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1 INTRODUÇÃO A sociedade moderna foi modelada pelos homens servindo-se do Direito para se organizar. Já o Direito, ao menos no estágio atual de nossa civilização, pressupõe a existência ainda do Poder Legislativo, como órgão elaborador principal da produção normativa. Ao mesmo tempo, no Estado Democrático de Direito, a própria ordem jurídica impõe limites à atuação dos poderes instituídos, definindo seus direitos e obrigações 1 . Firmada basicamente sobre tais estruturas, com algumas variações mundo a fora, a nossa sociedade contemporânea, constantemente em mutação de valores, já não desfruta da certeza dessa concepção como forma adequada para solucionar os seus conflitos no âmbito do Poder Judiciário. Não ao menos na concepção rígida de separação dos poderes instituída por John Locke, no século XVII e formatada no século seguinte por Montesquieu. Atualmente, a doutrina passa a discutir a necessidade de elaboração de uma concepção nova de cultura política capaz de racionalizar de forma mais eficaz a aplicação do Direito. Dois aspectos, por exemplo, dão dimensão ingente a essa questão: um está no fato de que “ao legislador é praticamente impossível prever todas as hipóteses de aplicação das leis, quer por limitações de ordem técnica, quer por nuanças de ordem pública” 2 ; outro é que, para acompanhar a evolução da sociedade, sem ter que vir a alterar constantemente a norma legislada, foram multiplicadas pelo Poder Legislativo as situações de amplitude e indeterminação dos textos legais. Não por menos, tais fatos passaram a exigir dos magistrados postura diversa da que eram costumeiramente chamados a tomar perante os conflitos, tanto que “a esfera judicial vem apresentando cada vez maior articulação com a esfera política, 1 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 31 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 129. 2 D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Brasília, v.13, n. 7, p. 15-27, jul./2001, p. 19.

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INTRODUÇÃO

A sociedade moderna foi modelada pelos homens servindo-se do Direito para se

organizar. Já o Direito, ao menos no estágio atual de nossa civilização, pressupõe a

existência ainda do Poder Legislativo, como órgão elaborador principal da produção

normativa. Ao mesmo tempo, no Estado Democrático de Direito, a própria ordem

jurídica impõe limites à atuação dos poderes instituídos, definindo seus direitos e

obrigações1.

Firmada basicamente sobre tais estruturas, com algumas variações mundo a

fora, a nossa sociedade contemporânea, constantemente em mutação de valores, já

não desfruta da certeza dessa concepção como forma adequada para solucionar os

seus conflitos no âmbito do Poder Judiciário. Não – ao menos na concepção rígida

de separação dos poderes instituída por John Locke, no século XVII e formatada no

século seguinte por Montesquieu. Atualmente, a doutrina passa a discutir a

necessidade de elaboração de uma concepção nova de cultura política capaz de

racionalizar de forma mais eficaz a aplicação do Direito.

Dois aspectos, por exemplo, dão dimensão ingente a essa questão: um está no

fato de que “ao legislador é praticamente impossível prever todas as hipóteses de

aplicação das leis, quer por limitações de ordem técnica, quer por nuanças de ordem

pública” 2; outro é que, para acompanhar a evolução da sociedade, sem ter que vir a

alterar constantemente a norma legislada, foram multiplicadas pelo Poder Legislativo

as situações de amplitude e indeterminação dos textos legais.

Não por menos, tais fatos passaram a exigir dos magistrados postura diversa da

que eram costumeiramente chamados a tomar perante os conflitos, tanto que “a

esfera judicial vem apresentando cada vez maior articulação com a esfera política,

1 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 31 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 129.

2 D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito. Revista do Tribunal Regional Federal da

1ª Região. Brasília, v.13, n. 7, p. 15-27, jul./2001, p. 19.

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originando um intenso debate sobre o alcance e possibilidades dessas conexões” 3,

haja vista um acentuado crescimento do papel do Estado, em especial na área

social, redundando na criação, por via legislativa, de inúmeros direitos sociais, os

quais têm exigido permanente ação do Estado para sua implementação4.

Mas não é só. No âmbito da iniciativa privada, em que se observa uma dinâmica

social intensa, com novas fórmulas de negócios jurídicos surgindo a cada dia,

também o Poder Judiciário tem despendido um esforço interpretativo intenso no

sentido de adequar as normas existentes a situações conflituosas totalmente

inéditas5. Assim, a atividade judicial na forma concebida nos séculos passados,

porque já não mais responde aos anseios sociais na plenitude, necessita de uma

adequação à contemporaneidade, para que possa resguardar os direitos dos

cidadãos, dirimindo os conflitos com a efetividade que o ordenamento jurídico

moderno impõe.

Esse novo instigante e cenário impõe ao juiz a criação do direito na medida do

caso concreto posto à sua apreciação. Mas seja feita a ressalva: a doutrina ainda

não chega a dizer com fervor se as circunstâncias contextuais já autorizam o

magistrado a criar a norma jurídica em oposição clara ao texto legislado. Confere-

lhe, apenas, a opção para extrapolar os estritos limites da lei em sentido formal,

quando necessária tal postura diante do caso concreto. É nesse propósito que se

discute o ativismo judicial e a politização do Direito – ou a juridicização da Política –

como binômios efetivamente atuais na agenda dos debates no âmbito da filosofia do

direito6.

Nesse contexto sociopolítico, o tema da criação judicial do direito redunda em

debate fértil na doutrina, mormente quando não se desconhece que a temática traz

no seu bojo questões ainda não completamente dirimidas. Podem ser citados como

exemplos dessa aflição os seguintes questionamentos: a criação judicial é legítima?

Ou: qual seria a origem da legitimação de referido procedimento? E mais: ainda se

pode falar, nos dias atuais, que a criação judicial do direito afronta o princípio da

3 MONTEIRO, Cláudia Sevilha. A racionalidade da decisão judicial política. Belo Horizonte:

Universidade Federal de Minas Gerais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 96, p. 191-217, jul./dez. 2007, p. 193. 4 D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito.... ob. cit., p. 19.

5 MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais. 2. ed. Rio de Janeiro:

Renovar, 2000, p. 18. 6 MONTEIRO, Cláudia Servilha. A racionalidade da decisão judicial política.... ob. cit., p.194.

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separação dos Poderes? Além de tudo, qual a influência da criação judicial do direito

na eterna polêmica entre dois aspectos filosóficos que, aparentemente, são

antagônicos: a segurança e a justiça?

Tais questões serão abordadas na primeira parte deste estudo – embora longe

de se pretender o esgotamento do tema – mas sempre com o foco no papel que a

atividade judicial hoje tem nesse cenário de crise contemporânea, motivada pelo

inconformismo que a sociedade demonstra com as estruturas predominantemente

montadas há séculos para a realização do direito.

Já na segunda parte do trabalho, a pretensão é demonstrar como os temas

acima delineados têm contribuído para esquentar o debate sobre a crise da teoria

das fontes do direito. Nos dias atuais, ainda se discute se a jurisprudência é fonte ou

não do direito. Antes de se chegar ao final do segundo capítulo, serão analisados

alguns outros temas que sugerimos como influxos dessa polêmica. Exemplo: tomou-

se por partida o processo de codificação. Os demais processos – descodificação,

microssistemas e a recodificação do direito – foram igualmente analisados, bem

como suas consequências e derivativos.

No que diz respeito à elaboração dos textos normativos, sabe-se que o Poder

Legislativo tem atualmente abusado das cláusulas gerais e conceitos

indeterminados, demonstrando uma postura clara de permitir uma flexibilização da

atuação do juiz na produção jurisdicional, em prol de uma melhor difusão do

sentimento de justiça na sociedade. Essa utilização maciça, pelo legislador, de

cláusulas gerais, foi observada como fator preponderantemente ligado à importância

que o precedente passou a ter na fundamentação da decisão judicial.

No último estágio do capítulo, ainda que de forma superficial, tratou-se de

apontar como a reestruturação do nosso sistema recursal tem apresentado um viés

diferenciado do de outrora. A intenção básica das reformas processuais levadas a

efeito não é apenas aperfeiçoar a forma de acesso ao segundo grau, por conta de

uma natural irresignação do ser humano7.

7 Melhor explicando: a principal – ou a natural – razão de ser dos recursos sempre foi o de pacificar o

inconformismo do ser humano. Nas palavras de Marinoni, a irresignação quanto ao teor de uma sentença proferida por um magistrado “é algo bastante natural, e, por isso mesmo, os sistemas processuais normalmente apresentam formas de impugnação das decisões judiciais, autorizando a

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Além dessa principal razão, o sistema recursal também foi estruturado como

um mecanismo de controle de erros. Não era só a insatisfação do jurisdicionado

contra a tese escolhida pelo magistrado na solução do caso concreto que se tornou

a razão de ser da existência dos recursos, foi também o socorro daquelas situações

onde havia defeito claro na prestação jurisdicional. Como qualquer pessoa, o

julgador pode cometer equívocos, sendo necessário que o ordenamento jurídico

apresente mecanismos de controle próprios e eficazes a fim de dar solução também

a esses indesejáveis desacertos.

Todavia, acontece que a objetivação para que os juízes promovam decisões

mais justas tem gerado um efeito obstativo do sucesso de outro anseio do

jurisdicionado que é a obtenção de respostas judiciais céleres para as suas lides. Na

prática judiciária é que se verifica o quanto é difícil obter, de maneira rápida,

decisões boas e bem fundamentadas quando o magistrado está diante da aplicação

de uma cláusula geral, por exemplo.

Não raro, quando boas, as decisões demoram a vir. E quando são rápidas,

geralmente pecam na consistência da fundamentação8.

Compatibilizar esses dois objetivos não tem sido tarefa das mais fáceis para

os que fazem o Poder Judiciário. O primeiro objetivo (a fundamentação precisa)

exige do julgador tempo e apuro no seu ofício, enquanto o segundo (celeridade)

impede que o próprio magistrado crie um filtro natural em relação ao primeiro, que

terá que ser feito irremediavelmente pelo segundo grau. Eis aí um paradoxo: uma

vez que a garantia constitucional de acesso ao Judiciário exige que as portas dos

tribunais estejam escancaradas no seu piso inferior, enquanto no andar de cima o

revisão dos atos judiciais”. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 541. 8 Vários juristas demonstram preocupações próximas com as colocações postas acima. Como

exemplo, Rui Portanova e Ari Pargendler expõem, respectivamente, o seguinte: 1)“Seja como for, não parece próxima a solução do debate em torno do que seja melhor para o sistema processual: o risco de decisões irrecorríveis, porém céleres e com maior proximidade entre o julgador e a parte; ou o risco de decisões com julgadores distantes (no tempo e no espaço) das partes, mas resguardado o direito natural de inconformidade do prejudicado”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 7. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 263. 2) “Há uma tensão muito grande entre qualidade e efetividade. Se você quer um Judiciário com

qualidade, perde em rapidez. Se você quer apenas rapidez, então a gente faz como em alguns países onde primeiro se corta a mão de depois vê se a pessoa furtou ou não”. <http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=24236>. Acesso em 05.07.2011.

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ajuste é para que a serventia se afigure sovina, sob pena da justiça demorar

demasiadamente para ser ofertada a quem de fato a merece.

Tal fato é fácil de verificar pela forma como o legislador elaborou a estrutura

vertical dos direitos. Isto é, para a variedade de direitos ele pretendeu fosse

correspondente um número de ações (p. ex., art. 83 do Código de Defesa do

Consumidor e art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988). Já em relação

ao exercício das faculdades recursais a possibilidade prática dessa abertura, ou

melhor, a relação entre demandas propostas e recursos interpostos não teve

resposta na mesma proporcionalidade. Talvez isso se explique pelo fato de que ao

jurisdicionado já foi concedida, no primeiro grau, uma resposta ao seu pleito. Daí

então, em prol de uma agilização, o direito de recorrer tendeu a ser exposto em lei

de maneira bem menos flexível por parte do legislador (por esse ângulo pode ser

explicada a previsão de recursos, em numerus clausus, no art. 496 do Código

Processo Civil) 9.

Mesmo delimitado o número de instrumentos recursais, o congestionamento

das vias do Poder Judiciário no segundo grau continua intenso. Tal panorama

justifica o motivo de a maior parte das últimas reformas do Código de Processo Civil

ter se concentrado no sistema recursal. Segundo noticia Fabiano Carvalho, “dos

setenta e dois artigos dedicados à tábua dos recursos, nada mais, nada menos que

quarenta e sete artigos foram reformados, desde o início da vigência do CPC” 10.

Por meio da promulgação da Lei nº 9.756/98, o Poder Legislativo ampliou

ainda mais os poderes do relator indubitavelmente buscando com essa medida

promover uma tutela jurisdicional mais célere ao jurisdicionado. Muito embora tenha

sido essa pretensão do legislador, não resta dúvida que outro propósito tem se

revelado marcante no cenário dessas reformas: a uniformização da jurisprudência11.

9 MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 2. ed., rev. e atual.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 281. 10 CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos: art. 557 do CPC. São Paulo: Saraiva, 2008,

p.1. 11

“Nessa última hipótese – o agravo nos Tribunais – esse recurso acaba operando também como

fator de uniformização da jurisprudência, na medida em que possibilita que o entendimento esposado por um órgão monocrático do Tribunal (Relator, Presidente, Vice-Presidente), venha a ser debatido pelo colegiado, assim contribuindo para a estabilização interna da jurisprudência”. MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p. 281.

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Essa tendência do legislador para ofertar ao jurisdicionado uma jurisprudência

uniforme12, não deixa de ser um claro reflexo do reconhecimento da força normativa

com que os precedentes vêm se revestindo gradativamente em nosso sistema

jurídico13.

Nesse panorama, dois guiões – uniformização da jurisprudência e respeito ao

precedente – estão sendo apresentadas paralelamente ao nosso sistema jurídico, de

tal forma que, quando o primeiro é observado, inevitavelmente vislumbra-se o

segundo.

Seja como for, é de se observar a autonomia ou o poder regencial com que

alguns artigos, postos no Código de Processo Civil, deram ao relator do processo –

é o caso do atual art. 557, por exemplo, que confere ao relator do recurso poderes

não só para obstar o processamento do recurso, mas para julgá-lo de imediato, sem

que o colegiado participe da decisão. Se, em algum período remoto de nossa

história processual, ainda se negava com veemência a força normativa dos

precedentes, hoje, com a redação desse e de outros mais dispositivos de nosso

ordenamento processual, tal afirmação repercute no mínimo desatenta de nossa

realidade.

Observe-se, ainda, o que diz o Superior Tribunal de Justiça a respeito do

tema:

12 Já em 2002, assim se manifestava Cândido Dinamarco: “A crescente opção pela singularidade no julgamento em diversas situações representa uma legítima tentativa de inovar sistematicamente na luta contra a lentidão dos julgamentos nos tribunais. Sabe-se que o aumento do número de juízes não resolve o problema, como não resolveu no passado remoto e próximo. É preciso inovar sistematicamente. O que a Reforma e o que agora vem de fazer a lei de 1998 representa uma escalada que vem da colegialidade quase absoluta e aponta para singularização dos julgamentos nos tribunais, restrita a casos onde se prevê que os órgãos colegiados julgariam segundo critérios objetivos e temperada pela admissibilidade de agravo dirigido a eles”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 5 ed., vol 2. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 1104. 13

Para alguns, como Eduardo Parente, o legislador, com as reformas na estrutura recursal, procurou

acomodar o espírito dos jurisdicionados com a força vinculadora das súmulas: “Na verdade, como dito, pouco a pouco o legislador vinha acostumando o espírito da comunidade jurídica (e, principalmente, dos inúmeros contrariados com o instituto) à idéia final de sumular com tenacidade. Essa concepção era de certa forma encoberta sob a idéia geral de poderes do relator. Claro que a intenção do legislador foi também, tecnicamente, o que está óbvio na lei, ou seja, desafogar os Tribunais e agilizar o procedimento recursal (outro braço do movimento geral de potencializar o armamento judicial – que, por vezes, parece desconsiderar ser da natureza do due process of law a premissa de controlar – limitar – o poder estatal)”. PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização. São Paulo: Atlas, 2006, p.76.

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A reforma introduzida pela Lei nº 9.756/98, que deu nova redação ao

artigo 557 da Lei Processual Civil, teve o intuito de desobstruir as

pautas dos tribunais, dando preferência a julgamento pelas turmas

apenas dos recursos que realmente reclamam apreciação pelo órgão

colegiado (STJ - REsp 108.4437, Rel. Min. Luiz Fux, j. 12.05.2009,

Primeira Turma, DJe 03.06.2009).

O poder conferido ao relator, pela novel sistemática do CPC,

visa desestimular o abuso do direito de recorrer, mercê de

autorizar o relator a evitar que se submeta ao ritualismo do

julgamento colegiado causas manifestamente insustentáveis (STJ-

AgRg no Ag 800.650/MG, Rel. Min. Castro Filho, j. 09.08.2007,

Terceira Turma, DJ 10.09.2007).

Os princípios da celeridade e economia processual apontam as

hipóteses em que os recursos podem receber decisões

monocráticas do relator, que age como delegado do órgão

colegiado (STJ – AgRg no AgRg no REsp 1.038.446/RG, Rel. Min.

Luiz Fux, j. 20.05.2010, Primeira Turma, DJ 14.06.2010).

O que se verifica então é que o nosso sistema recursal está conseguindo se

desenvolver, além daqueles dois objetivos historicamente apresentados pela

doutrina (revisão e controle), com outros bem delineados, já que o foco do

legislador, nos dias atuais, está insistentemente voltado à uniformização da

jurisprudência, ao respeito aos precedentes, e à busca célere dos julgamentos.

Todo esse processo de reforma do Código de Processo Civil, que norteia a

vontade do legislador em prol da uniformização da jurisprudência – a fim de

proporcionar celeridade à prestação jurisdicional e segurança jurídica à sociedade –,

termina colocando, como na verdade coloca, as decisões dos tribunais como centro

das expectativas do sistema jurídico, a ponto de se tornar premente a pesquisa

sobre os principais motivos que estão por trás dessas reformas legislativas.

Foi com esse pano de fundo que se principiou a análise dos tópicos da última

parte do trabalho.

Portanto, após a abordagem de temas que têm relação direta com o assunto

principal do trabalho, pretendeu-se, no último capítulo, debater sobre algumas

questões atuais: a importância que os julgadores estão dando aos precedentes no

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instante de fundamentar a sentença e a conseqüência dessa exagerada utilização, a

ponto de, no mais das vezes, violar-se o princípio da motivação da decisão judicial.

É verdade que em todos os sistemas jurídicos as decisões judiciais são

fundamentadas, não só em normas, mas também em precedentes14

.

Ocorre que, muito embora tradicionalmente o sistema jurídico brasileiro

integre a família do civil law, de origem romano-germânica15, onde o magistrado

geralmente se socorre do dispositivo legal no instante de fundamentar a decisão,

ninguém desconhece a tendência atual, cada vez mais marcante em nosso

Judiciário, de se utilizar precedentes no auxílio desse processo decisório.

Decerto que o emprego dos precedentes sempre fez parte de nosso cotidiano

forense. Todavia, não raro, o que se tem observado nos dias atuais são sentenças

fundamentadas unicamente em outras decisões judiciais, ou, o que parece mais

danoso, em ementas, no mais das vezes, para espanto de todos, transcritas sem

sua completude, numa pretensão de se reduzir o caso em discussão em simples

tese jurídica. Muita vez, nessas hipóteses, nem uma linha sequer da fundamentação

é destinada a citar uma norma legal, muito menos um argumento de doutrina. Esse

fator, como bem adverte Michele Taruffo, condiciona o desprezo atual dos

magistrados pela argumentação jurídica, com base na estrutura silogístico-dedutiva,

impondo uma fundamentação jurídica nos moldes da estrutura tópica, no sentido

estudado por Viehweg16.

A propósito ainda desse posicionamento, Michele Taruffo17 dá aviso de que

pesquisas, realizadas em diversos países, demonstram que essa tendência à

fundamentação, com base apenas no precedente judicial, longe de se limitar aos

ordenamentos filiados ao common law, alastra-se por vários sistemas, em especial

14

TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. In: <http://cadernodeestudosjurídicos.blogspot.com/2010/03/precedente-e-jurisprudencia.html>. Acesso em 14.12.2010. Tradução Rafael Zanatta, p.1. 15

Segundo Ovídio Baptista: “Embora nos consideramos descendentes do direito romano, que muito ainda acrescentam do direito romano-germânico, a verdade é que estamos a anos-luz do legítimo direito romano clássico. Somos muito mais romano-cristãos, do período bizantino, do que autênticos descendentes do direito romano clássico. As diferenças mostram-se claras quando, na experiência de nossos tribunais – comparam-se as fontes do direito, daquele período – no qual não existiam ou, no máximo, eram muito raras, as leis escritas – e a realidade legislativa moderna, que nos envolve”. SILVA, Ovídio Baptista da. Justiça da lei e justiça do caso. Disponível em

<http://www.baptistadasilva.com.br/artigos.htm>. Acesso em 02.01.2011. 16 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência... ob. cit., p.1. 17

TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência... ob. cit., p.1.

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naqueles em que predomina a tradição romano-germânica. Essa tendência,

portanto, não está sendo observada unicamente em nosso sistema jurídico, daí tal

fator não se dever só ou especificamente a um sincretismo de cunho particular entre

as duas principais famílias.

A importância da análise dessa problemática tem razão de ser em face da

modificação que os precedentes provocam na estrutura da argumentação jurídica. É

dizer, a utilização dos precedentes na fundamentação da sentença chega, em

muitos casos, a alterar a base tradicional da argumentação jurídica do sistema

romano-germânico calcada na fórmula silogístico-dedutiva18.

No nosso sistema jurídico, algumas alterações processuais recentes levadas

a cabo pelo legislador contribuem decisivamente para a constatação da tendência

referida. Com efeito, os poderes conferidos ao relator para “negar seguimento a

recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto

com súmula ou jurisprudência” (art. 557, caput, do Código de Processo Civil), ou

mesmo ao magistrado de piso, “quando a matéria controvertida for unicamente de

direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros

casos idênticos...” (art. 285-A, do Código de Processo Civil), são apenas dois

exemplos entre outras situações semelhantes, facilmente verificáveis.

Interessou, pois, neste estudo, abordar basicamente a dimensão dos efeitos

deletérios na argumentação jurídica que a utilização dos precedentes, em alguns

momentos de prática excessiva, hoje exerce na atuação dos aplicadores do direito,

em especial dos magistrados, no instante de proferir suas sentenças, a ponto de se

poder dizer que o julgador deixou de ser “o boca da lei” para ser simplesmente “o

boca da jurisprudência”.

18

Segundo Michele Taruffo: “Os precedentes representam de fato os topoi (categorias que ajudam a delinear a relação entre as idéias, do grego topos) que orientam a interpretação da norma na complexa fase dialética da Rechtsfindung, e dão suporte à interpretação adotada como válida no âmbito da argumentação justificativa (por exemplo, na motivação da sentença)”. TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência... p.1.

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1. A DECISÃO JUDICIAL COMO ATIVIDADE CRIATIVA

1.1 O cenário atual

Fincado principalmente nas raízes da teoria da tripartição dos Poderes

(Montesquieu), a atividade judicial, durante vários séculos, limitou-se simplesmente

a esclarecer ao jurisdicionado o que se encontrava expresso na lei (“boca da lei”)19.

Com o transcorrer da história, diante de uma realidade social em constante

mutação, e onde as leis genericamente formuladas nem sempre demonstram

aptidão para instrumentalizar eficazmente a fundamentação das sentenças, a

atividade jurisdicional tornou-se ato de relativa complexidade, sendo, hoje, um

eterno e instigante processo de busca de uma decisão adequada ao caso concreto.

Para tanto, os aplicadores do direito passaram a utilizar-se dos meios

interpretativos disponíveis.

Algumas teorias hermenêuticas foram idealizadas para fornecer aos magistrados

subsídios suficientes para aplicação da Justiça ao caso em debate (escolástica ou

dogmática, v.g.). Essa atividade interpretativa, em um primeiro momento, realizou-se

“na aplicação das fórmulas hermenêuticas na análise de determinado dispositivo

legal (visão da doutrina tradicional)” 20

. Todavia, verificou-se, com o passar do

tempo, que interpretar é algo diferente de criar o direito - embora ao criar o direito o

aplicador da norma certamente utiliza-se de processos hermenêuticos os mais

diversos.

Interpretar é explicar, esclarecer, dar o significado de vocábulo, atitude ou

gesto; reduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido

19 “A segurança psicológica do indivíduo – ou sua liberdade política – estaria na certeza de que o

julgamento apenas afirmaria o que está contido na lei. Ou melhor, acreditava-se que, não havendo diferença entre o julgamento e a lei, estaria assegurada a liberdade política. Não foi por outro motivo que Montesquieu definiu o juiz como a bouche de la loi (a boca da lei). Ainda que admitindo que a lei pudesse ser, em certos casos, muito rigorosa, conclui Montesquieu, no seu célebre Do Espírito das leis, que os juízes de uma nação são ‘mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor”. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 30. 20 GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa e realização do direito: Bagaço, 2000, p.22.

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verdadeiro de uma norma expressa; extrair de frase, sentença ou lei, tudo o que na

mesma se contém21.

Destarte, criar o direito é algo que vai além da interpretação pura e simples. Não

é ato que se encerra quando o magistrado esclarece o sentido da lei, ou quando

demonstra como há de ser aplicada uma norma pronta ou acabada, mas trata-se de

ato edificativo do Direito, uma construção nova, algo não pensado, podendo essa

criatividade ser maior ou menor, dependendo das peculiaridades do caso concreto22.

Seguindo essa linha de raciocínio, Elival da Silva Ramos entende que há, sim,

diferença entre interpretação – que ele chama de criativa – para criação judicial. A

interpretação criativa estaria presa aos parâmetros normativos e o aplicador do

direito utilizaria, nesse caso, a interpretação sistemática e as técnicas de

interpretação para adequar a norma à realidade social. Já a criação judicial (ou

ativismo, como ele pretende atribuir ao fato) é quando o tribunal ultrapassa esse

limite do texto normativo e passa a criar o direito em si23.

Modernamente, já não mais se admite que o juiz tenha uma atuação mecânica

ao julgar. Rejeita-se assim, hoje em dia, a noção dogmática clássica de que ao juiz

somente é dado expressar o sentido da norma, adequando-a, quase que

matematicamente, ao caso concreto.

Ora, se nos dias atuais prevalece na doutrina que esse deve ser o

posicionamento, ou melhor, que essa é uma função inerente à magistratura,

algumas questões se impõem, como, por exemplo: (i) em que dimensão essa

postura hermenêutica dos magistrados, em especial dos componentes dos Tribunais

Superiores, não arrosta o princípio da separação dos poderes?; e (ii) de onde vem a

legitimidade do magistrado para criar o Direito?

21

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 09. 22 GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 24. 23

RAMOS, Elival da Silva: Consultor Jurídico. In: <http://www.conjur.com.br/2009-ago-01/entrevista-elival-silva-ramos-procurador-estado-sao-paulo>. Acesso em 27.06.2010.

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1.2 O Estado Democrático de Direito

Convém analisar no cenário contemporâneo, o locus onde todas essas

polêmicas restaram instaladas: o Estado Democrático de Direito.

Deveras, as sucessivas quedas dos regimes monárquicos na Europa,

perceptíveis, basicamente, a partir do Século XVIII, alteraram o panorama legislativo

em face das Constituições. O que se observava antes era uma sobrevalorização da

supremacia da lei e do Parlamento produzindo uma inevitável debilidade do valor

jurídico da Constituição, que, naquele contexto histórico, não se encontrava

protegida dos excessos do Poder Legislativo24. Naquela quadra histórica, a função

de interpretação da lei era vista, na essência, como uma postura de coroamento da

função legislativa, de sorte que pensar em controle judicial de constitucionalidade,

por exemplo, “era tão teratológico que nem sequer se estimou necessária a sua

proibição específica, bastando a vedação genérica, em outros preceitos normativos

da época, a que o juiz deixasse, por qualquer motivo, de conferir aplicação às leis”

25.

Em síntese,

O judiciário era tido como órgão destinado a realizar a aplicação mecânica da lei, por meio de um silogismo, no qual a premissa maior era a lei, a menor, os fatos, daí redundando numa construção única e inexorável – a decisão judicial 26.

É bom, porém, já nesse passo, dar atenção para a afirmação de Marinoni de que

supremacia do Parlamento Britânico tinha significado “completamente distinto ao da

supremacia do Legislativo e ao do princípio da legalidade, tais como visto pela

Revolução Francesa”27 e explica por que28:

24

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 24. 25 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação... ob. cit., p. 26. 26

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação... ob. cit., p. 25. 27

MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedente no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais. Revista de Processo, ano 34, n. 172, jun./2009, p. 194. 28

MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law... ob. cit., p. 194-195.

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...ao invés de pretender instituir um novo Direito mediante a afirmação da superioridade – na verdade absolutismo – do parlamento, nos moldes da Revolução Francesa, a Revolução Inglesa instituiu uma ordem em que os poderes do monarca estivessem limitados pelos direitos e liberdades do povo inglês.

....

O ordenamento da Revolução Inglesa caracterizou-se pela submissão do poder do monarca, em seu exercício e atuação, a determinadas condições, assim como pela existência de critérios reguladores da relação entre o parlamento e o rei.

.....

Embora a Revolução Inglesa tenha vencido o absolutismo, com ela o parlamento não assumiu o poder absoluto, como aconteceu na Revolução Francesa.

....

Assim, enquanto na França o parlamento revestiu-se do absolutismo por meio da produção da lei, na Inglaterra a lei representou, além de critério de contenção do arbítrio real, um elemento que se inseriu no tradicional e antigo regime do common law.

...

Como a lei era imprescindível para a realização dos escopos da Revolução Francesa, e os juízes não mereciam a sua confiança, a supremacia do parlamento aí foi vista como sujeição do juiz à lei, proibido que foi, inclusive, de interpretá-la para não distorcê-la e, assim, frustrar os objetivos do novo regime. Ao contrário, tendo-se em vista que, na Inglaterra, a lei não objetivava expressar um direito novo, mas representava mero elemento introduzido em um direito ancestral — que, antes de merecer repulsa, era ancorado na história e nas tradições do povo inglês —, e ainda que o juiz era visto como “amigo” do poder que se instalara — uma vez que sempre lutara, misturado ao legislador, contra o absolutismo do rei —, não houve qualquer intenção ou necessidade de submeter o juiz inglês à lei.

Durante a história do pensamento iluminista, então, não havia razão para se

falar em uma Constituição com poder normativo. As constituições iluministas eram

tratadas pelo poder político ou por quem detivesse nas mãos esse poder

(imperadores, etc.) como figuras ornamentais. Somente com o advento do Estado

Democrático de Direito e, via de consequência, da inserção nas constituições do

controle constitucional das normas, é que se pôde começar a falar propriamente em

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jurisdição constitucional, e, finalmente, dar-se ênfase ao debate sobre a criação

judicial do direito29 .

José Afonso da Silva adverte para o fato de que democracia é um conceito muito

mais abrangente do que o Estado de Direito. A democracia é a realização de valores

(igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, que surgiu

como expressão jurídica da democracia liberal 30. Logo, o Estado Democrático de

Direito concilia os princípios do Estado Democrático e o do Estado de Direito, “não

como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela

um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente de

transformação do status quo” 31.

