da Constituição. No instante em que a lei perde a supremacia, submetendo-se à Constituição, transforma-se não apenas o conceito de direito, mas igualmente o significado de jurisdição. O juiz deixa de ser um servo da lei e assume o dever de atuá-la na medida dos direitos positivados na Constituição. Se o juiz pode negar a validade da lei em face da Constituição ou mesmo instituir regra imprescindível à realização de direito fundamental, o seu papel não é mais aquele concebido por juristas e processualistas de épocas distantes”. MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law... ob. cit., p. 187. 72
Walber Agra, alertando para os riscos provenientes desta postura, por parte do Poder Judiciário:
“Porém, quando os tribunais constitucionais começam a se imiscuir em assuntos políticos, ocorre de igual forma uma politização desses órgãos. Em muitas de suas decisões resta evidenciada uma nítida opção ideológica, em que a matriz política resta clarividente. O risco é que a criação de uma justiça política, passe a decidir de acordo com as suas conveniências ideológicas, em detrimento da Constituição”(...). Entretanto, se essa atuação servir para o desenvolvimento do sistema de freios e contrapesos, com o escopo de garantir os direitos fundamentais e o aperfeiçoamento do regime democrático, será uma atividade benéfica e ensejará a real concretização de um Estado Democrático Social de Direito”. AGRA, Walber. A expansão da jurisdição... ob. cit., p.109 -110. 73
A crítica de Cláudia Servilha Monteiro: “Na cultura jurídica contemporânea convivem confrontadas
duas concepções radicalmente opostas acerca do desempenho da função jurisdicional em um Estado de Direito e em torno da idéia de ativismo judicial. Em primeiro lugar, existe uma larga tradição no pensamento jurídico-político de postura contra os riscos de um governo de juízes ou de juízes legisladores conforme a obra de Mauro Cappelletti (1999b, p. 61-69). Para estes o ativismo judicial equivale à invasão do juiz em um espaço de legitimidade que não lhe corresponde, e, por isso mesmo, põe em perigo o delicado sistema de equilíbrios institucionais, sem o qual se frustraria irremediavelmente o ideal do Estado de Direito. Neste ponto de vista é latente a convicção de que o juiz ativista não é mais do que um indivíduo que, se considerado por acaso parte da elite moral, impõe aos demais seus próprios valores sem se dar ao trabalho de ter o direito de fazê-lo passando pelo processo político ordinário, isto é, do procedimento democrático. Para a segunda concepção, ativismo judicial não é uma expressão pejorativa, mas admite que se entenda por juiz ativista aquele que invade o espaço da pura discricionariedade política, onde só conta o critério da oportunidade. O núcleo dessa segunda concepção é a idéia do juiz como garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos ante a qualquer classe de atuações dos poderes públicos. Se os direitos são limites para as maiorias e para o Poder que atua em seu nome, um juiz que leve a sério seu papel de garantidor dos direitos simplesmente não poderia limitar-se ao critério da própria maioria; ou melhor, do Poder que atua em seu nome, acerca de conteúdo e alcance dos ditos direitos. Nesse caso o ativismo judicial não seria um vício e sim uma virtude por excelência da função jurisdicional em um Estado constitucional. MONTEIRO, Cláudia Sevilha. A racionalidade da decisão judicial..... ob. cit., p.206.
26
que entende lhe é assegurado pela Constituição, agindo exatamente como
preconiza Peter Härbele: “que toda e qualquer pessoa que leia livremente a
Constituição acaba sendo co-intérprete do texto” 74. A resposta do Judiciário,
portanto, não poderia ser outra. Reflexo disso é a superexposição dos juízes nos
meios de comunicação.
Ora, ao fazer política, através do processo de criação judicial, o Judiciário impõe
a si próprio uma nova obrigação perante a sociedade: buscar a legitimação
necessária da população para as suas decisões. E como fazer isso acontecer em
um panorama institucional político-democrático em que o povo não tem o direito de
eleger os componentes do Poder Judiciário é que se torna o grande desafio, na
atualidade, a ser enfrentado pelos jusfilósofos.
1.3.3 Legitimação das decisões
Com efeito, em relação aos atores políticos que compõem os poderes
constituídos da República, os juízes não fazem parte de uma categoria que se
submete “ao árduo campo de prova do sufrágio popular” 75. É dizer, quando nas
suas decisões judiciais impera o cunho político, o Poder Judiciário restaria
comprometido ante a falta de respaldo do voto popular76.
Na doutrina, são encontradas razões que rechaçam essa maneira de pensar.
Três estão notadamente mais presentes nas discussões sobre o tema.
A primeira é exposta por José Renato Nalini, atualmente Corregedor Geral da
Justiça do Estado de São Paulo, que parte de um raciocínio interessante. O jurista
paulista argumenta que é fenômeno contemporâneo questionar-se a legitimidade de
todas as manifestações estatais, cuja sensação de carência reste configurada. E
74
HÄRBELE, Peter. In: <http://www.conjur.com.br/2011-mai-29/entrevista-peter-haberle-constitucionalista-alemao>. Acesso em 13.05.2011. 75
NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas-São Paulo: Millennium Editora, 2 ed., 2008, p. 324. 76
“A razão maior da controvérsia é que as normas ou atos normativos são textos legais formulados
por representantes eleitos diretamente pela população, ou seja, fruto do princípio da soberania popular. Já os membros do órgão que exerce a jurisdição constitucional não são providos a seus cargos por intermédio da vontade do povo, têm seu provimento realizado por indicação do Presidente da República, necessitando depois da homologação pelo Senado Federal”. AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.143.
27
que tal aspecto, portanto, observa, não é exclusivo do Judiciário77. Em seguida, põe
em debate:
Há quem recuse a constatação empírica da extrema debilidade do moderno Parlamento? Só pelo fato de se submeterem às eleições revestiriam os parlamentares uma legitimidade incólume ao tsunami de indecências noticiado e televisado noite e dia? Questionar a legitimidade dos juízes perde significado e consistência diante da apuração de que um crescente descrédito envolve o Legislativo. O Legislativo já foi a função mais importante. Poder que teria a primazia, por estabelecer as regras do jogo, cuja onipotência foi posta à prova no século passado e mostrou sensível fragilidade. O Legislativo do século XX não conseguiu coibir o excesso dos governantes, não impediu o totalitarismo de todas as colorações e graus, nem dois conflitos mundiais. Pior ainda, mostrou-se insuficiente a reconhecer os reclamos da sociedade e primou por
confundir o interesse privado com o público78
.
Na mesma linha de pensamento, Walber Agra, tratando da paulatina perda de
legitimidade do processo político como uma das causas que influenciam a expansão
da jurisdição constitucional no campo das decisões políticas, revela que a
complexidade dos temas, bem como a falta de locais para o debate político, “são
algumas das razões para perda de legitimidade dos representantes populares” 79, o
que justificaria essa distância que a classe parlamentar se apresenta atualmente
perante a população. E prossegue:
Já que é quase impossível encontrar limites precisos à separação entre a seara política e a seara jurídica, de melhor alvitre seria solidificar a consciência de respeito aos dispositivos constitucionais, especialmente às normas relativas aos direitos fundamentais e que tanto o Poder Legislativo quanto o órgão que desempenha o exercício da função, pudessem fiscalizar a atuação dos órgãos estatais para saber se eles se adequam ou não aos ditamos da
Constituição80
.
Se segmentos mais conservadores, porém, pretendem deslocar o Poder
Judiciário para um canto mais modesto do cenário político, certo é que em um
ambiente de democracia participativa como o nosso, ainda que ofuscado por nossa
condição de país periférico, os cidadãos não se encontram enclausurados em uma
77
NALINI, José Renato. A rebelião ... ob. cit., p. 324. 78
NALINI, José Renato. A rebelião ... ob. cit., p. 324-325. 79 AGRA, Walber. A expansão da jurisdição constitucional... ob. cit., p. 113. 80
AGRA, Walber. A expansão da jurisdição constitucional... ob. cit., p. 113.
28
jurisdição única como a eleitoral, a ponto de tornar limitado o exercício democrático
popular exclusivamente por meio do voto ou plebiscito. É válida a ilação de que a
referida participação também se faz por meio do processo judicial. Ora, o processo é
seguramente fator de inclusão social, na media em que “recepciona e encaminha ao
Judiciário...os reclamos, anseios e pretensões da coletividade, os quais, sem essas
formas de expressão, continuariam a fomentar a chamada litigiosidade contida, ao
interno da coletividade” 81.
Na síntese de Rodolfo Mancuso:
Portanto, o fato de em muitos países, como o nosso, os juízes não serem eleitos, não serve como argumento ou premissa para dispensá-los de dar o seu quinhão para a boa gestão da coisa pública e preservação do interesse geral, mediante os processes em
que são chamados a atuar82
.
A segunda razão é exposta por Marília D’Ávila ao registrar o pensamento de que
a vontade da maioria nem sempre qualifica como democrática a proposta do Poder
Legislativo:
A ciência política moderna reconhece, de forma uníssona, que a vontade da maioria não é sinônimo de decisão democrática e que nem sempre o voto garante, de per si, a realização dessa vontade da maioria. Nem os poderes políticos estabelecidos são perfeitamente capazes de expressar um consenso absoluto nas questões, positivando, no mais das vezes, a vontade de grupos de interesses, cuja força de pressão se fez prevalecer no momento de votação da lei. Reconhece-se, ainda, que a antinomia de significação dos textos legais é de extrema importância para a aprovação dos mesmos no Parlamento. Quanto mais elásticos e imprecisos os contornos do
texto, mais fácil o consenso em sua aprovação83
.
A terceira razão encontra-se nos próprios termos da Constituição Federal.
Prevalece no Estado, hoje, uma dimensão dinâmica que se sobrepõe à anterior
(estática) firmada no binômio Poder-Soberania84. Deveras, regando a Constituição
Federal o Estado com múltiplas e infinitas atividades, que visam primordialmente à
consecução de objetivos e prestações sociais, em prol da coletividade, tais
81
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 286-287. 82
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 287. 83
D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito.... ob. cit., p. 22. 84
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p.291.
29
realizações seriam inconcebíveis não fosse a comunicação de atributos e funções
dos poderes. Assim, não espanta ninguém que no leque de atribuições do
Presidente da República haja oportunidade para ato decisório (art. 84, X) e ato
legislativo (art. 62); da mesma forma que no Legislativo se administre (arts. 51, IV e
52, XIII) e se julgue (art 52, I e II); e, finalmente, no Judiciário se administre (arts. 96,
I e 99) e se legisle (arts. 93, 96, II e 102, § 2º)85. É da condição do próprio texto da
Constituição Federal que haja convergência de funções, de modo que se possa
entender uma separação dos poderes onde vigore certa interferência de um poder
em outro86.
Retornando à questão anteriormente posta, como pode o Poder Judiciário
buscar a legitimação popular para a judicialização da política, máxime em sede de
jurisdição constitucional? Basicamente, na visão de Walber de Moura Agra, as
decisões judiciais deverão, em sede de jurisdição constitucional, quando
necessárias, ser tomadas “a partir de um processo que promova amplas discussões
na sociedade para que ela possa realizar a formação política de um consenso,
tomando como parâmetro as normas jurídicas” 87.
Igual visão nesse sentido é de Paulo Gustavo Gonet Branco88:
Participação e controle popular são aspectos ínsitos a uma convivência política numa comunidade que proclama que o poder é exercido pelo povo ou em seu nome.
A abertura das cortes constitucionais ao compartilhamento de razões por interessados nas deliberações públicas confirma em cada sujeito a igual dignidade de membro da comunidade.
Num ambiente democrático, o valor intrínseco da abertura à participação dos cidadãos nos processos públicos revela que alcançar uma boa solução não é tudo o que importa no cenário deliberativo. É de capital relevo, também, que a busca desse resultado adequado se desenvolva sob a franca disposição de se conceder voz aos vários destinatários das decisões.
85
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 291. 86
Segundo ainda Mancuso, “o fato de a separação dos Poderes constar dentre as cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º, III) não pode ser tomado à outrance, desconectado do contexto de sua independência, são “harmônicos entre si” (art. 2º), expressão que, de per si, basta a evidenciar que o constituinte deseja a convivência pacífica e eficiente entre as instâncias políticas, inclusive para a mantença da desejável coesão interna da República Federativa”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 291. 87
AGRA, Walber. A expansão da jurisdição constitucional... ob. cit., p. 114. 88
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional São Paulo: Saraiva, 2009, p. 214.
30
Não resta dúvida que o amicus curiae, por exemplo, é figura crucial no
desempenho desse papel rogatório de representante político de parcela da
população. Mas, obviamente não é só, conquanto, além de diversas serem as
perspectivas de solução apresentadas pelos doutrinadores, vários são os critérios
válidos apresentados pela hermenêutica para adequação do conflito, em especial
tem sido a prevalência, por exemplo, da argumentação focada no princípio da
razoabilidade, fruto da ponderação dos valores89.
Isso porque Paulo Gonet Branco expõe que:
A fundamentação, de resto, não pode deixar de ser o resultado de uma comunicação do agente que delibera com a coletividade. Isto é, com os demais intérpretes, oficiais ou não, da Constituição. Não pode ser uma atividade de solipsismo, em que o juiz, por meio de um fiat, diz o direito, ao invés de construí-lo, a partir de um diálogo
sincero e aberto, em que o aplicador se reconhece guiado por pré-compreensões, mas se esforça por cotejá-las com as razões que lhe são trazidas, no empenho por alcançar uma deliberação pretendidamente justa e correta. Para conceber a fundamentação adequada, o tribunal há de considerar se a decisão que toma é consistente com a jurisprudência consolidada. Ponderações cristalizadas trazem consigo a presunção de aquiescência dos Poderes Públicos e da sociedade, que não a desautorizaram pelos meios políticos disponíveis90.
De tudo quanto foi exposto, certo mesmo é que o Judiciário está tendo, nos dias
atuais, papel preponderante na execução da responsabilidade pelas políticas
públicas e que o princípio da separação dos poderes, ao menos na forma concebida
89
“O desafio do juiz moderno é conciliar a um só tempo, segurança jurídica, com celeridade e rapidez; valores individuais e valores da sociedade; técnica e formalidades legais e efetividade das decisões, enfim, modernidade e justiça, que, ao fim e ao cabo, não são valores antagônicos e mutuante excludentes, e sim uma necessidade imperiosa de composição de opostos para a realização do bem-estar de todos os membros da comunidade”. D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito.... ob. cit., p. 25. 90
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação... p. 241. Interessante é que o próprio autor, em nota de rodapé de nº 673, na mesma página 241, faz a seguinte advertência: “Por isso, deve ser compreendida com a cautela indispensável a orientação, impressa em voto no STF, de que ‘ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanista. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrando o indispensável apoio, formalizá-la’(RE 111.787, DJ 13-9-1991). A recomendação não provoca espanto se entendido que a ‘idealização da solução mais justa’ não se resume à consulta do julgador a si mesmo, mas se forma pela oitiva dos interessados, dos vários auditórios cabíveis, inclusive do saber consolidado na dogmática, tudo isso confirmado pela formação humanística do julgador”.
31
há mais de dois séculos, não serve mais de atributo para digressões do tipo a
inviabilizar o novo perfil do Judiciário.
1.3.4 A formação dos juízes: democratização nos Tribunais.
Sob esse tópico serão abordadas algumas brevíssimas questões relacionadas
ainda com a legitimação do Poder Judiciário para decidir sobre temas políticos e a
influência que essas questões exercem sobre as decisões judiciais.
Parece não restar dúvida que, em um Estado Democrático de Direito, não deve
subsistir a preponderância funcional de um órgão sobre outro – a história mostra o
quanto foi infrutífera para o direito em si a predominância do Poder Legislativo na
França da pós-monarquia. Afinal de contas, a intenção de nosso constituinte foi que
entre os poderes houvesse harmonia, sem perda da independência (art. 2º da
CF/88).
Ocorre que, no Brasil, como visto, as discussões de temas políticos têm migrado
vigorosamente dos Poderes Executivo e Legislativo para o Judiciário. Ora, se agora
determinadas polêmicas são resolvidas no âmbito do Poder Judiciário, muito embora
haja um exagero em tudo isso, porque os juízes muitas vezes estão se comportando
como executores de políticas públicas, fato é que a responsabilidade dos
magistrados tem aumentado assustadoramente, sem que, em contrapartida, tenha
se verificado uma adequada seleção dos membros do Poder Judiciário. Ou seja, se
agora os magistrados estão sendo solicitados para tratar de assuntos polêmicos e
cujo viés de cunho político é indiscutível, como esperar legitimidade das decisões
judiciais, se no ato de seleção de ingresso para o cargo de magistrado valoriza-se
praticamente tão-só a capacidade mnemônica do candidato, em detrimento de
outros atributos tão ou mais importantes?
A forma que o legislador impôs para a seleção dos futuros juízes, a despeito de
ter sido aperfeiçoada ao longo dos anos, parece estar em dissonância com a
realidade atual de se fazer justiça. Se cada vez os princípios são utilizados para
fundamentar uma sentença, no mais das vezes porque o magistrado entende haver
um desacordo do texto da lei com a realidade subjacente da causa, qual a razão
para somente se exigir dos candidatos ao cargo de juiz a capacidade espetacular de
32
armazenar na memória os textos de lei, como se fossem decidir de forma cartesiana
um caso de complexidade latente além do padrão lógico-dedutivo?
Essa postura certamente não é moderna, atual e muito menos condizente com
um Poder que cada vez mais ingressa na seara política, por conta da necessidade
desmedida de se adequar as decisões dos principais agentes públicos e às
diretrizes estabelecidas pela Constituição.
Enquanto nos outros Poderes o cidadão participa da escolha dos seus
representantes, no Judiciário seus membros ingressam no piso inferior da estrutura
por meio de burocráticos concursos públicos, o que somente favorece a divulgação
do mito de que entre os poderes da República o Judiciário é o menos democrático91.
Nada obstante essa realidade, a sistemática dos concursos públicos permanece
praticamente inalterada: a primeira fase corresponde às provas objetivas, cujo
propósito é eliminar aqueles que não conseguiram armazenar o maior número de
informações desejáveis; na sequência, vem a fase das provas escritas, que exigem
a memorização do maior número possível de precedentes judiciais; depois vêm os
exames orais. Nesse momento, quando se imagina que algo de diferente vai ser
exigido do candidato, a maioria dos examinadores insiste em averiguar mesmo que
desnecessariamente, por óbvio, a capacidade cibernética de reter informações do
futuro magistrado; ao fim e ao cabo, procura-se, através de uma forma simplória e
burocrática, a aferição dos atributos que deveriam estar presentes em primeiro lugar
em qualquer candidato a cargo de juiz, como a ética, a idoneidade, a cultura geral, a
filosofia e o domínio da língua portuguesa, só para ficar nesses poucos exemplos92.
91
Na prática, sabe-se que a realidade é outra. Se há um poder republicano em que o cidadão tem contato com seus representantes é exatamente o Judiciário: “Fala-se na dificuldade de acesso à Justiça. Mas o indivíduo sabe que difícil, mesmo, é o acesso aos demais poderes. Qual o indivíduo que tem facilidade para avistar-se com qualquer chefe de Executivo? É simples ser ouvido por um parlamentar em qualquer dos três níveis da Federação? Já o juiz realiza pessoalmente as audiências...Uma das experiências rotineiras do homem contemporâneo é o contato direto com o juiz. Só quem não quer é que permanece sem o seu Day in Court. O juiz não pode escusar-se a realizar uma audiência, a despachar uma petição, a ouvir um reclamo de sua competência. Ao se compenetrar disso, o indivíduo experimenta um salto qualitativo no seu grau de cidadania”. NALINI, José Renato. A democratização da administração dos tribunais. In: Reforma do Judiciário. São Paulo: Saraiva. 2005, p. 173. 92
“A aferição de outros atributos – conduta ética, noção institucional, dons humanísticos, talentos
exigíveis para enfrentamento de situações de tensão, a potencialidade de aquisição de novos saberes e mesmo a trivial capacidade de trabalhar – tudo resta sacrificado pelo interesse maior no teste de conhecimentos técnico-jurídicos. Esse modelo já foi desprezado pelas grandes empresas, todas elas providas de excelentes quadros. Por sinal, quadros oriundos das mesmas Faculdades de
33
Em resumo, não há qualquer interesse ou preocupação dos membros das
bancas examinadoras (em alguns concursos, até mesmo “terceirizadas”) em
conhecer não só a formação geral como a personalidade do candidato93.
Para o estudioso do tema em debate, José Renato Nalini, “se os concursos se
preocupassem mais com o ser humano interessado em ingressar na Magistratura e
menos com a sua possibilidade de decorar informações, teria início a verdadeira
Reforma do Judiciário” 94.
A pouca importância que os examinadores têm dado à avaliação da
personalidade dos candidatos à magistratura reflete um paradoxo: na hora de
selecionar os futuros juízes procura-se mirar naqueles que apresentam maiores
virtudes dentro da moldura oitocentista de ver o direito, mas após a nomeação e
posse, de imediato é imposto ao magistrado, em face da realidade da sociedade
contemporânea complexa e das novas estruturas do próprio Poder Judiciário, uma
nova postura, não mais condizente com o paradigma de outrora, mas agora dentro
dos padrões de uma sociedade pretensamente democrática. É dizer, aposta-se em
um processo de seleção de candidatos com formação técnica-jurídica específica,
esquecendo-se que a personalidade do juiz somada à sua formação interdisciplinar
são constantemente cobradas na fundamentação da decisão judicial95.
Direito tão criticadas após a realização de cada concurso público nas carreiras jurídicas. Indague-se a uma dessas prestigiadas corporações de advogado se elas têm dificuldade em recrutar os jovens talentosos que ali encontram melhores oportunidades de desenvolvimento em relação a pouco sedutora carreira na Magistratura. Seria evidência do prestígio da Magistratura acorrerem milhares de concorrentes a cada concurso aberto? Não parece. Primeiro, porque esses mesmos milhares acorrem a qualquer certame público propiciador de uma carreira provida de algum atrativo como a estabilidade. Longe da esfera pública, a ameaça de desemprego que ronda os profissionais da atividade privada. Mas a constatação empírica é ainda mais melancólica. A inscrição de milhares de candidatos em todo concurso não significa prestígio crescente das carreias do Judiciário, senão dificuldade cada vez mais acentuada de sobrevivência na área das Ciências Jurídicas”. NALINI, José Renato. A democratização... ob. cit., p. 177. 93
“Enquanto se revê, em ritmo de intensidade crescente, todo o programa do curso de Direito, por
enquanto qüinqüenal, não há preocupação equivalente em conhecer a personalidade do futuro juiz. Seus temores e angústias, seus traumas, seus preconceitos, mas também seus anseios, aspirações, sonhos e ilusões”. NALINI, José Renato. In: prefácio da obra “O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial”, de Lídia Reis de Almeida Prado. 3 ed. Campinas – SP: Millenium, 2005, p. X. 94
NALINI, José Renato. In: prefácio da obra “O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial”, de Lídia Reis de Almeida Prado... ob. cit., p. XI. 95 “O aspecto importante na sentença, embora não o único...é a personalidade do juiz, sobre a qual
influem a educação geral, a educação jurídica, os valores, os vínculos familiares e pessoais, a posição econômica e social, a experiência política e jurídica, a filiação e opinião política, os traços intelectuais e temperamentais”. PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial. 3. ed. São Paulo: Millennium. 2005, p. 18.
34
Essa problemática é muito importante na medida em que muito bem se sabe
que, por conta da racionalidade formalista de decidir, é comum os juízes omitirem os
verdadeiros sentimentos que os fizeram escolher um princípio em detrimento do
outro. Dito de outra forma: pensam sem o socorro do processo lógico-dedutivo, mas
estruturam a decisão exatamente com base nesse esquema de raciocínio.
A questão se torna crucial, na visão de Michele Taruffo, quando, em cada etapa
de seu raciocínio o juiz recorre a noções e critérios de caráter extra ou metajurídico,
gerando “exigências particularmente severas de confiabilidade, de racionalidade, de
controlabilidade e de justificação” 96. E arremata o referido autor:
Mas quando ele {o juiz} precisa sair do mundo da cultura jurídica, a ele familiar, e assim extrair do senso comum, da experiência coletiva ou da ciência aquilo de que necessita para formular as passagens e os segmentos não-jurídicos de seu raciocínio, nesse momento crescem em medida extraordinária as incertezas, as dificuldades, as dúvidas e os perigos de errar. Isso podia (e talvez ainda possa) não ser compreendido com suficiente clareza por quem acreditava (ou acredita) viver em uma sociedade compacta e homogênea (e tanto mais assim, quanto mais local) e no contexto de uma cultura supostamente clara, consolidada, estática e composta por elementos
facilmente identificáveis97
.
Ora, diante desse quadro, não seria então essencial saber com quais
experiências de vida foi formada a personalidade do futuro julgador, antes mesmo
do seu ingresso nos quadros da magistratura?
A efetividade da defesa democrática por parte do Poder Judiciário impõe que se
busquem novos e mais eficazes instrumentos para a seleção dos futuros
magistrados de forma a contribuir para a legitimação das decisões judiciais,
sobretudo aquelas com base em valores fundamentalmente políticos, não se
limitando apenas a reformas processuais ou mesmo de direito substantivo. Tais
alterações terão pouca eficácia se não forem subsidiadas por uma mudança
estrutural do Poder Judiciário.
Essa visão é defendida também por Boaventura de Souza Santos:
96
TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz. Revista da Escola
Paulista da Magistratura, v.2, nº 2, julho-dezembro/2001, p. 195. 97
TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência... p. 195.
35
Por um lado, a reforma da organização judiciária, a qual não pode contribuir para a democratização da justiça se ela própria não for internamente democrática.
...
Por outro lado, a reforma da formação e dos processos de recrutamento dos magistrados, sem a qual a ampliação dos poderes do juiz propostas em muitas das reformas aqui referidas carecerá de sentido e poderá eventualmente ser contraproducente para a democratização da administração da justiça que se pretende. As novas gerações de juízes e magistrados deverão ser equipadas com conhecimentos vastos e diversificados (econômicos, sociológicos, políticos) sobre a sociedade em geral e sobre a administração da
justiça em particular98
.
Tudo o que foi visto acima serve para a análise da estrutura de piso do
Judiciário. Mas a problemática não se esgota aí, porquanto também no patamar de
cima as críticas são contundentes.
Para Walber de Moura Agra, “um dos elementos para aumentar a legitimação
das decisões da jurisdição constitucional (...) é a transformação do Supremo
Tribunal Federal em tribunal constitucional” 99 100. Essa transformação implicaria que
boa parte da atual competência do Supremo Tribunal Federal seria repassada ao
Superior Tribunal de Justiça. Logo, o passo seguinte não poderia ser outro senão o
Supremo Tribunal Federal deixar de ser órgão do Poder Judiciário, “sob pena de
desequilíbrio da isonomia de prerrogativas entre os três poderes” 101.
O outro ponto, segundo referido autor, é a composição de nossa Corte Suprema.
Aliás, a necessidade de transformação do Supremo em tribunal constitucional é pré-
requisito para a mudança de sua composição.
98
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 180. 99
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit.,
p.277. 100
Esse processo, aliás, lento e gradual, já está sendo posto em prática, conforme se pode verificar
pelas reformas constitucionais implementadas visando afastar o Supremo Tribunal Federal da obrigação de decidir causas cujo fundamento não esteja relacionado efetivamente com a jurisdição constitucional, como, por exemplo, a Emenda Constitucional de nº 45/2004, § 3º, art.102. 101
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit.,
p.281.
36
Realmente, os onze ministros do Supremo Tribunal Federal são nomeados pelo
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do
Senado Federal (parágrafo único do art. 101, Constituição Federal de 1988).
Todavia, o Senado Federal se apresenta nesse processo como um mero
coadjuvante, já que, muito raramente, da sabatina resulta algo contrário aos
interesses do Presidente da República.
Ora, se a tendência possível é que o Supremo Tribunal Federal se torne
preponderantemente uma Corte Constitucional, afastando-se do modelo de tribunal
de superposição – em sentido largo –, evidentemente sua composição nos moldes
como é processada atualmente põe em cheque a legitimidade das decisões do
órgão. É que essa reestruturação do Supremo Tribunal Federal permitiria que a
Corte pudesse atuar como um poder moderador, “não no sentido clássico
empregado pela Constituição de 1824, mas arbitrando os litígios entre os poderes
estabelecidos e zelando pela eficácia das normas constitucionais” 102. E, nessa
circunstância, parece razoável que a indicação de seus membros passe a ser tarefa
que envolva todos os poderes estabelecidos, e não, apenas, como se observa hoje,
apenas por um órgão (na prática).
A razão disso é porque “quanto maior o respaldo que seus membros gozarem na
sociedade, maior será a autoridade de suas decisões” 103. A composição do
Supremo Tribunal Federal, portanto, deverá ser plural, e seus membros igualmente
devem ter representatividade, quer dizer, “é necessário que sejam eleitos através de
uma acordo de forças públicas” 104, o que não significa dizer exatamente que tal
escolha seja feita pelo voto popular. Apenas que, seguindo esse norte, haverá uma
descentralização da nomeação dos integrantes da Corte Suprema. E o que é mais
crucial: a participação de outros órgãos políticos teria o condão de ilidir o
entendimento de que o Supremo Tribunal Federal continua a desequilibrar o
princípio da separação dos poderes105.
102
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.
282. 103
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.
283. 104 AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p. 283. 105
“A escolha necessita ser democratizada, permitindo a participação dos poderes
constitucionalmente estabelecidos, no que reforça o grau de legitimação dos ministros do Egrégio
37
As sugestões de Walber de Moura Agra são basicamente as seguintes106: (i) um
terço dos membros do Supremo Tribunal Federal seriam escolhidos pelo Congresso
Nacional; (ii) um terço pelo Presidente da República; e (iii) outro terço pelos
magistrados componentes dos Tribunais Superiores. Nos dois últimos casos, haveria
necessidade de referendo do Congresso Nacional. Mas não é só: (i) dentre os
escolhidos, determinado percentual procederia da classe dos advogados,
componentes do Ministério Público e professores universitários; (ii) mandato
prefixado, com prazo máximo de nove anos, sem reeleição; (ii) salto do número de
membros de onze para quinze; (iii) renovação parcial de seus componentes a cada
três anos, sendo que, em cada uma dessas oportunidades, a renovação se daria em
um terço de seus membros; e (iv) maior exigência da capacitação profissional dos
escolhidos, privilegiando-se os mais renomados professores universitários
catedráticos e membros da magistratura e do ministério público que se destacassem
pelo exercício de suas funções.
Evidente que processadas tais modificações nas estruturas do Poder Judiciário a
legitimação das decisões judiciais ganharia em estatura suficiente para aplacar a
noção de que a postura atual do Poder Judiciário constitui ofensa ao princípio da
separação dos poderes, permitindo-se mais facilmente apontar os excessos
praticados pelos juízes.
1.4 A função criativa do magistrado e a hermenêutica
1.4.1 Hermenêutica: evolução conceitual
Como forma de situar o estudo da hermenêutica no universo de aplicação do
Direito, iniciaremos uma singela introdução, com o propósito básico de demonstrar a
evolução do conceito de hermenêutica.
Tribunal e forçosamente de suas decisões”. AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.285. 106
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.
286.
38
Em face especialmente da obra de Gadamer, a hermenêutica é hoje
considerada como uma filosofia de interpretação107. Mas, em tempos remotos não
era assim. Existia a hermenêutica clássica, “vista como pura técnica de interpretação
(Auslegung)”108. Basicamente a partir do trabalho de Gadamer é que a visão da
hermenêutica como método interpretativo - sedimentada pelas escolas positivistas,
oriundas do iluminismo -, é que resta, afinal, superada109.
De fato, o termo hermenêutica é de origem clássica: “o termo grego
hermeneuein, que significa interpretar, é a raiz da qual a palavra hermenêutica
derivou” 110.
Segundo Margarida Maria Lacombe Camargo
...a origem do termo Hermenêutica tem como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Significava trazer algo desconhecido e ininteligível para a linguagem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo hermenuein, usualmente traduzido como “interpretar”, e o substantivo hermeneia, como interpretação, significam transformar aquilo que
ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender.
O autor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêutica como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir. Dizer, no sentido de
anunciar ou afirmar algo, relaciona-se, antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notícias fiéis das divindades.
No entanto, o predomínio da palavra entre os gregos fez com que a linguagem falada e sua vertente performática ganhassem relevo, e a hermenêutica passasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais importante do que simplesmente expressar, na medida em que as
107
NUNES JÚNIOR, Armandino Teixeira. A pré-compreensão e a compreensão na experiência hermenêutica. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3711 acesso em: 06 de jul. 2010. 108
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (em) crise... ob. cit., p. 192. 109
“A hermenêutica não é mais um método para substituir um já existente; pelo contrário, Gadamer se volta para as hermenêuticas porque vê nelas uma forma de conhecimento reprimido e entendimento bruscamente contido pelos procedimentos da Modernidade. Parte da missão de Gadamer em Verdade e Método é deixar que a dimensão hermenêutica da verdade fale mais alto novamente; para que isso aconteça, ele cria uma narrativa para relatar os inconstantes sucessos das práticas hermenêuticas. A narrativa começa no início do século XVIII, com técnicas hermenêuticas criadas para a interpretação correta da Bíblia. No discurso de Gadamer, as hermenêuticas eventualmente acabam vítimas do ‘canto da sereia’ da Modernidade e se vêem envolvidas na questão da metodologia. Isso tem o efeito de debilitar as hermenêuticas, colocando-as em competição direta com a ciência: uma competição fadada a perder. Mas, o resultado não é a rendição total. Gadamer encontra uma forma de reativar as hermenêuticas e resgatá-las das garras das preocupações epistemológicas do método, seguinte as chamadas ‘hermenêuticas da facticidade’ de Martin Heidegger. LAWN, Chris; Tradução de Hélio Magri Filho. Compreender Gadamer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 65. 110
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p.66.
39
palavras racionalizam e clarificam algo; é quando ganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E, quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna compreensível o que é estrangeiro, estranho
e ininteligível111
.
Depois, já em Roma, a hermenêutica assumiu um caráter eminentemente
prático: os jurisconsultos aplicavam o direito para cada caso específico. Ou seja, a
solução do caso era resolvida mesmo no plano individual. O direito era, portanto,
formulado a partir de um caso específico, onde repetida a hipótese debatida em
outro caso, eram reproduzidos os juízos constantes das decisões, cuja consolidação
no tempo, transformavam-nos em máximas.
A seguir, a hermenêutica alcançou notável projeção na seara religiosa. Primeiro
com os judeus – que tinham grande preocupação em interpretar a palavra de Deus,
em relação ao Antigo Testamento112. Segundo com os cristãos, diante do texto do
Evangelho. E, finalmente, com os protestantes do século XVII, que, “desejando
entender a escritura de maneira mais sistemática e menos alegórica”113, deram o
último passo para a hermenêutica assumir o papel exegético da correta
interpretação dos textos sagrados114.
Como visto, o modelo hermenêutico precedente consistia, grosso modo, na
sistematização de processos visando determinar-se o correto sentido dos textos.
Como consequência, na visão clássica, a hermenêutica não passava de “um
conjunto de métodos e técnicas destinado a interpretar a essência da norma”115.
Mas, segundo Margarida Maria Lacombe Camargo, é tão somente com o Iluminismo
que interpretação e hermenêutica deixam de significar a mesma coisa:
111 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao
estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar. 3 ed., 2003, p. 24. 112
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 25. 113
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 66. 114
“A visão padrão era de que se a Bíblia era a palavra de Deus, a divina revelação, então deveria ser interpretada autenticamente, e padrões de procedimentos corretos deveriam ser criados para cumprir a tarefa. Algumas estratégias hermenêuticas surgiram somente quando o texto bíblico parecia opaco e resistia ás traduções e explicações fáceis”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 67. 115
NUNES JÚNIOR, Armandino Teixeira. A pré-compreensão e a compreensão na experiência hermenêutica. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3711>. Acesso em: 06 de jul. 2010.
40
A hermenêutica passa, então, a se comportar como ciência preocupando-se com técnicas próprias do fazer interpretativo. E, ao investir na questão do método, a hermenêutica ganha particular
importância para a filosofia e para a teoria do conhecimento116
.
Em decorrência da influência da razão pura, predominante no pensamento
científico, é que a hermenêutica acaba por se resguardar no campo da lógica formal,
somente se desligando dessa tendência, segundo Camargo117, com o surgimento da
fenomenologia de Heidegger.
É bom não esquecer que, no final do século XIX, Wilhelm Dilthey (1833 – 1911),
antes mesmo de Heidegger, e depois de Schleiermacher, teve profunda influência
nessa passagem da hermenêutica, já que, por meio de seus estudos, livrou-nos “da
tendência prevalecente de juntar todos os conhecimentos em uma categoria ampla
da ciência”118. Ou seja, Dilthey desenvolveu no século XIX
...uma nova teoria sobre as ciências que não podiam experimentar-se ou observar-se empiricamente (como no caso da história, da ética, da lingüística, da ciência jurídica, entre outras), cujo objeto era a realidade histórico-social da vida humana. Dilthey chamou-as ciências de “ciências do espírito” em contraposição às físico-naturais. Assim, também, introduziu um novo termo para o conceito de entender, o “compreender”, para designar o conhecimento próprio daquelas ciências dos fenômenos sensíveis da natureza, utilizou o termo “explicar”...Compreender seria a captação do profundo e, nesse sentido, a hermenêutica deixava de ser simplesmente
explicativa para ser a compreensão da realidade119
.
Com essa distinção feita por Dilthey120, a ciência jurídica migrou para a categoria
das ciências do espírito. Ou seja, oxigenada a concepção da Ciência do Direito, foi
possível a Heidegger desenvolver a tese de que a
116
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 28. 117 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 29. 118
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 74. 119
LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... ob. cit., p. 103. 120
“Apesar de Dilthey ter sido capaz de identificar as diferenças entre as ciências naturais e humanas e mostrar como as ciências humanas eram hermenêuticas e não como a ciência natural que era envolvida na explicação, ele era um produto de seu tempo e foi incapaz de se liberar das restrições de uma busca por método. Dilthey acreditava na possibilidade de adquirir conhecimento objetivamente válido, mesmo que fosse intrinsecamente histórico e interpretativo. A mudança para as hermenêuticas históricas, isto é, as hermenêuticas que enfatizam o elo no entendimento entre o passado e o presente, é um momento importante, pois representa a principal fonte de recurso para
41
compreensão consiste no movimento básico da existência, no sentido de que compreender não significa um comportamento do pensamento humano entre outros que se possa disciplinar metodologicamente e, portanto, conformar-se como método científico. Constitui, antes, o movimento básico da existência humana. Compreender, para Heidegger, é a “forma originária de realização do estar-aí, do ser-no-mundo” 121.
1.4.2 Escolas hermenêuticas
1.4.2.1 Aspectos gerais
Em tópicos anteriores deste estudo, já foram analisadas boa parte das razões
históricas que deram origem a hoje tão decantada criação judicial do direito. Mais
especificamente, restaram examinadas as transformações pelas quais vêm
passando o Estado de Direito, e a importância desses aspectos na considerável
distensão que se observa da função jurisdicional, notadamente aquela de trato
constitucional, e, via de conseqüência, em um desnivelamento, “pelo menos sob o
aspecto prático, no equilíbrio entre os Poderes em favor do Judiciário” 122.
Nesse item, e considerando o quadro antes descrito, serão analisadas as
principais críticas referentes à aplicação do direito por parte das principais escolas
hermenêuticas. É necessário, todavia, fazer uma advertência: não se pretende
adiante apresentar uma exposição detalhada das diversas doutrinas jurídicas
ministradas por seus principais autores, que compartilham da noção da inadequação
da decisão judicial como um postulado de um silogismo puro e simples. É que o
objetivo desta pesquisa não é, em absoluto, pôr à vista de forma sistematizada e
completa tais e diversas teorias ou perfilhar um a um os autores que melhor as
defenderam; a ideia é tão somente apresentar breves pinceladas, que se pretende
sirvam de apoio para o leitor melhor poder se deslocar até o tema central do
trabalho.
inspiração do mentor de Gadamer e Heidegger”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 76. 121 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 29.
122 MORAIS, Dalton Santos. A atuação judicial criativa nas sociedades complexas e pluralistas
contemporâneas sob parâmetros jurídico-constitucionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Revista de Processo, ano 35, n. 180, fev./2010, p. 65.
42
Foi após a promulgação especialmente do Código Civil de Napoleão que se
começou a falar efetivamente em hermenêutica jurídica. Não que antes não
houvesse sido desenvolvida alguma técnica de interpretação do direito, mas é tão-só
no contexto do liberalismo francês que se pode pensar no estudo da hermenêutica
jurídica à vista de um sistema teórico.
Herkenhoff divide em três grandes grupos as principais escolas do pensamento
jurídico-hermenêutico: escolas do estrito legalismo; escolas de reação ao estrito
legalismo; e escolas que se abrem a uma interpretação livre123. Ainda que a divisão
seja didaticamente interessante, prefere-se aqui abstrair tal indústria, a fim de deixar
a leitura do texto menos propensa a conferências, para que se possa, em alguns
casos, dar-se mais ênfase ao pensamento individual dos jusfilósofos que às
correntes que propriamente eles lideraram.
1.4.2.2 Escola da Exegese
Muito embora versado em latim, o brocardo in claris cessat interpretatio não tem
origem romana. Aliás, adverte Carlos Maximiliano, Ulpiano afirmava exatamente o
contrário: quamvis sit manifestissimum edictum proetoris, attamen non esta
negligenda interpretatio ejus – “embora claríssimo o edito do pretor, contudo não se
deve descurar da interpretação respectiva” 124. Isso porque, de fato, “a exegese
praticada em Roma não se limitava aos textos obscuros, nem lacunosos” 125.
Mesmo assim, a Escola da Exegese, basicamente edificada pelos juristas
franceses de escol do século XIX, sustentava a doutrina de que o Código Civil
Napoleônico “continha a solução para todos os conflitos sociais, bastando para tanto
saber interpretar a lei” 126. É que o racionalismo jurídico contagiante à época fazia os
juristas pensarem ter solucionado todos os problemas com a promulgação dos
códigos. Ou seja, era suficiente que os textos legais fossem elaborados de maneira
clara e precisa e todas as controvérsias humanas estariam como num passe de
123
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito: à luz de uma perspectiva axiológica,
fenomenológica e sociológico-política. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 33. 124
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 27. 125
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 27. 126
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica e razoabilidade. Brasília: Revista de Informação Legislativa, ano 38, n. 151, jul./set. 2001, p. 240.
43
mágica solucionadas. Daí proclamavam seus arautos que, descartado o problema
da interpretação, a tarefa dos juízes estaria limitada a uma mera aplicação dessas
mesmas leis precisamente confeccionadas.
A concepção do direito, portanto, consistia em um processo de subsunção de
fatos a normas, por meio de um raciocínio expresso por um silogismo em que a
premissa maior é a norma, a premissa menor é o fato e a conclusão a adequação
entre premissa maior e premissa menor 127.
É dizer, a Escola da Exegese tinha na lei escrita a única fonte do Direito, razão
pela qual, na aplicação da norma, havia uma busca constante a fim de se revelar a
intenção do legislador (mens legislatoris) e, no insucesso desse processo - afinal
nem sempre havia a possibilidade de se investigar a vontade do Parlamento, pelo
fato de as leis não serem comentadas pelos próprios legisladores -, fazer conhecer a
vontade da lei (mens legis).
Mas é a frase do belga François Laurent, transcrita por Maria Helena Diniz, que
traduz com perfeição o traço então marcante de culto dessa escola ao teor da lei:
Os Códigos nada deixam ao arbítrio do intérprete, este não tem mais por missão fazer o direito: o direito já está feito. Não existe mais incerteza, porque o direito está escrito nos textos, já há segurança dos textos. Mas para que esta vantagem dos códigos seja real é preciso que os juristas e os juízes aceitem sua nova posição de
subalternos ao Código... Diria até que devem resignar-se a ele” 128
.
Duas palavras se destacam no pensamento acima transcrito que, no fundo,
permeiam toda a racionalidade hermenêutica até os dias atuais, como se verá ao
final desse item: incerteza e segurança.
1.4.2.3 Escola Histórica do Direito
Como reação à ideia do silogismo subsuntivo, na qualidade de parâmetro único
para aplicação da norma, a Escola Histórica do Direito, surgida na Alemanha,
127
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 240. 128 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 51.
44
no princípio do século XIX, “proclamava a historicidade do Direito, cuja origem e
fundamento repousariam na consciência nacional e nos costumes jurídicos oriundos
da tradição” 129.
João Paulo Allain Teixeira explica o desenvolvimento dessa escola:
[esse desenvolvimento] em muito se deve à experiência hermenêutica alemã, em que se desenvolve a corrente Pandectista. Por não existir na Alemanha até então um Código Civil (o Código Civil Alemão data de 1900), o direito alemão era inspirado em textos clássicos da tradição romana. Tendo como base o Digesto, a hermenêutica alemã permitiu uma certa flexibilização do texto admitindo na adaptação a observância dos usos e costumes. Foi a partir dessa escola que surgiu o conceito de “intenção possível do
legislador”, elaborado por Windscheid 130
.
É com base, porém, no pensamento de Savigny, de que o “direito legislativo
deveria ter a única função de oferecer suporte aos costumes para diminuir-lhes as
incertezas e as indeterminações” 131, que a Escola Histórica apresenta sua principal
proposta: de que a lei, por sofrer influências no transcorrer do tempo e da realidade
social em que se encontra, troca prestígio com o meio ambiente e por isso tem o seu
significado modificado constantemente 132.
O pecado maior da Escola Histórica foi petrificar as ordenações tradicionais de
tal forma que gerou uma espécie de fetichismo da história de forma análoga a da
Escola da Exegese em relação à lei 133.
1.4.2.4 Movimento do Direito Livre
Em passos largos, chega-se às escolas que postulam uma interpretação mais
livre, como por exemplo, as escolas do Direito Livre. Na verdade, não se trata de um
grupo de pensadores que dão abrigo a uma teoria precisa. Sob diversas
denominações (Livre Pesquisa Científica / Escola do Direito Justo), o Movimento do
Direito Livre reúne uma gama de jusfilósofos que defendem, entre tendências
129
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 40. 130
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 241. 131
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 77. 132
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 241. 133
GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 32.
45
moderadas a radicais o propósito de que o sistema jurídico não comporta nem
monopoliza os valores sociais que podem ser sopesados pelos juízes nas soluções
dos casos134. Por ter publicado em 1899 o “Méthode d’Interpretation et Sources en
Droit Prive Positif”, François Gény estabeleceu o marco histórico da Escola da Livre
Pesquisa Científica. Foi, portanto, seu principal expoente. Gény defendia
basicamente o entendimento de que, “na falta de uma norma, o juiz está autorizado
a construir a sua decisão a partir das bases sólidas dos elementos objetivos
revelados por métodos científicos” 135.
Ou seja,
Ante lacunas da lei, deveria o intérprete recorrer a outras fontes (o costume, a jurisprudência, a doutrina), e não forçar a lei para que desse soluções a casos não previstos. Se as fontes suplementares fossem insuficientes, caberia ao próprio aplicador do Direito criar a norma, como se fosse legislador. Nessa tarefa deveria proceder à “livre investigação científica do Direito”. Não se tratava de procurar uma regra jurídica já escrita, que pudesse ser invocada por analogia, mas, sim, de descobrir, através da pesquisa científica dos fatos
sociais, a regra jurídica adequada136
.
As ideias de Gény até hoje são seguidas, haja vista sua contribuição de ter
conseguido em definitivo superar a imagem do juiz como mero intérprete da lei,
pesquisador tão-somente da vontade do legislador137.
A tendência do movimento teve outro marco por meio da publicação do livro de
Hermann Kantorowicz (sob o pseudônimo de Gnaeus Flavius), cuja tese defendida
era no sentido de que o juiz, ao decidir, considerasse “os fatos sociais que deram
origem e condicionam o litígio, a ordem interna das associações humanas, assim
como os valores que orientam a moral e os costumes” 138. Afinal, segundo
Kantorowicz, “o povo conhece o direito livre, enquanto desconhece o direito estatal,
a não ser que o último coincida com o primeiro” 139.
134
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 51. 135
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 241. 136
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 48-49. 137
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 51. 138
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 98. 139
Apud. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 99.
46
Diante do quadro, Lúcio Grassi abre espaço para afirmar que, segundo o
pensamento defendido pela Escola do Direito Livre, já não é mais possível ver o
magistrado apenas como um especialista em lei, já que o julgador recebe
autorização para voltar os olhos para a sociedade, afinal é a vontade livre do homem
que se constitui em fonte de ordenações que regem o comportamento dentro desses
grupos140.
Por essa doutrina, a vontade do intérprete pode predominar sobre a vontade da
lei ou do legislador. Ou melhor: “a tese fundamental da Escola do Livre Direito é a de
que o Direito não é, nem deve ser, criação exclusiva do Estado. Por conseguinte, a
lei não é a única fonte de Direito e o juiz não deve ser inteiramente submisso a
ela”141.
1.4.2.5 O positivismo de Hans Kelsen
Após a força do pensamento revolucionário da Escola do Direito Livre, e com o
pano de fundo histórico marcado pela decadência do capitalismo logo após a
Primeira Grande Guerra, Kelsen surge defendendo o ponto de vista de que o direito
desempenha “o papel de uma moldura que, em presença da vontade do intérprete,
aliada ao conhecimento, daria origem a um quadro, que representa o direito a ser
aplicado” 142.
João Paulo Allain Teixeira explica que para Kelsen
A função do intérprete do direito enquanto cientista, nada mais é do que determinar os limites do juridicamente impossível, ou seja, os limites da moldura dentro da qual a interpretação é possível. Querer ir além disso significa abrir mão da cientificidade do direito em favor da política143.
140 GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 43. 141
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 54. 142
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 242. 143
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 242.
47
A bem da verdade, essa vocação de neutralidade144 — ou adiáfora, na dicção de
Maria Helena Diniz 145, não significa dizer que Kelsen negasse valor à sociologia do
direito, como ciência, por exemplo. Kelsen apenas excluía do objeto de seu estudo
todo o conteúdo de sociologia, de justiça e seus respectivos juízos axiológicos146. A
ciência, para Kelsen, como já dito, deveria diferenciar-se da política. Nesse sentido,
a síntese de Eduardo Bittar e Guilherme Almeida:
O político e o jurídico devem estar separados para que a ciência jurídica não se contamine com elementos de natureza política, correndo o risco de perder sua independência. A ciência não é ciência dos fatos, de dados concretos, de acontecimentos, de atos sociais. A ciência, para Kelsen, é a ciência do dever-ser, ou seja, a ciência que procura descrever o funcionamento e o maquinismo das
normas jurídicas147
.
No mesmo tom é o texto de Margarida M. L. Camargo:
Kelsen isola do direito qualquer indagação do tipo quem fez a norma, por quem a fez, quais os interesses ou valores que encerra, etc., pois, segundo ele, tais questões pertencem ao campo de considerações próprio da ciência política, da psicologia, da ética ou da sociologia. O fundamento de validade do direito não está, para Kelsen, na origem ou na fundamentação social do ato, mas na própria norma (superior) que o autoriza, ou melhor, na norma que o prescreve. Assim, para efeitos metodológicos, o direito, como norma ou ordenamento jurídico positivo, encerra-se em si prevendo e
controlando sua própria existência, bastando a si mesmo148
.