Tratando em passant pelo processo evolutivo do Estado, ninguém desconhece

que antes das sociedades democráticas atingirem o atual estágio, prevaleceu

primordialmente a noção de um Estado liberal, cujas características marcantes eram

a submissão à lei, a separação dos poderes, e o enunciado e garantia dos direitos

individuais32. Mas como o intento do Estado liberal era basicamente combater a

teoria absolutista, evidentemente que, de resto, não produziu justiça social

desejável, já que o seu individualismo excessivo provocou imensas injustiças33. Eis

como se manifesta Carlos Alberto Simões de Tomaz sobre esse aspecto:

O Estado liberal, na verdade, revela o que se convencionou denominar “Estado policial”, porque apenas reconheceu, fazendo vazar em normas jurídicas, as chamadas liberdades públicas, não se preocupando em estabelecer meios para que os direitos reconhecidos fossem efetivados. Com isso, o Estado assumia uma atitude passiva, abstendo-se de prestações voltadas para imprimir

29

Essa afirmação tem um equacionamento interessante no tempo feito por Dimitri Dimoulis, para

quem “uma simples pesquisa indica que o controle judicial de constitucionalidade realizou-se, de maneira consolidada, em países europeus já no século XIX. A possibilidade de afastar leis inconstitucionais foi firmada na Grécia e na Noruega tendo ocorrido várias declarações de inconstitucionalidades apesar da falta de explícita previsão constitucional nesse sentido. Em paralelo, na Suíça, a Constituição Federal de 1874 previa explicitamente o controle de constitucionalidade das leis estaduais (cantonais) pelo Tribunal Federal, mas não autorizava o controle das próprias leis federais, introduzindo um controle judicial de constitucionalidade de alcance limitado...da mesma maneira, é notório que, no Brasil, o controle de constitucionalidade foi introduzido como controle difuso desde a proclamação da República”. DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMENTO, Daniel (coord.) Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2009, p. 216-217. 30

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 112. 31

SILVA, José Afonso da. Curso de direito ... ob. cit., p. 119. 32

SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 113. 33

SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 115.

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eficácia aos direitos fundamentais. Enfim, quem já era livre continuava a ser, como igualmente quem não gozava de liberdade, não obstante agora a tivesse expressamente reconhecida, continuava na condição de alijado desse direito inerente à natureza

humana34

.

Nada obstante todo esse processo histórico-político, vale dizer, apesar de todas

as deficiências em relação aos direitos do cidadão do “Estado policial”, o liberalismo

constitui decerto ponto de partida válido para o processo final de democratização da

sociedade, em função da luta vitoriosa que em especial os revolucionários franceses

realizaram contra o absolutismo, visando obter do Estado o reconhecimento dos

direitos fundamentais do homem.

Restaram assim pavimentados os caminhos que levaram ao surgimento do

Estado Social de Direito, “no qual a expressão social sinaliza para o propósito de

corrigir/superar o individualismo clássico de caráter liberal pela afirmação dos

direitos sociais, com a conseqüente realização da justiça social” 35. Mas o propósito

de prover o cidadão com necessidades públicas capazes de garantir, ao menos,

minimamente, programas de amparo, como, por exemplo: saúde, educação e

proteção ao trabalho, também não foram plenamente alcançadas pelo Estado Social

de Direito.

Em uma análise, José Afonso da Silva ressalta algumas das razões pelas quais

naufragou a proposta de bem-estar social do Welfare State. Principia sua crítica pelo

próprio termo utilizado para qualificar o Estado: “social” 36. E assinala:

Sua ambigüidade, porém, é manifesta. Primeiro, porque a palavra social está sujeita a várias interpretações. Todas as ideologias, com sua própria visão do social e do Direito, podem acolher uma concepção do Estado Social de Direito, menos a ideologia marxista que não confunde o social com o socialista.

Paulo Bonavides tem opinião semelhante, porém, mais abrangente, quando

afirma exatamente que:

34

TOMAZ, Carlos Alberto Simões de. Juridicização da política. Brasília: Revista de Informação Legislativa, ano 45, n. 177, p. 95-112, jan./mar, 2008, p. 100. 35

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso

de direito constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 69. 36

SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 115.

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Daí compadecer-se o Estado social no capitalismo com os mais variados sistemas de organização política, cujo programa não importe em modificações fundamentais de certos postulados econômicos e sociais.

A Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, o Portugal salazarista foram, e continuam sendo, nos dois últimos casos, “Estados sociais”. Da mesma forma, Estado social é a Inglaterra de Churchill e Attlee; os Estados Unidos, em parte, desde Roosevelt; a França, com a Quarta República, principalmente; e o Brasil, desde a Revolução de 30.

....

Ora evidencia tudo isso que o Estado social se compadece com regimes políticos antagônicos, como seja, a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. E até mesmo, sob certo aspecto, fora da

ordem capitalista, com o bolchevismo37

.

Sendo essa seguramente a opinião predominante, pode-se dizer que a

“insuficiência maior do Estado Social de Direito residiria em não ter conseguido

realizar a desejada e sempre prometida democratização econômica e social” 38.

A fim de superar tais modelos (Liberal e Welfare State), o Estado Democrático

de Direito se desenvolve com o propósito de tornar todas as exigências do homem

moderno (econômicas, políticas e sociais) concretas. Esse desafio ingente, que se

ancora, basicamente, no respeito ao princípio da soberania popular, como forma de

legitimar as ações dos agentes públicos, visa “realizar a síntese do processo

contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para

configurar um Estado promotor de justiça social” 39.

1.3 Os princípios da separação dos poderes e da legalidade na perspectiva

contemporânea da criação judicial do direito e a legitimação das decisões.

1.3.1 Princípio da legalidade

37

BONAVIDES. Paulo. Do estado liberal ao estado social. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 181. 38

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso

de direito... ob. cit., p. 69. 39

SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 120.

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Dois princípios que integram o Estado Democrático de Direito interessam aqui

no momento: o princípio da separação dos poderes e o princípio da legalidade, em

decorrência da força normativa que impõem nas estruturas do Estado moderno.

Nosso país tem uma forte preponderância para o direito codificado. É fácil

aceitar tal fato, pois a nossa ligação com a família romano-germânica (civil law) é

indiscutível – muito embora certo mesmo seja que a tendência de aproximação com

a família do common law torne esse parâmetro difícil de ser vislumbrado nos dias

atuais. Disso resulta, à evidência, que o primado da norma legal difunde-se por

alguns dispositivos constitucionais, como por exemplo, o art. 5º, caput (princípio da

igualdade) e art. 5º, inciso II (princípio da reserva legal). Portanto, para nosso

sistema jurídico, a lei é a principal fonte do direito.

Para José Afonso da Silva “o princípio da legalidade é princípio basilar do

Estado Democrático de Direito” 40. É princípio multifuncional, cujo núcleo essencial,

se “espraia” no âmbito de todo sistema jurídico de tal forma que dá origem a um sem

número de expressões umbilicalmente interligadas: processo legislativo, devido

processo legal, supremacia, reserva da lei, etc. 41. Nada obstante essa honraria ao

texto legal, de resto justificável no contexto de transformação do Estado Liberal em

Estado Democrático de Direito, fato é que tal princípio, ao menos na forma

originariamente concebido, dá, no presente, sinais evidentes de fadiga, em face da

força normativa das Constituições.

Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni:

A noção de norma geral, abstrata, coerente e fruto da vontade homogênea do parlamento, típica do Direito da Revolução Francesa, não sobreviveu aos acontecimentos históricos. Entre outras coisas, vivenciou-se a experiência de que a lei poderia ser criada de modo contrário aos interesses da população e aos princípios de justiça.

.....

A lei passa a encontrar limite e contorno nos princípios constitucionais, o que significa que deixa de ter apenas legitimação formal, restando substancialmente amarrada aos direitos positivados na Constituição.

.....

40

SILVA, José Afonso da. Curso de direito.... ob. cit., p. 121. 41

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso

de direito... ob. cit., p.180.

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O próprio princípio da legalidade passa a ter outro significado, deixando de ter um conteúdo apenas formal para adquirir conteúdo substancial. O princípio da legalidade passa a se ligar ao conteúdo da lei, ou melhor, à conformação da lei com os direitos

fundamentais42

.

Como se observa, o princípio da legalidade, agora formatado pelo conteúdo dos

direitos fundamentais plasmados nas Constituições democráticas, distancia-se da

representação conceitual dos iluministas que não concebiam a presença de uma

força normativa no texto constitucional.

A partir do momento, então, que a lei perde perante o magistrado a supremacia

anteriormente concedida pelo arcabouço do Estado Liberal, porque agora se

submete aos contornos constitucionais, o aplicador do direito não está mais obrigado

a sentenciar unicamente conforme o modelo silogístico do período iluminista,

podendo decidir não só negando a validade da lei, em face da Constituição, como

até elaborando comando decisório capaz de realizar direito fundamental43.

Portanto, diante dessa nova postura a que parecem estar irremediavelmente

sujeitos notadamente os juízes com assento nas Cortes Constitucionais nos Estados

democráticos, ou seja, postura de acolher ou realizar ao máximo as demandas

sociais de um Estado cada vez mais complexo, é que Walber Agra alerta para uma

“falência da exclusividade do Direito legislado” 44 45, sobretudo quando afirma que “a

expansão de atuação dos tribunais constitucionais não é apenas um fenômeno

42

MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common

law... ob. cit., p. 208-209. 43

“Ao se admitir que o juiz pode decidir que uma lei é inválida por estar em conflito com a Constituição, quebra-se o dogma da separação estrita entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, e, desta forma, abre-se oportunidade para se dizer que o juiz do civil law também cria o direito”. MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law... ob. cit., p. 189. 44 AGRA, Walber. A expansão da jurisdição constitucional. Revista Advocatus Pernambuco. Recife.

Publicação da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da OAB/PE. ano 2, n. 3, p. 05-114, out./ 2009, p. 107. 45

Alertando para a problemática da crise do direito legislado em relação tanto ao Poder Executivo

quanto ao Poder Judiciário, eis a crítica de Inocêncio Mártires: “Nesse contexto de ‘modernização’, esse velho dogma {principio da separação dos poderes} da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias – que são editadas com força de lei – bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é freqüente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade”. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito... ob. cit., p.178.

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restrito à jurisdição constitucional, ocorrendo com o Poder Judiciário também em sua

esfera ordinária” 46. Eis os motivos pelos quais, para o referido autor, tais fatos vêm

se sucedendo:

... em primeiro lugar, há uma crise no arcabouço normativo, fruto da sociedade pós-moderna, que cada vez exige leis mais flexíveis. E em segundo lugar, porque diante da caótica e abundante produção legislativa faz-se necessário, cada vez mais, uma interpretação técnica para saber qual a disposição normativa que vai ser aplicada ao caso concreto. Essa produção caótica esquece de uma parêmia clássica do processo legislativo: de que as leis devem ser simples e claras, construídas de maneira a mais precisa possível, a fim de

evitar problemas de interpretação47

.

É possível acrescentar ainda outro aspecto. O direito originariamente concebido

sempre bem serviu a sociedades restritas, ou melhor, a sociedades com uma base

cultural e raízes históricas comuns. Esse tipo de sociedade é difícil de se encontrar

na civilização moldada pela globalização. Na contemporaneidade, o que mais existe

– se não é só o que existe – são sociedades multiculturais, onde é difícil apontar o

predomínio de um pensamento ou ideia por parte de um grupo de pessoas. A

tomada de posição sobre um tema varia notoriamente até mesmo entre indivíduos

de um mesmo grupo social48. Ora, se nossa realidade é assim, ou muito próxima a

isso, certamente a dificuldade do Poder Legislativo de equacionar essa diversidade

é enorme. A saída do parlamento tem sido partir para a elaboração de um sistema

jurídico com textos abertos que comportem ou legitimem a subjetividade

interpretativa, já que as referências do texto passam a ter função meramente

instrumental para o magistrado, porquanto as razões para a decisão judicial já foram

por ele tomadas antecipadamente.

Não por outra razão, João Maurício Adeodato49 dá alerta para o entendimento

da escola realista de assumir a defesa do ponto de vista de que o Poder Legislativo

não cria mais a norma jurídica, “cria textos, dados de entrada válidos”. Só o

aplicador do direito é que cria norma.

46

AGRA, Walber. A expansão da jurisdição... ob. cit., p.108. 47

AGRA, Walber. A expansão da jurisdição... ob. cit., p.109. 48 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Tradução: Bruno

Miragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 62. 49

ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação dos poderes? Revista Advocatus Pernambuco.

Recife. Publicação da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da OAB/PE, ano 2, n. 3, p. 77-82, out./2009, p. 81.

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É com esse enredo que se passa a enfrentar o princípio da separação dos

poderes.

1.3.2 Princípio da separação dos poderes (juridicização da política ou politização

do judiciário)

Para Eros Roberto Grau, o princípio da separação dos poderes constitui “um dos

mitos mais eficazes do Estado liberal”50. Isso porque, entende o autor, a construção

teorética de Montesquieu não se relaciona propriamente a uma separação de

poderes, porque tem por alvo equacionar uma distinção de Poderes visando dar

mostras que eles podem atuar em consonância51.

Mito porque, realmente, sequer na pós-monarquia francesa foi possível efetivar

uma real e equitativa distribuição de atribuições entre os Poderes Legislativo,

Executivo e Judiciário. Nesse contexto, registra Mancuso, (i) o Legislativo era o

Poder dominante (podado, evidentemente, do que havia de excesso por parte do

regime monárquico); (ii) o Executivo vinha depois; e (iii) em último, fora do eixo

central do Poder, estava o Judiciário52 53.

Com efeito, no contexto histórico do iluminismo oitocentista, o princípio da

separação dos poderes, representando a principal coluna sedimentadora do Estado

Liberal, preconizava uma supremacia do Parlamento sobre os demais poderes,

tendo em vista sua legitimidade popular. Melhor dizendo: pelo fato dos membros do

Parlamento serem representantes eleitos diretamente pelo povo, havia uma

preponderância clara da concepção de que a instituição da lei formal pelo Poder

Legislativo era o único instrumento válido de criação do direito.

50

GRAU, EROS ROBERTO. O direito posto e o direito pressuposto. 7 ed. São Paulo: Malheiros

Editores Ltda., 2008, p. 225. 51

GRAU, EROS ROBERTO. O direito posto... ob. cit., p. 230. 52

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 285. 53

Segundo ainda Mancuso, uma primeira leitura da teoria da separação entre os Poderes “pode levar

à equivocada persuasão de que ela tinha por premissa uma real trifurcação, equitativa, das tarefas do Estado, entre o Legislativo, Executivo e Judiciário, quando em verdade não havia o nivelamento deste último aos dois primeiros; a equiparação harmônica dessa tríade é relativamente recente, e ainda não está completamente firmada, havendo resistências e críticas, notadamente no campo do controle judicial das políticas públicas, dando azo ao binômio judicialização da polítca – politização do Judiciário”. Idem. p. 289.

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Ainda de acordo com os princípios da Revolução Francesa, cabia apenas ao

Judiciário aplicar contenciosamente a lei, servindo de mero instrumento de ligação

entre a norma geral posta pelo legislativo e o caso individualizado e único que lhe

era levado no conflito concreto54. Isto é, nada de decisões caprichosas ou

julgamentos sumários de um monarca déspota, nem julgamentos arbitrários de

juízes a seu soldo, mas a lei, impessoal e abstrata, feita pelos representantes do

povo é que deveria prevalecer55.

A consequência da força desse processo histórico é consabida entre nós: na

Constituição Federal de 1988, o princípio da “separação dos poderes” obteve

assento logo no art. 2º, no título dedicado aos princípios fundamentais, além de

constituir uma das quatro cláusulas pétreas do ordenamento jurídico brasileiro (art.

60, § 4º, III) 56.

A bem da verdade, nada obstante formalmente expresso na Carta Constitucional

de 1988, o referido princípio representa, nos dias atuais, nos Estados Democráticos

de Direito, uma forma útil de repartir as funções gerais do poder estatal, distribuindo

moderadamente o exercício das principais forças sociais entre os diferentes órgãos

do Estado.

Aliás, o aspecto de moderação é de vital importância para o entendimento do

propósito de Montesquieu, haja vista que, para o filósofo, havendo concentração de

poder, o governo abre caminho para o despotismo57.

54 ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação... ob. cit., p. 77-82. 55

GALINDO, Bruno. Princípio da legalidade oblíqua e súmula vinculante: a atuação legislativa da

jurisdição constitucional nos 20 anos da Constituição de 1988. In: BRANDÃO, Cláudio, CAVALCANTI, Francisco e ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da Legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 175-202. 56

ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação ......... ob. cit., p. 77. 57 Eis o trecho elucidativo da obra: “Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o

poder executivo das coisas que emendem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado. A liberdade política, em um cidadão, é esta tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder

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À parte, portanto, uma possível noção de que o princípio da separação dos

poderes possa representar a completa ausência de interferência de um poder sobre

o outro, resta a análise de alguns (ao menos os principais) motivos pelos quais

agrava-se no Estado Democrático de Direito a perspectiva harmônica do exercício

dos poderes.

Para Elival da Silva Ramos, as Constituições dos Estados Democráticos de

Direito sempre indicam “quais são os órgãos titulados ao exercício do poder estatal

(os Poderes com ‘p’ maiúsculo, na terminologia do constitucionalismo brasileiro)” 58.

Assim, a despeito de um compartilhamento interorgânico constitucionalmente

expresso na Carta Magna/88, haverá sempre um núcleo essencial59. Núcleo esse

que, nos seus limites, vem, na opinião desse autor, sendo violado pela função

jurisdicional, “em detrimento da função legislativa, mas, também, da função

administrativa e, até mesmo, da função de governo” 60.

Verdade seja dita, as decisões judiciais sempre foram criativas. Sempre se criou

o direito, principalmente se levarmos em conta a forma como eram proferidas as

decisões pelos jurisconsultos romanos. Aqui e acolá na história da humanidade,

como no período oitocentista de nossa era, é que se pretendeu que não houvesse

tal criação. Porém, não há como negar, jamais no nosso país vimos decisões como

as recentemente proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, sobretudo relacionadas

às políticas públicas, à problemática da aplicação de recursos mínimos destinados

às ações e serviços públicos de saúde, reformas do Judiciário e da Previdência61, e,

muito recente mesmo, a que reconheceu a possibilidade de união estável entre

pessoas do mesmo sexo.

legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares. Na maioria dos reinos da Europa, o governo é moderado, porque o príncipe, que possui os dois primeiros poderes, deixa a seus súditos o exercício do terceiro”. MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat de. In: <http://Lenin/Rede Local/Equipe/Michele/MONTESQUIEU - O Espírito das Leis2.txt>, p. 75. Acesso em 12.07.2011. 58

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 115. 59 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial..., ob. cit., p. 116. 60

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial..., ob. cit., p. 116. 61

GALINDO, Bruno. Princípio da legalidade oblíqua e súmula vinculante... p. 180.

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A despeito dessa última decisão ter sido unânime62, vozes foram ouvidas

contestando o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal63. Destaca-se, por

exemplo, a opinião do jurista Ives Gandra Martins que, em dois artigos publicados

em jornais de grande circulação no país, condenou o ativismo judicial, expondo o

seguinte:

A questão que me preocupa é este ativismo judicial, que leva a permitir que um Tribunal eleito por uma pessoa só substitua o Congresso Nacional, eleito por 130 milhões de brasileiros, sob a alegação de que além de Poder Judiciário, é também Poder Legislativo, sempre que considerar que o Legislativo deixou de

cumprir as suas funções64

.

Para Elival da Silva Ramos, é essa a subversão dos limites impostos pela

criatividade jurisprudencial que afeta “as demais funções estatais, máxime a

legiferante, o que, por seu turno, configura gravíssima agressão ao princípio da

separação dos Poderes” 65.

Do que já foi apresentado, não há como fugir da evidência factual de que

vivemos em uma República em que prevalece entre os Poderes uma fortíssima zona

de tensão66. Zona de tensão essa designada indistintamente pelos juristas

62 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto e ADPF 132/RJ, rel. Min.

Ayres Britto. Informativo Mensal do Supremo Tribunal Federal STF: Brasília, maio de 2011 - nº 9. Compilação dos Informativos nºs 625 a 629. <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoInformativoTema/anexo/Informativo_mensal_maio_2011.pdf>, acesso em 12.07.2011. 63

Nesse sentido é a opinião de Saul Tourinho Leal: “A Constituição Federal coloca o Supremo como

guardião da Constituição. A ele não é dado representar o povo. Assim quis o Poder Constituinte Originário e assim o é. É órgão composto por especialistas, sem mandato popular, aí os constantes questionamentos acerca de sua atuação política em esferas que deveriam ser alvo de deliberação tão somente pelas instâncias que representam o povo por meio de mandato popular”. In: <http://www.conjur.com.br/2011-mai-23/apesar-abertura-sociedade-supremo-nao-representa-povo>. Acesso em 23.05.2011. 64 MARTINS, Ives Gandra da Silva. In:

<http://www.lawmanager.com.br/manager/clientes/8/arquivos/FRAN%C3%87A.pdf>,

<http://www.lawmanager.com.br/manager/clientes/8/arquivos/CONFORME%20O%20STF.pdf>,

acessos em 12.07.2011. 65

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial..., ob. cit., p. 120. 66

Cf. Walber Agra: “A relação entre o Direito e a Política configura-se como uma das relações mais

tensas existentes no Estado Democrático Social de Direito. A política simboliza as decisões tomadas pela sociedade com a finalidade de alcançar os objetivos escolhidos pela sua população, tendo como uma de suas principais características a discricionariedade de sua escolha. O Direito tem como uma de suas principais características, de modo inverso, a previsibilidade de sua normatização. Assim, devido ao caráter diverso de suas principais características, o Direito e a Política podem gerar atritos...Vários autores consideram que a delimitação entre a política e o direito pode ser facilitada pelo legislador constituinte. Se o texto constitucional for escrito de forma precisa, sem o recurso de

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comumente por dois termos: “juridicização da política” ou “politização do

judiciário”67. A questão, portanto, de maior complexidade que está subjacente ao

debate sobre a “politização do judiciário” é saber se, ao decidir, o magistrado pode –

em determinadas situações – invadir a esfera de atribuições constitucionais de

algum dos outros dois poderes, fundamentando suas decisões apoiado em

convicções políticas próprias; e, se pode, se há ou não limite para fundamentar

essas decisões. Ou seja, até que ponto os juízes, quando criam as normas, podem

substituir o legislador68 69.

O fato é que a denominada judicialização da política torna-se circunstância

“inevitável diante das funções básicas que o poder judiciário precisa exercer no

panorama constitucional da segunda metade do século XX e início do século XXI” 70.

Até porque o juiz já não é mais visto praticamente por ninguém como um agente

termos vagos ou ambíguos, a atuação da jurisdição constitucional poderá ser melhor definida, impedindo a prática de decisões políticas porque a estrutura do seu texto permite antever um direcionamento das decisões. Se, ao contrário, o texto constitucional não for escrito de forma precisa, agasalhando muitas normas programáticas, haverá a ausência de uma definição para a atuação da jurisdição constitucional, o que ensejará a prática de decisões judiciais de cunho político”. AGRA, Walber. A expansão da jurisdição... ob. cit., p.111-112. 67

É oportuno trazer, nesse ponto, a opinião de Lenio Streck que faz distinção entre judicialização da

política e ativismo: “Judicialização é contingencial. Num país como o Brasil, é até mesmo inexorável que aconteça essa judicialização (e até em demasia). Mas não se pode confundir aquilo que é próprio de um sistema como o nosso (Constituição analítica, falta de políticas públicas e amplo acesso à Justiça) com o que se chama de ativismo. O que é ativismo? É quando os juízes substituem

os juízos do legislador e da Constituição por seus juízos próprios, subjetivos ou, mais que subjetivos, subjetivos(solipsistas)”. In: <http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=96&Itemid=2>. Acesso em 12.07.2011. 68 Para Dworkin, “as decisões que os juízes tomam devem ser políticas em algum sentido”... “quero

indagar, porém, se os juízes devem decidir casos valendo-se de fundamentos políticos, de modo que a decisão seja não apenas a decisão que certos grupos políticos desejariam, mas também que seja tomada sobre o fundamento de que certos princípios de moralidade política são corretos. Um juiz que decide baseando-se em fundamentos políticos não está decidindo com base em fundamento de política partidária. Não decide a favor da interpretação buscada pelos sindicatos porque é (ou foi) membro do partido Trabalhista, por exemplo. Mas os princípios políticos em que acredita, como, por exemplo, a crença de que a igualdade é um objetivo político importante, podem ser mais característicos de um partido político que de outros”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução: Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 3; 69

Lenio Streck e Walber de Moura Agra discutem esse tema a partir de dois eixos analíticos: o

procedimentalismo e o substancialismo. Numa síntese apertadíssima, os autores expõem o seguinte: a tese procedimentalista, capitaneada por Habermas, critica a invasão da política e da sociedade pelo Direito (Streck); ao passo que a tese substancialista permite mais atuação das decisões do Supremo Tribunal Federal, mesmo que exorbite os limites impostos pelo princípio da separação dos três poderes (Agra). STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (em) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7 ed., rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 40-54 e AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p 185-267. 70

GALINDO, Bruno. Princípio da legalidade oblíqua e súmula vinculante... ob. cit., p. 181.

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neutro, mero aplicador da lei71. A sociedade exige dele que faça valer o texto

normativo: de preferência os princípios instalados na Constituição, de modo que

sejam concretizados os inúmeros direitos assegurados ao indivíduo, isolado ou

como membro de um agrupamento. É se opor ao caráter meramente declaratório de

uma decisão judicial, para reclamar do Poder Judiciário a realização dos direitos

fundamentais.

Se por um lado, a comunidade jurídica nacional, em grande parte, ainda que

ciente dos perigos dos excessos praticados pelos juízes72, tem acatado essa nova

postura do Judiciário73, que assume um novo papel, de natureza declaradamente

política, de outro lado, carente de respostas efetivas por parte do Poder Público, a

sociedade brasileira tem batido incessantemente às portas do Judiciário para obter o

71

Cf. Marinoni: “A evolução do civil law, particularmente em virtude do impacto do constitucionalismo, deu ao juiz um poder similar ao do juiz inglês submetido ao common law e, bem mais claramente, ao poder do juiz americano, dotado do poder de controlar a lei a partir da Constituição. No instante em que a lei perde a supremacia, submetendo-se à Constituição, transforma-se não apenas o conceito de direito, mas igualmente o significado de jurisdição. O juiz deixa de ser um servo da lei e assume o dever de atuá-la na medida dos direitos positivados na Constituição. Se o juiz pode negar a validade da lei em face da Constituição ou mesmo instituir regra imprescindível à realização de direito fundamental, o seu papel não é mais aquele concebido por juristas e processualistas de épocas distantes”. MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law... ob. cit., p. 187. 72

Walber Agra, alertando para os riscos provenientes desta postura, por parte do Poder Judiciário:

“Porém, quando os tribunais constitucionais começam a se imiscuir em assuntos políticos, ocorre de igual forma uma politização desses órgãos. Em muitas de suas decisões resta evidenciada uma nítida opção ideológica, em que a matriz política resta clarividente. O risco é que a criação de uma justiça política, passe a decidir de acordo com as suas conveniências ideológicas, em detrimento da Constituição”(...). Entretanto, se essa atuação servir para o desenvolvimento do sistema de freios e contrapesos, com o escopo de garantir os direitos fundamentais e o aperfeiçoamento do regime democrático, será uma atividade benéfica e ensejará a real concretização de um Estado Democrático Social de Direito”. AGRA, Walber. A expansão da jurisdição... ob. cit., p.109 -110. 73

A crítica de Cláudia Servilha Monteiro: “Na cultura jurídica contemporânea convivem confrontadas

duas concepções radicalmente opostas acerca do desempenho da função jurisdicional em um Estado de Direito e em torno da idéia de ativismo judicial. Em primeiro lugar, existe uma larga tradição no pensamento jurídico-político de postura contra os riscos de um governo de juízes ou de juízes legisladores conforme a obra de Mauro Cappelletti (1999b, p. 61-69). Para estes o ativismo judicial equivale à invasão do juiz em um espaço de legitimidade que não lhe corresponde, e, por isso mesmo, põe em perigo o delicado sistema de equilíbrios institucionais, sem o qual se frustraria irremediavelmente o ideal do Estado de Direito. Neste ponto de vista é latente a convicção de que o juiz ativista não é mais do que um indivíduo que, se considerado por acaso parte da elite moral, impõe aos demais seus próprios valores sem se dar ao trabalho de ter o direito de fazê-lo passando pelo processo político ordinário, isto é, do procedimento democrático. Para a segunda concepção, ativismo judicial não é uma expressão pejorativa, mas admite que se entenda por juiz ativista aquele que invade o espaço da pura discricionariedade política, onde só conta o critério da oportunidade. O núcleo dessa segunda concepção é a idéia do juiz como garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos ante a qualquer classe de atuações dos poderes públicos. Se os direitos são limites para as maiorias e para o Poder que atua em seu nome, um juiz que leve a sério seu papel de garantidor dos direitos simplesmente não poderia limitar-se ao critério da própria maioria; ou melhor, do Poder que atua em seu nome, acerca de conteúdo e alcance dos ditos direitos. Nesse caso o ativismo judicial não seria um vício e sim uma virtude por excelência da função jurisdicional em um Estado constitucional. MONTEIRO, Cláudia Sevilha. A racionalidade da decisão judicial..... ob. cit., p.206.

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que entende lhe é assegurado pela Constituição, agindo exatamente como

preconiza Peter Härbele: “que toda e qualquer pessoa que leia livremente a

Constituição acaba sendo co-intérprete do texto” 74. A resposta do Judiciário,

portanto, não poderia ser outra. Reflexo disso é a superexposição dos juízes nos

meios de comunicação.

Ora, ao fazer política, através do processo de criação judicial, o Judiciário impõe

a si próprio uma nova obrigação perante a sociedade: buscar a legitimação

necessária da população para as suas decisões. E como fazer isso acontecer em

um panorama institucional político-democrático em que o povo não tem o direito de

eleger os componentes do Poder Judiciário é que se torna o grande desafio, na

atualidade, a ser enfrentado pelos jusfilósofos.

1.3.3 Legitimação das decisões

Com efeito, em relação aos atores políticos que compõem os poderes

constituídos da República, os juízes não fazem parte de uma categoria que se

submete “ao árduo campo de prova do sufrágio popular” 75. É dizer, quando nas

suas decisões judiciais impera o cunho político, o Poder Judiciário restaria

comprometido ante a falta de respaldo do voto popular76.

Na doutrina, são encontradas razões que rechaçam essa maneira de pensar.

Três estão notadamente mais presentes nas discussões sobre o tema.

A primeira é exposta por José Renato Nalini, atualmente Corregedor Geral da

Justiça do Estado de São Paulo, que parte de um raciocínio interessante. O jurista

paulista argumenta que é fenômeno contemporâneo questionar-se a legitimidade de

todas as manifestações estatais, cuja sensação de carência reste configurada. E

74

HÄRBELE, Peter. In: <http://www.conjur.com.br/2011-mai-29/entrevista-peter-haberle-constitucionalista-alemao>. Acesso em 13.05.2011. 75

NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas-São Paulo: Millennium Editora, 2 ed., 2008, p. 324. 76

“A razão maior da controvérsia é que as normas ou atos normativos são textos legais formulados

por representantes eleitos diretamente pela população, ou seja, fruto do princípio da soberania popular. Já os membros do órgão que exerce a jurisdição constitucional não são providos a seus cargos por intermédio da vontade do povo, têm seu provimento realizado por indicação do Presidente da República, necessitando depois da homologação pelo Senado Federal”. AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.143.

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que tal aspecto, portanto, observa, não é exclusivo do Judiciário77. Em seguida, põe

em debate:

Há quem recuse a constatação empírica da extrema debilidade do moderno Parlamento? Só pelo fato de se submeterem às eleições revestiriam os parlamentares uma legitimidade incólume ao tsunami de indecências noticiado e televisado noite e dia? Questionar a legitimidade dos juízes perde significado e consistência diante da apuração de que um crescente descrédito envolve o Legislativo. O Legislativo já foi a função mais importante. Poder que teria a primazia, por estabelecer as regras do jogo, cuja onipotência foi posta à prova no século passado e mostrou sensível fragilidade. O Legislativo do século XX não conseguiu coibir o excesso dos governantes, não impediu o totalitarismo de todas as colorações e graus, nem dois conflitos mundiais. Pior ainda, mostrou-se insuficiente a reconhecer os reclamos da sociedade e primou por

confundir o interesse privado com o público78

.

Na mesma linha de pensamento, Walber Agra, tratando da paulatina perda de

legitimidade do processo político como uma das causas que influenciam a expansão

da jurisdição constitucional no campo das decisões políticas, revela que a

complexidade dos temas, bem como a falta de locais para o debate político, “são

algumas das razões para perda de legitimidade dos representantes populares” 79, o

que justificaria essa distância que a classe parlamentar se apresenta atualmente

perante a população. E prossegue:

Já que é quase impossível encontrar limites precisos à separação entre a seara política e a seara jurídica, de melhor alvitre seria solidificar a consciência de respeito aos dispositivos constitucionais, especialmente às normas relativas aos direitos fundamentais e que tanto o Poder Legislativo quanto o órgão que desempenha o exercício da função, pudessem fiscalizar a atuação dos órgãos estatais para saber se eles se adequam ou não aos ditamos da

Constituição80

.

Se segmentos mais conservadores, porém, pretendem deslocar o Poder

Judiciário para um canto mais modesto do cenário político, certo é que em um

ambiente de democracia participativa como o nosso, ainda que ofuscado por nossa

condição de país periférico, os cidadãos não se encontram enclausurados em uma

77

NALINI, José Renato. A rebelião ... ob. cit., p. 324. 78

NALINI, José Renato. A rebelião ... ob. cit., p. 324-325. 79 AGRA, Walber. A expansão da jurisdição constitucional... ob. cit., p. 113. 80

AGRA, Walber. A expansão da jurisdição constitucional... ob. cit., p. 113.

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jurisdição única como a eleitoral, a ponto de tornar limitado o exercício democrático

popular exclusivamente por meio do voto ou plebiscito. É válida a ilação de que a

referida participação também se faz por meio do processo judicial. Ora, o processo é

seguramente fator de inclusão social, na media em que “recepciona e encaminha ao

Judiciário...os reclamos, anseios e pretensões da coletividade, os quais, sem essas

formas de expressão, continuariam a fomentar a chamada litigiosidade contida, ao

interno da coletividade” 81.

Na síntese de Rodolfo Mancuso:

Portanto, o fato de em muitos países, como o nosso, os juízes não serem eleitos, não serve como argumento ou premissa para dispensá-los de dar o seu quinhão para a boa gestão da coisa pública e preservação do interesse geral, mediante os processes em

que são chamados a atuar82

.

A segunda razão é exposta por Marília D’Ávila ao registrar o pensamento de que

a vontade da maioria nem sempre qualifica como democrática a proposta do Poder

Legislativo:

A ciência política moderna reconhece, de forma uníssona, que a vontade da maioria não é sinônimo de decisão democrática e que nem sempre o voto garante, de per si, a realização dessa vontade da maioria. Nem os poderes políticos estabelecidos são perfeitamente capazes de expressar um consenso absoluto nas questões, positivando, no mais das vezes, a vontade de grupos de interesses, cuja força de pressão se fez prevalecer no momento de votação da lei. Reconhece-se, ainda, que a antinomia de significação dos textos legais é de extrema importância para a aprovação dos mesmos no Parlamento. Quanto mais elásticos e imprecisos os contornos do

texto, mais fácil o consenso em sua aprovação83

.

A terceira razão encontra-se nos próprios termos da Constituição Federal.

Prevalece no Estado, hoje, uma dimensão dinâmica que se sobrepõe à anterior

(estática) firmada no binômio Poder-Soberania84. Deveras, regando a Constituição

Federal o Estado com múltiplas e infinitas atividades, que visam primordialmente à

consecução de objetivos e prestações sociais, em prol da coletividade, tais

81

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 286-287. 82

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 287. 83

D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito.... ob. cit., p. 22. 84

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p.291.

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realizações seriam inconcebíveis não fosse a comunicação de atributos e funções

dos poderes. Assim, não espanta ninguém que no leque de atribuições do

Presidente da República haja oportunidade para ato decisório (art. 84, X) e ato

legislativo (art. 62); da mesma forma que no Legislativo se administre (arts. 51, IV e

52, XIII) e se julgue (art 52, I e II); e, finalmente, no Judiciário se administre (arts. 96,

I e 99) e se legisle (arts. 93, 96, II e 102, § 2º)85. É da condição do próprio texto da

Constituição Federal que haja convergência de funções, de modo que se possa

entender uma separação dos poderes onde vigore certa interferência de um poder

em outro86.

Retornando à questão anteriormente posta, como pode o Poder Judiciário

buscar a legitimação popular para a judicialização da política, máxime em sede de

jurisdição constitucional? Basicamente, na visão de Walber de Moura Agra, as

decisões judiciais deverão, em sede de jurisdição constitucional, quando

necessárias, ser tomadas “a partir de um processo que promova amplas discussões

na sociedade para que ela possa realizar a formação política de um consenso,

tomando como parâmetro as normas jurídicas” 87.

Igual visão nesse sentido é de Paulo Gustavo Gonet Branco88:

Participação e controle popular são aspectos ínsitos a uma convivência política numa comunidade que proclama que o poder é exercido pelo povo ou em seu nome.

A abertura das cortes constitucionais ao compartilhamento de razões por interessados nas deliberações públicas confirma em cada sujeito a igual dignidade de membro da comunidade.

Num ambiente democrático, o valor intrínseco da abertura à participação dos cidadãos nos processos públicos revela que alcançar uma boa solução não é tudo o que importa no cenário deliberativo. É de capital relevo, também, que a busca desse resultado adequado se desenvolva sob a franca disposição de se conceder voz aos vários destinatários das decisões.

85

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 291. 86

Segundo ainda Mancuso, “o fato de a separação dos Poderes constar dentre as cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º, III) não pode ser tomado à outrance, desconectado do contexto de sua independência, são “harmônicos entre si” (art. 2º), expressão que, de per si, basta a evidenciar que o constituinte deseja a convivência pacífica e eficiente entre as instâncias políticas, inclusive para a mantença da desejável coesão interna da República Federativa”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 291. 87

AGRA, Walber. A expansão da jurisdição constitucional... ob. cit., p. 114. 88

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional São Paulo: Saraiva, 2009, p. 214.

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Não resta dúvida que o amicus curiae, por exemplo, é figura crucial no

desempenho desse papel rogatório de representante político de parcela da

população. Mas, obviamente não é só, conquanto, além de diversas serem as

perspectivas de solução apresentadas pelos doutrinadores, vários são os critérios

válidos apresentados pela hermenêutica para adequação do conflito, em especial

tem sido a prevalência, por exemplo, da argumentação focada no princípio da

razoabilidade, fruto da ponderação dos valores89.

Isso porque Paulo Gonet Branco expõe que:

A fundamentação, de resto, não pode deixar de ser o resultado de uma comunicação do agente que delibera com a coletividade. Isto é, com os demais intérpretes, oficiais ou não, da Constituição. Não pode ser uma atividade de solipsismo, em que o juiz, por meio de um fiat, diz o direito, ao invés de construí-lo, a partir de um diálogo

sincero e aberto, em que o aplicador se reconhece guiado por pré-compreensões, mas se esforça por cotejá-las com as razões que lhe são trazidas, no empenho por alcançar uma deliberação pretendidamente justa e correta. Para conceber a fundamentação adequada, o tribunal há de considerar se a decisão que toma é consistente com a jurisprudência consolidada. Ponderações cristalizadas trazem consigo a presunção de aquiescência dos Poderes Públicos e da sociedade, que não a desautorizaram pelos meios políticos disponíveis90.

De tudo quanto foi exposto, certo mesmo é que o Judiciário está tendo, nos dias

atuais, papel preponderante na execução da responsabilidade pelas políticas

públicas e que o princípio da separação dos poderes, ao menos na forma concebida

89

“O desafio do juiz moderno é conciliar a um só tempo, segurança jurídica, com celeridade e rapidez; valores individuais e valores da sociedade; técnica e formalidades legais e efetividade das decisões, enfim, modernidade e justiça, que, ao fim e ao cabo, não são valores antagônicos e mutuante excludentes, e sim uma necessidade imperiosa de composição de opostos para a realização do bem-estar de todos os membros da comunidade”. D’ÁVILA, Marília. O problema da criação judicial do direito.... ob. cit., p. 25. 90

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação... p. 241. Interessante é que o próprio autor, em nota de rodapé de nº 673, na mesma página 241, faz a seguinte advertência: “Por isso, deve ser compreendida com a cautela indispensável a orientação, impressa em voto no STF, de que ‘ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanista. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrando o indispensável apoio, formalizá-la’(RE 111.787, DJ 13-9-1991). A recomendação não provoca espanto se entendido que a ‘idealização da solução mais justa’ não se resume à consulta do julgador a si mesmo, mas se forma pela oitiva dos interessados, dos vários auditórios cabíveis, inclusive do saber consolidado na dogmática, tudo isso confirmado pela formação humanística do julgador”.

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há mais de dois séculos, não serve mais de atributo para digressões do tipo a

inviabilizar o novo perfil do Judiciário.

1.3.4 A formação dos juízes: democratização nos Tribunais.

Sob esse tópico serão abordadas algumas brevíssimas questões relacionadas

ainda com a legitimação do Poder Judiciário para decidir sobre temas políticos e a

influência que essas questões exercem sobre as decisões judiciais.

Parece não restar dúvida que, em um Estado Democrático de Direito, não deve

subsistir a preponderância funcional de um órgão sobre outro – a história mostra o

quanto foi infrutífera para o direito em si a predominância do Poder Legislativo na

França da pós-monarquia. Afinal de contas, a intenção de nosso constituinte foi que

entre os poderes houvesse harmonia, sem perda da independência (art. 2º da

CF/88).

Ocorre que, no Brasil, como visto, as discussões de temas políticos têm migrado

vigorosamente dos Poderes Executivo e Legislativo para o Judiciário. Ora, se agora

determinadas polêmicas são resolvidas no âmbito do Poder Judiciário, muito embora

haja um exagero em tudo isso, porque os juízes muitas vezes estão se comportando

como executores de políticas públicas, fato é que a responsabilidade dos

magistrados tem aumentado assustadoramente, sem que, em contrapartida, tenha

se verificado uma adequada seleção dos membros do Poder Judiciário. Ou seja, se

agora os magistrados estão sendo solicitados para tratar de assuntos polêmicos e

cujo viés de cunho político é indiscutível, como esperar legitimidade das decisões

judiciais, se no ato de seleção de ingresso para o cargo de magistrado valoriza-se

praticamente tão-só a capacidade mnemônica do candidato, em detrimento de

outros atributos tão ou mais importantes?

A forma que o legislador impôs para a seleção dos futuros juízes, a despeito de

ter sido aperfeiçoada ao longo dos anos, parece estar em dissonância com a

realidade atual de se fazer justiça. Se cada vez os princípios são utilizados para

fundamentar uma sentença, no mais das vezes porque o magistrado entende haver

um desacordo do texto da lei com a realidade subjacente da causa, qual a razão

para somente se exigir dos candidatos ao cargo de juiz a capacidade espetacular de

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armazenar na memória os textos de lei, como se fossem decidir de forma cartesiana

um caso de complexidade latente além do padrão lógico-dedutivo?

Essa postura certamente não é moderna, atual e muito menos condizente com

um Poder que cada vez mais ingressa na seara política, por conta da necessidade

desmedida de se adequar as decisões dos principais agentes públicos e às

diretrizes estabelecidas pela Constituição.

Enquanto nos outros Poderes o cidadão participa da escolha dos seus

representantes, no Judiciário seus membros ingressam no piso inferior da estrutura

por meio de burocráticos concursos públicos, o que somente favorece a divulgação

do mito de que entre os poderes da República o Judiciário é o menos democrático91.

Nada obstante essa realidade, a sistemática dos concursos públicos permanece

praticamente inalterada: a primeira fase corresponde às provas objetivas, cujo

propósito é eliminar aqueles que não conseguiram armazenar o maior número de

informações desejáveis; na sequência, vem a fase das provas escritas, que exigem

a memorização do maior número possível de precedentes judiciais; depois vêm os

exames orais. Nesse momento, quando se imagina que algo de diferente vai ser

exigido do candidato, a maioria dos examinadores insiste em averiguar mesmo que

desnecessariamente, por óbvio, a capacidade cibernética de reter informações do

futuro magistrado; ao fim e ao cabo, procura-se, através de uma forma simplória e

burocrática, a aferição dos atributos que deveriam estar presentes em primeiro lugar

em qualquer candidato a cargo de juiz, como a ética, a idoneidade, a cultura geral, a

filosofia e o domínio da língua portuguesa, só para ficar nesses poucos exemplos92.

91

Na prática, sabe-se que a realidade é outra. Se há um poder republicano em que o cidadão tem contato com seus representantes é exatamente o Judiciário: “Fala-se na dificuldade de acesso à Justiça. Mas o indivíduo sabe que difícil, mesmo, é o acesso aos demais poderes. Qual o indivíduo que tem facilidade para avistar-se com qualquer chefe de Executivo? É simples ser ouvido por um parlamentar em qualquer dos três níveis da Federação? Já o juiz realiza pessoalmente as audiências...Uma das experiências rotineiras do homem contemporâneo é o contato direto com o juiz. Só quem não quer é que permanece sem o seu Day in Court. O juiz não pode escusar-se a realizar uma audiência, a despachar uma petição, a ouvir um reclamo de sua competência. Ao se compenetrar disso, o indivíduo experimenta um salto qualitativo no seu grau de cidadania”. NALINI, José Renato. A democratização da administração dos tribunais. In: Reforma do Judiciário. São Paulo: Saraiva. 2005, p. 173. 92

“A aferição de outros atributos – conduta ética, noção institucional, dons humanísticos, talentos

exigíveis para enfrentamento de situações de tensão, a potencialidade de aquisição de novos saberes e mesmo a trivial capacidade de trabalhar – tudo resta sacrificado pelo interesse maior no teste de conhecimentos técnico-jurídicos. Esse modelo já foi desprezado pelas grandes empresas, todas elas providas de excelentes quadros. Por sinal, quadros oriundos das mesmas Faculdades de

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Em resumo, não há qualquer interesse ou preocupação dos membros das

bancas examinadoras (em alguns concursos, até mesmo “terceirizadas”) em

conhecer não só a formação geral como a personalidade do candidato93.

Para o estudioso do tema em debate, José Renato Nalini, “se os concursos se

preocupassem mais com o ser humano interessado em ingressar na Magistratura e

menos com a sua possibilidade de decorar informações, teria início a verdadeira

Reforma do Judiciário” 94.

A pouca importância que os examinadores têm dado à avaliação da

personalidade dos candidatos à magistratura reflete um paradoxo: na hora de

selecionar os futuros juízes procura-se mirar naqueles que apresentam maiores

virtudes dentro da moldura oitocentista de ver o direito, mas após a nomeação e

posse, de imediato é imposto ao magistrado, em face da realidade da sociedade

contemporânea complexa e das novas estruturas do próprio Poder Judiciário, uma

nova postura, não mais condizente com o paradigma de outrora, mas agora dentro

dos padrões de uma sociedade pretensamente democrática. É dizer, aposta-se em

um processo de seleção de candidatos com formação técnica-jurídica específica,

esquecendo-se que a personalidade do juiz somada à sua formação interdisciplinar

são constantemente cobradas na fundamentação da decisão judicial95.

Direito tão criticadas após a realização de cada concurso público nas carreiras jurídicas. Indague-se a uma dessas prestigiadas corporações de advogado se elas têm dificuldade em recrutar os jovens talentosos que ali encontram melhores oportunidades de desenvolvimento em relação a pouco sedutora carreira na Magistratura. Seria evidência do prestígio da Magistratura acorrerem milhares de concorrentes a cada concurso aberto? Não parece. Primeiro, porque esses mesmos milhares acorrem a qualquer certame público propiciador de uma carreira provida de algum atrativo como a estabilidade. Longe da esfera pública, a ameaça de desemprego que ronda os profissionais da atividade privada. Mas a constatação empírica é ainda mais melancólica. A inscrição de milhares de candidatos em todo concurso não significa prestígio crescente das carreias do Judiciário, senão dificuldade cada vez mais acentuada de sobrevivência na área das Ciências Jurídicas”. NALINI, José Renato. A democratização... ob. cit., p. 177. 93

“Enquanto se revê, em ritmo de intensidade crescente, todo o programa do curso de Direito, por

enquanto qüinqüenal, não há preocupação equivalente em conhecer a personalidade do futuro juiz. Seus temores e angústias, seus traumas, seus preconceitos, mas também seus anseios, aspirações, sonhos e ilusões”. NALINI, José Renato. In: prefácio da obra “O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial”, de Lídia Reis de Almeida Prado. 3 ed. Campinas – SP: Millenium, 2005, p. X. 94

NALINI, José Renato. In: prefácio da obra “O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial”, de Lídia Reis de Almeida Prado... ob. cit., p. XI. 95 “O aspecto importante na sentença, embora não o único...é a personalidade do juiz, sobre a qual

influem a educação geral, a educação jurídica, os valores, os vínculos familiares e pessoais, a posição econômica e social, a experiência política e jurídica, a filiação e opinião política, os traços intelectuais e temperamentais”. PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial. 3. ed. São Paulo: Millennium. 2005, p. 18.

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Essa problemática é muito importante na medida em que muito bem se sabe

que, por conta da racionalidade formalista de decidir, é comum os juízes omitirem os

verdadeiros sentimentos que os fizeram escolher um princípio em detrimento do

outro. Dito de outra forma: pensam sem o socorro do processo lógico-dedutivo, mas

estruturam a decisão exatamente com base nesse esquema de raciocínio.

A questão se torna crucial, na visão de Michele Taruffo, quando, em cada etapa

de seu raciocínio o juiz recorre a noções e critérios de caráter extra ou metajurídico,

gerando “exigências particularmente severas de confiabilidade, de racionalidade, de

controlabilidade e de justificação” 96. E arremata o referido autor:

Mas quando ele {o juiz} precisa sair do mundo da cultura jurídica, a ele familiar, e assim extrair do senso comum, da experiência coletiva ou da ciência aquilo de que necessita para formular as passagens e os segmentos não-jurídicos de seu raciocínio, nesse momento crescem em medida extraordinária as incertezas, as dificuldades, as dúvidas e os perigos de errar. Isso podia (e talvez ainda possa) não ser compreendido com suficiente clareza por quem acreditava (ou acredita) viver em uma sociedade compacta e homogênea (e tanto mais assim, quanto mais local) e no contexto de uma cultura supostamente clara, consolidada, estática e composta por elementos

facilmente identificáveis97

.

Ora, diante desse quadro, não seria então essencial saber com quais

experiências de vida foi formada a personalidade do futuro julgador, antes mesmo

do seu ingresso nos quadros da magistratura?

A efetividade da defesa democrática por parte do Poder Judiciário impõe que se

busquem novos e mais eficazes instrumentos para a seleção dos futuros

magistrados de forma a contribuir para a legitimação das decisões judiciais,

sobretudo aquelas com base em valores fundamentalmente políticos, não se

limitando apenas a reformas processuais ou mesmo de direito substantivo. Tais

alterações terão pouca eficácia se não forem subsidiadas por uma mudança

estrutural do Poder Judiciário.

Essa visão é defendida também por Boaventura de Souza Santos:

96

TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz. Revista da Escola

Paulista da Magistratura, v.2, nº 2, julho-dezembro/2001, p. 195. 97

TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência... p. 195.

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Por um lado, a reforma da organização judiciária, a qual não pode contribuir para a democratização da justiça se ela própria não for internamente democrática.

...

Por outro lado, a reforma da formação e dos processos de recrutamento dos magistrados, sem a qual a ampliação dos poderes do juiz propostas em muitas das reformas aqui referidas carecerá de sentido e poderá eventualmente ser contraproducente para a democratização da administração da justiça que se pretende. As novas gerações de juízes e magistrados deverão ser equipadas com conhecimentos vastos e diversificados (econômicos, sociológicos, políticos) sobre a sociedade em geral e sobre a administração da

justiça em particular98

.

Tudo o que foi visto acima serve para a análise da estrutura de piso do

Judiciário. Mas a problemática não se esgota aí, porquanto também no patamar de

cima as críticas são contundentes.

Para Walber de Moura Agra, “um dos elementos para aumentar a legitimação

das decisões da jurisdição constitucional (...) é a transformação do Supremo

Tribunal Federal em tribunal constitucional” 99 100. Essa transformação implicaria que

boa parte da atual competência do Supremo Tribunal Federal seria repassada ao

Superior Tribunal de Justiça. Logo, o passo seguinte não poderia ser outro senão o

Supremo Tribunal Federal deixar de ser órgão do Poder Judiciário, “sob pena de

desequilíbrio da isonomia de prerrogativas entre os três poderes” 101.

O outro ponto, segundo referido autor, é a composição de nossa Corte Suprema.

Aliás, a necessidade de transformação do Supremo em tribunal constitucional é pré-

requisito para a mudança de sua composição.

98

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 180. 99

AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit.,

p.277. 100

Esse processo, aliás, lento e gradual, já está sendo posto em prática, conforme se pode verificar

pelas reformas constitucionais implementadas visando afastar o Supremo Tribunal Federal da obrigação de decidir causas cujo fundamento não esteja relacionado efetivamente com a jurisdição constitucional, como, por exemplo, a Emenda Constitucional de nº 45/2004, § 3º, art.102. 101

AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit.,

p.281.

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Realmente, os onze ministros do Supremo Tribunal Federal são nomeados pelo

Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do

Senado Federal (parágrafo único do art. 101, Constituição Federal de 1988).

Todavia, o Senado Federal se apresenta nesse processo como um mero

coadjuvante, já que, muito raramente, da sabatina resulta algo contrário aos

interesses do Presidente da República.

Ora, se a tendência possível é que o Supremo Tribunal Federal se torne

preponderantemente uma Corte Constitucional, afastando-se do modelo de tribunal

de superposição – em sentido largo –, evidentemente sua composição nos moldes

como é processada atualmente põe em cheque a legitimidade das decisões do

órgão. É que essa reestruturação do Supremo Tribunal Federal permitiria que a

Corte pudesse atuar como um poder moderador, “não no sentido clássico

empregado pela Constituição de 1824, mas arbitrando os litígios entre os poderes

estabelecidos e zelando pela eficácia das normas constitucionais” 102. E, nessa

circunstância, parece razoável que a indicação de seus membros passe a ser tarefa

que envolva todos os poderes estabelecidos, e não, apenas, como se observa hoje,

apenas por um órgão (na prática).

A razão disso é porque “quanto maior o respaldo que seus membros gozarem na

sociedade, maior será a autoridade de suas decisões” 103. A composição do

Supremo Tribunal Federal, portanto, deverá ser plural, e seus membros igualmente

devem ter representatividade, quer dizer, “é necessário que sejam eleitos através de

uma acordo de forças públicas” 104, o que não significa dizer exatamente que tal

escolha seja feita pelo voto popular. Apenas que, seguindo esse norte, haverá uma

descentralização da nomeação dos integrantes da Corte Suprema. E o que é mais

crucial: a participação de outros órgãos políticos teria o condão de ilidir o

entendimento de que o Supremo Tribunal Federal continua a desequilibrar o

princípio da separação dos poderes105.

102

AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.

282. 103

AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.

283. 104 AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p. 283. 105

“A escolha necessita ser democratizada, permitindo a participação dos poderes

constitucionalmente estabelecidos, no que reforça o grau de legitimação dos ministros do Egrégio

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As sugestões de Walber de Moura Agra são basicamente as seguintes106: (i) um

terço dos membros do Supremo Tribunal Federal seriam escolhidos pelo Congresso

Nacional; (ii) um terço pelo Presidente da República; e (iii) outro terço pelos

magistrados componentes dos Tribunais Superiores. Nos dois últimos casos, haveria

necessidade de referendo do Congresso Nacional. Mas não é só: (i) dentre os

escolhidos, determinado percentual procederia da classe dos advogados,

componentes do Ministério Público e professores universitários; (ii) mandato

prefixado, com prazo máximo de nove anos, sem reeleição; (ii) salto do número de

membros de onze para quinze; (iii) renovação parcial de seus componentes a cada

três anos, sendo que, em cada uma dessas oportunidades, a renovação se daria em

um terço de seus membros; e (iv) maior exigência da capacitação profissional dos

escolhidos, privilegiando-se os mais renomados professores universitários

catedráticos e membros da magistratura e do ministério público que se destacassem

pelo exercício de suas funções.

Evidente que processadas tais modificações nas estruturas do Poder Judiciário a

legitimação das decisões judiciais ganharia em estatura suficiente para aplacar a

noção de que a postura atual do Poder Judiciário constitui ofensa ao princípio da

separação dos poderes, permitindo-se mais facilmente apontar os excessos

praticados pelos juízes.

1.4 A função criativa do magistrado e a hermenêutica

1.4.1 Hermenêutica: evolução conceitual

Como forma de situar o estudo da hermenêutica no universo de aplicação do

Direito, iniciaremos uma singela introdução, com o propósito básico de demonstrar a

evolução do conceito de hermenêutica.

Tribunal e forçosamente de suas decisões”. AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.285. 106

AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal... ob. cit., p.

286.

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Em face especialmente da obra de Gadamer, a hermenêutica é hoje

considerada como uma filosofia de interpretação107. Mas, em tempos remotos não

era assim. Existia a hermenêutica clássica, “vista como pura técnica de interpretação

(Auslegung)”108. Basicamente a partir do trabalho de Gadamer é que a visão da

hermenêutica como método interpretativo - sedimentada pelas escolas positivistas,

oriundas do iluminismo -, é que resta, afinal, superada109.

De fato, o termo hermenêutica é de origem clássica: “o termo grego

hermeneuein, que significa interpretar, é a raiz da qual a palavra hermenêutica

derivou” 110.

Segundo Margarida Maria Lacombe Camargo

...a origem do termo Hermenêutica tem como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Significava trazer algo desconhecido e ininteligível para a linguagem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo hermenuein, usualmente traduzido como “interpretar”, e o substantivo hermeneia, como interpretação, significam transformar aquilo que

ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender.

O autor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêutica como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir. Dizer, no sentido de

anunciar ou afirmar algo, relaciona-se, antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notícias fiéis das divindades.

No entanto, o predomínio da palavra entre os gregos fez com que a linguagem falada e sua vertente performática ganhassem relevo, e a hermenêutica passasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais importante do que simplesmente expressar, na medida em que as

107

NUNES JÚNIOR, Armandino Teixeira. A pré-compreensão e a compreensão na experiência hermenêutica. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3711 acesso em: 06 de jul. 2010. 108

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (em) crise... ob. cit., p. 192. 109

“A hermenêutica não é mais um método para substituir um já existente; pelo contrário, Gadamer se volta para as hermenêuticas porque vê nelas uma forma de conhecimento reprimido e entendimento bruscamente contido pelos procedimentos da Modernidade. Parte da missão de Gadamer em Verdade e Método é deixar que a dimensão hermenêutica da verdade fale mais alto novamente; para que isso aconteça, ele cria uma narrativa para relatar os inconstantes sucessos das práticas hermenêuticas. A narrativa começa no início do século XVIII, com técnicas hermenêuticas criadas para a interpretação correta da Bíblia. No discurso de Gadamer, as hermenêuticas eventualmente acabam vítimas do ‘canto da sereia’ da Modernidade e se vêem envolvidas na questão da metodologia. Isso tem o efeito de debilitar as hermenêuticas, colocando-as em competição direta com a ciência: uma competição fadada a perder. Mas, o resultado não é a rendição total. Gadamer encontra uma forma de reativar as hermenêuticas e resgatá-las das garras das preocupações epistemológicas do método, seguinte as chamadas ‘hermenêuticas da facticidade’ de Martin Heidegger. LAWN, Chris; Tradução de Hélio Magri Filho. Compreender Gadamer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 65. 110

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p.66.

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palavras racionalizam e clarificam algo; é quando ganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E, quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna compreensível o que é estrangeiro, estranho

e ininteligível111

.

Depois, já em Roma, a hermenêutica assumiu um caráter eminentemente

prático: os jurisconsultos aplicavam o direito para cada caso específico. Ou seja, a

solução do caso era resolvida mesmo no plano individual. O direito era, portanto,

formulado a partir de um caso específico, onde repetida a hipótese debatida em

outro caso, eram reproduzidos os juízos constantes das decisões, cuja consolidação

no tempo, transformavam-nos em máximas.

A seguir, a hermenêutica alcançou notável projeção na seara religiosa. Primeiro

com os judeus – que tinham grande preocupação em interpretar a palavra de Deus,

em relação ao Antigo Testamento112. Segundo com os cristãos, diante do texto do

Evangelho. E, finalmente, com os protestantes do século XVII, que, “desejando

entender a escritura de maneira mais sistemática e menos alegórica”113, deram o

último passo para a hermenêutica assumir o papel exegético da correta

interpretação dos textos sagrados114.

Como visto, o modelo hermenêutico precedente consistia, grosso modo, na

sistematização de processos visando determinar-se o correto sentido dos textos.

Como consequência, na visão clássica, a hermenêutica não passava de “um

conjunto de métodos e técnicas destinado a interpretar a essência da norma”115.

Mas, segundo Margarida Maria Lacombe Camargo, é tão somente com o Iluminismo

que interpretação e hermenêutica deixam de significar a mesma coisa:

111 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao

estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar. 3 ed., 2003, p. 24. 112

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 25. 113

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 66. 114

“A visão padrão era de que se a Bíblia era a palavra de Deus, a divina revelação, então deveria ser interpretada autenticamente, e padrões de procedimentos corretos deveriam ser criados para cumprir a tarefa. Algumas estratégias hermenêuticas surgiram somente quando o texto bíblico parecia opaco e resistia ás traduções e explicações fáceis”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 67. 115

NUNES JÚNIOR, Armandino Teixeira. A pré-compreensão e a compreensão na experiência hermenêutica. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3711>. Acesso em: 06 de jul. 2010.

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A hermenêutica passa, então, a se comportar como ciência preocupando-se com técnicas próprias do fazer interpretativo. E, ao investir na questão do método, a hermenêutica ganha particular

importância para a filosofia e para a teoria do conhecimento116

.

Em decorrência da influência da razão pura, predominante no pensamento

científico, é que a hermenêutica acaba por se resguardar no campo da lógica formal,

somente se desligando dessa tendência, segundo Camargo117, com o surgimento da

fenomenologia de Heidegger.

É bom não esquecer que, no final do século XIX, Wilhelm Dilthey (1833 – 1911),

antes mesmo de Heidegger, e depois de Schleiermacher, teve profunda influência

nessa passagem da hermenêutica, já que, por meio de seus estudos, livrou-nos “da

tendência prevalecente de juntar todos os conhecimentos em uma categoria ampla

da ciência”118. Ou seja, Dilthey desenvolveu no século XIX

...uma nova teoria sobre as ciências que não podiam experimentar-se ou observar-se empiricamente (como no caso da história, da ética, da lingüística, da ciência jurídica, entre outras), cujo objeto era a realidade histórico-social da vida humana. Dilthey chamou-as ciências de “ciências do espírito” em contraposição às físico-naturais. Assim, também, introduziu um novo termo para o conceito de entender, o “compreender”, para designar o conhecimento próprio daquelas ciências dos fenômenos sensíveis da natureza, utilizou o termo “explicar”...Compreender seria a captação do profundo e, nesse sentido, a hermenêutica deixava de ser simplesmente

explicativa para ser a compreensão da realidade119

.

Com essa distinção feita por Dilthey120, a ciência jurídica migrou para a categoria

das ciências do espírito. Ou seja, oxigenada a concepção da Ciência do Direito, foi

possível a Heidegger desenvolver a tese de que a

116

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 28. 117 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 29. 118

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 74. 119

LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... ob. cit., p. 103. 120

“Apesar de Dilthey ter sido capaz de identificar as diferenças entre as ciências naturais e humanas e mostrar como as ciências humanas eram hermenêuticas e não como a ciência natural que era envolvida na explicação, ele era um produto de seu tempo e foi incapaz de se liberar das restrições de uma busca por método. Dilthey acreditava na possibilidade de adquirir conhecimento objetivamente válido, mesmo que fosse intrinsecamente histórico e interpretativo. A mudança para as hermenêuticas históricas, isto é, as hermenêuticas que enfatizam o elo no entendimento entre o passado e o presente, é um momento importante, pois representa a principal fonte de recurso para

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compreensão consiste no movimento básico da existência, no sentido de que compreender não significa um comportamento do pensamento humano entre outros que se possa disciplinar metodologicamente e, portanto, conformar-se como método científico. Constitui, antes, o movimento básico da existência humana. Compreender, para Heidegger, é a “forma originária de realização do estar-aí, do ser-no-mundo” 121.