Ainda, para Margarida Maria Lacombe Camargo, Kelsen fez escola, na medida
em que hoje é possível distinguir dois grupos básicos de jusfilósofos: os formalistas
ou kelsenianos e os não-formalistas ou não-kelsenianos. A distinção é simples: os
primeiros representam o pensamento que privilegia o que consta do texto legal
validamente posto, abstraindo-se qualquer pretensão de se indagar o conteúdo
valorativo. Com essa postura, é dada preferência à segurança, e, por conseqüência,
garante-se a ordem pública. Os não-formalistas são os que admitem que o direito
144
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 102. 145
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução... ob. cit., p. 117. 146
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 5 ed. São Paulo: Atlas. 2007, p. 361. 147
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.
361. 148
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 109.
48
sofre influência de disciplinas outras (caráter zetético), sem, todavia, abominarem o
seu aspecto científico149.
1.4.2.6 Tópica e Jurisprudência
Já a tópica de Theodor Viehweg tornou-se referência obrigatória na filosofia do
direito da segunda metade do século XX150. Seu livro “Tópica e Jurisprudência”
representa, assim, um marco na história do pensamento jurídico, porque expõe uma
nova forma de pensar para a ciência jurídica151 152.
A tópica desenvolvida por Viehweg não tem pretensão de ser um método, mas
um estilo153. Isto é, “não é um conjunto de princípios para avaliação de evidência,
cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para solucionar
hipóteses” 154. A tópica representa uma técnica de pensamento “que se orienta para
o problema e não para o sistema” 155:
Para Margarida Maria Lacombe Camargo
Viehweg vê uma nova posição do jurista, a quem não cabe mais entender o direito como algo que se limite a aceitar, mas sim como algo que ele constrói de maneira responsável. Logo, acredita ser preciso desenvolver um estilo especial de busca de premissas que, com o apoio em pontos de vista amplamente aceitos, seja inventivo, menosprezando reduções lógicas que nos levem a generalizações incapazes de entender e muito menos de resolver os problemas
adequadamente156
.
149
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 101. 150
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 139. 151
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.
423. 152
Cf. Bittar: “No final da Segunda Guerra Mundial (1945), Viehweg, que estudara Direito e filosofia e exercera a profissão de juiz, estava desempregado. A fim de sobreviver, estabeleceu-se num pequeno povoado rural, próximo de Munique. Perto de sua casa, descobriu uma biblioteca intacta, escondida dentro de um claustro. Iniciou, então, uma minuciosa pesquisa que teve como produto final Tópica e jurisprudência, apresentado à Universidade de Munique para obtenção do título de livre-docente e publicado, em 1953”. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p. 423. 153
Cf. Tercio Sampaio no prefácio da obra de Viehweg, p.3. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Júnior. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, Brasília: 1979. V. 1 (Coleção Pensamento Jurídico Contemporâneo). 154
GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 71. 155
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 243. 156
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 157.
49
O homem comum sempre recorreu às máximas retiradas de obras clássicas de
escritores e poetas, a fim de argumentar a contento em uma discussão. No ambiente
jurídico não é diferente. De fato, em nossa seara são comuns as referências a
apotegmas: “são aqueles loci communes cumulativos, coleções de ditados, fórmulas
a respeito de tópicos variados, com objetivos didáticos” 157. Topoi é isso: significa
lugar comum. Ou ainda: trata-se de “fórmulas, variáveis no tempo e no espaço, de
reconhecimento da força persuasiva” 158. No Direito, são exemplos de topoi,
interesse público, boa-fé, autonomia da vontade.
Como já referido, Viehweg desenvolveu uma técnica cuja finalidade é buscar
premissas (topoi) para um argumento visando elucidar uma questão. O núcleo
central de suas observações está no fato de que a tópica, como uma técnica de
pensamento, caracteriza-se pelo problema159. É dizer, “constitui um modo de pensar
por problemas, a partir deles e em direção a eles”160. Dessa forma, o ponto de
partida de toda discussão inicia-se “no conceito de problema (que Viehweg também
chama de ‘aporia’) que se define como toda questão que, aparentemente, admite
mais de uma resposta” 161.
Em síntese, o esquema é assim elucidado por Lúcio Grassi:
Na busca dessa solução, utilizam-se noções-chave como “interesse público”, dar a cada um o que é seu”, entre outras, os chamados topoi, que têm sua graduação de força de acordo com a realidade social em constante mutação. Assim, pode-se, em determinado momento histórico, dar preferência ao topos “dar a cada um o que é seu”, para garantir, por exemplo, o direito de propriedade de um indivíduo em prejuízo de uma coletividade de produtores rurais e, em outro momento, prevalecendo o topos interesse público, dar
preferência à manutenção da propriedade pelo grupo de produtores rurais, de acordo com a função social da propriedade162.
157
PISTORI, Maria Helena Cruz. Argumentação jurídica: da antiga retórica a nossos dias. São Paulo: Editora LTr, 2001, p.145. 158
Cf. Tercio Sampaio no prefácio da obra de Viehweg, ob. cit., p. 4. 159 NOJIRI, Sergio. A interpretação judicial do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 99. 160
GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 71. 161
NOJIRI, Sergio. A interpretação judicial... ob. cit., p. 99. 162
GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 72.
50
Viehweg não se propõe a ser propriamente um contestador do positivismo
jurídico. Todavia, com seu trabalho, que influenciou diversos outros jusfilósofos
(Chaim Perelmen, v.g.) disponibilizou uma nova racionalidade contra o apego
exagerado ao tecnicismo Kelseniano. Graças às análises críticas de Viehweg, a
argumentação dialética é reintroduzida no sistema jurídico, servindo de instrumento
importante para o aplicador do Direito, ao mesmo tempo em que traz de volta para o
estudo hermenêutico a prudência e a equidade da jurisprudência romana163.
Os críticos ao trabalho de Theodor Viehweg, contudo, não foram poucos.
Tercio Ferraz assinala que a busca de solução por meio do uso dos topoi, em
regra, leva a argumentação a um jogo eminentemente assistemático, em que se
observava ausência de rigor lógico164.
Maria Helena Cruz Piston adverte para o fato de que, embora o repertório de
topoi seja elástico, “os pontos de vista que até um determinado momento eram
admissíveis costumam permanecer assim por longo tempo, pois custa trabalho tocar
naquilo já fixado”165. Esse aspecto de engessamento apontado por Maria Piston
resulta num agravamento quando Viehweg põe em último plano outras
possibilidades de solução lógica para o problema, como a aplicação da lei pura e
simples166
.
1.4.2.7 A lógica do razoável de Recaséns Siches
Para Recaséns Siches, o Direito não é fenômeno da natureza física ou psíquica,
mas fato histórico167. A vida não é uma obra acabada, razão pela qual é construída
momento a momento168. Disso resulta que, para esse jusfilósofo, “a norma deve ser
interpretada e aplicada circunstancialmente, ou seja, considerando a variação da
163
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 156. 164
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.
4 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 331. 165
PISTORI, Maria Helena Cruz. Argumentação jurídica: da antiga retórica a nossos dias. São Paulo:
Editora LTr, 2001, p. 151. 166
“Daí resulta, com especial clareza, que a dedução, que, como é natural, é imprescindível em todo
pensamento, aqui não desempenha de nenhum modo o papel de liderança, nem pode desempenhar o que às vezes se poderia desejar para ela e o que lhe corresponderia se existisse um sistema perfeito”. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência..., ob. cit., p. 94. 167
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 74. 168
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 75.
51
circunstância (razão histórica), desde quando a norma foi criada até quando venha a
ser aplicada” 169. Na aplicação do Direito, não haveria assim “uniformidade lógica do
raciocínio matemático, porém flexibilidade para o entendimento razoável do preceito
normativo” 170.
Com base nessas premissas de Recaséns Siches, segue a lição de João Paulo
Allain Teixeira:
Anota Siches que a lógica formal é inadequada para pensar a decisão jurídica já que trata fundamentalmente de formas válidas existentes em toda a realidade jurídica e por isso inadequada para a determinação dos conteúdos normativos.
Assim, a lógica jurídica formal nada nos ensina sobre justiça e nem sobre a vida dos relacionamentos humanos, antes demandando uma reelaboração das formas tradicionais de conceber o direito. Essa nova perspectiva surge a partir da jurisprudência com a contraposição entre a lógica racional de fundo matemático e a lógica do razoável enquanto logos do humano (1971, p. 411).
A postura do mestre mexicano parte da observação de que a tradição jurídica do século XIX, ainda influenciada pelo racionalismo cartesiano, acredita que os conteúdos das normas jurídicas são proposições lógicas sobre as quais é possível um juízo de verdade ou falsidade. Para Siches, isso representa um grande equívoco, pois as normas jurídicas, sendo instrumentos práticos, destinados ao controle social, não são expressões de fatos e nem expressões de nenhum saber (1971, p. 419).
Ocorre que a tradição moderna, não enxergando outras formas de manifestação de lógica que não aquela aplicada ao campo físico-matemático, provoca uma supervalorização da lógica formal, de cunho sistemático-dedutivo171.
É por isso que, para Siches, a solução que prima pelo razoável não se opõe à
ordem jurídica, já que, na verdade, é fiel a ela172, pois busca, no âmbito da ordem
estabelecida, “dar ao caso concreto a solução mais justa e possível” 173.
169
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 75. 170
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 75. 171
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 244-245. 172
David Schnaid demonstra, no texto a seguir transcrito, uma visão extremamente prática e atual da
teoria de Recaséns Siches: “L. Recaséns Siches vê na atividade do juiz uma prudência, afirmando que as decisões, antes de serem racionais, são razoáveis, segundo o logos do razoável. O juiz opera com uma realidade mutante, cujas circunstâncias em cada caso são variáveis, e ela nem sempre se presta à aplicação de esquemas racionais preestabelecidos para o comportamento das pessoas. As normas jurídicas revivem toda vez que são aplicadas, são instrumentos práticos para a vida do
52
E como se dá o raciocínio por meio da lógica do razoável? Imagine-se que um
agente de polícia fica postado à entrada de um parque municipal para fazer observar
o regulamento que proíbe a entrada de veículos. Poderia o policial permitir a entrada
de uma ambulância que veio buscar uma vítima de acidente cardíaco ou de um
carro de serviço encarregado de recolher as folhas e os galhos quebrados pelo
vento174? Evidentemente que se o policial municipal for aplicar na hipótese
estritamente um raciocínio lógico-dedutivo, não poderá permitir a entrada de todo e
qualquer veículo. Contudo, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso
perceberá que tal conclusão seria irrazoável. O exemplo, portanto, serve para
demonstrar o quanto é insuficiente, pela ótica da Recaséns Siches, o raciocínio
lógico para resolver todos os problemas de ordem normativa. Para Siches, o que
qualquer pessoa de bom senso utilizaria para obter a solução mais adequada da
questão é o que se pode denominar de lógica do razoável. Porém, Siches não
admite que uma decisão judicial deva fugir dos parâmetros legais.
O razoável deve atuar na consciência do julgador como uma têmpera suficiente
para evitar interpretações díspares da lei.
Na opinião de João Baptista Herkenhoff, a doutrina de Recaséns Siches, além
de trazer para a racionalidade jurídica grandes aclaramentos aos problemas
hermenêuticos, de resto, e em especial: a) afirma a autonomia da função
jurisdicional, que escapa a qualquer disciplinamento legislativo; b) infirma a noção
de que, na aplicação do Direito, não há espaço para a lógica formal, uma vez que
tudo que pertence à existência humana impõe a lógica do humano e do razoável,
impregnada de critérios valorativos; e c) toca, finalmente, no problema da segurança
jurídica (trincheira daqueles que pugnam por um Direito cartesiano) afirmando que
homem, e o juiz, ao aplicá-las e interpretar, opera com valorações e completa a obra do legislador, numa autopoiésis. O Direito contido na norma nunca é um Direito já concluído, e o legislador, intencionalmente, elabora a norma como uma obra inacabada. A produção do Direito se completa na sua aplicação aos casos concretos. Esse autor acredita na intuição jurídica que orienta o juiz na sua tarefa, que é essencialmente valorativa, e a justificação de uma sentença não passa de artifícios de lógica, pois primeiro o juiz intui qual é a decisão justa, ‘e depois, se ensaia qual dos métodos tradicionalmente registrado e admitidos de interpretação poderia ser apresentado, na mise-en-scène da sentença, como o metido que havia levado a essa conclusão’”. SCHNAID, David. Filosofia do direito e interpretação. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 236. 173
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 77. 174
Exemplo retirado do livro de Perelman. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica.
Tradução de Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes. 1998, p. 73.
53
não há segurança absoluta na vida humana, pelo que não tem procedência exigir
segurança ao Direito175.
1.4.2.8 Argumentação e Retórica
Merece destaque também o trabalho de Chaïm Perelman, jusfilósofo belga
(polonês de origem), autor de inúmeras obras na área da filosofia jurídica, e que se
notabilizou sobretudo pelo estudo direcionado para a teoria da argumentação
voltada para aplicação no Direito. Na opinião de David Schnaid, Perelman associava
“a argumentação à retórica, através de uma lógica da persuasão: quem argumenta,
faz isso para alguém, para um auditório, visando à adesão dos espíritos à tese
contida na argumentação”176. É a retórica como teoria da argumentação, na busca
da decisão judicial177.
Argumentar é uma arte em que se procura, por meio da comunicação em geral,
mecanismos suficientes para persuadir. A argumentação processa-se pelo discurso,
ou seja, “por palavras que se encadeiam, formando um todo coeso e cheio de
sentido, que produz em efeito racional no ouvinte” 178.
A retórica de Perelman tem como objetivo sacramentar uma teoria de
argumentação capaz de lidar com valores. Ocorre que os juízos de valor não podem
ser comparados aos juízos de verdade das ciências que se valem de uma lógica
dedutiva179. Víctor Rodríguez traz exemplo interessante para que se possa fazer fácil
a distinção entre lógica dedutiva e argumento retórico:
Conta-se que, em um plenário do júri, um promotor exibia aos jurados as provas processuais. Procurava, portanto, na prática de um discurso judiciário, convencer os jurados a respeito de sua tese. Mostrava a eles, com muita propriedade – argumentando –, que o laudo elaborado pela polícia técnica concluía que havia 99% de chance de que o projétil encontrado no corpo da vítima fatal houvesse sido disparado pelo revólver de propriedade do réu. Queria dizer o acusador que o réu não poderia, diante daquela prova concreta, negar a autoria do crime. Diante de tal fortíssimo
175
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 78. 176
SCHNAID, David. Filosofia do direito... ob. cit., p. 231. 177
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 185. 178
RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal.
4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 13. 179
NORJORI, Sergio. A interpretação judicial do direito... ob. cit., p. 92.
54
argumento, a probabilidade matemática, o defensor, em tréplica, formulou aos jurados a seguinte pergunta retórica: “Suponhamos que eu tivesse um pequeno pote com cem balinhas de hortelã. E que eu, então, pegasse uma delas, tirasse do papel celofone que a envolve e, dentro delas, injetasse uma dose letal de um veneno qualquer. Em seguida, que eu embrulhasse novamente o caramelo letal, colocasse dentro do pote com outras 99 balinhas idênticas e misturasse todas. Teria algum dos jurados coragem de tirar do pote um caramelo qualquer, desembrulhá-lo e saboreá-lo? Certamente que não. Pois, se ninguém se arrisca à morte ainda que haja 99% de chance de apenas se saborear um caramelo de hortelã, ninguém pode condenar o acusado, ainda que haja 99% de chance de haver disparado sua arma contra a vítima”? Conta-se que, lançando mão
desse argumento conseguiu a absolvição de seu cliente 180.
Portanto, pela linha de raciocínio de Perelman, as sentenças proferidas pelos
juízes não podem ser equiparadas a verdade, posto que o objetivo do juiz é obter
adesão generalizada de suas decisões181. Nas decisões judiciais, o que o
magistrado busca é convencer, utilizando-se, para tanto, de técnicas de
argumentação voltadas para o público (auditório) a que a sentença é direcionada182.
Em síntese, nas decisões judiciais não há dedução, porém argumento.
A noção de auditório é importantíssima para o sucesso da retórica, “pois um
discurso só pode ser eficaz se é adaptado ao auditório que se quer persuadir ou
convencer”183. Além do mais, exige-se uma linguagem comum “que possa ser
compreendida pelos ouvintes, que lhe seja familiar” 184.
Esclarece ainda Perelman:
Para persuadir o auditório é necessário primeiro conhecê-lo, ou seja, conhecer as teses que ele admite de antemão e que poderão servir de gancho à argumentação. É importante não só conhecer quais são as teses admitidas pelos ouvintes que fornecerão à argumentação seu ponto de partida, mas também a intensidade da adesão do auditório. De fato, o mais das vezes, em uma controvérsia, as teses se opõem umas às outras e prevalecerá aquela à qual se confere maior peso, à qual se adere com maior intensidade. Vincular uma argumentação a premissas às quais se concede uma adesão apenas de fachada é tão desastroso como pendurar um quadro pesado a um prego mal fixado à parede: tudo corre o risco de vir abaixo e, sem vez de ver adotadas as conclusões, em conseqüência da
180
RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica... ob. cit., p. 21-22. 181
NORJORI, Sergio. A interpretação judicial... ob. cit., p. 92. 182
NORJORI, Sergio. A interpretação judicial... ob. cit., p. 92. 183
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica... ob. cit., p 143. 184
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica... ob. cit., p 145.
55
solidariedade estabelecida entre elas e as teses iniciais, estas é que serão abandonadas pelo auditório se as conclusões em que resultou a argumentação lhes parecem menos aceitáveis do que as teses das quais dependem. É por este motivo, aliás, que certos discursos, como os elogios fúnebres, as cerimônias patrióticas e religiosas, as comemorações de toda espécie, são tão importantes para fortalecer a adesão aos valores que poderiam ser postos à prova em outras
ocasiões185
.
Há mais um exemplo interessante trazido por Víctor Gabriel Rodríguez que
esclarece o que Perelman entende por conhecer de antemão o auditório, e, por
conseguinte, as teses que melhor poderão servir à argumentação:
Um advogado, colega de larga perspicácia, contou-nos fato muito ilustrativo: fora ele a uma sessão de julgamento no tribunal encontrar alguns desembargadores. Lá estavam todos os três magistrados que participariam do julgamento da causa em que atuava, na sessão da semana seguinte. Trazia o advogado, dentro de um envelope grande, seus memoriais, um texto curto entregue como última oportunidade argumentativa aos julgadores.
Não desejando interromper a sessão, sentou-se e assistiu a uma parte dela. Observou, então de modo arguto, o comportamento do julgador já sorteado como relator da causa de seu interesse, agendada para a sessão da semana seguinte. “Quando expunha seus votos”, disse o colega com natural exagero, “para cada cinco expressões que utilizava, três eram contra legem”. Desisti de entregar os memoriais e voltei para o escritório para redigir outros, mais adequados.
“Naqueles novos memoriais”, contava, “fiz questão de indicar quase que somente o texto da lei em que se apoiava meu pedido. E disse, mais de uma vez, com grande realce, que aceitar o pedido da parte contrária seria desatender à lei positiva, seria referendar um
resultado contra legem. E ganhei a causa” 186
.
Bittar e Almeida destacam as preocupações principais de Chaïm Perelman:
Entende-se que a principal preocupação do autor foi o raciocínio jurídico, ou seja, procura lidar, e conciliar com as seguintes questões: a) como se raciocina juridicamente? b) qual a peculiaridade do raciocínio jurídico: c) quais as características desse raciocínio? d) de onde extrai o juiz subsídios para a construção da decisão justa? e) até onde leva a argumentação das partes em um processo? f) qual a
185
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica... ob. cit., p 146. 186
RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica... ob. cit., p. 21
56
influência que a argumentação e a persuasão possuem para definir
as estruturas jurídicas?187
Como se vê, os estudos de Perelman denotam uma preocupação marcante em
relação à criação da norma individual. Mas não é só isso. Para Perelman, e no ponto
que aqui interessa, o juiz, diante da necessidade de preencher as lacunas da lei,
necessariamente acaba por elaborar as normas. E nesse processo de elaboração de
normas, Perelman preocupa-se, no ponto, em como evitar que o juiz exerça esse
poder de forma arbitrária; ou seja: onde encontrar garantias de imparcialidade?188
Nesse questionamento a respeito da segurança jurídica, Perelman percebe que
a atribuição dos magistrados, no momento de realizar o direito, através de suas
decisões, é muito mais complexa do que a realidade apresenta, haja vista que, em
sua ótica, o sistema jurídico não pode ser considerado um sistema fechado, mas
aberto. Disso resulta que,
Desvencilhando o raciocínio jurídico das tramas da lógica formal, Perelman visa afirmar que a lógica jurídica diferencia-se das demais por ser uma lógica dialética ou argumentativa. Nesse sentido, não é dedutiva, não é rígida, não é abstrata, nem a priori dos fatos em julgamento. O raciocínio jurídico desenrola-se com base em fatos concretos, em situações flagrantes, em meio a contextos políticos... de onde emergem decisões que condensam a justiça concreta de cada caso. Trata-se de um modelo teórico que apela para a casuística na determinação do justo e que inscreve à argumentação a tarefa de instrumentalizar as atividades do jurista e dos operadores
do direito189
.
187
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.
430. 188
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica... p. 63. O texto do autor é bastante elucidativo, e demonstra, implicitamente, a preocupação com a segurança jurídica: “O problema das lacunas nasceu com o princípio da separação dos poderes que impõe ao juiz a obrigação de aplicar um direito preexistente e que se supõe ser-lhe conhecido. Antes da Revolução Francesa, este problema não existia, pois o juiz devia encontrar a regra aplicável: na ausência de uma regra expressa, podia procurar outras fontes do direito além da positiva e, se as fontes não fossem concordes, importava saber em que ordem deveriam ser classificadas essas fontes de direito supletivo. Como não era provido aos juízes formularem regras por ocasião de litígios (‘as sentenças de regulamentação’) e não tinham de motivar suas sentenças de forma expressa, compreende-se que o problema da lacunas não tenha surgido antes do século XIX. A obrigação de preencher as lacunas da lei concede, ipso facto, ao juiz a faculdade de elaborar normas. Se ele não é, como na common law, necessariamente criador de regras de direito, pois suas decisões não constituem precedentes que outros juízes são obrigados a seguir, mesmo assim, ele elabora regras de decisão que lhe fornecerão a solução do problema que lhe é submetido. Como evitar que o juiz exerça esse poder de modo arbitrário, onde encontrar garantias de imparcialidade?”. 189
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.
441.
57
1.4.2.9 A Nova Hermenêutica de Gadamer
Viu-se que para Heidegger a compreensão não é um modo de conhecer, mas a
própria existência190. Já Gadamer, embora parta desses ensinamentos de
Heidegger, evolui, porque acredita que compreender é experiência191. Na dicção de
Camargo, nesse ponto, Gadamer entende que
o estar aí é, na realização do seu próprio ser, compreender. Mas, na realidade, nem o conhecedor nem o conhecido “se dão”, “onticamente”, mas “historicamente”, isto é, participam do modo de
ser da historicidade192
.
Em relação ao termo “historicidade” acima utilizado por Gadamer, adverte Ana
Maria D’Ávila Lopes:
Mas não devemos confundir essas idéias com as da Escola Histórica, pois Gadamer teve especial cuidado no momento de acolher alguns dos pontos mais importantes dessa corrente e destacar outros; lembre-se que a Escola Histórica não conseguiu liberar-se dos ideais da Ilustração, segundo os quais a razão era a explicação de toda realidade e que não estava sujeita a nenhum pressuposto real. Assim, se num primeiro momento esse historicismo pareceu contrariar os ideais da razão absoluta, acabou sendo “prisioneiro” de seus dogmas, transformando a crítica histórica em critério supremo de verdade e assumindo o princípio do absoluto objetivismo histórico que afasta qualquer preconceito decorrente da
tradição ou do costume193
.
190
RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na
perspectiva hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Revista Faculdade Direito Milton Campos. Nova Lima, n. 17, p. 37-70, 2008, p. 47. 191
“A (nova) hermenêutica pretendida por Gadamer surge no horizonte de um problema totalmente humano, diz Fernandez-Largo: a experiência de encontrarmos frente à totalidade do mundo como contexto vital da própria existência. A partir disto, a pergunta acerca de como é possível o conhecimento e quais são as suas condições, passa a ser um problema menor dentro da globalidade da questão referente ao compreender da existência no horizonte e de outros existentes. O que a nova hermenêutica irá questionar é a totalidade do existente humano e a sua inserção no mundo. Se Schleiermacher havia liberado a hermenêutica de suas amarras com a leitura bíblica, e Dilthey, da dependência das ciências naturais, Gadamer pretende liberar a hermenêutica da alienação estética e histórica, para estudá-la em seu elemento puro de experiência da existência humana. E Heidegger será o corifeu dessa postura que se caracterizará por explicar a compreensão como forma de definir o Daisen (ser-aí)”. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 193. 192 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 31. 193
LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Revista de Informação
Legislativa: Brasília, a. 37, n. 145, p 101-111, jan./mar., 2000, p. 105.
58
Nesse sentido, então, Gadamer rejeita a hipótese de que alguém, no momento
de se debruçar sobre um texto, coloque-se no lugar do outro, posto que, para que
haja compreensão tem que haver a mediação do tempo, por força do período
histórico antecedente. Isso significa dizer que esse espaço temporal que separa as
pessoas — melhor: que separa o autor do intérprete —, tem que ser preenchido, sob
pena de não haver mais a necessária compreensão. A forma pela qual esse
processo se realiza é que Gadamer denomina de fusão de horizontes194.
Convém aqui abrir parêntese para explicar a noção de horizonte de Gadamer. À
medida que granjeamos a capacidade de usar a linguagem, adquirimos ao mesmo
tempo um horizonte, uma perspectiva do mundo. O termo horizonte, segundo Chris
Lawn, é especialmente apropriado, “pois sugere uma visão panorâmica a partir de
uma determinada perspectiva” 195.
Deveras, o horizonte para Gadamer é o âmbito de visão que alcança e
encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto196. Mas o horizonte
não significa qualquer tipo de limitação. Realmente,
Não obstante, ter horizonte não significa estar limitado àquilo que nos cerca mais de perto, mas pode ver, inclusive, por cima dele. Horizonte é apenas a dimensão do que o homem compreende e que ajuda a compreender-se a si mesmo. Aquele que tem horizonte consegue valorar o significado das coisas que se encontram dentro ou fora dele, segundo padrões de perto/longe, grande/pequeno, etc197.
E assim é exatamente porque, segundo Camargo198, Gadamer entende que o
horizonte do presente está em contínua formação, na medida em que colocamos
constantemente em prova os pré-juízos (pré-conceitos)199 formados sob as bases da
194 Segundo Chris Lawn “o termo ‘horizonte’, ocorrendo como é o caso no trabalho de Nietzche e
Husserl, não é original. Nas mãos de Gadamer este termo funciona como a idéia de Humboldt de que a linguagem oferece ao falante não somente os meios de comunicação, mas também um ponto de vista através do qual pode ver o mundo, uma visão global”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 91. 195
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 91. 196 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 32. 197
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 32. 198
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 32. 199
Para Gadamer, “ ‘Preconceito’ não significa pois, de modo algum, falso juízo, uma vez que seu conceito permite que ele possa ser valorizado positiva ou negativamente. É claro que ali está operando o parentesco com o praeiudicium latino, fazendo com que junto ao matiz negativo da palavra possa haver também um matiz positivo. Existem préjugés legitimes. Evidentemente isso
59
tradição200. Eis aí o que Gadamer201 denomina de “fusão de horizontes”: o resultado
dialético do passado (tradição) arrostado com o presente202.
Essa ideia de horizonte, porém, como visto, supõe, em sua base estrutural, a
presença de outro principal pilar da teoria hermenêutica de Gadamer: a tradição.
Chris Lawn analisa o ponto de vista de Gadamer:
Contrário à idéia de que a tradição resiste ou cai diante de uma razão imparcial, Gadamer busca, em outra direção, o significado original da tradição. Proveniente do latim tradere, que significa “passar adiante”, a palavra se refere à atividade de transmissão, passar algo adiante de geração a geração. Há uma forma de entender esta transmissão como uma ação não reflexiva, negligentemente repetida de pai para filho. Mas, habilidades e práticas transmitidas como parte de uma tradição, não são meramente repetidas como uma linha de produção; aquilo que é transmitido está constantemente num processo de re-elaboração, re-processamento e re-interpretação. Na realidade, faz sentido dizermos que a razão, longe de ser aquilo que se coloca fora da tradição como um teste imparcial, é aquilo que é transmitido na tradição. As atividades de um determinado ofício, “sabemos como fazer”, incorporam o conhecimento prático acumulado da tradição. Para Gadamer, a tradição é uma força vital inserida na cultura; nunca pode ser obliterada e reduzida a uma mixórdia de crenças não-racionais ou irracionais, pois as crenças e a racionalidade fazem
parte de contextos maiores chamados de tradição203
204
.
passa muito distante dos sensores de nossa linguagem atual. O termo alemão Vorurteil (preconceito) – assim como o termo francês préjugé mas de modo ainda mais pregnante – parece ter sido restringido, pela Aufklärung e sua crítica religiosa, ao significado de ‘juízo não fundamentado’. É só a fundamentação, a garantia do método (e não o encontro com a coisa como tal), que confere ao juízo sua dignidade. Aos olhos do Aufklãrung, a falta de fundamentação não deixa espaço a outros modos de validade, pois significa que o juízo não tem um fundamento na coisa em questão, que é um juízo ‘sem fundamento’. Essa é uma conclusão típica do espírito do racionalismo. Sobre ele funda-se o descrédito dos preconceitos em geral e a pretensão do conhecimento científico de excluí-los totalmente”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 10 ed. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2008, p. 360-361. 200
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 33. 201
“Cada indivíduo ocupa um horizonte e, na tentativa de entender uma outra coisa ou pessoa, ou até
mesmo um texto, estende seus horizontes para incluir e se ‘fundir’ com os outros. A imagem da fusão sugere que os horizontes vêm juntos, e que o entendimento é visto mais como uma questão de acordo (negociado) do que um simples relacionamento entre duas pessoas sobre um determinado assunto com um objetivo específico”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 91. 202
“Dessa maneira, a compreensão que se realiza mediante o diálogo hermenêutico implica fundir o meu horizonte histórico com o do outro, ganhando um novo; isto é, não só conhecer o horizonte do pensamento do outro, senão inter-relacionar os horizontes próprios e os alheios para dar origem a uma nova expressão dos fatos”. LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... p. 105. 203
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 54. 204 “A tradição escrita não é apenas uma parte de um mundo passado, mas já sempre se elevou
acima deste, na esfera do sentido que ele enuncia. Trata-se da idealidade da palavra, que todo elemento de linguagem eleva acima da determinação finita e efêmera, própria aos restos de existências passadas. O portador da tradição não é este manuscrito como uma parte do passado mas a continuidade da memória. Através dela a tradição se converte numa parte do próprio mundo, e assim o que ela nos comunica pode chegar imediatamente à linguagem. Onde uma tradição escrita
60
O conceito de tradição é de fundamental importância, porque sem ele não se
entende o desenvolvimento completo do estudo de Gadamer. Com efeito, sem o
domínio do conceito de tradição não se é capaz de perceber o exato sentido da
forma como Gadamer trabalha não só o tempo como a história no processo de
interpretação.
Mais uma vez é Chris Lawn quem dá a tônica desse pensamento gadameriano:
Apesar da imagem do pós-Iluminismo do eu como autônomo, auto-reflexivo e não-constrangido nas garras da conformidade social, os indivíduos são, ao contrário, enraizados, e incrustados num ambiente cultural específico, dentro do qual os movimentos em direção ao auto-entendimento sempre devem ser reconciliados. Este ambiente específico Gadamer chama de tradição. Mais uma vez, contrário á sabedoria recebida da Modernidade, Gadamer considera a tradição como sendo, assim, como preconceito, parte de um plano de fundo
para o nosso engajamento no mundo205
.
Contudo, é Michele Taruffo quem realmente sintetiza o entendimento de
tradição de Gadamer:
Nesse sentido, poder-se-ia entender que isso que consideramos como senso comum equivalha substancialmente ao que constitui a tradição na teoria de Gadamer, ou seja, o conjunto de noções, conhecimentos, lugares-comuns, componentes ou condutas culturais que integram o substrato ou fundamento inicial do intérprete no
momento em que se põe de frente ao texto a interpretar206
.
Para Gadamer, é na “fusão dos horizontes” onde se dá “a plenitude da conversa,
na qual ganha expressão uma coisa que não é só de interesse meu ou do meu
chega a nós, não só conhecemos algo individual mas se faz presente em pessoa uma humanidade passada em sua relação universal. Por isso, nossa compreensão permanece tão insegura e fragmentária naquelas culturas das quais não possuímos nenhuma tradição de linguagem mas apenas monumentos mudos; a essas notícias do passado ainda não chamamos de história. Os textos, ao contrário, sempre trazem à fala um todo. Traços sem sentido, que de tão estranhos se tornam incompreensíveis, quando interpretados como escrita de repente aparecem a partir de si mesmos como passíveis de uma compreensão muito exata, tão exata que podemos corrigir os acidentes de uma tradição deficiente, uma vez que se tenha compreendido o contexto como um todo”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 505. 205
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 91. 206
TARUFFO, Michele. Senso comum... ob. cit., p. 176.
61
autor, mas de interesse geral” 207. Diante dessa ideia de horizonte e, por
conseguinte, de uma postura que pretende desmistificar o passado histórico,
Gadamer, ao distinguir os preconceitos que cegam do que esclarecem208, reconstrói,
na verdade, o conceito de preconceito, outorgando-lhe “um caráter essencial dentro
de sua teoria hermenêutica, eliminando, assim, a carga negativa de juízo antecipado
que tinha adquirido durante a Ilustração” 209. Na dicção do próprio Gadamer, “este é
o ponto de partida do problema hermenêutico” 210. E arremata: “foi por isso que
examinamos o descrédito do conceito do preconceito na Aufklärung” 211.
Gadamer procura, assim, responder à questão por ele mesmo posta em sua
obra Verdade e Método, quando demonstra os fundamentos da legitimidade do
preconceito. Resumindo, pode-se dizer que
...a pré-compreensão, constituída por preconceitos, será a condição prévia para a compreensão de um texto, ou seja, o “pano de fundo” (background) que permitirá compreender. Nesse sentido, cada vez que um texto seja compreendido, a pré-compreensão se modificará. Cada nova leitura de um texto será diferente, não necessariamente melhor, senão simplesmente diferente, devido não só a que a pré-compreensão se modifica a cada leitura, senão que a própria história
efetual do texto é, por sua vez, modificada212
.
Chegamos ao círculo hermenêutico de Gadamer. Ora, o que Gadamer denomina
de círculo hermenêutico é isso: os muitos pré-conceitos do intérprete, que compõem
seu horizonte, e que são formados pela tradição, vão ao encontro dos novos
espaços de compreensão, gerados pelo desenvolvimento da história, e retroagem
ao intérprete agora sem a mesma configuração anterior, num processo contínuo,
enquanto durar, é claro, o processo interpretativo213
214
.
207
Cf. RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 51. 208
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 34. 209
LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... ob. cit., p. 106. 210
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método.... ob. cit., p. 368. 211
Idem. 212
LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... ob. cit., p. 107. 213
RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 54. 214
“Considerando que esse processo nunca se esgota ou se estabiliza, ao contrário, está numa progressão sem fim, alguns estudiosos o chamarão de espiral hermenêutico. Para esses, o espiral hermenêutico é a imagem que melhor representa o fato de que o intérprete não retorna da mesma forma que nele entrou, de que não leva os mesmos pré-conceitos originais”. Cf. RIBEIRO, Fernando
62
Eis o exemplo elucidativo de Chris Lawn:
Quando lemos um livro, por exemplo, sempre entendemos a sentença imediata que estamos lendo num determinado tempo em relação ao trabalho como um todo. A idéia do círculo hermenêutico é de que o entendimento parcial de uma porção do texto sempre modifica o todo, e o todo, as partes. O processo da leitura, do entendimento e da interpretação é, portanto, interminável; não existe
uma leitura definitiva de um texto215
.
Sendo assim, o círculo hermenêutico resulta de um embate entre a tradição de
quem está interpretando o texto, vale dizer, entre o horizonte do intérprete com o
horizonte refletido pelo próprio autor da obra. Seguindo essa linha de raciocínio é
que Fernando Ribeiro e Bárbara Braga ressaltam não ser possível se manter sólidos
os mesmos e anteriores pré-conceitos, uma vez que nesse entender filosófico, todos
os pré-conceitos se modificam, quando outros novos não são “instaurados no
processo de compreensão” 216.
Em relação ainda ao círculo hermenêutico, fica claro que Gadamer procurou
demonstrar que a interpretação de um texto como ato posterior da compreensão –
sua forma explícita, portanto –, é ato em que o intérprete estabelece a relação atual
do passado217. Ou melhor, a interpretação é um processo gradativo de adaptação de
um texto – que se encontra voltado ao passado – às circunstâncias atuais.
Não por outra razão, Gadamer insiste em que um texto é irrepetível em termos
de interpretação, não só para quem interpreta o texto, mas até mesmo para o seu
próprio autor218, na medida em que todos são intérpretes das próprias ideias uma
vez elaboradas e concluídas219.
Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 54. 215
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 190. 216
RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 54. 217
Cf. Inocêncio Mártires: “Apesar disso, cumpre insistir na advertência de Hans-Georg Gadamer, a nos dizer que o intérprete, para compreender o significado de um texto, embora deva olhar para o passado e atentar para a tradição, não pode ignorar-se a si mesmo, nem desprezar a concreta situação hermenêutica em que ele se encontra – o aqui e o agora – pois o ato de concretização de qualquer norma jurídica ocorre no presente e não ao tempo em que ela entrou em vigor”. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional... ob. cit., p. 91. 218
Para Gadamer, “Disso segue-se - o que a hermenêutica jamais deveria esquecer – que o artista que cria uma obra não é seu intérprete qualificado. Como intérprete não tem nenhuma primazia
63
No intuito de encerrar esse item relacionado com a perspectiva de hermenêutica
Gadameriana, os dois últimos aspectos a serem abordados, pela ordem, serão: o
método e a linguagem.
Gadamer inicia o embate discursivo sobre o método como diretriz racional para o
alcance da verdade, afirmando basicamente o contrário de Descartes. Enquanto
Descartes defende, no auge do pensamento iluminista220, que o conhecimento
verdadeiro é puramente intelectual, ou seja, derivado da razão pura e simples,
Gadamer, por outro lado, posiciona-se no sentido de que a metodologia científica é
insustentável como móvel único para se alcançar a verdade, até porque “o método
obstrui a verdade ou, ao invés disso, um encontro básico e fundamental com a
verdade é perdido quando recorremos à dependência do método” 221.
Segundo Fernando Ribeiro e Bárbara Braga, Gadamer entende que “não se
pode poupar o objeto dos pré-conceitos que o intérprete possa trazer” 222 e que “não
há como esterilizar a coisa cognoscível da contaminação causada pelo intérprete
sem deixar estéril o propósito conhecimento” 223.
Resta claro, pelo tratamento que Gadamer dá à problemática do método, que,
para ele, a verdade é algo ligado à experiência224, diferentemente de Descartes que
“reprova expressamente a influência dos costumes, dos valores e das opiniões em
básica de autoridade face ao simples receptor de sua obra. Na medida em que ele próprio reflete, converte-se em seu próprio leitor. Sua opinião como produto dessa reflexão não é paradigmático”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 264. 219
LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... ob. cit., p. 107. 220
“O pensamento iluminista é difícil de ser caracterizado em poucas palavras. Ele foi um movimento intelectual radical do norte da Europa, com suas raízes no século XVIII, mas se transformou em sinônimo da modernidade filosófica. Existem muitos comentários atualmente sobre o ‘Projeto de Iluminismo’ com um movimento distinto, com um conjunto claramente identificável de objetivos e propósitos. Não importa o que seja o Iluminismo, ele coloca uma enorme ênfase no poder da razão humana para subverter, expor e derrubar as práticas tradicionais costumeiras. Existe um elo bem direto entre o questionamento da autoridade da sabedoria popular e o pensamento, no Discurso sobre o método, e a crença canônica do Iluminismo, de que a razão deveria se tornar o teste indicador das crenças e atividades socialmente, Isto é, nacionalmente aceitas. O Iluminismo, em sua cruzada política de rejeitar todas as formas fanáticas e reacionárias do pensamento que não passam pelo teste da razão, tem diante de si as forças perigosas dos dogmas religiosos e políticos, superstição, preconceito e autoridades usurpadas. Em outras palavras, qualquer uma das práticas legais, religiosas, morais ou políticas que não se sustentam somente pela razão, são imediatamente colocadas sob suspeita como forças negras da reação”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 51. 221
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 84. 222
RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 55. 223
RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 55. 224
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 86.
64
suas considerações sobre a razão, por considerá-los fatores de origem indefinida e
obscura que contaminam a pureza e a clareza do raciocínio” 225.
Por último, a linguagem.
Aristóteles afirma que somente o homem é “um animal político” 226. Isso deriva
do fato de que é o homem o único ser vivo dotado de linguagem, já que os animais
apenas possuem voz, por via da qual simplesmente exprimem dor ou prazer227 228.
Somente os homens, portanto, são capazes de vida social e política porque
possuem a linguagem capaz de transmitir sentimentos e valores como justo e
injusto, bom e mau, etc 229.
Na antiguidade, a linguagem e a filosofia eram apreciadas em conjunto. Como o
cerne fundamental da filosofia clássica sempre foi a apreciação central do raciocínio,
a linguagem era vista como um predicado, na medida que era considerada “um meio
de transporte através do qual os pensamentos viajavam” 230. Dessa maneira de
encarar a linguagem, na forma como pensada por Aristóteles, deriva a denominação
de teorias designativas231. Tais teorias declaram que a linguagem “é significativa
porque pinta, representa ou designa o mundo” 232.
Chris Lawn exemplifica:
Nesta teoria, a palavra “cadeira” é significativa porque existem objetos no mundo chamados cadeiras para os quais a palavra existe. E a linguagem é significativa porque podemos representar o mundo
com exatidão, usando palavras para conversar sobre objetos233
.
225
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 49. 226
CHAUÍ. Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática. 1994, p. 136. 227
CHAUÍ. Marilena. Convite à filosofia.... ob. cit., p. 136. 228
“Do ponto de vista ontológico, isso significa que eles podem até entender-se uns aos outros, mas não podem se entender sobre conjunturas (Sachverhalte) como tais, cujo conteúdo é o mundo. Aristóteles já vira isso com muita clareza: enquanto o grito dos animais induz seus companheiros de espécie a uma determinada conduta, o entendimento que se dá na linguagem através do logos revela o que é como tal”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 574. 229
CHAUÍ. Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática. 1994, p. 136. 230
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 104. 231
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 104. 232
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 104. 233
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 104.
65
Portanto, pode-se dizer que os filósofos que pertencem à teoria designativa da
linguagem consideram as palavras como representantes das coisas ou como
objetos234.
Gadamer, todavia, não faz parte dessa corrente filosófica. Influenciado por
filósofos como Humboldt e Heidegger, que entendem que a linguagem é,
fundamentalmente, um fenômeno social, cultural e histórico, e que o poder da
linguagem está em expressar especialmente o significado de ser do homem235,
decerto Gadamer identifica-se “como parte da tradição expressiva da linguagem”236.
Ora, como o nome dá a entender, o expressivismo se refere ao “poder da
linguagem em expressar, especialmente o poder de expressar o que significa ser
humano” 237 238.
Feitas essas singelas considerações sobre como as duas principais correntes
filosóficas entendem a linguagem, pode-se dizer, baseado no trabalho de Chris
Lawn, que a linguagem expressiva constitui ou representa o mundo do ser humano e
que “o mundo humano só é possível através das solidariedades íntimas da
linguagem e da vida cultural e sem estas solidariedades não existiria o mundo
humano” 239.
Sendo certo que Gadamer parte da tradição expressivista, pode-se adiante, em
poucos pontos, abordar a forma como Gadamer entende a linguagem e a
importância que ela tem para o seu estudo.
Deveras, em Gadamer, o primado da linguagem é o sustentáculo de seu projeto
hermenêutico240. Gadamer afirma que “a linguagem é o médium universal em que se
realiza a própria compreensão” 241. E que “a forma de realização da compreensão é
234
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 105. 235
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 571. 236
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 105. 237
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 107. 238
Chris Lawn, citando filósofo canadense, diz o seguinte: “Em um exemplo dado pelo filósofo canadense, Charles Taylor, uma pessoa que entra em um vagão de trem com o seguinte comentário: ‘Ufa, está quente aqui!’, não está procurando usar a linguagem para descrever o estado das coisas ou comunicar aos outros no vagão aquilo que eles não conseguiram perceber ainda. Aqui está um paradigma da linguagem usada de maneira expressiva. A declamação diz mais do que a fala”. Idem. p. 107. 239
LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 107. 240
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 216. 241
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 503.
66
a interpretação” 242. Logo, é o próprio Gadamer que conclui que todo compreender é
interpretar, “e todo interpretar se desenvolve no médium de uma linguagem que
pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do
intérprete” 243.
Se já foi visto então que Gadamer não se enquadra na corrente filosófica que
entende a linguagem como atribuição do homem unicamente para descrever os
objetos, resta óbvio aceitar dele o seu entendimento de que é pela linguagem que se
compreende, na medida em que é por meio dela que se relacionam velhas
descrições com outras palavras. Ou seja, é por meio da linguagem que se cria e
age244.
Para Lenio Streck, com Gadamer a hermenêutica deixa de ser metódica para ser
filosófica245. É dizer, “a linguagem deixa de ser instrumento e veículos de conceitos -
deixando, assim, de ‘estar à disposição do intérprete’ – para ser condição de
possibilidade da manifestação do sentido” 246. É por isso que Lenio Streck afirma,
em sintonia com Gadamer, que o intérprete não interpreta por partes, na forma
estabelecida pela hermenêutica clássica, mas de uma só vez247. É neste momento
que Lenio Streck248 assevera que aí reside a maior contribuição de Gadamer para a
hermenêutica jurídica.
1.5 Segurança versus Justiça
Procurar uma definição exata para Direito, Justiça e Segurança não é tarefa das
mais fáceis.
No que toca ao Direito, a ampla divergência dos juristas e, principalmente, dos
jusfilósofos que se preocupam nos seus trabalhos com o tema é gritante. O que se
242
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 503. 243
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 503. 244
RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na
perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 57. 245
STRECK, Lenio Luiz. Passim. 246
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 216. 247
Cf. Lenio Streck “Tampouco o intérprete interpreta por partes, como que a repetir as fases da hermenêutica clássica: primeiro, a subtilitas intelligendi, depois, a subilitas explicandi; e, por último, a subtilitas applicandi”. Claro que não! Gadamer vai deixar isto muito claro, quando que estes três momentos ocorrem em um só: a applicatio”. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... p. 216. 248
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 217.
67
observa facilmente é que o conceito do Direito varia conforme a formação ou os
interesses científicos do pesquisador. Assim, se a área de interesse de estudo do
filósofo é a sociologia, o conceito de Direito para esse estudioso irá pender para o
elemento social. Ou, “se de têmpera legalista, identificará o Direito com a norma
jurídica; se idealista, colocará a justiça como elemento primordial” 249 250.
Na visão de Kelsen, do ponto de vista da ciência do direito, livre dos influxos
morais ou políticos, o direito representa um conjunto de regras de ordenamento da
conduta humana251. Ao afastar influxos valorativos na formação do direito, Kelsen
admite a possibilidade de que ordens jurídicas possam ser injustas, porque direito e
justiça são conceitos distintos. Tal percepção kelseniana ocorre em razão de que é
possível uma ordem jurídica limitar determinada liberdade pessoal, sem que, com
esse proceder, fique impedida de autodenominar-se de Direito. O exemplo que o
autor traz em seu livro Teoria Geral do Direito e do Estado é simples: ele alude aos
Estados bolchevique, nazista e fascista, que limitaram sobremaneira a liberdade
pessoal e de utilização da propriedade privada. Ora, independentemente desses
fatores de ordem jurídica, não se poderia deixa de dizer que as ordens sociais da
Rússia, Alemanha e Itália, respectivamente, não pudessem ser estudadas ou
analisadas como ordens jurídicas, posto que, nada obstante referidas restrições,
tinham em comum em relação aos demais Estados democráticos de direito outros
elementos jurídicos de grande importância.
Embora admita a dificuldade que é liberar o conceito de Direito da noção de
justiça, porque tais conceitos “são constantemente confundidos no pensamento
político não científico” 252, essa necessidade científica se impõe, haja vista que “se
apenas uma ordem justa é chamada de Direito, uma ordem social que é
apresentada como Direito é – ao mesmo tempo – apresentada como justa, e isso
249
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. p. 73. 250 Conclusões semelhantes a que chegam Roberto Senise Lisboa e Carlos Aurélio Mota de Souza,
respectivamente, cada um a seu modo: “Direito é expressão de sentido análogo, que pode significar uma das ciências éticas, norma jurídica, autorização legal, permissão, justiça, equidade”. LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, v. 1. Teoria geral do direito civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003, p. 54. “O Direito pode ser encarado sob cinco aspectos: como Ciência, objeto da Epistemologia; como Justiça, objeto da Axiologia jurídica; como Norma, estudado pela Dogmática; como Faculdade, estudado pela Teoria dos Direitos Subjetivos, e como Fato social, objeto da Sociologia jurídica”. SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTr, 1996, p.90. 251
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução: Luis Carlos Borges. 3 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 5. 252
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 8.
68
significa justificá-la moralmente” 253. Daí que, para Kelsen, essa forma de identificar
o Direito é uma tendência contrária à ciência, porque de viés político254.
É compreensível a visão de Kelsen. As sociedades contemporâneas são
compostas de populações para lá de heterogêneas: classes sociais distintas e com
elevada distância de realidade uma das outras; profissionais com alto grau de
especialização, exigindo normatização as mais específicas possíveis; diversidade
cultural; divergência de educação e costumes; tudo isso determina um conceito
diferente de justiça dentro mesmo de um único ordenamento jurídico. Além do mais,
sabe-se que o critério democrático (maioria) também não se revela prova cabal de
que o valor de justiça proferido nas decisões judiciais seja o mais indicado. Esse
caráter subjetivo do sentimento de justiça é o complicador que faz com que Kelsen
deixe de incluir a justiça no conceito de Direito. Não se trata, porém, de negação da
justiça, “mas – e aqui reside o ponto fundamental, tantas vezes polêmico, do
normativismo – de recusa em incluí-la no campo da investigação jurídico-científica,
considerada em termos estritamente formais” 255. Na dicção do próprio Kelsen, o
Direito “é um conjunto de regras que possui o tipo de unidade que entendemos por
sistema” 256.
A despeito, porém, dessa problemática científica do direito de Kelsen, Paulo
Nader, examinando o vocábulo do ponto de vista objetivo, considera que o Direito “é
o conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para
a realização da segurança, segundo os critérios de justiça” 257.
Da definição acima, as duas últimas partes são as que mais interessam para a
abordagem desse item. Isso porque, tal como se nota, a definição ressalta que o
Direito é imposto coercitivamente pelo Estado e tem como finalidade a realização da
segurança, segundo os critérios de justiça. A importância dessas locuções reside na
seguinte questão: diante de tal conceito, seria admissível que o magistrado criasse o
Direito?
253
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 8. 254
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 9. 255
LIRA, Jorge Américo Pereira de. Ordenamento jurídico e norma jurídica, uma abordagem analítico-
sistêmica-dogmática. Recife: Revista da ESMAPE/Escola Superior da Magistratura de Pernambuco. Volume 13, n. 27, jan./jun. 2009, p. 281. 256
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 5. 257
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito.... ob. cit., p. 76.
69
Embora a princípio possa parecer que o conceito de Paulo Nader obsta que o
magistrado crie o Direito, com efeito, como já demonstrado anteriormente, o
magistrado poderá realizá-lo desde que o ato seja fruto de um processo
hermenêutico, quer dizer, que seja consequência de um ato interpretativo da norma,
visando primordialmente aplicar a Justiça ao caso concreto.
Quanto ao conceito de Justiça, Paulo Nader lembra que a conceituação mais
antiga, encontrada no Corpus Juris Civilis, é “dar a cada um o que é seu”. Mas
adverte:
Esta colocação, que enganadamente alguns consideram ultrapassada em face da justiça social, é verdadeira e definitiva; válida para todas as épocas e lugares, por ser uma definição apenas de natureza formal, que não define o conteúdo do seu de cada pessoa. O que sofre variação, de acordo com a evolução cultural e sistemas políticos, é o que deve ser atribuído a cada um. O capitalismo e o socialismo, por exemplo, não estão de acordo quanto
às medidas de repartição dos bens materiais na sociedade258
.
Nada obstante, é Carlos Aurélio Mota de Souza, baseado na filosofia aristotélica,
quem expõe mais acentuadamente o conceito de Justiça:
A Justiça apresenta três faces: uma é a que regula as relações entre os membros da sociedade (de modo geral, a Justiça, como o Direito, só se realiza entre pessoas humanas); é a Justiça entre particulares, como se verifica nos contratos voluntários, chamados comutativos ou sinalagmáticos; é a Justiça comutativa, porque nela estão presentes valores equivalentes ou valências eqüitativas.
....
O segundo tipo, a Justiça distributiva, é a que do todo se dirige às partes, ordena aos governantes distribuir cargos e encargos segundo as necessidades do Estado e os méritos dos cidadãos; é a Justiça da Pólis.
....
A justiça legal ou geral, por sua vez, ordena aos governantes que elaborem leis e decretos justos, orientados ao bem comum, ao bem-estar de toda a sociedade, sem discriminações injustas; exige, igualmente, dos cidadãos, a justa observância das leis e dos deveres
258
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito... ob. cit., p. 105.
70
em relação ao Estado. Por isso se chama, também, Justiça social 259
.
É evidente que a busca da noção exata de Justiça é algo que desafia os
jurisconsultos e filósofos260 261. Na ótica teológica, por exemplo, a discussão
envereda por um caminho sem volta, posto que as diversas religiões embutem sua
moral na concepção própria de justiça. Acresça-se a isso que a “justiça é um valor
sempre presente no discurso político de qualquer tendência, quando se objetiva
alcançar os setores marginalizados da sociedade, sobretudo quando se lança mão
da idéia de ‘justiça social’” 262.
Mas a segurança jurídica é também lembrada quando o debate se instala acerca
da tarefa criativa de aplicação do direito por parte dos magistrados. Sem dúvida, a
função primordial de um sistema ordenado de leis é promover a harmonia social,
bem como a sustentabilidade dos poderes do Estado. Numa frase: o ordenamento
jurídico visa fomentar segurança. Só que a discussão é aquecida toda vez que se
pretende que a segurança seja guindada ao quadrante máximo de valor de uma
sociedade, em detrimento da justiça ou vice-versa.
Do que já foi visto nos itens anteriores deste trabalho, restou demonstrado que
os juristas da Escola da Exegese do século XVIII, com seu apego ao direito
codificado, buscavam uma segurança jurídica que permitisse ao Estado a
consecução de seus objetivos, notadamente como guardião do cidadão contra o
arbítrio dos juízes do ancién regime, antes da Revolução Francesa.
259
SOUZA, Carlos Aurelio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque.... ob. cit., p.71-
72. 260
Segundo David Schanaid, Perelman confessara o seguinte no livro Droit, moral e philosophie – p.2 “Há exatamente vinte anos que eu terminei a redação de meu primeiro estudo sobre a justiça. Mas em lugar de considerar minha tarefa como finda, e de me voltar para outros trabalhos, eu nunca cessei de refletir sobre sua noção, as dificuldades que sua aplicação apresentam, o paradoxo que resulta de que, aparentemente racional, ela suscita discussões e divergência de visões, opostas à idéia tradicional de razão e de racional”. SCHNAID, David. Filosofia do direito... ob. cit., p. 245. 261
“Aquilo que até agora tem sido proposto como Direito natural ou, o que redunda no mesmo, como justiça, consiste, em sua maior parte, em fórmulas vazias, como suum cuique, ‘a cada um o seu’...Mas a fórmula ‘a cada um o seu’ não responde à questão do que é ‘o seu de cada um’... Alguns autores definem justiça pela fórmula ‘você fará o certo e evitará fazer o errado’. Mas o que é certo e o que é errado’?...Quase todas as fórmulas consagradas que definem justiça pressupõem a resposta esperada como evidente por si mesma. Mas essa resposta não é, de modo algum evidente”. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 14. 262 MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais... ob. cit., p. 103.
71
No âmbito da concepção do Estado liberal, prevalecia, no caso, o pressuposto
de que o conteúdo normativo proveniente do Poder Legislativo, especialmente
organizado através do processo de codificação, era suficiente para se obter a
igualdade entre os homens e, por via de consequência, a segurança necessária ao
bem-estar da população. Mas como resolver o dilema originário da situação em que
o magistrado tinha que decidir em face, por exemplo, das antinomias das normas
jurídicas, a fim de aplicar a justiça? Ou seja, o papel criativo da jurisprudência seria
capaz de afetar a segurança do sistema legal?
Se partirmos do pressuposto de que, nos dias atuais, a mera aplicação
silogisticamente do texto legal não é, em boa parte das demandas judiciais, capaz
de promover decisões justas ou associadas à realidade subjacente, notadamente
em face de um ordenamento jurídico concebido com normas prenhes de conceitos
abertos e indeterminados, como estabelecer uma racionalidade conciliatória entre
segurança e justiça?
O Direito Alternativo, v.g., partindo da premissa de que a segurança oferecida
pelo sistema normativo vigente é penhor das classes dominantes que elaboram a lei
– ou têm, de alguma forma, papel preponderante na sua confecção –, entende válida
a aplicação do “justo” ainda que oposto ao valor positivado na lei. Tal concepção,
portanto, admite a hipótese de uma decisão judicial ser válida mesmo que proferida
“contra legem”, já que o direito não se esgotaria na legislação estatal263.
Nascido na década de 1960, notadamente entre os magistrados italianos, que
compunham a denominada Magistratura Democrática, o “direito alternativo”, que tem
o propósito de romper com as estruturas do direito positivo, assumiu importância
entre alguns membros do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul264.
A doutrina do direito alternativo reza que a lei por si só é insuficiente para
assegurar a igualdade entre as pessoas, sobretudo em um sistema erguido sobre
uma sociedade onde não prevalece a igualdade material265. Com efeito, para os
adeptos do direito alternativo, se a igualdade jurídica assegurada pela Constituição
263
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Alternatividade e retórica no direito: para além do embate ideológico.
Recife: Revista Esmape, v.2, n.5, jul./set. 1999, p. 389. 264
GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.152. 265
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1997, p. 59.
72
“não corresponde à igualdade real da vida concreta do povo brasileiro, então a
ordem jurídica não está assegurando, na prática, a igualdade que se apregoa” 266.
Nesse sentido, como as leis refletem os segmentos da sociedade melhor
aparelhados, ou seja, aqueles que têm a possibilidade de exercer pressão (lobby)
perante os membros do Poder Legislativo, o ordenamento jurídico espelharia muito
mais interesses egoísticos do que propriamente os interesses das camadas mais
carentes da população. Por essa forma de pensar, a aplicação da lei pura e simples
pelo magistrado somente favorece às classes dominantes, aumentando mais
severamente ainda o grau de injustiça e desigualdade social.
Sendo essa, portanto, a visão que o direito alternativo apresenta do teor dos
textos normativos oriundos do parlamento, outra saída não há para se alcançar a
justiça senão que o aplicador da lei interprete os textos legais sempre em favor das
classes menos favorecidas.
Na síntese de Eros Roberto Grau, a proposta fundamental do direito alternativo
é a adoção de “uma norma sobre a interpretação dos textos normativos: os textos
normativos devem ser interpretados em favor dos pobres e oprimidos” 267.
Rui Portanova torna firme essa ideia ao expor que “a segurança é valor que por
si só se opõe ao valor de justiça”268. Em sendo assim, quanto mais o julgador busca
proferir decisões previsíveis, mais uniformes, e, portanto, quanto mais ele almeja
segurança no ordenamento jurídico, mais se afasta dos ideais de justiça. A busca da
segurança é própria das classes sociais que fizeram a lei ou que “tiveram papel
preponderante na sua feitura”269 . O valor da justiça é, para o direito alternativo,
decisivamente mais importante que o papel da segurança no cenário social, já que a
incerteza é característica que faz parte da própria essência do homem270. O capital é
que requer estabilidade para se desenvolver. Daí não ser surpresa o fato de que,
fincado basicamente sobre a prevalência do sentimento de justiça, a crítica do direito
alternativo atribui a pecha de injusta à lei “quando contrária aos princípios gerais do
266
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 60. 267
GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.152. 268
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 61. 269
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 61. 270
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 61.
73
Direito ou da justiça e quando é imenso o contraste entre os valores do ordenamento
jurídico e o sentimento de justiça preponderante na sociedade” 271.
Ocorre que o direito legislado não representa apenas o lobby institucionalizado.
Para Eros Grau, os integrantes do movimento do direito alternativo laçam-se “a
um tipo de práxis que pode conduzir a resultados apenas não inusitados para quem
conhece os abusos e atrocidades da ‘livre interpretação’ que o fascismo e o nazismo
predicaram” 272.
Em uma síntese,
A teoria do “direito alternativo” desemboca no subjetivismo do juiz, nada impedindo, absolutamente nada, que a norma sobre a interpretação de normas (isto é, interpretação de textos normativos) hoje consagrada – que socialmente me satisfaz – seja amanhã substituída por outra, opressiva, sacrificante de direitos fundamentais. A teoria, então justificará a negação do próprio direito
e, no limite, conduzirá à anomia273
.
Por fim, arremata ainda Eros Grau:
O direito alternativo, carente de referenciais teóricos suficientes,
aparentemente ingenuamente bem-intencionado, pode vir a consubstanciar nada mais do que uma nova versão da velha regra que recomenda tudo para os amigos, mas, para os inimigos, nem mesmo os rigores da lei: a lei da vingança privada. Valham-nos,
contra isso, o procedimento legal e a legalidade 274
.
Deveras, o discurso da alternatividade do direito, ao recorrer ao emocional da
retórica de impacto e das frases de efeito, apelando para a sensibilidade política dos
aplicadores do direito em geral275, se perde na pura retórica, como assinala Fábio
Ulhôa Coelho276, variando unicamente quanto ao maior ou menor grau de
convencimento que obtenha277.
271
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 127. 272
GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.153. 273
GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.153. 274
GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.157. 275
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Alternatividade e retórica no direito... ob. cit., p. 398. 276
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Alternatividade e retórica no direito... ob. cit., p. 398. 277
Na opinião de Alf Ross: “Invocar a justiça é como dar uma pancada numa mesa: uma expressão
emocional que faz da própria exigência um postulado absoluto. Não é o modo adequado de obter entendimento mútuo. É impossível ter uma discussão racional com quem apela para a ‘justiça’,
74
Em análise crítica à postura da retórica do Direito alternativo, João Paulo Allain
Teixeira expõe que:
O discurso da alternatividade concebido nos termos de um embate entre “dogmáticos conservadores” e “contra dogmáticos revolucionários” fica esvaziado de sentido, sendo de pouca significação prática a constatação da existência de um direito paralelo se não houver a preocupação com a determinação objetiva e segura daquilo que se entenda por justiça. Preferimos então, a cautela da busca pela realizabilidade do direito, seja ele oficial, seja ele paralelo, libertando-o tanto quanto possível das interpretações sectárias, casuísticas e não generalizáveis. Trata-se então de promover o uso efetivo e democraticamente generalizável do direito, dotando-o sobretudo de mecanismos capazes de conciliar tanto quanto possível, justiça e segurança. Para tanto, acreditamos no relevante papel que a interdisciplinaridade no direito tem a desempenhar.
Nesse sentido, parece haver uma quase absoluta concordância na doutrina dominante, sempre apontando – com terminologias diversas é bem verdade – a necessidade da interdisciplinaridade no direito
como fator de conciliação entre segurança e justiça278
.
Superada a visão de Justiça do Direito alternativo279, João Paulo Allain Teixeira,
apoiado em lição do jusfilósofo Aulis Aarnio, ao rejeitar a tese de que a segurança
do direito se alcança pela tese de uma “única decisão justa”, aponta o caminho
salvador para o discurso racional: ou seja, a busca da justiça pela decisão correta do
magistrado, deve acontecer de modo discursivo, e, portanto, intersubjetivo280. É
dizer, enfim, que “os conceitos de legalidade e razoabilidade são reciprocamente
complementares proporcionando a passagem do Estado de Direito (dimensão
formal) para o Estado de Justiça (dimensão material)” 281.
porque nada diz que possa receber argumentação a favor ou contra. Suas palavras são persuasão, não argumentos. A ideologia da justiça conduz à intolerância e ao conflito...”. ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2000, p.320. 278
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Alternatividade e retórica no direito... ob. cit., p. 400. 279
Superação também defendida por Carlos Aurélio Mota de Souza: “No tocante ao denominado uso
alternativo do Direito, consideramos válida a discussão das questões sociais, que interessam à Justiça social, sobretudo dentro de um Estado democrático pluralista; mas a praxis indeterminada de idéias políticas na aplicação do direito transforma os operadores do Direito, de servidores em árbitros discricionários da Justiça, o que constitui violência do próprio ordenamento, levando ao niilismo jurídico ou anarquia do Direito”. SOUZA, Carlos Aurelio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência... ob. cit., p. 269. 280
TEIXEIRA, João Paulo Allain, Crise moderna e racionalidade argumentativa no direito: o modelo de Aulis Aarnio. Brasília. Revista de Informação Legislativa, ano 39, n. 154, abr./jun. 2002, p. 225. 281
TEIXEIRA, João Paulo Allain, Crise moderna e racionalidade argumentativa no direito... ob. cit., p.
225.
75
Nada obstante a Justiça ser um valor de contorno conceitual dos mais
complexos, convém reconhecer – e aqui certamente contrariando a racionalidade
positivista -, entre as principais tarefas dos jusfilósofos está propriamente discutir o
seu valor, não sendo nem ofício dos mais importantes apresentar solução para o
dilema, mas ter a consciência da complexidade da dimensão conceitual da justiça282.
Do que já foi dito e repetido, então, consagra-se a assertiva que
necessariamente segurança e justiça não precisam viver no plano dogmático em
polos diversos, como que em uma gangorra, onde quando uma criança sobe outra
necessariamente tem que tocar o chão, sendo possível e, até mesmo desejável, que
o princípio da segurança jurídica, de relevância para o Estado Democrático de
Direito, até por conta de seu assento constitucional, seja revigorado, sem, contudo,
rivalizar com os valores relativos à Justiça.
Isso tudo para que a doutrina não tenha que se pautar na discussão na base do
tudo ou nada, de forma a que, não se alcançando o equilíbrio esperado entre os dois
conceitos, venha a ter que sacrificar um valor para salvar outro, como parece ter
sido a rotina até hoje nas sociedades modernas.
1.6 Jurisprudência uniforme e súmula vinculante: instrumentos válidos de combate à
insegurança jurídica?
Em um de seus artigos mais recentes, Luiz Guilherme Marinoni demonstra o
quanto a segurança e a previsibilidade foram, ao longo dos séculos, bens almejados
pelos sistemas jurídicos, em especial o common law e o civil law 283
.
282
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.
466. 283
“O próprio Monstesquieu fez coro pela segurança jurídica fundada na estrita aplicação da lei
quando disse que, se os julgamentos ‘fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos’...A certeza de Direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei, ou, melhor dizendo, na própria lei. O ponto tem enorme relevância. Note-se que o civil law não apenas imaginou, utopicamente, que o juiz apenas atuaria a vontade da lei, como ainda supôs que, em virtude da certeza jurídica daí decorreria, o cidadão teria segurança e previsibilidade no trato das relações sociais. Isso significa, portanto, que, nos países que não precisaram se iludir com o absurdo de que o juiz não poderia interpretar a lei, naturalmente aceitou-se que a segurança e a previsibilidade teriam que ser buscadas em outro lugar. E que lugar foi este? Ora, exatamente nos precedentes, ou, mais precisamente, no stare decisis. A segurança e previsibilidade obviamente são valores almejados por ambos os sistemas. Mas, supôs-se no civil law que tais valores seriam realizados por meio da lei e da sua estrita aplicação pelos juízes, enquanto
76
A despeito de cada um desses principais sistemas ter procurado caminho
próprio para salvaguardar esses bens – no civil law é a lei que pretende representar
a segurança; e no common law é o stare decisis –, fato é que não se desconhece
que a segurança jurídica, “é indispensável para a formação de um Estado que se
pretenda ser ‘Estado de Direito’ ” 284 .
As codificações refletiram, na família do civil law, essa necessidade da
sociedade ter uma ordem jurídica estável. Também era um dos propósitos da
sistematização dar ao cidadão a oportunidade de conhecer o maior número possível
de leis espaçadas. Se era certo que as leis eram tidas como capazes de regular
todas as situações, obviamente sua sistematização facilitaria a visão geral das
obrigações e deveres, de forma a tornar previsíveis as conseqüências das ações
humanas285. A estabilidade, portanto, estaria diretamente ligada à noção de
previsibilidade do sistema.
Ocorre, contudo, que o direito legislado não tem sido capaz de gerar essa
previsibilidade, primeiramente por conta de uma hiperinflação de textos legais286, e,
ao depois, porque o direito pode muito bem, como já visto e debatido, ter
que, no common law , por nunca ter existido dúvida de que os juízes interpretam a lei e, por isso, podem proferir decisões diferentes, enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capaz de garantir a segurança e a previsibilidade de que a sociedade precisa para desenvolver-se. Contudo, a questão pode ser definitivamente desnudada apenas a partir da descoberta do motivo pelo qual a doutrina do civil law, mesmo após ter admitido a obviedade de que o juiz interpreta a lei, e, mais do que isto, que os juízes freqüentemente divergem e proferem inúmeras decisões diferentes ao aplicarem o texto da lei, continuou aceitando que a lei seria suficiente para garantir a segurança e a previsibilidade. Em resumo: não há como ignorar, tanto no common law como no civil law, que uma mesma norma jurídica pode gerar diversas interpretações e, por conseqüência, variadas decisões judiciais. Porém, o common law, certamente com a colaboração de um ambiente político e cultural propício, rapidamente intuiu que o juiz não poderia ser visto como mero revelador do direito costumeiro, chegando a atribuir-lhe a função de criador do Direito, enquanto o civil law permanece preso à idéia de que o juiz simplesmente atua a vontade do direito. De modo que o common law pôde facilmente enxergar que a certeza jurídica apenas poderia ser obtida mediante o stare decisis, ao passo que o civil law, por ainda estar encobrindo a realidade, nos livros fala e ouve sobre a certeza jurídica na aplicação da lei, mas, em outra dimensão, sente-se atordoado diante da desconfiança da população, além de envolto num emaranhado de regras que, de forma não sistemática, tentam dar alguma segurança e previsibilidade ao jurisdicionado.” MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law... ob. cit., p. 204-206. 284
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribuanais,
2010, p. 121. 285
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 43. 286
“A primeira causa da insegurança jurídica é certamente o relativo caos legislativo no qual vivemos,
caracterizando-se tanto pelo excesso de leis, como pela falta de coerência do sistema e, algumas vezes, até pala falta de racionalidade de alguns dos textos legais”. WALD, Arnoldo. Eficiência judiciária e segurança jurídica: a racionalização da legislação brasileira e reforma do poder judiciário. In: MACHADO, Fábio Cardoso; MACHADO, Rafael Bicca (Org.). A Reforma do Poder Judiciário. São Paulo: Quartier Latin. 2006, p.52.
77
interpretação variável, dependendo do caso concreto. Decerto, pois o legislador, isso
é cediço, enfrenta dificuldade em estabelecer um caráter geral para a norma, de
forma a atender os reclamos de uma sociedade cada vez mais multicultural; e não
pode, nem que lhe fosse oportuno, elaborar uma lei própria para cada pessoa. Essa
lógica fatalmente enterraria a esperança de se alcançar a segurança jurídica, em
face da ausência de estabilidade das relações quando, inevitavelmente, as pessoas
entrassem em choque de interesses.
Se a quantidade de leis e a sua sistematização, por meio dos famigerados
códigos, não têm sido suficientemente capaz de proporcionar a segurança jurídica
necessária ao desenvolvimento da sociedade ou a estabilidade das relações
jurídicas, a circunstância do direito estar sujeito a interpretações múltiplas somente
agrava por si, ou em consórcio com outros fatores, a situação dos sistemas
baseados na tradição do civil law. Nesse panorama, adverte Marinoni, um sistema
jurídico se afigura privado de efetividade, pois incapaz “de permitir previsões e
qualificações jurídicas unívocas” 287.
Destaca ainda o referido autor: o sistema do common law, mediante o instituto
do stare decisis, afiança a previsibilidade imprescindível para a segurança das
relações sociais288. E se a estabilidade não pode simplesmente ser alcançada por
obra e mérito do direito legislado, decerto que o respeito aos precedentes judiciais
torna-se o caminho mais adequado à consecução desse fim289.
Não é só entre os aplicadores do direito, mas é, em especial entre os
jurisdicionados, que se encontra dificuldade maior para entender como é possível
que uma mesma Corte de Justiça (ainda que estruturada em Turmas ou Câmaras)
ofereça sobre um único texto de lei interpretações distintas. Sem querer nessa etapa
do trabalho enveredar pelas causas remotas dessa problemática, não se
desconhece a evidência de que a forma da sociedade objetivamente revidar essa
dualidade jurídica é transitar por todo o circuito dos recursos judiciais até atingir a
última instância.
287
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 127. 288
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 129. 289
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 130.
78
Acontece que o sistema, por sua vez, também reage. Ora, a saída encontrada
pelo legislador para preservar a integridade do ordenamento jurídico foi criar
institutos processuais que impedem essa notória e desmedida dispersão
jurisprudencial. Evidentemente é difícil a defesa da tese de que a origem de todos os
males de nosso sistema jurídico reside na divergência encontrada na jurisprudência
pátria. A dispersão é nociva na medida em que ultrapassa “o razoável”, para se
utilizar aqui o conceito-chave da obra de Recaséns Siches. Contudo, quando a
dispersão jurisprudencial ultrapassa o limite da aceitabilidade?
Mancuso responde à questão de maneira objetiva:
O exame isento e desapaixonado da questão vai pondo em evidência que a origem dos males, na questão da divergência jurisprudencial, está na sua ocorrência em situações logicamente inadmissíveis, na sua projeção descontrolada e injustificada, à semelhança do que se passa com as células no organismo humano: sua reprodução é fenômeno normal, fisiológico e necessário, mas o descontrole exacerbado nessa reprodução conduz ao quadro patológico do carcinoma, de difícil e, às vezes, impossível tratamento. A divergência jurisprudencial incidente sobre casos análogos, à exceção de situações em que o dissenso se mostra inevitável (v.g., decisões de primeiro grau, em jurisdição singular; lides onde predomina a matéria de fato), deixa de ser aceitável na ausência dos fatores que poderiam justificá-la, a saber: a defasagem da norma em face da alteração dos elementos que constituíram suas fontes substanciais; a superveniência de direito novo; o advento de exegese
jurídica em muito superior à precedentemente assentada290
.
O respeito aos precedentes e, por consequência, o desenvolvimento de uma
jurisprudência uniforme deve assim ser obtido via critérios consistentes, de institutos
processuais sólidos, eficazes, e plenamente aceitos pelos aplicadores do direito, sob
pena de, na busca incessante pela segurança jurídica, se fazer tábua rasa da
justiça.
Da forma como foi posta a questão, resta claro que, para além de um limite
razoável, a dispersão jurisprudencial em nada contribui para tornar seguras e
previsíveis as relações jurídicas, daí porque a contragolpe, na medida de seu
crescimento desordenado, a referida dispersão é combatida por intermédio de
290
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 2 ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 159-160.
79
institutos que melhor asseguram a uniformidade de interpretação dos textos legais.
Em especial, na questão, está a súmula vinculante.
A polêmica que se instala daqui por diante, portanto, é: a súmula vinculante
representa satisfatoriamente o ponto culminante dessa escalada em busca da
segurança jurídica? Ou melhor, em vista de uma segurança jurídica, o papel da
súmula vinculante é eficaz?
No que diz respeito aos precedentes, não resta dúvida: o respeito à
uniformidade da jurisprudência é contributo que favorece a consolidação da
segurança e da estabilidade das relações jurídicas. A certeza da jurisprudência é, na
prática, de maior efetividade junto ao jurisdicionado que a segurança oriunda do
texto da lei. De outro modo, a dispersão jurisprudencial excessiva produz no meio
social a intranquilidade generalizada e o descrédito do Poder Judiciário. No caso da
súmula vinculante, como já dito, objetivo último de todo um processo global de
uniformização da jurisprudência, a questão se apresenta, porém, de maneira menos
evidente.
Obviamente, os argumentos que foram expostos acima servem perfeitamente a
rogo da súmula vinculante, até porque o próprio texto constitucional referente à
súmula vinculante faz menção à sua natureza de instituto combatente da
insegurança jurídica291. Porém, uma característica da súmula, como se verá adiante,
não sendo bem trabalhada poderá ser capaz de fragilizar o propósito da segurança
jurídica. Trata-se da semântica292.
Antes, contudo, convém analisar que, entre as várias razões que a doutrina
afirma que deram causa à criação da súmula vinculante pela EC nº 45/2004, estão
as crises do direito legislado e do Poder Judiciário. Em ambos os aspectos, porém,
para muitos desses doutrinadores há ínsito o gérmen da insegurança jurídica como
instrumento motivador do instituto.
291
Constituição Federal /88: “Art. 103-A, § 1º. A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e
a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”. 292
Em relação ao desdobramento dessa questão ver o item 2.3.2 adiante.
80
Deveras, Arnoldo Wald traz elucidativo esclarecimento, em estudo onde defende
a súmula vinculante:
Ora, a insegurança jurídica não se coaduna nem com o Estado de Direito, nem com o desenvolvimento nacional. Ao contrário, a incerteza quanto ao direito vigente representa uma incontestável causa do chamado “custo Brasil” ou do “risco Brasil”, que onera o País e, conseqüentemente, todos os brasileiros. Já se disse que a inflação legislativa é tão perniciosa quanto a inflação monetária e podemos afirmar que, no Brasil, tivemos até uma inflação de inconstitucionalidades, ao verificar que foram 3.469 ADINs
distribuídas no Supremo Tribunal Federal até 17 de abril de 2005293
294
.
Já em relação à crise do Poder Judiciário, as principais causas estruturais
encontram-se refletidas, basicamente (i) no sistema judiciário complexo; (ii) diversas
justiças especializadas; (iii) até quatro instâncias recursais; (iv) falta de um tribunal
essencialmente constitucional; (v) “cultura demandista (fomentada por uma leitura
exacerbada e irrealista do acesso à Justiça, em detrimento dos outros meios auto e
hetecompositivos)” 295; e (vi) carência insuficiente de fontes de custeio para
adequada estruturação da Justiça Estatal.
Referidas causas, como revela Mancuso, “agravam a insegurança e a
instabilidade no ambiente jurídico como um todo, e vêm retroalimentar a explosão de
litigiosidade, dando margem à formação de novos processos judiciais, num deletério
círculo vicioso” 296.
Na condição de defensor da súmula vinculante, Marco Antonio Duarte de
Azevedo a põe no centro da discussão, assinalando que, além de combater as
causas específicas, como a insegurança jurídica, a sistemática vinculatória da
293
WALD, Arnoldo. Eficiência judiciária... ob. cit., p.52. 294 No mesmo sentido é a opinião de Leandro Paulsen: “A questão da segurança jurídica põe-se,
assim, principalmente, em face da sucessão de leis e de atos normativos, regrando diferentemente as mesmas matérias e tocando, pois, as expectativas, a confiança e os direitos já constituídos dos titulares de determinadas posições jurídicas”. PAULSEN, Leandro. Segurança Jurídica, certeza do direito e tributação: a concretização da certeza quanto à instituição de tributos através das garantias da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2006, p. 27. 295
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 174. 296
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p.174.
81
súmula interferiria de maneira a reduzir também alguns dos obstáculos acima
citados (estruturais) 297.
A par das questões políticas e doutrinárias já expostas, há ainda a questão
econômica.
Com efeito, não se desconhece o discurso dos economistas de que a ausência
de segurança oriunda das decisões judiciais é fator preponderante para afastar os
investidores de nosso país.
Nesse passo, Arnoldo Wald adverte que
Sem prejuízo da realização do ideal de Justiça e da flexibilidade que a interpretação do direito exige, especialmente em períodos de grande transformação econômica, social e tecnológica, a garantia da segurança jurídica se impõe, no mundo hodierno, para que as normas jurídicas possam funcionar simultaneamente como regras de conduta e de composição dos conflitos de interesse. O que não é possível é determinar ou admitir uma certa conduta e, em seguida, condená-la em decorrência de divergências entre os tribunais, que levam muitos anos para serem resolvidas.
O mundo de hoje exige soluções rápidas e não podemos acrescentar às notórias incertezas econômicas e às dúvidas acerca da evolução tecnológica, uma maior perplexidade diante de um direito interpretado, durante longo tempo, de modo contraditório pelos diversos tribunais.
Efetivamente, o nosso País, após ter conquistado a estabilidade monetária, precisa agora também da segurança jurídica para que as empresas possam planejar o seu futuro e fazer os investimentos necessários e imprescindíveis para a sua sobrevivência numa
economia globalizada, dinâmica e cada vez mais competitiva298
299
.
Evidentemente que o efeito “súmula vinculante” não terá o poder de resolver
unicamente as mazelas crônicas do Poder Judiciário. Todavia, Rodolfo Mancuso
assinala que
297
Passim. AZEVEDO, Marco Antonio Duarte de. Súmula vinculante: o precedente como fonte do
direito. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2009, p. 23. 298
WALD, Arnoldo. Eficiência judiciária e segurança jurídica... ob. cit., p. 56. 299 No mesmo tom, Marco Antonio Azevedo: “E essa observação vale para as duas faces do
mercado: a compra e venda. Para poder comprar, contratar, vender, financiar, tomar e dar empréstimo, é necessária a certeza de que, seja qual for a parte que se sentir lesada, saberá de antemão, se não com certeza, mas com razoável segurança, qual solução será dada á sua causa, atendendo à demanda pela estabilidade nas relação jurídicas”. AZEVEDO, Marco Antonio Duarte de. Súmula vinculante: o precedente... ob. cit., p. 138.
82
...essa eficácia vinculativa da súmula vem a ser “mais um passo – talvez o mais poderoso – para, de um lado, dar o remédio adequado às demandas múltiplas, repetitivas, que hoje sobrecarregam o serviço judiciário; e, de outro lado, ofertar uma resposta judiciária isonômica que, em tempo razoável, assegure os valores certeza e segurança, em substituição às demandas infindáveis e de resultado
muita vez imprevisível300
.
Parece razoável supor que a súmula vinculante tem um papel preponderante e
eficaz no combate à insegurança jurídica tal e qual a jurisprudência uniforme301.
Porém, para tanto, a elaboração do enunciado revela-se de importância fundamental
para eficácia do instituto.
Atento à questão semântica da súmula, José de Moura Rocha ressalta a
necessidade da forma exata do linguajar da súmula de tal sorte que não permita que
o texto seja elaborado com perplexidades, distorções, que poderão prejudicar o seu
real significado302.
Sendo assim, convém imaginar que retrocesso seria para a segurança jurídica
pretendida no caso das súmulas apresentarem em seu enunciado vocábulos
imprecisos ou até mesmo virem prenhes de expressões dúbias ou de significação
300
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Súmula vinculante e a EC n. 45/2004. In: WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim et al.(Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. cap. 52, p. 719. 301
É interessante a opinião de Marinoni no sentido de que a preocupação originária dos elaboradores dos projetos da súmula no direito brasileiro não estava ancorada na segurança jurídica, mas na agilização dos trâmites processuais: “As súmulas, no direito brasileiro – se não foram idealizadas – foram compreendidas como mecanismos voltados a facilitar a resolução de casos fáceis que se repetem...Lembre-se de que, para justificar as súmulas, aludiu-se à necessidade de “desafogar o Judiciário”, mas nunca se disse – ao menos antes da ‘súmula vinculante’ – que era preciso afirmar a coerência da ordem jurídica, garantir a segurança jurídica e impedir que casos semelhantes fossem decididos de modo desigual”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 480. Deveras, a criação das súmulas no direito brasileiro ocorreu em 1963, por emenda do regimento do Supremo Tribunal Federal em 30.08.63, sendo que as primeiras 370 ementas foram publicadas em 1º de março de 1964 (cf. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro: eficácia, poder e função. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p.119). A primeira proposta para a adoção de entendimentos dominantes dos tribunais veio do “Projeto de Constituição” do Instituto dos Advogados Brasileiros e por sugestão do jurista Haroldo Valadão, a denominação utilizada remetia à prática portuguesa dos “assentos” (idem, p. 123). Contudo essa primeira tentativa não teve resultados, e a proposta regimental que vingou no STF foi elaborada pela Comissão de Jurisprudência do Tribunal, constituída pelos Ministros Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes Leal (relator) e Pedro Chaves. A proposta vencedora compreendia a formulação dos enunciados das súmulas muito mais como uma ferramenta útil de agilização de julgamento, ou melhor, um método de trabalho que proporcionasse maior visualização da jurisprudência predominante, simplificando, com isso, o julgamento das questões mais freqüentes no Supremo Tribunal Federal, do que propriamente uma oportunidade de estabilização da jurisprudência. 302
ROCHA, José de Moura. A importância da súmula. Rio de Janeiro: Revista Forense, nº 25, 1977,
p. 94.
83
semântica aberta303. Marinoni, a propósito do tema, lembra que Victor Nunes Leal
costumava dizer que, “quando se discute se determina súmula merece interpretação
ampliativa ou restritiva, ela já não cumpre o seu papel, que é o de encerrar
discussões que o Tribunal tem por ociosas à vista dos precedentes e na extensão
deles extraída” 304.
O redator da súmula ainda tem que ter em mente mais um complicador: a
linguagem do texto sumulado faz com que a norma que dele emana seja aplicada
via dedução (processo silogístico de subsunção), ao contrário da experiência trazida
do common law com os precedentes, onde a aplicação se dá por processo de
indução.
Ora, por certo não se defende aqui objeções à utilização da súmula vinculante.
Apenas ressalta-se que a sua elaboração – muito próxima do atuar legiferante do
Parlamento –, caso não haja apuro na qualidade semântica de seu enunciado, não
atingirá o propósito de promover a segurança jurídica desejada. Afinal, os
enunciados das súmulas vinculantes são textos escritos, e como tais textos poderão
exigir (embora não devessem, pelo propósito da segurança) o trabalho de exegese
do aplicador. A exegese somente não poderá ser em intensidade tal e qual a própria
norma proveniente do Poder Legislativo, sob pena de fomentar reclamações
constitucionais em tal profusão a inviabilizar o instituto criado pelo constituinte
derivado.
Em tópico desenvolvido mais adiante, a problemática da redação das súmulas
será novamente tratada, levando-se em consideração a influência que a questão
gera enquanto instrumento de apoio à fundamentação de uma decisão judicial.
303
“Indo adiante e com exemplificação bem mais própria para os nossos dias, imaginemos o emprego de expressões anglo-saxões que se tem imposto ao mundo para designar novas práticas comerciais sem que se tenha uma tradução adequada para cada uma destas espécies de atividade, já que nem todos os idiomas têm a mesma capacidade de síntese que permita recolher em um só vocábulo um conceito complexo. Podemos exemplificar com o contrato de handing (ou de serviço de assistência aos aviões comerciais nos aeroportos; o contrato de catering (ou antendimento de provisões a bordo dos aviões comerciais) (...). Imaginemos o emprego de expressões assim, dizíamos, a se impor ante o desenvolvimento econômico e social do mundo. Imaginemos, também, estas expressões ante a rapidíssima evolução dos conceitos econômicos e comerciais. O que dizer de Súmulas sem a exatidão científica e axiológica que é de se desejar, no cumprimento de sua função no complexo sócio-jurídico?”. ROCHA, José de Moura. A importância da súmula... ob. cit., p. 96. 304MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 206.
84
2. JURISPRUDÊNCIA COMO FONTE DO DIREITO
2.1 Codificação, descodificação305, os microssistemas e recodificação do direito.
O Renascimento306 e o Iluminismo307 tiveram papel preponderante na
formação da família do direito romano–germânica. Com o desabrochar do comércio
nas cidades, viu-se a necessidade de se estabelecer um sistema coeso de normas
que proporcionasse aos habitantes ordem e segurança308
.
Com a ascensão do absolutismo, e a sua tendência à centralização do poder,
restou aos poucos superado o interesse dos juristas de buscarem o direito nas
exegeses dos jurisconsultos romanos. Os códigos passaram a refletir os ideais
iluministas afastando gradativamente os cidadãos de antigas tradições, instigando-
os a buscar novos conceitos de vida, em decorrência, principalmente das
transformações políticas e da consolidação dos estados-nação. Junto com o
racionalismo e a expansão dos direitos civis surge a tendência de serem criadas
novas instituições. Nesse ser assim, os códigos nascem aprisionando,
especialmente o direito civil e o comercial.
305
Luiz Guilherme Marinoni, em Precedentes Obrigatórios, utiliza o termo “Decodificação” (p. 151). Já Roberto Senise Lisboa aduz que a “descodificação” é, na verdade, o processo de constitucionalização do direito civil (Manual de direito civil, vol. 1: teoria geral do direito civil. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 114). Mário Luiz Delgado, diversamente, entende que a constitucionalização é um dos fatores que agravou o estado de dispersão normativa em que o nosso direito civil já se encontrava. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 237. 306 Para Ovídio Baptista da Silva, “seria impossível compreender o Racionalismo sem considerar,
dentre os grandes movimentos espirituais que marcaram a decorrocada do mundo medieval e o surgimento da modernidade, pelo menos os dois mais importantes deles: o Renascimento e seu mais significativo produto cultural, o humanismo; e a Reforma Religiosa”. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 58. 307
O Iluminismo pode ser definido como um movimento filosófico-intelectual que “combateu a ordem
feudal e religiosa, acreditando num mundo racional, incentivado pela liberdade individual de expressão e pensamentos. Favoreceu os interesses e ganhos da burguesia mediante a formulação das ideias iluministas. Assumiu uma atitude crítica diante das ideias e da sociedade do antigo regime, principalmente: a desigualdade diante da lei, que era mantida pelo sistema político dos ‘Estados’, com seus privilégios fiscais para as ordens da nobreza e do clero; as limitações às pessoas e à propriedade; as intervenções arbitrárias e imprevisíveis da Coroa; e a exclusão da participação popular nos assuntos políticos”. BARBOSA, Clícia Kayalla Gonçalves. A evolução da ideia de sistema no direito privado: o novo Código Civil e as cláusulas gerais. Revista de Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, a. 11, n. 41, p. 59-105, jan./mar., 2010, p. 62. 308
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito comparado. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 31.
85
A codificação foi, dessa forma, a fórmula encontrada à época para dar aos
cidadãos a segurança e a igualdade que a fragmentação do direito não era capaz de
proporcionar309. Também os códigos significaram a oportuna separação da
sociedade civil do Estado. Antes, “se uma questão não podia ser resolvida segundo
as leis civis, recorria-se ao soberano”310.
Pela ordem histórica, porém, as compilações surgiram antes dos códigos. Em
regra, embora denominados de códigos (como o Código de Hamurabi, v.g.), as
compilações não passavam de meras consolidações de textos legislativos. É bom
que se faça, então, por oportuno, a distinção que há entre os demais outros
conceitos relacionados com o estudo do tema.
Apoiando-se em Mário Luiz Delgado, pode-se asseverar que são os
conteúdos e as estruturas que na verdade diferenciam compilações, codificações e
consolidações uns dos outros311. Isso porque na condensação, que é o gênero
dessas espécies, há o gérmen de se agrupar em um único corpo normativo uma
gama de textos legislativos, princípios e normas.
No que há de mais simples nesse processo condensativo está a compilação.
Trata-se da reunião de diversos textos legislativos, tais quais se apresentam no
mundo jurídico, em uma única peça de manuseio. É dizer, no que diz respeito ao
teor dos textos compilados não há qualquer interferência do compilador – que não
representa, em regra, sequer o Estado, podendo ser inclusive um particular. É
possível, contudo, acontecer de haver uma sistematização em relação a assuntos ou
309
Não se pode afirmar que os países de tradição anglo-saxônica aderiram à codificação. Contudo, Mário Luiz Delgado traz as seguintes observações sobre o tema, em relação a alguns países: “Os Estados Unidos da América, protótipo de país de common law, há poucos anos adotou o seu Uniform Commercial Code, formalmente idêntico a qualquer código comercial dos países de civil law. Alguns estados americanos, como é o caso da Califórnia, possuem mais ‘códigos’ do que vários países de tradição romano-germânica. Nem por isso podemos afirmar que os americanos aderiram à codificação. Da mesma forma que podemos encontrar países do common law. O caso da África do sul é emblemático. Apesar de seguir o sistema legal holandês, de origem romana, o seu direito civil ainda mantém-se descodificado e as citações do Digesto de Justiniano são freqüentes na doutrina e levadas em consideração nas decisões judiciais. O que vai marcar realmente a distinção entre common law e civil law é justamente a ideologia por trás dos ‘códigos’. O papel e as funções de um código são completamente diversos dentro de um sistema legal ou de outro. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 24. 310
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 43. 311
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 50.
86
matérias. Um vade mecum é o melhor exemplo atualmente do processo de
compilação312.
Considerando uma escala de complexidade de realização, situada em um
degrau entre a compilação e a codificação está a consolidação. Na consolidação,
que é obra do Estado, e tem a finalidade básica de extirpar do ordenamento jurídico
normas revogadas313, o resultado é uma nova regulação jurídica. Nas palavras de
Mário Luiz Delgado314,
Não basta apenas reunir ou agrupar os textos legais, seguindo algum critério pré-escolhido, mas agrupá-los de forma sistemática, em uma única lei ou decreto, e considerando apenas as normas jurídicas em vigor sobre uma determinada disciplina jurídica, pois não se consolidam normas revogadas. O resultado da consolidação é sempre uma nova norma jurídica, do ponto de vista formal, ainda que o conteúdo material seja rigorosamente aquele antes contido nos textos legais esparsos.
Ao lecionar sobre a relação entre o direito moderno e a codificação, Roberto
Senise Lisboa adverte que a expressão código, que vem do latim caudex (caule de
árvore) já revela em si “o sentido de estabilidade e imobilismo que se pretendia
oferecer à regulação das relações sociais”315. O sentido do vocábulo, portanto, vai
além de um conjunto simples de regras. O termo, além de sua origem voltada à
estabilidade, representa “um conjunto sistemático e unitário de normas jurídicas que
enfeixam a disciplina fundamental de um determinado ramo do direito”316.
Nesse sentido, porém, para a caracterização do processo de codificação, não
basta que as normas jurídicas se apresentem simplesmente sistematizadas. Tal
pode ocorrer em uma consolidação qualquer de textos legais. Importa, para se ter a
ideia da codificação, que os enunciados normativos de seu instrumento (código)
representem não só uma unidade, mas disciplinem fundamentalmente um ramo do
direito, de forma atual e renovadora. O processo de codificação reproduz assim uma
ruptura com o passado, aspecto que falta à consolidação317. É que a pretensão
312
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 51. 313
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 52. 314
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 52. 315 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil... ob. cit., p. 87. 316
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 39. 317
“Ao contrário da codificação, na recodificação não se iniciará o trabalho do ‘zero’. Já existe um
ponto de partida. E o recodificador necessariamente levará em conta o arcabouço desse velho código
87
ideológica da codificação é exprimir, quando de sua promulgação, o momento social
e político do Estado318. Foi assim, por exemplo, com o processo de criação do
Código de Napoleão, com o Código Alemão (na célebre contenda entre Thibaut e
Savigny)319 e com o nosso Código Civil de 1916320.
A conceituação moderna de código, assevera Mário Luiz Delgado, diverge
fundamentalmente da visão oitocentista, “que via no código o centro de gravidade do
direito privado, constituindo um corpo legislativo monolítico, verdadeiro
monossistema, que levava ao extremo o dogma de completude tão caro à Escola da
Exegese”321. Isto é, os códigos atuais não se encaixam mais, por exemplo, no
modelo napoleônico, cujo sistema fechado passava a equivocada noção de
autossuficiência e desprovimento de lacunas. O código atual “pretende assegurar a
coerência interna do sistema, por determinadas linhas mestras, mas que, ao mesmo
tempo, está aberto à interação sistemática com as demais leis” 322.
Numa outra dimensão está o estatuto.
para, a partir daí, construir o novo, que deverá incorporar, pelo menos em linhas gerais, todos os avanços da legislação até então ocorridos”. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 260. 318
BARBOSA, Clícia Kayalla Gonçalves. A evolução da ideia de sistema no direito privado... ob. cit., p. 69. 319
Num resumo prestadio da polêmica, Clícia Barbosa assim se expressa: “É lugar comum afirmar que o duelo acadêmico dos autores mencionados constitui-se em um dos mais acalorados entraves jurídicos da história. Essa disputa girou em torno da conveniênca de se dar à Alemanha um Código Civil. A Alemanha (Prússia e vários reinos germânicos, à época) acabara de livrar-se do jugo de Napoleão, e Thibaut propunha limpar a honra alemã com um novo código de leis para os Estados germânicos, que substituísse o imposto Código Napoleão. Savigny opôs-se a essa codificação. A obra de Thibaut era a manifestação de um sentido de cidadania desperto e democrático. Às vésperas da restauração política na Alemanha, ele propôs uma codificação comum a toda Alemanha, segundo o modelo do Código Prussiano...Esperava, com esse fato, um fortalecimento global da consciência na nação, repartida pelas dinastias territoriais. Savigny opõe-se imediatamente a tal ideia, sob o argumento de que todas as codificações seriam inorgânicas, por isso, prejudiciais ou inúteis; o direito só se formaria de forma orgânica, a partir das convicções do povo...No duelo Thibaut-Savigny confrontam-se opões pessoais fundamentais – a cultura aristocrática e a política democrática, a tradição européia e o novo sentimento nacional, a ciência e a prática ativa...A disputa não consistiu numa pura e simples polêmica teórica acerca das qualidades ou defeitos de um direito escrito, mas uma guerra pela manutenção ou pela modificação das condições sociais e jurídicas existentes, cujo pano de fundo era a valoração das ideias da Revolução Francesa”. BARBOSA, Clícia Kayalla Gonçalves. A evolução da ideia de sistema no direito privado... ob. cit., p. 73 - 74. 320 O mesmo não sucedeu com o Código Civil de 2002 que, inserido no processo de recodificação,
pretendendo refletir o atual cenário jurídico da pós-modernidade, abriu espaço para a integração de seu texto com outros padrões legislativos, especialmente por meio da técnica das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, afastando-se, com isso, do modelo centralizador e globalizante dos códigos de outrora. 321
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p.42. 322
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p.43.
88
Muito próximo do código, o estatuto, contudo, não se insere no processo de
condensação. Com efeito, diferentemente do código, as normas constantes de um
estatuto não pretendem ser abrangentes, uma vez que o intento do legislador é
apenas regulamentar determinada ordem de relação jurídica. Ou seja, há, por parte
do Poder Legislativo uma proposital delimitação prévia das relações jurídicas que
serão tuteladas. Ou ainda: em um estatuto é possível se identificar uma casta de
relações regulamentadas pelo legislador.
Mário Luiz Delgado adverte que a distinção entre código e estatuto também
se dá no plano formal, em razão de que este último não tem curso no parlamento
como “projeto de código”, que exige tramitação específica e diferenciada323 324.
Postas tais e cruciais diferenças, e retomando o rumo histórico desse tópico,
sucedeu, porém, que as compilações não apresentaram as condições necessárias
para subsistirem à época do renascimento. Faltava-lhes em especial, segundo René
David, a característica marcante da codificação: “obra de um soberano, desejoso de
consagrar – mesmo em detrimento dos privilégios da antiga ordem – os novos
princípios da justiça, liberdade e dignidade do individuo” 325.
Por outro lado, as compilações não tinham o propósito de modificar o direito.
Como seleção de textos que eram, as compilações apresentavam-se apenas como
inventários de um panorama legislativo histórico. Já os códigos da era pós-
Revolução Francesa pretendiam criar regulações atualizadas, substituindo o que de
outrora havia, determinando novos paradigmas de racionalidade compatíveis com o
propósito do Estado liberal.
323 DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 49. 324
“Os ‘projetos de código’, ao contrário dos ‘projetos de lei’ comuns, possuem uma tramitação
específica e diferenciada, desde que a matéria, por sua complexidade ou abrangência, deva ser apreciada como código. O Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê a nomeação de uma Comissão Especial para emitir parecer sobre o projeto e as emendas, enquanto nos demais ‘projetos de lei’, a apreciação é submetida às comissões permanentes da Casa. O Presidente da Comissão designará um Relator-Geral e tantos Relatores-Parciais quantos forem necessários para as diversas partes do código. As emendas serão apresentadas diretamente à Comissão Especial, durante o prazo de vinte sessões consecutivas contado da instalação desta, e encaminhadas, à proporção que forem oferecidas, aos Relatores das partes a que se referirem. Os pareceres serão imediatamente encaminhados ao Relator-Geral, que emitirá o seu parecer no prazo de quinze sessões contado daquele em que se encerrar o dos Relatores-Parciais”. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 49. 325
DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 52.
89
Numa síntese adequada, Lorenzetti distingue as características históricas
marcantes entre as compilações e os códigos da seguinte forma326: (i) as
compilações não geravam segurança, na medida em que não era possível saber
qual disposição estava em vigor. Os códigos, como traduziam-se numa sequência
ordenada de artigos, transmitiram segurança; (ii) as compilações eram de difícil
entendimento para o cidadão comum. Ao passo que o código foi pensado
exatamente como um instrumento de guia comportamental da população, que o
poderia consultar a qualquer momento327; e (iii) na compilação os princípios a serem
utilizados ao caso concreto eram buscados pelo intérprete no meio da colcha de
retalhos legislativos. Nos códigos, o processo de solução da hipótese se pretendia
fosse alcançado pelo processo dedutivo.
Com o envelhecimento dos códigos, ou melhor, com o fenômeno da
descodificação – entendido esse fenômeno aqui notadamente como o
reconhecimento de que os códigos não foram jungidos de autossuficiência o
bastante, como se imaginava, a ponto do aplicador do direito prescindir de outras
fontes para realizar o direito – cada vez mais a função de formação e evolução do
direito passou a pertencer à jurisprudência dos tribunais, como reflexo da postura
criativa dos magistrados.
Ninguém mais imagina que para conhecer o direito bastam os códigos ou os
textos legislativos. Na dicção de René David, nem mesmo no esperado âmbito
criminal tal acontece, nada obstante a ênfase e apego que nessa seara se tem ao
princípio da legalidade, visto que cada vez mais são concedidos aos juízes e
administradores poderes para que medidas da pena sejam por eles fixadas328.