1.4.2 Escolas hermenêuticas

1.4.2.1 Aspectos gerais

Em tópicos anteriores deste estudo, já foram analisadas boa parte das razões

históricas que deram origem a hoje tão decantada criação judicial do direito. Mais

especificamente, restaram examinadas as transformações pelas quais vêm

passando o Estado de Direito, e a importância desses aspectos na considerável

distensão que se observa da função jurisdicional, notadamente aquela de trato

constitucional, e, via de conseqüência, em um desnivelamento, “pelo menos sob o

aspecto prático, no equilíbrio entre os Poderes em favor do Judiciário” 122.

Nesse item, e considerando o quadro antes descrito, serão analisadas as

principais críticas referentes à aplicação do direito por parte das principais escolas

hermenêuticas. É necessário, todavia, fazer uma advertência: não se pretende

adiante apresentar uma exposição detalhada das diversas doutrinas jurídicas

ministradas por seus principais autores, que compartilham da noção da inadequação

da decisão judicial como um postulado de um silogismo puro e simples. É que o

objetivo desta pesquisa não é, em absoluto, pôr à vista de forma sistematizada e

completa tais e diversas teorias ou perfilhar um a um os autores que melhor as

defenderam; a ideia é tão somente apresentar breves pinceladas, que se pretende

sirvam de apoio para o leitor melhor poder se deslocar até o tema central do

trabalho.

inspiração do mentor de Gadamer e Heidegger”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 76. 121 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 29.

122 MORAIS, Dalton Santos. A atuação judicial criativa nas sociedades complexas e pluralistas

contemporâneas sob parâmetros jurídico-constitucionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Revista de Processo, ano 35, n. 180, fev./2010, p. 65.

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Foi após a promulgação especialmente do Código Civil de Napoleão que se

começou a falar efetivamente em hermenêutica jurídica. Não que antes não

houvesse sido desenvolvida alguma técnica de interpretação do direito, mas é tão-só

no contexto do liberalismo francês que se pode pensar no estudo da hermenêutica

jurídica à vista de um sistema teórico.

Herkenhoff divide em três grandes grupos as principais escolas do pensamento

jurídico-hermenêutico: escolas do estrito legalismo; escolas de reação ao estrito

legalismo; e escolas que se abrem a uma interpretação livre123. Ainda que a divisão

seja didaticamente interessante, prefere-se aqui abstrair tal indústria, a fim de deixar

a leitura do texto menos propensa a conferências, para que se possa, em alguns

casos, dar-se mais ênfase ao pensamento individual dos jusfilósofos que às

correntes que propriamente eles lideraram.

1.4.2.2 Escola da Exegese

Muito embora versado em latim, o brocardo in claris cessat interpretatio não tem

origem romana. Aliás, adverte Carlos Maximiliano, Ulpiano afirmava exatamente o

contrário: quamvis sit manifestissimum edictum proetoris, attamen non esta

negligenda interpretatio ejus – “embora claríssimo o edito do pretor, contudo não se

deve descurar da interpretação respectiva” 124. Isso porque, de fato, “a exegese

praticada em Roma não se limitava aos textos obscuros, nem lacunosos” 125.

Mesmo assim, a Escola da Exegese, basicamente edificada pelos juristas

franceses de escol do século XIX, sustentava a doutrina de que o Código Civil

Napoleônico “continha a solução para todos os conflitos sociais, bastando para tanto

saber interpretar a lei” 126. É que o racionalismo jurídico contagiante à época fazia os

juristas pensarem ter solucionado todos os problemas com a promulgação dos

códigos. Ou seja, era suficiente que os textos legais fossem elaborados de maneira

clara e precisa e todas as controvérsias humanas estariam como num passe de

123

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito: à luz de uma perspectiva axiológica,

fenomenológica e sociológico-política. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 33. 124

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 27. 125

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 27. 126

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica e razoabilidade. Brasília: Revista de Informação Legislativa, ano 38, n. 151, jul./set. 2001, p. 240.

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mágica solucionadas. Daí proclamavam seus arautos que, descartado o problema

da interpretação, a tarefa dos juízes estaria limitada a uma mera aplicação dessas

mesmas leis precisamente confeccionadas.

A concepção do direito, portanto, consistia em um processo de subsunção de

fatos a normas, por meio de um raciocínio expresso por um silogismo em que a

premissa maior é a norma, a premissa menor é o fato e a conclusão a adequação

entre premissa maior e premissa menor 127.

É dizer, a Escola da Exegese tinha na lei escrita a única fonte do Direito, razão

pela qual, na aplicação da norma, havia uma busca constante a fim de se revelar a

intenção do legislador (mens legislatoris) e, no insucesso desse processo - afinal

nem sempre havia a possibilidade de se investigar a vontade do Parlamento, pelo

fato de as leis não serem comentadas pelos próprios legisladores -, fazer conhecer a

vontade da lei (mens legis).

Mas é a frase do belga François Laurent, transcrita por Maria Helena Diniz, que

traduz com perfeição o traço então marcante de culto dessa escola ao teor da lei:

Os Códigos nada deixam ao arbítrio do intérprete, este não tem mais por missão fazer o direito: o direito já está feito. Não existe mais incerteza, porque o direito está escrito nos textos, já há segurança dos textos. Mas para que esta vantagem dos códigos seja real é preciso que os juristas e os juízes aceitem sua nova posição de

subalternos ao Código... Diria até que devem resignar-se a ele” 128

.

Duas palavras se destacam no pensamento acima transcrito que, no fundo,

permeiam toda a racionalidade hermenêutica até os dias atuais, como se verá ao

final desse item: incerteza e segurança.

1.4.2.3 Escola Histórica do Direito

Como reação à ideia do silogismo subsuntivo, na qualidade de parâmetro único

para aplicação da norma, a Escola Histórica do Direito, surgida na Alemanha,

127

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 240. 128 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 51.

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no princípio do século XIX, “proclamava a historicidade do Direito, cuja origem e

fundamento repousariam na consciência nacional e nos costumes jurídicos oriundos

da tradição” 129.

João Paulo Allain Teixeira explica o desenvolvimento dessa escola:

[esse desenvolvimento] em muito se deve à experiência hermenêutica alemã, em que se desenvolve a corrente Pandectista. Por não existir na Alemanha até então um Código Civil (o Código Civil Alemão data de 1900), o direito alemão era inspirado em textos clássicos da tradição romana. Tendo como base o Digesto, a hermenêutica alemã permitiu uma certa flexibilização do texto admitindo na adaptação a observância dos usos e costumes. Foi a partir dessa escola que surgiu o conceito de “intenção possível do

legislador”, elaborado por Windscheid 130

.

É com base, porém, no pensamento de Savigny, de que o “direito legislativo

deveria ter a única função de oferecer suporte aos costumes para diminuir-lhes as

incertezas e as indeterminações” 131, que a Escola Histórica apresenta sua principal

proposta: de que a lei, por sofrer influências no transcorrer do tempo e da realidade

social em que se encontra, troca prestígio com o meio ambiente e por isso tem o seu

significado modificado constantemente 132.

O pecado maior da Escola Histórica foi petrificar as ordenações tradicionais de

tal forma que gerou uma espécie de fetichismo da história de forma análoga a da

Escola da Exegese em relação à lei 133.

1.4.2.4 Movimento do Direito Livre

Em passos largos, chega-se às escolas que postulam uma interpretação mais

livre, como por exemplo, as escolas do Direito Livre. Na verdade, não se trata de um

grupo de pensadores que dão abrigo a uma teoria precisa. Sob diversas

denominações (Livre Pesquisa Científica / Escola do Direito Justo), o Movimento do

Direito Livre reúne uma gama de jusfilósofos que defendem, entre tendências

129

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 40. 130

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 241. 131

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 77. 132

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 241. 133

GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 32.

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moderadas a radicais o propósito de que o sistema jurídico não comporta nem

monopoliza os valores sociais que podem ser sopesados pelos juízes nas soluções

dos casos134. Por ter publicado em 1899 o “Méthode d’Interpretation et Sources en

Droit Prive Positif”, François Gény estabeleceu o marco histórico da Escola da Livre

Pesquisa Científica. Foi, portanto, seu principal expoente. Gény defendia

basicamente o entendimento de que, “na falta de uma norma, o juiz está autorizado

a construir a sua decisão a partir das bases sólidas dos elementos objetivos

revelados por métodos científicos” 135.

Ou seja,

Ante lacunas da lei, deveria o intérprete recorrer a outras fontes (o costume, a jurisprudência, a doutrina), e não forçar a lei para que desse soluções a casos não previstos. Se as fontes suplementares fossem insuficientes, caberia ao próprio aplicador do Direito criar a norma, como se fosse legislador. Nessa tarefa deveria proceder à “livre investigação científica do Direito”. Não se tratava de procurar uma regra jurídica já escrita, que pudesse ser invocada por analogia, mas, sim, de descobrir, através da pesquisa científica dos fatos

sociais, a regra jurídica adequada136

.

As ideias de Gény até hoje são seguidas, haja vista sua contribuição de ter

conseguido em definitivo superar a imagem do juiz como mero intérprete da lei,

pesquisador tão-somente da vontade do legislador137.

A tendência do movimento teve outro marco por meio da publicação do livro de

Hermann Kantorowicz (sob o pseudônimo de Gnaeus Flavius), cuja tese defendida

era no sentido de que o juiz, ao decidir, considerasse “os fatos sociais que deram

origem e condicionam o litígio, a ordem interna das associações humanas, assim

como os valores que orientam a moral e os costumes” 138. Afinal, segundo

Kantorowicz, “o povo conhece o direito livre, enquanto desconhece o direito estatal,

a não ser que o último coincida com o primeiro” 139.

134

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 51. 135

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 241. 136

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 48-49. 137

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 51. 138

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 98. 139

Apud. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 99.

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Diante do quadro, Lúcio Grassi abre espaço para afirmar que, segundo o

pensamento defendido pela Escola do Direito Livre, já não é mais possível ver o

magistrado apenas como um especialista em lei, já que o julgador recebe

autorização para voltar os olhos para a sociedade, afinal é a vontade livre do homem

que se constitui em fonte de ordenações que regem o comportamento dentro desses

grupos140.

Por essa doutrina, a vontade do intérprete pode predominar sobre a vontade da

lei ou do legislador. Ou melhor: “a tese fundamental da Escola do Livre Direito é a de

que o Direito não é, nem deve ser, criação exclusiva do Estado. Por conseguinte, a

lei não é a única fonte de Direito e o juiz não deve ser inteiramente submisso a

ela”141.

1.4.2.5 O positivismo de Hans Kelsen

Após a força do pensamento revolucionário da Escola do Direito Livre, e com o

pano de fundo histórico marcado pela decadência do capitalismo logo após a

Primeira Grande Guerra, Kelsen surge defendendo o ponto de vista de que o direito

desempenha “o papel de uma moldura que, em presença da vontade do intérprete,

aliada ao conhecimento, daria origem a um quadro, que representa o direito a ser

aplicado” 142.

João Paulo Allain Teixeira explica que para Kelsen

A função do intérprete do direito enquanto cientista, nada mais é do que determinar os limites do juridicamente impossível, ou seja, os limites da moldura dentro da qual a interpretação é possível. Querer ir além disso significa abrir mão da cientificidade do direito em favor da política143.

140 GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 43. 141

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 54. 142

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 242. 143

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 242.

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A bem da verdade, essa vocação de neutralidade144 — ou adiáfora, na dicção de

Maria Helena Diniz 145, não significa dizer que Kelsen negasse valor à sociologia do

direito, como ciência, por exemplo. Kelsen apenas excluía do objeto de seu estudo

todo o conteúdo de sociologia, de justiça e seus respectivos juízos axiológicos146. A

ciência, para Kelsen, como já dito, deveria diferenciar-se da política. Nesse sentido,

a síntese de Eduardo Bittar e Guilherme Almeida:

O político e o jurídico devem estar separados para que a ciência jurídica não se contamine com elementos de natureza política, correndo o risco de perder sua independência. A ciência não é ciência dos fatos, de dados concretos, de acontecimentos, de atos sociais. A ciência, para Kelsen, é a ciência do dever-ser, ou seja, a ciência que procura descrever o funcionamento e o maquinismo das

normas jurídicas147

.

No mesmo tom é o texto de Margarida M. L. Camargo:

Kelsen isola do direito qualquer indagação do tipo quem fez a norma, por quem a fez, quais os interesses ou valores que encerra, etc., pois, segundo ele, tais questões pertencem ao campo de considerações próprio da ciência política, da psicologia, da ética ou da sociologia. O fundamento de validade do direito não está, para Kelsen, na origem ou na fundamentação social do ato, mas na própria norma (superior) que o autoriza, ou melhor, na norma que o prescreve. Assim, para efeitos metodológicos, o direito, como norma ou ordenamento jurídico positivo, encerra-se em si prevendo e

controlando sua própria existência, bastando a si mesmo148

.

Ainda, para Margarida Maria Lacombe Camargo, Kelsen fez escola, na medida

em que hoje é possível distinguir dois grupos básicos de jusfilósofos: os formalistas

ou kelsenianos e os não-formalistas ou não-kelsenianos. A distinção é simples: os

primeiros representam o pensamento que privilegia o que consta do texto legal

validamente posto, abstraindo-se qualquer pretensão de se indagar o conteúdo

valorativo. Com essa postura, é dada preferência à segurança, e, por conseqüência,

garante-se a ordem pública. Os não-formalistas são os que admitem que o direito

144

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 102. 145

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução... ob. cit., p. 117. 146

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 5 ed. São Paulo: Atlas. 2007, p. 361. 147

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.

361. 148

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 109.

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sofre influência de disciplinas outras (caráter zetético), sem, todavia, abominarem o

seu aspecto científico149.

1.4.2.6 Tópica e Jurisprudência

Já a tópica de Theodor Viehweg tornou-se referência obrigatória na filosofia do

direito da segunda metade do século XX150. Seu livro “Tópica e Jurisprudência”

representa, assim, um marco na história do pensamento jurídico, porque expõe uma

nova forma de pensar para a ciência jurídica151 152.

A tópica desenvolvida por Viehweg não tem pretensão de ser um método, mas

um estilo153. Isto é, “não é um conjunto de princípios para avaliação de evidência,

cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para solucionar

hipóteses” 154. A tópica representa uma técnica de pensamento “que se orienta para

o problema e não para o sistema” 155:

Para Margarida Maria Lacombe Camargo

Viehweg vê uma nova posição do jurista, a quem não cabe mais entender o direito como algo que se limite a aceitar, mas sim como algo que ele constrói de maneira responsável. Logo, acredita ser preciso desenvolver um estilo especial de busca de premissas que, com o apoio em pontos de vista amplamente aceitos, seja inventivo, menosprezando reduções lógicas que nos levem a generalizações incapazes de entender e muito menos de resolver os problemas

adequadamente156

.

149

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 101. 150

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 139. 151

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.

423. 152

Cf. Bittar: “No final da Segunda Guerra Mundial (1945), Viehweg, que estudara Direito e filosofia e exercera a profissão de juiz, estava desempregado. A fim de sobreviver, estabeleceu-se num pequeno povoado rural, próximo de Munique. Perto de sua casa, descobriu uma biblioteca intacta, escondida dentro de um claustro. Iniciou, então, uma minuciosa pesquisa que teve como produto final Tópica e jurisprudência, apresentado à Universidade de Munique para obtenção do título de livre-docente e publicado, em 1953”. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p. 423. 153

Cf. Tercio Sampaio no prefácio da obra de Viehweg, p.3. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Júnior. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, Brasília: 1979. V. 1 (Coleção Pensamento Jurídico Contemporâneo). 154

GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 71. 155

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 243. 156

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 157.

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O homem comum sempre recorreu às máximas retiradas de obras clássicas de

escritores e poetas, a fim de argumentar a contento em uma discussão. No ambiente

jurídico não é diferente. De fato, em nossa seara são comuns as referências a

apotegmas: “são aqueles loci communes cumulativos, coleções de ditados, fórmulas

a respeito de tópicos variados, com objetivos didáticos” 157. Topoi é isso: significa

lugar comum. Ou ainda: trata-se de “fórmulas, variáveis no tempo e no espaço, de

reconhecimento da força persuasiva” 158. No Direito, são exemplos de topoi,

interesse público, boa-fé, autonomia da vontade.

Como já referido, Viehweg desenvolveu uma técnica cuja finalidade é buscar

premissas (topoi) para um argumento visando elucidar uma questão. O núcleo

central de suas observações está no fato de que a tópica, como uma técnica de

pensamento, caracteriza-se pelo problema159. É dizer, “constitui um modo de pensar

por problemas, a partir deles e em direção a eles”160. Dessa forma, o ponto de

partida de toda discussão inicia-se “no conceito de problema (que Viehweg também

chama de ‘aporia’) que se define como toda questão que, aparentemente, admite

mais de uma resposta” 161.

Em síntese, o esquema é assim elucidado por Lúcio Grassi:

Na busca dessa solução, utilizam-se noções-chave como “interesse público”, dar a cada um o que é seu”, entre outras, os chamados topoi, que têm sua graduação de força de acordo com a realidade social em constante mutação. Assim, pode-se, em determinado momento histórico, dar preferência ao topos “dar a cada um o que é seu”, para garantir, por exemplo, o direito de propriedade de um indivíduo em prejuízo de uma coletividade de produtores rurais e, em outro momento, prevalecendo o topos interesse público, dar

preferência à manutenção da propriedade pelo grupo de produtores rurais, de acordo com a função social da propriedade162.

157

PISTORI, Maria Helena Cruz. Argumentação jurídica: da antiga retórica a nossos dias. São Paulo: Editora LTr, 2001, p.145. 158

Cf. Tercio Sampaio no prefácio da obra de Viehweg, ob. cit., p. 4. 159 NOJIRI, Sergio. A interpretação judicial do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 99. 160

GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 71. 161

NOJIRI, Sergio. A interpretação judicial... ob. cit., p. 99. 162

GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa... ob. cit., p. 72.

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Viehweg não se propõe a ser propriamente um contestador do positivismo

jurídico. Todavia, com seu trabalho, que influenciou diversos outros jusfilósofos

(Chaim Perelmen, v.g.) disponibilizou uma nova racionalidade contra o apego

exagerado ao tecnicismo Kelseniano. Graças às análises críticas de Viehweg, a

argumentação dialética é reintroduzida no sistema jurídico, servindo de instrumento

importante para o aplicador do Direito, ao mesmo tempo em que traz de volta para o

estudo hermenêutico a prudência e a equidade da jurisprudência romana163.

Os críticos ao trabalho de Theodor Viehweg, contudo, não foram poucos.

Tercio Ferraz assinala que a busca de solução por meio do uso dos topoi, em

regra, leva a argumentação a um jogo eminentemente assistemático, em que se

observava ausência de rigor lógico164.

Maria Helena Cruz Piston adverte para o fato de que, embora o repertório de

topoi seja elástico, “os pontos de vista que até um determinado momento eram

admissíveis costumam permanecer assim por longo tempo, pois custa trabalho tocar

naquilo já fixado”165. Esse aspecto de engessamento apontado por Maria Piston

resulta num agravamento quando Viehweg põe em último plano outras

possibilidades de solução lógica para o problema, como a aplicação da lei pura e

simples166

.

1.4.2.7 A lógica do razoável de Recaséns Siches

Para Recaséns Siches, o Direito não é fenômeno da natureza física ou psíquica,

mas fato histórico167. A vida não é uma obra acabada, razão pela qual é construída

momento a momento168. Disso resulta que, para esse jusfilósofo, “a norma deve ser

interpretada e aplicada circunstancialmente, ou seja, considerando a variação da

163

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 156. 164

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.

4 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 331. 165

PISTORI, Maria Helena Cruz. Argumentação jurídica: da antiga retórica a nossos dias. São Paulo:

Editora LTr, 2001, p. 151. 166

“Daí resulta, com especial clareza, que a dedução, que, como é natural, é imprescindível em todo

pensamento, aqui não desempenha de nenhum modo o papel de liderança, nem pode desempenhar o que às vezes se poderia desejar para ela e o que lhe corresponderia se existisse um sistema perfeito”. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência..., ob. cit., p. 94. 167

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 74. 168

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 75.

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circunstância (razão histórica), desde quando a norma foi criada até quando venha a

ser aplicada” 169. Na aplicação do Direito, não haveria assim “uniformidade lógica do

raciocínio matemático, porém flexibilidade para o entendimento razoável do preceito

normativo” 170.

Com base nessas premissas de Recaséns Siches, segue a lição de João Paulo

Allain Teixeira:

Anota Siches que a lógica formal é inadequada para pensar a decisão jurídica já que trata fundamentalmente de formas válidas existentes em toda a realidade jurídica e por isso inadequada para a determinação dos conteúdos normativos.

Assim, a lógica jurídica formal nada nos ensina sobre justiça e nem sobre a vida dos relacionamentos humanos, antes demandando uma reelaboração das formas tradicionais de conceber o direito. Essa nova perspectiva surge a partir da jurisprudência com a contraposição entre a lógica racional de fundo matemático e a lógica do razoável enquanto logos do humano (1971, p. 411).

A postura do mestre mexicano parte da observação de que a tradição jurídica do século XIX, ainda influenciada pelo racionalismo cartesiano, acredita que os conteúdos das normas jurídicas são proposições lógicas sobre as quais é possível um juízo de verdade ou falsidade. Para Siches, isso representa um grande equívoco, pois as normas jurídicas, sendo instrumentos práticos, destinados ao controle social, não são expressões de fatos e nem expressões de nenhum saber (1971, p. 419).

Ocorre que a tradição moderna, não enxergando outras formas de manifestação de lógica que não aquela aplicada ao campo físico-matemático, provoca uma supervalorização da lógica formal, de cunho sistemático-dedutivo171.

É por isso que, para Siches, a solução que prima pelo razoável não se opõe à

ordem jurídica, já que, na verdade, é fiel a ela172, pois busca, no âmbito da ordem

estabelecida, “dar ao caso concreto a solução mais justa e possível” 173.

169

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 75. 170

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 75. 171

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Jurisdição, tópica... ob. cit., p. 244-245. 172

David Schnaid demonstra, no texto a seguir transcrito, uma visão extremamente prática e atual da

teoria de Recaséns Siches: “L. Recaséns Siches vê na atividade do juiz uma prudência, afirmando que as decisões, antes de serem racionais, são razoáveis, segundo o logos do razoável. O juiz opera com uma realidade mutante, cujas circunstâncias em cada caso são variáveis, e ela nem sempre se presta à aplicação de esquemas racionais preestabelecidos para o comportamento das pessoas. As normas jurídicas revivem toda vez que são aplicadas, são instrumentos práticos para a vida do

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E como se dá o raciocínio por meio da lógica do razoável? Imagine-se que um

agente de polícia fica postado à entrada de um parque municipal para fazer observar

o regulamento que proíbe a entrada de veículos. Poderia o policial permitir a entrada

de uma ambulância que veio buscar uma vítima de acidente cardíaco ou de um

carro de serviço encarregado de recolher as folhas e os galhos quebrados pelo

vento174? Evidentemente que se o policial municipal for aplicar na hipótese

estritamente um raciocínio lógico-dedutivo, não poderá permitir a entrada de todo e

qualquer veículo. Contudo, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso

perceberá que tal conclusão seria irrazoável. O exemplo, portanto, serve para

demonstrar o quanto é insuficiente, pela ótica da Recaséns Siches, o raciocínio

lógico para resolver todos os problemas de ordem normativa. Para Siches, o que

qualquer pessoa de bom senso utilizaria para obter a solução mais adequada da

questão é o que se pode denominar de lógica do razoável. Porém, Siches não

admite que uma decisão judicial deva fugir dos parâmetros legais.

O razoável deve atuar na consciência do julgador como uma têmpera suficiente

para evitar interpretações díspares da lei.

Na opinião de João Baptista Herkenhoff, a doutrina de Recaséns Siches, além

de trazer para a racionalidade jurídica grandes aclaramentos aos problemas

hermenêuticos, de resto, e em especial: a) afirma a autonomia da função

jurisdicional, que escapa a qualquer disciplinamento legislativo; b) infirma a noção

de que, na aplicação do Direito, não há espaço para a lógica formal, uma vez que

tudo que pertence à existência humana impõe a lógica do humano e do razoável,

impregnada de critérios valorativos; e c) toca, finalmente, no problema da segurança

jurídica (trincheira daqueles que pugnam por um Direito cartesiano) afirmando que

homem, e o juiz, ao aplicá-las e interpretar, opera com valorações e completa a obra do legislador, numa autopoiésis. O Direito contido na norma nunca é um Direito já concluído, e o legislador, intencionalmente, elabora a norma como uma obra inacabada. A produção do Direito se completa na sua aplicação aos casos concretos. Esse autor acredita na intuição jurídica que orienta o juiz na sua tarefa, que é essencialmente valorativa, e a justificação de uma sentença não passa de artifícios de lógica, pois primeiro o juiz intui qual é a decisão justa, ‘e depois, se ensaia qual dos métodos tradicionalmente registrado e admitidos de interpretação poderia ser apresentado, na mise-en-scène da sentença, como o metido que havia levado a essa conclusão’”. SCHNAID, David. Filosofia do direito e interpretação. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 236. 173

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 77. 174

Exemplo retirado do livro de Perelman. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica.

Tradução de Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes. 1998, p. 73.

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não há segurança absoluta na vida humana, pelo que não tem procedência exigir

segurança ao Direito175.

1.4.2.8 Argumentação e Retórica

Merece destaque também o trabalho de Chaïm Perelman, jusfilósofo belga

(polonês de origem), autor de inúmeras obras na área da filosofia jurídica, e que se

notabilizou sobretudo pelo estudo direcionado para a teoria da argumentação

voltada para aplicação no Direito. Na opinião de David Schnaid, Perelman associava

“a argumentação à retórica, através de uma lógica da persuasão: quem argumenta,

faz isso para alguém, para um auditório, visando à adesão dos espíritos à tese

contida na argumentação”176. É a retórica como teoria da argumentação, na busca

da decisão judicial177.

Argumentar é uma arte em que se procura, por meio da comunicação em geral,

mecanismos suficientes para persuadir. A argumentação processa-se pelo discurso,

ou seja, “por palavras que se encadeiam, formando um todo coeso e cheio de

sentido, que produz em efeito racional no ouvinte” 178.

A retórica de Perelman tem como objetivo sacramentar uma teoria de

argumentação capaz de lidar com valores. Ocorre que os juízos de valor não podem

ser comparados aos juízos de verdade das ciências que se valem de uma lógica

dedutiva179. Víctor Rodríguez traz exemplo interessante para que se possa fazer fácil

a distinção entre lógica dedutiva e argumento retórico:

Conta-se que, em um plenário do júri, um promotor exibia aos jurados as provas processuais. Procurava, portanto, na prática de um discurso judiciário, convencer os jurados a respeito de sua tese. Mostrava a eles, com muita propriedade – argumentando –, que o laudo elaborado pela polícia técnica concluía que havia 99% de chance de que o projétil encontrado no corpo da vítima fatal houvesse sido disparado pelo revólver de propriedade do réu. Queria dizer o acusador que o réu não poderia, diante daquela prova concreta, negar a autoria do crime. Diante de tal fortíssimo

175

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito... ob. cit., p. 78. 176

SCHNAID, David. Filosofia do direito... ob. cit., p. 231. 177

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 185. 178

RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal.

4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 13. 179

NORJORI, Sergio. A interpretação judicial do direito... ob. cit., p. 92.

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argumento, a probabilidade matemática, o defensor, em tréplica, formulou aos jurados a seguinte pergunta retórica: “Suponhamos que eu tivesse um pequeno pote com cem balinhas de hortelã. E que eu, então, pegasse uma delas, tirasse do papel celofone que a envolve e, dentro delas, injetasse uma dose letal de um veneno qualquer. Em seguida, que eu embrulhasse novamente o caramelo letal, colocasse dentro do pote com outras 99 balinhas idênticas e misturasse todas. Teria algum dos jurados coragem de tirar do pote um caramelo qualquer, desembrulhá-lo e saboreá-lo? Certamente que não. Pois, se ninguém se arrisca à morte ainda que haja 99% de chance de apenas se saborear um caramelo de hortelã, ninguém pode condenar o acusado, ainda que haja 99% de chance de haver disparado sua arma contra a vítima”? Conta-se que, lançando mão

desse argumento conseguiu a absolvição de seu cliente 180.

Portanto, pela linha de raciocínio de Perelman, as sentenças proferidas pelos

juízes não podem ser equiparadas a verdade, posto que o objetivo do juiz é obter

adesão generalizada de suas decisões181. Nas decisões judiciais, o que o

magistrado busca é convencer, utilizando-se, para tanto, de técnicas de

argumentação voltadas para o público (auditório) a que a sentença é direcionada182.

Em síntese, nas decisões judiciais não há dedução, porém argumento.

A noção de auditório é importantíssima para o sucesso da retórica, “pois um

discurso só pode ser eficaz se é adaptado ao auditório que se quer persuadir ou

convencer”183. Além do mais, exige-se uma linguagem comum “que possa ser

compreendida pelos ouvintes, que lhe seja familiar” 184.

Esclarece ainda Perelman:

Para persuadir o auditório é necessário primeiro conhecê-lo, ou seja, conhecer as teses que ele admite de antemão e que poderão servir de gancho à argumentação. É importante não só conhecer quais são as teses admitidas pelos ouvintes que fornecerão à argumentação seu ponto de partida, mas também a intensidade da adesão do auditório. De fato, o mais das vezes, em uma controvérsia, as teses se opõem umas às outras e prevalecerá aquela à qual se confere maior peso, à qual se adere com maior intensidade. Vincular uma argumentação a premissas às quais se concede uma adesão apenas de fachada é tão desastroso como pendurar um quadro pesado a um prego mal fixado à parede: tudo corre o risco de vir abaixo e, sem vez de ver adotadas as conclusões, em conseqüência da

180

RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica... ob. cit., p. 21-22. 181

NORJORI, Sergio. A interpretação judicial... ob. cit., p. 92. 182

NORJORI, Sergio. A interpretação judicial... ob. cit., p. 92. 183

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica... ob. cit., p 143. 184

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica... ob. cit., p 145.

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solidariedade estabelecida entre elas e as teses iniciais, estas é que serão abandonadas pelo auditório se as conclusões em que resultou a argumentação lhes parecem menos aceitáveis do que as teses das quais dependem. É por este motivo, aliás, que certos discursos, como os elogios fúnebres, as cerimônias patrióticas e religiosas, as comemorações de toda espécie, são tão importantes para fortalecer a adesão aos valores que poderiam ser postos à prova em outras

ocasiões185

.

Há mais um exemplo interessante trazido por Víctor Gabriel Rodríguez que

esclarece o que Perelman entende por conhecer de antemão o auditório, e, por

conseguinte, as teses que melhor poderão servir à argumentação:

Um advogado, colega de larga perspicácia, contou-nos fato muito ilustrativo: fora ele a uma sessão de julgamento no tribunal encontrar alguns desembargadores. Lá estavam todos os três magistrados que participariam do julgamento da causa em que atuava, na sessão da semana seguinte. Trazia o advogado, dentro de um envelope grande, seus memoriais, um texto curto entregue como última oportunidade argumentativa aos julgadores.

Não desejando interromper a sessão, sentou-se e assistiu a uma parte dela. Observou, então de modo arguto, o comportamento do julgador já sorteado como relator da causa de seu interesse, agendada para a sessão da semana seguinte. “Quando expunha seus votos”, disse o colega com natural exagero, “para cada cinco expressões que utilizava, três eram contra legem”. Desisti de entregar os memoriais e voltei para o escritório para redigir outros, mais adequados.