O mérito da codificação foi ter se constituído em vetor para a expansão, na
Europa e fora dela, do sistema romano-germânico329. Já como consequência
negativa da codificação pode-se indicar o fato de se ter perdido de vista as tradições
das universidades de discutir a justeza do direito, passando para uma postura de
326 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 42. 327
A propósito, até hoje persiste essa visão prática de um código. Observe-se a determinação legal
recente de obrigar que em todo o comércio haja disponível um exemplar do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 12.291, de 20 de julho de 2010). 328
DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 55. 329
DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 53.
90
apenas comentar o que era pelo legislador posto nos códigos330 331. Ainda, na
exposição de René David:
Abandonando o espírito prático dos pós-glosadores, a audácia dos pandectistas, os professores de direito voltaram à escola dos glosadores, aplicando as suas glosas aos novos textos. Uma atitude de positivismo legislativo, agravada pelo nacionalismo, foi originada
pelos códigos, contrariamente à idéia que os tinha inspirado332
.
Ou seja, com os códigos o direito deixou de ser para os juristas norma de
conduta social (e, portanto, supranacional) para se tornar simples direito nacional333
.
Presentemente, o nacionalismo jurídico, reinante nos códigos de outrora, está
em queda, com a desatualização desses últimos – e com a constitucionalização do
direito de uma forma geral –, em especial nas cortes superiores. Não é à toa, por
exemplo, que vários debates são enfrentados pelos Ministros do Supremo Tribunal
Federal com base em tratados internacionais ou mesmo em jurisprudências oriundas
de estados alienígenas334 335.
330
DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 53. 331 Já distante do ambiente histórico aqui enfatizado, Mário Luiz Delgado aborda a questão anotando
que a maioria dos autores afirma que a (provavelmente) única desvantagem da codificação é provocar uma espécie de congelamento ou obstáculo para a alteração de seu tecido legislativo. Sem esconder sua postura extremada em defesa dos códigos, assevera o referido civilista que tudo não passa de um sentimento ligado a aspectos psicológicos, porquanto a alteração legislativa de um código se processa da mesma forma que uma lei ordinária qualquer. Ou seja, a suposta rigidez desvantajosa de alteração dos códigos, de que tratam diversos autores, “é fruto tão somente da mentalidade do jurista que, acostumado a trabalhar com determinados e conhecidos textos, torna-se inconscientemente conservador e avesso a mudanças” (p. 71). Quanto aos aspectos vantajosos dos códigos, a enumeração de Mário Luiz Delgado é extensa, mas que pode muito bem ser resumida basicamente nos seguintes pontos: (i) os códigos permitem um conhecimento fácil do direito, dando ao intérprete um guia de onde possa partir com segurança para a solução do caso; (ii) os códigos atuam como uma espécie de manual de Direito, podendo ser consultado por qualquer cidadão, diferentemente das legislações extravagantes e esparsas; e (iii) os códigos também exercem uma importante função de coordenação e de integração do direito, “na medida em que favorecem uma ideia de contralidade (não totalizante) no ordenamento jurídico” (p. 74). DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 71-74. 332
DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 53. 333
DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 54. 334
Prova disso são os §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição Federal de 1988: “§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros documentos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. 335
Nesse sentido, é interessante a abordagem de Marcelo Neves: “Em decisões de grande relevância
em matéria de direitos fundamentais, a invocação da jurisprudência constitucional estrangeira não se apresenta apenas nos votos singulares dos ministros, mas se expressa nas Ementas de Acórdãos, como parte da ratio decidendi . No julgamento histórico do Habeas Corpus nº 82.424/RS, em 17 de
91
Ainda sob o mesmo parâmetro nacionalista do direito representativo dos
códigos de René David, Ricardo Lorenzetti aponta o fato da atividade empresária ter
se tornado transnacional como um dos agentes desestruturadores dos códigos336.
De fato, não se pode desconsiderar que a atividade empresária pressiona o
direito interno para tender a uma flexibilização não encontrada facilmente nos
sistemas fechados mais antigos de normas codificadas. Flexibilidade necessária
para que o mercado interno possa competir com o externo. Todavia, não se trata de
derrogação dos códigos; mas de fenômeno que produz um efeito relevante: a
sanção de leis especiais, cujo espectro normativo tem natureza adaptativa superior,
fazendo o aplicador do direito ignorar as construções generalizadas dos códigos
para acolher aquelas especificamente postas337. Resumindo o que se acabou de
descrever em uma única palavra: microssistemas.
Como visto, é garrido o surgimento dos microssistemas como consequência
natural do colapso gravitacional dos sistemas codicísticos.
Com a frustrada possibilidade dos códigos de acompanharem as constantes e
rápidas transformações da sociedade pós-industrial, em face notadamente de uma
redação, ora com texto de abstração excessiva, ora com técnica casuística338, o
legislador, no intuito de solucionar o problema, procurou, através dos
microssistemas jurídicos, “regular satisfatoriamente os diversos setores de atividade,
novembro de 2003, o pleno do STF, por caracterizar como crime de racismo a publicação de livro com conteúdo antissemítico (negação da existência do holocausto) e, portanto, sustentar a sua imprescritibilidade, indeferiu, por maioria, o pedido, no âmbito de uma discussão em que a invocação da jurisprudência constitucional estrangeira foi fundamental...Nos votos dos ministros, houve uma ampla discussão sobre precedentes jurisprudenciais, dispositivos constitucionais e legislação de estados estrangeiros, tendo sido relativamente insignificante a referência a jurisprudência nacional e internacional”. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 179 -180. 336
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p.65. 337
Marinoni, citando Natalino Irti, adverte: “Os Códigos, com sua pretensão de generalização e uniformidade, cederam lugar a leis especiais, destinadas a regular situações específicas, titularizadas por grupos e posições sociais determinadas”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p.151. 338
Segundo René David: “A censura dirigida às novas leis, nos diversos países de procederem de
uma má técnica legislativa, advém em grande parte do fato do legislador, nas novas matérias em que intervém, não saber fixar exatamente a regra de direito ao nível em que desejamos vê-la. Com freqüência, ele entrega-se a uma casuística exagerada, freqüentemente agravada pela regulamentação administrativa; outras vezes, pelo contrário, ele exprime-se em fórmulas muito gerais, e, então, não se saberá como deve ser a lei compreendida no momento em que ela terá de ser ‘interpretada’. As críticas dirigidas à má técnica legislativa têm certamente um fundamento. Convém, contudo, considerar que a tarefa de legislar é tecnicamente muito difícil e que foram necessários séculos de esforços doutrinais para chegar às fórmulas dos códigos que hoje, sem dúvida, nos parecem muito simples”. DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 82.
92
sobre os quais a codificação não tinha condições de ser aplicada de forma
condizente” 339.
Nesse estágio do tema, é bom salientar que a descodificação e seu derivado
legislativo – o microssistema – não foram fenômenos restritos às cercanias do direito
civil. Também essas manifestações ocorreram no âmbito processual.
No que toca especificamente ao direito processual civil, Marinoni propaga que
sucedeu coisa semelhante ao descrito acima, em relação aos procedimentos.
Segundo o referido autor, no processo civil “de conotação liberal clássica, deveria
bastar um procedimento para atender a todas as posições sociais e a todo e
qualquer direito” 340. Aconteceu, porém, que de algumas décadas para cá, para que
fosse possível atender às inúmeras situações carentes de tutela, foram criados
diversos procedimentos especiais341.
Na mesma linha de raciocínio de Marinoni – e numa demonstração prática do
que se seguiu no âmbito processual –, Didier e Zaneti mencionam as inovações no
processo coletivo impostas pelo Código do Consumidor342. Com efeito, várias foram
as regras processuais alteradas, como, por exemplo, a mais falada delas, a inversão
do ônus da prova em favor do consumidor quando, a critério do magistrado, for
verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente343
.
339LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil... ob. cit., p. 91. 340 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 151. 341
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 152. 342
Segundo Didier e Zaneti, ao se ler o título III do Código do Consumidor, verificam-se várias inovações processuais, tais como: “a) a possibilidade de determinar a competência pelo domicílio do autor consumidor e determinação da competência do foro da capital dos Estados e do Distrito Federal para as ações de âmbito regional ou nacional – princípio da competência adequada (arts. 101, I e 93, II); b) a vedação da denunciação à lide e um novo tipo de chamamento ao processo (arts. 88 e 101, II); c) a possibilidade de o consumidor valer-se, na defesa dos seus direitos, de qualquer ação cabível – princípio da atipicidade ou não-taxatividade (art. 83); d) a tutela específica em preferência à tutela do equivalente em dinheiro – princípio da tutela adequada (art. 84); e) regras de coisa julgada específicas para as ações coletivas e aperfeiçoadas em relação às leis anteriores, com a extensão subjetiva da eficácia da sentença e da coisa julgada em exclusivo benefício das pretensões individuais e possibilidade do julgamento de improcedência por insuficiência de prova – princípio da coisa julgada secundum eventum litis e secundum eventum probationis (art. 103); f) regras de legitimação (art. 82) e de dispensa de honorários advocatícios (art. 87) específicas para as ações coletivas e aperfeiçoadas em relação aos sistemas anteriores; g) regulamentação da relação entre a ação coletiva e a individual (art. 104); h) alteração e ampliação da tutela da Lei nº 7.347/85 (LACP –Lei de ação civil pública), harmonizando-a com o sistema do Código (arts. 101-117) e formando um microssistema que garante ao processo tradicional do CPC atuação apenas residual”. DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 5 ed., vol. 4, Salvador: Editora JusPodivm, 2010, p. 47. 343 DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil... ob. cit., p. 46.
93
Todo esse panorama serve para mostrar quanto o peso dos códigos nos
atuais ordenamentos jurídicos foi redimensionado. Sua tendência atual está longe da
característica de autoconcentração de normas. O legislador não deseja mais, por
meio dos códigos, regular casuisticamente um ramo do direito. O novo cariz do
código é de aspecto muito mais enunciativo, principiológico. Sua proposta é de
harmonização com as demais legislações infraconstitucionais. A aceleração
quantitativa da atividade legislativa, por meio de leis esparsas ou extravagantes, no
mais das vezes com perda de uma coerência sistêmica, findou por comprometer a
segurança jurídica344. Logo, foi necessária uma atitude do legislador a fim de buscar
de volta a coerência do conjunto das leis vigentes345.
A essa nova sistemática, autores, como Mário Luiz Delgado, têm denominado
de recodificação346.
Mas, se é fato que há uma tendência de dispersão de leis, a fim de
acompanhar a velocidade de transformação da sociedade moderna, minando a base
ideológica da unidade legislativa dos códigos347, é evidente que o processo de
recodificação para ter sucesso não basta granjear a volta da coerência sistêmica,
necessita apresentar novos valores textuais sob pena de incorrer nos mesmos
equívocos dos códigos suplantados, em especial o de tentar apresentar soluções
prontas e acabadas para o aplicador do direito.
Partindo da codificação original, ou melhor, do velho código, bem como das
fontes normativas dispersas já existentes348, a forma alvissareira encontrada pelo
legislador para assentar a recodificação tem sido redigir os textos legislativos com
uma tessitura aberta, cuja inovação técnica, necessária para que também as leis
especiais não sofram do mesmo mal da desatualização dos códigos, tem como
melhor expoente as cláusulas gerais.
344 DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 259. 345 DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 259. 346 “Recodificar, de certa forma, é ‘chamar o feito à ordem, reinserindo em um corpo normativo mais
ou menos coeso, regras e princípios novos que se dispersaram com o evoluir da sociedade...em outras palavras, recodificar é assegurar a sobrevivência do código, quer por meio de sua reforma, quer pela sua completa re-elaboração”. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 259. 347 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.
1. ed., 2.tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 281. 348
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 260.
94
2.2 Cláusulas gerais.
2.2.1 Notas históricas
Por volta do ano 1920, tem origem e aplicação na Alemanha a ideia de
cláusula geral.
Em decorrência do caos que imperou na economia alemã, após a Primeira
Grande Guerra Mundial – onde as pessoas chegavam a ir às compras com
quantidades absurdas de dinheiro nos bolsos, e, por consequência, consumindo
seus salários tão logo os recebiam –, os contratos sofreram impacto fulminante na
sua execução. As cláusulas contratuais referentes ao preço ajustado tornaram-se
letras mortas, já que os alemães não conheciam o sistema de correção monetária349.
Apesar desse panorama, havia uma base jusfilosófica na Alemanha suficiente
para permitir a inclusão da cláusula geral boa-fé no BGB (Código Civil Alemão)350.
Um pouco antes da crise econômica se instalar, por volta do século XIX, correntes
filosóficas com força no direito alemão iniciaram polêmica exatamente sobre qual
proceder deveria ter o magistrado diante das lacunas do direito positivo351. Entre as
principais correntes, encontrava-se a do movimento do Direito Livre, captaneada por
Eugen Ehrlich. Essa corrente, como já visto em capítulo anterior desta pesquisa,
prescrevia que o juiz estava autorizado a criar a solução para o caso que não
estivesse plasmada nos textos legais352.
Do outro lado, encontrava-se Hermann Kantorowicz que defendia a
possibilidade de que o juiz, mesmo diante de lei que regulasse o caso concreto,
deveria julgar fundamentalmente segundo duas vigas mestras: a ciência e a sua
consciência353. Ora, como observa Fabiano Menke, com essas ideias circulando no
meio jurídico alemão e uma crise econômica — cuja dimensão aniquilava a
segurança de qualquer ajuste contratual —, encontravam-se presentes as condições
necessárias para que as cláusulas gerais não só pudessem ser incorporadas ao
349
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos.
Revista da Ajuris. Porto Alegre, ano XXXIII, n. 103, p. 69-94, set./2006, p. 70. 350
“O mais célebre exemplo de cláusula geral é o § 242 do Código Civil alemão, assim redigido: ‘§ 242, O devedor deve (está adstrito a) cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego jurídico”. BARBOSA, Clícia Kayalla Gonçalves. A evolução da ideia de sistema no direito privado... ob. cit., p. 92. 351
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 72. 352
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 72. 353
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 72.
95
ordenamento jurídico como também pudessem servir de “valioso instrumento na
mão de magistrados que precisavam encontrar uma solução para situações de
verdadeiro caos econômico-social causado pela incontida escalada inflacionária”354.
Por intermédio desse relato histórico, verifica-se que a cláusula geral foi
inserida no ordenamento jurídico alemão tendo como cenário uma sociedade
carente de soluções emergenciais em face de sua estrutura profundamente
fragilizada. Ou, com bem menos palavras: em decorrência de uma insegurança
jurídica latente.
Ora, do que já foi superficialmente exposto, pode-se extrair ao menos duas
ilações: (i) uma das principais razões da utilização das cláusulas gerais pelo
Judiciário foi possibilitar o direito de acompanhar a evolução da sociedade, no que
diz respeito especialmente à solução dos problemas para cuja complexidade não
acudiu a indústria do legislador; e (ii) a flexibilização da estrutura normativa das
cláusulas gerais é móvel impulsionador que o Poder Judiciário pode lançar mão
para, diante dos casos concretos, oferecer à sociedade a necessária segurança
jurídica para o seu desenvolvimento355 356.
2.2.2 Aspectos das cláusulas gerais e distinções oportunas.
O mundo das leis claras, seguras e sistematicamente organizadas em um
único instrumento legislativo, proposto pela Revolução Francesa – capaz de
solucionar a contento difusas contendas sociais – ruiu, a ponto de gerar uma crise 354
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 72. 355 Para Humberto Ávila, a técnica legislativa das cláusulas gerais facilita a segurança jurídica,
“porquanto evita a modificação legislativa pela desnecessidade de criação de leis especiais”. ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção na aplicação do direito. Antônio Paulo Medeiros (Org.). Faculdade de Direito da PUCRS. O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 432. Já Fredie Didier, de forma percuciente, adverte para o outro lado da moeda em relação à questão da segurança jurídica, que é o perigo do uso inadequado das cláusulas gerais pelos magistrados: “As cláusulas gerais trazem consigo, entretanto, o sério risco da insegurança jurídica. A despeito do contexto político-social da época da decisão, as cláusulas gerais ‘possibilitam ao juiz fazer valer a parcialidade, as valorações pessoais, o arrebatamento jusnaturalista ou tendências moralizantes do mesmo gênero, contra a letra e contra o espírito da ordem jurídica”. DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais. In: <http:www.frediedidier.com.br/main/artigos/default.jsp>. Acesso em 07 de setembro de 2011, p. 8-9. Na ótica de Teresa Arruda Alvim Wambier, a insegurança “aparece de forma nítida e indesejável” até haver a “jurisprudência consolidada”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre ‘as cláusulas gerais’ do código civil de 2002: a função social do contrato. Revistas dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. n. 831, a. 94, jan. 2005, p. 73.
96
das fontes do direito. Nem bem a sociedade oitocentista se recuperou desse
tropeço, e surge a necessidade de adequação das leis a uma nova estrutura social,
muito distante daquela com base na propriedade agrária.
Essa sociedade de então já não mais se satisfazia com a pretensa proposta
legislativa de visão de si própria espelhada nos códigos. À essa pretensa visão
beatífica que o Poder Legislativo procurava impor aos cidadãos da sociedade
industrial, pouca alternativa restou senão a de se conviver com outras estruturas
normativas de apoio necessário para a solução dos litígios que, por conta da
complexidade da sociedade e evolução tecnológica, cada vez mais batiam às portas
do Judiciário, exigindo dos magistrados para a resolução das lides, uma criatividade
integrativa para além das normas talhadas nos códigos.
A avalanche de textos legislativos, que bem ou mal orbitavam o pretendido
sistema único do código, por terem uma postura de “vagar” pelo entorno do sistema
coditício, receberam o nome de leis extravagantes357. A quantidade elevada de leis
extravagantes não foi causa, mas consequência do insucesso da pretensão maior
da Revolução Francesa de colocar cada um dos cidadãos em pé de igualdade, a
ponto de não restar outro tipo de homem na sociedade que não o comum.
Os códigos de outrora tinham técnica legislativa própria. A casuística
imperava358.
A ambição de tudo abarcar gerou sistemas fechados, pois não havia sentido
que a completude dos códigos fosse alterada por leis específicas ou processos
interpretativos que transportassem para dentro algo que se encontrava – no mais
das vezes, propositadamente – fora da unidade normativa.
A casuística era a forma de estruturar o texto buscando o legislador fixar os
critérios para emoldurar os fatos, de maneira que, em face de uma tipificação de
condutas a mais precisa possível, pouco espaço fosse concedido ao juiz para
determinar o sentido e alcance do texto legal.
357
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 281.
358 Também denominada de “técnica da regulamentação por fattispecie”.
97
A técnica de legislar casuisticamente restou refletida numa característica
interessantemente visível nos primeiros códigos: uma miríade de artigos. O código
prussiano continha um número exorbitante (19.000 artigos) – a bem da verdade nem
era propriamente um código, já que englobava vários ramos do direito. O código civil
napoleônico tinha dosagem inferior de artigos, porém não pequena (2.302).
A cláusula geral foi o instrumento encontrado pelo legislador para propiciar a
transposição para o interior do sistema jurídico de princípios valorativos, máximas de
condutas, bem como standards comportamentais, visando dar flexibilidade
normativa suficiente para que o magistrado tivesse condições de encontrar a
solução adequada ao caso concreto359. A sistemática legislativa da cláusula geral
tem característica, portanto, na colocação de Judith Martins-Costa, “não
casuística”360.
A técnica “não-casuística” de legislar pressupõe um padrão de abertura
semântico em que o legislador não pretende oferecer aos magistrados a resposta do
problema antecipadamente. E não oferece com precisão porque tem ciência de sua
incapacidade de prever todas as situações a serem devidamente tuteladas. Deste
modo, ou seja, com essa técnica, é dada a oportunidade ao Poder Judiciário de,
progressivamente, edificar, pela intervenção dos precedentes, a norma jurídica
aplicável ao caso concreto. Em uma síntese do exposto, Humberto Ávila361,
demonstrando o propósito fundamental da normatização por meio das cláusulas
gerais, expõe que
é a abertura aos usos e costumes externos existentes no meio social, de modo a consolidar essa técnica legislativa como instrumento do pluralismo normativo (ou de fontes) e de valores: a abertura do sistema envia o aplicador, a normas sociais extralegislativas, uniformemente aceitas (sociais, religiosas, profissionais, éticas, comerciais, etc.), de modo a dividir a competência normativa entre o parlamento e aqueles que são chamados a concretizar as normas.
Numa linguagem figurada – diga-se de passagem, por demais difundida é
verdade –, é como se, por meio da técnica “não-casuística”, o Legislativo conferisse
um mandato ao magistrado para que esse aplicador do direito, diante do caso posto
359
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 274. 360 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 296. 361
ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 432.
98
à solução, pudesse dar a significação precisa ao texto, e, por consequência, extrair a
norma jurídica protetora do direito. Porque até então, na conformidade da técnica da
cláusula geral, o jurisdicionado não sabe ou não tem certeza exatamente de qual é a
norma jurídica específica aplicável para solucionar determinado problema.
Essa notável alteração do processo de produção dos textos legislativos
ganhou força principalmente na segunda metade do século XX. A preferência pela
opção legislativa da técnica redacional, por intermédio das cláusulas gerais, foi um
dos vetores que transformaram o raciocínio e a argumentação do magistrado. Antes
atrelado ao método silogístico, o juiz passa agora a ter em mãos a oportunidade de
concretizar a norma jurídica desde então restrita às possibilidades fáticas descritas
casuisticamente pelo legislador.
Sem a obrigação de ser “o boca da lei”, o juiz tem a possibilidade de se
transformar também num ator político. A norma não é mais elaborada somente pelo
parlamento. Ao juiz também foi oferecido o ensejo de participar diretamente da
elaboração da norma jurídica. Numa metáfora utilizada por Alf Ross362, é como se a
lei fosse um produto semifaturado que necessitasse da contribuição de um artesão
ou técnico (no caso aqui o magistrado) para ter seu acabamento finalizado.
Enfim, os textos legislativos confeccionados sob a técnica das cláusulas
gerais não prescrevem uma conduta. Daí Humberto Ávila denominar as cláusulas
gerais também de regras condicionadas, já que “dependem do fato concreto para
determinação de seu conteúdo” 363. Há, portanto, uma proposital vagueza (ou
abertura semântica) quanto a esse oportuno e importante critério axiológico da
norma, que será preenchido, na hipótese fática, pelas mais diversas e variadas
fontes do direito postas gratuitamente à mercê do magistrado. Ou seja, será a
construção progressiva da jurisprudência que dará a efetiva resposta aos problemas
a serem equacionados pelas texturas semânticas das cláusulas gerais.
E se é assim, que a vagueza semântica é característica marcante das
cláusulas gerais, então estamos diante de um elemento complicador: é que essa
mesma vagueza também é aspecto ínsito nos conceitos jurídicos indeterminados.
Não é necessário se aprofundar muito em uma pesquisa para perceber a presença
362
ROSS, Alf. Direito e Justiça... ob. cit., p. 103. 363
ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 432.
99
dos termos “vagueza” ou “vago”, ou ainda “lacunas”, nas diversas conceituações das
cláusulas gerais que são elaboradas pelos doutrinadores. Exemplos: para Didier a
cláusula geral “é uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática)
é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado” 364.
Segundo o processualista baiano, há uma indeterminação legislativa em ambas
extremidades da estrutura lógica normativa da cláusula geral365. No ponto, Ruy
Alves Henriques Filho assegura que as cláusulas gerais podem ser entendidas como
uma nova modalidade legislativa, “a qual impõe o preenchimento de suas lacunas
pelo juiz, como se considerássemos a norma jurídica oriunda do exercício da
interpretação e corolário da atividade judiciária criadora” 366.
Nada obstante criticar os conceitos de cláusula geral encontrados na doutrina
– que nada mais seriam que um arrolamento das diversidades das características do
termo – Judith Martins-Costa367 expõe engenhosamente que
Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente “aberta”, “fluida” ou “vaga”, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual, reiterados no tempo os fundamentos da decisão, será viabilizada a ressistematização destes elementos originariamente extra-sistemáticos no interior do ordenamento jurídico.
Do que já foi exposto, é possível principiar algumas distinções importantes
relacionadas ao tema. Ou seja, a doutrina distingue os conceitos indeterminados das
cláusulas gerais, e destas dos princípios.
Antes de dar partida a tal desiderato, em relação à dissociação entre as
cláusulas gerais e os conceitos indeterminados, pontual é referir à observação feita
por Eros Roberto Grau, no sentido de que não existem conceitos indeterminados.
364DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais... ob. cit., p. 2. 365DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais... ob. cit., p. 2. 366
HENRIQUE FILHO, Ruy Alves. As cláusulas gerais e seus reflexos processuais. In:
< www.fagundescunha.org.br/amapar/revista/artigos/ruy_clausulas.doc >, acesso em 10 de setembro de 2011. 367 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 303.
100
“Se é indeterminado o conceito, não é conceito”368. Eis que, adverte o aludido autor,
se todo conceito é um concentrado de ideias que, para ser conceito, tem de ser, pelo
menos, preciso, “o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado”369.
Vale dizer, se no conceito não houver uma síntese determinada de ideias, não há
que se falar em conceito370 371.
Evidentemente não há condição de expor o tema levando em consideração a
proposição de Eros Grau, pois o desvio de rota poderia acarretar, ao menos aqui,
em certa dificuldade para se retornar ao ponto central do assunto. Daí porque, o
conceito predominante na doutrina, muito embora visivelmente paradoxal, segundo a
exposição acima, é o que será adiante utilizado.
Judith Martins-Costa afirma que a distinção entre cláusula geral e conceito
indeterminado é sutil, pelas razões já expostas no tocante à predominância da
vagueza semântica. Assim, aquele que pretender distinguir os dois termos optando
pela semântica ou por um processo analítico poderá não ter o sucesso esperado372.
A propósito, fazendo essa mesma advertência de Judith Martins-Costa – isto
é, de que a extrema vagueza e a generalidade encontradas nas cláusulas gerais e
nos conceitos indeterminados provocam uma confusão na racionalidade distintiva
entre os termos –, Nelson Nery e Rosa Andrade Nery apontam as distinções,
através do plano funcional, ou seja, pela valoração das realidades adaptáveis que o
magistrado é capaz de fazer diante das circunstâncias não normatizadas:
368
GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p. 196. 369
GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p. 196. 370
GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p. 196. 371
“Os conceitos jurídicos que se aponta como ‘indeterminados’ são os tipológicos (fattispecie).
Quanto aos meramente formais e às regulae juris, os primeiros porque abstratos e dissociados da realidade histórica, as segundas porque sintetizam o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas, não padecem de qualquer ‘indeterminação’...São tidos como ‘indeterminados’ os ‘conceitos’ cujos termos são ambíguos ou imprecisos – especialmente imprecisos –, razão pela qual necessitam ser completados por quem os aplique..O que sobretudo a nossa doutrina insiste em chamar de ‘conceito indeterminado’, em uma constante repetição de um bolero de Ravel insosso e sem nenhuma atualização bibliográfica, é noção, vale dizer, idéia temporal e histórica, homogênea ao desenvolvimento das coisas; logo, passível de interpretação...Os conceitos indeterminados – que compreendem conceitos de experiência ou de valor – não conduzem a uma situação de indeterminação na sua aplicação. A aplicação deles, segundo Garcia de Enterría, só permite uma ‘unidade de solução’ em cada caso (1983/434)”. GRAU, Eros Roberto. O direito posto...p. 200-206. 372
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 325.
101
“os conceitos legais indeterminados e as cláusulas gerais são enunciações abstratas feitas pela lei, que exigem valoração para que o juiz possa preencher o seu conteúdo. Preenchido o conteúdo valorativo por obra do juiz, este decidirá de acordo com a conseqüência previamente estabelecida pela lei (conceito legal indeterminado) ou construirá a solução que lhe parecer a mais adequada para o caso concreto (cláusula geral). Portanto, a mesma expressão abstrata, dependendo da funcionalidade de que ela se reveste dentro do sistema jurídico, pode ser tomada como princípio geral de direito (v.g. princípio da boa-fé, não positivado), conceito legal indeterminado (v.g. boa-fé para aquisição da propriedade pela usucapião extraordinária – CC 1238 e 1260) ou cláusula geral (boa-fé objetivada nos contratos – CC 422). No exemplo dado, o que discrimina a expressão boa-fé, como princípio geral, conceito indeterminado ou cláusula geral, é a função que ela possui no contexto do sistema, positivo ou não, da qual decorre a aplicabilidade que se lhe dará o julgador (interpretação, solução já prevista na lei ou construção de solução específica pelo
próprio juiz) 373 374.
Portanto, o intento mais adequado aqui é proceder a uma distinção pela
operação intelectiva que o juiz tem que fazer para aplicar indistintamente os dois
termos. Por um lado, se a técnica legislativa das cláusulas gerais firma-se na
premissa de que o dispositivo legal é apenas um vetor que indica o norte para o
magistrado construir judicialmente a norma jurídica, é evidente que não há espaço
para a solução que parta de um raciocínio dedutivo. Logo, o processo racional de
subsunção da norma ao fato simplesmente é incompatível com a técnica legislativa
das cláusulas gerais.
Por outro lado, quando estamos diante de conceitos próximos, ou até mesmo
idênticos, a operação lógica que imediatamente processamos é a subsunção. A
correspondência direta entre os conceitos nos leva a essa forma de raciocinar que
foi amplamente utilizada nos séculos XIX. Ora, a aplicação do processo de
subsunção esbarra logo de frente com a linguagem normativa das cláusulas gerais.
Por terem semântica vaga, imprecisa, ou mesmo lacunosa, as cláusulas
gerais não permitem que o magistrado delas extraia normas por meio de
subsunções. Eis que tal assertiva é facilmente verificável pela mais conhecida das
cláusulas gerais, que é a boa-fé. Verifica-se facilmente que a referida cláusula não
373
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil anotado e legislação
extravagante. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p-143-144. 374
Os negritos não constam do original.
102
apresenta um suporte fático. Sem isso, não há possibilidade de juízo de subsunção
que possa seguir adiante. Daí porque, diante da aplicação de uma cláusula geral, o
magistrado executa necessariamente uma operação de complexidade notavelmente
superior (àquela meramente dedutiva), que se denomina de concreção375. Nesse
ponto, convém observar: a fundamentação não poderá jamais ser simplória. É que
sob essa realidade circunstante o juiz não está simplesmente declarando, mas
criando efetivamente a norma jurídica aplicável.
Desse modo, a depender da indeterminação do texto legislativo, o aplicador
terá em maior ou menor grau que se valer de princípios valorativos e “critérios
extralegais de variável base empírica: usos de tráficos, bons costumes, ética
profissional, boa-fé, etc.” 376. Visto por esse prisma, o encaixe preciso da hipótese
fática com o conceito abstratamente posto no texto legislativo resta prejudicado
quando o magistrado necessita aplicar a cláusula geral377.
Destarte, aquele magistrado idealizado por Montesquieu é retirado a pulso de
cena quando a polêmica (sabe-se com antecedência pela leitura do texto legal) terá
como ratio decidendi fundamento desenvolvido ou criado em face de conceito vago,
pois “o boca da lei” necessita, para sua realização figurativa, do instrumento lógico
do processo de subsunção, do qual não é possível socorrer-se na hipótese onde a
complexidade da operação intelectiva do magistrado é bem maior.
Mas tudo isso também se aplica aos conceitos indeterminados, pois a solução
também é obtida apoiando-se o juiz no processo de concreção, em decorrência da
linguagem vaga a permitir uma apreciação valorativa. Acontece que na cláusula
geral o magistrado formula ativamente a norma, pois a indeterminação, como já
sublinhado anteriormente, encontra-se nos extremos da estrutura do texto legal (não
há definição para a hipótese normativa nem para os efeitos jurídicos). Já nos
375
“O termo concreção, ou concretização (Konkretisierung), foi introduzido no meio jurídico pela
doutrina alemã. Karl Larenz observa que é no contexto do pensamento de seu compatriota e filósofo Walther Schöfeld que a expressão foi primeiramente utilizada...Na aplicação do direito por meio da concreção, o juiz analisa o caso concreto em toda a sua potencialidade. Não parte apenas da compreensão da norma para perquirir se os fatos colocados em questão nela se encaixam. Consoante salienta Humberto Ávila, ocorre ‘uma mescla de indução e dedução’, onde são analisadas todas as circunstâncias do caso: o conteúdo da norma, os precedentes judiciais e quaisquer outros elementos que venham a ser considerados relevantes”. MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... p. 79. Obs: o texto citado de Humberto Ávila é o que segue adiante referenciado. 376
ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 414. 377
ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 415.
103
conceitos jurídicos indeterminados, embora a hipótese seja abstratamente vaga, os
efeitos jurídicos são predeterminados pelo legislador. Disso resulta que, nas
cláusulas gerais o magistrado tem possibilidade de optar por valores de uma forma
extremada, o que não acontece quando ele está diante de conceitos jurídicos
indeterminados. Ou seja, em regra378, o magistrado, na aplicação dos conceitos
jurídicos indeterminados, tem uma margem de apreciação valorativa ampla no
tocante à hipótese fática, mas inexistente quanto à opção dos efeitos jurídicos.
Seguindo por essa rota, resta distinguir cláusula geral dos princípios.
A norma jurídica é produto de quem realiza o direito; ou melhor, é o resultado
da aplicação de uma lei. Segundo Humberto Ávila, “normas não são textos nem o
conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de
textos normativos” 379. Assim, se as normas não são textos, mas sim o resultado do
trabalho intelectual do juiz, importaria apenas identificar o formato que o legislador
deu à estrutura do texto – se de conceito indeterminado ou não – para poder
reconhecer diante do que está o intérprete. Porque, como já visto, do tipo de
justificação ou raciocínio levado a efeito pelo juiz na aplicação da lei é o que de
melhor se aproveita para se fazer valer as distinções aqui debatidas. A questão,
porém, não é tão simples assim em relação à pretensão analítica de dissociação
entre cláusulas gerais e princípios, pois, na hipótese, a aplicação dos textos com
indeterminação semântica dá-se por processo de concreção.
Decerto que de uma hipótese fática descritivamente estruturada no texto de
lei não se origina princípio, pois as regras é que “são normas imediatamente
descritivas” 380. O que quer dizer, também há distinção a ser observada entre regras
e princípios.
378
Dito “em regra”, porque Humberto Ávila faz distinção entre conceitos jurídicos indeterminados
empíricos ou descritivos (v.g.: escuridão, noite, ruído, que são percebidos pelos sentidos, necessitando apenas de explicação), normativos (que não perceptíveis pelos sentidos necessitam das normas para serem compreendidos), e normativos valorativos (que envolvem preenchimento valorativo por parte do aplicador). São os conceitos jurídicos indeterminados normativos valorativos que se assemelham às cláusulas gerais. ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 449. 379
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2.ed.
São Paulo: Editora Malheiros, 2003, p. 22. 380
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios... ob. cit., p. 119.
104
Quando o legislador determina que em uma rodovia federal, por exemplo, o
limite de velocidade é de 100 km/h, verifica-se que nesse plano estrutural legislativo
está presente o suporte fático suficiente para que, na interpretação do texto, o
aplicador possa raciocinar dedutivamente381. Logo, existe uma regra pronta e
acabada, pois o processo criativo aí é inexistente. O cidadão, na hipótese, como
adverte Lorenzetti, não pode sequer alegar razões principiológicas para desrespeitar
a regra, como, por exemplo, pressa para chegar a tempo no aeroporto, sob pena de
perder o voo 382.
Nesse passo, tem-se que, diferentemente da regra (de velocidade máxima da
pista) — que possui na sua estrutura uma hipótese fática claramente delineada pelo
legislador, com uma consequência pré-estabelecida, podendo ser aplicada por meio
de subsunção —, “os princípios não têm suporte fático” 383.
Apoiando-se ainda no exemplo do limite de velocidade estabelecido para o
trânsito em rodovia, Ricardo Luis Lorenzetti enfatiza que se o legislador
pretendesse, no lugar de uma regra, regular o fato por um princípio teria que dizer
381
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 35. 382
Ao analisar os critérios de distinção entre princípios e regras, em especial ao critério conflitivo
normativo defendido tanto por Alexy quanto Dworkin (cada um a seu modo), Humberto Ávila contesta essa opinião ao demonstrar, utilizando exemplo igual da regra limitativa de velocidade, que as regras podem sujeitar-se à atividade de ponderação de razões. Com efeito, adverte o citado autor: “...as regras também podem ter seu conteúdo preliminar de sentido superado por razões contrárias, mediante um processo de ponderação de razões...Por exemplo, a legislação de um Município, ao instalar regras de trânsito, estabelece que a velocidade máxima no perímetro urbano é de 60Km/h. Se algum veículo for fotografado, por mecanismos de medição eletrônica, trafegando acima dessa velocidade, será obrigado a pagar uma multa. A mencionada norma, dentro da tipologia aqui analisada, seria uma regra, e, como tal, instituidora de uma obrigação absoluta que independe de ponderação de razões a favor e contra sua utilização: se o veículo ultrapassar a velocidade-limite e se a regra for válida, a penalidade deve ser imposta. Mesmo assim, o Departamento de Trânsito pode deixar de impor a multa para os motoristas, especialmente de táxi, que comprovem, mediante a apresentação de boletim de ocorrência, que no momento da infração estavam acima da velocidade permitida porque conduziam passageiro gravemente ferido para o hospital. Nesse caso, embora tenha sido concretizada a hipótese normativa, o aplicador recorre a outras razões, baseadas em outras normas, para justificar o descumprimento daquela regra (overruling). As outras razões, consideradas superiores à própria razão para cumprir a regra, constituem fundamento para seu não-cumprimento. Isso significa, para o que se está agora a examinar, que o modo de aplicação da regra, portanto, não está totalmente condicionado pela descrição do comportamento, mas que depende do sopesamento de circunstâncias e de argumentos”. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios... ob. cit., p. 45-46. 383
DA CUNHA, Sérgio Sérvulo. O que é um princípio. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU, Eros
Roberto (Org.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 270.
105
mais ou menos o seguinte: “conduza de uma maneira que não cause dano a outrem”
384.
É fácil supor que o magistrado ao tentar aplicar o que o legislador teria posto
acima, por certo encontraria muita dificuldade de compor o feixe de valores
suficientes para delimitar o comportamento do condutor, em decorrência do grau de
vagueza apresentado no texto. Na verdade, pelo menos na hipótese, seria
impraticável a aplicação do texto legal redigido de maneira principiológica.
Visto assim, pode-se afirmar que a dificuldade em se dissociar cláusula geral
de princípios está exatamente em que os princípios também fazem parte daqueles
conceitos, cuja baixa concretude ou densidade normativa não é capaz de, por meio
do processo de subsunção, apresentar uma única solução para o caso concreto,
autorizando que o magistrado, possa apresentar diversas alternativas válidas de
interpretação. Daí a razão de Didier afirmar que, embora a cláusula geral seja texto
(e princípio, norma), pode acontecer de um princípio ser extraído de uma cláusula
geral385 386.
Não é simples a distinção, portanto, entre princípio jurídico e cláusula geral.
Hélio Silvio Ourem Campos, em estudo de assento e sobremão, trabalha a
noção de princípio pelo aspecto finalístico, assinalando que
na verdade, em um sentido radical, só se deveria falar em princípio quando, dentro de uma certa ordem, nada lhe fosse anterior. Nada o deveria preceder. Seria como se a história fosse uma linha reta infinita, e o seu primeiro ponto fosse denominado princípio. No entanto, a história do Estado, e do próprio indivíduo, às vezes caminha em círculos. E, em uma ordem circular, há indiferença quanto ao que esteja em primeiro ou em último (...). Em outras palavras, a história humana está repleta de avanços e retrocessos. Ela não é uma reta, pois possui vários começos (princípios). Cada civilização tem o seu princípio ou os seus princípios. Estes não são verdadeiros ou falsos, embora sirvam de fundamento para uma
384
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 36. 385
“Cláusula geral é um texto jurídico; princípio é norma. São institutos que operam níveis diferentes do fenômeno normativo. A norma jurídica é produto da interpretação de um texto jurídico. Interpretam-se textos jurídicos para que se verifique qual norma deles pode ser extraída. Um princípio pode ser extraído de uma cláusula geral, e é o que costuma acontecer. Mas a cláusula geral é texto que pode servir de suporte para o surgimento de uma regra. Da cláusula geral do devido processo legal é possível extrair a regra de que a decisão judicial deve ser motivada, por exemplo”. DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais... ob. cit., p. 9. 386
No mesmo sentido é Judith Martins-Costa: “as cláusulas gerais não são princípios, embora na
maior parte dos casos os contenham, em seu enunciado, ou permitam a sua formulação”. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 316.
106
cultura em um determinado espaço e tempo. São fotografias de um momento político. Em um princípio, o decisivo é que tenha efetividade. Se dele nada resultar, não cabe se falar em princípio. Na idéia de princípio, vem engajada a noção de continuidade. Não
haverá princípio, se não existirem efeitos387.
Nada obstante, Judith Martins-Costa cogita inicialmente explicar a diferença
entre os citados termos expondo as diversas acepções do vocábulo princípio. Ao
final de sua explanação, contudo, ressalta que “entre os autores que admitem a
natureza normativa dos princípios entende-se que o seu caráter fundante se situa
como um dos principais, senão o principal traço individualizador” 388 389.
O que vem a ser princípio fundante, nas palavras de Miguel Reale, é o
seguinte:
Para se formar noção do que seja princípio, é necessário recordar, previamente, o que se entende logicamente por juízo. Quando formulamos um juízo? Quando emitimos uma apreciação a respeito de algo, quer negando, quer afirmando uma qualidade.
....
O juízo, portanto, é a molécula do conhecimento. Não podemos conhecer sem formular juízos, assim como também não podemos transmitir conhecimentos sem formular juízos. A expressão verbal, escrita ou oral, de um juízo, chama-se proposição.
...
Se todo juízo envolve uma pergunta sobre sua validade ou o seu fundamento, quando se enuncia um juízo, que não seja por si evidente, há sempre a possibilidade de reduzi-lo a outro juízo mais simples ainda, o qual, por sua vez, poderá permitir a busca de outro juízo que nos assegure a certeza do enunciado, por ser evidente,
impondo-se como presença imediata ao espírito. Quando o nosso pensamento opera essa redução certificadora, até atingir juízos que não possam mais ser reduzidos a outros, dizemos que atingimos
387 CAMPOS, Hélio Silvio Ourem. A Constituição Brasileira de 1988 e o princípio da segurança
jurídica no âmbito das medidas provisórias tributárias. Vol. I, Lisboa, 2001, p. 179-180. 388
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 321. 389
Ao anotar a distinção entre princípios e regras na obra de Luis Virgílio Afonso da Silva, Nelson Nery ressalta o seguinte texto do referido autor: “a nomenclatura pode variar um pouco de autor para autor – e são vários os que se dedicaram ao problema dos princípios jurídicos no Brasil –, mas a idéia costuma ser a mesma: princípios seriam as normas mais fundamentais do sistema, enquanto as regras costumam ser definidas como uma concretização desses princípios e teriam, por isso, caráter mais instrumental e menos fundamental”. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 27.
107
princípios. Princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da
validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus
pressupostos necessários390
.
Observados por esse predicado, então, os princípios fundantes agem, na
dicção de Sérgio Sérvulo da Cunha, como “indutores da elaboração das normas,
que se distribuem pelo campo de aplicação do sistema como que a preencher um
espaço até então vazio” 391. É dizer, os princípios caracterizam-se pela síntese de
pontos de vistas que se expraiam pelo sistema jurídico, gerando efeitos práticos.
Ao expor sobre a diferença entre cláusula geral e princípios, Humberto Ávila
adverte que se pode adotar basicamente dois critérios distintivos: o da abrangência
valorativa e o da operatividade. Como os princípios, como visto, referem-se a valores
fundantes, sua abrangência, ou melhor, sua cobertura normativa é bem superior as
das cláusulas gerais, que se localizam “no meio caminho, entre as regras e os
princípios” 392. Ainda para o referido autor,
o elemento diferenciador fundamental entre as duas categorias é sua forma operativa no processo de aplicação: os princípios atuam sobre uma grande parte das normas do sistema, para dar-lhes sentido e fundamento, determinando-lhes o valor; as cláusulas gerais que operam em campo mais restrito são instrumentos de atuação dos valores normativos concretos, em algum período histórico delimitado,
em razão dos quais são também determinados os efeitos jurídicos393
.
Mas não é só.
É no ponto acima referido por Miguel Reale (da falta de evidência dos
princípios em determinadas circunstâncias) que também se observa a diferença. É
que, consoante afirma Judtih Martins-Costa, “não se pode pensar em ‘cláusula geral’
390
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 60-61. Obs: não há o negrito no texto original. 391
DA CUNHA, Sérgio Sérvulo. O que é um princípio... ob. cit., p. 271. 392
ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 434. 393
ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 434.
108
inexpressa”394, não se podendo falar, na hipótese, em implicitude. E assim é porque,
a cláusula geral provém do legislador, porquanto, como já antedito, é técnica
legislativa, ao passo que o princípio provém, não raro, da própria Ciência do
Direito395.
2.2.3 As cláusulas gerais e a importância do precedente.
Como já relatado, diante dos textos legais compostos por cláusulas gerais ou
conceitos indeterminados, o magistrado tem uma atuação completamente diferente
daquela originariamente concebida pela escola da exegese.
Ao ter que trabalhar com regras de composição semântica aberta, o
magistrado cria a norma jurídica aplicável ao caso. Se no processo de subsunção o
juiz pouco se dá a perceber o que está a sua volta, no de concreção sua consciência
se volta para o sistema como um todo, em especial, como tem sido presentemente,
para os precedentes criados pelos tribunais superiores. A razão desse
comportamento está no fato de que a utilização da técnica das cláusulas gerais em
muito aproxima o sistema do civil law do common law 396.
Consoante expõe Marinoni, “a ampliação da latitude do poder judicial com
base nas cláusulas gerais não apenas exige um sistema de precedentes, como
ainda reclama um aprofundamento de critérios capazes de garantir o controle das
decisões judiciais” 397 398. Ou seja,
De fato, quando se tem a consciência teórica de que a decisão nem sempre é resultado de critérios previamente normatizados, mas pode constituir regras, fundada em elementos que não estão presentes na legislação, destinada a regular um caso concreto, não há como
394
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 323. 395
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 61. 396
DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais.... ob. cit., p. 6. 397
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 155. 398
Do mesmo modo, em parágrafos seguintes, Marinoni afirma que o direito processual civil foi
também marcado por um paulatino e progressivo aumento dos poderes do juiz: “deixou-se de lado a rigidez das regras e a suposição de que a segurança e a igualdade apenas poderiam ser garantidas caso o juiz não tivesse espaço para fugir da letra da lei e da tipicidade das formas processuais. Foram instituídas no Código de Processo Civil normas com conceitos vagos e outras que expressamente atribuem ao juiz o poder-dever de adotar a técnica processual necessária à adequada tutela do direito material no caso concreto”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 156.
109
deixar de perceber que as expectativas que recaíam na lei
transferem-se para a decisão judicial399
.
Disso resulta que, se a decisão passa a ser o centro das expectativas do
sistema jurídico, máxime em se tratando de decisões judiciais proferidas em razão
da criação de cláusulas gerais, evidente que o princípio da segurança jurídica vai
atuar no sentido de impedir que haja diversidade profunda na produção de tais
normas, gerando perplexidade para os jurisdicionados.
Logo se vê que a perspectiva pessimista de que o legislador, enveredando
pela seara da técnica legislativa das cláusulas gerais, aumentará a insegurança
jurídica, somente ganha força na medida em que não sejam produzidos, em
contrapartida, os instrumentos processuais hábeis para fazer valer a unidade dos
precedentes judiciais. Até porque, as cláusulas gerais não podem significar “uma
brecha para que cada juiz decida de acordo com a sua convicção pessoal, a respeito
do sentido que tenham estas normas” 400. É que, caso assim seja, “negar-se-ia a
existência substancial do Poder Legislativo e o Judiciário ficaria ‘pulverizado’ em
tantos quantos fossem o número de juízes que o integram” 401.
Apesar da vagueza semântica das cláusulas gerais, ao magistrado não cabe
decidir com liberdade extrema. Melhor dizendo, o juiz deve socorrer-se de elementos
que colaboram com a concretização das cláusulas gerais. Como demonstrado, um
desses elementos chama facilmente a atenção: os precedentes judiciais. O outro, a
pré-compreensão.
Ora, quando, para fundamentar sua decisão, o magistrado escolhe
componentes axiológicos e extralegislativos, e assim ele resgata antecipadamente
valores que são compreendidos com anterioridade. Significa que, essa valoração se
dá por meio de um movimento circular denominado de pré-compreensão. Sobre o
tema, disserta da seguinte forma Lenio Streck:
399
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 154. 400
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do código civil de 2002 – a função social do contrato. Revistas dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. n. 831, a. 94, jan. 2005, p. 59-79., p. 72. 401
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais”... ob. cit., p. 72.
110
O intérprete não pode captar o conteúdo da norma desde o ponto de vista quase arquimédico situado fora da existência histórica, senão unicamente desde a concreta situação histórica na qual se encontra, cuja elaboração (maturidade) conformou seus hábitos mentais, condicionando seus conhecimentos e seus pré-juízos. O intérprete compreende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão, que é o que vai lhe permitir contemplar a norma desde certas expectativas, fazer uma idéia do conjunto e perfilar um primeiro projeto, ainda necessitado de comprovação, correção e revisão através da progressiva aproximação à coisa por parte dos projetos em cada caso revisados com o que a unidade de sentido fica claramente fixada. Dada esta presença do pré-juízo em toda compreensão, trata-se de não se limitar a executar as antecipações da pré-compreensão, sendo, pelo contrário, consciente das mesmas e explicando-as, respondendo assim ao primeiro comando de toda interpretação: proteger-se contra o arbítrio de idéias e a estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis e dirigir o olhar “para as coisas
mesmas” 402
.
Esse processo é, portanto, inibidor do arbítrio ou discricionariedade do
julgador. Há, dessa forma, uma vinculação do magistrado com seus pré-juízos no
instante de decidir, de criar a norma, de fundamentar a decisão. Isso porque, é bom
repetir, as cláusulas gerais “promovem o reenvio do intérprete/aplicador do direito a
certas pautas de valoração do caso concreto” 403.
Os precedentes, por exemplo, vão servir ao magistrado exatamente como um
norte no processo de definição do sentido desses textos, cuja tipificação é
praticamente inexistente. Como bem observado, a concreção não é processo que
permita a vontade pura e simples do julgador. Daí porque a importância da
fundamentação nas decisões em que o magistrado utiliza o processo de concreção.
As razões de convencimento do magistrado necessitam tanto de uma profundidade
vertical quanto de uma boa extensão horizontal, lembrando que esse procedimento
tem que ser pleno, pois visa atingir um auditório amplo, porquanto é dirigido não só
às partes, mas, de igual forma, à comunidade jurídica.
Eis que a concreção das cláusulas gerais e de conceitos indeterminados
requer do magistrado uma capacidade de sintonia elevada, suficiente para captar
dispersos no sistema, e até mesmo fora deles, os valores extralegais a serem
402
STRECK. Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 271. 403
MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como “um sistema em construção”: as cláusulas gerais
no projeto do código civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa: Brasília, a.35, n.139, p. 5-22, jul./set., 1998, p. 10.
111
preenchidos nas normas. Esse proceder evita “o voluntarismo puro, o mero arbítrio
do julgador” 404.
Em outro giro, não recai somente sobre os ombros do magistrado o fardo de
um trabalho meticuloso; a doutrina também recebe sua cota de responsabilidade. O
papel da doutrina passa a ser o de executar uma crítica construtiva ao trabalho dos
magistrados diante da fundamentação das decisões baseadas em normas de textura
aberta405.
Essa influência benéfica que o precedente judicial exerce sobre o juízo de
valoração do magistrado deixa claro que um dos elementos decisivos no processo
de “concretização das cláusulas gerais é a pré-compreensão do aplicador a respeito
de elementos do enunciado normativo” 406.
Nesse contexto, Humberto Ávila adverte que
a pré-compreensão induz o aplicador a reconhecer um certo sentido nas normas, dentre as várias possibilidades de conteúdo e dentre as várias hipóteses de combinações entre as normas. Por isso, a afirmação de LARENZ: “o intérprete está munido de uma ‘pré-compreensão’, com que penetra no texto”. Essa pré-compreensão tem especial relevo para a aplicação daquelas normas abertas cujo sentido é dado, também, por aspectos extra-sistemáticos, porque elas se referem aos contextos sociais, às situações de interesses e às estruturas das relações da vida, reguladas pelas normas
jurídicas407
.
Daí que não será facilmente tolerada pela comunidade aquela decisão do juiz
que despreza o que há de consenso socialmente aceito em relação a certo standard
de comportamento. Didier dá o exemplo:
As práticas negociais de agricultores de uma região, por exemplo, não podem ser ignoradas na compreensão do que significa um comportamento socialmente havido como honesto (standard), para
fim de concretização da cláusula geral da boa-fé408
.
404
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 88. 405
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 89. 406
DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais.... ob. cit., p. 7. 407
ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 440. 408
DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais.... ob. cit., p. 7.
112
Bem vistos tais aspectos, é inegável que o consenso social já pode estar
sedimentado por obra da jurisprudência.
2.2.4 Consequências práticas da utilização das cláusulas gerais.
O poder de adaptação à realidade social dos textos legislativos munidos da
técnica das cláusulas gerais é bem maior do que as leis cujas redações de seus
dispositivos primam pela casuística409. É que, ao contar com os espaços abertos
propositadamente produzidos pelo legislador, o juiz pode considerar, diante do caso
concreto, circunstâncias que permitam uma solução mais próxima possível do justo.
Afasta-se, por assim dizer, de uma (ainda que remota) aplicação subsuntiva da
norma, proporcionada pela técnica legislativa casuística. Até porque outro fator
importante deve ser adicionado ao debate: a pluralidade da sociedade moderna.
Se é certo que vivemos hoje em sociedades multifacetadas, dotadas de
grupos particularizados, e com interesses políticos diversos, até a aprovação de leis
especiais se apresenta bem menos complicada, em decorrência de se facultar a
participação popular mais efetiva na discussão legislativa410. Ou seja, a técnica
legislativa das cláusulas abertas proporciona basicamente uma melhor possibilidade
de debate e participação popular, facilitando o processo parlamentar de aprovação
das leis, ao mesmo tempo que favorece a atuação do magistrado na concretização
do direito, “dando-lhe poder para construir a decisão a partir de elementos que não
estão presentes no tecido normativo” 411.
409
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 152. 410
“Diante desse quadro, seria mais interessante a adoção de uma lei geral sobre relação jurídica e
de microssistemas dela decorrentes, tratando sobre os diversos assuntos do direito privado. Teríamos, à semelhança da orientação mais recente adotada por ocasião da promulgação do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), outros microssistemas específicos, tratando de temas como responsabilidade civil extracontratual, responsabilidade civil contratual, casamento, união estável, estatuto dos filhos, estatuto da propriedade, estatuto da posse. A participação popular seria naturalmente mais intensa e tais normas, mais flexíveis consideravelmente menos extensas que uma grande codificação, teriam uma ‘sobrevida’ bem maior, inclusive por meio de modificações mais céleres em seus dispositivos, a fim de melhor acompanhar as transformações sociais (basta lembrar que o Código Civil de 1916 levou dezessete anos para ser promulgado, enquanto o novo Código levou quase trinta)”. LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil... ob. cit., p. 93. 411
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 154.
113
Evidentemente que não se pode negar a constatação que nesse passo de
atuação do magistrado, a criação do direito sobreleva-se em muito em relação ao
passado.
Se a cláusula geral é uma norma propositadamente incompleta, ofertada pelo
legislador ao Judiciário com a intenção de que o magistrado a complete, temos que
“a decisão judicial é a verdadeira norma jurídica do caso concreto” 412. Logo, é mais
do que razoável admitir-se que, nessa perspectiva, as decisões judiciais que
propugnam idêntico entendimento, findam por criar o direito, estabelecendo normas
jurídicas que servirão para a solução de casos semelhantes.
2.3 Significado do termo jurisprudência
Alguns autores, como José Rogério Cruz e Tucci413 e Caio Márcio Gutterres
Taranto414, declaradamente preferem empregar a locução precedente em lugar do
termo jurisprudência. O motivo é que, sendo o vocábulo jurisprudência de
significação múltipla, evita-se com isso que ocorram aplicações antagônicas do
termo. Todavia, ao levar em consideração que o presente trabalho pretende, entre
outras coisas, defender a jurisprudência uniforme como supedâneo da segurança
jurídica e instrumento de apoio para os juízes, no ato de fundamentação das
decisões judiciais, entende-se necessário trabalhar aqui com um conceito de
jurisprudência ainda que de feição reducionista.
Observa-se que no dia a dia do fórum também é comum a aplicação sem
rigor de um ou outro termo. Nas peças processuais ou mesmo nas decisões, os
aplicadores do direito fazem referência muita vez à “jurisprudência” quando da
citação de um único precedente.
Esse embaraço pode ter origens históricas.
Somente a partir de Roma é que o termo jurisprudência começou a ser
cunhado. Na Roma antiga, cabia aos pretores, por meio de editos, declararem como
412
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 154. 413 CRUZ e TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2004, p. 9. 414
TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 5.
114
seria a justiça administrativa, completando-a e corrigindo-a415 416. Segundo
Mancuso, também aos jurisconsultos cabia interpretar a lei. É que o significado do
termo jurisprudência estava atrelado a uma função exegética que era executada
pelos jurisconsultos da época (prudentes). Os tais prudentes esclareciam os termos
da lei que se faziam necessários, porquanto o Direito estreante da época, na sua
natural miscelânea de fontes, não distinguia moral de religião417. O termo prudente
vem dessa imperiosa faculdade de, com sabedoria, os jurisconsultos distinguirem da
lei o que era moral e o que era religião, auxiliando com isso o proceder dos
cidadãos. Logo, em Roma, dizer o direito (júris+prudentia) era atividade exercida
tanto pelos editos dos pretores, como das respostas fornecidas pelos prudentes418,
cada qual, porém, de maneira própria.
Após esse período de grande autonomia da jurisprudência, o imperador
Adriano determinou que na solução de casos polêmicos os magistrados estavam
autorizados, dentre os principais jurisconsultos, a escolher aqueles que
apresentavam as melhores opiniões sobre as questões discutidas419. Era possível
até, em um segundo estágio de evolução, seguir uma ordem hierárquica de
preferência das obras dos jurisconsultos. Assim, era preferível optar por uma obra
específica, e, se nela não fosse encontrada resposta, demandar diligência em obra
de jurisconsulto diverso, mas sempre obedecendo a uma ordem de preferência.
Depois de um certo período, restou em favor do imperador a tarefa exclusiva de
interpretar a lei420. Somente na Idade Média volta-se a ter notícia de que os órgãos
judiciários procuravam, no momento de declarar o sentido da lei, demonstrar o
alcance da regra421.
415
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 144. 416
“Os magistrados administravam a justiça e emanavam os editos para que os cidadãos soubessem qual direito estes aplicavam em cada caso. Este editos dos pretores construíram o direito honorário: chama-se honorário porque deriva do cargo (honor) do pretor”. CRUZ e TUCCI, José Rogério Cruz. Precedente judicial como fonte do direito... ob. cit., p. 39. 417
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p.10. 418
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p.11. 419
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 145. 420
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 145. 421
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 145.
115
Mas foi na Alta Idade Média (XI e XII) que se registrou “um movimento de
releitura das fontes romanas, com os chamados glosadores” 422. A atividade dos
glosadores consistia em formular comentários ou anotações às margens ou nos
planos interlineares da versão original do Corpus Iuris Civilis423
. Essas anotações
recebiam o nome de glosas. Destacava-se, na aludida tarefa, a Escola de Bolonha,
com distinção para Martins, Hugo e Jacob424. Esse método, considerado um prelúdio
da hermenêutica, visava adequar o texto aos reclamos da época.
A partir desse momento, mais especificamente, portanto, quando as glosas
assumem uma conotação mais casuística, a jurisprudência vai adquirindo finalidades
diversas dos primórdios do império romano, conforme se vai solidificando nos vários
países, notando-se que, como observa Mancuso,
No continente europeu, os ordenamentos continuaram a se inspirar nas fontes romanas, com as necessárias adaptações, formando os chamados “direitos codicísticos”, com forte prevalência da norma escrita, ao contrário da vertente anglo-saxã, onde o primado recaiu
no precedente judiciário, como é sabido425
.
Em vista disso, denota-se que, com a derrocada do Império Romano, formou-
se basicamente dois sistemas com maior ou menor importância da jurisprudência:
um calcado nos códigos, outro na força dos precedentes. Porém, ambos com
influência notadamente do Direito romano. Na opinião de Eduardo Parente, “esse
panorama histórico serve para demonstrar que sempre houve, em maior ou menor
422
MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit.,
p.13. 423
“Justiniano foi o responsável pela confecção do Corpus Iuris Civilis, dotado de uma sistemática
interna ora reconhecida, contendo toda a legislação romana que influenciou o direito das nações bárbaras, quando se operou a recepção. O Corpus Iuris Civilis era constituído pelas novelas e institutas e pelos codex e digestos. A novela compreendia as novas constituições e as leis de Justiniano. As institutas se dividiam em quatro livros, redigidos, a pedido de Justiniano, por Teófilo, Triboniano e Doroteu. É obra de cunho didático, como elementos necessários ao ensino do direito, que substituiu as Institutas de Gaio. O digesto ou pandectas era uma compilação de normas do direito civil e de decisões dos jurisconsultos romanos. O Codex, que integrava o Corpus Juris Civilis era, na realidade, um conjunto de códigos refundidos, com modificações hábeis à sua adaptação para aquela época”.LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil... ob. cit., p. 84-85. 424
MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p.13. 425
MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit.,
p.13 e 14.
116
grau, obrigatoriedade ou mesmo forte influência da jurisprudência na realidade
jurídica” 426 .
Ora, por conta dessa realidade circunstante, a doutrina procurou, ao longo do
tempo, estabelecer com segurança uma definição para o termo jurisprudência. Essa
mesma preocupação revela-se presente quando o assunto é jurisprudência
dominante, termo que o legislador utilizou por mais de uma vez na reforma do CPC,
levada a efeito pela Lei 9.756/98, como se verá mais adiante.
Um dos fatores que contribuem para dificultar essa segunda tarefa dos
doutrinadores é o fato do próprio termo jurisprudência abarcar mais de uma
acepção427. Deveras, não só algumas acepções do vocábulo jurisprudência
afiguram-se presentemente fora de um contexto prático428, como também entre os
doutrinadores varia o número exato de sentidos que a palavra é aplicada no
universo jurídico. Lenio Streck, por exemplo, admite três significados para o
termo429; Carlos Maximiliano, basicamente, trabalha com dois430. Mancuso dá aviso
de que Limongi França apresenta cinco acepções431. Fabiano Carvalho, em seu
426 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit.,
p.5. 427
Segundo Mancuso: “...ainda hoje, a palavra segue sendo plurissignificativa.” MANCUSO, Rodolfo
Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p. 29. 428
Segundo Sidnei Agostinho Beneti, “o linguajar jurídico nacional vem solapando o conceito de
jurisprudência...” BENETI, Sidnei Agostinho. Doutrina de precedentes e organização judiciária. Revista de Direito Administrativo. São Paulo, v. 246, set./dez, 2007, p. 319. 429
“A palavra ‘jurisprudência’ pode ter, na linguagem jurídica, significados diferentes: a) em sentido
estrito, pode indicar ‘Ciência do Direito’, também denominada ‘Dogmática Jurídica’ ou ‘Jurisprudência’; b) em sentido lato, pode referir-se ao conjunto de sentença dos tribunais, e abranger tanto a jurisprudência uniforme como a contraditória; c) pode significar apenas o conjunto de sentenças uniformes, falando-se, nesse sentido, em ‘firmar jurisprudência’ ou ‘contrariar a jurisprudência’”. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p. 88. 430
“Chama-se Jurisprudência, em geral, ao conjunto das soluções dadas pelos tribunais às questões
de Direito; relativamente a um caso particular, denomina-se jurisprudência a decisão constante e uniforme dos tribunais sobre determinado ponto de Direito”. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 145. 431
“Para Rubens Limongi França o termo comporta cinco acepções: ‘O primeiro, um conceito lato,
capaz de abranger, de modo geral, toda a ciência do direito, teórica ou prática, seja elaborada por jurisconsultos, seja por magistrados’ (...). ‘O segundo, ligado à etimologia do vocábulo, que vem de júris+prudentia, consistiria no conjunto das manifestações dos jurisconsultos (prudentes), ante questões jurídicas concretamente a eles apresentadas. Circunscrever-se-ia ao acervo dos hoje chamados pareceres, quer emanados de órgãos oficiais, quer de jurisperitos não investidos de funções públicas. O terceiro, o de doutrina jurídica, teórica ou prática ou de dupla natureza, vale dizer o complexo das indagações, estudos e trabalhos, gerais e especiais, levados a efeito pelos juristas sem a preocupação de resolver imediatamente problemas concretos atuais. O quarto, o de massa geral das manifestações dos juízes e tribunais sobre as lides e negócios submetidos à sua autoridade, manifestações essas que implicam uma técnica especializada e um rito próprio, imposto por lei. O quinto, finalmente, o de conjunto de pronunciamentos, por parte do mesmo Poder Judiciário, num determinado sentido, a respeito de certo objeto, de modo constante, reiterado e
117
estudo sobre os poderes do relator nos recursos – art. 557 do CPC –, enumera
igualmente três significados para dar exemplo da polissemia da expressão432.
Conquanto sejam compreensíveis as acepções diversas que a palavra
jurisprudência tem na Ciência do Direito, já que a origem da expressão remonta aos
primórdios do Direito Romano, convém, como já referido, que não se trabalhe, ao
menos num estudo sobre um tema específico, uma amplitude de significados de um
mesmo termo; o mais adequado é partir para uma postura reducionista a fim de que
se possa elucidar algumas questões que constantemente enveredam pela senda
aberta em torno do tema principal.
Uma dessas primeiras questões: as decisões uniformes de primeiro grau
configuram “jurisprudência”?
Ao menos tomando por parâmetro um senso técnico-jurídico, a doutrina não
associa o termo jurisprudência às decisões que se encontram na base da pirâmide
estrutural do Poder Judiciário433 434. Nesse ser assim, pode-se até chamar a decisão
do juízo de primeiro grau de precedente (ou, no conjunto, quando reiteradas, de
precedentes)435, mas não de jurisprudência – mesmo que, sendo várias, reflitam
uma mesma linha de pensamento. É que falta a tais decisões o prestígio imanente
pacífico.”. MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p. 29. 432
“O vocábulo é empregado na sua acepção clássica: ‘pode ser entendida como o conhecimento
das coisas divinas e humanas e a ciência do justo e do injustos. Nesse sentido foi aplicado por Ulpiano (Livro I Regularum) no D. 2.1.10, § 2º: jurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, justi et injusti scientia. Jurisprudência como ‘Ciência do Direito’, em sentido estrito, também denominada de ‘Dogmática Jurídica’. Nesse sentido, a jurisprudência ‘tem por objetivo o fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente realizado’”. CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 121. 433
Para Sidnei Beneti, a jurisprudência é a “interpretação consistente dos tribunais a respeito das
lides, igualando-a pela de precedente, que é cada julgamento individual. Um julgado não é jurisprudência, mas um precedente, que interagirá com outros julgados idênticos ou análogos, no sentido da formação, ou não, de jurisprudência”. BENETI, Sidinei Agostinho. Doutrina de precedentes e organização judiciária... ob. cit., p. 319. (os destaques não constam no original). 434
“Portanto, a ‘jurisprudência’, no sentido técnico-jurídico antes buscado, não se confunde com a
função primária (e monopolizada) do Estado, de promover a distribuição da justiça: a uma, porque os julgados de primeiro grau, ainda quando homogêneos, não configuram jurisprudência, termos usualmente reservado para designar um encadeamento harmônico de acórdãos sobre um mesmo tema...” . MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p. 22 e 23 (os destaques em negrito não constam no original). 435
“Seria possível pensar que toda decisão judicial é um precedente. Contudo, ambos não confundem, só havendo sentido falar de precedente quando se tem uma decisão dotada de determinadas características, basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados. De modo que, se todo precedente é uma decisão, nem toda decisão constitui precedente”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 215.
118
do entendimento oriundo dos tribunais, que, a toda evidência, cresce na medida em
que verticalmente se eleva no âmbito dos órgãos fracionário da Corte de Justiça de
onde as decisões provêm. Prestígio esse que advém igualmente da certeza da
imutabilidade que a decisão vai recebendo ao galgar degrau por degrau a escala
piramidal do Poder Judiciário.
De igual modo, por sequer merecerem a denominação de acórdão, são
inaptos também para a formação de jurisprudência “os atos decisórios prolatados
por órgãos monocráticos existentes nos Tribunais (Presidente, Vice, Corregedor,
Relator, Revisor), quando exercem competência fixada na legislação processual
(v.g., CPC, arts. 541, 557) ou nos textos regimentais (v.g., RISTF, art. 21, VII)” 436;
isso porque, de maneira idêntica às sentenças de primeiro grau, também essas
decisões monocráticas revelam pouco prestígio no grau da imutabilidade, já que
podem sofrer crivo do próprio Tribunal ou de Tribunal ad quem, oportunidade então
que o órgão revisor poderá ou não confirmá-las.
Na verdade, decisões monocráticas dos relatores, proferidas com base no art.
557 do CPC, por exemplo, refletem a jurisprudência, mas com essa não podem ser
confundidas.
Outra questão que se revela pontual: decisão isolada do Tribunal pode ser
considerada jurisprudência?
Para Carlos Maximiliano, “uma decisão isolada não constitui jurisprudência; é
mister que se repita, e sem variações de fundo. O precedente, para constituir
jurisprudência, deve ser uniforme e constante” 437 438. Diz mais o referido
hermeneuta:
Para evitar confusões, sempre prejudiciais no terreno científico,
parece preferível só chamar jurisprudência ao uniforme e constante
pronunciamento sobre uma questão de Direito, da parte dos
tribunais; e simples precedentes, às deliberações das câmaras
legislativas e às decisões isoladas dos magistrados439
.
436
MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p.
38-39. 437
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 151. 438
No mesmo sentido, Lenio Streck. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p.
89. 439
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 153.
119
Como se verá mais à frente, essa posição pode ser flexibilizada de acordo
com o contexto em que a decisão única do tribunal se revela.
Por fim, ao somatório de todos os julgados dos tribunais é possível
denominar-se de jurisprudência? Ou jurisprudência é somente aquela parte
destacada da massa geral de acórdãos que corresponde a uma determinada
questão reiterada e uniformemente decidida pelo Tribunal?
Como já referido, embora diversas sejam as significações para a palavra,
observa-se uma indicativa tendência doutrinária para a aceitação conceitual restrita
da jurisprudência como “o conjunto de decisões provindas de tribunais sobre
determinada matéria em sentido isonômico, reiterado e predominante” 440.
Praticamente no mesmo sentido é a proposta conceitual de Fabiano Carvalho:
“jurisprudência é a produção decisória, em série, dos tribunais, por meio dos seus
órgãos colegiados, no exercício da sua jurisdição, sobre determinada matéria
jurídica de sua competência” 441.
Das conceituações acima, e para o que interessa ao presente estudo,
trabalharemos a seguir com essa acepção mais técnica ou restrita de jurisprudência,
quer dizer, como aquela que designa o resultado sistemático e consistente do
entendimento dos juízes que compõem as Cortes de Justiça em relação a um tema
específico.
2.3.1 Jurisprudência dominante
Com efeito, as últimas reformas legislativas implementadas no Código de
Processo Civil deram bastante destaque à força dos precedentes, notadamente no
tocante à jurisprudência oriunda dos tribunais superiores.
Ao que tudo indica, o legislador foi se rendendo aos poucos à necessidade da
sociedade estabelecer paradigmas comuns aos comportamentos humanos e, como
visto, numa sociedade moderna, deveras massificada, indiscutivelmente esses
440
PARENTE, Eduardo Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit., p. 5. 441
CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 122.
120
paradigmas são melhores fornecidos pelo Poder Judiciário através de sua produção
jurisprudencial442. A importância que o legislador deu à expressão jurisprudência
dominante resulta dessa necessidade de se apontar para sociedade os paradigmas
judiciais que servem para a configuração do direito a ser seguido por todos.
À partida, vale a afirmação que a expressão jurisprudência dominante é
conceito vago porque “não é possível definir com precisão o seu conteúdo” 443.
Logo, é exatamente por isso que a doutrina vem se debruçando sobre o tema no afã
de dar o sentido exato ao adjetivo dominante.
Como o conceito é vago, impreciso, os critérios desenvolvidos pela doutrina
são basicamente de ordem objetiva. É que parece não ter sentido, ao menos numa
primeira levada de interpretação, estar diante de um conceito vago e não preenchê-
lo com critérios objetivamente declarados. Todavia, como se poderá observar mais
na frente, talvez seja possível conviver com o conceito vago de jurisprudência
dominante sem a necessidade premente de se estabelecer critérios objetivos.
Do ponto de vista cronológico, um dos primeiros trabalhos sobre o tema foi
apresentado por Priscila Kei Sato. Em seu estudo, a doutrinadora propõe a solução
do problema estratificando-o nas principais esferas superiores do Poder Judiciário,
da seguinte forma: (i) em relação ao Supremo Tribunal Federal, o termo refletiria
necessariamente a existência de mais de um acórdão com a unicidade do
entendimento ou decisão do Pleno do STF, mesmo que não unânime444; (ii) no
tocante ao Superior Tribunal de Justiça, os critérios seriam fundamentalmente os
mesmos, com a diferença que a jurisprudência dominante não se formaria no Pleno
do STJ, e sim por meio de decisões da Corte Especial, uma vez que o órgão
máximo desse tribunal exerce função meramente administrativa; e (iii) no que diz
respeito aos tribunais locais, esses deveriam adotar “outros critérios já que há mais
dificuldade em se verificar qual é a jurisprudência dominante em razão do maior
número de órgãos competentes para o julgamento de cada matéria” 445.
442
ROCHA, José de Moura. A importância da súmula... ob. cit., p. 93. 443
SATO, Priscila Kei. Jurisprudência (pre)dominante. In: ARRUDA ALVIM, Eduardo Pellegrini; NERY
JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei. 9.756/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2000, p. 569. 444
SATO, Priscila Kei. Jurisprudência (pre)dominante... ob. cit., p. 579. 445
SATO, Priscila Kei. Jurisprudência (pre)dominante... ob. cit., p. 583.
121
Em seguida, Luiz Rodrigues Wambier446, entendendo insuficiente os
parâmetros trazidos por Priscila Kei Sato, acrescenta mais dois: tempo e espaço.
Partindo do pressuposto constitucional que ao Superior Tribunal de Justiça compete
dizer qual seja o direito federal a ser aplicado, assim se expressa o autor:
Em que pese o brilho da autora, a coragem de ter abordado tema tão delicado e a excepcional contribuição trazida para o debate a respeito do tema, parecem-nos insuficientes os parâmetros por ela traçados para delinear o conceito de “jurisprudência dominante”. Imaginamos que melhor seria para a sociedade (para as partes, portanto) que esse conceito fosse determinado no tempo e no espaço, tendo como referencial, no caso do direito federal, apenas e exclusivamente o Superior Tribunal de Justiça. Não é de competência dos Tribunais estaduais, do Tribunal distrital ou dos Tribunais Regionais Federais definir, pela reiteração de seus julgamentos, o entendimento do direito federal. Assim, não pode o relator de determinada matéria, no Tribunal de Justiça de qualquer dos Estados (ou do Distrito Federal ou ainda dos TRF’s), decidir monocraticamente (desnaturando, por assim dizer, a função colegiada dos Tribunais) e “dizer” o direito federal aplicável à
espécie447
.
Em seguida, ainda na linha de um plano numérico para resolver a questão, o
citado processualista propõe que
... o entendimento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da interpretação do direito federal, poderia considerar-se dominante se houvesse a reiteração de decisões majoritárias daquela Corte, no mesmo sentido, na proporção de 70% por 30%, durante o período de cinco anos (ou três anos, ou dois anos, por
exemplo, contados retroativamente) 448
.
À evidência, as duas propostas muito se aproximam, notadamente na
intenção de transmitir um entendimento pragmático. De plano, verifica-se no dia a
dia forense que, não raro, algumas teses que predominam durantes anos acabam
em determinado instante sendo postas de lado em favor de outras, mais modernas e
condizentes com os anseios sociais. A propósito do tema, Jordão Violin traz um
exemplo interessante sobre uma situação concreta. Lembra o autor que tal foi a
446 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência dominante.
Revista dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 100, ano 25, out./dez., 2000, p. 85. 447
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência dominante... ob. cit., p. 83.
448 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência dominante... ob.
cit., p. 85.
122
guinada interpretativa do Supremo Tribunal Federal quanto à eficácia do Mandado
de Injunção:
Após quase vinte anos sustentando que não compete ao Judiciário regular a situação jurídica do impetrante, em 2007 a Suprema Corte reviu sua posição, para avocar-se o poder-dever de formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o
ordenamento jurídico449
.
De fato, nesse caso, como, aliás, em vários outros semelhantes de mudança
de corrente jurisprudencial, é possível ter-se um número (ou um percentual) elevado
de decisões judiciais que não correspondem mais ao entendimento da Corte de
Justiça onde ocorreu a mudança de paradigma. Essa situação paradoxal acabaria
no final, por exigir intervenção do legislador para resolver a equação numérica
oferecida por esses doutrinadores.
Não tem sentido algum devolver ao legislador a tarefa que ele próprio
resolveu fosse realizada pelos aplicadores do direito, quando colocou no texto de lei
um conceito propositadamente vago. Ou seja, não parece razoável remeter de volta
ao legislador a função – que ele não se animou a realizar – de definir as quantidades
numéricas e os percentuais para o propósito de enquadrar o conceito “dominante”.
Porque é isso que acabaria acontecendo se deixássemos a tarefa para cada
membro do tribunal quando exercesse a relatoria no processo. Sim, já que é bem
possível que, em alguns tribunais, o percentual apropriado para designar a
jurisprudência dominante ficasse estabelecido por volta dos 70%, enquanto em
outros poderia ser de 80%, ou até mesmo 90%. Isto é, ao que tudo indica, no final
das contas, o mais aconselhável era mesmo que o legislador se debruçasse sobre o
tema a fim de equacionar tais parâmetros. Fosse para ficar assim, não teria sentido
ter esse mesmo legislador atribuído conceito vago para o aplicador do direito
enfrentar o tema.
Tomando como parâmetro o status que a súmula tem em nosso ordenamento
jurídico, Sérgio Cruz Arenhart elabora uma definição engenhosa, como se a
449
VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator: o artigo 557 do CPC e o reconhecimento
dos precedentes pelo direito brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). A força dos precedentes. Salvador: Editora JusPodivm, 2010, p. 202.
123
jurisprudência dominante fosse uma espécie de resíduo de um infrutífero incidente
de uniformização de jurisprudência. De fato, para o referido autor, não sendo
possível no incidente de uniformização atingir-se o número de votos necessários
para se produzir um enunciado (maioria absoluta), isto é, ficando a votação do
incidente de uniformização estacionada na maioria simples, já que não poderíamos
estar diante de uma súmula, estaríamos frente a uma jurisprudência dominante.
Dominante, assim, para Arenhart, seria o entendimento jurisprudencial dos tribunais
que, em um incidente de uniformização, se posicionasse em um degrau abaixo
daquele que alcançaria a ordenação sumular450.
Nesse ponto, convém o reparo: o processualista está dizendo que a
jurisprudência dominante é aquela que, levada a ser súmula por meio do incidente
de uniformização, não obteve aprovação como tal. Essa dicção difere da afirmação
feita por alguns doutrinadores de que jurisprudência dominante é aquela que já
poderia estar sumulada451. Para Arenhart, jurisprudência dominante é aquela que
não pôde ser transformada em enunciado de súmula, não aquela que está na
iminência de sê-la.
Contudo, parece inadequado restringir o conceito de jurisprudência dominante
ao resultado de um incidente processual. A restrição é muito intensa quando
sabemos que, na prática, muitas divergências jurisprudenciais não chegam sequer a
ser alvo do incidente de uniformização. Nem por isso há como verificar na
divergência a jurisprudência dominante. É que, no mais das vezes, a própria
jurisprudência dominante vai se solidificando de forma tão rápida, que já nem se
afigura mais salutar levar a cabo o procedimento de uniformização, que não oferta
em sua estrutura procedimental a necessária agilidade que se espera de um instituto
processual de vital importância para o nosso ordenamento jurídico.
Seja como for, o certo é que o incidente de uniformização de jurisprudência —
lamentavelmente subutilizado, em face de não ter angariado da comunidade jurídica
o prestígio de que era merecedor452
—, é inadequado para o propósito de vincular a
definição de jurisprudência dominante.
450
ARENHART, Sérgio Cruz. A nova postura do relator no julgamento dos recursos. Revista de Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, nº 103, jul./set., 2011, p. 49. 451
SATO, Priscila Kei. Jurisprudência (pre)dominante... ob. cit., p. 582. 452
PARENTE, Eduardo Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit., p. 67.
124
Com critérios bem menos objetivos, surgem, pela ordem, as propostas de
Fabiano Carvalho, Hermes Zaneti Júnior e Jordão Violin.
O primeiro, após reconhecer, como Priscila Kei Sato, que o termo dominante
não é termo jurídico453, parte de uma proposta de exclusão de conceitos para chegar
finalmente ao entendimento de jurisprudência dominante.
Com efeito, por meio de um processo de exclusão, Fabiano Carvalho assinala
que jurisprudência dominante não se confunde com jurisprudência majoritária nem
com jurisprudência pacífica. Dominante não equivale à expressão majoritária porque
aqui o sentido é relativo à maioria (50%+1). Ora, assevera o referido autor: “não
basta haver um maior número de julgados ou simples superioridade numérica de
acórdãos... para representar jurisprudência dominante” 454. De fato, a entender que
jurisprudência dominante equivale à jurisprudência majoritária restaria aceitar a tese
inicialmente proposta por Priscila Kei Sato. Por último, o autor rechaça a noção de
que jurisprudência dominante equivale à jurisprudência pacífica. Afinal, pacífico
significa o que é tranquilo, inabalável, indiscutível, ou o que não sofre oposição, e a
lei não exige que o entendimento jurisprudencial seja pacífico para que o julgamento
unipessoal seja realizado pelo relator, com base em jurisprudência dominante455.
Diante disso, Fabiano Carvalho parte na defesa da ideia de que o termo
dominante apresenta significado relacionado à “autoridade” e a “poder”, de sorte que
o termo designa aquela jurisprudência que exerce “influência ou domínio sobre
outras decisões” 456. Ou seja, jurisprudência dominante é a que, no tribunal, se
apresente de forma incontestável 457.
Mas não é só. O processualista, ao término de sua exposição, aponta duas
características, a seu ver, complementares, mas igualmente importantes para a
definição de jurisprudência dominante: que ela seja reiterada, isto é, que haja
repetidos pronunciamentos, “cujos resultados deverão ser no mesmo sentido, por
meio de largas séries de decisões conformes sobre o mesmo assunto jurídico” 458 e
453 CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 127. 454
CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 130. 455
CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 131. 456 CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 127. 457
CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 130. 458
CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 132.
125
que, “embora a norma não faça referência à atualidade” 459, é importante que essa
qualidade se manifeste presente na jurisprudência.
Hermes Zaneti Júnior sustenta que a jurisprudência dominante “tem de ser
vista pelo que ela não é, ou seja, definida por exclusão” 460. A certeza do que é
jurisprudência dominante é resultado, por conseguinte, de um processo mental de
aferição do que não se enquadra no conceito de jurisprudência dominante. Nesse
sentido, para o autor, não haverá jurisprudência dominante quando461: (i) a
jurisprudência for formada por um único órgão deliberativo; (ii) havendo divergências
entre os órgãos competentes do tribunal para apreciar a mesma matéria; e (iii) a
jurisprudência mal determinada pela ausência de coerência e identificação interna
entre os precedentes462.
Na mesma linha desses dois últimos autores, o processualista Jordão Violin
contesta as teses objetivas acima expostas, porque entende que, no final, todas
propõem algo que não deve prevalecer na conceituação de jurisprudência
dominante: a limitação. O autor assinala que as dificuldades de limitação são
naturais quando se está diante de uma cláusula aberta. E expõe:
Embora as mencionadas propostas consigam delinear o conceito de jurisprudência dominante, elas são excepcionáveis (defeasible, no
termo consagrado por Hart). Eventualmente, haverá situações em que as propostas não dão conta de explicar a realidade – e essa barreira talvez seja intransponível463.
Desse modo, Violin — aproximando-se sobremaneira da proposição de
Hermes Zaneti Jr. —, propõe que se parta para uma definição de jurisprudência
dominante pela negativa, preservando-se a textura aberta da cláusula imposta pelo
459
CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 132. 460
ZANETI JR. , Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 260.
461 ZANETI JR. , Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil
brasileiro... ob. cit., p. 260. 462
O autor adverte ainda que: “para que seja possível a formação de entendimentos dominantes (ou
pacíficos), a questão deve estar clara e bem acessível em diversos precedentes. Portanto, deve existir uma preocupação dos julgadores em utilizar os mesmos precedentes nos julgamentos análogos, reforçando sua coerência interna. A prática corriqueira de buscar um precedente a esmo para facilitar o julgamento presta enorme desserviço a essa coerência”. ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro... ob. cit., p. 260.
463 VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 204.
126
legislador: jurisprudência dominante é aquela que não vacila464. Daí que, para Violin,
“determinado entendimento configurará jurisprudência dominante na medida em que
suas razões sejam acatadas em casos idênticos” 465.
Essas duas últimas teses, além de optarem por dar importância a ratio
decidendi exposta nas decisões paradigmáticas, não importunam a textura aberta
do termo dominante. As divergências nas razões de decidir causam impacto direto
na análise do que se pode entender como jurisprudência dominante.
Para Violin, ainda em relação à importância da ratio decidendi, as
divergências nas razões de decidir, existentes nas jurisprudências contrárias, caso
não sejam bem fundamentadas, “não têm força declaratória suficiente para
enfraquecer entendimento anterior” 466. Logo, esse autor cuida ser necessário que o
relator faça o devido cotejo das razões que fundamentaram as decisões divergentes,
de maneira que, por meio desse procedimento, obtenha um precedente que já tenha
afastado todos os argumentos apresentados pela parte recorrente467. Destarte, por
essa via de raciocínio, o relator somente estaria obrigado a levar ao colegiado
aqueles argumentos que, apresentados pelo recorrente, fossem ainda novidade
perante o colegiado.
Portanto – na síntese do Violin,
o número de julgados apto a formar jurisprudência dominante será a quantidade necessária para que todos os argumentos levantados pelo recorrente tenham sido adequadamente analisados pelo tribunal em recursos anteriores. Apenas argumentos novos, ainda não apreciados pelo tribunal ou por Corte Superior, ensejarão a análise
pelo colegiado468
.
Na verdade, a expressão “dominante” foi carregada, pelo legislador,
intencionalmente de vaguidade. Em casos assim, é aceitável o entendimento de
Violin no sentido de que nem sempre haverá necessidade do aplicador do direito
transformar o que é vago em algo concreto, objetivo, numericamente verificável,
melhor sendo trabalhar com a textura aberta do termo, aplicando-se, quando
464
VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 204. 465
VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 204. 466
VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 204. 467
VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 205. 468
VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 205.
127
necessário, critérios axiologicamente excludentes como forma de resolver melhor a
polêmica em relação ao significado do termo dominante. A propósito desse juízo,
verifique-se a lição de Arruda Alvim:
Há “idéias” que, em si mesmas, dificilmente, comportam uma definição. Mais, ainda, se definidas forem, seguramente – agora no campo da operatividade do direito – passam a deixar de ensejar, só por isso, o rendimento esperado de um determinado instituto jurídico que tenha sido traduzido por meio de conceito vago. Com os valores, que são idéias indefiníveis (aporias e, portanto, inverbalizáveis), o que ocorre é que devem ser indicados por conceitos vagos; não são nem devem ser propriamente conceituados, mas devem ser apenas referidos, pois é intensa a interação entre eles e a realidade paralela, a que se reportam. Não há como fazer que fiquem adequadamente cristalizados num texto de lei, ou que sejam verbalizados de forma plena na lei posta. Isto sempre ocorreu. Pra perceber a dificuldade (senão impossibilidade), conducente a resultado fatalmente frustrador, em definir, tanto bastará recordar que, nos Estados Unidos, até hoje, não se definiu – e deliberadamente não se pretende definir –, exaurientemente, o que seja, e, muito menos, qual o efetivo alcance que tenha a expressão due process of law, conforme informa
a literatura, em mais de uma oportunidade469
.
Interessante, por outro lado, é a polêmica do relator poder decidir
monocraticamente quando a jurisprudência, que pretende revelar em decisão
monocrática, além de inferior numericamente, apresenta notadamente uma
indiscutível valoração de suas razões e fundamentos, demonstrando ser a melhor
opção a ser seguida. Ou melhor, até que ponto tem o relator que aguardar que uma
jurisprudência – que dia a dia toma vulto em importância pela força de seus
argumentos – ganhe no conjunto numérico de outras correntes doutrinárias que
trafegam pelo tribunal, para poder proferir uma decisão monocrática? Dito de outra
forma: poderá o relator decidir monocraticamente fazendo um prognóstico de que a
nova tendência jurisprudencial é que será seguida, abandonando-se as demais
teses, mesmo que as primeiras detenham maioria numérica?
Verifique-se que a questão pode ser respondida pela última teoria excludente.
Eis uma hipótese.
469
ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JR., Luiz Manoel, FISCHER, Octavio Campos; FERREIRA, Wiliam Santos. Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a emenda constitucional n. 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 74.
128
Nos casos que envolvem cobranças indevidas de reajuste de planos de saúde
de idosos, a jurisprudência dos tribunais do país tem variado em relação ao prazo
prescricional do pedido de repetição do indébito, quando a empresa contratada é
companhia de seguro. De início, duas correntes jurisprudenciais se formaram: (i) a
mais favorável aos idosos, foi no sentido de que a prescrição seria regida pelo
disposto no CDC (“art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos
danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste
Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de
sua autoria); e (ii) a favorável às companhias de seguro, defendendo que a
prescrição é ânua, em decorrência ao disposto no art. 206, § 1º, inciso II, do
CC/2002470.
O argumento de que o art. 27 do CDC é aplicável ao caso não convence
(embora numericamente sejam em grande número as decisões nesse sentido), tanto
que há decisão do Superior Tribunal de Justiça afastando essa feição
argumentativa471. Isso porque decerto que a prescrição de que trata o art. 27 do
CDC está relacionada a defeito do produto ou prestação de serviços, onde não se
pode enquadrar a questão da repetição do indébito, já que a prestação de serviços
470
CC/2002: Art. 206. Prescreve: ... §1º. Em um ano:...II- a pretensão do segurado contra o
segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo:... 471
Nesse sentido, a jurisprudência do STJ: “Consumidor e Processual. Ação de repetição de indébito. Cobrança indevida de valores. Inaplicabilidade do prazo prescricional do art. 27 do CDC. Incidência das normas relativas à prescrição insculpidas no Código Civil. Repetição em dobro. Impossibilidade. Não configuração de má-fé. - A incidência da regra de prescrição prevista no art. 27 do CDC tem como requisito essencial a formulação de pedido de reparação de danos causados por fato do produto ou do serviço, o que não ocorreu na espécie.- Ante à ausência de disposições no CDC acerca do prazo prescricional aplicável à prática comercial indevida de cobrança excessiva, é de rigor a aplicação das normas relativas a prescrição insculpidas no Código Civil.- O pedido de repetição de cobrança excessiva que teve início ainda sob a égide do CC/16 exige um exame de direito intertemporal, a fim de aferir a incidência ou não da regra de transição prevista no art. 2.028 do CC/02. - De acordo com este dispositivo, dois requisitos cumulativos devem estar presentes para viabilizar a incidência do prazo prescricional do CC/16: i) o prazo da lei anterior deve ter sido reduzido pelo CC/02; e ii) mais da metade do prazo estabelecido na lei revogada já deveria ter transcorrido no momento em que o CC/02 entrou em vigor, em 11 de janeiro de 2003. - Na presente hipótese, quando o CC/02 entrou em vigor já havia transcorrido mais da metade do prazo prescricional previsto na lei antiga, motivo pelo qual incide o prazo prescricional vintenário do CC/16. - A jurisprudência das Turmas que compõem a Segunda Seção do STJ é firme no sentido de que a repetição em dobro do indébito, sanção prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC, pressupõe tanto a existência de pagamento indevido quanto a má-fé do credor. - Não reconhecida a má-fé da recorrida pelo Tribunal de origem, impõe-se que seja mantido o afastamento da referida sanção, sendo certo, ademais, que uma nova perquirição a respeito da existência ou não de má-fé da recorrida exigiria o reexame fático-probatório, inviável em recurso especial, nos termos da Súmula 07/STJ. Recurso especial parcialmente provido apenas para, afastando a incidência do prazo prescricional do art. 27 do CDC, determinar que a prescrição somente alcance a pretensão de repetição das parcelas pagas antes de 20 de abril de 1985 (REsp 1032952/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2009, DJe 26/03/2009).
129
dos planos de saúde não está direta nem indiretamente relacionada com as quantias
pagas, mas com a atividade objeto do contrato de prestação de serviços que é
proporcionar assistência médica na conformidade dos termos do contrato
ajustado472.
A outra corrente, que também predomina numericamente nos tribunais de
todo país, também é pouco convincente. Defender-se a tese que as seguradoras,
que trabalham com planos de saúde, devam seguir, na questão da prescrição, com
o privilégio da prescrição ânua, em face do disposto no CC/2002, art. 206, §1º, inciso
II, fere às escâncaras o princípio da isonomia, perdendo, por conseguinte, respaldo
argumentativo. Na verdade, a partir do instante em que as empresas seguradoras
enveredam pela atividade de prestação de serviços no âmbito da saúde
complementar, submetem-se à regência e à fiscalização da ANS da mesma forma
que as cooperativas de serviços médicos ou empresas de medicina de grupo. Ou
seja, diante do consumidor não há que se fazer qualquer distinção, em se tratando
de tais prestações de serviços, por meio de plano de saúde: qualquer empresa que
se proponha a ofertar no mercado de serviços de saúde complementar estará
inexoravelmente subordinada aos ditames da Lei 9.656, de 04 de junho de 1998, e,
portanto, sujeita a obedecer às regras e às fiscalizações impostas pela ANS.
Dessa forma, não se afigura razoável a proposta que pretende fazer distinção
em termos de incidência de norma legal, como a da prescrição. Ou melhor, quando
a empresa seguradora se propõe a oferecer no mercado de serviços regulados por
lei exclusiva e fiscalizada por autarquia especial, perde força qualquer argumento
tendente a manter enquadramento em norma relacionada com a natureza mercantil
da empresa prestadora de serviços (como a do art. 206, § 1º, inciso II, do CC/2002).
É dizer, a hipótese de prescrição deverá ser única para todas as empresas que
prestam serviços de assistência médica, não podendo as companhias que são
seguradoras, somente por terem essa natureza empresarial, gozarem a favor de
prazo prescricional bem inferior às outras empresas que também atuam no referido
mercado. Para a solução do caso, o CC/2002 apresenta dispositivo que em tudo se
472 “Na realidade, a referida Seção II regula toda espécie de defeito que ocorre pelo fato do produto ou
do serviço, de maneira que, sempre que o consumidor sofrer dano por defeito quer diretamente, como lá está expressamente tratado, quer indiretamente, como consequência do não-cumprimento do § 1º do art. 18, no inciso III do art. 19 e no inciso II do art. 20, aplica-se o período prescritivo fixado no artigo em comento”. NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 283.
130
ajusta à moldura fático-jurídica (art. 206, § 3º, inciso IV)473. Essa, portanto, é a linha
de raciocínio que vem tímida e gradativamente prevalecendo na jurisprudência dos
principais tribunais de justiça do país474, mas por serem as outras tênues nos
argumentos, é a que apresenta a ratio decidendi de maior vigor.
Mas retornando à questão: numa situação como essas, onde a melhor
resposta à polêmica somente surge após debate entre duas outras correntes
majoritárias, em que instante pode o relator decidir monocraticamente com base em
uma terceira via jurisprudencial que começa a ganhar estatura no seu tribunal?
Pelas teorias objetivas, somente quando essa última corrente houver de se
aproximar numericamente na proporção das duas primeiras correntes
majoritariamente aceitas pelos tribunais. Já seguindo o passo de uma teoria
excludente, não. Após um segundo julgamento, quando um anterior já houver
rechaçado os argumentos contrários à nova tese que se avizinha vigorosa, já é
possível para o relator decidir monocraticamente. É necessário apenas que o relator
esteja ciente da oscilação da jurisprudência – para não cometer equívocos em seu
julgamento monocrático – e demonstre fundamentadamente estar convencido da
direção que a nova disposição jurisprudencial está apontando, por força da ratio
decidendi, melhor exposta no último precedente, para que já possa decidir
monocraticamente.
O relator, portanto, não tem motivo para aguardar indícios numericamente
relevantes para prestar a jurisdição unipessoal. Basta que tenha a consciência da
força dos argumentos utilizados nos poucos precedentes anteriores.
473
CC/2002: “Art. 206. Prescreve:...§ 3º. Em três anos:...IV- a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa”. 472 Nesse sentido é a posição atual do TJRS: “Ementa: Apelação cível. Seguros. Plano de saúde. Reajuste da contraprestação em decorrência de alteração da faixa etária. Disposição contratual em desacordo com as disposições do Código do Consumidor, Estatuto do Idoso e Resolução Normativa da ANS. Cláusulas que colocam o consumidor em desvantagem exagerada. Os reajustes de preços praticados devem ficar limitados aos aumentos anuais autorizados pela ANS. Prescrição. Prazo de três anos. Quanto ao prazo prescricional no pedido de restituição dos valores pagos maior tendo em vista o reajuste de mensalidade do plano de saúde em razão da alteração de faixa etária o prazo é trienal. Pretensão de ressarcimento. Inteligência do art. 206, §3º, inc. IV do CC/2002. Posição do 3º. Grupo Cível expressa no julgamento dos EI n. 70037449105. Apelo da parte autora em parte provido e apelo da ré desprovido”. (Apelação Cível Nº 70037895869, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ney Wiedemann Neto, Julgado em 09/12/2010) (os negritos não constam no texto original).
131
Em vista disso, é imperioso então que o relator demonstre, através de sólidos
argumentos, que aquela tendência jurisprudencial, que se confina no tribunal com
força persuasiva e característica dominadora, não permitirá mais avanço das
demais475. Nesse ponto, o termo “incontestável”, cunhado por Fabiano Carvalho,
para a definição de jurisprudência dominante, revela-se sobremaneira apropriado,
principalmente se tomado em relação à força ou autoridade da ratio decidendi
presente no primeiro precedente.
Seria atitude contrária ao princípio da celeridade, o relator ter que levar
sucessivas vezes, para o colegiado, questão judicial até obter um número “x” de
julgados suficientes para, objetivamente, poder se fazer equiparação com outras
correntes jurisprudenciais, para, só então, a partir de uma condição plenamente
verificável no plano aritmético, poder decidir monocraticamente476.
A questão que importa agora discutir é se a reiteração de decisões – aspecto
notadamente que se aproxima do palpável – será sempre a pedra-de-toque para a
segura verificação do conceito de jurisprudência dominante, ou haverá possibilidade,
dentro de uma abordagem nada objetiva, de que uma única decisão de Tribunal se
apresente como jurisprudência dominante. Tal poderá ocorrer, por exemplo, em
relação ao Supremo Tribunal Federal, quando a decisão única for originária do
Pleno? Nesse particular, há posicionamento recente de Luiz Guilherme Marinoni no
475
Evidentemente será ônus da parte provar no seu recurso dirigido ao colegiado que não existe a tal
tendência jurisprudencial para servir de fundamento a uma decisão monocrática. Entendendo que, nada obstante o art. 557 do CPC ser omisso em relação a quem deve recair essa obrigação, Fabiano Carvalho expõe o seguinte: “Nessa ordem de idéias, não há qualquer dificuldade em afirmar que a decisão singular do relator deverá ser fundamentada. No caso específico, não se objete que o relator deve indicar a jurisprudência que entende dominante para julgar unipessoalmente o recurso. Mas a mera indicação de modo algum satisfaz. É preciso que o relator aponha em sua decisão os motivos pelos quais a tese aventada no recurso contraria a jurisprudência dominante do tribunal ou dos tribunais superiores, e que por essa razão é aplicável o art. 557, caput, do CPC. O mesmo argumento vale para o recurso que impugna decisão que diverge do STJ ou do STF (art. 557, § 1º-A, do CPC). Nesses casos, ao decidir individualmente o recurso, compete ao relator fazer a demonstração positiva, isto é, evidenciar a jurisprudência dominante”. CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 139-141. 476 É bom esclarecer, não há semelhança nessa postura avançada do relator com o anticipatory
overruling. É que, nesse caso, diferentemente da situação estudada, não se aplica um precedente porque o mesmo está em vias de revogação. Há, no anticipatory overruling, uma espécie de prognóstico de revogação de precedente feito pelos tribunais em relação a um precedente, cujos fundamentos de decidir são incompatíveis com os novos fundamentos de decidir das Cortes Superiores. No anticipatory overruling, o relator está obrigado a levar questão ao colegiado. Ou seja, o anticipatory overruling é uma situação de quebra de paradigma que ocorre em um primeiro julgamento e que poderá servir, posteriormente, de precedente formador da jurisprudência dominante a ser utilizada pelo relator na sua decisão monocrática.
132
sentido de que um único precedente pode ser considerado jurisprudência
dominante:
Perceba-se que o precedente respeitante a caso isolado se insere no conceito de jurisprudência dominante pela simples razão de que um precedente, relativo a um único caso, não pode ser outra coisa que não a “jurisprudência dominante”, e não teria sentido descartar a autoridade da ratio decidendi fixada por tribunal superior apenas porque a questão de direito não foi repetida. Não apenas as súmulas e a jurisprudência dominante, mas qualquer precedente, respeitante ou não a causas repetitivas – do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal abre oportunidade ao julgamento monocrático pelo relator. Nesta dimensão, o julgamento monocrático, antes de objetivar a mera abreviação do julgamento dos recursos,
presta-se a tutelar a coerência do direito e a segurança jurídica477
.
Já para boa parte da doutrina, como visto, um único julgado, sem remissão a
outros, por mais expressivo ou persuasivo que possa ser, não deve servir de
fundamento para decisão monocrática, pois esse proceder negaria o próprio
conceito de jurisprudência 478.