“Naqueles novos memoriais”, contava, “fiz questão de indicar quase que somente o texto da lei em que se apoiava meu pedido. E disse, mais de uma vez, com grande realce, que aceitar o pedido da parte contrária seria desatender à lei positiva, seria referendar um

resultado contra legem. E ganhei a causa” 186

.

Bittar e Almeida destacam as preocupações principais de Chaïm Perelman:

Entende-se que a principal preocupação do autor foi o raciocínio jurídico, ou seja, procura lidar, e conciliar com as seguintes questões: a) como se raciocina juridicamente? b) qual a peculiaridade do raciocínio jurídico: c) quais as características desse raciocínio? d) de onde extrai o juiz subsídios para a construção da decisão justa? e) até onde leva a argumentação das partes em um processo? f) qual a

185

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica... ob. cit., p 146. 186

RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica... ob. cit., p. 21

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influência que a argumentação e a persuasão possuem para definir

as estruturas jurídicas?187

Como se vê, os estudos de Perelman denotam uma preocupação marcante em

relação à criação da norma individual. Mas não é só isso. Para Perelman, e no ponto

que aqui interessa, o juiz, diante da necessidade de preencher as lacunas da lei,

necessariamente acaba por elaborar as normas. E nesse processo de elaboração de

normas, Perelman preocupa-se, no ponto, em como evitar que o juiz exerça esse

poder de forma arbitrária; ou seja: onde encontrar garantias de imparcialidade?188

Nesse questionamento a respeito da segurança jurídica, Perelman percebe que

a atribuição dos magistrados, no momento de realizar o direito, através de suas

decisões, é muito mais complexa do que a realidade apresenta, haja vista que, em

sua ótica, o sistema jurídico não pode ser considerado um sistema fechado, mas

aberto. Disso resulta que,

Desvencilhando o raciocínio jurídico das tramas da lógica formal, Perelman visa afirmar que a lógica jurídica diferencia-se das demais por ser uma lógica dialética ou argumentativa. Nesse sentido, não é dedutiva, não é rígida, não é abstrata, nem a priori dos fatos em julgamento. O raciocínio jurídico desenrola-se com base em fatos concretos, em situações flagrantes, em meio a contextos políticos... de onde emergem decisões que condensam a justiça concreta de cada caso. Trata-se de um modelo teórico que apela para a casuística na determinação do justo e que inscreve à argumentação a tarefa de instrumentalizar as atividades do jurista e dos operadores

do direito189

.

187

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.

430. 188

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica... p. 63. O texto do autor é bastante elucidativo, e demonstra, implicitamente, a preocupação com a segurança jurídica: “O problema das lacunas nasceu com o princípio da separação dos poderes que impõe ao juiz a obrigação de aplicar um direito preexistente e que se supõe ser-lhe conhecido. Antes da Revolução Francesa, este problema não existia, pois o juiz devia encontrar a regra aplicável: na ausência de uma regra expressa, podia procurar outras fontes do direito além da positiva e, se as fontes não fossem concordes, importava saber em que ordem deveriam ser classificadas essas fontes de direito supletivo. Como não era provido aos juízes formularem regras por ocasião de litígios (‘as sentenças de regulamentação’) e não tinham de motivar suas sentenças de forma expressa, compreende-se que o problema da lacunas não tenha surgido antes do século XIX. A obrigação de preencher as lacunas da lei concede, ipso facto, ao juiz a faculdade de elaborar normas. Se ele não é, como na common law, necessariamente criador de regras de direito, pois suas decisões não constituem precedentes que outros juízes são obrigados a seguir, mesmo assim, ele elabora regras de decisão que lhe fornecerão a solução do problema que lhe é submetido. Como evitar que o juiz exerça esse poder de modo arbitrário, onde encontrar garantias de imparcialidade?”. 189

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.

441.

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1.4.2.9 A Nova Hermenêutica de Gadamer

Viu-se que para Heidegger a compreensão não é um modo de conhecer, mas a

própria existência190. Já Gadamer, embora parta desses ensinamentos de

Heidegger, evolui, porque acredita que compreender é experiência191. Na dicção de

Camargo, nesse ponto, Gadamer entende que

o estar aí é, na realização do seu próprio ser, compreender. Mas, na realidade, nem o conhecedor nem o conhecido “se dão”, “onticamente”, mas “historicamente”, isto é, participam do modo de

ser da historicidade192

.

Em relação ao termo “historicidade” acima utilizado por Gadamer, adverte Ana

Maria D’Ávila Lopes:

Mas não devemos confundir essas idéias com as da Escola Histórica, pois Gadamer teve especial cuidado no momento de acolher alguns dos pontos mais importantes dessa corrente e destacar outros; lembre-se que a Escola Histórica não conseguiu liberar-se dos ideais da Ilustração, segundo os quais a razão era a explicação de toda realidade e que não estava sujeita a nenhum pressuposto real. Assim, se num primeiro momento esse historicismo pareceu contrariar os ideais da razão absoluta, acabou sendo “prisioneiro” de seus dogmas, transformando a crítica histórica em critério supremo de verdade e assumindo o princípio do absoluto objetivismo histórico que afasta qualquer preconceito decorrente da

tradição ou do costume193

.

190

RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na

perspectiva hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Revista Faculdade Direito Milton Campos. Nova Lima, n. 17, p. 37-70, 2008, p. 47. 191

“A (nova) hermenêutica pretendida por Gadamer surge no horizonte de um problema totalmente humano, diz Fernandez-Largo: a experiência de encontrarmos frente à totalidade do mundo como contexto vital da própria existência. A partir disto, a pergunta acerca de como é possível o conhecimento e quais são as suas condições, passa a ser um problema menor dentro da globalidade da questão referente ao compreender da existência no horizonte e de outros existentes. O que a nova hermenêutica irá questionar é a totalidade do existente humano e a sua inserção no mundo. Se Schleiermacher havia liberado a hermenêutica de suas amarras com a leitura bíblica, e Dilthey, da dependência das ciências naturais, Gadamer pretende liberar a hermenêutica da alienação estética e histórica, para estudá-la em seu elemento puro de experiência da existência humana. E Heidegger será o corifeu dessa postura que se caracterizará por explicar a compreensão como forma de definir o Daisen (ser-aí)”. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 193. 192 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 31. 193

LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Revista de Informação

Legislativa: Brasília, a. 37, n. 145, p 101-111, jan./mar., 2000, p. 105.

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Nesse sentido, então, Gadamer rejeita a hipótese de que alguém, no momento

de se debruçar sobre um texto, coloque-se no lugar do outro, posto que, para que

haja compreensão tem que haver a mediação do tempo, por força do período

histórico antecedente. Isso significa dizer que esse espaço temporal que separa as

pessoas — melhor: que separa o autor do intérprete —, tem que ser preenchido, sob

pena de não haver mais a necessária compreensão. A forma pela qual esse

processo se realiza é que Gadamer denomina de fusão de horizontes194.

Convém aqui abrir parêntese para explicar a noção de horizonte de Gadamer. À

medida que granjeamos a capacidade de usar a linguagem, adquirimos ao mesmo

tempo um horizonte, uma perspectiva do mundo. O termo horizonte, segundo Chris

Lawn, é especialmente apropriado, “pois sugere uma visão panorâmica a partir de

uma determinada perspectiva” 195.

Deveras, o horizonte para Gadamer é o âmbito de visão que alcança e

encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto196. Mas o horizonte

não significa qualquer tipo de limitação. Realmente,

Não obstante, ter horizonte não significa estar limitado àquilo que nos cerca mais de perto, mas pode ver, inclusive, por cima dele. Horizonte é apenas a dimensão do que o homem compreende e que ajuda a compreender-se a si mesmo. Aquele que tem horizonte consegue valorar o significado das coisas que se encontram dentro ou fora dele, segundo padrões de perto/longe, grande/pequeno, etc197.

E assim é exatamente porque, segundo Camargo198, Gadamer entende que o

horizonte do presente está em contínua formação, na medida em que colocamos

constantemente em prova os pré-juízos (pré-conceitos)199 formados sob as bases da

194 Segundo Chris Lawn “o termo ‘horizonte’, ocorrendo como é o caso no trabalho de Nietzche e

Husserl, não é original. Nas mãos de Gadamer este termo funciona como a idéia de Humboldt de que a linguagem oferece ao falante não somente os meios de comunicação, mas também um ponto de vista através do qual pode ver o mundo, uma visão global”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 91. 195

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 91. 196 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 32. 197

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 32. 198

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 32. 199

Para Gadamer, “ ‘Preconceito’ não significa pois, de modo algum, falso juízo, uma vez que seu conceito permite que ele possa ser valorizado positiva ou negativamente. É claro que ali está operando o parentesco com o praeiudicium latino, fazendo com que junto ao matiz negativo da palavra possa haver também um matiz positivo. Existem préjugés legitimes. Evidentemente isso

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tradição200. Eis aí o que Gadamer201 denomina de “fusão de horizontes”: o resultado

dialético do passado (tradição) arrostado com o presente202.

Essa ideia de horizonte, porém, como visto, supõe, em sua base estrutural, a

presença de outro principal pilar da teoria hermenêutica de Gadamer: a tradição.

Chris Lawn analisa o ponto de vista de Gadamer:

Contrário à idéia de que a tradição resiste ou cai diante de uma razão imparcial, Gadamer busca, em outra direção, o significado original da tradição. Proveniente do latim tradere, que significa “passar adiante”, a palavra se refere à atividade de transmissão, passar algo adiante de geração a geração. Há uma forma de entender esta transmissão como uma ação não reflexiva, negligentemente repetida de pai para filho. Mas, habilidades e práticas transmitidas como parte de uma tradição, não são meramente repetidas como uma linha de produção; aquilo que é transmitido está constantemente num processo de re-elaboração, re-processamento e re-interpretação. Na realidade, faz sentido dizermos que a razão, longe de ser aquilo que se coloca fora da tradição como um teste imparcial, é aquilo que é transmitido na tradição. As atividades de um determinado ofício, “sabemos como fazer”, incorporam o conhecimento prático acumulado da tradição. Para Gadamer, a tradição é uma força vital inserida na cultura; nunca pode ser obliterada e reduzida a uma mixórdia de crenças não-racionais ou irracionais, pois as crenças e a racionalidade fazem

parte de contextos maiores chamados de tradição203

204

.

passa muito distante dos sensores de nossa linguagem atual. O termo alemão Vorurteil (preconceito) – assim como o termo francês préjugé mas de modo ainda mais pregnante – parece ter sido restringido, pela Aufklärung e sua crítica religiosa, ao significado de ‘juízo não fundamentado’. É só a fundamentação, a garantia do método (e não o encontro com a coisa como tal), que confere ao juízo sua dignidade. Aos olhos do Aufklãrung, a falta de fundamentação não deixa espaço a outros modos de validade, pois significa que o juízo não tem um fundamento na coisa em questão, que é um juízo ‘sem fundamento’. Essa é uma conclusão típica do espírito do racionalismo. Sobre ele funda-se o descrédito dos preconceitos em geral e a pretensão do conhecimento científico de excluí-los totalmente”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 10 ed. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2008, p. 360-361. 200

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 33. 201

“Cada indivíduo ocupa um horizonte e, na tentativa de entender uma outra coisa ou pessoa, ou até

mesmo um texto, estende seus horizontes para incluir e se ‘fundir’ com os outros. A imagem da fusão sugere que os horizontes vêm juntos, e que o entendimento é visto mais como uma questão de acordo (negociado) do que um simples relacionamento entre duas pessoas sobre um determinado assunto com um objetivo específico”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 91. 202

“Dessa maneira, a compreensão que se realiza mediante o diálogo hermenêutico implica fundir o meu horizonte histórico com o do outro, ganhando um novo; isto é, não só conhecer o horizonte do pensamento do outro, senão inter-relacionar os horizontes próprios e os alheios para dar origem a uma nova expressão dos fatos”. LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... p. 105. 203

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 54. 204 “A tradição escrita não é apenas uma parte de um mundo passado, mas já sempre se elevou

acima deste, na esfera do sentido que ele enuncia. Trata-se da idealidade da palavra, que todo elemento de linguagem eleva acima da determinação finita e efêmera, própria aos restos de existências passadas. O portador da tradição não é este manuscrito como uma parte do passado mas a continuidade da memória. Através dela a tradição se converte numa parte do próprio mundo, e assim o que ela nos comunica pode chegar imediatamente à linguagem. Onde uma tradição escrita

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O conceito de tradição é de fundamental importância, porque sem ele não se

entende o desenvolvimento completo do estudo de Gadamer. Com efeito, sem o

domínio do conceito de tradição não se é capaz de perceber o exato sentido da

forma como Gadamer trabalha não só o tempo como a história no processo de

interpretação.

Mais uma vez é Chris Lawn quem dá a tônica desse pensamento gadameriano:

Apesar da imagem do pós-Iluminismo do eu como autônomo, auto-reflexivo e não-constrangido nas garras da conformidade social, os indivíduos são, ao contrário, enraizados, e incrustados num ambiente cultural específico, dentro do qual os movimentos em direção ao auto-entendimento sempre devem ser reconciliados. Este ambiente específico Gadamer chama de tradição. Mais uma vez, contrário á sabedoria recebida da Modernidade, Gadamer considera a tradição como sendo, assim, como preconceito, parte de um plano de fundo

para o nosso engajamento no mundo205

.

Contudo, é Michele Taruffo quem realmente sintetiza o entendimento de

tradição de Gadamer:

Nesse sentido, poder-se-ia entender que isso que consideramos como senso comum equivalha substancialmente ao que constitui a tradição na teoria de Gadamer, ou seja, o conjunto de noções, conhecimentos, lugares-comuns, componentes ou condutas culturais que integram o substrato ou fundamento inicial do intérprete no

momento em que se põe de frente ao texto a interpretar206

.

Para Gadamer, é na “fusão dos horizontes” onde se dá “a plenitude da conversa,

na qual ganha expressão uma coisa que não é só de interesse meu ou do meu

chega a nós, não só conhecemos algo individual mas se faz presente em pessoa uma humanidade passada em sua relação universal. Por isso, nossa compreensão permanece tão insegura e fragmentária naquelas culturas das quais não possuímos nenhuma tradição de linguagem mas apenas monumentos mudos; a essas notícias do passado ainda não chamamos de história. Os textos, ao contrário, sempre trazem à fala um todo. Traços sem sentido, que de tão estranhos se tornam incompreensíveis, quando interpretados como escrita de repente aparecem a partir de si mesmos como passíveis de uma compreensão muito exata, tão exata que podemos corrigir os acidentes de uma tradição deficiente, uma vez que se tenha compreendido o contexto como um todo”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 505. 205

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 91. 206

TARUFFO, Michele. Senso comum... ob. cit., p. 176.

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autor, mas de interesse geral” 207. Diante dessa ideia de horizonte e, por

conseguinte, de uma postura que pretende desmistificar o passado histórico,

Gadamer, ao distinguir os preconceitos que cegam do que esclarecem208, reconstrói,

na verdade, o conceito de preconceito, outorgando-lhe “um caráter essencial dentro

de sua teoria hermenêutica, eliminando, assim, a carga negativa de juízo antecipado

que tinha adquirido durante a Ilustração” 209. Na dicção do próprio Gadamer, “este é

o ponto de partida do problema hermenêutico” 210. E arremata: “foi por isso que

examinamos o descrédito do conceito do preconceito na Aufklärung” 211.

Gadamer procura, assim, responder à questão por ele mesmo posta em sua

obra Verdade e Método, quando demonstra os fundamentos da legitimidade do

preconceito. Resumindo, pode-se dizer que

...a pré-compreensão, constituída por preconceitos, será a condição prévia para a compreensão de um texto, ou seja, o “pano de fundo” (background) que permitirá compreender. Nesse sentido, cada vez que um texto seja compreendido, a pré-compreensão se modificará. Cada nova leitura de um texto será diferente, não necessariamente melhor, senão simplesmente diferente, devido não só a que a pré-compreensão se modifica a cada leitura, senão que a própria história

efetual do texto é, por sua vez, modificada212

.

Chegamos ao círculo hermenêutico de Gadamer. Ora, o que Gadamer denomina

de círculo hermenêutico é isso: os muitos pré-conceitos do intérprete, que compõem

seu horizonte, e que são formados pela tradição, vão ao encontro dos novos

espaços de compreensão, gerados pelo desenvolvimento da história, e retroagem

ao intérprete agora sem a mesma configuração anterior, num processo contínuo,

enquanto durar, é claro, o processo interpretativo213

214

.

207

Cf. RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 51. 208

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 34. 209

LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... ob. cit., p. 106. 210

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método.... ob. cit., p. 368. 211

Idem. 212

LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... ob. cit., p. 107. 213

RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 54. 214

“Considerando que esse processo nunca se esgota ou se estabiliza, ao contrário, está numa progressão sem fim, alguns estudiosos o chamarão de espiral hermenêutico. Para esses, o espiral hermenêutico é a imagem que melhor representa o fato de que o intérprete não retorna da mesma forma que nele entrou, de que não leva os mesmos pré-conceitos originais”. Cf. RIBEIRO, Fernando

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Eis o exemplo elucidativo de Chris Lawn:

Quando lemos um livro, por exemplo, sempre entendemos a sentença imediata que estamos lendo num determinado tempo em relação ao trabalho como um todo. A idéia do círculo hermenêutico é de que o entendimento parcial de uma porção do texto sempre modifica o todo, e o todo, as partes. O processo da leitura, do entendimento e da interpretação é, portanto, interminável; não existe

uma leitura definitiva de um texto215

.

Sendo assim, o círculo hermenêutico resulta de um embate entre a tradição de

quem está interpretando o texto, vale dizer, entre o horizonte do intérprete com o

horizonte refletido pelo próprio autor da obra. Seguindo essa linha de raciocínio é

que Fernando Ribeiro e Bárbara Braga ressaltam não ser possível se manter sólidos

os mesmos e anteriores pré-conceitos, uma vez que nesse entender filosófico, todos

os pré-conceitos se modificam, quando outros novos não são “instaurados no

processo de compreensão” 216.

Em relação ainda ao círculo hermenêutico, fica claro que Gadamer procurou

demonstrar que a interpretação de um texto como ato posterior da compreensão –

sua forma explícita, portanto –, é ato em que o intérprete estabelece a relação atual

do passado217. Ou melhor, a interpretação é um processo gradativo de adaptação de

um texto – que se encontra voltado ao passado – às circunstâncias atuais.

Não por outra razão, Gadamer insiste em que um texto é irrepetível em termos

de interpretação, não só para quem interpreta o texto, mas até mesmo para o seu

próprio autor218, na medida em que todos são intérpretes das próprias ideias uma

vez elaboradas e concluídas219.

Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 54. 215

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 190. 216

RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 54. 217

Cf. Inocêncio Mártires: “Apesar disso, cumpre insistir na advertência de Hans-Georg Gadamer, a nos dizer que o intérprete, para compreender o significado de um texto, embora deva olhar para o passado e atentar para a tradição, não pode ignorar-se a si mesmo, nem desprezar a concreta situação hermenêutica em que ele se encontra – o aqui e o agora – pois o ato de concretização de qualquer norma jurídica ocorre no presente e não ao tempo em que ela entrou em vigor”. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional... ob. cit., p. 91. 218

Para Gadamer, “Disso segue-se - o que a hermenêutica jamais deveria esquecer – que o artista que cria uma obra não é seu intérprete qualificado. Como intérprete não tem nenhuma primazia

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No intuito de encerrar esse item relacionado com a perspectiva de hermenêutica

Gadameriana, os dois últimos aspectos a serem abordados, pela ordem, serão: o

método e a linguagem.

Gadamer inicia o embate discursivo sobre o método como diretriz racional para o

alcance da verdade, afirmando basicamente o contrário de Descartes. Enquanto

Descartes defende, no auge do pensamento iluminista220, que o conhecimento

verdadeiro é puramente intelectual, ou seja, derivado da razão pura e simples,

Gadamer, por outro lado, posiciona-se no sentido de que a metodologia científica é

insustentável como móvel único para se alcançar a verdade, até porque “o método

obstrui a verdade ou, ao invés disso, um encontro básico e fundamental com a

verdade é perdido quando recorremos à dependência do método” 221.

Segundo Fernando Ribeiro e Bárbara Braga, Gadamer entende que “não se

pode poupar o objeto dos pré-conceitos que o intérprete possa trazer” 222 e que “não

há como esterilizar a coisa cognoscível da contaminação causada pelo intérprete

sem deixar estéril o propósito conhecimento” 223.

Resta claro, pelo tratamento que Gadamer dá à problemática do método, que,

para ele, a verdade é algo ligado à experiência224, diferentemente de Descartes que

“reprova expressamente a influência dos costumes, dos valores e das opiniões em

básica de autoridade face ao simples receptor de sua obra. Na medida em que ele próprio reflete, converte-se em seu próprio leitor. Sua opinião como produto dessa reflexão não é paradigmático”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 264. 219

LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer... ob. cit., p. 107. 220

“O pensamento iluminista é difícil de ser caracterizado em poucas palavras. Ele foi um movimento intelectual radical do norte da Europa, com suas raízes no século XVIII, mas se transformou em sinônimo da modernidade filosófica. Existem muitos comentários atualmente sobre o ‘Projeto de Iluminismo’ com um movimento distinto, com um conjunto claramente identificável de objetivos e propósitos. Não importa o que seja o Iluminismo, ele coloca uma enorme ênfase no poder da razão humana para subverter, expor e derrubar as práticas tradicionais costumeiras. Existe um elo bem direto entre o questionamento da autoridade da sabedoria popular e o pensamento, no Discurso sobre o método, e a crença canônica do Iluminismo, de que a razão deveria se tornar o teste indicador das crenças e atividades socialmente, Isto é, nacionalmente aceitas. O Iluminismo, em sua cruzada política de rejeitar todas as formas fanáticas e reacionárias do pensamento que não passam pelo teste da razão, tem diante de si as forças perigosas dos dogmas religiosos e políticos, superstição, preconceito e autoridades usurpadas. Em outras palavras, qualquer uma das práticas legais, religiosas, morais ou políticas que não se sustentam somente pela razão, são imediatamente colocadas sob suspeita como forças negras da reação”. LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 51. 221

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 84. 222

RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 55. 223

RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 55. 224

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 86.

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suas considerações sobre a razão, por considerá-los fatores de origem indefinida e

obscura que contaminam a pureza e a clareza do raciocínio” 225.

Por último, a linguagem.

Aristóteles afirma que somente o homem é “um animal político” 226. Isso deriva

do fato de que é o homem o único ser vivo dotado de linguagem, já que os animais

apenas possuem voz, por via da qual simplesmente exprimem dor ou prazer227 228.

Somente os homens, portanto, são capazes de vida social e política porque

possuem a linguagem capaz de transmitir sentimentos e valores como justo e

injusto, bom e mau, etc 229.

Na antiguidade, a linguagem e a filosofia eram apreciadas em conjunto. Como o

cerne fundamental da filosofia clássica sempre foi a apreciação central do raciocínio,

a linguagem era vista como um predicado, na medida que era considerada “um meio

de transporte através do qual os pensamentos viajavam” 230. Dessa maneira de

encarar a linguagem, na forma como pensada por Aristóteles, deriva a denominação

de teorias designativas231. Tais teorias declaram que a linguagem “é significativa

porque pinta, representa ou designa o mundo” 232.

Chris Lawn exemplifica:

Nesta teoria, a palavra “cadeira” é significativa porque existem objetos no mundo chamados cadeiras para os quais a palavra existe. E a linguagem é significativa porque podemos representar o mundo

com exatidão, usando palavras para conversar sobre objetos233

.

225

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação... ob. cit., p. 49. 226

CHAUÍ. Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática. 1994, p. 136. 227

CHAUÍ. Marilena. Convite à filosofia.... ob. cit., p. 136. 228

“Do ponto de vista ontológico, isso significa que eles podem até entender-se uns aos outros, mas não podem se entender sobre conjunturas (Sachverhalte) como tais, cujo conteúdo é o mundo. Aristóteles já vira isso com muita clareza: enquanto o grito dos animais induz seus companheiros de espécie a uma determinada conduta, o entendimento que se dá na linguagem através do logos revela o que é como tal”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 574. 229

CHAUÍ. Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática. 1994, p. 136. 230

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 104. 231

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 104. 232

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 104. 233

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 104.

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Portanto, pode-se dizer que os filósofos que pertencem à teoria designativa da

linguagem consideram as palavras como representantes das coisas ou como

objetos234.

Gadamer, todavia, não faz parte dessa corrente filosófica. Influenciado por

filósofos como Humboldt e Heidegger, que entendem que a linguagem é,

fundamentalmente, um fenômeno social, cultural e histórico, e que o poder da

linguagem está em expressar especialmente o significado de ser do homem235,

decerto Gadamer identifica-se “como parte da tradição expressiva da linguagem”236.

Ora, como o nome dá a entender, o expressivismo se refere ao “poder da

linguagem em expressar, especialmente o poder de expressar o que significa ser

humano” 237 238.

Feitas essas singelas considerações sobre como as duas principais correntes

filosóficas entendem a linguagem, pode-se dizer, baseado no trabalho de Chris

Lawn, que a linguagem expressiva constitui ou representa o mundo do ser humano e

que “o mundo humano só é possível através das solidariedades íntimas da

linguagem e da vida cultural e sem estas solidariedades não existiria o mundo

humano” 239.

Sendo certo que Gadamer parte da tradição expressivista, pode-se adiante, em

poucos pontos, abordar a forma como Gadamer entende a linguagem e a

importância que ela tem para o seu estudo.

Deveras, em Gadamer, o primado da linguagem é o sustentáculo de seu projeto

hermenêutico240. Gadamer afirma que “a linguagem é o médium universal em que se

realiza a própria compreensão” 241. E que “a forma de realização da compreensão é

234

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 105. 235

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 571. 236

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 105. 237

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 107. 238

Chris Lawn, citando filósofo canadense, diz o seguinte: “Em um exemplo dado pelo filósofo canadense, Charles Taylor, uma pessoa que entra em um vagão de trem com o seguinte comentário: ‘Ufa, está quente aqui!’, não está procurando usar a linguagem para descrever o estado das coisas ou comunicar aos outros no vagão aquilo que eles não conseguiram perceber ainda. Aqui está um paradigma da linguagem usada de maneira expressiva. A declamação diz mais do que a fala”. Idem. p. 107. 239

LAWN, Chris. Compreender Gadamer... ob. cit., p. 107. 240

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 216. 241

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 503.

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a interpretação” 242. Logo, é o próprio Gadamer que conclui que todo compreender é

interpretar, “e todo interpretar se desenvolve no médium de uma linguagem que

pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do

intérprete” 243.

Se já foi visto então que Gadamer não se enquadra na corrente filosófica que

entende a linguagem como atribuição do homem unicamente para descrever os

objetos, resta óbvio aceitar dele o seu entendimento de que é pela linguagem que se

compreende, na medida em que é por meio dela que se relacionam velhas

descrições com outras palavras. Ou seja, é por meio da linguagem que se cria e

age244.

Para Lenio Streck, com Gadamer a hermenêutica deixa de ser metódica para ser

filosófica245. É dizer, “a linguagem deixa de ser instrumento e veículos de conceitos -

deixando, assim, de ‘estar à disposição do intérprete’ – para ser condição de

possibilidade da manifestação do sentido” 246. É por isso que Lenio Streck afirma,

em sintonia com Gadamer, que o intérprete não interpreta por partes, na forma

estabelecida pela hermenêutica clássica, mas de uma só vez247. É neste momento

que Lenio Streck248 assevera que aí reside a maior contribuição de Gadamer para a

hermenêutica jurídica.

1.5 Segurança versus Justiça

Procurar uma definição exata para Direito, Justiça e Segurança não é tarefa das

mais fáceis.

No que toca ao Direito, a ampla divergência dos juristas e, principalmente, dos

jusfilósofos que se preocupam nos seus trabalhos com o tema é gritante. O que se

242

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 503. 243

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método... ob. cit., p. 503. 244

RIBEIRO, Fernando Armando e BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na

perspectiva hermenêutica... ob. cit., p. 57. 245

STRECK, Lenio Luiz. Passim. 246

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 216. 247

Cf. Lenio Streck “Tampouco o intérprete interpreta por partes, como que a repetir as fases da hermenêutica clássica: primeiro, a subtilitas intelligendi, depois, a subilitas explicandi; e, por último, a subtilitas applicandi”. Claro que não! Gadamer vai deixar isto muito claro, quando que estes três momentos ocorrem em um só: a applicatio”. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... p. 216. 248

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 217.

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observa facilmente é que o conceito do Direito varia conforme a formação ou os

interesses científicos do pesquisador. Assim, se a área de interesse de estudo do

filósofo é a sociologia, o conceito de Direito para esse estudioso irá pender para o

elemento social. Ou, “se de têmpera legalista, identificará o Direito com a norma

jurídica; se idealista, colocará a justiça como elemento primordial” 249 250.

Na visão de Kelsen, do ponto de vista da ciência do direito, livre dos influxos

morais ou políticos, o direito representa um conjunto de regras de ordenamento da

conduta humana251. Ao afastar influxos valorativos na formação do direito, Kelsen

admite a possibilidade de que ordens jurídicas possam ser injustas, porque direito e

justiça são conceitos distintos. Tal percepção kelseniana ocorre em razão de que é

possível uma ordem jurídica limitar determinada liberdade pessoal, sem que, com

esse proceder, fique impedida de autodenominar-se de Direito. O exemplo que o

autor traz em seu livro Teoria Geral do Direito e do Estado é simples: ele alude aos

Estados bolchevique, nazista e fascista, que limitaram sobremaneira a liberdade

pessoal e de utilização da propriedade privada. Ora, independentemente desses

fatores de ordem jurídica, não se poderia deixa de dizer que as ordens sociais da

Rússia, Alemanha e Itália, respectivamente, não pudessem ser estudadas ou

analisadas como ordens jurídicas, posto que, nada obstante referidas restrições,

tinham em comum em relação aos demais Estados democráticos de direito outros

elementos jurídicos de grande importância.

Embora admita a dificuldade que é liberar o conceito de Direito da noção de

justiça, porque tais conceitos “são constantemente confundidos no pensamento

político não científico” 252, essa necessidade científica se impõe, haja vista que “se

apenas uma ordem justa é chamada de Direito, uma ordem social que é

apresentada como Direito é – ao mesmo tempo – apresentada como justa, e isso

249

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. p. 73. 250 Conclusões semelhantes a que chegam Roberto Senise Lisboa e Carlos Aurélio Mota de Souza,

respectivamente, cada um a seu modo: “Direito é expressão de sentido análogo, que pode significar uma das ciências éticas, norma jurídica, autorização legal, permissão, justiça, equidade”. LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, v. 1. Teoria geral do direito civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003, p. 54. “O Direito pode ser encarado sob cinco aspectos: como Ciência, objeto da Epistemologia; como Justiça, objeto da Axiologia jurídica; como Norma, estudado pela Dogmática; como Faculdade, estudado pela Teoria dos Direitos Subjetivos, e como Fato social, objeto da Sociologia jurídica”. SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTr, 1996, p.90. 251

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução: Luis Carlos Borges. 3 ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 5. 252

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 8.

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significa justificá-la moralmente” 253. Daí que, para Kelsen, essa forma de identificar

o Direito é uma tendência contrária à ciência, porque de viés político254.

É compreensível a visão de Kelsen. As sociedades contemporâneas são

compostas de populações para lá de heterogêneas: classes sociais distintas e com

elevada distância de realidade uma das outras; profissionais com alto grau de

especialização, exigindo normatização as mais específicas possíveis; diversidade

cultural; divergência de educação e costumes; tudo isso determina um conceito

diferente de justiça dentro mesmo de um único ordenamento jurídico. Além do mais,

sabe-se que o critério democrático (maioria) também não se revela prova cabal de

que o valor de justiça proferido nas decisões judiciais seja o mais indicado. Esse

caráter subjetivo do sentimento de justiça é o complicador que faz com que Kelsen

deixe de incluir a justiça no conceito de Direito. Não se trata, porém, de negação da

justiça, “mas – e aqui reside o ponto fundamental, tantas vezes polêmico, do

normativismo – de recusa em incluí-la no campo da investigação jurídico-científica,

considerada em termos estritamente formais” 255. Na dicção do próprio Kelsen, o

Direito “é um conjunto de regras que possui o tipo de unidade que entendemos por

sistema” 256.