Nota-se, claramente, que a noção que Marinoni tem sobre jurisprudência
dominante é bem mais abrangente do que as propostas pelo restante da doutrina,
que opta, em sua maioria, por critérios nitidamente objetivos (numéricos) de
afirmação do sentido de jurisprudência dominante.
Ora, é evidente que a noção de jurisprudência dominante está umbilicalmente
atrelada aos casos repetitivos. Trata-se de técnica processual que busca, por meio
dos precedentes, fornecer aos tribunais instrumentos eficazes de combate aos
recursos que se repetem quase que indefinidamente sobre determinados temas.
Todavia, por exemplo, nem sempre a aplicação do art. 557 do CPC pelo relator terá
que aguardar a repetição de casos para aplicação do referido dispositivo. Deveras, o
477
MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 510. 478
Fabiano Carvalho, em conclusão de seu posicionamento sobre o tema, completa assim seu
raciocínio: “De fato, as decisões do Plenário (STF), da Corte Especial (STJ) e das Câmaras ou Turmas Reunidas (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais) poderão ser adotadas como critério para jurisprudência dominante, com a ressalva de que essas decisões sejam proferidas para dirimir a divergência desabrochada nos órgãos fracionários. Decisão única ditada pelos órgãos por mais eloqüente e incisiva que seja, não pode ser considerada jurisprudência dominante. Uma só decisão revela-se decisão excepcional, cujo assunto a decidir é incomum, e, portanto, incapaz de constituir jurisprudência a fim de caracterizar o entendimento do tribunal”. CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 134.
133
Superior Tribunal de Justiça tem dado sinais de se encaminhar para a maneira de
pensar de Marinoni.
Em decisão relativamente recente, o então Ministro do Superior Tribunal de
Justiça, Luiz Fux, afirmou ser possível a jurisprudência dominante daquele Tribunal
ser superada por precedente do Plenário do Supremo Tribunal Federal479. Em outras
palavras, nada obsta que uma única decisão do Plenário do Supremo sirva como
supedâneo para que o relator de tribunal inferior, em caso análogo, decida recurso
monocraticamente com base no art. 557 do CPC, por exemplo. Pensar o contrário,
não deixa de ser uma forma de deslembrar a função paradigmática que o Supremo
Tribunal Federal de há muito passou a ter, até mesmo com o resultado da
objetivação do recurso extraordinário; e mais: é deixar em segundo plano o princípio
da celeridade que é, sem dúvida, princípio motriz de parte esmagadora das reformas
processuais levadas a cabo nos últimos anos pelo legislador.
Com efeito, não se pode negar a tendência crescente em nosso sistema
jurídico de reconhecer a força dos precedentes judiciais, especialmente quando
esses são formatados nas figuras da jurisprudência dominante e das súmulas.
Contudo, a força dos precedentes sobrepõe-se às molduras da jurisprudência
dominante e da súmula, pois não tem sentido, por exemplo, uma decisão única do
Pleno da Suprema Corte não ter força vinculatória, mormente quando a análise
recursal se restringe especificamente a aspecto jurídico, somente porque não há
reiteração na sequência de casos julgados na mesma linha de raciocínio.
Observe-se que o próprio Supremo Tribunal Federal, quando aos poucos vai
dando nova roupagem a sua função de guardião da Constituição, revela essa
vocação de dar ao seu precedente uma força vinculatória. Na concepção anterior,
tradicional, as decisões do Supremo Tribunal Federal, quando proferidas em recurso
de natureza excepcional (extraordinário), somente se projetavam com eficácia inter
partes. Nos dias atuais, uma nova função paradigmática vem ganhando espaço na
Suprema Corte. Um grande passo foi dado com a objetivação dos recursos
extraordinários.
479
“Desta sorte, o acórdão rescindendo fundou-se em jurisprudência predominante do STJ, superada
em virtude da ulterior declaração direta de constitucionalidade da norma complementar cuja alegação de ofensa literal embasa o pleito rescindens”. (AR 3.032/PB, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/10/2007, DJ 10/12/2007, p. 274).
134
Realmente, não havia sentido em se preservar uma situação corriqueira em
que um texto constitucional – muito embora, como qualquer texto, passível de
comportar mais de uma acepção, mormente nas diversas instâncias judiciárias – não
tivesse interpretação uniforme para todos, nas soluções ofertadas pelo Supremo
Tribunal Federal, como guardião máximo da Constituição. Vale dizer, é inconcebível
promover a perpetuação de uma situação em que uma norma ou ato normativo
fosse declarado inconstitucional apenas em face de determinadas partes litigantes.
Era, por exemplo, o que acontecia quando um conflito intersubjetivo
possibilitava que uma empresa ficasse isenta de determinado tributo, em uma
discussão que chegasse ao Supremo Tribunal Federal, por meio de recurso
extraordinário. Isentada a empresa litigante do recolhimento tributário, estariam as
outras empresas, à míngua de efeitos extensivos além-autos, sujeitas ao pagamento
do mesmo tributo, se não propusessem ação idêntica. Era açoitar-se o princípio
constitucional da isonomia, garantidor do direito de todos serem tratados da mesma
forma perante a lei480.
Atualmente, com a quase inexistente diferença de tratamento que o Supremo
Tribunal Federal dá aos efeitos das decisões proferidas em controle difuso e
concentrado, é possível que uma decisão proferida pelo Plenário do Supremo
Tribunal Federal tenha força vinculatória tanto quanto a jurisprudência dominante da
própria Corte481.
Mas não foi só o vitorioso entendimento da objetivação do recurso
extraordinário que deu ao precedente o prestígio que ele angariou no nosso
ordenamento jurídico, outras transformações especialmente encarrilhadas pelo
legislador também serviram para o fortalecimento do precedente.
Uma delas é a disposição encontrada no § 3º do art. 475 do CPC. Segundo o
referido dispositivo, dispensa-se o reexame necessário, quando a sentença basear-
480
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 590. 481
Nesse sentido é o escólio de Mancuso: “A potencialização da eficácia das decisões de mérito do
STF, mesmo nos conflitos intersubjetivos, vem ao encontro do desejável tratamento isonômico aos jurisdicionados, pela curial razão de que, sendo ele o guarda da Constituição, e sendo esta o parâmetro maior da ordem normativa no país, justifica-se que a exegese acerca dos dispositivos constitucionais não se restrinja apenas às partes de cada processo singularmente considerado, mas possa estender-se aos demais onde se debata igual thema decidendum (se A é, então B, tendo a mesma natureza, também deve ser)”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo estado de direito... ob. cit., p. 592.
135
se em posicionamento tomado pelo Pleno do Supremo. Ora, se como já visto, a
tendência do Supremo Tribunal Federal é conferir maior efetividade às suas
decisões, com especial projeção extra-autos, não há sentido aguardar que outros
precedentes de seu Plenário sejam proferidos para aplicação do disposto no § 3º do
art. 475 do CPC. É dizer, se uma decisão proferida pelo Plenário do Supremo, em
sede de recurso extraordinário, pode ter eficácia além das partes litigantes, não
parece razoável que o relator monocraticamente não possa decidir recurso ao
depois, com base no art. 557 do CPC, porque está à espera de outros julgados de
índole semelhante do Plenário do Supremo, quando a própria Corte Constitucional já
sinaliza para uma postura de respeito ao próprio precedente.
É certo que algumas decisões do Pleno do Supremo Tribunal Federal são
revistas — e isso tem acontecido482. Mas isso não significa ter que desdizer o que foi
dito acima: precedente oriundo do Pleno da Suprema Corte, em controle difuso ou
concentrado, possui caráter vinculativo de forma a propiciar julgamentos
monocráticos com base, por exemplo, no art. 557 do CPC, ou sob efeito da
objetivação do recurso extraordinário.
2.3.2 Súmula vinculante
O instituto da súmula vinculante continua gerando inúmeros debates na
doutrina. Não é de se estranhar tal fato, porém. Mesmo antes da Emenda
Constitucional de nº 45/2004, a súmula vinculante já vinha ocasionando pontuais
polêmicas entre os mais renomados juristas, havendo logo, no início, uma clara
divisão dos que eram a favor da inovação e dos que eram (e ainda continuam)
contra. Tanto foram os que se debruçaram sobre a súmula que parece dela não ter
havido nada que não tenha sido alvo de análise crítica. A prova talvez esteja no fato
482 Segundo Didier e Cunha: “É o que aconteceu com a discussão sobre a competência da Justiça do
Trabalho para processar e julgar causas envolvendo danos morais decorrentes da relação de trabalho, após a EC/45, em que o Pleno do STF, em um período de quatro meses, adotou posicionamentos antagônicos, prevalecendo a orientação pela competência da Justiça do Trabalho.” DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 7. ed., vol. 3. Salvador: Editora JusPodivm, 2009, p. 349-350.
136
que, da doutrina, não escapou sequer a avaliação sobre a opção do termo que o
legislador fez para adjetivar o substantivo súmula483.
Deveras, antes da chegada da súmula vinculante em nosso ordenamento,
não se encontrava o adjetivo vinculante em nossos dicionários. Atualmente, porém,
embora ainda difícil, é possível encontrar, em um ou outro dicionário (por exemplo,
no dicionário eletrônico português Priberam), o vocábulo vinculante como sinônimo
de vinculativo484. Portanto, mais apropriado seria o termo súmula vir acompanhado
das opções adjetivas vinculatório, vinculativo, ou mesmo vinculador, bem mais
usuais no nosso vernáculo. Nada obstante, como é natural vez por outra ocorrer na
praxe judiciária, determinadas acepções acabam ganhando a preferência geral,
mesmo que não tenham concordância com a semântica.
Nos itens anteriores a esse, restou abordada a impacção da atividade criativa
do magistrado no universo jurídico, quando ele é chamado a resolver questões que
dependam do procedimento de concreção do direito, em face dos conceitos jurídicos
indeterminados e das cláusulas gerais.
De impacto semelhante tem sido a gradual alteração orgânica do Poder
Judiciário, com as mudanças decorrentes, em especial, da EC nº 45/2004, proposta
pelo legislador, com finalidade de apresentar ferramentas processuais em condições
de conformar o nosso ordenamento jurídico às necessidades e anseio da sociedade.
A criação das súmulas no direito brasileiro ocorreu, por emenda no regimento
do Supremo Tribunal Federal, perto do final do ano de 1963, sendo que as primeiras
ementas somente foram publicadas apenas no começo do ano seguinte. A primeira
proposta para que fosse instituída a característica de prevalência das súmulas,
como entendimento dominante dos tribunais, veio no projeto de Constituição do
Instituto dos Advogados Brasileiros, em 1946, e, por sugestão do jurista Haroldo
483
“Dentre essas inovações, interessa-me destacar, em especial, o problema da chamada súmula vinculante. Devo, em primeiro lugar, deixar registrado o fato de que o Reformador da Constituiçãoo não se apercebeu que o termo vinculante não existe na língua portuguesa”. ROSA, André Vicente Pires. Súmula ou jurisprudência vinculatórias? Revista Advocatus Pernambuco. Recife. Publicação da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da OAB/PE, ano 2, n. 3, p. 36-40, out. 2009, p.
36. 484 “Vinculante (vincular + -ante) adj. 2 g. O mesmo que vinculativo”. Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa,< http://www.priberam.pt>. Acesso em 23.10.2011. O termo também se encontra presente no Volp-Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, p. 841, da Academia Brasileira de Letras (5ª edição, 2009) e no Dicionário Aurélio, 5ª edição, Editora Positivo, 2009.
137
Valadão. A denominação utilizada remetia à prática portuguesa dos “assentos”485.
Contudo essa primeira tentativa não teve resultados satisfatórios, e a proposta
regimental que vingou no Supremo foi elaborada pela Comissão de Jurisprudência
do Tribunal, constituída pelos Ministros Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes Leal
(relator) e Pedro Chaves. Essa proposta pretendia que as súmulas fossem
entendidas como um método de trabalho proporcionando maior estabilidade à
jurisprudência e simplificando o julgamento das questões mais frequentes na Corte
Suprema486.
Mas, adverte Marcelo Alves Dias de Souza, “não foi só em resposta ao
acúmulo de processos ou em busca de uma maior celeridade na prestação
jurisdicional, que se criou a Súmula no Supremo Tribunal Federal”487. Também foram
motivos para a criação da súmula, por exemplo, fornecer ao jurisdicionado: (i) uma
maior certeza do Direito; (ii) uma previsibilidade maior para as decisões da Corte; e
(iii) respeito ao princípio da igualdade488.
Contudo, seja como for, em relação à proposta desta pesquisa, importa
analisar a súmula vinculante no aspecto de sua aplicação pelos magistrados,
enquanto instrumento de apoio à fundamentação da decisão judicial.
Não raro, como observa José Carlos Barbosa Moreira, o que se vem
percebendo nos dias presentes em relação à fundamentação das decisões é que “a
motivação reduz-se à enumeração de precedentes: o tribunal dispensa-se de
analisar as regras legais e princípios jurídicos pertinentes (...) e substitui o seu
próprio raciocínio pela mera vocação de julgados anteriores” 489.
Se essa forma de agir do magistrado pode gerar consequências indesejáveis,
na medida em que ele nem sempre é criterioso no instante de colher as ementas
dos acórdãos nos diversos sites ou repositórios de jurisprudência, citando algumas
decisões que pouco ou quase nada têm a ver com o caso concreto a ser decidido,
imagine-se então situação em que o juiz lança mão de uma súmula para
fundamentar sua sentença, em cuja redação do enunciado acodem termos vagos, e
485
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p.118. 486
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p.118. 487
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente à sumula vinculante.Curitiba: Juruá, 2008, p.253. 488
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente à sumula vinculante... ob. cit., p. 254. 489
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual: (nona série). São Paulo: Saraiva,
2007, p. 300.
138
não procura expor suficientemente as razões pelas quais aquela súmula deva, na
hipótese, ser aplicada. Essa preocupação não se restringe apenas a José Carlos
Barbosa Moreira. Lenio Luiz Streck adverte: o que os tribunais mais fazem hoje é
julgar “teses” ao invés de julgar causas490. Como raiz do problema, Streck aponta o
fato da nossa cultura jurídica pender para uma postura de não diferenciar texto de
norma:
Sim: venho insistindo há muito tempo que texto e norma não são “colados”, nem cindidos. A questão de direito, que surge do julgamento anterior (ou da cadeia de julgamentos), será sempre uma questão de fato e vice-versa. Por isso – e nisso reside o equívoco de setores da doutrina – é impossível transformar uma súmula em um “texto universalizante”. Insisto: isso seria voltar à filosofia clássica-essencialista. É preciso entender que a “aplicação” de uma súmula não pode ser feita a partir de um procedimento dedutivo. Que as súmulas são textos, não há duvida. Só que “esse texto” não é proposição assertórica. Portanto, não pode ser aplicada de forma irrestrita e por “mera subsunção” ou por “dedução”. No paradigma filosófico em que nos encontramos, é equivocado falar ainda em subsunção, indução ou dedução491.
De acordo com Mancuso, a técnica legislativa dos enunciados das súmulas já
era uma preocupação do Senado no Projeto de Lei nº 13/2006, tanto que as
recomendações eram basicamente as seguintes, em relação à forma da redação
adequada de uma súmula: (i) frases curtas e concisas; (ii) orações na ordem direta,
evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis; e (iii) evitar
sinonímias de caráter estilístico492.
Assim, é pouco mais que um ato despropositado a redação de súmula que,
por equívoco ou não, vem a lume repleta de conceitos vagos, porque – como
observou Lenio Streck, se é certo que as súmulas não passam, na realidade, de
“textos”493 – a sua aplicação pelo magistrado na forma simples de subsunção
490
MAURÍCIO, Ramires. Crítica à aplicação do precedente no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, segunda página do prefácio, escrito por Lenio Streck. 491
STRECK, Lenio Luiz. Entrevista: Direito sumular. In:
<http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=3120>. Acesso em 14.12.2010, p. 1-4. 492
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... ob. cit., 4. ed.
p. 346. 493
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis: necessitamos de uma “teoria para
elaboração dos precedentes”? Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: ano 17, n. 78, p. 284-319, maio/jun., 2009, p. 302.
139
somente tende a agravar uma praxe que cada vez é mais rotineira no judiciário
brasileiro.
A observação crítica de Caio Márcio Gutterres Taranto é pertinente quando
assinala que
O Direito brasileiro desenvolve estrutura de linguagem para que os precedentes jurisdicionais sejam aplicados na qualidade de paradigmas por dedução, a partir de uma norma (judicada) abstrata para o caso concreto, de forma análoga a um dispositivo de lei, aptos a assumirem a qualidade de premissa maior494.
Ou seja,
a liguagem em que a maior parte dos precedentes brasileiros é expressa faz com que a norma que deles emana seja aplicada, a priori, por dedução, ao contrário da prática indutiva da common law. Nossos precedentes são predominantemente expressos de forma prescritiva, inclusive pela confecção de verbetes e ementas. Não devemos, contudo, excluir a possibilidade de aplicá-los de forma indutiva. Pelo contrário. A aplicação dos precedentes de forma dedutiva/subsuntiva merece cautela por parte do aplicador e não deve ser utilizada de forma acrítica495.
Tais conselhos e diretrizes redacionais acabam tendo pouca utilidade prática,
sobretudo quando se percebe que há uma espécie de tentação natural do
magistrado brasileiro de, perante o texto de uma súmula, efetuar um raciocínio de
subsunção, eis que o enunciado tem um arrebique de se mostrar liberto daqueles
fatos que lhe deram causa.
Aqui está a razão pela qual não se pode esquecer que o procedimento
adequado para a aplicação dos textos legais em que imperam os conceitos jurídicos
indeterminados e as cláusulas gerais é a concreção. É que uma decisão proferida
por um magistrado, cuja fundamentação se apresenta como mero produto de um
raciocínio subsuntivo, tendo uma súmula — constituída de conceitos abertos —
como premissa maior, no lugar do texto legislado, corre até o risco de ser nula, por
ausência de uma adequada fundamentação.
494
TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial... ob. cit., p. 214. 495
TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial... ob. cit., p. 215.
140
Gilmar Mendes assinala que “não raras vezes ter-se-á de recorrer às
referências da súmula para dirimir eventual dúvida sobre o seu exato significado”496.
Melhor dito, nossa doutrina se encaminha para sedimentar essa ideia de que, o
magistrado, ao partir para a utilização de uma súmula como motivação de sua
decisão, deverá fazer o cotejo dos fatos da causa com aqueles dos precedentes que
deram origem ao enunciado. Em sendo iguais, aplica-se a súmula vinculante. Não
sendo, deve proceder ao distinguishing497.
Evidentemente que o padrão normativo do enunciado tem influência na
aplicação e interpretação da súmula vinculante. A propósito, revelando essa
preocupação ingente, Mancuso adverte para o cuidado que o Supremo tem que ter
no manejo dos enunciados, haja vista que “as técnicas de livre curso nos países do
common law, tais como o distinguishing (aferição quanto ao enquadramento do caso
concreto ao biding precedent) ou o overruling (demonstração da superação ou
defasagem do holding existente na matéria)”498 exige do aplicador proficiência na
matéria499. E faz o professor paulista a seguinte advertência:
Não há negar que nossas Faculdades de Direito não disponibilizam disciplina voltada a capacitar o operador do Direito a lidar especificamente com a jurisprudência, por modo que futuros juízes e advogados possam, satisfatoriamente, realizar tarefas como (i) identificar, com segurança, qual o entendimento pretoriano realmente predominante num Tribunal ou numa Justiça, sobre dada matéria; (ii) distinguir, num rol de acórdãos, o que neles constitui o núcleo essencial, separando-o demais considerações periféricas (o que, no sistema do common law, corresponde à distinção entre a ratio decidendi e o obiter dicta); (iii) alcançar, com exatidão, toda a extensão – compreensão do enunciado de uma súmula vinculante, para, em seguida, aferir se o caso sub judice realmente nela se
enquadra500.
496 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional... ob. cit., p. 1012. 497
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional... ob. cit., p. 1012. 498
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 4. ed., p. 383. 499 As exposições do citado autor têm relação com o que foi dito no final da primeira parte desta
pesquisa. Afinal, em um país em que os juízes são aprovados em concursos públicos onde se exige mais do candidato que interprete a norma de forma subsuntiva, causa preocupação quando esse principal aplicador da súmula vinculante tenha que se deparar com esse instrumento cujo manuseio exige dele conhecimentos para os quais não foi devidamente treinado. Sim, pois decerto que, numa rápida e superficial análise, dificilmente terá o magistrado traquejo para observar que será necessário, diante de uma súmula, cotejar o caso em exame com os precedentes que deram origem ao enunciado. 500
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante.... 4 ed. ob. cit., p. 383.
141
A despeito de ter o enunciado de uma súmula vinculante texto de cariz
generalizante, ela é a essência do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre
determinado tema jurídico, não podendo, por certo, que sua aplicação seja acrítica,
como bem afirma Paulo Roberto Soares Mendonça, “desconsiderando as
particularidades do momento histórico e dos casos a partir dos quais foi criada a
síntese jurisprudencial” 501 502.
Ainda para Paulo Roberto Mendonça, a tarefa dos aplicadores do direito
consiste, basicamente, em conferir se uma determinada questão se enquadra ou
não em um enunciado de súmula vinculante, realizando-se, para esse fim, um
procedimento retrospectivo, levantando-se os precedentes que deram origem ao
enunciado503 504. Somente seguindo essa linha de procedimento poderá o aplicador
do direito ser capaz de efetuar o distinguishing, porquanto esse desafio importa no
desenvolvimento de sólidos argumentos, sem os quais o enunciado da súmula será
indevidamente aplicado.
Do que foi até aqui sucintamente exposto, é possível conceber o
entendimento de que, no nosso sistema jurídico, o princípio da legalidade divide
agora com a súmula vinculante o primado de interferência na vida do cidadão e da
própria administração pública, na medida em que os precedentes obrigatórios do
Supremo Tribunal Federal também geram obrigações e direitos para as pessoas
naturais ou jurídicas, públicas ou privadas, tornando expansiva a visão crítica de
501
MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A súmula vinculante como fonte hermenêutica de direito.
Biblioteca Digital Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 13, n. 67, maio/jun. 2011. Disponível em: <htpp://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=73655>. Acesso em: 21 de julho de 2011. 502
Para Marinoni, se a súmula for compreendida como enunciado geral e abstrato, “a sua leitura
pode aproximá-la ou afastá-la, sem qualquer critério racionalmente adequado, do caso sob julgamento. Nessas condições, torna-se difícil constatar se os precedentes que a elegeram estão superados, já que, para tanto, deveria o intérprete mergulhar no ambiente que lhes era próprio”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 482. 503
MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A súmula vinculante como fonte hermenêutica de direito... ob. cit. 504
Também comungam desse entendimento Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Jensen: “Em sendo
vinculante a súmula, compreendida em sua acepção técnica, como conjunto de precedentes representativos da jurisprudência dominante do STF e editada com força vinculante, segundo o iter constitucionalmente preconizado, insta ao julgador ir buscar nos precedentes integrantes da súmula – e não em seu enunciado – a norma jurídica a aplicar ao caso concreto”. SGARBOSSA, Luís Fernando. JENSEN, Geziela. Súmula vinculante, princípio da separação dos poderes e metódica de aplicação do direito sumular. Repercussões recíprocas. Jus Navegandi, Teresina, ano 13, n. 1798, 3. Jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11.327>. Acesso em 17 de outubro de 2011.
142
aproximação entre as duas famílias. Esse é, com os devidos e melhores retoques, o
pensamento de Rodolfo Mancuso:
De outra parte, a inserção (rectius: ampliação) da súmula vinculante em nosso desenho constitucional permite intuir que nosso modelo jurídico-político, antes restrito ao primado da norma legal, fica agora a meio-caminho, entre o regime da civil law (prioridade à norma legislada) e o regime da common law (prioridade ao precedente judiciário, ou à norma judicada). Não vemos como se possa entender diversamente, em face da impositividade e da eficácia erga omnes da súmula vinculante, implicando, pois, na sua oponibilidade, qual um Janus bifronte, em dupla direção: ao próprio Estado (Judiciário, Executivo) e aos jurisdicionados, entre si e nas suas relações com o Estado. Isso, sem falar em dois importantes efeitos reflexos ou indiretos: um, projetado em face do Legislativo, onde é fácil intuir que um projeto de lei encontrará dificuldades em sua tramitação, quando seu objeto se contraponha ao enunciado de súmula vinculante; e outro projetado sobre a própria sociedade civil, em face da qual a súmula vinculante projetará em efeito preventivo geral nas pendências e controvérsias, efetivas e virtuais. Nem por isso, todavia, se poderá afirmar, à outrance, que o Brasil assim se desfilia
da família jurídica romano-germânica, dado que remanescem fortes os laços que ligam nosso ordenamento à norma positivada e ao direito codicístico. Antes, se diria que ambas as famílias jurídicas, civil law e common law – estão em rota de aproximação, já que,
dentre nós, o precedente judiciário encontra cada vez mais espaço, tanto no ordenamento positivo como na práxis judiciária, ao passo que na Inglaterra e Estados Unidos o direito escrito está cada vez mais valorizado505.
Muito embora seja certo que a realidade das duas famílias se confundem no
Brasil, como de resto no mundo todo, convém colocar aqui a ressalva feita por Elival
da Silva Ramos, em relação ao poder normativo do Supremo Tribunal Federal ao
editar enunciado de súmulas vinculantes. Na verdade, ilustra o autor, ao Supremo
Tribunal Federal não foi dada a mesma disposição que tem o legislador de se
movimentar entre as estruturas constitucionais. Numa síntese de grau de liberdade
normativa, teríamos, em ordem crescente, Supremo Tribunal Federal, Poder
Legislativo, constituinte reformador e, por fim, o constituinte originário506.
Até aqui, como já se notou, a polêmica girou em torno de se saber se o
equívoco de aplicação cega da súmula, por meio da subsunção, é consequência do
despreparo dos aplicadores do direito, no trato dos institutos ligados à família do
505
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... ob. cit., p.
365-366. 506
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial... ob. cit., p. 296.
143
common law, ou se é por conta da formulação equivocadamente geral e abstrata do
enunciado, como se tratasse a súmula de texto legislativo como outro qualquer.
Todavia, Teresa Arruda Alvim abre outra frente de discussão ao categorizar
quais assuntos ou temas podem ser alvos de súmula. Nesse contexto, o
posicionamento da professora é o seguinte:
Necessário que se trate de questão de direito. Sabe-se como é difícil separarem-se questões de direito e questões de fato. Tem-se dito, com acerto, que, rigorosamente, seria impossível fazer-se esta distinção, pelo menos no plano ontológico, já que o fenômeno direito ocorre, de fato, no momento de incidência da norma, no mundo real, no universo empírico. As decisões jurídicas são proferidas depois do que se pode ver como um movimento ‘pendular’, que se dá entre o mundo dos fatos e o das normas, até que o aplicador da lei consiga enxergar com clareza a subsunção, qualificando os fatos e determinando-lhes as conseqüências no plano normativo. Mas, ainda que seja difícil separarem-se as questões de fato das de direito, o que se pode dizer é que se, de um lado, o fenômeno jurídico envolve necessariamente fato/direito, a nosso ver, pode-se falar em questões que sejam predominantemente de fato e predominantemente de direito. Com isso, queremos dizer que o fenômeno jurídico é sempre de fato e de direito, mas o problema pode estar girando em torno do aspecto fático ou em torno do aspecto jurídico. Queremos com isso dizer que, embora indubitavelmente o fenômeno jurídico não ocorra senão diante de fato e de norma, o aspecto problemático desse fenômeno pode estar lá ou cá. Para fins de se saber que tipo de questão pode ser objeto de súmula é importante salientar que o seu enunciado não pode deixar margem de dúvida alguma a respeito do quadro fático a que se aplicaria. Com isso, queremos dizer que o quadro fático em que incide a súmula deve ser passível de ser apreendido por duas ou três frases, de modo integral. É por isso que nos parece razoável dizer-se que o aspecto fático tem que estar ‘resolvido’. Com a súmula, se pode resolver a questão da qualificação daquele fato ou do entendimento da norma que se aplica àquele quadro fático. Em princípio, pode-se afirmar que não podem ser objeto de súmula, por exemplo, questões relativas ao direito de família ou acidentes de veículos. Isso porque são situações de tal modo multifacetadas, o que torna impossível que sejam apreendidas por um enunciado curto. Ademais muitíssimos aspectos destas situações são relevantes para enquadrá-las nas normas e para determinar-lhes as conseqüências jurídicas. Isto faz com que não possa haver um acidente de veículos exatamente igual a outro. Exemplifiquemos: não poderia constar de súmula que ‘em acidente de veículos deve ser imputada a culpa ao condutor do automóvel que colide com o da frente’. Inúmeras peculiaridades, verificáveis necessariamente caso a caso, podem impedir que se aplique a regra. Deve-se levar em conta se o da frente não teria freado de repente, não teria dado marcha à ré etc...Como também não se poderia sumular ‘considera-se injúria grave internar a mulher em hospital psiquiátrico contra sua vontade’. Incontáveis fatores têm necessariamente de serem tomados em consideração. Não se trata
144
de uma regra que possa ser tornada abstrata, aplicável a todas as situações em que maridos internem suas mulheres contra a vontade delas. Perguntas devem ser feitas: ela estava, realmente, doente? A
família dela estava a par? Concordou? E o médico? 507.
Logo, tais preocupações têm suas razões de ser, sobretudo quando já
observado acima que a tendência ainda forte entre os magistrados é solucionar os
casos mediante processo intelectivo de subsunção, até porque os casos de
elucidação simples, que permitem esse proceder (inexistente para muitos, como
Lenio Streck), ainda são maioria entre os litígios levados aos juízos508.
A preocupação de juristas com a problemática redacional do enunciado de
súmula remete à questão: há necessidade de termos no país uma teoria para
elaboração de precedentes?
Em artigo relativamente recente, Lenio Luiz Streck expõe essa questão
tomando como ponto de partida a preocupação de Fredie Didier com as redações
das súmulas vinculantes, em especial a de nº 11509.
Didier afirma que a utilização de termos vagos no enunciado da súmula é
postura paradoxal, porquanto conflita com a essência da ratio decidendi, já que esta
507
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Súmula vinculante: desastre ou solução? Revista de Processo,
ano 25, n. 98, p. 295-306, abr./jun. 2000, p. 302-303. 508
“Em nosso ordenamento jurídico, como em qualquer outro, há inúmeros conflitos para os quais existe uma solução pré-pronta. Por exemplo, a Constituição dispõe que o Presidente da República não tem direito a uma segunda reeleição. Dessa maneira, ele está impedido de registrar sua candidatura e essa é uma questão muito singela, de fácil resolução jurídica, pois a lei é clara. Outro exemplo é o caso de um proprietário de imóvel urbano que se recusa a pagar o imposto predial municipal alegando sua situação econômica desfavorável. É evidente que essa também é uma questão que não envolve maiores esforços, a elucidação é simples, pois a norma é clara. É possível dizer que maioria dos litígios possuem a solução dada pelo direito, sendo que, em relação a esses casos, um juiz terá a simples tarefa de subsunção do fato à norma. Portanto, o modelo tradicional, silogístico, em que a norma é a premissa maior, os fatos relevantes são a premissa menor, sendo a sentença a conclusão óbvia, ainda é capaz de resolver uma boa quantidade de problemas”. BARROSO, Luis Roberto. Entrevista concedida à Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Revista do TCE, ano XXVIII, n. 2, vol. 25, p. 13-22, abr./maio/jun. 2010, p. 19. 509
Sumula vinculante de nº 11: só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado
receio de fuga ou de perigo à integridade físca própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do estado.
145
é fruto exatamente da “concretude de termos vagos, abertos, gerais e abstratos do
direito legislado” 510.
O processualista baiano, na sua crítica, segue apontando os demais
equívocos redacionais da vinculante súmula nº 11, notadamente no tocante à
extensão do enunciado, para, em arremate, advertir da necessidade do
“aprimoramento na utilização das técnicas desenvolvidas a partir desse conjunto
teórico” 511.
É nesse ponto que Lenio Streck intervém com sua crítica. Para Streck, toda
polêmica começa com o pressuposto equivocado de que precedente e súmula são
as mesmas coisas512. Depois, prossegue esse autor, “o outro problema reside no
fato de que a experiência das súmulas possibilita que o Supremo Tribunal Federal
seja ao mesmo tempo o criador do texto e seu aplicador/concretizador no momento
em que julga as reclamações” 513. Melhor dizendo, as súmulas seriam “quase
ordenanças com valor de lei” 514.
Em apertada síntese, os precedentes e as súmulas, para Lenio Streck, são
coisas distintas e, portanto, não seria possível desejar ver um instituto com as
mesmas lentes que se utiliza para ver o outro. O precedente possui, na sua própria
natureza, uma força atrativa, em virtude de seu paradigma (holding), e sua aplicação
em outros casos, não se procede por conta de um processo dedutivo, mas em
decorrência de uma aproximação histórica515. Daí a conclusão de Lenio Streck de
que “precedentes são formados para resolver casos concretos e, eventualmente,
influenciam decisões futuras; as súmulas, ao contrário, são enunciados gerais e
abstratos – características presentes na lei – que são editadas visando à ‘solução de
casos futuros’” 516.
Contudo, essa não é exatamente a visão de Marinoni, para quem a distinção
de precedentes e súmulas não está no fato de que os primeiros servem para
510
DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.
5 ed., vol. 2. Salvador: Editora Podivm, 2009, p. 392. 511
DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil...
ob. cit., p. 393. 512
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 287. 513
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 287. 514
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 287. 515
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 289. 516
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 290.
146
aplicação de casos passados, enquanto os últimos foram pensados para melhor
solucionar os futuros processos517. Na verdade, Marinoni segue asseverando que os
precedentes obrigatórios “objetivam garantir a unidade da ordem jurídica, assim
como a segurança jurídica e a igualdade, e, nesta dimensão, são vocacionados para
o futuro”518.
Percebe-se que a celeuma está na visão diferenciada com que cada autor
observa o processo de imbricação que hoje é uma realidade entre os sistemas
(common law e civil law). Para quem, como Lenio Streck, “as súmulas não são stare
decisis à semelhança da common law”519 e, portanto, muito mais se assemelham
aos assentos portugueses, tão combatidos por Castanheira Neves520, é natural a
crítica de que em nosso sistema as citações dos verbetes sejam
descontextualizados521. É que a nossa doutrina, arremata Streck, ainda não se
conscientizou de que a produção do direito judicial não se dá por indução ou
dedução, mas por aplicação, consoante a proposta do círculo hemenêutico de
Gadamer, para quem está superada a relação hermenêutica sujeito-objeto522.
Noutro giro, Marinoni entende que, mesmo que as súmulas no Brasil tenham
sido “pensadas como normas com pretensões universalizantes, ou melhor, como
enunciados abstratos e gerais voltados à solução dos casos” 523, nada obsta que os
enunciados das súmulas sejam bons instrumentos de auxílio ao desenvolvimento do
direito, bastando, para tanto, que se busque seu DNA, isto é, que o aplicador, diante
do enunciado sumular não se afaste do “contexto dos casos que por eles foram
solucionados” 524.
Nesse ponto, há igualdade de pensamento entre os dois juristas, já que Lenio
Streck preleciona exatamente que:
Cada enunciado sumular/jurisprudencial, etc., tem um “DNA”. Esse “DNA” é a integridade e a coerência de que fala Dworkin. O “DNA” contém também, necessariamente, os genes da doutrina, sob pena de sacramentarmos a tese de que o direito é aquilo que o judiciário
517
MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 481. 518
MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 481. 519
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p. 289. 520
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 289. 521
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p. 292. 522
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 314. 523
MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 481. 524
MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 481.
147
diz que é (lembremos sempre do Min. Barros Monteiro, que dizia “não me importa o que a doutrina diz...” – sic) 525.
Mesmo que para Lenio Streck não seja viável nem devida a transformação de
precedentes em súmula, notadamente com propósito universalizante, posto que um
precedente não cabe em uma súmula526, o certo é que a problemática de utilização
correta do enunciado sumular pode ser resolvido voltando-se os olhos para os
precedentes que deram origem ao enunciado, independentemente de qualquer que
seja a técnica redacional utilizada no verbete, que somente influenciará no grau de
melhoria da utilização dos precedentes obrigatórios.
2.3.3 Jurisprudência como fonte do direito.
A questão de onde provém a ordem jurídica de uma nação é respondida de
maneira objetiva pela doutrina positivista de Kelsen: a norma fundamental é a fonte
do Direito527.
Essa posição kelseniana, porém, admite certa ponderação. A expressão fonte
do Direito teria um outro sentido de cariz não-jurídico, representado pelas ideias que
contribuem para formar o entendimento do órgão legislador estatal. Dessa forma,
por exemplo, as regras de natureza política ou moral influenciam o norte que o
legislador irá seguir na confecção da norma positiva528.
Essas fontes não-jurídicas, contudo, não possuem qualquer obrigatoriedade.
É opção que o legislador poderá tomar em consideração ou não na formulação do
direito. Ou seja, somente quando transformadas tais opiniões em normas positivas é
que poderão ganhar força impositiva, transformando-se em verdadeiras fontes do
Direito529.
Daí que, a despeito de toda a importância que a jurisprudência vem tendo em
nosso sistema jurídico, ainda é significativo o número de juristas que não admitem a
525 STRECK, Lenio Luiz. Entrevista: direito sumular. In:
<http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=3120>. Acesso em 14.12.2010. 526
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 304. 527
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 192. 528
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 192. 529
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 192.
148
jurisprudência como fonte do direito. Mesmo na edição mais recente de uma de suas
obras – “Introdução ao Estudo do Direito; técnica, decisão, dominação” (2011) –,
Tercio Sampaio Ferraz assere que “a jurisprudência, no sistema romanístico, é, sem
dúvida, ‘fonte’ interpretativa da lei, mas não chega a ser fonte do direito”530.
Tercio Ferraz adverte que são várias as razões pelas quais a doutrina
costuma negar à jurisprudência o caráter de fonte do direito. Entre as diversas
razões, está o histórico diferenciado da origem das duas principais famílias do direito
(common law e civil law). Enquanto o common law buscou sustentação em regras
não legislativas, mas em princípios conectados ao bom senso e à justiça, o sistema
do civil law, caracterizou-se pelo apego aos dispositivos de lei e, consequentemente,
pelas desvinculações: (i) dos juízes inferiores aos tribunais superiores em termos de
decisões; (ii) dos juízes em relação às decisões dos demais pares (mesma
hierarquia); e (iii) dos tribunais às próprias decisões531. Toda essa delineação factual
pode ser sintetizada na máxima segundo a qual o juiz julga segundo a lei e conforme
sua consciência532. Vêm daí também outras afirmações tais e quais a primeira e
muito comuns na doutrina, no sentido de que, mesmo nos casos em que a lei
confere ao magistrado a oportunidade de criar a lei, a atribuição resulta na verdade
da própria lei533.
Aliás, questão de teor semelhante também é debatida no sistema do common
law.
Com efeito, em relação à natureza jurídica do precedente judicial há duas
teorias: a declarativa e a constitutiva. A declarativa afirma que “o Direito preexiste à
530
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 211. 531
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito... 6. ed., ob. cit., p. 210-211. 532
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito... 6. ed., ob. cit., p. 211. 533 Franco Montoro, por exemplo, muito embora admita que a lei constitui o grau mais acabado de
formação do direito positivo, como a legislação não é naturalmente capaz de abarcar todos os casos verificados na sociedade, é inadmissível restringir a expressão “fontes do direito” unicamente ao direito oriundo do processo legislativo. Partindo dessa premissa, Franco Montoro afirma ser possível fazer uso de fontes subsidiárias, que teriam “apenas em parte ou indiretamente o caráter positivo” (p.12). Baseado na lição de Del Vecchio, Franco Montoro elabora uma equação a fim de dar solução à polêmica. Na “fonte das fontes”, ou seja, na base de tudo está o espírito humano, que corresponde à exigência fundamental de justiça. Essa fonte dá origem às fontes históricas e sociológicas, representativas de uma vontade social que impulsionam os órgãos representantes da sociedade a elaborar fontes técnicas, que, no caso, são as leis, os costumes e a jurisprudência. MONTORO, André Franco. O problema das fontes do direito: fontes formais e materiais: perspectiva filosófica, sociológica e jurídica. Brasília: Revista de Informação Legislativa, out./dez., 1971, p. 12.
149
decisão judicial”534. Melhor dizendo, o direito existe independentemente de haver ou
não uma decisão judicial. Dessa forma, quando um tribunal superior julga um caso,
ele apenas está declarando o direito que já existe.
Oposta à primeira, a teoria constitutiva, como o nome já adianta, defende
categoricamente que o juiz, ao decidir um caso concreto, cria o direito (judge make
law). A razão principal dos que defendem essa tese está na alegação de que há
situações várias em que os tribunais decidem expondo soluções que sequer foram
aventadas antes.
Marcelo Alves Dias de Souza expõe, em forma de questionamento, o seguinte
argumento de John Chipman Gray, um dos arautos dessa tese, que hoje é
predominante nos Estados Unidos da América: “qual era o direito na época de
Ricardo Coração de Leão sobre a responsabilidade de uma companhia de telégrafos
para com as pessoas a quem foi enviada a mensagem?” 535.
Victoria Sesma apresenta questão análoga para ser solucionada pelos
doutrinadores que defendem que a natureza jurídica dos precedentes é apenas
declaratória: quando uma decisão anterior haja sido revogada por uma posterior, em
um terceiro caso pode surgir a seguinte controvérsia: qual era o direito após a
revogação da primeira decisão, mas antes de vigorar a decisão posterior? 536
537
Embora haja essa resistência nos dois principais sistemas jurídicos em aceitar
a jurisprudência como fonte do direito, é bom que se enfatize: “esmagadoramente
majoritário, contudo, é o entendimento dos que arrolam a jurisprudência como fonte
do direito” 538 539.
534
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente à sumula vinculante... ob. cit., p. 41. 535
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente à sumula vinculante... ob. cit., p. 43. 536 SESMA, Victoria Iturralde. El precedent em el common law. Madrid: Civita, 1995, p. 30-31. 537
O raciocínio de Sesma segue adiante nesse sentido, com as seguintes questões: “Si la decisión A es derogada por la decisión B y em el caso C surge la cuestión de cuál era el derecho después de la decisión A pero antes de la decisión B, el efecto retroactivo de la decisión B no está implicado a menos que el tribunal em el caso C considere que B es el derecho a la vista de la decisión B; y si B es el derecho, entonces A nunca podia haber sido el derecho de acuerdo com esta teoria, puesto que B es uma correcta declaración del derecho preexistente y es contrario a A. Sería entonces lógicamente necessario bajo la teoria declarativa, que uma decisión derogatoria podría operar retroactivamente si dicha decisión se mantiene em su totalidad”. SESMA, Victoria Iturralde. El precedent em el common law… ob. cit., p. 31. 538
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A jurisprudência como fonte do direito e o aprimoramento da
magistratura. Revista dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 553, nov./81, p. 18-26, p. 20.
150
Decerto que a tradição romanística, que aportou com força no Brasil, por
conta da influência das nações europeias, era expressamente contra a utilização do
precedente. Desde Justiniano proibia-se decidir por meio de precedentes. Na época
das grandes codificações, esse vezo foi sendo acentuado: os códigos eram
considerados a forma mais acabada e perfeita do direito540.
Como já exposto em tópicos anteriores desta pesquisa, era o pretor,
notadamente na Roma do meado do século II a.C., que elaborava a regra que seria
aplicada pelo juiz ao caso concreto. Ao juiz, cabia analisar as provas produzidas e
verificar, segundo seu entendimento, se a circunstância fática autorizava a aplicação
das regras pretorianas541.
Já nas sociedades cuja tradição jurídica remonta à família do civil law, a
jurisprudência, notadamente após a Revolução Francesa, passou a ter um papel
secundário. A jurisprudência nem era vista como atividade interpretativa, já que,
como dito e repetido nesta pesquisa, a função do magistrado era de somente
declarar o direito aplicável ao caso (“o boca da lei”).
Porém, que vem sucedendo nos dias atuais?
539 Também de maneira enfática Hermes Zaneti expõe a sua opinião: “revela-se impossível negar o
caráter primário das fontes jurisprudenciais, como normas jurídicas em si mesmas”. ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: a virada do paradigma racional e político no processo civil brasileiro do estado democrático constitucional. Tese de doutorado. Porto Alegre, 2005, p. 106. 540
Segundo Alf Ross, “associativamente às grandes codificações, o legislador, na vã esperança de
preservar sua obra, tem proibido, amiúde, a interpretação das normas e que a prática dos tribunais se desenvolva como fonte do direito. Já Justiniano proibiu decisões de acordo com precedentes (non exemplis, sed legibus judicandum est). No Código Prussiano (Allgemeines Landrecht) de 1794 encontramos preceitos similares. Na Dinamarca, depois da provação do Código Dinamarquês, em 1683, proibiu-se que os advogados citassem precedentes perante a Corte Suprema”. ROSS, Alf. Direito e Justiça.... ob. cit., p. 112. 541
“Nesse período, quem tinha uma pretensão ia ao pretor, espécie de magistrado e também em
parte legislador, já que muitas vezes tinha que elaborar a regra jurídica a ser aplicada ao caso que lhe era apresentado. Exposto o problema, o pretor, se fosse o caso de conceder a ação, elaborava uma fórmula escrita, encaminhando as partes ao juiz. Nessa fórmula, além de enumerar os elementos do processo, o pretor ordenava ao juiz condenar ou absolver, conforme a sua convicção sobre os fatos. Era algo mais ou menos assim: ‘Porque Tício vendeu um escravo a Caio, condene Caio a pagar dez mil sesTercios a Tício; se não te parecer que deva pagar, absolve’ (...). Como se vê, o pretor elaborava a fórmula ou regra jurídica apenas apreciando o fato em tese, sem procurar saber se estava ou não provado. Cabia. Ao juiz apreciar as provas e aplicar a regra jurídica ao caso concreto. Os casos se repetiam, o que proporcionava ao pretor utilizar uma fórmula anteriormente elaborada para outro caso idêntico, e assim, com o passar do tempo, foi se formando uma rica jurisprudência, que se convencionou chamar direito pretoriano, extremamente fecundo como fonte do direito”. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 42.
151
A partir do instante em que os juízes no cotidiano se veem na condição de
solucionar os casos sem se sentirem presos ao enunciado do texto legal — ou
porque assim desejou o legislador com a redação do dispositivo repleto de conceitos
indeterminados, ou porque a própria norma vai, com o passar do tempo,
inadequando-se à realidade social e, portanto, aos anseios da comunidade —, o
papel criador da jurisprudência torna-se evidente. Tanto que se pode afirmar, com
respaldo em Sérgio Cavalieri Filho que, nos dias atuais, os magistrados, com esse
papel notadamente de co-criador do direito, em muito se assemelham ao pretor
romano542. O que significa dizer, o magistrado hoje é parte julgador e parte
legislador.
Em outro giro, a complexidade e diversidade das atividades do homem na
sociedade mais que impossibilitam uma formação de textos legislativos capazes de
abarcar todas as hipóteses com que se deparavam os magistrados no seu ofício.
Daí porque, mesmo naqueles países cuja família do civil law contribuiu
historicamente para a formação do Estado-nação, nem todas decisões judiciais são
produzidas ou derivam diretamente de um direito legislado.
Daí a perplexidade de Hermes Zaneti que, diante do texto do art. 126 do
CPC543, questiona: “como aplicar esse preceito quando as leis se constitucionalizam,
a Constituição se principializa, as leis processuais admitem o julgamento com base
na ‘jurisprudência dominante’ (...) e o Código Civil adota cláusulas abertas que
deverão ser interpretadas e densificadas pela jurisprudência?” 544 545
542
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica... ob. cit., p. 50. 543
Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei.
No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. 544
ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo... ob. cit., p. 337. 545
Em certa medida, respondendo a questão Mancuso afirma: “Nesse contexto, quando o próprio
Direito Positivo empresta caráter vinculante a certas decisões (CF, art. 102, § 2º), a certas Súmulas (CF, art. 103-A) ou parametriza a admissibilidade de recurso com em Súmula (CPC, art. 557 e § 1º-A), constata-se que, sob o ponto de vista prático, o precedente judiciário acaba até por se avantajar sobre a norma legal, porque, enquanto esta prescreve conduta obrigatória, não se forrando, todavia, à natural interpretação – o que não raro leva a exegeses discrepantes – já a Súmula, além de ser um enunciado normativo (=conduta impositiva), já representa o extrato de uma coleção de acórdãos consonantes, sobre o mesmo tema, donde se preordenar a ser, simplesmente, aplicada aos casos nela subsumidos, dispensando maiores questionamentos. Por esse prisma, a súmula vinculante apresenta um plus, em comparação com a norma legal, nisso em que ela traz embutida, no bojo de seu próprio enunciado uma sorte de ‘interpretação autêntica’ ou oficial da matéria, destinando-se, pois, a ser... cumprida. Nessas condições não há demasia em afirmar que a Súmula revestida de força vinculativa autoriza uma releitura dos princípios constitucionais da isonomia (‘todos são iguais perante a lei’) e da reserva legal (‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa,
152
A influência da jurisprudência na criação do direito, porém, não está apenas
intimamente ligada à crise notória do Poder Legislativo, ou às questões de cunho
sociológico, ou mesmo estruturais e orgânicos do Poder Judiciário, a jurisprudência
vem conquistando maior espaço nos pronunciamentos judiciais influenciada também
pelo desenvolvimento da Filosofia do Direito. Realmente, na visão de Sálvio
Figueiredo, Recaséns Siches teve, no ponto, papel fundamental com sua doutrina do
“logos de razonable”, de cujo ensinamento derivou a proposta legislativa, entre nós,
do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil de 1916 (“na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”) 546.
Em uma linha de raciocínio semelhantemente da até aqui exposta, de que a
aproximação do nosso sistema com o anglo-saxônico tem como causas fatores que,
no conjunto da obra, favorecem o fortalecimento de uma jurisprudência fonte do
Direito, Ricardo Maurício Soares revela o seguinte:
No sistema jurídico brasileiro, reconhecimento de que a jurisprudência pode figurar como fonte direta e imediata do Direito é fortalecido à medida que se constata na sua progressiva aproximação ao paradigma anglo-saxônico do common law nas
últimas décadas, como se depreende dos seguintes fenômenos: a consagração do poder normativo da Justiça do Trabalho; o aprimoramento dos mecanismos de uniformização jurisprudencial; o prestígio das súmulas dos tribunais superiores, mormente daquelas oriundas do Supremo Tribunal Federal; a previsão legal da súmula impeditiva de recurso; e a positivação constitucional da súmula vinculante, sob a inspiração da doutrina conhecida como stare decisis(...). Considerando o Direito como um fenômeno histórico-
cultural e o sistema jurídico como um sistema aberto à realidade social, deve-se reconhecer o papel criativo e construtivo do julgador, bem como a capacidade de as decisões judiciais engendrar uma
normatividade jurídica antenada com os valores comunitários 547.
Essa aproximação deriva não só da criação judicial que é feita pelo
magistrado ao prolatar sua decisão, elaborando a norma jurídica a ser aplicada ao
caso, mas também, embora não tanto quanto na família do common law, em razão
senão em virtude de lei’), porque já agora a tais garantias é de ser justaposto um adendo, deste teor:’(...) inclusive a lei quando, interpretada pelo STF; ao final se formalize em Súmula, como força vinculante’”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante.... 4. ed., ob. cit., p. 89-90. 546
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A jurisprudência como fonte do direito... ob. cit., p. 25. 547 SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 123.