A despeito, porém, dessa problemática científica do direito de Kelsen, Paulo

Nader, examinando o vocábulo do ponto de vista objetivo, considera que o Direito “é

o conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para

a realização da segurança, segundo os critérios de justiça” 257.

Da definição acima, as duas últimas partes são as que mais interessam para a

abordagem desse item. Isso porque, tal como se nota, a definição ressalta que o

Direito é imposto coercitivamente pelo Estado e tem como finalidade a realização da

segurança, segundo os critérios de justiça. A importância dessas locuções reside na

seguinte questão: diante de tal conceito, seria admissível que o magistrado criasse o

Direito?

253

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 8. 254

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 9. 255

LIRA, Jorge Américo Pereira de. Ordenamento jurídico e norma jurídica, uma abordagem analítico-

sistêmica-dogmática. Recife: Revista da ESMAPE/Escola Superior da Magistratura de Pernambuco. Volume 13, n. 27, jan./jun. 2009, p. 281. 256

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 5. 257

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito.... ob. cit., p. 76.

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Embora a princípio possa parecer que o conceito de Paulo Nader obsta que o

magistrado crie o Direito, com efeito, como já demonstrado anteriormente, o

magistrado poderá realizá-lo desde que o ato seja fruto de um processo

hermenêutico, quer dizer, que seja consequência de um ato interpretativo da norma,

visando primordialmente aplicar a Justiça ao caso concreto.

Quanto ao conceito de Justiça, Paulo Nader lembra que a conceituação mais

antiga, encontrada no Corpus Juris Civilis, é “dar a cada um o que é seu”. Mas

adverte:

Esta colocação, que enganadamente alguns consideram ultrapassada em face da justiça social, é verdadeira e definitiva; válida para todas as épocas e lugares, por ser uma definição apenas de natureza formal, que não define o conteúdo do seu de cada pessoa. O que sofre variação, de acordo com a evolução cultural e sistemas políticos, é o que deve ser atribuído a cada um. O capitalismo e o socialismo, por exemplo, não estão de acordo quanto

às medidas de repartição dos bens materiais na sociedade258

.

Nada obstante, é Carlos Aurélio Mota de Souza, baseado na filosofia aristotélica,

quem expõe mais acentuadamente o conceito de Justiça:

A Justiça apresenta três faces: uma é a que regula as relações entre os membros da sociedade (de modo geral, a Justiça, como o Direito, só se realiza entre pessoas humanas); é a Justiça entre particulares, como se verifica nos contratos voluntários, chamados comutativos ou sinalagmáticos; é a Justiça comutativa, porque nela estão presentes valores equivalentes ou valências eqüitativas.

....

O segundo tipo, a Justiça distributiva, é a que do todo se dirige às partes, ordena aos governantes distribuir cargos e encargos segundo as necessidades do Estado e os méritos dos cidadãos; é a Justiça da Pólis.

....

A justiça legal ou geral, por sua vez, ordena aos governantes que elaborem leis e decretos justos, orientados ao bem comum, ao bem-estar de toda a sociedade, sem discriminações injustas; exige, igualmente, dos cidadãos, a justa observância das leis e dos deveres

258

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito... ob. cit., p. 105.

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em relação ao Estado. Por isso se chama, também, Justiça social 259

.

É evidente que a busca da noção exata de Justiça é algo que desafia os

jurisconsultos e filósofos260 261. Na ótica teológica, por exemplo, a discussão

envereda por um caminho sem volta, posto que as diversas religiões embutem sua

moral na concepção própria de justiça. Acresça-se a isso que a “justiça é um valor

sempre presente no discurso político de qualquer tendência, quando se objetiva

alcançar os setores marginalizados da sociedade, sobretudo quando se lança mão

da idéia de ‘justiça social’” 262.

Mas a segurança jurídica é também lembrada quando o debate se instala acerca

da tarefa criativa de aplicação do direito por parte dos magistrados. Sem dúvida, a

função primordial de um sistema ordenado de leis é promover a harmonia social,

bem como a sustentabilidade dos poderes do Estado. Numa frase: o ordenamento

jurídico visa fomentar segurança. Só que a discussão é aquecida toda vez que se

pretende que a segurança seja guindada ao quadrante máximo de valor de uma

sociedade, em detrimento da justiça ou vice-versa.

Do que já foi visto nos itens anteriores deste trabalho, restou demonstrado que

os juristas da Escola da Exegese do século XVIII, com seu apego ao direito

codificado, buscavam uma segurança jurídica que permitisse ao Estado a

consecução de seus objetivos, notadamente como guardião do cidadão contra o

arbítrio dos juízes do ancién regime, antes da Revolução Francesa.

259

SOUZA, Carlos Aurelio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque.... ob. cit., p.71-

72. 260

Segundo David Schanaid, Perelman confessara o seguinte no livro Droit, moral e philosophie – p.2 “Há exatamente vinte anos que eu terminei a redação de meu primeiro estudo sobre a justiça. Mas em lugar de considerar minha tarefa como finda, e de me voltar para outros trabalhos, eu nunca cessei de refletir sobre sua noção, as dificuldades que sua aplicação apresentam, o paradoxo que resulta de que, aparentemente racional, ela suscita discussões e divergência de visões, opostas à idéia tradicional de razão e de racional”. SCHNAID, David. Filosofia do direito... ob. cit., p. 245. 261

“Aquilo que até agora tem sido proposto como Direito natural ou, o que redunda no mesmo, como justiça, consiste, em sua maior parte, em fórmulas vazias, como suum cuique, ‘a cada um o seu’...Mas a fórmula ‘a cada um o seu’ não responde à questão do que é ‘o seu de cada um’... Alguns autores definem justiça pela fórmula ‘você fará o certo e evitará fazer o errado’. Mas o que é certo e o que é errado’?...Quase todas as fórmulas consagradas que definem justiça pressupõem a resposta esperada como evidente por si mesma. Mas essa resposta não é, de modo algum evidente”. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 14. 262 MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais... ob. cit., p. 103.

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No âmbito da concepção do Estado liberal, prevalecia, no caso, o pressuposto

de que o conteúdo normativo proveniente do Poder Legislativo, especialmente

organizado através do processo de codificação, era suficiente para se obter a

igualdade entre os homens e, por via de consequência, a segurança necessária ao

bem-estar da população. Mas como resolver o dilema originário da situação em que

o magistrado tinha que decidir em face, por exemplo, das antinomias das normas

jurídicas, a fim de aplicar a justiça? Ou seja, o papel criativo da jurisprudência seria

capaz de afetar a segurança do sistema legal?

Se partirmos do pressuposto de que, nos dias atuais, a mera aplicação

silogisticamente do texto legal não é, em boa parte das demandas judiciais, capaz

de promover decisões justas ou associadas à realidade subjacente, notadamente

em face de um ordenamento jurídico concebido com normas prenhes de conceitos

abertos e indeterminados, como estabelecer uma racionalidade conciliatória entre

segurança e justiça?

O Direito Alternativo, v.g., partindo da premissa de que a segurança oferecida

pelo sistema normativo vigente é penhor das classes dominantes que elaboram a lei

– ou têm, de alguma forma, papel preponderante na sua confecção –, entende válida

a aplicação do “justo” ainda que oposto ao valor positivado na lei. Tal concepção,

portanto, admite a hipótese de uma decisão judicial ser válida mesmo que proferida

“contra legem”, já que o direito não se esgotaria na legislação estatal263.

Nascido na década de 1960, notadamente entre os magistrados italianos, que

compunham a denominada Magistratura Democrática, o “direito alternativo”, que tem

o propósito de romper com as estruturas do direito positivo, assumiu importância

entre alguns membros do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul264.

A doutrina do direito alternativo reza que a lei por si só é insuficiente para

assegurar a igualdade entre as pessoas, sobretudo em um sistema erguido sobre

uma sociedade onde não prevalece a igualdade material265. Com efeito, para os

adeptos do direito alternativo, se a igualdade jurídica assegurada pela Constituição

263

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Alternatividade e retórica no direito: para além do embate ideológico.

Recife: Revista Esmape, v.2, n.5, jul./set. 1999, p. 389. 264

GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.152. 265

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

1997, p. 59.

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“não corresponde à igualdade real da vida concreta do povo brasileiro, então a

ordem jurídica não está assegurando, na prática, a igualdade que se apregoa” 266.

Nesse sentido, como as leis refletem os segmentos da sociedade melhor

aparelhados, ou seja, aqueles que têm a possibilidade de exercer pressão (lobby)

perante os membros do Poder Legislativo, o ordenamento jurídico espelharia muito

mais interesses egoísticos do que propriamente os interesses das camadas mais

carentes da população. Por essa forma de pensar, a aplicação da lei pura e simples

pelo magistrado somente favorece às classes dominantes, aumentando mais

severamente ainda o grau de injustiça e desigualdade social.

Sendo essa, portanto, a visão que o direito alternativo apresenta do teor dos

textos normativos oriundos do parlamento, outra saída não há para se alcançar a

justiça senão que o aplicador da lei interprete os textos legais sempre em favor das

classes menos favorecidas.

Na síntese de Eros Roberto Grau, a proposta fundamental do direito alternativo

é a adoção de “uma norma sobre a interpretação dos textos normativos: os textos

normativos devem ser interpretados em favor dos pobres e oprimidos” 267.

Rui Portanova torna firme essa ideia ao expor que “a segurança é valor que por

si só se opõe ao valor de justiça”268. Em sendo assim, quanto mais o julgador busca

proferir decisões previsíveis, mais uniformes, e, portanto, quanto mais ele almeja

segurança no ordenamento jurídico, mais se afasta dos ideais de justiça. A busca da

segurança é própria das classes sociais que fizeram a lei ou que “tiveram papel

preponderante na sua feitura”269 . O valor da justiça é, para o direito alternativo,

decisivamente mais importante que o papel da segurança no cenário social, já que a

incerteza é característica que faz parte da própria essência do homem270. O capital é

que requer estabilidade para se desenvolver. Daí não ser surpresa o fato de que,

fincado basicamente sobre a prevalência do sentimento de justiça, a crítica do direito

alternativo atribui a pecha de injusta à lei “quando contrária aos princípios gerais do

266

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 60. 267

GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.152. 268

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 61. 269

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 61. 270

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 61.

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Direito ou da justiça e quando é imenso o contraste entre os valores do ordenamento

jurídico e o sentimento de justiça preponderante na sociedade” 271.

Ocorre que o direito legislado não representa apenas o lobby institucionalizado.

Para Eros Grau, os integrantes do movimento do direito alternativo laçam-se “a

um tipo de práxis que pode conduzir a resultados apenas não inusitados para quem

conhece os abusos e atrocidades da ‘livre interpretação’ que o fascismo e o nazismo

predicaram” 272.

Em uma síntese,

A teoria do “direito alternativo” desemboca no subjetivismo do juiz, nada impedindo, absolutamente nada, que a norma sobre a interpretação de normas (isto é, interpretação de textos normativos) hoje consagrada – que socialmente me satisfaz – seja amanhã substituída por outra, opressiva, sacrificante de direitos fundamentais. A teoria, então justificará a negação do próprio direito

e, no limite, conduzirá à anomia273

.

Por fim, arremata ainda Eros Grau:

O direito alternativo, carente de referenciais teóricos suficientes,

aparentemente ingenuamente bem-intencionado, pode vir a consubstanciar nada mais do que uma nova versão da velha regra que recomenda tudo para os amigos, mas, para os inimigos, nem mesmo os rigores da lei: a lei da vingança privada. Valham-nos,

contra isso, o procedimento legal e a legalidade 274

.

Deveras, o discurso da alternatividade do direito, ao recorrer ao emocional da

retórica de impacto e das frases de efeito, apelando para a sensibilidade política dos

aplicadores do direito em geral275, se perde na pura retórica, como assinala Fábio

Ulhôa Coelho276, variando unicamente quanto ao maior ou menor grau de

convencimento que obtenha277.

271

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas... ob. cit., p. 127. 272

GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.153. 273

GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.153. 274

GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p.157. 275

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Alternatividade e retórica no direito... ob. cit., p. 398. 276

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Alternatividade e retórica no direito... ob. cit., p. 398. 277

Na opinião de Alf Ross: “Invocar a justiça é como dar uma pancada numa mesa: uma expressão

emocional que faz da própria exigência um postulado absoluto. Não é o modo adequado de obter entendimento mútuo. É impossível ter uma discussão racional com quem apela para a ‘justiça’,

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Em análise crítica à postura da retórica do Direito alternativo, João Paulo Allain

Teixeira expõe que:

O discurso da alternatividade concebido nos termos de um embate entre “dogmáticos conservadores” e “contra dogmáticos revolucionários” fica esvaziado de sentido, sendo de pouca significação prática a constatação da existência de um direito paralelo se não houver a preocupação com a determinação objetiva e segura daquilo que se entenda por justiça. Preferimos então, a cautela da busca pela realizabilidade do direito, seja ele oficial, seja ele paralelo, libertando-o tanto quanto possível das interpretações sectárias, casuísticas e não generalizáveis. Trata-se então de promover o uso efetivo e democraticamente generalizável do direito, dotando-o sobretudo de mecanismos capazes de conciliar tanto quanto possível, justiça e segurança. Para tanto, acreditamos no relevante papel que a interdisciplinaridade no direito tem a desempenhar.

Nesse sentido, parece haver uma quase absoluta concordância na doutrina dominante, sempre apontando – com terminologias diversas é bem verdade – a necessidade da interdisciplinaridade no direito

como fator de conciliação entre segurança e justiça278

.

Superada a visão de Justiça do Direito alternativo279, João Paulo Allain Teixeira,

apoiado em lição do jusfilósofo Aulis Aarnio, ao rejeitar a tese de que a segurança

do direito se alcança pela tese de uma “única decisão justa”, aponta o caminho

salvador para o discurso racional: ou seja, a busca da justiça pela decisão correta do

magistrado, deve acontecer de modo discursivo, e, portanto, intersubjetivo280. É

dizer, enfim, que “os conceitos de legalidade e razoabilidade são reciprocamente

complementares proporcionando a passagem do Estado de Direito (dimensão

formal) para o Estado de Justiça (dimensão material)” 281.

porque nada diz que possa receber argumentação a favor ou contra. Suas palavras são persuasão, não argumentos. A ideologia da justiça conduz à intolerância e ao conflito...”. ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2000, p.320. 278

TEIXEIRA, João Paulo Allain. Alternatividade e retórica no direito... ob. cit., p. 400. 279

Superação também defendida por Carlos Aurélio Mota de Souza: “No tocante ao denominado uso

alternativo do Direito, consideramos válida a discussão das questões sociais, que interessam à Justiça social, sobretudo dentro de um Estado democrático pluralista; mas a praxis indeterminada de idéias políticas na aplicação do direito transforma os operadores do Direito, de servidores em árbitros discricionários da Justiça, o que constitui violência do próprio ordenamento, levando ao niilismo jurídico ou anarquia do Direito”. SOUZA, Carlos Aurelio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência... ob. cit., p. 269. 280

TEIXEIRA, João Paulo Allain, Crise moderna e racionalidade argumentativa no direito: o modelo de Aulis Aarnio. Brasília. Revista de Informação Legislativa, ano 39, n. 154, abr./jun. 2002, p. 225. 281

TEIXEIRA, João Paulo Allain, Crise moderna e racionalidade argumentativa no direito... ob. cit., p.

225.

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Nada obstante a Justiça ser um valor de contorno conceitual dos mais

complexos, convém reconhecer – e aqui certamente contrariando a racionalidade

positivista -, entre as principais tarefas dos jusfilósofos está propriamente discutir o

seu valor, não sendo nem ofício dos mais importantes apresentar solução para o

dilema, mas ter a consciência da complexidade da dimensão conceitual da justiça282.

Do que já foi dito e repetido, então, consagra-se a assertiva que

necessariamente segurança e justiça não precisam viver no plano dogmático em

polos diversos, como que em uma gangorra, onde quando uma criança sobe outra

necessariamente tem que tocar o chão, sendo possível e, até mesmo desejável, que

o princípio da segurança jurídica, de relevância para o Estado Democrático de

Direito, até por conta de seu assento constitucional, seja revigorado, sem, contudo,

rivalizar com os valores relativos à Justiça.

Isso tudo para que a doutrina não tenha que se pautar na discussão na base do

tudo ou nada, de forma a que, não se alcançando o equilíbrio esperado entre os dois

conceitos, venha a ter que sacrificar um valor para salvar outro, como parece ter

sido a rotina até hoje nas sociedades modernas.

1.6 Jurisprudência uniforme e súmula vinculante: instrumentos válidos de combate à

insegurança jurídica?

Em um de seus artigos mais recentes, Luiz Guilherme Marinoni demonstra o

quanto a segurança e a previsibilidade foram, ao longo dos séculos, bens almejados

pelos sistemas jurídicos, em especial o common law e o civil law 283

.

282

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia... ob. cit., p.

466. 283

“O próprio Monstesquieu fez coro pela segurança jurídica fundada na estrita aplicação da lei

quando disse que, se os julgamentos ‘fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos’...A certeza de Direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei, ou, melhor dizendo, na própria lei. O ponto tem enorme relevância. Note-se que o civil law não apenas imaginou, utopicamente, que o juiz apenas atuaria a vontade da lei, como ainda supôs que, em virtude da certeza jurídica daí decorreria, o cidadão teria segurança e previsibilidade no trato das relações sociais. Isso significa, portanto, que, nos países que não precisaram se iludir com o absurdo de que o juiz não poderia interpretar a lei, naturalmente aceitou-se que a segurança e a previsibilidade teriam que ser buscadas em outro lugar. E que lugar foi este? Ora, exatamente nos precedentes, ou, mais precisamente, no stare decisis. A segurança e previsibilidade obviamente são valores almejados por ambos os sistemas. Mas, supôs-se no civil law que tais valores seriam realizados por meio da lei e da sua estrita aplicação pelos juízes, enquanto

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A despeito de cada um desses principais sistemas ter procurado caminho

próprio para salvaguardar esses bens – no civil law é a lei que pretende representar

a segurança; e no common law é o stare decisis –, fato é que não se desconhece

que a segurança jurídica, “é indispensável para a formação de um Estado que se

pretenda ser ‘Estado de Direito’ ” 284 .

As codificações refletiram, na família do civil law, essa necessidade da

sociedade ter uma ordem jurídica estável. Também era um dos propósitos da

sistematização dar ao cidadão a oportunidade de conhecer o maior número possível

de leis espaçadas. Se era certo que as leis eram tidas como capazes de regular

todas as situações, obviamente sua sistematização facilitaria a visão geral das

obrigações e deveres, de forma a tornar previsíveis as conseqüências das ações

humanas285. A estabilidade, portanto, estaria diretamente ligada à noção de

previsibilidade do sistema.

Ocorre, contudo, que o direito legislado não tem sido capaz de gerar essa

previsibilidade, primeiramente por conta de uma hiperinflação de textos legais286, e,

ao depois, porque o direito pode muito bem, como já visto e debatido, ter

que, no common law , por nunca ter existido dúvida de que os juízes interpretam a lei e, por isso, podem proferir decisões diferentes, enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capaz de garantir a segurança e a previsibilidade de que a sociedade precisa para desenvolver-se. Contudo, a questão pode ser definitivamente desnudada apenas a partir da descoberta do motivo pelo qual a doutrina do civil law, mesmo após ter admitido a obviedade de que o juiz interpreta a lei, e, mais do que isto, que os juízes freqüentemente divergem e proferem inúmeras decisões diferentes ao aplicarem o texto da lei, continuou aceitando que a lei seria suficiente para garantir a segurança e a previsibilidade. Em resumo: não há como ignorar, tanto no common law como no civil law, que uma mesma norma jurídica pode gerar diversas interpretações e, por conseqüência, variadas decisões judiciais. Porém, o common law, certamente com a colaboração de um ambiente político e cultural propício, rapidamente intuiu que o juiz não poderia ser visto como mero revelador do direito costumeiro, chegando a atribuir-lhe a função de criador do Direito, enquanto o civil law permanece preso à idéia de que o juiz simplesmente atua a vontade do direito. De modo que o common law pôde facilmente enxergar que a certeza jurídica apenas poderia ser obtida mediante o stare decisis, ao passo que o civil law, por ainda estar encobrindo a realidade, nos livros fala e ouve sobre a certeza jurídica na aplicação da lei, mas, em outra dimensão, sente-se atordoado diante da desconfiança da população, além de envolto num emaranhado de regras que, de forma não sistemática, tentam dar alguma segurança e previsibilidade ao jurisdicionado.” MARINONI, Luiz Guilherme. A aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law... ob. cit., p. 204-206. 284

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribuanais,

2010, p. 121. 285

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 43. 286

“A primeira causa da insegurança jurídica é certamente o relativo caos legislativo no qual vivemos,

caracterizando-se tanto pelo excesso de leis, como pela falta de coerência do sistema e, algumas vezes, até pala falta de racionalidade de alguns dos textos legais”. WALD, Arnoldo. Eficiência judiciária e segurança jurídica: a racionalização da legislação brasileira e reforma do poder judiciário. In: MACHADO, Fábio Cardoso; MACHADO, Rafael Bicca (Org.). A Reforma do Poder Judiciário. São Paulo: Quartier Latin. 2006, p.52.

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interpretação variável, dependendo do caso concreto. Decerto, pois o legislador, isso

é cediço, enfrenta dificuldade em estabelecer um caráter geral para a norma, de

forma a atender os reclamos de uma sociedade cada vez mais multicultural; e não

pode, nem que lhe fosse oportuno, elaborar uma lei própria para cada pessoa. Essa

lógica fatalmente enterraria a esperança de se alcançar a segurança jurídica, em

face da ausência de estabilidade das relações quando, inevitavelmente, as pessoas

entrassem em choque de interesses.

Se a quantidade de leis e a sua sistematização, por meio dos famigerados

códigos, não têm sido suficientemente capaz de proporcionar a segurança jurídica

necessária ao desenvolvimento da sociedade ou a estabilidade das relações

jurídicas, a circunstância do direito estar sujeito a interpretações múltiplas somente

agrava por si, ou em consórcio com outros fatores, a situação dos sistemas

baseados na tradição do civil law. Nesse panorama, adverte Marinoni, um sistema

jurídico se afigura privado de efetividade, pois incapaz “de permitir previsões e

qualificações jurídicas unívocas” 287.

Destaca ainda o referido autor: o sistema do common law, mediante o instituto

do stare decisis, afiança a previsibilidade imprescindível para a segurança das

relações sociais288. E se a estabilidade não pode simplesmente ser alcançada por

obra e mérito do direito legislado, decerto que o respeito aos precedentes judiciais

torna-se o caminho mais adequado à consecução desse fim289.

Não é só entre os aplicadores do direito, mas é, em especial entre os

jurisdicionados, que se encontra dificuldade maior para entender como é possível

que uma mesma Corte de Justiça (ainda que estruturada em Turmas ou Câmaras)

ofereça sobre um único texto de lei interpretações distintas. Sem querer nessa etapa

do trabalho enveredar pelas causas remotas dessa problemática, não se

desconhece a evidência de que a forma da sociedade objetivamente revidar essa

dualidade jurídica é transitar por todo o circuito dos recursos judiciais até atingir a

última instância.

287

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 127. 288

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 129. 289

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 130.

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Acontece que o sistema, por sua vez, também reage. Ora, a saída encontrada

pelo legislador para preservar a integridade do ordenamento jurídico foi criar

institutos processuais que impedem essa notória e desmedida dispersão

jurisprudencial. Evidentemente é difícil a defesa da tese de que a origem de todos os

males de nosso sistema jurídico reside na divergência encontrada na jurisprudência

pátria. A dispersão é nociva na medida em que ultrapassa “o razoável”, para se

utilizar aqui o conceito-chave da obra de Recaséns Siches. Contudo, quando a

dispersão jurisprudencial ultrapassa o limite da aceitabilidade?

Mancuso responde à questão de maneira objetiva:

O exame isento e desapaixonado da questão vai pondo em evidência que a origem dos males, na questão da divergência jurisprudencial, está na sua ocorrência em situações logicamente inadmissíveis, na sua projeção descontrolada e injustificada, à semelhança do que se passa com as células no organismo humano: sua reprodução é fenômeno normal, fisiológico e necessário, mas o descontrole exacerbado nessa reprodução conduz ao quadro patológico do carcinoma, de difícil e, às vezes, impossível tratamento. A divergência jurisprudencial incidente sobre casos análogos, à exceção de situações em que o dissenso se mostra inevitável (v.g., decisões de primeiro grau, em jurisdição singular; lides onde predomina a matéria de fato), deixa de ser aceitável na ausência dos fatores que poderiam justificá-la, a saber: a defasagem da norma em face da alteração dos elementos que constituíram suas fontes substanciais; a superveniência de direito novo; o advento de exegese

jurídica em muito superior à precedentemente assentada290

.

O respeito aos precedentes e, por consequência, o desenvolvimento de uma

jurisprudência uniforme deve assim ser obtido via critérios consistentes, de institutos

processuais sólidos, eficazes, e plenamente aceitos pelos aplicadores do direito, sob

pena de, na busca incessante pela segurança jurídica, se fazer tábua rasa da

justiça.

Da forma como foi posta a questão, resta claro que, para além de um limite

razoável, a dispersão jurisprudencial em nada contribui para tornar seguras e

previsíveis as relações jurídicas, daí porque a contragolpe, na medida de seu

crescimento desordenado, a referida dispersão é combatida por intermédio de

290

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 2 ed. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 159-160.

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institutos que melhor asseguram a uniformidade de interpretação dos textos legais.

Em especial, na questão, está a súmula vinculante.

A polêmica que se instala daqui por diante, portanto, é: a súmula vinculante

representa satisfatoriamente o ponto culminante dessa escalada em busca da

segurança jurídica? Ou melhor, em vista de uma segurança jurídica, o papel da

súmula vinculante é eficaz?

No que diz respeito aos precedentes, não resta dúvida: o respeito à

uniformidade da jurisprudência é contributo que favorece a consolidação da

segurança e da estabilidade das relações jurídicas. A certeza da jurisprudência é, na

prática, de maior efetividade junto ao jurisdicionado que a segurança oriunda do

texto da lei. De outro modo, a dispersão jurisprudencial excessiva produz no meio

social a intranquilidade generalizada e o descrédito do Poder Judiciário. No caso da

súmula vinculante, como já dito, objetivo último de todo um processo global de

uniformização da jurisprudência, a questão se apresenta, porém, de maneira menos

evidente.

Obviamente, os argumentos que foram expostos acima servem perfeitamente a

rogo da súmula vinculante, até porque o próprio texto constitucional referente à

súmula vinculante faz menção à sua natureza de instituto combatente da

insegurança jurídica291. Porém, uma característica da súmula, como se verá adiante,

não sendo bem trabalhada poderá ser capaz de fragilizar o propósito da segurança

jurídica. Trata-se da semântica292.

Antes, contudo, convém analisar que, entre as várias razões que a doutrina

afirma que deram causa à criação da súmula vinculante pela EC nº 45/2004, estão

as crises do direito legislado e do Poder Judiciário. Em ambos os aspectos, porém,

para muitos desses doutrinadores há ínsito o gérmen da insegurança jurídica como

instrumento motivador do instituto.

291

Constituição Federal /88: “Art. 103-A, § 1º. A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e

a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”. 292

Em relação ao desdobramento dessa questão ver o item 2.3.2 adiante.

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Deveras, Arnoldo Wald traz elucidativo esclarecimento, em estudo onde defende

a súmula vinculante:

Ora, a insegurança jurídica não se coaduna nem com o Estado de Direito, nem com o desenvolvimento nacional. Ao contrário, a incerteza quanto ao direito vigente representa uma incontestável causa do chamado “custo Brasil” ou do “risco Brasil”, que onera o País e, conseqüentemente, todos os brasileiros. Já se disse que a inflação legislativa é tão perniciosa quanto a inflação monetária e podemos afirmar que, no Brasil, tivemos até uma inflação de inconstitucionalidades, ao verificar que foram 3.469 ADINs

distribuídas no Supremo Tribunal Federal até 17 de abril de 2005293

294

.

Já em relação à crise do Poder Judiciário, as principais causas estruturais

encontram-se refletidas, basicamente (i) no sistema judiciário complexo; (ii) diversas

justiças especializadas; (iii) até quatro instâncias recursais; (iv) falta de um tribunal

essencialmente constitucional; (v) “cultura demandista (fomentada por uma leitura

exacerbada e irrealista do acesso à Justiça, em detrimento dos outros meios auto e

hetecompositivos)” 295; e (vi) carência insuficiente de fontes de custeio para

adequada estruturação da Justiça Estatal.

Referidas causas, como revela Mancuso, “agravam a insegurança e a

instabilidade no ambiente jurídico como um todo, e vêm retroalimentar a explosão de

litigiosidade, dando margem à formação de novos processos judiciais, num deletério

círculo vicioso” 296.

Na condição de defensor da súmula vinculante, Marco Antonio Duarte de

Azevedo a põe no centro da discussão, assinalando que, além de combater as

causas específicas, como a insegurança jurídica, a sistemática vinculatória da

293

WALD, Arnoldo. Eficiência judiciária... ob. cit., p.52. 294 No mesmo sentido é a opinião de Leandro Paulsen: “A questão da segurança jurídica põe-se,

assim, principalmente, em face da sucessão de leis e de atos normativos, regrando diferentemente as mesmas matérias e tocando, pois, as expectativas, a confiança e os direitos já constituídos dos titulares de determinadas posições jurídicas”. PAULSEN, Leandro. Segurança Jurídica, certeza do direito e tributação: a concretização da certeza quanto à instituição de tributos através das garantias da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2006, p. 27. 295

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 174. 296

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p.174.

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súmula interferiria de maneira a reduzir também alguns dos obstáculos acima

citados (estruturais) 297.

A par das questões políticas e doutrinárias já expostas, há ainda a questão

econômica.

Com efeito, não se desconhece o discurso dos economistas de que a ausência

de segurança oriunda das decisões judiciais é fator preponderante para afastar os

investidores de nosso país.

Nesse passo, Arnoldo Wald adverte que

Sem prejuízo da realização do ideal de Justiça e da flexibilidade que a interpretação do direito exige, especialmente em períodos de grande transformação econômica, social e tecnológica, a garantia da segurança jurídica se impõe, no mundo hodierno, para que as normas jurídicas possam funcionar simultaneamente como regras de conduta e de composição dos conflitos de interesse. O que não é possível é determinar ou admitir uma certa conduta e, em seguida, condená-la em decorrência de divergências entre os tribunais, que levam muitos anos para serem resolvidas.

O mundo de hoje exige soluções rápidas e não podemos acrescentar às notórias incertezas econômicas e às dúvidas acerca da evolução tecnológica, uma maior perplexidade diante de um direito interpretado, durante longo tempo, de modo contraditório pelos diversos tribunais.

Efetivamente, o nosso País, após ter conquistado a estabilidade monetária, precisa agora também da segurança jurídica para que as empresas possam planejar o seu futuro e fazer os investimentos necessários e imprescindíveis para a sua sobrevivência numa

economia globalizada, dinâmica e cada vez mais competitiva298

299

.

Evidentemente que o efeito “súmula vinculante” não terá o poder de resolver

unicamente as mazelas crônicas do Poder Judiciário. Todavia, Rodolfo Mancuso

assinala que

297

Passim. AZEVEDO, Marco Antonio Duarte de. Súmula vinculante: o precedente como fonte do

direito. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2009, p. 23. 298

WALD, Arnoldo. Eficiência judiciária e segurança jurídica... ob. cit., p. 56. 299 No mesmo tom, Marco Antonio Azevedo: “E essa observação vale para as duas faces do

mercado: a compra e venda. Para poder comprar, contratar, vender, financiar, tomar e dar empréstimo, é necessária a certeza de que, seja qual for a parte que se sentir lesada, saberá de antemão, se não com certeza, mas com razoável segurança, qual solução será dada á sua causa, atendendo à demanda pela estabilidade nas relação jurídicas”. AZEVEDO, Marco Antonio Duarte de. Súmula vinculante: o precedente... ob. cit., p. 138.

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...essa eficácia vinculativa da súmula vem a ser “mais um passo – talvez o mais poderoso – para, de um lado, dar o remédio adequado às demandas múltiplas, repetitivas, que hoje sobrecarregam o serviço judiciário; e, de outro lado, ofertar uma resposta judiciária isonômica que, em tempo razoável, assegure os valores certeza e segurança, em substituição às demandas infindáveis e de resultado

muita vez imprevisível300

.

Parece razoável supor que a súmula vinculante tem um papel preponderante e

eficaz no combate à insegurança jurídica tal e qual a jurisprudência uniforme301.

Porém, para tanto, a elaboração do enunciado revela-se de importância fundamental

para eficácia do instituto.

Atento à questão semântica da súmula, José de Moura Rocha ressalta a

necessidade da forma exata do linguajar da súmula de tal sorte que não permita que

o texto seja elaborado com perplexidades, distorções, que poderão prejudicar o seu

real significado302.

Sendo assim, convém imaginar que retrocesso seria para a segurança jurídica

pretendida no caso das súmulas apresentarem em seu enunciado vocábulos

imprecisos ou até mesmo virem prenhes de expressões dúbias ou de significação

300

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Súmula vinculante e a EC n. 45/2004. In: WAMBIER, Teresa

Arruda Alvim et al.(Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. cap. 52, p. 719. 301

É interessante a opinião de Marinoni no sentido de que a preocupação originária dos elaboradores dos projetos da súmula no direito brasileiro não estava ancorada na segurança jurídica, mas na agilização dos trâmites processuais: “As súmulas, no direito brasileiro – se não foram idealizadas – foram compreendidas como mecanismos voltados a facilitar a resolução de casos fáceis que se repetem...Lembre-se de que, para justificar as súmulas, aludiu-se à necessidade de “desafogar o Judiciário”, mas nunca se disse – ao menos antes da ‘súmula vinculante’ – que era preciso afirmar a coerência da ordem jurídica, garantir a segurança jurídica e impedir que casos semelhantes fossem decididos de modo desigual”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 480. Deveras, a criação das súmulas no direito brasileiro ocorreu em 1963, por emenda do regimento do Supremo Tribunal Federal em 30.08.63, sendo que as primeiras 370 ementas foram publicadas em 1º de março de 1964 (cf. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro: eficácia, poder e função. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p.119). A primeira proposta para a adoção de entendimentos dominantes dos tribunais veio do “Projeto de Constituição” do Instituto dos Advogados Brasileiros e por sugestão do jurista Haroldo Valadão, a denominação utilizada remetia à prática portuguesa dos “assentos” (idem, p. 123). Contudo essa primeira tentativa não teve resultados, e a proposta regimental que vingou no STF foi elaborada pela Comissão de Jurisprudência do Tribunal, constituída pelos Ministros Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes Leal (relator) e Pedro Chaves. A proposta vencedora compreendia a formulação dos enunciados das súmulas muito mais como uma ferramenta útil de agilização de julgamento, ou melhor, um método de trabalho que proporcionasse maior visualização da jurisprudência predominante, simplificando, com isso, o julgamento das questões mais freqüentes no Supremo Tribunal Federal, do que propriamente uma oportunidade de estabilização da jurisprudência. 302

ROCHA, José de Moura. A importância da súmula. Rio de Janeiro: Revista Forense, nº 25, 1977,

p. 94.

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semântica aberta303. Marinoni, a propósito do tema, lembra que Victor Nunes Leal

costumava dizer que, “quando se discute se determina súmula merece interpretação

ampliativa ou restritiva, ela já não cumpre o seu papel, que é o de encerrar

discussões que o Tribunal tem por ociosas à vista dos precedentes e na extensão

deles extraída” 304.

O redator da súmula ainda tem que ter em mente mais um complicador: a

linguagem do texto sumulado faz com que a norma que dele emana seja aplicada

via dedução (processo silogístico de subsunção), ao contrário da experiência trazida

do common law com os precedentes, onde a aplicação se dá por processo de

indução.

Ora, por certo não se defende aqui objeções à utilização da súmula vinculante.

Apenas ressalta-se que a sua elaboração – muito próxima do atuar legiferante do

Parlamento –, caso não haja apuro na qualidade semântica de seu enunciado, não

atingirá o propósito de promover a segurança jurídica desejada. Afinal, os

enunciados das súmulas vinculantes são textos escritos, e como tais textos poderão

exigir (embora não devessem, pelo propósito da segurança) o trabalho de exegese

do aplicador. A exegese somente não poderá ser em intensidade tal e qual a própria

norma proveniente do Poder Legislativo, sob pena de fomentar reclamações

constitucionais em tal profusão a inviabilizar o instituto criado pelo constituinte

derivado.

Em tópico desenvolvido mais adiante, a problemática da redação das súmulas

será novamente tratada, levando-se em consideração a influência que a questão

gera enquanto instrumento de apoio à fundamentação de uma decisão judicial.

303

“Indo adiante e com exemplificação bem mais própria para os nossos dias, imaginemos o emprego de expressões anglo-saxões que se tem imposto ao mundo para designar novas práticas comerciais sem que se tenha uma tradução adequada para cada uma destas espécies de atividade, já que nem todos os idiomas têm a mesma capacidade de síntese que permita recolher em um só vocábulo um conceito complexo. Podemos exemplificar com o contrato de handing (ou de serviço de assistência aos aviões comerciais nos aeroportos; o contrato de catering (ou antendimento de provisões a bordo dos aviões comerciais) (...). Imaginemos o emprego de expressões assim, dizíamos, a se impor ante o desenvolvimento econômico e social do mundo. Imaginemos, também, estas expressões ante a rapidíssima evolução dos conceitos econômicos e comerciais. O que dizer de Súmulas sem a exatidão científica e axiológica que é de se desejar, no cumprimento de sua função no complexo sócio-jurídico?”. ROCHA, José de Moura. A importância da súmula... ob. cit., p. 96. 304MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 206.

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2. JURISPRUDÊNCIA COMO FONTE DO DIREITO

2.1 Codificação, descodificação305, os microssistemas e recodificação do direito.

O Renascimento306 e o Iluminismo307 tiveram papel preponderante na

formação da família do direito romano–germânica. Com o desabrochar do comércio

nas cidades, viu-se a necessidade de se estabelecer um sistema coeso de normas

que proporcionasse aos habitantes ordem e segurança308

.

Com a ascensão do absolutismo, e a sua tendência à centralização do poder,

restou aos poucos superado o interesse dos juristas de buscarem o direito nas

exegeses dos jurisconsultos romanos. Os códigos passaram a refletir os ideais

iluministas afastando gradativamente os cidadãos de antigas tradições, instigando-

os a buscar novos conceitos de vida, em decorrência, principalmente das

transformações políticas e da consolidação dos estados-nação. Junto com o

racionalismo e a expansão dos direitos civis surge a tendência de serem criadas

novas instituições. Nesse ser assim, os códigos nascem aprisionando,

especialmente o direito civil e o comercial.

305

Luiz Guilherme Marinoni, em Precedentes Obrigatórios, utiliza o termo “Decodificação” (p. 151). Já Roberto Senise Lisboa aduz que a “descodificação” é, na verdade, o processo de constitucionalização do direito civil (Manual de direito civil, vol. 1: teoria geral do direito civil. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 114). Mário Luiz Delgado, diversamente, entende que a constitucionalização é um dos fatores que agravou o estado de dispersão normativa em que o nosso direito civil já se encontrava. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 237. 306 Para Ovídio Baptista da Silva, “seria impossível compreender o Racionalismo sem considerar,

dentre os grandes movimentos espirituais que marcaram a decorrocada do mundo medieval e o surgimento da modernidade, pelo menos os dois mais importantes deles: o Renascimento e seu mais significativo produto cultural, o humanismo; e a Reforma Religiosa”. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 58. 307

O Iluminismo pode ser definido como um movimento filosófico-intelectual que “combateu a ordem

feudal e religiosa, acreditando num mundo racional, incentivado pela liberdade individual de expressão e pensamentos. Favoreceu os interesses e ganhos da burguesia mediante a formulação das ideias iluministas. Assumiu uma atitude crítica diante das ideias e da sociedade do antigo regime, principalmente: a desigualdade diante da lei, que era mantida pelo sistema político dos ‘Estados’, com seus privilégios fiscais para as ordens da nobreza e do clero; as limitações às pessoas e à propriedade; as intervenções arbitrárias e imprevisíveis da Coroa; e a exclusão da participação popular nos assuntos políticos”. BARBOSA, Clícia Kayalla Gonçalves. A evolução da ideia de sistema no direito privado: o novo Código Civil e as cláusulas gerais. Revista de Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, a. 11, n. 41, p. 59-105, jan./mar., 2010, p. 62. 308

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito comparado. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 31.

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A codificação foi, dessa forma, a fórmula encontrada à época para dar aos

cidadãos a segurança e a igualdade que a fragmentação do direito não era capaz de

proporcionar309. Também os códigos significaram a oportuna separação da

sociedade civil do Estado. Antes, “se uma questão não podia ser resolvida segundo

as leis civis, recorria-se ao soberano”310.

Pela ordem histórica, porém, as compilações surgiram antes dos códigos. Em

regra, embora denominados de códigos (como o Código de Hamurabi, v.g.), as

compilações não passavam de meras consolidações de textos legislativos. É bom

que se faça, então, por oportuno, a distinção que há entre os demais outros

conceitos relacionados com o estudo do tema.

Apoiando-se em Mário Luiz Delgado, pode-se asseverar que são os

conteúdos e as estruturas que na verdade diferenciam compilações, codificações e

consolidações uns dos outros311. Isso porque na condensação, que é o gênero

dessas espécies, há o gérmen de se agrupar em um único corpo normativo uma

gama de textos legislativos, princípios e normas.

No que há de mais simples nesse processo condensativo está a compilação.

Trata-se da reunião de diversos textos legislativos, tais quais se apresentam no

mundo jurídico, em uma única peça de manuseio. É dizer, no que diz respeito ao

teor dos textos compilados não há qualquer interferência do compilador – que não

representa, em regra, sequer o Estado, podendo ser inclusive um particular. É

possível, contudo, acontecer de haver uma sistematização em relação a assuntos ou

309

Não se pode afirmar que os países de tradição anglo-saxônica aderiram à codificação. Contudo, Mário Luiz Delgado traz as seguintes observações sobre o tema, em relação a alguns países: “Os Estados Unidos da América, protótipo de país de common law, há poucos anos adotou o seu Uniform Commercial Code, formalmente idêntico a qualquer código comercial dos países de civil law. Alguns estados americanos, como é o caso da Califórnia, possuem mais ‘códigos’ do que vários países de tradição romano-germânica. Nem por isso podemos afirmar que os americanos aderiram à codificação. Da mesma forma que podemos encontrar países do common law. O caso da África do sul é emblemático. Apesar de seguir o sistema legal holandês, de origem romana, o seu direito civil ainda mantém-se descodificado e as citações do Digesto de Justiniano são freqüentes na doutrina e levadas em consideração nas decisões judiciais. O que vai marcar realmente a distinção entre common law e civil law é justamente a ideologia por trás dos ‘códigos’. O papel e as funções de um código são completamente diversos dentro de um sistema legal ou de outro. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 24. 310

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 43. 311

DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 50.

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matérias. Um vade mecum é o melhor exemplo atualmente do processo de

compilação312.

Considerando uma escala de complexidade de realização, situada em um

degrau entre a compilação e a codificação está a consolidação. Na consolidação,

que é obra do Estado, e tem a finalidade básica de extirpar do ordenamento jurídico

normas revogadas313, o resultado é uma nova regulação jurídica. Nas palavras de

Mário Luiz Delgado314,

Não basta apenas reunir ou agrupar os textos legais, seguindo algum critério pré-escolhido, mas agrupá-los de forma sistemática, em uma única lei ou decreto, e considerando apenas as normas jurídicas em vigor sobre uma determinada disciplina jurídica, pois não se consolidam normas revogadas. O resultado da consolidação é sempre uma nova norma jurídica, do ponto de vista formal, ainda que o conteúdo material seja rigorosamente aquele antes contido nos textos legais esparsos.

Ao lecionar sobre a relação entre o direito moderno e a codificação, Roberto

Senise Lisboa adverte que a expressão código, que vem do latim caudex (caule de

árvore) já revela em si “o sentido de estabilidade e imobilismo que se pretendia

oferecer à regulação das relações sociais”315. O sentido do vocábulo, portanto, vai

além de um conjunto simples de regras. O termo, além de sua origem voltada à

estabilidade, representa “um conjunto sistemático e unitário de normas jurídicas que

enfeixam a disciplina fundamental de um determinado ramo do direito”316.

Nesse sentido, porém, para a caracterização do processo de codificação, não

basta que as normas jurídicas se apresentem simplesmente sistematizadas. Tal

pode ocorrer em uma consolidação qualquer de textos legais. Importa, para se ter a

ideia da codificação, que os enunciados normativos de seu instrumento (código)

representem não só uma unidade, mas disciplinem fundamentalmente um ramo do

direito, de forma atual e renovadora. O processo de codificação reproduz assim uma

ruptura com o passado, aspecto que falta à consolidação317. É que a pretensão

312

DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 51. 313

DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 52. 314

DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 52. 315 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil... ob. cit., p. 87. 316

DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 39. 317

“Ao contrário da codificação, na recodificação não se iniciará o trabalho do ‘zero’. Já existe um

ponto de partida. E o recodificador necessariamente levará em conta o arcabouço desse velho código

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ideológica da codificação é exprimir, quando de sua promulgação, o momento social

e político do Estado318. Foi assim, por exemplo, com o processo de criação do

Código de Napoleão, com o Código Alemão (na célebre contenda entre Thibaut e

Savigny)319 e com o nosso Código Civil de 1916320.

A conceituação moderna de código, assevera Mário Luiz Delgado, diverge

fundamentalmente da visão oitocentista, “que via no código o centro de gravidade do

direito privado, constituindo um corpo legislativo monolítico, verdadeiro

monossistema, que levava ao extremo o dogma de completude tão caro à Escola da

Exegese”321. Isto é, os códigos atuais não se encaixam mais, por exemplo, no

modelo napoleônico, cujo sistema fechado passava a equivocada noção de

autossuficiência e desprovimento de lacunas. O código atual “pretende assegurar a

coerência interna do sistema, por determinadas linhas mestras, mas que, ao mesmo

tempo, está aberto à interação sistemática com as demais leis” 322.

Numa outra dimensão está o estatuto.

para, a partir daí, construir o novo, que deverá incorporar, pelo menos em linhas gerais, todos os avanços da legislação até então ocorridos”. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 260. 318

BARBOSA, Clícia Kayalla Gonçalves. A evolução da ideia de sistema no direito privado... ob. cit., p. 69. 319

Num resumo prestadio da polêmica, Clícia Barbosa assim se expressa: “É lugar comum afirmar que o duelo acadêmico dos autores mencionados constitui-se em um dos mais acalorados entraves jurídicos da história. Essa disputa girou em torno da conveniênca de se dar à Alemanha um Código Civil. A Alemanha (Prússia e vários reinos germânicos, à época) acabara de livrar-se do jugo de Napoleão, e Thibaut propunha limpar a honra alemã com um novo código de leis para os Estados germânicos, que substituísse o imposto Código Napoleão. Savigny opôs-se a essa codificação. A obra de Thibaut era a manifestação de um sentido de cidadania desperto e democrático. Às vésperas da restauração política na Alemanha, ele propôs uma codificação comum a toda Alemanha, segundo o modelo do Código Prussiano...Esperava, com esse fato, um fortalecimento global da consciência na nação, repartida pelas dinastias territoriais. Savigny opõe-se imediatamente a tal ideia, sob o argumento de que todas as codificações seriam inorgânicas, por isso, prejudiciais ou inúteis; o direito só se formaria de forma orgânica, a partir das convicções do povo...No duelo Thibaut-Savigny confrontam-se opões pessoais fundamentais – a cultura aristocrática e a política democrática, a tradição européia e o novo sentimento nacional, a ciência e a prática ativa...A disputa não consistiu numa pura e simples polêmica teórica acerca das qualidades ou defeitos de um direito escrito, mas uma guerra pela manutenção ou pela modificação das condições sociais e jurídicas existentes, cujo pano de fundo era a valoração das ideias da Revolução Francesa”. BARBOSA, Clícia Kayalla Gonçalves. A evolução da ideia de sistema no direito privado... ob. cit., p. 73 - 74. 320 O mesmo não sucedeu com o Código Civil de 2002 que, inserido no processo de recodificação,

pretendendo refletir o atual cenário jurídico da pós-modernidade, abriu espaço para a integração de seu texto com outros padrões legislativos, especialmente por meio da técnica das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, afastando-se, com isso, do modelo centralizador e globalizante dos códigos de outrora. 321

DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p.42. 322

DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p.43.

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Muito próximo do código, o estatuto, contudo, não se insere no processo de

condensação. Com efeito, diferentemente do código, as normas constantes de um

estatuto não pretendem ser abrangentes, uma vez que o intento do legislador é

apenas regulamentar determinada ordem de relação jurídica. Ou seja, há, por parte

do Poder Legislativo uma proposital delimitação prévia das relações jurídicas que

serão tuteladas. Ou ainda: em um estatuto é possível se identificar uma casta de

relações regulamentadas pelo legislador.

Mário Luiz Delgado adverte que a distinção entre código e estatuto também

se dá no plano formal, em razão de que este último não tem curso no parlamento

como “projeto de código”, que exige tramitação específica e diferenciada323 324.

Postas tais e cruciais diferenças, e retomando o rumo histórico desse tópico,

sucedeu, porém, que as compilações não apresentaram as condições necessárias

para subsistirem à época do renascimento. Faltava-lhes em especial, segundo René

David, a característica marcante da codificação: “obra de um soberano, desejoso de

consagrar – mesmo em detrimento dos privilégios da antiga ordem – os novos

princípios da justiça, liberdade e dignidade do individuo” 325.

Por outro lado, as compilações não tinham o propósito de modificar o direito.

Como seleção de textos que eram, as compilações apresentavam-se apenas como

inventários de um panorama legislativo histórico. Já os códigos da era pós-

Revolução Francesa pretendiam criar regulações atualizadas, substituindo o que de

outrora havia, determinando novos paradigmas de racionalidade compatíveis com o

propósito do Estado liberal.

323 DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 49. 324

“Os ‘projetos de código’, ao contrário dos ‘projetos de lei’ comuns, possuem uma tramitação

específica e diferenciada, desde que a matéria, por sua complexidade ou abrangência, deva ser apreciada como código. O Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê a nomeação de uma Comissão Especial para emitir parecer sobre o projeto e as emendas, enquanto nos demais ‘projetos de lei’, a apreciação é submetida às comissões permanentes da Casa. O Presidente da Comissão designará um Relator-Geral e tantos Relatores-Parciais quantos forem necessários para as diversas partes do código. As emendas serão apresentadas diretamente à Comissão Especial, durante o prazo de vinte sessões consecutivas contado da instalação desta, e encaminhadas, à proporção que forem oferecidas, aos Relatores das partes a que se referirem. Os pareceres serão imediatamente encaminhados ao Relator-Geral, que emitirá o seu parecer no prazo de quinze sessões contado daquele em que se encerrar o dos Relatores-Parciais”. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 49. 325

DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 52.

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Numa síntese adequada, Lorenzetti distingue as características históricas

marcantes entre as compilações e os códigos da seguinte forma326: (i) as

compilações não geravam segurança, na medida em que não era possível saber

qual disposição estava em vigor. Os códigos, como traduziam-se numa sequência

ordenada de artigos, transmitiram segurança; (ii) as compilações eram de difícil

entendimento para o cidadão comum. Ao passo que o código foi pensado

exatamente como um instrumento de guia comportamental da população, que o

poderia consultar a qualquer momento327; e (iii) na compilação os princípios a serem

utilizados ao caso concreto eram buscados pelo intérprete no meio da colcha de

retalhos legislativos. Nos códigos, o processo de solução da hipótese se pretendia

fosse alcançado pelo processo dedutivo.

Com o envelhecimento dos códigos, ou melhor, com o fenômeno da

descodificação – entendido esse fenômeno aqui notadamente como o

reconhecimento de que os códigos não foram jungidos de autossuficiência o

bastante, como se imaginava, a ponto do aplicador do direito prescindir de outras

fontes para realizar o direito – cada vez mais a função de formação e evolução do

direito passou a pertencer à jurisprudência dos tribunais, como reflexo da postura

criativa dos magistrados.

Ninguém mais imagina que para conhecer o direito bastam os códigos ou os

textos legislativos. Na dicção de René David, nem mesmo no esperado âmbito

criminal tal acontece, nada obstante a ênfase e apego que nessa seara se tem ao

princípio da legalidade, visto que cada vez mais são concedidos aos juízes e

administradores poderes para que medidas da pena sejam por eles fixadas328.

O mérito da codificação foi ter se constituído em vetor para a expansão, na

Europa e fora dela, do sistema romano-germânico329. Já como consequência

negativa da codificação pode-se indicar o fato de se ter perdido de vista as tradições

das universidades de discutir a justeza do direito, passando para uma postura de

326 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 42. 327

A propósito, até hoje persiste essa visão prática de um código. Observe-se a determinação legal

recente de obrigar que em todo o comércio haja disponível um exemplar do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 12.291, de 20 de julho de 2010). 328

DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 55. 329

DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 53.

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apenas comentar o que era pelo legislador posto nos códigos330 331. Ainda, na

exposição de René David:

Abandonando o espírito prático dos pós-glosadores, a audácia dos pandectistas, os professores de direito voltaram à escola dos glosadores, aplicando as suas glosas aos novos textos. Uma atitude de positivismo legislativo, agravada pelo nacionalismo, foi originada

pelos códigos, contrariamente à idéia que os tinha inspirado332

.

Ou seja, com os códigos o direito deixou de ser para os juristas norma de

conduta social (e, portanto, supranacional) para se tornar simples direito nacional333

.

Presentemente, o nacionalismo jurídico, reinante nos códigos de outrora, está

em queda, com a desatualização desses últimos – e com a constitucionalização do

direito de uma forma geral –, em especial nas cortes superiores. Não é à toa, por

exemplo, que vários debates são enfrentados pelos Ministros do Supremo Tribunal

Federal com base em tratados internacionais ou mesmo em jurisprudências oriundas

de estados alienígenas334 335.

330

DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 53. 331 Já distante do ambiente histórico aqui enfatizado, Mário Luiz Delgado aborda a questão anotando

que a maioria dos autores afirma que a (provavelmente) única desvantagem da codificação é provocar uma espécie de congelamento ou obstáculo para a alteração de seu tecido legislativo. Sem esconder sua postura extremada em defesa dos códigos, assevera o referido civilista que tudo não passa de um sentimento ligado a aspectos psicológicos, porquanto a alteração legislativa de um código se processa da mesma forma que uma lei ordinária qualquer. Ou seja, a suposta rigidez desvantajosa de alteração dos códigos, de que tratam diversos autores, “é fruto tão somente da mentalidade do jurista que, acostumado a trabalhar com determinados e conhecidos textos, torna-se inconscientemente conservador e avesso a mudanças” (p. 71). Quanto aos aspectos vantajosos dos códigos, a enumeração de Mário Luiz Delgado é extensa, mas que pode muito bem ser resumida basicamente nos seguintes pontos: (i) os códigos permitem um conhecimento fácil do direito, dando ao intérprete um guia de onde possa partir com segurança para a solução do caso; (ii) os códigos atuam como uma espécie de manual de Direito, podendo ser consultado por qualquer cidadão, diferentemente das legislações extravagantes e esparsas; e (iii) os códigos também exercem uma importante função de coordenação e de integração do direito, “na medida em que favorecem uma ideia de contralidade (não totalizante) no ordenamento jurídico” (p. 74). DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 71-74. 332

DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 53. 333

DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 54. 334

Prova disso são os §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição Federal de 1988: “§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros documentos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. 335

Nesse sentido, é interessante a abordagem de Marcelo Neves: “Em decisões de grande relevância

em matéria de direitos fundamentais, a invocação da jurisprudência constitucional estrangeira não se apresenta apenas nos votos singulares dos ministros, mas se expressa nas Ementas de Acórdãos, como parte da ratio decidendi . No julgamento histórico do Habeas Corpus nº 82.424/RS, em 17 de

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Ainda sob o mesmo parâmetro nacionalista do direito representativo dos

códigos de René David, Ricardo Lorenzetti aponta o fato da atividade empresária ter

se tornado transnacional como um dos agentes desestruturadores dos códigos336.

De fato, não se pode desconsiderar que a atividade empresária pressiona o

direito interno para tender a uma flexibilização não encontrada facilmente nos

sistemas fechados mais antigos de normas codificadas. Flexibilidade necessária

para que o mercado interno possa competir com o externo. Todavia, não se trata de

derrogação dos códigos; mas de fenômeno que produz um efeito relevante: a

sanção de leis especiais, cujo espectro normativo tem natureza adaptativa superior,

fazendo o aplicador do direito ignorar as construções generalizadas dos códigos

para acolher aquelas especificamente postas337. Resumindo o que se acabou de

descrever em uma única palavra: microssistemas.

Como visto, é garrido o surgimento dos microssistemas como consequência

natural do colapso gravitacional dos sistemas codicísticos.

Com a frustrada possibilidade dos códigos de acompanharem as constantes e

rápidas transformações da sociedade pós-industrial, em face notadamente de uma

redação, ora com texto de abstração excessiva, ora com técnica casuística338, o

legislador, no intuito de solucionar o problema, procurou, através dos

microssistemas jurídicos, “regular satisfatoriamente os diversos setores de atividade,

novembro de 2003, o pleno do STF, por caracterizar como crime de racismo a publicação de livro com conteúdo antissemítico (negação da existência do holocausto) e, portanto, sustentar a sua imprescritibilidade, indeferiu, por maioria, o pedido, no âmbito de uma discussão em que a invocação da jurisprudência constitucional estrangeira foi fundamental...Nos votos dos ministros, houve uma ampla discussão sobre precedentes jurisprudenciais, dispositivos constitucionais e legislação de estados estrangeiros, tendo sido relativamente insignificante a referência a jurisprudência nacional e internacional”. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 179 -180. 336

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p.65. 337

Marinoni, citando Natalino Irti, adverte: “Os Códigos, com sua pretensão de generalização e uniformidade, cederam lugar a leis especiais, destinadas a regular situações específicas, titularizadas por grupos e posições sociais determinadas”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p.151. 338

Segundo René David: “A censura dirigida às novas leis, nos diversos países de procederem de

uma má técnica legislativa, advém em grande parte do fato do legislador, nas novas matérias em que intervém, não saber fixar exatamente a regra de direito ao nível em que desejamos vê-la. Com freqüência, ele entrega-se a uma casuística exagerada, freqüentemente agravada pela regulamentação administrativa; outras vezes, pelo contrário, ele exprime-se em fórmulas muito gerais, e, então, não se saberá como deve ser a lei compreendida no momento em que ela terá de ser ‘interpretada’. As críticas dirigidas à má técnica legislativa têm certamente um fundamento. Convém, contudo, considerar que a tarefa de legislar é tecnicamente muito difícil e que foram necessários séculos de esforços doutrinais para chegar às fórmulas dos códigos que hoje, sem dúvida, nos parecem muito simples”. DAVID, René. Os grandes sistemas... ob. cit., p. 82.

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sobre os quais a codificação não tinha condições de ser aplicada de forma

condizente” 339.

Nesse estágio do tema, é bom salientar que a descodificação e seu derivado

legislativo – o microssistema – não foram fenômenos restritos às cercanias do direito

civil. Também essas manifestações ocorreram no âmbito processual.

No que toca especificamente ao direito processual civil, Marinoni propaga que

sucedeu coisa semelhante ao descrito acima, em relação aos procedimentos.

Segundo o referido autor, no processo civil “de conotação liberal clássica, deveria

bastar um procedimento para atender a todas as posições sociais e a todo e

qualquer direito” 340. Aconteceu, porém, que de algumas décadas para cá, para que

fosse possível atender às inúmeras situações carentes de tutela, foram criados

diversos procedimentos especiais341.

Na mesma linha de raciocínio de Marinoni – e numa demonstração prática do

que se seguiu no âmbito processual –, Didier e Zaneti mencionam as inovações no

processo coletivo impostas pelo Código do Consumidor342. Com efeito, várias foram

as regras processuais alteradas, como, por exemplo, a mais falada delas, a inversão

do ônus da prova em favor do consumidor quando, a critério do magistrado, for

verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente343

.

339LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil... ob. cit., p. 91. 340 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 151. 341

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 152. 342

Segundo Didier e Zaneti, ao se ler o título III do Código do Consumidor, verificam-se várias inovações processuais, tais como: “a) a possibilidade de determinar a competência pelo domicílio do autor consumidor e determinação da competência do foro da capital dos Estados e do Distrito Federal para as ações de âmbito regional ou nacional – princípio da competência adequada (arts. 101, I e 93, II); b) a vedação da denunciação à lide e um novo tipo de chamamento ao processo (arts. 88 e 101, II); c) a possibilidade de o consumidor valer-se, na defesa dos seus direitos, de qualquer ação cabível – princípio da atipicidade ou não-taxatividade (art. 83); d) a tutela específica em preferência à tutela do equivalente em dinheiro – princípio da tutela adequada (art. 84); e) regras de coisa julgada específicas para as ações coletivas e aperfeiçoadas em relação às leis anteriores, com a extensão subjetiva da eficácia da sentença e da coisa julgada em exclusivo benefício das pretensões individuais e possibilidade do julgamento de improcedência por insuficiência de prova – princípio da coisa julgada secundum eventum litis e secundum eventum probationis (art. 103); f) regras de legitimação (art. 82) e de dispensa de honorários advocatícios (art. 87) específicas para as ações coletivas e aperfeiçoadas em relação aos sistemas anteriores; g) regulamentação da relação entre a ação coletiva e a individual (art. 104); h) alteração e ampliação da tutela da Lei nº 7.347/85 (LACP –Lei de ação civil pública), harmonizando-a com o sistema do Código (arts. 101-117) e formando um microssistema que garante ao processo tradicional do CPC atuação apenas residual”. DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 5 ed., vol. 4, Salvador: Editora JusPodivm, 2010, p. 47. 343 DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil... ob. cit., p. 46.

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Todo esse panorama serve para mostrar quanto o peso dos códigos nos

atuais ordenamentos jurídicos foi redimensionado. Sua tendência atual está longe da

característica de autoconcentração de normas. O legislador não deseja mais, por

meio dos códigos, regular casuisticamente um ramo do direito. O novo cariz do

código é de aspecto muito mais enunciativo, principiológico. Sua proposta é de

harmonização com as demais legislações infraconstitucionais. A aceleração

quantitativa da atividade legislativa, por meio de leis esparsas ou extravagantes, no

mais das vezes com perda de uma coerência sistêmica, findou por comprometer a

segurança jurídica344. Logo, foi necessária uma atitude do legislador a fim de buscar

de volta a coerência do conjunto das leis vigentes345.

A essa nova sistemática, autores, como Mário Luiz Delgado, têm denominado

de recodificação346.

Mas, se é fato que há uma tendência de dispersão de leis, a fim de

acompanhar a velocidade de transformação da sociedade moderna, minando a base

ideológica da unidade legislativa dos códigos347, é evidente que o processo de

recodificação para ter sucesso não basta granjear a volta da coerência sistêmica,

necessita apresentar novos valores textuais sob pena de incorrer nos mesmos

equívocos dos códigos suplantados, em especial o de tentar apresentar soluções

prontas e acabadas para o aplicador do direito.