153
das decisões de nossos tribunais superiores ganharem cada vez mais força
vinculante, seja pela imposição do preceito constitucional (com a Emenda
Constitucional de nº 45/2004, que instituiu a súmula vinculante) ou mesmo por conta
do alastramento da própria consciência jurídica de se dar respeito a decisões
precedentes.
Sobre a prevalência da consciência do respeito aos precedentes, Eduardo de
Albuquerque Parente traz interessante estudo demonstrando que, em relação aos
magistrados de alguns países da família do civil law (Áustria, Alemanha, Itália, v.g.),
nada obstante declararem as leis e códigos desses países que as decisões judiciais
não têm, em regra, força de lei, é possível observar o aumento gradativo do respeito
natural às orientações das cortes superiores548 549.
É provável que o fato de o sistema jurídico brasileiro estar ligado
historicamente à família romano-germânica inconscientemente faça com que alguns
juristas tenham dificuldade de perceber o estágio em que se encontra a função
criativa atual de nosso Poder Judiciário, negando-lhe com justificativas filosóficas
esse papel político, de sorte que, somente com força de exemplos, é possível
discutir essa racionalidade.
E assim é que, enquanto a lei é um produto da informação legislativa, a
jurisprudência é uma construção feita sobre um problema. Essa construção, quando
resta sedimentada, isto é, quando passa a ser repetida de forma constante pelos
tribunais superiores, pode ser sumulada; e, em vindo a ser sumulada, ou mesmo
que subsista no patamar da categoria inferior da jurisprudência dominante, pode
ocorrer até da construção jurisprudencial ser devolvida ao legislador, por critérios
vários, inclusive em face do princípio da segurança jurídica, transformando-se em
leis. Ou seja, a jurisprudência é capaz de servir, aqui numa visão sociológica do
548
PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit., p. 11-13. 549
Aproximando-se desse entendimento, José Rogério Cruz e Tucci afirma que “nunca foi da tradição
da experiência jurídica alemã a existência de precedentes judiciais com eficácia vinculante. No entanto, em certas circunstâncias prevista em lei, o juiz de tribunal que pretendesse divergir de orientação jurisprudencial dominante, tinha (e continua tendo) o dever funcional de submeter a quaestio iuris à apreciação de um órgão superior no âmbito do mesmo tribunal”. CRUZ e TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito... ob. cit., p. 228.
154
direito550, como fonte material, subsidiando, em muitos casos, a outra fonte formal do
direito – que é a lei 551.
Exemplo disso é o que aconteceu muito recentemente em nosso sistema
jurídico com a renovada lei de mandado de segurança (Lei nº 12.016, de 7.12.09),
em que o legislador sedimentou no texto legislado parte da jurisprudência construída
pelos tribunais, desde a década de 1950, quando da promulgação da lei anterior.
Sérgio Cavalieri, entre outros exemplos de jurisprudência que influenciaram o
legislador, lembra o caso da súmula de nº 187 do Supremo Tribunal Federal, que foi
transformada, ipsi verbis, no artigo 735 do Código Civil552 553.
Vale, ainda, a afirmação de Sérgio Cavalieri Filho de que tantas outras
inovações jurídicas poderiam ainda ser citadas, “o que evidencia que a
jurisprudência constitui uma atividade verdadeiramente construtora e pode,
consequentemente, contar-se entre as fontes do direito” 554.
Diante do pragmatismo característico da vida social contemporânea, a
jurisprudência tem respondido melhor às necessidades de respostas céleres do que
mesmo o texto legislado. Historicamente, o sentido de ser da força persuasiva da
550 “Costuma-se classificar as fontes do Direito em materiais e formais. As fontes materiais são assim
chamadas porque, na realidade, materialmente falando, são as responsáveis pela elaboração do Direito. A palavra material vem de matéria, substância, essência, razão pela qual é usada para indicar aquelas fontes que verdadeiramente têm substância de fonte. Se lhe examinarmos o conteúdo, veremos que o Direito é aí elaborado. Por isso as fontes materiais são também chamadas fontes substanciais ou de produção. As fontes formais, por sua vez, são assim chamadas porque de fonte só têm a forma; nada, porém, de conteúdo. Aparentemente o Direito tem origem nas fontes formais, mas na realidade elas apenas o tornam conhecido. Por isso são também chamadas fontes de conhecimento. Se pudéssemos usar uma figura nada ortodoxa, diríamos que o Direito é produzido nas fontes materiais e embalado e distribuído pelas fontes formais. Para o sociólogo, portanto, ao contrário do jurista, as fontes formais não passam de meios de exteriorização, ou de conhecimento do Direito elaborado pelas fontes materiais, as únicas que realmente merecem a designação de fonte”. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica... ob. cit., p. 42. 551
Interessante ter em mente nessa discussão o posicionamento de Rubens Limongi França. Com efeito, o autor entende que há impropriedade no uso do termo “fonte” para designar as fontes do direito. Melhor seria, segundo o autor, utilizar-se da expressão “forma” do direito. O que gera o direito, ainda na dicção do professor, não é a lei ou os costumes. Essas são as “formas” que o direito se apresenta. O que gera o direito são as necessidades sociais e a vontade humana (FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica jurídica. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 93). Por essa postura filosófica sequer haveria razão para discussão: leis, costumes e jurisprudência, catalogadas todas como formas de expressão do direito, jamais se comparariam às fontes propriamente do direito: arbítrio humano e o direito natural. 552
Súmula 187 do Supremo Tribunal Federal: “A responsabilidade contratual do transportador, pelo
acidente com passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”. 553
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica... ob. cit., p. 53. 554
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica... ob. cit., p. 53.
155
jurisprudência sempre foi a busca da uniformização de um dizer o direito que nem
sempre é fácil de ser obtido por meio das normas abstratas e gerais da lei.
Na verdade, a função de persuasão dos precedentes sempre existiu e
continua a existir. A jurisprudência que sempre foi compilada nos periódicos tem
primordialmente essa função. É bom lembrar também que, quando da criação da
súmula, o Ministro Victor Nunes Leal estava muito mais preocupado com a facilidade
que os enunciados das súmulas trariam para o julgamento dos casos repetidos do
que qualquer outra inquietação.
Porém, o que ocorre hoje é que a atuação dos aplicadores do direito no foro é
de tal maneira voltado aos precedentes que não raro pouco se dá valia aos dizeres
da lei. O ofício no foro, seja por parte dos advogados, seja por parte dos juízes e
promotores, é basicamente uma busca interminável nos sites dos tribunais daquele
precedente que consiga se amoldar ao caso em debate. No contexto dessa
realidade circunstante, difícil negar a condição de fonte do direito da jurisprudência,
mormente diante da oceânica literatura jurídica atualmente produzida, que privilegia
obras de coletânea e interpretação de precedentes, em torno dos mais diversos
temas, superiormente à edição dos manuais de doutrina. Afinal, nem poderia ser
outra nossa realidade, se os casos julgados pelos tribunais podem trazer um
conteúdo normativo diverso do texto inicialmente posto pelo legislador no mundo
jurídico e se tais decisões se repetem com tal frequência, de forma a incrustar na
consciência do julgador como verdadeira norma de conduta a ser seguida, que é
pouco mais que moderado admitir-se ser esse fenômeno um produto, uma fonte
criadora do direito.
Nada obstante, encontra-se fácil na doutrina restrições à aceitação geral da
jurisprudência como fonte do direito, limitando-se o reconhecimento dessa condição
àquelas hipóteses onde a força vinculativa impera. A jurisprudência, como um todo,
ou seja, como uma “massa judiciária, exposta em modo assistemático, e
compreendendo todas as decisões, de primeiro e segundo graus, uniformes ou
não”555, por se encontrar em um estágio inferior ao direito sumular, é dizer, por não
555 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed... ob. cit.,
p. 95.
156
revestir-se de caráter geral, não se enquadraria no conjunto das espécies de fonte
formal do direito556. Claramente, nesse sentido, é o que expõe Mancuso:
A jurisprudência, vista sob aquele quarto e especial enfoque (alínea d, supra), a saber, assistida dos efeitos vinculante ou impeditivo de
recurso, pode ser erigida à condição de fonte formal do Direito, sem embargo de ser o nosso país filiado à família jurídica romano-germânica, onde o primado repousa no Direito escrito (princípio da reserva legal: CF, art. 5º, II)557.
Daí que, nesse passo, Hermes Zaneti cataloga em número de três os
momentos em que a jurisprudência assume a característica de fonte primária do
direito, “quer atuando como modelo (conceito naturalmente mais amplo – ligado à
característica persuasiva dos precedentes), quer como fonte stricto sensu 558: (i)
súmulas vinculantes; (ii) as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal com
eficácia erga omnes e com efeito vinculante nas ações de controle de
constitucionalidade concentrado; e (iii) jurisprudência dominante dos tribunais, bem
como as súmulas não vinculantes dos tribunais estaduais e superiores.
Se é certo que há um novo papel do magistrado, mesmo nos sistemas em
que a lei sempre imperou, a função da jurisprudência, como um todo, no
ordenamento jurídico brasileiro, não pode ser outra que não evidenciar sua
propensão a manancial do direito ao lado da lei.
Pensar o contrário é rejeitar as observações daqueles que já não admitem
mais possa existir distinção clara entre os principais sistemas jurídicos do mundo
moderno (civil law e common law), preferindo manter a jurisprudência como um
discreto distintivo da norma legislada.
Vista dessa forma a questão, pode-se afirmar seguramente que a
jurisprudência se apresenta como fonte formal do direito. Em resumo do que foi
acima dito, Lenio Streck:
A jurisprudência acaba impondo ao legislador uma visão nova dos institutos jurídicos, forçando o processo de criação das leis na
556
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed... ob. cit.,
p. 96. 557
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed... ob. cit., p. 96. 558
ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo... ob. cit., p. 349.
157
direção da orientação construída pelos tribunais. Assim, é induvidoso que a jurisprudência no Brasil se constitui, além de fonte de normas jurídicas gerais, em uma fonte subsidiária de informação a
alimentação ao sistema de produção de normas jurídicas559
De resto, o debate aqui apresentado, com os diversos e opostos
entendimentos, somente revela a necessidade de nossa doutrina elaborar uma nova
teoria das fontes do direito.
3. UTILIZAÇÃO DO PRECEDENTE NA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
JUDICIAL
3.1 Aspectos polêmicos em relação à diversidade jurisprudencial
O sistema jurídico brasileiro integra a família romano-germânica do civil law.
Na prática, porém, boa parte da doutrina vem entendendo que os dois principais
sistemas (common law e civil law) “constituem dois aspectos de uma mesma e
grande tradição jurídica ocidental” 560 561.
Embora seja certo que a doutrina do stare decisis presta homenagem ao
sistema jurídico do common law, de forma a configurar o precedente judicial com
força vinculante, pesquisas realizadas em vários sistemas jurídicos – como já
referido – demonstraram que a menção ao precedente “não é, há muito tempo, uma
característica peculiar dos ordenamentos filiados ao common law, estando presente
em quase todos os sistemas, inclusive os civil law (romano-germânico)” 562.
Aqui no Brasil, porém, só recentemente o legislador tem procurado atender
aos reclamos da sociedade no sentido de elaborar mecanismos processuais que
valorizam o respeito ao precedente judicial. Precisou que houvesse manifestações
559 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p. 93. 560
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 17. 561
No mesmo sentido é o posicionamento de Hermes Zanetti Junior: “não há modelo puro, mas, simplificando na comparação, apresentam-se os modelos como na Arquitetura, na qual se define o estilo de uma construção pelas suas características mais marcantes e pela ênfase em determinados elementos no desenho do prédio. Nada obsta que a unidade externa seja quebrada ou desmentida pelo interior da morada, contudo as características de sua fachada ainda assim permitem identificar uma forma de fazer Arquitetura”. ZANETTI JUNIOR, Hermes. A constitucionalização do processo... ob. cit., p. 88. 562 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência... ob. cit., p.1.
158
várias de juristas de renomes, principalmente oriundos das mais altas Cortes de
Justiça do país, para que esse panorama começasse a mudar563.
É fácil observar, na comunidade jurídica, a defesa da criação judicial por parte
do juiz. Contudo, vivemos momentos de um evidente paradoxo: de um lado, “cada
vez mais o Poder Judiciário é provocado para ‘dizer o direito’ diante do
esvaziamento de conteúdos prévios das regras do sistema” 564; de outro, a
necessidade de se conter exatamente o efeito decorrente desse novo chamamento
imposto aos julgadores: a divergência jurisprudencial. Sim, pois não é fácil conceder
essa franquia criativa do direito ao magistrado, sem que se padeça dos efeitos
colaterais provenientes da dispersão natural que essa faculdade é capaz de
promover na estrutura de um sistema como o nosso, não totalmente adequado a
essa nova realidade.
Com efeito, o cenário tem se mostrado assim, pois se é certo que os
julgadores avançam ainda confiantes na criação do direito, a tendência é de
agravamento dessa dispersão jurisprudencial. Dispersão essa, a propósito, bem
pormenorizada por Eduardo Cambi no texto Jurisprudência lotérica, de abril de 2001,
que ressaltou a necessidade de se impor limites à liberdade dos juízes de interpretar
o Direito565:
...se é necessário assegurar aos juízes a liberdade para assegurar o
Direito, essa liberdade não pode ser absoluta, porque dá margem à existência do fenômeno da jurisprudência lotérica, o qual compromete a legitimidade do exercício do poder jurisdicional pelo Estado-juiz.
563
Segundo Cândido Dinamarco: “Quando o Min. José Paulo Sepúlveda Pertence, então na Presidência do Supremo Tribunal Federal, ergueu a bandeira das decisões vinculantes dos Tribunais Superiores da União não faltaram todavia vozes divergentes a sustentar a inconveniência da propostas, seja em face do princípio político da Separação dos Poderes do Estado, seja do postulado da independência dos juízes ou da efetividade do contraditório. Mas a angustiosa realidade do Poder Judiciário brasileiro, sobrecarregado e moroso, exige uma solução liberta de preconceitos políticos ou jurídicos radicalizadores dessas conquistas liberais”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno... ob. cit., p. 1123. 564 GOUVEIA, Lúcio Grassi. Breves considerações acerca da construção da norma jurídica diante do
caso concreto pelo julgador. Rio Grande do Sul: Revista da AJURIS, n. 117, ano XXXVIII, março de 2010, p. 245-255. 565 CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais n. 786, São Paulo: RT, abr./2001,
p. 108-128.
159
Todavia, essa diversidade jurisprudencial, naturalmente admitida como uma
espécie de efeito colateral, decorrente da dinâmica particular própria da tradição dos
sistemas jurídicos oriundos do civil law — isto é, da tradição “do império das regras
fixadas pelo Legislativo”566
—, já não encontra espaço confortável no ambiente
jurídico atual, mormente quando se verifica a abrangência das circunstâncias no
segundo grau de jurisdição. Se por um lado, na estrutura do sistema jurídico do civil
law, é razoável aceitar-se a convivência (ainda que somente no primeiro grau de
jurisdição – daí o nosso notável e complexo sistema recursal) com decisões
antagonicamente ofertadas ao jurisdicionado, em face de idênticas hipóteses legais;
por outro, no seio de uma sociedade estruturada constitucionalmente baseada em
princípios caros ao Estado Democrático de Direito, como o da igualdade, por
exemplo, tal fato tende a perder a razoabilidade na órbita dos tribunais superiores
para se tornar fonte praticamente incessante de injustiças sociais, em que um
processo judicial não pode ter resultado para o jurisdicionado, semelhante a um jogo
de azar567.
Porém, a divergência jurisprudencial não é um mal em si.
Sabe-se que o julgador, ao criar a norma jurídica para o caso concreto, é
influenciado por diversos fatores, além daquilo que vem exposto no texto legislado.
Entre as causas que motivam a decisão de um magistrado, do mesmo modo que
acontece conosco quando tomamos decisões relacionadas com o nosso cotidiano,
decerto estão a ideologia, o estado de ânimo, o psicológico, os preconceitos, a
cultura jurídica, etc.568. Aliás, o processo de elaboração de uma sentença judicial
parece mesmo ter o efeito, nos dias atuais, de uma “espécie de justificação ex post
da decisão tomada pelo aplicador do direito” 569. Pelo menos, essa é a ótica pela
qual boa parte da doutrina analisa essa disciplina: o juiz se valeria, ainda que de
566
SANTOS, Evaristo Aragão, Sobre a importância e os riscos que hoje corre a criatividade jurisprudencial. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 181, a. 35, mar./2010, p. 38-58. 567
CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica... ob. cit., p. 108-128. 568
BELTRAN, Jordi Ferrer. Considerações sobre o conceito de motivação das decisões judiciais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Revista Brasileira de Filosofia, ano 59, n. 234, p. 291-312, jan.-jun/2010, p. 294. 569
GOUVEIA, Lúcio Grassi. Breves considerações acerca da construção da norma jurídica... ob. cit., p. 247. Ainda, na lição desse autor (p. 247): “não queremos aqui afastar a importância da lógica jurídica, mas constatarmos que se a decisão é lógica não é somente lógica, até porque o julgador, antes de acionar as ferramentas lógicas, faz uma série de escolhas, servindo a lógica muitas vezes para legitimar uma das decisões possíveis para o caso concreto”.
160
forma inconsciente, da lógica do razoável, professada por Ricaséns Siches, nada
obstante ofereçam à vista de todos suas decisões como fruto de exemplar raciocínio
silogístico570. Nojori revela a síntese desse entendimento:
O juiz chegaria primeiro à solução para o caso e depois revestiria sua decisão de uma logicidade fictícia, ou seja, o julgamento viria primeiro que a própria argumentação do julgador, que não se utilizaria para tal fim de uma dedução lógica, que partisse das premissas para a conclusão, conforme um raciocínio dedutivo. O silogismo jurídico seria apenas aparente571.
Seguindo essa linha de raciocínio572, pode-se dizer que, em grande parte dos
processos em que se deparam os magistrados, o raciocínio utilizado para a solução
da lide não é determinado especificamente por critérios apenas jurídicos573.
Levando-se em conta tais observações, forçoso crer que muitos dos citados
elementos metajurídicos que circundam a mente do julgador são resgatados quando
este está diante de ações propostas com base em textos legais que não foram alvo
ainda de debate profícuo. Isso ocorre costumeiramente naquelas situações em que
o diploma legal é de vigência recente, ou cuja materialidade fática não sofreu
regulamentação suficiente, ou mesmo naquelas hipóteses de influência recíproca de
duas ou mais normas, ao mesmo tempo, sobre o mesmo caso concreto (ex: diálogo
das fontes).
São nesses momentos em que as teses são fixadas. Além do mais, não se
pode desconhecer que a realidade social é dinâmica. Se a sociedade, em todas as
frentes (econômica, cultural, antropológica) sofre mutações constantes, exigindo
que, no plano do ordenamento jurídico, o legislador promova diversas e constantes
alterações legislativas, além de fartamente utilizar estruturas normativas cada vez
mais genéricas, flexíveis, principiológicas e de conteúdo aberto (como as cláusulas
570
NOJORI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 79. 571
NOJORI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais... ob. cit., p. 79. 572
Segundo Jordi Beltran, essa é a linha de raciocínio do realismo jurídico, especialmente o norte-americano, que pôs especial atenção nos mecanismos causais que motivam as decisões judiciais. “Por isso, os realistas deram destaque à necessidade de estudar estes fatores sociológicos como método adequado de prever as decisões judiciais, i.e., a seu entender, conhecer o direito vigente”. BELTRAN, Jordi Ferrer. Considerações sobre o conceito de motivação... ob. cit., p. 294. 573
TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz... ob. cit., p. 171-204.
161
gerais e os conceitos indeterminados), não se pode entender que a divergência seja
um mal em si, tendo que ser combatida a todo custo.
Observando-se a questão por esse prisma, o desenvolvimento do direito
necessita das muitas interpretações variantes possíveis dadas ao texto legal. Ou
seja, a divergência jurisprudencial, além de previsível e aceitável em nosso sistema
jurídico é necessária, a fim de que o Poder Judiciário possa, a contento,
acompanhar as alterações levadas a efeito por toda a sociedade em seus diversos
segmentos estruturantes (econômico, político, etc.).
Então, se a divergência jurisprudencial “é uma moeda de dois lados” 574,
apresentando pontos positivos e negativos575, tem valor substancial a análise da
utilização dos precedentes pelos aplicadores do direito. Ou melhor, se
especificamente os magistrados estão sabendo empregar os precedentes
corretamente na fundamentação da decisão judicial. Pois pouco vai adiantar
criarmos mecanismos para a utilização dos precedentes, se o magistrado –
especialmente esse aplicador do direito – não souber utilizar com precisão o
precedente na fundamentação de suas decisões.
3.2 A decisão judicial
3.2.1 - Uma brevíssima análise da importância do princípio da motivação no
Estado Democrático de Direito.
Embora devidamente posicionado com assento constitucional (art. 93, inciso
IX, da CF/88), o princípio da motivação das decisões judiciais não é objeto de estudo
que desperte maiores interesses e incursões dogmáticas dos doutrinadores
pátrios576. Tal fato, até certo ponto, é paradoxal, na medida em que o legislador
constituinte, que procurou, em regra, dotar a Constituição com texto descritivo e
principiológico, afirmando direitos e impondo deveres577 578, resolveu, no caso
574
PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit., p. 35. 575
(Passim) SANTOS, Evaristo Aragão, Sobre a importância... ob. cit. 576
DELGADO, José Augusto. A sentença judicial e Constituição Federal de 1988. Disponível em:
<http://www.bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/9400>. Acesso em: 04.05.2010. 577
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo... ob. cit., p. 293.
162
específico, produzir norma de cunho sancionador, com prescrição de nulidade para
a desobediência do referido princípio579 — coisa rara na sistemática constitucional —
demonstrando o quanto ponderou de grave e ofensivo a um Estado Democrático de
Direito o mau vezo dos membros do Poder Judiciário de proferir decisões sem
fundamentação válida.
A propósito, sobre esse mau exemplo dado pelo Poder Judiciário, Fredie
Didier assevera que:
É bastante comum o operador do direito deparar-se, no seu dia-a-dia, com decisões do tipo “presentes os pressupostos legais, concedo a tutela antecipada”, ou simplesmente “defiro o pedido do autor porque em conformidade com as provas produzidas nos autos”, ou ainda, “indefiro o pedido, por falta de amparo legal” 580.
Após o fracasso do Estado Liberal, que fincou suas raízes na liberdade do
indivíduo, surgiu o Estado Social (Welfare State) com o propósito claro de prover a
sociedade com necessidades públicas capazes de garantir, ao menos,
minimamente, programas de amparo ao cidadão, como, v.g., saúde, educação e
proteção ao trabalho.
A reboque dessa evolução histórica do Estado veio a transformação do
processo hermenêutico de integração do texto legal: o magistrado passou a extrair
do texto a norma jurídica (sentido teleológico) e a não mais se preocupar em
desvendar ou declarar a vontade do legislador, controlando, inclusive, a
578
Em texto onde rebaixa o “neoconstitucionalismo” à categoria de mero movimento, sem uma adequada estrutura dogmática, Humberto Ávila afirma o seguinte, em contradição à ideia geralmente difundida de que nossa Constituição é notadamente principiológica: “Não se pode, em primeiro lugar, asseverar que o tipo normativo prevalente adotado pela Constituição Brasileira de 1988 seja o principiológico: embora não se possa afirmar que a Constituição tenha adotado um modelo exclusivo de princípios, nem um arquétipo único de regras, se um qualificativo tiver de ser escolhido para representar a sua espécie normativa típica, esse qualificativo deverá ser o de ‘Constituição regulatória’. Não é exato declarar, pois, que se passou das regras para os princípios, nem que se deve passar ou é necessariamente bom que se passe de uma espécie para outra. O que se pode afirmar é, tão-só, que a Constituição é um complexo de regras e princípios com funções e eficácias diferentes e complementares. ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 17, janeiro/fevereiro/março, 2009. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em 1º de outubro de 2011. 579
Rui Portanova adverte: “a doutrina discrepa sobre se as decisões sem fundamentação são nulas ou inexistentes, mas não há dúvida quanto à gravidade do defeito”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil... ob. cit., p. 249. 580
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil... ob. cit., p. 236.
163
constitucionalidade das normas. Surgiu daí o embrião de uma nova postura de
atuação, por parte dos juízes, que é plenamente reconhecida pela doutrina como a
judicialização da política ou politização da justiça581.
Com a evolução do Estado de Direito, portanto, o Poder Judiciário passou a
se apresentar ao jurisdicionado como corresponsável pela consecução dos objetivos
fundamentais da República, da mesma forma que os demais Poderes da
República582. É dizer, na quadra atual de nossa história política, todos os três
poderes que compõem o Estado Democrático de Direito restaram inexoravelmente
subordinados à vontade popular583, de forma que nem mesmo o Judiciário está livre
para decidir em confronto com os interesses públicos.
É nessa quadra evolutiva do Estado que se pode afirmar: a qualidade
democrática das instituições passou a qualificar o próprio poder estatal584 585. Ou
seja, os valores democráticos passaram a irradiar seus preceitos em todas as
instituições e órgãos que compõem o Estado. É o Estado como promotor de justiça
581
“Diante da clareza do texto constitucional, o juiz não pode recusar a escancarada verdade: a constatação de que está fazendo política. Evidente que não é a política partidária, a cuja atividade não pode dedicar-se o juiz brasileiro. Mas é a política resultante de incursão nunca antes admitida em temas sensíveis à condição da política nacional. Em outros, termos, ocorre no Brasil, o fenômeno já detectado em outros Estados-nação e conhecido por judicialização da política ou politização da justiça. Por conta desse fenômeno contemporâneo é que o Judiciário é chamado a apreciar o mandado de segurança coletivo, suscetível de ser impetrado por partido político representado no Congresso Nacional e por outros órgãos intermediários. Dentre eles, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”. NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306-307. 582
NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306. 583
“O dispositivo constitucional potencializou a garantia de ser motivada qualquer decisão judicial. Permite, assim, que se pratique ato revestido de justiça, sem qualquer característica de ato de imposição de vontade autoritária. Pressupõe o sistema jurídico em ação que o poder do juiz emana do povo e em seu nome o exerce, pelo que está obrigado a convencer, quando decide, não somente as partes, como também a opinião pública”. DELGADO, José Augusto. Alguns aspectos controvertidos no processo de conhecimento. RT 664/27. São Paulo: Revistas dos Tribunais. 1991. 584
MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais e a democratização no processo civil: aspectos de cidadania. Revista da Esmese, Aracaju, n. 5, p. 167-193, 2003, p. 171. 585
“Cada revolução daquelas intentou ou intenta tornar efetiva uma forma de Estado. Primeiro, o estado liberal; a seguir, o Estado socialista; depois o Estado social das Constituições programáticas, assim batizadas ou caracterizadas pelo teor abstrato e bem-intencionado de suas declarações de direitos; e, de último, o Estado social dos direitos fundamentais, este, sim, por inteiro capacitado da juridicidade e da concreção dos preceitos e regras que garantem estes direitos”. BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 15.
164
social, tendo como nota característica a função de equacionar seus interesses com
os interesses sociais586.
Eis aí uma nova maneira de ver a atuação profissional do magistrado.
Sobremaneira ampliado o alcance dos fundamentos de decidir, posto que a eficácia
da decisão do magistrado depende agora de outro componente que antes não lhe
era cobrado — o da legitimação social — torna-se cada vez mais possível que a
decisão tenha alcance democrático, isto é, seja aceita pela sociedade para produzir
a eficácia da norma 587.
Dessa forma, para boa parte da nossa doutrina, afigura-se não ser mais
concebível possam existir decisões cujo teor apenas represente graficamente um
exercício mental silogístico, como bem dá um exemplo emblemático Letícia Balsama
Amorim:
Vistos os autos (...) Relatado (...) segue-se a motivação: O princípio da dignidade da pessoa humana é norma constitucional de eficácia imediata e portanto pode e deve ser aplicado a casos concretos (premissa maior). O contrato celebrado entre Autor e Réu fere o princípio da dignidade da pessoa humana (premissa menor). Logo, dou provimento ao pedido do Autor para declarar nulo o referido contrato (conclusão) 588 .
Diante dessa moderna obrigação funcional do magistrado, o processo deixa
de representar para o Estado Democrático de Direito um mero mecanismo de
composição de litígio e passa a ser pensado — a partir de sua efetividade — como
instrumento de mudança social e aplicação da justiça589. Destaca-se aí a importância
da função política da motivação das decisões judiciais. É o processo como
instrumento político de efetivação do próprio direito.
O entendimento fica melhor esposado, nas palavras de Rodolfo Mancuso:
Num ambiente de democracia participativa (CF, parágrafo único do art. 1º), há de entender-se que a participação direta da população
586
MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais... ob. cit., p. 167 - 171. 587
MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais... ob. cit., p. 167 - 193. 588
AMORIM, Letícia Balsamão. A insuficiência do silogismo para cumprimento do dever de motivar as decisões judiciais. Revista Virtual da AGU Ano 6, n. 48, jan./ 2006. <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=83091&ordenacao=1&id_site=1115> . Acesso em 14.01.2011. 589
MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais... ob. cit., p. 174.
165
não se confina ao voto popular para eleição de governantes e parlamentares, aos projetos de lei de iniciativa popular, ao plebiscito e às audiências públicas, senão que tal participação se faz também por meio do processo, visto como fator de inclusão social, na medida em que recepciona e encaminha ao Judiciário – ou aos meios alternativos, auto e heterocompositivos – os reclamos, anseios e pretensões da coletividade, os quais, sem essas formas de expressão, continuariam a fomentar a chamada litigiosidade contida, ao interno da coletividade. Portanto, o fato de em muitos países, como o nosso, os juízes não serem eleitos, não serve como argumento ou premissa para dispensá-los de dar o seu quinhão para a boa gestão da coisa pública e preservação do interesse geral, mediante os processos em que são chamados a atuar590.
A permeabilização interativa dos aspectos sociais e políticos com o processo
abre ensejo para que as decisões judiciais sejam aferidas, no tocante à legitimidade,
em vários graus de valores, notadamente em relação à questão da imparcialidade,
cujo critério é o mais próximo do que se entende por democrático.
Com efeito, é inescusável a força política com que na modernidade revestem-
se as decisões judiciais, a ponto de se falar constantemente em politização do Poder
Judiciário. A razão é que, no mais das vezes, decisões judiciais, principalmente
aquelas oriundas dos tribunais superiores, não se restringem unicamente às partes
interessadas diretamente no litígio, mas, de maneira substancial, a toda sociedade
que é afetada pelo comando inserido na sentença. Não é por outro motivo que, ao
longo do tempo, foram paulatinamente aperfeiçoando-se as formas de controle do
ato decisório do magistrado.
Todavia, no Brasil, o princípio da motivação das decisões judiciais somente
obteve registro constitucional na Carta de 1988. Antes, o princípio do dever de
motivar a sentença vinha sendo contemplado unicamente na seara da legislação
processual ordinária.
Ora, com a influência da política no processo de evolução do pensamento
jurídico, decerto redundou no posicionamento do princípio da motivação das
decisões na Constituição da República, passando-se a ter, nos dias atuais, uma
590
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 286-287.
166
ampla e indiscutível controlabilidade da fundamentação das decisões judiciais, “que
não se adstringe ao quadro das impugnações previstas nas leis do processo” 591 592.
Temos, assim, dois tipos de controle das decisões judiciais: controle
endoprocessual e extraprocessual593.
Como rescaldo do racionalismo do Estado Liberal, a motivação das decisões
judiciais teve, na ciência processual, inicialmente, função dirigida basicamente às
partes litigantes da lide. Fundamentalmente, ainda hoje, tal função consiste em
conceder oportunidade às partes para conhecer na inteireza as razões que levaram
o magistrado a proferir sentença em favor de um dos sujeitos da relação processual.
Mas não é só. A importância da motivação tem como propósito incutir na
parte vencida a ideia de que o insucesso de sua pretensão não foi fruto de uma
posição arbitrária do magistrado, e, portanto, persuadi-la a se dar por satisfeita com
a decisão. Diz-se que a função aí seria social, porque apaziguadora dos ânimos
exaltados.
591
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia ao Estado de Direito. Tese aprovada pela VII Conferência Nacional da OAB (Curitiba, 1978), acervo bibliográfico do Prof. José de Moura Rocha. Biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco, p. 111-125. 592
Na palavra Maria Thereza Gonçalves Pero: “Se todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, então é natural que o povo possa acompanhar as decisões do poder Judiciário, e constatar a idoneidade de sua atuação para atender aos postulados do Estado de Direito, fazendo com que permaneça o seu consentimento a essa instituição. A correção com que é atuada a tutela jurisdicional, sob esse aspecto, deixa de interessar imediatamente apenas às partes interessadas no processo, para constituir, mediante um interesse de toda uma coletividade...”. PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 62. 593
Segundo o melhor escólio de Carlos Romero Lauria Paulo Neto: “Em um sentido mais amplo,
entendemos que função interna da motivação da decisão jurisdicional, por um lado, não se circunscreve ao aspecto de sua interconexão com a impugnabilidade da decisão e, por outro lado, não é meramente uma função processual (rectius: formal). Deveras, especialmente, no caso das decisões da justiça constitucional, a motivação desempenha a importante função interna de favorecer a autocontenção do juiz constitucional. A inexorabilidade de expressa motivação jurídica traz consigo não só uma exigência de racionalidade argumentativa, mas também de congruência lógica, coerência e conformação ao Direito, o que, tudo somado infunde a imperatividade de prudência e contenção judiciais (...). Assim, a motivação das sentenças, sob a perspectiva da controlabilidade externa, é funcionalmente instrumental em relação ao fim de legitimar a decisão perante a crítica doutrinária e a própria opinião pública, ou a esfera pública pluralista, no sentido de Härbele. Ainda que modernamente a cobertura massificada dos media sobre julgamentos importantes propicie uma intensa interface entre o tribunal constitucional e a comunidade, não se trata, obviamente, de o juiz nortear suas decisões cedendo a qualquer populismo judicial, ainda que não se excluam totalmente interferências pontuais da opinião pública nos rumos de certas correntes jurisprudenciais. Por outro aspecto, tampouco, como adverte Taruffo, trata-se de submeter a controle social cada decisão singularmente considerada, mas, isto sim, de relevante garantia contra o arbítrio judicial a qual se propicia a todos os cidadãos a partir da exigência geral de pública motivação do ato decisório jurisdicional, caracterizando a atividade dos juízes como uma atividade limitada e controlável pela Sociedade. PAULO NETO, Carlos Romero Lauria. A decisão constitucional vinculante. São Paulo: Editora Método, 2011, p. 126-127.
167
Nada obstante demonstrar ser esse realmente um dos propósitos do princípio
da motivação das decisões – persuadir as partes a se darem por satisfeitas com a
decisão – Barbosa Moreira enfatiza que, na prática forense, contudo, isso não é
verificável:
Com maior vigor ainda, costuma-se acentuar o papel da motivação na economia das impugnações: mesmo deixando de lado, porque freqüentemente desmentido na prática, o suposto valor persuasivo das boas fundamentações, a que se pretende atribuir o efeito de desencorajar a interposição de recursos, restam outros aspectos de inegável relevância: só os conhecimentos das razões de decidir pode permitir que os interessados recorram adequadamente e que os órgãos superiores controlem com segurança a justiça e a legalidade das decisões submetidas á sua revisão. (...) A obrigatoriedade da motivação é vista, ademais, como condição do funcionamento eficaz dos mecanismos destinados a promover a uniformização da jurisprudência, para a qual são as teses jurídicas que importam, e não as conclusões nuas dos julgados 594.
Se, por um lado, a despeito dessa realidade subjacente, a motivação da
sentença ainda mantém, no âmago do processo, a função social de garantia às
partes litigantes “de ver suas argumentações devidamente apreciadas pelo
magistrado, como decorrência do princípio do próprio direito de ação” 595; por outro
lado, relembre-se que, na lição de Cruz e Tucci, “a motivação da sentença, ainda no
plano técnico, resulta útil para enriquecer e uniformizar a jurisprudência, servindo,
desse modo, como valioso subsídio àqueles que contribuem para o aprimoramento e
aplicação do direito” 596.
Seja como for, essa prestação de contas ofertada aos jurisdicionados em
geral nem sempre é executada com precisão pelo magistrado em sua sentença.
Além disso, é muito comum, no cotidiano forense, o juiz deparar-se com pedidos das
partes que, de tão idênticos a tantos outros anteriormente propostos e já analisados
por outros magistrados e pelos próprios tribunais, dispensam uma fundamentação
inovadora ou própria por parte do magistrado sentenciante, fazendo com que o
julgador, nessa hipótese, limite-se apenas a fazer referências a textos ou
julgamentos outros, no intuito de motivar sua decisão.
594
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia... ob. cit., p. 115. 595
MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais... ob. cit., p. 173. 596
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Ainda sobre a nulidade da sentença imotivada. RP 56/223.
168
Essa tem sido a problemática de vulto a ser enfrentada por nossa doutrina, na
medida em que, o objeto alvo da verificação foge aos padrões esperados no tocante
ao princípio da motivação.
3.2.2 – Algumas questões práticas envolvendo o princípio da motivação
judicial
Na hipótese, hoje tão comum, de o magistrado se servir de um precedente
para fundamentar sua decisão, importa destacar o entendimento dominante no
Superior Tribunal de Justiça de que o julgador, que assim procede, transcreva na
íntegra a parte que é capaz de servir de motivação para sua sentença, não bastando
apenas fazer referência àquela outra decisão paradigmática, ainda quando inserta
nos próprios autos em que se resolve a lide. É que a prática usual de adotar como
fundamento de decidir apenas o reenvio ou remissão ao jurisdicionado a
determinado acórdão que se quer sirva de paradigma, sem a sua devida e
necessária transcrição, é de todo repugnável pelo nosso Tribunal Cidadão 597.
Apesar de a recomendação clara do Superior Tribunal de Justiça, ainda são
comuns os casos em que os juízes, ao proferir sentenças onde apenas invocam, na
análise das questões jurídicas, precedentes jurisprudenciais, transcrevem “apenas
as respectivas ementas no corpo do julgado” 598, como se tal proceder fosse
bastante para dar por bem e encerrada a prestação jurisdicional599. Não é!
597
A exigência da motivação das decisões judiciais é mandamento constitucional, havendo, no caso de progressão de regime, específica e expressa exigência legal, certamente dirigida a impedir decisões de simples reenvio a cálculos de pena e a atestados de comportamento de Diretor de Unidade Prisional e a fazer certo que o mérito do sentenciado, vale dizer, a sua resposta à execução penal, como vista progressiva da pena criminal....Tal motivação, que se impõe como dever do magistrado, como ocorre na espécie, em nada se identifica com reenvios puros e simples a certidões de tempo de pena cumprida e atestados de conduta carcerária, averbados de aplicação aritmética a pronunciamentos técnicos, com o que se isenta o Juiz de valorar os fatos da execução, eles mesmos” (STJ - HC 93.322/RS, Sexta Turma, Rel. Min. Hamilton, j.17.04.2008, DJe 04.08.2008, v.u.). 598
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil... ob. cit., p. 233. 599
É bom ter em mente que, no tocante ao Juizado Especial, a flexibilização do disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988 é latente; isso porque a Lei nº 9.099/95, por exemplo, faculta ao Colégio Recursal do Juizado Especial (art. 82, § 5º) a remissão aos fundamentos adotados na sentença, sem que isso implique afronta à garantia constitucional. Em recente julgado, que teve como relator o Ministro Dias Toffoli, esse entendimento, que reflete a jurisprudência dominante no Supremo, foi reafirmado: “EMENTA – Juizado especial. Parágrafo 5º do art. 82 da Lei nº 9.099/95. Ausência de fundamentação. Artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Não ocorrência. Possibilidade de o colégio recursal fazer remissão aos fundamentos adotadas na sentença.
169
Com efeito, em se tratando de precedentes, o juiz não fica desincumbido do
dever de motivar sua sentença, somente pelo fato de ter encontrado ementa ou
julgado que, a seu ver, se enquadra perfeitamente à hipótese exposta nos autos. O
magistrado há que materializar sua fundamentação expondo de forma clara os
motivos pelos quais entende que esse ou aquele precedente se aplica ou não ao
caso em julgamento; é dizer: as razões que justificam, no seu modo de entender a
questão, que o precedente escolhido é aderente à justificação que ele percebe ser a
mais justa para o deslinde da lide.
De outro modo, admite-se a possibilidade de aceitação de uma decisão
judicial composta de uma motivação implícita. Embora possa originar-se daí uma
impressão inicial de surpresa diante de nosso ordenamento jurídico, que determina
que o magistrado indique os motivos de seu convencimento600, tal possibilidade se
explica por meio de uma construção jurisprudencial. Deveras, mesmo antes da
promulgação da Constituição de 1988, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
já acenava com a possibilidade, hoje de indiscutível validade, de que as decisões
judiciais pudessem ser proferidas com motivação implícita601.
Jurisprudência pacificada na Corte. Matéria com repercussão geral. Reafirmação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” (Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 635.729-SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, DJe nº 162, p. 24.08.2011). 600
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.
Art. 458. São requisitos da sentença: I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem. (destaques não constam do original). 601
“Os segundos embargos de declaração – do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários no Estado de Goiás e outros – alegam: omissão do fundamento que justificou o conhecimento e provimento do recurso do Banco do Brasil (fls. 871). Ora, no relatório, no despacho do Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, se invocou o art. 154, § 4º, da Constituição Federal – pela negativa de prestação jurisdicional (fls. 852). E no voto, em expressa referência à ‘jurisprudência predominante’ da Corte, indicam-se os RREE 96.918 e 100.121 (fls. 856/857): daquele – transcreveu-se a Ementa, a Turma, o Eminente Relator e RTJ que publicou (RTJ 103/1286), na qual o ilustre patrono dos embargantes, por certo, se não o soubesse – e sabe-o e ressabe – poderia haurir os esclarecimentos suplementares que deseja, e que, inseridos na publicação oficial da Corte, não precisam ser largamente transcritos, principalmente a quem os conhece; do segundo (RE 100.121) – indicou-se o D.J., órgão oficial de publicação do judiciário e se adiantou: ‘com ementa idêntica à do acórdão anterior’ (fls. 857).Exigir mais seria o Relator fazer pouco da competência dos que defendem, no Tribunal, o direito das partes. Lesse, contudo, o embargante o texto do acórdão embargado e veria a invocação dos fundamentos que pretende explicitados: o art. 153, § 4º, da Constituição Federal, suficiente para que a irresignação fosse conhecida e acolhida pelo Tribunal, além dos demais dispositivos que invocou. E os precedentes citados deixaram claro ‘desconhecer, por ilegitimidade, o recurso de terceiro, abrangido pelos efeitos da sentença e alegando direito próprio, importa em
170
As razões, de ordem prática, resultam do seguinte raciocínio: a exigência da
motivação não significa que o magistrado tenha que enfrentar ou responder um a um
cada argumento apresentado pela parte de forma detalhada.
Realmente, hoje em dia parece impossível imaginar, diante de um volume
avassalador de processos que sobrecarrega os foros, que um magistrado vá se
debruçar por completo sobre as várias alegações expostas pelas partes, para ao fim
e ao cabo proferir uma decisão, sabedor que muitas impugnações apresentadas
pelas partes não representam satisfatoriamente o verdadeiro reflexo do interesse
principal posto em debate na lide.
Além do mais, há situações em que, por coerência, uma premissa pode estar
“em contraposição lógica com a escolhida como fundamento do decisum com a
prática processual” 602 603.
Até aí, nenhum problema, posto que, como foi visto, esse enredo foi
paulatinamente construído pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A
situação torna-se merecedora de atenção quando o julgador, por entender que não
está obrigado a enfrentar uma miríade de alegações apresentadas nos autos do
processo pelas partes litigantes, deixa de apreciar devidamente, por meio do
confronto adequado, as provas produzidas nos autos do processo, acometendo-se
de uma postura notadamente parcial.
Quem dá a explicação para a polêmica é Fredie Didier:
negação de prestação jurisdicional’ (RE 96.918, loc.cit.). Não está o juiz obrigado a examinar, uma a um, os pretensos fundamentos das partes, em todas as alegações que produzem: o importante é que indique o fundamento suficiente de sua conclusão, que lhe apoiou a convicção no decidir. De outra forma, torna-se-ia o juízo o exercício fatigante e estéril de alegações contra-alegações, mesmo inanes, ‘flatus voci’ inconseqüente, para suplício de todos; e não prevalência de razões, Isto é, capazes de convencimento e conduzindo à decisão” (RE-ED 97558/GO, Rel. Min. Oscar Corrêa, DJ 25.05.84, 1ª Turma, j. 27.04.1984, v.u.) . Original sem destaques. 602
LEMOS, Jonathan Iovane de. Garantia à motivação das decisões. Biblioteca Digital Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 17, n. 67, jul./set. 2009. Disponível em: http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow,aspx?idConteudo=62832. Acesso em: 10 de março 2010. 603
Segundo Maria Thereza Gonçalves Pero, “.... ao acolher fundamentadamente uma de duas teses contrapostas, é de lógica perceber-se que o julgador também deixa implicitamente claras as razões por que deixou de atender à outra, o que elimina a possibilidade de se considerar omissa a decisão que não menciona as razões do desatendimento... PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil... ob. cit., p. 96.
171
Muitas vezes o magistrado, analisando os argumentos e provas trazidos ao processo, tende a realçar, em sua motivação, apenas aquilo que dá sustentação à tese vencedora. É bastante comum que o juiz, por exemplo, julgando procedente um pedido, fundamente sua decisão com base apenas, ou ao menos predominantemente, nos argumentos e provas produzidos pelo autor. Isso, porém, não é correto. É imprescindível que se indique também por que as alegações e provas trazidas pela parte derrotada não lhe bastaram à formação do convencimento. Trata-se de aplicação do princípio do contraditório, analisando sob a perspectiva substancial: não basta à parte seja dada a oportunidade de manifestar-se nos autos e de trazer as provas cuja produção lhe incumbe; é necessário que essa sua manifestação, esses seus argumentos, as provas que produziu sejam efetivamente analisados e valorados pelo magistrado. Além disso, o julgador deve expor na sua decisão os motivos por que tais argumentos e provas não o convenceram604.
Vale dizer, na hipótese acima debatida, por falta de uma postura imparcial na
valoração das provas, não há que se falar em motivação implícita605. Ressalte-se,
por oportuno, que essa praxe forense põe em xeque o princípio da livre convicção
motivada606.
Verdade seja dita, por essa razão é que o estudo do princípio da motivação é
de capital importância; o juiz aí exerce uma de suas funções primordiais: dar solução
definitiva ao litígio com a segurança e a justiça necessárias à pacificação social.
Uma outra questão, porém simplória: a adoção da súmula vinculante dispensa
o magistrado de piso ou mesmo os diversos tribunais superiores de motivar a
decisão judicial? Na verdade, seja em que hipótese for – de adoção ou não da
súmula vinculante –, o magistrado terá que cumprir seu dever constitucional de
fundamentar sua decisão.
604
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil... ob. cit., p. 230. 605
“Aceitar a motivação implícita em matéria de apreciação de provas não pode chegar às raias de permitir valorações que sejam – ou possam aparentar ser – arbitrárias e unilaterais. Em virtude da discricionariedade que lhe é reservada, o julgador não fica preso a qualquer versão e, como regra geral, nem obrigatoriamente deve prestar a mesma importância e a nenhum dos pontos à sua disposição, mas a declaração e os fundamentos de sua irrelevância, nesses casos, devem estar expressos...”. PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil... ob. cit., p.104. 606
Em síntese apropriada, Rui Portanova expõe o seguinte: “O mesmo sistema jurídico que dá ao juiz o poder de livremente convencer-se, dando às normas a interpretação que entender mais adequada, atribuindo valor às provas dos autos, enfim concedendo direito e impondo deveres conforme seu sentimento, o mesmo sistema, repetimos, impõe ao juiz o dever de motivar sua convicção, justificando às razões que determinaram o julgamento”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil... ob. cit., p. 247.
172
Assim, quando entender que súmula é aplicável ao caso concreto, o
magistrado “terá que demonstrar quais as bases fáticas que assemelham o caso que
tem em mãos autorizadoras da aplicação da súmula, da mesma forma que hoje o
juiz precisa explicitar o motivo pelo qual os fatos se subsumem à lei” 607
.
Ou, na lição de Didier:
Com a possibilidade de edição pelo STF, de “súmula vinculante” em matéria constitucional (conforme art. 103-A da CF, acrescentado pela EC 45/2004 e regulamentado pela Lei Federal n. 11417/2006), parece ser lícito ao magistrado, simplesmente, fazer alusão à súmula, quando da análise da questão de direito, mas deverá, antes, demonstrar se e de que modo a situação concreta que lhe é posta para julgamento se encaixa na hipótese sobre a qual versa a referida
súmula608.
Em relação aos tribunais, o mesmo Didier adverte que, “como dispõe o
Regimento Interno do STF, a citação de qualquer enunciado da ‘súmula’, pelo
número correspondente, dispensará, perante o Tribunal, a referência a outros
julgados no mesmo sentido (102, § 4º)” 609. Melhor dizendo, os tribunais não
necessitarão fazer referência aos precedentes que compuseram a súmula, posto
que a indicação do número do enunciado para tanto já é suficiente. Mas as razões
continuam sendo necessárias.
Importa ainda ressaltar que o controle das decisões judiciais não se cinge
somente no âmbito interno do processo, como já antedito aqui, de forma en passant.
Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição concede à população os
instrumentos necessários para fiscalizar a atuação daqueles que integram o
governo610. Decerto, pois se todo poder emana do povo e em seu nome é exercido,
é corolário que ao povo tenha sido igualmente outorgado o direito de fiscalizar
qualquer poder instituído.
607
AZEVEDO, Marco Antonio Duarte de. Súmula vinculante... ob. cit., p. 111. 608
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.... ob. cit., p. 233. 609
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.... ob. cit., p. 233. 610
Cf. art. 5º, LXXIII, da CF/88: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular...”.
173
Deveras, no atual contexto democrático, o Poder Judiciário, ao lado dos
outros dois poderes do Estado, tem responsabilidade idêntica na defesa e
consecução dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil611.
Disso resulta claro que não se pode mais analisar a garantia da motivação
das decisões como técnica processual que visa unicamente atingir objetivos
endoprocessuais, do tipo a proporcionar às partes as razões postas pelo juízo, a fim
de poderem, com isso, exercer o direito recursal e permitir que os órgãos colegiados
judiciários possam examinar com acuidade necessária a imparcialidade (justiça) das
decisões recorridas.
Embora o povo não possa impor ao magistrado suas razões e valores, de
forma a influir diretamente na motivação do juízo, é indiscutível o reconhecimento de
que os destinatários da decisão não são unicamente formados pelo bloco fixo
composto das partes litigantes e juízes de segundo grau, mas por toda a estrutura
que integra a sociedade, porque também a comunidade deseja constatar se os
órgãos jurisdicionais estão decidindo com imparcialidade; melhor dizendo: se estão
cumprindo com o seu papel de instituição ou poder democraticamente vinculado à
soberania popular. Diante da clareza da cena de fundo em que contracenam os
atores políticos, já não se pode recusar a realidade subjacente: o Judiciário faz
política por meio das suas decisões judiciais612 613.
Em tom agudo, Michele Taruffo expõe assim sua visão sobre a influência
externa que as decisões judiciais modernas trazem em seu bojo:
A decisão judiciária não é microcosmo fechado ou uma mônade que encontra em si mesma as suas razões e exaure, somente, em si mesma, os seus efeitos. Se assim fosse, encontrar-se-ia novamente, na específica e particularística solução do caso síngulo, que bem poderia ser, absolutamente, arbitrária. Isso, porém, acontece – pelo menos – nos ordenamentos modernos inspirados nos princípios da legalidade – pois, espera-se que cada decisão possa se inserir seja no contexto geral do ordenamento globalmente considerado, seja como fluxo dinâmico da interpretação das normas. Essa tendência, em ser parte de um contexto mais amplo, implica que a decisão judiciária, por ser cultural e socialmente aceitável, deve possuir ulteriores características em relação àquelas que definem a sua
611
NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306. 612
NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306. 613
É claro que não se está falando aqui da política partidária, mas da política “resultante de incursão nunca antes admitida em temas sensíveis à condução da política nacional”. NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306.
174
formal validade e a sua coerência interna. Isso equivale a dizer que a atividade criativa do juiz não se exaure em atos decisórios de caso a caso e isolados, mas deve conectar-se – para resultar aceitável – a parâmetros de ordem mais geral, em certo sentido ‘externos’, no que diz respeito ao contexto específico da decisão única614.
Ora, ao fazer política o Judiciário impõe a si próprio uma nova postura perante
a sociedade: buscar a legitimação necessária da população para as suas decisões.
E como fazer isso acontecer em um panorama institucional político-democrático no
qual o povo não tem o direito de eleger os componentes do Poder Judiciário, é que é
o grande desafio.
A bem da verdade, não se quer aqui, incutir a noção de que o magistrado
está, a partir de agora, obrigado inexoravelmente a buscar o apoio incondicional da
população sempre quando chamado a decidir. Não se defende aqui o ponto de vista
muito difundido de que o magistrado deve também julgar a lide “jogando para a
platéia” ou mesmo tratando de colher nas ruas o direito eventualmente lá
encontrado; ou ainda, que suas decisões sejam reflexas de pesquisas de opinião. O
que se propõe é que, diante do contexto atual do Estado Democrático de Direito,
com o fortalecimento e importância dos direitos fundamentais, e em face de uma
crise na estrutura do texto legal, consequência aparentemente inevitável de uma
sociedade que impõe ao legislador leis as mais flexíveis possíveis615 – compostas de
cláusulas gerais e conceitos indeterminados –, a fundamentação das decisões “não
pode bastar-se apenas com o plano da justificação interna, devendo também chegar
ao domínio da justificação externa” 616.
614
TARUFFO, Michele. Legalidade e justificativa da criação judiciária do direito. Recife: Revista da Esmape, vol. 6, nº 14, p. 431-456, jul./dez., 2001, p. 446. 615
Em relação à “crise da legislação”, Michele Taruffo revela o seguinte: “É conhecido, por todos, que o modelo do legislador simples, claro, racional e coerente desapareceu há tempo (admitindo que tenha já existido na realidade, além de nos sonhos dos filósofos). Em todos os ordenamentos, a produção normativa tornou-se imensa, descontrolada, incoerente, invasora, fragmentária, variável. Além disso, devido à fortíssima aceleração das mudanças econômicas e sociais, a intervenção do legislador está sempre, e mais frequentemente, em atraso no que diz respeito à evolução dos fatos que desejaria disciplinar(...). As lacunas aumentam porque o legislador está sempre em menores condições de regular, tempestiva e eficazmente os fenômenos econômicos, sociais e culturais (os exemplos podem ser milhares, desde os problemas da bioética aos da tutela do consumidor). As antinomias aumentam porque é uma legislação que escapou a qualquer controle, só pode conter um sempre crescente número de contradições internas, de todo tipo”. TARUFFO, Michele. Legalidade e justificativa... ob. cit., p. 441. 616
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional... ob. cit., p. 248.
175
Nesse contexto, Maria Thereza Gonçalves Pero relata caso emblemático
ocorrido na Capital de São Paulo, em que um médico autorizou uma paciente a se
submeter ao aborto, mediante parecer clínico, no sentido de que o feto gestado era
portador de anencefalia:
O tema despertou o interesse de pelo menos a maioria da população. A primeira questão que todos procuraram esclarecer, ao tomar conhecimento da notícia, foi: ‘quais foram as razões que levaram esse juiz a autorizar tal intervenção?... a autorização foi dada em consideração a alguma circunstância especial?”. Ainda, para a referida autora, o juiz, ao fundamentar sua decisão na interpretação da norma penal em confronto com a intenção do legislador e os métodos e os recursos de que dispõe a medicina moderna, simplesmente apresentou razões suficientes para que a decisão fosse aceita pelo povo em geral, sem que dela, da decisão, se pudesse dizer que houvesse ofendido qualquer princípio constitucional. E concluiu: “Não se pode negar ter havido aí um verdadeiro controle difuso sobre a decisão. Não um controle da decisão, mas sobre a decisão proferida. Se os motivos inexistissem ou deixassem transparecer uma ilegalidade, se ferissem o sentimento natural do povo ou a lei que este soberanamente impôs, por meio do poder competente, o clamor seria intenso. Certamente todos os veículos da imprensa e as pessoas, por seu intermédio, teriam se manifestado de maneira contrária à decisão, e com todo direito, pois, como já se afirmou anteriormente, cada indivíduo, mesmo os que não integram o processo como parte ou terceiro interessado, assim como a sociedade, como um todo, têm também interesse, em tese, em examinar as decisões judiciais que são
proferidas, sendo seus julgados naturais 617.
Como se vê, em face da presente evolução do Estado – Democrático de
Direito –, tem força a assertiva de que o princípio da motivação das decisões
judiciais é “expressão do princípio da participação popular na administração da
justiça” 618 619.
Nesse sentido, está plenamente configurada a função extraprocessual ou
política que caracteriza o princípio das motivações das decisões judiciais no atual
estágio do Estado Democrático de Direito.
617
PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil... ob. cit., p. 66 e 67. 618
PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil... ob. cit., p. 6. 619
Ainda na dicção de Uadi Lammêgo Bulos: “O pórtico constitucional já não se dirige, apenas, às partes e aos juízes de segundo grau, mas também à comunidade como um todo, que, tomando conhecimento do teor de uma decisão, poderá verificar se o juiz foi imparcial em sua sentença, se decidiu com conhecimento de causa”. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada... ob. cit., p. 868.
176
3.2.3 – A importância dos precedentes na fundamentação da decisão judicial.
Ao ser elevado a cânone constitucional na Carta Magna de 1988, o princípio
da motivação das decisões judiciais passou a ser cobrado pelos jurisdicionados e
pela sociedade, a rigor, como sinônimo de controle da imparcialidade do magistrado.
Imparcialidade que representa, por certo, o Estado Democrático de Direito, porque
só é imparcial quem não se porta de maneira arbitrária. E o arbitrário é postura
característica da administração que pertence a Estados que não respeitam as
instituições democráticas.
Logo, a consequência primordial do panorama atual do controle do princípio
das motivações das decisões judiciais é hoje uma cobrança maior de toda sociedade
sobre o apuro da fundamentação apresentada pelo juiz em sua decisão. É que a
necessidade de motivação das decisões judiciais há muito deixou de ter função de
simples controle endoprocessual – ou seja, a ensejar que no segundo grau a parte
vencida possa validamente rediscutir a sentença primária nas instâncias superiores
– para desempenhar, nos governos democráticos, indiscutível função política.
Função essa inegavelmente constatada na necessidade de se fiscalizar um Poder
democraticamente instituído. Com efeito, é a motivação das decisões judiciais que
irá fornecer à população o instrumento mais adequado de controle sobre a efetiva e
democrática postura imparcial do julgador.
O elevado número de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, inseridos
sem distinção em praticamente todos os códigos e legislações extravagantes
nacionais, aliado às imprecisões técnicas, bem ao estilo de um Poder Legislativo,
por demais desqualificado e, porque não dizer, cada dia mais distante dos interesses
da população, acabam devolvendo ao Poder Judiciário uma obrigação ingente que
não pode ser vilipendiada pela utilização simplória e muitas vezes
descompromissada dos precedentes jurisprudenciais.
Como posto em relevo nos parágrafos anteriores, o sistema jurídico nacional,
muito embora ainda fortemente baseado na lei escrita, notadamente com grande
ênfase ainda para o método da codificação, tem demonstrado uma permeabilidade
notável à influência do stare decisis oriundo do common law e, por consequência, à
177
utilização dos precedentes judiciais na fundamentação das sentenças judiciais. Essa
façanha, digna de elogios, aliás, haja vista o clamor da sociedade para que o Poder
Judiciário apresente respostas jurídicas semelhantes para casos iguais, importa na
análise de um problema fundamental: no instante de fundamentar a decisão com
base em precedente judicial, tem o magistrado brasileiro exercido seu mister
adequadamente? Ou seja, os nossos magistrados estão devidamente preparados
tecnicamente para utilizar de forma satisfatória os precedentes na fundamentação
das decisões judiciais? E mais: o que tem levado especificamente os juízes muitas
vezes a desprezar praticamente o texto da lei, para buscar direto um precedente
semelhante ao caso concreto? A facilidade de pesquisa eletrônica disponível nos
diversos sites de jurisprudência, aliada à pressão pura e simples pela agilização das
decisões, por conta do estabelecimento de metas relacionadas com produtividade,
podem representar as causas dessa conjuntura? Ou, é a certeza do desprestígio do
julgamento de primeiro grau, dado pelos jurisdicionados, em face de um sistema
jurídico que valoriza sobremaneira o princípio do duplo grau de jurisdição, a razão
primordial do panorama descrito?
Na verdade, são muitas as questões, sendo difícil responder a todas
objetivamente. O que se pode dizer é que muitos desses questionamentos partem
de um intricado problema a se discutir no tocante ao nosso sistema jurídico. Por
exemplo, ninguém levanta a voz contra quem afirma que as decisões de primeiro
grau precisam ser prestigiadas pelos operadores do direito. Afinal, é notório que na
quadra atual de nossa história, as sentenças de primeiro grau têm assumido
“características de decisão intermediária, algo como um despacho saneador
qualificado, necessário para ensejar a apelação” 620, merecendo, realmente, melhor
prestígio.
Ora, se é assim, maior é a razão para que se defenda que a utilização dos
precedentes não seja feita açodadamente, de forma irresponsável, ou mesmo de
maneira aleatória, sem ao menos uma pesquisa séria sobre a ratio decidendi do
paradigma a ser escolhido para servir de norte ao julgador, caso contrário as
inovações legislativas que visam valorizar os precedentes no nosso sistema jurídico
não obterão o efeito desejado.
620
BENETI, Sidnei Agostinho. Doutrina de precedentes e organização judiciária... ob. cit.
178
Na práxis judiciária, como já debatido, é comum observar julgados que são
utilizados como se precedentes fossem, onde, na ementa, de forma genérica, o caso
até parece se assemelhar ao debatido nos autos, mas quando se procede à análise
proficiente dos termos do acórdão paradigma — melhor dizendo: da ratio decidendi
—, constata-se que os fatos postos em confronto estão em total desacordo entre si.
Ou seja, o procedente é inservível para fundamentar a decisão.
Nesse sentido, é imperioso destacar a lição de Marinoni:
O significado de precedente não é atingido apenas mediante a sua diferenciação dos conceitos de decisão, súmula, etc., mas também a partir da consideração dos seus conteúdos e, especialmente, das porções que, em seu interior, identificam o que o tribunal realmente pensa acerca de dada questão jurídica. De outra parte, é vital saber usar o precedente, identificando-o como algo que, ao mesmo tempo que orienta as pessoas e obriga os juízes, não imobiliza as relações sociais ou impede a jurisdição de produzir um direito consentâneo com a realidade e com os novos tempos621.
A questão se torna também séria quando muitas vezes o juízo de primeiro
grau utiliza um único precedente para fundamentar sua decisão que sequer compõe
ou faz parte da jurisprudência dominante do tribunal superior.
Então, se é assim, não basta apenas entender as razões pelas quais os
magistrados se empenham em utilizar-se dos precedentes na fundamentação de
suas decisões, mas principalmente, compreender o processo do raciocínio
elaborado pelo magistrado sentenciante. Nesse passo, importa saber, por exemplo,
em quais circunstâncias o julgador deve se valer do precedente para fundamentar
sua decisão. Aqui, no bojo desse questionamento, duas outras problemáticas estão
instaladas: o raciocínio lógico-dedutivo ainda pode ser utilizado pelo juiz? Se há uma
ampla discricionariedade que o legislador tem ofertado aos magistrados, qual o
limite, então, a ser imposto à criatividade judicial?
621
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 214.
179
3.2.4 – Decisão logicamente deduzida versus decisão fundamentada.
Por certo, fundamentar uma decisão não é a mesma coisa que explicá-la
simplesmente. Ao fundamentar a decisão, o juiz deve expor de modo criterioso as
razões pelas quais está plenamente convencido de que determinada prova
demonstra coerência com o fato descrito na inicial. O julgador não tem que
convencer ninguém; juiz não é advogado. O que o juiz necessita é demonstrar, por
meio das razões expostas em sua decisão, que está plenamente convencido do seu
juízo. Via de consequência, a legitimação popular estará sufragada.
Ora, daí exsurge a importância de que, no processo racional da
fundamentação, o magistrado tenha plena consciência da distância que separa a
ratio decidendi do obter dictum622.
Do que já foi dito, não deve ter espaço na práxis forense a postura do
magistrado que, ao fundamentar sua decisão, tão somente explica que assim o faz
por haver tal hipótese discutida nos autos incidido nessa ou naquela norma legal.
Vale dizer, sabendo-se que nos dias atuais, gradativamente, aumenta o número de
leis que são redigidas com normas com duas ou mais acepções — até porque o
legislador persiste no intento de elaborar o texto legal com um crescente apanhado
de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, como aqui já debatido —, cujo
sentido há que ser dado pelo julgador, é possível concluir que, “quando o juiz disser
que julga de tal ou qual modo porque esse é o sentido da norma aplicável, ele ainda
não forneceu nenhum fundamento válido à sentença” 623.
Ora, se em um panorama não muito distante, a fundamentação já não se
esgotava na citação literal do dispositivo de lei aplicável ao caso, nos dias atuais,
então, diante dos vários textos legais que podem reger determinado fato, é forçoso
622
“A ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão: a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso concreto...Já o obter dictum (obter dicta, no plural) consiste nos argumentos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão...sendo apenas algo que se fez constar “de passagem”, não podendo ser utilizado com força vinculativa por não ter sido determinante para a decisão”. DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.... ob. cit., p. 233-234. (os destaques constam do original). 623
SILVA, Ovídio Baptista da. Fundamentação da sentença como garantia constitucional... ob. cit.
180
reconhecer que gera perplexidade as duas posturas muito comuns ainda adotadas
pelos magistrados: (i) sentenciar informando simplesmente qual a norma aplicável
ao caso; e (ii) decidir a demanda utilizando aleatória e exclusivamente um ou outro
precedente judicial.
Numa assertiva precisa: como tem predominado no nosso sistema jurídico a
preferência pelo legislador de elaborar textos legais cuja linguagem é
essencialmente ambígua624, a fundamentação das decisões não pode ser reduzida a
um apanhado de citações normativas ou jurisprudenciais, ou, muito menos, como
assinala Michele Taruffo, “de uma simples concatenação de silogismo, porque o
raciocínio justificativo é de algum modo mais complexo, rico, flexível, e aberto, ao
emprego de elementos persuasivos dos topoi da ciência jurídica e dos precedentes
judiciários” 625.
Assim igualmente adverte Ovídio:
É mais freqüente do que se imagina depararmo-nos com decisões judiciais, cuja fundamentação preocupa-se em mostrar a preferência do juiz por uma das versões probatórias, ou por uma das incontáveis possibilidades de interpretação jurídica da norma, sem que ele, no entanto, examine criticamente as versões que a infirmem, para mostrar as razões pelas quais as desmerecera.
É comum verem-se sentenças fundamentadas, esquematicamente, mais ou menos assim: ‘A’ alegou tais e tais razões, tendo provado os seguintes fatos. Entretanto, considero que a prova contrária fornecida por ‘B’ é a que reflete a versão verdadeira dos fatos.
Em geral, para chegar a essa falsa motivação, o julgador estende-se em argumentos jurídicos, tentando justificar a decisão que lhe pareceu a mais justa. Costuma trazer, em seu apoio, doutrina e jurisprudência, além de proceder à análise da prova que favoreça a conclusão por ele ‘livremente’ escolhida, esquecendo-se, porém, de examinar criticamente a versão contrária, para mostrar sua inconsistência, seja quanto aos fatos alegados pelo sucumbente, seja quanto a sua fundamentação jurídica” 626.
O apuro como essas questões são abordadas por juristas de escol, somente
demonstra o quanto é atual e séria a problemática da fundamentação das decisões
judiciais, nada obstante o descaso com que são enfrentadas no dia a dia pelos
624
SILVA, Ovídio Baptista da. Fundamentação da sentença como garantia constitucional... ob. cit. 625
TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz... ob. cit., p. 179. 626
SILVA, Ovídio Baptista da. Fundamentação da sentença como garantia constitucional... ob. cit.
181
operadores do direito, mormente pelos tribunais superiores que, sob justificativas
várias, em especial o princípio instrumental do processo, muito raramente anulam
uma sentença por falta ou insuficiência de fundamentação. Aliás, num verdadeiro
paradoxo, aos tribunais superiores parece bastar que a conclusão da decisão
decorra lógica e adequadamente das premissas fáticas para ser considerada
praticamente de origem demoníaca a voz que clama pela nulidade a decisão
proferida nesses termos sem a adequada fundamentação.
Com o momento decisivo e inovador que começamos a vivenciar, ou seja,
com a utilização constante — mas nem sempre precisa — dos precedentes, a
tendência poderá ser o agravamento da crise do Poder Judiciário, já que é
conveniente lembrar que o número de recursos tende a aumentar na proporção em
que cresce o número de decisões judiciais mal fundamentadas627.
Quem sintetiza bem o problema é Maurício Ramires
A aplicação desse “raciocínio distorcido” amiúde se dá da seguinte forma: o juiz escolhe “livremente” (leia-se arbitrariamente) uma das interpretações trazidas pelas partes, e a seguir a “confirma” com uma rápida e simples busca em alguns dos vários repertórios eletrônicos de jurisprudência, selecionando julgados que convêm à tese (e que passam a constar da decisão) e ignorando os que a infirmam (e que não são sequer mencionados). O resultado dessa operação é uma decisão não fundamentada e, portanto, nula do ponto de vista constitucional628.
Uma questão será adicionada aqui propositadamente para instalar nova e
relevante polêmica: nada obstante tudo que foi analisado até o presente instante, a
627
Segundo Ovídio Baptista da Silva, “Ninguém ignora que nosso sistema recursal, além de outros defeitos, mostra-se submisso aos pressupostos do racionalismo, compreendendo o direito apenas como ‘norma’, distante dos ‘fatos’, que é a premissa de todos os normativismos modernos. O que nem todos têm presente é que estamos convivendo com um momento crucial do que se convencionou chamar de crise do Poder Judiciário, no capítulo dos recursos, causada por decisões, sentenças e acórdãos despidos de fundamentação, ou ostentando fundamentação precária ou insuficiente. É compreensível que assim o seja, tendo em conta a elevada e sempre crescente litigiosidade que caracteriza a cultura do capitalismo competitivo e individualista. Entretanto, é correto dizer que o número de recursos aumenta no proporção em que aumente o número de provimentos judiciais carentes de fundamentação. O resultado inverso também é verdadeiro: quanto mais bem fundamentado o ato jurisdicional, tanto menor será o número dos recursos que o podem atacar”. (os negritos não constam do texto original). SILVA, Ovídio Baptista da. Fundamentação da sentença como garantia constitucional... ob. cit. 628
RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação do precedente... ob. cit., p. 46.
182
argumentação jurídica – base para a fundamentação do julgado – apresentada pelo
magistrado na forma de raciocínio silogístico está realmente fadada ao desuso?
Segundo Neil MacCormick, muitos autores se sentem incomodados, e até
mesmo demonstram-se hostis, ante a ideia de que a argumentação jurídica possa
ser feita por meio do processo lógico-dedutivo629. Não é para menos, diante do que
ficou demonstrado anteriormente, o que representa para boa parte da doutrina a
utilização desse tipo de raciocínio nos dias atuais.
O método dedutivo, todavia, pode ser considerado como o método eficiente
para contribuir inclusive com a pretensão de estabilidade das decisões, tornando o
sistema previsível da mesma forma que se pretende com a utilização dos
precedentes na fundamentação de um julgado.
Se temos um sistema jurídico praticamente baseado na lei escrita (muitas
vezes codificada), com precedentes dos mais variados matizes, que ainda não
obtiveram finalmente o status de vinculantes, a utilização de um raciocínio dedutivo
das regras válidas não pode soar de todo absurdo.
Na época oitocentista, como não se admitia a concepção de normas
indeterminadas (como parece sói acontecer hoje em dia), a escola exegética
desconhecia outra forma de aplicação do direito senão aquela que fosse originária
de um raciocínio lógico-dedutivo. Posteriormente, percebeu-se que o direito
comportava necessariamente criação e realização de valores, no que se ampliou
decisivamente a atividade judicial, sujeitando praticamente a aplicação dedutiva pura
e simples da letra da lei ao anátema. Ou seja, não faz algumas dezenas de anos,
criticava-se aberta e desafetuosamente o sistema pela estreiteza que a exegese
dogmática impunha ao magistrado, ao mesmo tempo em que se requeria do
legislador textos compostos de normas jurídicas abertas, flexíveis, conceitos
indeterminados e cláusulas gerais, que permitissem a aplicação ao caso concreto da
justiça; agora, com essa flexibilidade olímpica dos conceitos textuais da lei, discute-
se o limite a ser imposto ao magistrado.
629
MAcCORMICK, Neil. La argumentación silogística: uma defensa matizada. Doxa, Cuadernos de Filosofia Del Derecho, 30, 2007, p.321-334,: <http://descargas.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12476288760181621132679/035341.pdf?incr=1>. Acesso eletrônico em 11.01.2011.
183
Deveras, todos os novos mecanismos processuais de uniformização da
jurisprudência levados a efeito pelo legislador, através das últimas reformas do
CPC630, têm sido considerados, no plano geral, como úteis para o fim de limitar o
que hoje se pode denominar de excesso criativo por parte dos magistrados.
O que se tentará pôr em discussão adiante é se o magistrado pode ainda
decidir seguindo os critérios precisos da lei (quando, por óbvio, esses forem
realmente precisos), ou está irremediavelmente forçado a decidir baseado mesmo
numa interpretação criativa conquistada, como se sabe, à custa de uma oferta
considerável de espaço concedido à jurisdição por parte do legislador. Ou, de outra
forma: o procedimento dedutivo-lógico não representa uma forma de legitimar uma
série de escolhas previamente feitas pelo magistrado diante do caso concreto?
Ao que tudo indica, as críticas endereçadas à concepção silogística de
fundamentar a decisão, parecem, pelo visto, voltadas muito mais à sua insuficiência
do que a sua inutilidade631, afinal de contas, se válida uma norma, “não se pode,
diante de um texto legal que não comporta minimamente na sua letra uma
determinada interpretação, usar um parâmetro mais claro a ponto em que se
reescreva um novo texto para adequar a norma que se pretende aplicar” 632 633 634.
A propósito da questão aqui posta, Lenio Streck traz exemplo interessante,
demonstrando o quanto tem sido exagerada a postura criativa dos aplicadores do
direito nos dias atuais. O autor cita a “interpretação” dada por juristas, e pelo próprio
Superior Tribunal de Justiça, em relação à inovação legislativa imposta através do
630
Segundo Tereza Arruda Wambier, “muitos dispositivos, como, por exemplo, os arts. 557, 544, §§3º e 4º, 518, § 1º, 285-A, 543-B e 543-C do CPC, são sintomas de que a nossa lei processual está caminhando no sentido de proporcionar condições para que haja uniformidade da jurisprudência num grau socialmente desejável. O mesmo se pode dizer relativamente à repercussão geral e a súmula vinculante”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. São Paulo: Revista de Processo, ano 34, n.172, p. 121-174, jun./2009. Revista dos Tribunais, p. 146. 631
BELTRÁN, Jordi Ferrer. Considerações sobre o conceito de motivação das decisões... ob. cit., p. 299. 632
RAMOS, Elival da Silva. Consultor Jurídico... ob. cit. 633
No mesmo sentido, Teresa Arruda Wambier: “Em casos ‘fáceis’, do dia-a-dia (como categoria diferente da dos hard cases) não deve o juiz exercer criatividade alguma. Se o fizer, estará comprometendo o Estado de Direito. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito... ob. cit., p. 143. 634
Para o jurista argentino Ricardo Lorenzentti, “existindo uma regra válida aplicável, este passo deve ser o início, porque a consequência de omiti-lo seria uma sentença contra legem”. LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p.159.
184
art. 212 do CPP, que muitos — ao contrário do professor gaúcho — entendem
praticamente nada ter alterado do antigo sistema inquisitório processual penal:
Vejamos: o art. 212, alterado em 2008, passou a conter a determinação de que “as perguntas serão formuladas pelas partes, diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. No parágrafo único fica claro que “sobre pontos não esclarecidos, é lícito ao magistrado complementar a inquirição”. Consequentemente, parece evidente que, respeitados os limites semânticos do que quer dizer cada expressão jurídica posta pelo legislador, houve uma alteração substancial no modo de produção da prova testemunhal que o envolve, marcada pela opção do constituinte pelo modelo acusatório. Por isso, é extremamente preocupante que setores da comunidade jurídica de terrae brasilis, por vezes tão arraigados aos textos legais, neste caso específico ignorem até mesmo a semanticidade mínima que sustenta a alteração. Daí a minha indagação: em nome de que e com base em que é possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa aprovada democraticamente? É possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição constitucional?
Parece que, no Brasil, compreendemos de forma inadequada o sentido da produção democrática do direito e o papel da jurisdição constitucional. Tenho ouvido em palestras e seminários que “hoje possuímos dois tipos de juízes”: aquele que se “apega” à letra fria(sic) da lei (e esse deve “desaparecer”, segundo alguns juristas) e aquele que julga conforme os “princípios”(esse é o juiz que traduziria os “valores” – sic – da sociedade, que estariam “por baixo” da “letra fira da lei”). Pergunto: cumprir princípios significa descumprir a lei? Cumprir a lei significa descumprir princípios? Existem regras (leis ou dispositivos legais) desindexados de princípios? Cumprir a “letra da lei” é dar mostras de positivismo? Mas, o que é ser um positivista?
....
E, permito-me insistir: por vezes, cumprir “a letra da lei” é um avanço considerável. Lutamos tanto pela democracia e por leis mais democráticas...! Quando elas são aprovadas, segui-las à risca é nosso dever. Levemos o texto jurídico a sério, pois!
....
Obedecer “à risca o texto da lei” democraticamente construído (já superada a questão da distinção entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga (positivismo primitivo) 635.
635
STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? Revista NEJ – Eletrônica, vol. 15, n.1, p.158-173, jan.-abr./2010. <https:/www6.univali.br/seer/índex.php/nej/article/viewFile/2308/1623>. Acesso em 14.12.2010.
185
Por essa e outras razões é que para o autor argentino, Ricardo Lorenzetti, o
ideal não é o magistrado excluir métodos de raciocínio judicial, mas sim
complementá-los, porque, no seu entendimento, “a complexidade é tal que se deve
recorrer a todos eles”636
. E propõe como norte para os magistrados a seguinte
ordem de raciocínio no momento de decidir:
...entendemos que deve existir uma ordem no raciocínio, e este deve
ser sucessivo; primeiro, aplicar a dedução das regras válidas; segundo, controlar esse resultado conforme os precedentes, o resto do sistema legal e as conseqüências; terceiro – e se restarem problemas, estaremos diante de um caso difícil –, deve ser aplicada a solução baseada em princípios; quarto, se houver paradigmas que definam a solução, serão explicados, devendo ser procurada a sua
harmonização637
.
Do que acima foi exposto, importa, antes do mais, destacar que, para o autor
argentino, a sequência dos passos enumerados significa que a sua tese se
contrapõe não só àqueles que entendem que somente são aplicáveis os critérios
pessoais ou políticos para decidir, mas também aos racionalistas, já que o próprio
Ricardo Lorenzetti reconhece que a forma dedutiva de decidir é insuficiente e que há
critérios pessoais e políticos (paradigmas) necessários para se buscar a
harmonização do sistema jurídico, posto que a pura discricionariedade não deve ser
defendida de todo “numa sociedade que pretenda o cumprimento da lei, e onde os
cidadãos devem perceber com clareza as razões da decisão judicial” 638.
O jurista argentino afasta-se da linha que sustenta uma dogmática flexível ou
fluida de tal maneira que todos os casos seriam difíceis – ou passíveis de
interpretação – a ponto de se resolverem com base nos princípios. Nesse ponto, ele
se aproxima do entendimento esposado por Neil MacCormick, no sentido de que os
casos fáceis são a regra, e os casos difíceis a exceção639. Segundo essa concepção,
A maioria das situações é resolvida com base no raciocínio dedutivo de uma norma válida (requisito de validade) e aceita (norma de reconhecimento). Os casos difíceis são aqueles em que se detectam dificuldades no elemento normativo (determinação da norma
636
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 157. 637
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 157. 638
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 157. 639
É o próprio Ricardo Lorenzetti que, em nota de rodapé na referida obra (p.158), admite tal assertiva.
186
aplicável, interpretação), ou no fático (prova dos fatos) ou na dedução (qualificação) 640.
Em síntese, decidir com base na dedução pura e simples é a regra geral,
comportando como limites, é claro, pela sua própria insuficiência prática, diante da
complexidade do sistema legislativo, que produz os denominados hard cases. São
os casos de difícil solução que impõem o limite de aplicação ao processo dedutivo
de decidir.
A questão que se impõe agora é: o que são casos difíceis? À primeira vista,
casos de difícil solução passam a impressão de que estamos lidando com uma
dificuldade pessoal do magistrado ao elaborar uma decisão. Mas não é.
Assim, por exemplo, para Teresa Arruda Alvim Wambier, os casos difíceis
(hard cases) são aqueles cuja solução “não está clara no sistema (porque não é
evidente que a situação esteja abrangida pelos dizeres da lei) ou cuja solução não
foi formulada no sistema e, portanto, precisa ser inteiramente criada, com base, por
exemplo, em princípios jurídicos” 641. Ainda para a autora, é evidente que, “quando o
juiz decide com base tanto em um conceito vago, quanto numa cláusula geral, ele
cria direito, na medida em que formula uma regra para o caso concreto” 642.
Para Ricardo Lorenzetti, situações difíceis ocorrem basicamente
...quando não se pode deduzir a solução de modo simples da lei, porque há dificuldades na determinação da norma aplicável ou na sua interpretação;
...quando é necessário afastar-se da lei, porque ela é inconstitucional643.
640
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 158. 641
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade... p. 141. Ainda explicando sobre o que são os hard cases, a professora expõe que “hard cases, nos sistemas de common law, são, principalmente, cases of first impression, ou seja, a respeito dos quais não há precedentes. Mas são também aqueles mais complexos, em que o juiz faz escolhas. Os exemplos são muitos: seria ilícita a separação de gêmeos siameses, quando houvesse forte probabilidade da morte de uma deles?” (p.142). 642
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade... ob. cit., p. 143. 643
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 163.
187
Nesse ser assim, fato é que difíceis não são os casos que o juiz
pessoalmente entenda assim, mas aqueles em que, efetivamente, ele necessita
recorrer ao processo de concreção para informar os valores presentes no texto legal.
Feitas tais ponderações, resta claro que a utilização pura e simples de
precedentes, como fundamento ou razão de decidir, escolhidos de forma aleatória e
assistemática, não substituem nem dispensam o magistrado de, nos casos de
absoluta simplicidade normativa, utilizar o processo dedutivo, de maneira a expor
com detalhes as razões pelas quais julga desse ou daquele modo a lide. A se agir
do contrário, como, aliás, vem sendo gradativamente observado na praxe forense,
os juízes somente estarão contribuindo para elevar ainda mais a dispersão da
jurisprudêncal — alimentada pela utilização equivocada e desnecessária de um
número elevado de precedentes —, agravando, com isso, o problema da aplicação
correta do princípio da motivação das decisões judiciais.
É bom dar aviso: não se está aqui condenando a utilização dos precedentes
como forma de justificar ou dar exemplo de um raciocínio ou ponto de vista
defendido, ou ainda como forma costumeira de corroborar uma posição doutrinária.
Trata-se de criticar excessos que não contribuem em nada para a celeridade e o
andamento dos processos644.
Como sem dificuldade se constata nos fóruns de todo país, seja diante de um
caso fácil ou difícil, o magistrado, após a elaboração de um relatório, imediatamente
procura socorro em um ou mais precedentes para “fundamentar” sua decisão, sem
ao menos lançar mão de um único argumento de sua própria lavra645. Ora, “se a
mera enunciação do artigo da lei não é suficiente para se registrar a observância ao
644
“Ademais a ciência de que o precedente guiará as decisões futuras dá ao juiz maior responsabilidade ao firmá-lo. Nessa perspectiva, importa a maneira como o precedente poderá ser utilizado e manipulado, especialmente pelas partes. Para evitar injustiças futuras, o juiz deve refletir sobre as repercussões do precedente, o que, evidentemente, atribui-lhe maior responsabilidade ao decidir. Todavia, a necessidade de cautela em relação ao futuro faz com que o juiz fique inibido de tratar o caso que no presente lhe é submetido de forma arbitrariamente diferenciada. Nesse sentido, o respeito aos precedentes também colabora para a garantia da imparcialidade”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 176. 645
“A propósito do julgamento do direito, é preciso que o juiz argumente, justificando as suas escolhas interpretativas, seja porquanto se atém às normas, seja pelo emprego dos precedentes. É, sobretudo, no contexto da justificativa, de fato, que se descobre, em toda a sua amplitude, o desenvolvimento dos argumentos interpretativos, que sustentam a individuação da regra de decisão”. TARUFFO, Michele. Legalidade e justificativa... ob. cit., p. 455.
188
postulado da fundamentação das decisões judiciais” 646, com igual razão não poderá
ser aceita como válida decisão do magistrado que apenas cita os precedentes como
forma de justificar o seu entendimento. Ou seja, a argumentação jurídica é
negligenciada tanto nas questões simples quanto nas difíceis, porque para uma
parcela de magistrados basta utilizar o processo dedutivo como se a ementa do
precedente fosse texto de lei, fazendo-se, no mais das vezes, “boca da
jurisprudência”.
Daí porque Ricardo Lorenzetti defende que o magistrado comece sua
fundamentação utilizando o método dedutivo, aplicando uma regra formalmente
válida ao suporte fático que ela descreve647, para que não incorra na possibilidade
de decidir contra legem ou produzir norma arbitrária. Só em uma segunda fase de
seu raciocínio é que o próprio magistrado deve procurar controlar sua decisão
buscando apoio no precedente. Ou seja, se após o raciocínio dedutivo o magistrado
verificar que os precedentes aplicáveis ao caso concreto dão por solução diversa do
seu entendimento, então deverá assumir de duas posturas uma: ou aplica de
imediato o precedente, modificando decerto sua fundamentação, para adequá-la ao
caso paradigmático; ou insiste na defesa de seu raciocínio, mas tendo que arcar aí
com o ônus de uma profícua argumentação justificadora da não aplicação dos
precedentes, sob pena de proferir uma sentença arbitrária e injusta648.
É bem verdade que essa primeira postura a ser tomada pelo magistrado
requer, como já debatido – mas não é ocioso repetir – os pressupostos de clareza e
simplicidade do texto legal. Acontece que, diante da crise desses pressupostos, ou
seja, diante de leis cada vez mais ambíguas, recheadas de cláusulas gerais e
conceitos indeterminados, que obstam esse procedimento, outra saída não há para
o magistrado senão utilizar-se do juízo da concreção. Porém, o vezo de valer-se
aleatoriamente do precedente, com apoio em raciocínio subsuntivo, é utilizado pelos
magistrados também em casos difíceis, proporcionado um clima de insegurança
jurídica. Não é à toa que o número de embargos declaratórios não para de crescer
em nossos fóruns. Há, aí, evidente paradoxo: afinal, a utilização em maior grau de
precedentes na fundamentação das decisões e a imposição cada vez mais forte do
646
NOJORI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais... ob. cit., p. 121. 647
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 164. 648
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 164.
189
nosso sistema para que eles sejam vinculantes e obrigatórios deveria diminuir os
casos de embargos de declaração649. Porém, isso não ocorre. E não ocorre porque,
no mais das vezes, o magistrado, ao julgar, apela para uma discricionariedade
sinônima de “escolha”. Dito de outra forma: no ato de julgar o juiz sentenciante opta
entre vários existentes aquele precedente que entende melhor se adapta a sua
“escolha”. Ora, quem escolhe age de forma parcial, arbitrária. Se ao juiz fosse dado
o direito de escolher o norte de sua decisão não precisava sequer argumentar.
Como circunstância agravante, tem-se presente o entendimento de parcela
respeitável da doutrina nacional que rechaça a noção de que é possível uma
decisão correta650 651.
Mas, reflita-se: essa crítica, muito embora adequada do ponto de vista
filosófico652, é dolorosa quando exposta ao jurisdicionado, que percebe facilmente
não haver um critério mínimo de correção que limite a interpretação jurídica
meramente subjetiva do magistrado653 654. Um limite, portanto, a tanta criação judicial
é essencial para que os cidadãos tenham percepção clara de que as decisões são
baseadas na igualdade e no Estado de Direito655.
Na melhor exposição de Luiz Marinoni,
649
Embora analisando pelo prisma hermenêutico-constitucional, Lenio Streck também entende que os embargos de declaração representam o sintoma de algo de muito errado ocorre no instante de julgar por parte de nossos juízes: “Tudo isso deve ser compreendido a partir daquilo que venho denominando de uma ‘uma fundamentação da fundamentação’, traduzida por uma radical aplicação do art. 93, IX, da Constituição. Por isso é que uma decisão mal fundamentada não é sanável por embargos (sic); antes disso, há uma inconstitucionalidade ab ovo, que a torna nula, írrita, nenhuma! Aliás, é incrível que, em havendo dispositivo constitucional tornando a fundamentação um direito fundamental, ainda convivamos – veja-se o fenômeno da ‘baixa constitucionalidade’ que venho denunciando há duas décadas – com dispositivos infraconstitucionais pelos quais sentenças contraditórias (sic), obscuras (sic) ou omissas (sic) possam ser sanadas por embargos...!”. STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Coleção o que é isto? Vol. 1. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. 650
Para Teresa Arruda Alvim Wambier é possível existir uma decisão melhor para cada caso. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade... ob. cit., p. 143. 651
As duas correntes são assim equacionadas por Lorenzetti: “nos casos difíceis há uma discricionariedade: Hart sustenta que ‘não há uma única resposta correta nos casos difíceis’, pelo que se produz uma ‘indeterminação normativa’. Nos casos difíceis há uma forma correta de decidir: nos casos difíceis o juiz não pode decidir como quiser, senão que deve ser guiado pelos princípios e aplicar o juízo de ponderação”. LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 163. 652
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 182. 653
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 182. 654
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 175. 655
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 182.
190
ao permitir decisões díspares a casos iguais, o sistema estimula o arbítrio e a parcialidade. Se o juiz pode atribuir significados distintos a mesma norma, o juiz parcial está livre para decidir como lhe convier, bastando justificar as suas ações arbitrárias. Porém, quando está sujeito ao seu passado, isto é, ao que já decidiu, o juiz não pode, ainda que deseje, ser parcial ou arbitrário. Fica-lhe vedado decidir casos iguais segundo o rosto das partes. Lembre-se que MacCormick, em Rethoric and the rule of law, enfatiza a relação entre a necessidade de dar tratamento igual a casos similares e o princípio da imparcialidade. Segundo o recém-falecido teórico escocês, cuja produção jurídica teve e tem grande impacto na teoria do direito e na filosofia jurídica, decorre do princípio treat like cases alike ‘a ideia de um sistema jurídico imparcial que faz a mesma justiça a todos, independentemente de quem foram as partes do caso e de quem está julgando656.
Para Ricardo Lorenzetti
Aqueles que sustentam que não é possível encontrar um critério correto dentro do sistema de regras e princípios argumentam que o juiz ou o estudioso tem uma concepção prévia que o inclina a decidir de acordo com ela, qualquer que seja a norma.
Sob a perspectiva da lógica jurídica, quem se baseia somente em paradigmas dá preeminência ao contexto sobre a norma. O procedimento habitual é subsumir uma expressão legal em um contexto que lhe dá sentido, e que não é o ordenamento, senão o modelo de decisão adotado pelo intérprete de antemão. Isso é possível em um sistema de direito aberto, onde existem vocábulos que podem ser interpretados em sentidos muito diferentes. Não há dúvida que isso existe e faz parte do modo como são tomadas as decisões657.
Por tais razões é que, em casos simples, o juiz deve procurar seguir o
dispositivo da lei, utilizando-se para fundamentar sua decisão, do itinerário
elementar de subsunção, fornecendo, por meio de argumentação sólida, as razões
para o entendimento seguro de seu ponto de vista conclusivo; já naqueles casos
onde é evidente a dificuldade de solução, em face dos conceitos normativos
indeterminados ofertados pelo texto legal, o juiz, que se pretenda imparcial, tal qual
exige uma sociedade pluralista e complexa como a nossa, deve evitar expor suas
convicções pessoais em prol daquelas oriundas da maioria; ou seja: deve procurar
656
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 175. 657 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 183.
191
com acuidade na jurisprudência dominante — resultante do melhor precedente — o
freio justo e adequado para a sua criação judicial.
4. CONCLUSÃO
A Revolução Francesa pretendeu estabelecer uma ordem jurídica estável
diante de um regime anterior em que as monarquias absolutas detinham a
supremacia completa da estrutura do Estado. Com base nas contribuições de
filósofos da estatura de Hobbes, Locke e Montesquieu, os revolucionários franceses,
impondo-se ao povo como seus verdadeiros representantes, instalaram-se com
força necessária no Parlamento, desenvolvendo, via de consequência, todo um
arcabouço jusfilosófico a fim de justificar o fortalecimento daquela Casa. A vontade
do povo, portanto, na palavra de seus representantes no Poder Legislativo é que
tinha que prevalecer. O enorme prestígio de então do Poder Legislativo é que vai
explicar o fetichismo à lei com que os juristas da época lidavam com a exegese.
O que se verifica, porém, especialmente com o fim da Segunda Grande
Guerra (1945), é a busca da sociedade contemporânea pela realização dos direitos
sociais diante de uma comunidade mundial já caminhando a passos largos para a
globalização, mas economicamente ainda abalada com o pós-guerra e incapaz de,
com as estruturas anteriormente concebidas, consagrar o tão desejado bem-estar
social, haja vista que o Poder Judiciário ainda se apresentava composto, em regra,
por juristas doutrinados para aplicar o direito de forma positivista.
A crise da dogmática jurídica, que até então se avizinhava, se instala por
completo, a ponto de se verificar com desconforto a tensão existente entre os
conceitos estabelecidos de segurança e certeza e o valor atualizado de justiça que a
sociedade moderna já de muito reclamava.
Em poucas palavras: a supremacia do Parlamento já não se concilia com a
superioridade normativa da Constituição
Assim, fixados tais parâmetros, ou seja, de uma Constituição que se
apresenta dotada de supremacia jurídica em relação ao que é produzido
ordinariamente pelo Poder Legislativo, não só no aspecto formal, mas igualmente no
192
plano material, força reconhecer que se tais postulados modernos não forem
observados, seguramente o serão pelos magistrados, que, na condição de agentes
políticos do Estado, estão encarregados de prestar resultados jurisdicionais, que já
não poderão mais ser resolvidos sem que se leve em conta novas concepções
hermenêuticas.
No tocante à hermenêutica, e considerando-se que a melhor forma de
aplicação do direito atualmente concretiza-se por meio de uma disputa de forças
entre diferentes correntes, pôde-se verificar uma variação entre extremos
radicalmente opostos durante os recentes séculos passados: de um lado a Escola
da Exegese, com todo o seu rigor positivista, como forma de transmitir segurança ao
direito; e de outro lado, movimentos como o do Direito Livre, por exemplo, muito
menos preocupado como a segurança, mas voltado para a valorização do sentido de
justiça no direito.
De outro norte, também restou pontuado que, no âmbito ainda da
hermenêutica jurídica, e em relação à prevalência de uma ou de outra teoria de
interpretação do direito, encontra-se subjacente uma disputa de forças entre os
poderes Legislativo e Judiciário, a ponto de se afirmar constantemente que
vivenciamos uma época de judicialização da política ou de politização do judiciário.
Em defesa da prevalência do Poder Legislativo está o discurso voltado para a
democracia, e porque não dizer, muitas vezes do positivismo puro e simples, sob a
alegação de que com isso se estaria privilegiando a vontade popular, por meio de
seus representantes legalmente eleitos pelo voto direto. Na segunda hipótese,
defende-se a maior ingerência do Poder Judiciário na condução política do Estado,
como guardião dos princípios plasmados na Constituição.
Isso tudo, porém, sem esquecer que, para alguns658, o que há por baixo de
toda essa polêmica é simplesmente uma crise do próprio Estado.
Na luta pela superação dessa crise, nota-se que o nosso sistema recursal não
está sendo mais reformado com base apenas nas razões de outrora (pacificação
definitiva do inconformismo natural do ser humano e controle dos desacertos dos
julgadores). Atualmente, mais do que nunca, o sistema recursal evolui visando
658
Cf. Eros Grau, em prefácio à obra de Lênio Streck: Hermenêutica jurídica e(em) crise...
193
atender a outros reclamos do legislador: uniformização da jurisprudência – respeito
aos precedentes – e celeridade dos julgamentos.
Frustrada a possibilidade dos códigos de acompanharem as constantes e
rápidas transformações da sociedade moderna, o legislador tem procurado, por meio
dos microssistemas jurídicos, regular de maneira satisfatória os principais pontos de
entraves sociais. Tais circunstâncias ressaltam o quanto o peso dos códigos foi
redimensionado nos sistemas jurídicos atuais. A conduta do legislador de levar
adiante a recodificação é notória. A maneira como o Poder Legislativo encontrou
para dispor a recodificação tem sido redigir os textos normativos com uma tessitura
aberta, cuja inovação técnica tem como mais destacado expoente as cláusulas
gerais.
O aumento de poder criativo concedido aos magistrados por obra da técnica
legislativa das cláusulas gerais exige a elaboração de um sistema que valorize no
mais das vezes, e em alguns casos até mesmo imponha, o respeito aos precedentes
e evite uma acentuada dispersão jurisprudencial, que em medida de disparidade não
contribui para o aperfeiçoamento do direito. Ainda, um controle das decisões
judiciais por meio dos precedentes, valorizando o princípio da segurança jurídica,
evita que, na maioria dos casos, os magistrados decidam com base na sua
convicção pessoal. Daí que, a despeito da tessitura das cláusulas gerais, o sistema
não tem tolerado mais decisões cuja convicção pessoal do magistrado vai de
encontro ao consenso socialmente aceito em relação a certos standards de
comportamento. Muitas vezes, aliás, esse consenso social já está sedimentado por
obra da jurisprudência.
A força com que a jurisprudência e as súmulas dos nossos tribunais
superiores têm atraído a racionalidade dos aplicadores do direito revela que o
princípio da legalidade não subsiste único como primado de interferência na vida do
cidadão e da própria administração pública, na medida em que as decisões
baseadas nos precedentes obrigatórios também produzem direitos e obrigações
para pessoas naturais ou jurídicas, públicas ou privadas.
194
Todo esse desenvolvimento jurídico como pano de fundo acentua a noção de
que estamos vivenciando uma rota de convergência entre as duas principais famílias
jurídicas do ocidente (civil law e common law) suficiente para admitir-se a
necessidade de uma nova teoria das fontes do direito.
Observa-se ainda na comunidade jurídica atual que os precedentes judiciais
têm sido uma ferramenta importante para o desenvolvimento e agilidade de nosso
sistema jurídico. Os juízes têm se utilizado bastante dos precedentes para
fundamentar seus julgados, e, ao que tudo indica, ao menos no plano das
aparências, na mesma medida e proporção com que os advogados têm se socorrido
das jurisprudências para embasar suas peças processuais, notadamente os
recursos.
Na prática, porém, sem maiores esforços, o que se verifica é que essa
utilização generalizada dos precedentes pelos aplicadores do direito não tem
produzido, no mais das vezes, a resposta adequada aos reais propósitos de
fundamentação ou embasamento do direito perseguido. Convém não deslembrar
que uma das funções do princípio da motivação das decisões judiciais é inibir uma
descontrolada inquietação criativa, além de exigir do julgador a exposição, no
julgado, de uma racionalidade argumentativa suficiente para dar a coerência e a
conformidade necessária da hipótese discutida com o sistema jurídico.
Por um lado, essa utilização exagerada dos precedentes pelos aplicadores do
direito tem difundido a falsa noção, de que qualquer um – quem sabe até mesmo, no
futuro, um supercomputador – pode fazer às vezes de um juiz ou advogado
bastando que, para tanto, tenha domínio das ferramentas eletrônicas dos sites de
busca de jurisprudências dos tribunais e, concomitantemente, tenha uma razoável
ideia do assunto posto em debate.
Por outro lado, embora o sistema jurídico se defenda da excessiva dispersão
jurisprudencial apresentando mecanismos processuais de respeito aos precedentes,
a facilidade com que os aplicadores do direito têm, nos dias atuais, de utilizá-los faz
com que a estes sejam dadas utilidades meramente formais, na maioria dos casos.
É dizer, em regra, o que se tem visto é o magistrado fundamentar sua decisão sem
ao menos despender uma linha sequer de argumentação jurídica para embasar suas
razões de convencimento, procurando via precedentes os atalhos mais curtos para
195
resolver a ação, escolhendo sem critério algum, a jurisprudência que entende se
adapte melhor ao caso posto na lide – reduzindo o processo, com esse proceder
assistemático, à declaração de uma mera tese jurídica.
Do “boca da lei”, o magistrado passou a ser “o boca da jurisprudência” pura e
simplesmente.
Tal vezo não tem contribuído em nada para o aperfeiçoamento dos institutos
postos pelo legislador para combater a dispersão jurisprudencial, tampouco para
desenvolver a doutrina do stare decisis no nosso sistema jurídico, e, muito menos,
para o respeito e observância do princípio da motivação das decisões judiciais.
Princípio da motivação das decisões judiciais, por sinal, que tem sido cada vez mais
valorizado pelo Estado Democrático de Direito, em decorrência da necessidade
evidente de que os juízes, através de suas decisões, se dirijam com clareza não
somente às partes e aos juízes de segundo grau, mas também a toda sociedade,
que poderá, como isso, manter controle eficaz sobre a imparcialidade do magistrado.
Naquelas hipóteses de casos de simplicidade indiscutível, melhor do que
transformar um clique de um mouse em precedente, talvez seja aplicar o julgador
pura e simplesmente à letra da lei, utilizando-se mesmo do raciocínio silogístico,
desenvolvendo uma argumentação sólida e consistente em relação aos fatos e às
provas constantes dos autos, deixando para um segundo estágio o emprego do
precedente como forma de controle da sua própria decisão, nos casos, por óbvio,
em que o legislador não optou por confeccionar o texto legal com conceitos
indeterminados ou cláusulas gerais, evitando assim a cultura jurídica predominante,
especialmente no Brasil, de decidir tão somente reproduzindo-se outros precedentes
tribunalísticos.
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