Partindo da codificação original, ou melhor, do velho código, bem como das

fontes normativas dispersas já existentes348, a forma alvissareira encontrada pelo

legislador para assentar a recodificação tem sido redigir os textos legislativos com

uma tessitura aberta, cuja inovação técnica, necessária para que também as leis

especiais não sofram do mesmo mal da desatualização dos códigos, tem como

melhor expoente as cláusulas gerais.

344 DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 259. 345 DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 259. 346 “Recodificar, de certa forma, é ‘chamar o feito à ordem, reinserindo em um corpo normativo mais

ou menos coeso, regras e princípios novos que se dispersaram com o evoluir da sociedade...em outras palavras, recodificar é assegurar a sobrevivência do código, quer por meio de sua reforma, quer pela sua completa re-elaboração”. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 259. 347 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.

1. ed., 2.tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 281. 348

DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação... ob. cit., p. 260.

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2.2 Cláusulas gerais.

2.2.1 Notas históricas

Por volta do ano 1920, tem origem e aplicação na Alemanha a ideia de

cláusula geral.

Em decorrência do caos que imperou na economia alemã, após a Primeira

Grande Guerra Mundial – onde as pessoas chegavam a ir às compras com

quantidades absurdas de dinheiro nos bolsos, e, por consequência, consumindo

seus salários tão logo os recebiam –, os contratos sofreram impacto fulminante na

sua execução. As cláusulas contratuais referentes ao preço ajustado tornaram-se

letras mortas, já que os alemães não conheciam o sistema de correção monetária349.

Apesar desse panorama, havia uma base jusfilosófica na Alemanha suficiente

para permitir a inclusão da cláusula geral boa-fé no BGB (Código Civil Alemão)350.

Um pouco antes da crise econômica se instalar, por volta do século XIX, correntes

filosóficas com força no direito alemão iniciaram polêmica exatamente sobre qual

proceder deveria ter o magistrado diante das lacunas do direito positivo351. Entre as

principais correntes, encontrava-se a do movimento do Direito Livre, captaneada por

Eugen Ehrlich. Essa corrente, como já visto em capítulo anterior desta pesquisa,

prescrevia que o juiz estava autorizado a criar a solução para o caso que não

estivesse plasmada nos textos legais352.

Do outro lado, encontrava-se Hermann Kantorowicz que defendia a

possibilidade de que o juiz, mesmo diante de lei que regulasse o caso concreto,

deveria julgar fundamentalmente segundo duas vigas mestras: a ciência e a sua

consciência353. Ora, como observa Fabiano Menke, com essas ideias circulando no

meio jurídico alemão e uma crise econômica — cuja dimensão aniquilava a

segurança de qualquer ajuste contratual —, encontravam-se presentes as condições

necessárias para que as cláusulas gerais não só pudessem ser incorporadas ao

349

MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos.

Revista da Ajuris. Porto Alegre, ano XXXIII, n. 103, p. 69-94, set./2006, p. 70. 350

“O mais célebre exemplo de cláusula geral é o § 242 do Código Civil alemão, assim redigido: ‘§ 242, O devedor deve (está adstrito a) cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego jurídico”. BARBOSA, Clícia Kayalla Gonçalves. A evolução da ideia de sistema no direito privado... ob. cit., p. 92. 351

MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 72. 352

MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 72. 353

MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 72.

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ordenamento jurídico como também pudessem servir de “valioso instrumento na

mão de magistrados que precisavam encontrar uma solução para situações de

verdadeiro caos econômico-social causado pela incontida escalada inflacionária”354.

Por intermédio desse relato histórico, verifica-se que a cláusula geral foi

inserida no ordenamento jurídico alemão tendo como cenário uma sociedade

carente de soluções emergenciais em face de sua estrutura profundamente

fragilizada. Ou, com bem menos palavras: em decorrência de uma insegurança

jurídica latente.

Ora, do que já foi superficialmente exposto, pode-se extrair ao menos duas

ilações: (i) uma das principais razões da utilização das cláusulas gerais pelo

Judiciário foi possibilitar o direito de acompanhar a evolução da sociedade, no que

diz respeito especialmente à solução dos problemas para cuja complexidade não

acudiu a indústria do legislador; e (ii) a flexibilização da estrutura normativa das

cláusulas gerais é móvel impulsionador que o Poder Judiciário pode lançar mão

para, diante dos casos concretos, oferecer à sociedade a necessária segurança

jurídica para o seu desenvolvimento355 356.

2.2.2 Aspectos das cláusulas gerais e distinções oportunas.

O mundo das leis claras, seguras e sistematicamente organizadas em um

único instrumento legislativo, proposto pela Revolução Francesa – capaz de

solucionar a contento difusas contendas sociais – ruiu, a ponto de gerar uma crise 354

MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 72. 355 Para Humberto Ávila, a técnica legislativa das cláusulas gerais facilita a segurança jurídica,

“porquanto evita a modificação legislativa pela desnecessidade de criação de leis especiais”. ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção na aplicação do direito. Antônio Paulo Medeiros (Org.). Faculdade de Direito da PUCRS. O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 432. Já Fredie Didier, de forma percuciente, adverte para o outro lado da moeda em relação à questão da segurança jurídica, que é o perigo do uso inadequado das cláusulas gerais pelos magistrados: “As cláusulas gerais trazem consigo, entretanto, o sério risco da insegurança jurídica. A despeito do contexto político-social da época da decisão, as cláusulas gerais ‘possibilitam ao juiz fazer valer a parcialidade, as valorações pessoais, o arrebatamento jusnaturalista ou tendências moralizantes do mesmo gênero, contra a letra e contra o espírito da ordem jurídica”. DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais. In: <http:www.frediedidier.com.br/main/artigos/default.jsp>. Acesso em 07 de setembro de 2011, p. 8-9. Na ótica de Teresa Arruda Alvim Wambier, a insegurança “aparece de forma nítida e indesejável” até haver a “jurisprudência consolidada”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre ‘as cláusulas gerais’ do código civil de 2002: a função social do contrato. Revistas dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. n. 831, a. 94, jan. 2005, p. 73.

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das fontes do direito. Nem bem a sociedade oitocentista se recuperou desse

tropeço, e surge a necessidade de adequação das leis a uma nova estrutura social,

muito distante daquela com base na propriedade agrária.

Essa sociedade de então já não mais se satisfazia com a pretensa proposta

legislativa de visão de si própria espelhada nos códigos. À essa pretensa visão

beatífica que o Poder Legislativo procurava impor aos cidadãos da sociedade

industrial, pouca alternativa restou senão a de se conviver com outras estruturas

normativas de apoio necessário para a solução dos litígios que, por conta da

complexidade da sociedade e evolução tecnológica, cada vez mais batiam às portas

do Judiciário, exigindo dos magistrados para a resolução das lides, uma criatividade

integrativa para além das normas talhadas nos códigos.

A avalanche de textos legislativos, que bem ou mal orbitavam o pretendido

sistema único do código, por terem uma postura de “vagar” pelo entorno do sistema

coditício, receberam o nome de leis extravagantes357. A quantidade elevada de leis

extravagantes não foi causa, mas consequência do insucesso da pretensão maior

da Revolução Francesa de colocar cada um dos cidadãos em pé de igualdade, a

ponto de não restar outro tipo de homem na sociedade que não o comum.

Os códigos de outrora tinham técnica legislativa própria. A casuística

imperava358.

A ambição de tudo abarcar gerou sistemas fechados, pois não havia sentido

que a completude dos códigos fosse alterada por leis específicas ou processos

interpretativos que transportassem para dentro algo que se encontrava – no mais

das vezes, propositadamente – fora da unidade normativa.

A casuística era a forma de estruturar o texto buscando o legislador fixar os

critérios para emoldurar os fatos, de maneira que, em face de uma tipificação de

condutas a mais precisa possível, pouco espaço fosse concedido ao juiz para

determinar o sentido e alcance do texto legal.

357

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 281.

358 Também denominada de “técnica da regulamentação por fattispecie”.

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A técnica de legislar casuisticamente restou refletida numa característica

interessantemente visível nos primeiros códigos: uma miríade de artigos. O código

prussiano continha um número exorbitante (19.000 artigos) – a bem da verdade nem

era propriamente um código, já que englobava vários ramos do direito. O código civil

napoleônico tinha dosagem inferior de artigos, porém não pequena (2.302).

A cláusula geral foi o instrumento encontrado pelo legislador para propiciar a

transposição para o interior do sistema jurídico de princípios valorativos, máximas de

condutas, bem como standards comportamentais, visando dar flexibilidade

normativa suficiente para que o magistrado tivesse condições de encontrar a

solução adequada ao caso concreto359. A sistemática legislativa da cláusula geral

tem característica, portanto, na colocação de Judith Martins-Costa, “não

casuística”360.

A técnica “não-casuística” de legislar pressupõe um padrão de abertura

semântico em que o legislador não pretende oferecer aos magistrados a resposta do

problema antecipadamente. E não oferece com precisão porque tem ciência de sua

incapacidade de prever todas as situações a serem devidamente tuteladas. Deste

modo, ou seja, com essa técnica, é dada a oportunidade ao Poder Judiciário de,

progressivamente, edificar, pela intervenção dos precedentes, a norma jurídica

aplicável ao caso concreto. Em uma síntese do exposto, Humberto Ávila361,

demonstrando o propósito fundamental da normatização por meio das cláusulas

gerais, expõe que

é a abertura aos usos e costumes externos existentes no meio social, de modo a consolidar essa técnica legislativa como instrumento do pluralismo normativo (ou de fontes) e de valores: a abertura do sistema envia o aplicador, a normas sociais extralegislativas, uniformemente aceitas (sociais, religiosas, profissionais, éticas, comerciais, etc.), de modo a dividir a competência normativa entre o parlamento e aqueles que são chamados a concretizar as normas.

Numa linguagem figurada – diga-se de passagem, por demais difundida é

verdade –, é como se, por meio da técnica “não-casuística”, o Legislativo conferisse

um mandato ao magistrado para que esse aplicador do direito, diante do caso posto

359

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 274. 360 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 296. 361

ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 432.

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à solução, pudesse dar a significação precisa ao texto, e, por consequência, extrair a

norma jurídica protetora do direito. Porque até então, na conformidade da técnica da

cláusula geral, o jurisdicionado não sabe ou não tem certeza exatamente de qual é a

norma jurídica específica aplicável para solucionar determinado problema.

Essa notável alteração do processo de produção dos textos legislativos

ganhou força principalmente na segunda metade do século XX. A preferência pela

opção legislativa da técnica redacional, por intermédio das cláusulas gerais, foi um

dos vetores que transformaram o raciocínio e a argumentação do magistrado. Antes

atrelado ao método silogístico, o juiz passa agora a ter em mãos a oportunidade de

concretizar a norma jurídica desde então restrita às possibilidades fáticas descritas

casuisticamente pelo legislador.

Sem a obrigação de ser “o boca da lei”, o juiz tem a possibilidade de se

transformar também num ator político. A norma não é mais elaborada somente pelo

parlamento. Ao juiz também foi oferecido o ensejo de participar diretamente da

elaboração da norma jurídica. Numa metáfora utilizada por Alf Ross362, é como se a

lei fosse um produto semifaturado que necessitasse da contribuição de um artesão

ou técnico (no caso aqui o magistrado) para ter seu acabamento finalizado.

Enfim, os textos legislativos confeccionados sob a técnica das cláusulas

gerais não prescrevem uma conduta. Daí Humberto Ávila denominar as cláusulas

gerais também de regras condicionadas, já que “dependem do fato concreto para

determinação de seu conteúdo” 363. Há, portanto, uma proposital vagueza (ou

abertura semântica) quanto a esse oportuno e importante critério axiológico da

norma, que será preenchido, na hipótese fática, pelas mais diversas e variadas

fontes do direito postas gratuitamente à mercê do magistrado. Ou seja, será a

construção progressiva da jurisprudência que dará a efetiva resposta aos problemas

a serem equacionados pelas texturas semânticas das cláusulas gerais.

E se é assim, que a vagueza semântica é característica marcante das

cláusulas gerais, então estamos diante de um elemento complicador: é que essa

mesma vagueza também é aspecto ínsito nos conceitos jurídicos indeterminados.

Não é necessário se aprofundar muito em uma pesquisa para perceber a presença

362

ROSS, Alf. Direito e Justiça... ob. cit., p. 103. 363

ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 432.

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dos termos “vagueza” ou “vago”, ou ainda “lacunas”, nas diversas conceituações das

cláusulas gerais que são elaboradas pelos doutrinadores. Exemplos: para Didier a

cláusula geral “é uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática)

é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado” 364.

Segundo o processualista baiano, há uma indeterminação legislativa em ambas

extremidades da estrutura lógica normativa da cláusula geral365. No ponto, Ruy

Alves Henriques Filho assegura que as cláusulas gerais podem ser entendidas como

uma nova modalidade legislativa, “a qual impõe o preenchimento de suas lacunas

pelo juiz, como se considerássemos a norma jurídica oriunda do exercício da

interpretação e corolário da atividade judiciária criadora” 366.

Nada obstante criticar os conceitos de cláusula geral encontrados na doutrina

– que nada mais seriam que um arrolamento das diversidades das características do

termo – Judith Martins-Costa367 expõe engenhosamente que

Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente “aberta”, “fluida” ou “vaga”, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual, reiterados no tempo os fundamentos da decisão, será viabilizada a ressistematização destes elementos originariamente extra-sistemáticos no interior do ordenamento jurídico.

Do que já foi exposto, é possível principiar algumas distinções importantes

relacionadas ao tema. Ou seja, a doutrina distingue os conceitos indeterminados das

cláusulas gerais, e destas dos princípios.

Antes de dar partida a tal desiderato, em relação à dissociação entre as

cláusulas gerais e os conceitos indeterminados, pontual é referir à observação feita

por Eros Roberto Grau, no sentido de que não existem conceitos indeterminados.

364DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais... ob. cit., p. 2. 365DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais... ob. cit., p. 2. 366

HENRIQUE FILHO, Ruy Alves. As cláusulas gerais e seus reflexos processuais. In:

< www.fagundescunha.org.br/amapar/revista/artigos/ruy_clausulas.doc >, acesso em 10 de setembro de 2011. 367 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 303.

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“Se é indeterminado o conceito, não é conceito”368. Eis que, adverte o aludido autor,

se todo conceito é um concentrado de ideias que, para ser conceito, tem de ser, pelo

menos, preciso, “o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado”369.

Vale dizer, se no conceito não houver uma síntese determinada de ideias, não há

que se falar em conceito370 371.

Evidentemente não há condição de expor o tema levando em consideração a

proposição de Eros Grau, pois o desvio de rota poderia acarretar, ao menos aqui,

em certa dificuldade para se retornar ao ponto central do assunto. Daí porque, o

conceito predominante na doutrina, muito embora visivelmente paradoxal, segundo a

exposição acima, é o que será adiante utilizado.

Judith Martins-Costa afirma que a distinção entre cláusula geral e conceito

indeterminado é sutil, pelas razões já expostas no tocante à predominância da

vagueza semântica. Assim, aquele que pretender distinguir os dois termos optando

pela semântica ou por um processo analítico poderá não ter o sucesso esperado372.

A propósito, fazendo essa mesma advertência de Judith Martins-Costa – isto

é, de que a extrema vagueza e a generalidade encontradas nas cláusulas gerais e

nos conceitos indeterminados provocam uma confusão na racionalidade distintiva

entre os termos –, Nelson Nery e Rosa Andrade Nery apontam as distinções,

através do plano funcional, ou seja, pela valoração das realidades adaptáveis que o

magistrado é capaz de fazer diante das circunstâncias não normatizadas:

368

GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p. 196. 369

GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p. 196. 370

GRAU, Eros Roberto. O direito posto... ob. cit., p. 196. 371

“Os conceitos jurídicos que se aponta como ‘indeterminados’ são os tipológicos (fattispecie).

Quanto aos meramente formais e às regulae juris, os primeiros porque abstratos e dissociados da realidade histórica, as segundas porque sintetizam o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas, não padecem de qualquer ‘indeterminação’...São tidos como ‘indeterminados’ os ‘conceitos’ cujos termos são ambíguos ou imprecisos – especialmente imprecisos –, razão pela qual necessitam ser completados por quem os aplique..O que sobretudo a nossa doutrina insiste em chamar de ‘conceito indeterminado’, em uma constante repetição de um bolero de Ravel insosso e sem nenhuma atualização bibliográfica, é noção, vale dizer, idéia temporal e histórica, homogênea ao desenvolvimento das coisas; logo, passível de interpretação...Os conceitos indeterminados – que compreendem conceitos de experiência ou de valor – não conduzem a uma situação de indeterminação na sua aplicação. A aplicação deles, segundo Garcia de Enterría, só permite uma ‘unidade de solução’ em cada caso (1983/434)”. GRAU, Eros Roberto. O direito posto...p. 200-206. 372

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 325.

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“os conceitos legais indeterminados e as cláusulas gerais são enunciações abstratas feitas pela lei, que exigem valoração para que o juiz possa preencher o seu conteúdo. Preenchido o conteúdo valorativo por obra do juiz, este decidirá de acordo com a conseqüência previamente estabelecida pela lei (conceito legal indeterminado) ou construirá a solução que lhe parecer a mais adequada para o caso concreto (cláusula geral). Portanto, a mesma expressão abstrata, dependendo da funcionalidade de que ela se reveste dentro do sistema jurídico, pode ser tomada como princípio geral de direito (v.g. princípio da boa-fé, não positivado), conceito legal indeterminado (v.g. boa-fé para aquisição da propriedade pela usucapião extraordinária – CC 1238 e 1260) ou cláusula geral (boa-fé objetivada nos contratos – CC 422). No exemplo dado, o que discrimina a expressão boa-fé, como princípio geral, conceito indeterminado ou cláusula geral, é a função que ela possui no contexto do sistema, positivo ou não, da qual decorre a aplicabilidade que se lhe dará o julgador (interpretação, solução já prevista na lei ou construção de solução específica pelo

próprio juiz) 373 374.

Portanto, o intento mais adequado aqui é proceder a uma distinção pela

operação intelectiva que o juiz tem que fazer para aplicar indistintamente os dois

termos. Por um lado, se a técnica legislativa das cláusulas gerais firma-se na

premissa de que o dispositivo legal é apenas um vetor que indica o norte para o

magistrado construir judicialmente a norma jurídica, é evidente que não há espaço

para a solução que parta de um raciocínio dedutivo. Logo, o processo racional de

subsunção da norma ao fato simplesmente é incompatível com a técnica legislativa

das cláusulas gerais.

Por outro lado, quando estamos diante de conceitos próximos, ou até mesmo

idênticos, a operação lógica que imediatamente processamos é a subsunção. A

correspondência direta entre os conceitos nos leva a essa forma de raciocinar que

foi amplamente utilizada nos séculos XIX. Ora, a aplicação do processo de

subsunção esbarra logo de frente com a linguagem normativa das cláusulas gerais.

Por terem semântica vaga, imprecisa, ou mesmo lacunosa, as cláusulas

gerais não permitem que o magistrado delas extraia normas por meio de

subsunções. Eis que tal assertiva é facilmente verificável pela mais conhecida das

cláusulas gerais, que é a boa-fé. Verifica-se facilmente que a referida cláusula não

373

NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil anotado e legislação

extravagante. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p-143-144. 374

Os negritos não constam do original.

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apresenta um suporte fático. Sem isso, não há possibilidade de juízo de subsunção

que possa seguir adiante. Daí porque, diante da aplicação de uma cláusula geral, o

magistrado executa necessariamente uma operação de complexidade notavelmente

superior (àquela meramente dedutiva), que se denomina de concreção375. Nesse

ponto, convém observar: a fundamentação não poderá jamais ser simplória. É que

sob essa realidade circunstante o juiz não está simplesmente declarando, mas

criando efetivamente a norma jurídica aplicável.

Desse modo, a depender da indeterminação do texto legislativo, o aplicador

terá em maior ou menor grau que se valer de princípios valorativos e “critérios

extralegais de variável base empírica: usos de tráficos, bons costumes, ética

profissional, boa-fé, etc.” 376. Visto por esse prisma, o encaixe preciso da hipótese

fática com o conceito abstratamente posto no texto legislativo resta prejudicado

quando o magistrado necessita aplicar a cláusula geral377.

Destarte, aquele magistrado idealizado por Montesquieu é retirado a pulso de

cena quando a polêmica (sabe-se com antecedência pela leitura do texto legal) terá

como ratio decidendi fundamento desenvolvido ou criado em face de conceito vago,

pois “o boca da lei” necessita, para sua realização figurativa, do instrumento lógico

do processo de subsunção, do qual não é possível socorrer-se na hipótese onde a

complexidade da operação intelectiva do magistrado é bem maior.

Mas tudo isso também se aplica aos conceitos indeterminados, pois a solução

também é obtida apoiando-se o juiz no processo de concreção, em decorrência da

linguagem vaga a permitir uma apreciação valorativa. Acontece que na cláusula

geral o magistrado formula ativamente a norma, pois a indeterminação, como já

sublinhado anteriormente, encontra-se nos extremos da estrutura do texto legal (não

há definição para a hipótese normativa nem para os efeitos jurídicos). Já nos

375

“O termo concreção, ou concretização (Konkretisierung), foi introduzido no meio jurídico pela

doutrina alemã. Karl Larenz observa que é no contexto do pensamento de seu compatriota e filósofo Walther Schöfeld que a expressão foi primeiramente utilizada...Na aplicação do direito por meio da concreção, o juiz analisa o caso concreto em toda a sua potencialidade. Não parte apenas da compreensão da norma para perquirir se os fatos colocados em questão nela se encaixam. Consoante salienta Humberto Ávila, ocorre ‘uma mescla de indução e dedução’, onde são analisadas todas as circunstâncias do caso: o conteúdo da norma, os precedentes judiciais e quaisquer outros elementos que venham a ser considerados relevantes”. MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... p. 79. Obs: o texto citado de Humberto Ávila é o que segue adiante referenciado. 376

ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 414. 377

ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 415.

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conceitos jurídicos indeterminados, embora a hipótese seja abstratamente vaga, os

efeitos jurídicos são predeterminados pelo legislador. Disso resulta que, nas

cláusulas gerais o magistrado tem possibilidade de optar por valores de uma forma

extremada, o que não acontece quando ele está diante de conceitos jurídicos

indeterminados. Ou seja, em regra378, o magistrado, na aplicação dos conceitos

jurídicos indeterminados, tem uma margem de apreciação valorativa ampla no

tocante à hipótese fática, mas inexistente quanto à opção dos efeitos jurídicos.

Seguindo por essa rota, resta distinguir cláusula geral dos princípios.

A norma jurídica é produto de quem realiza o direito; ou melhor, é o resultado

da aplicação de uma lei. Segundo Humberto Ávila, “normas não são textos nem o

conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de

textos normativos” 379. Assim, se as normas não são textos, mas sim o resultado do

trabalho intelectual do juiz, importaria apenas identificar o formato que o legislador

deu à estrutura do texto – se de conceito indeterminado ou não – para poder

reconhecer diante do que está o intérprete. Porque, como já visto, do tipo de

justificação ou raciocínio levado a efeito pelo juiz na aplicação da lei é o que de

melhor se aproveita para se fazer valer as distinções aqui debatidas. A questão,

porém, não é tão simples assim em relação à pretensão analítica de dissociação

entre cláusulas gerais e princípios, pois, na hipótese, a aplicação dos textos com

indeterminação semântica dá-se por processo de concreção.

Decerto que de uma hipótese fática descritivamente estruturada no texto de

lei não se origina princípio, pois as regras é que “são normas imediatamente

descritivas” 380. O que quer dizer, também há distinção a ser observada entre regras

e princípios.

378

Dito “em regra”, porque Humberto Ávila faz distinção entre conceitos jurídicos indeterminados

empíricos ou descritivos (v.g.: escuridão, noite, ruído, que são percebidos pelos sentidos, necessitando apenas de explicação), normativos (que não perceptíveis pelos sentidos necessitam das normas para serem compreendidos), e normativos valorativos (que envolvem preenchimento valorativo por parte do aplicador). São os conceitos jurídicos indeterminados normativos valorativos que se assemelham às cláusulas gerais. ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 449. 379

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2.ed.

São Paulo: Editora Malheiros, 2003, p. 22. 380

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios... ob. cit., p. 119.

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Quando o legislador determina que em uma rodovia federal, por exemplo, o

limite de velocidade é de 100 km/h, verifica-se que nesse plano estrutural legislativo

está presente o suporte fático suficiente para que, na interpretação do texto, o

aplicador possa raciocinar dedutivamente381. Logo, existe uma regra pronta e

acabada, pois o processo criativo aí é inexistente. O cidadão, na hipótese, como

adverte Lorenzetti, não pode sequer alegar razões principiológicas para desrespeitar

a regra, como, por exemplo, pressa para chegar a tempo no aeroporto, sob pena de

perder o voo 382.

Nesse passo, tem-se que, diferentemente da regra (de velocidade máxima da

pista) — que possui na sua estrutura uma hipótese fática claramente delineada pelo

legislador, com uma consequência pré-estabelecida, podendo ser aplicada por meio

de subsunção —, “os princípios não têm suporte fático” 383.

Apoiando-se ainda no exemplo do limite de velocidade estabelecido para o

trânsito em rodovia, Ricardo Luis Lorenzetti enfatiza que se o legislador

pretendesse, no lugar de uma regra, regular o fato por um princípio teria que dizer

381

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 35. 382

Ao analisar os critérios de distinção entre princípios e regras, em especial ao critério conflitivo

normativo defendido tanto por Alexy quanto Dworkin (cada um a seu modo), Humberto Ávila contesta essa opinião ao demonstrar, utilizando exemplo igual da regra limitativa de velocidade, que as regras podem sujeitar-se à atividade de ponderação de razões. Com efeito, adverte o citado autor: “...as regras também podem ter seu conteúdo preliminar de sentido superado por razões contrárias, mediante um processo de ponderação de razões...Por exemplo, a legislação de um Município, ao instalar regras de trânsito, estabelece que a velocidade máxima no perímetro urbano é de 60Km/h. Se algum veículo for fotografado, por mecanismos de medição eletrônica, trafegando acima dessa velocidade, será obrigado a pagar uma multa. A mencionada norma, dentro da tipologia aqui analisada, seria uma regra, e, como tal, instituidora de uma obrigação absoluta que independe de ponderação de razões a favor e contra sua utilização: se o veículo ultrapassar a velocidade-limite e se a regra for válida, a penalidade deve ser imposta. Mesmo assim, o Departamento de Trânsito pode deixar de impor a multa para os motoristas, especialmente de táxi, que comprovem, mediante a apresentação de boletim de ocorrência, que no momento da infração estavam acima da velocidade permitida porque conduziam passageiro gravemente ferido para o hospital. Nesse caso, embora tenha sido concretizada a hipótese normativa, o aplicador recorre a outras razões, baseadas em outras normas, para justificar o descumprimento daquela regra (overruling). As outras razões, consideradas superiores à própria razão para cumprir a regra, constituem fundamento para seu não-cumprimento. Isso significa, para o que se está agora a examinar, que o modo de aplicação da regra, portanto, não está totalmente condicionado pela descrição do comportamento, mas que depende do sopesamento de circunstâncias e de argumentos”. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios... ob. cit., p. 45-46. 383

DA CUNHA, Sérgio Sérvulo. O que é um princípio. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU, Eros

Roberto (Org.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 270.

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mais ou menos o seguinte: “conduza de uma maneira que não cause dano a outrem”

384.

É fácil supor que o magistrado ao tentar aplicar o que o legislador teria posto

acima, por certo encontraria muita dificuldade de compor o feixe de valores

suficientes para delimitar o comportamento do condutor, em decorrência do grau de

vagueza apresentado no texto. Na verdade, pelo menos na hipótese, seria

impraticável a aplicação do texto legal redigido de maneira principiológica.

Visto assim, pode-se afirmar que a dificuldade em se dissociar cláusula geral

de princípios está exatamente em que os princípios também fazem parte daqueles

conceitos, cuja baixa concretude ou densidade normativa não é capaz de, por meio

do processo de subsunção, apresentar uma única solução para o caso concreto,

autorizando que o magistrado, possa apresentar diversas alternativas válidas de

interpretação. Daí a razão de Didier afirmar que, embora a cláusula geral seja texto

(e princípio, norma), pode acontecer de um princípio ser extraído de uma cláusula

geral385 386.

Não é simples a distinção, portanto, entre princípio jurídico e cláusula geral.

Hélio Silvio Ourem Campos, em estudo de assento e sobremão, trabalha a

noção de princípio pelo aspecto finalístico, assinalando que

na verdade, em um sentido radical, só se deveria falar em princípio quando, dentro de uma certa ordem, nada lhe fosse anterior. Nada o deveria preceder. Seria como se a história fosse uma linha reta infinita, e o seu primeiro ponto fosse denominado princípio. No entanto, a história do Estado, e do próprio indivíduo, às vezes caminha em círculos. E, em uma ordem circular, há indiferença quanto ao que esteja em primeiro ou em último (...). Em outras palavras, a história humana está repleta de avanços e retrocessos. Ela não é uma reta, pois possui vários começos (princípios). Cada civilização tem o seu princípio ou os seus princípios. Estes não são verdadeiros ou falsos, embora sirvam de fundamento para uma

384

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 36. 385

“Cláusula geral é um texto jurídico; princípio é norma. São institutos que operam níveis diferentes do fenômeno normativo. A norma jurídica é produto da interpretação de um texto jurídico. Interpretam-se textos jurídicos para que se verifique qual norma deles pode ser extraída. Um princípio pode ser extraído de uma cláusula geral, e é o que costuma acontecer. Mas a cláusula geral é texto que pode servir de suporte para o surgimento de uma regra. Da cláusula geral do devido processo legal é possível extrair a regra de que a decisão judicial deve ser motivada, por exemplo”. DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais... ob. cit., p. 9. 386

No mesmo sentido é Judith Martins-Costa: “as cláusulas gerais não são princípios, embora na

maior parte dos casos os contenham, em seu enunciado, ou permitam a sua formulação”. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 316.

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cultura em um determinado espaço e tempo. São fotografias de um momento político. Em um princípio, o decisivo é que tenha efetividade. Se dele nada resultar, não cabe se falar em princípio. Na idéia de princípio, vem engajada a noção de continuidade. Não

haverá princípio, se não existirem efeitos387.

Nada obstante, Judith Martins-Costa cogita inicialmente explicar a diferença

entre os citados termos expondo as diversas acepções do vocábulo princípio. Ao

final de sua explanação, contudo, ressalta que “entre os autores que admitem a

natureza normativa dos princípios entende-se que o seu caráter fundante se situa

como um dos principais, senão o principal traço individualizador” 388 389.

O que vem a ser princípio fundante, nas palavras de Miguel Reale, é o

seguinte:

Para se formar noção do que seja princípio, é necessário recordar, previamente, o que se entende logicamente por juízo. Quando formulamos um juízo? Quando emitimos uma apreciação a respeito de algo, quer negando, quer afirmando uma qualidade.

....

O juízo, portanto, é a molécula do conhecimento. Não podemos conhecer sem formular juízos, assim como também não podemos transmitir conhecimentos sem formular juízos. A expressão verbal, escrita ou oral, de um juízo, chama-se proposição.

...

Se todo juízo envolve uma pergunta sobre sua validade ou o seu fundamento, quando se enuncia um juízo, que não seja por si evidente, há sempre a possibilidade de reduzi-lo a outro juízo mais simples ainda, o qual, por sua vez, poderá permitir a busca de outro juízo que nos assegure a certeza do enunciado, por ser evidente,

impondo-se como presença imediata ao espírito. Quando o nosso pensamento opera essa redução certificadora, até atingir juízos que não possam mais ser reduzidos a outros, dizemos que atingimos

387 CAMPOS, Hélio Silvio Ourem. A Constituição Brasileira de 1988 e o princípio da segurança

jurídica no âmbito das medidas provisórias tributárias. Vol. I, Lisboa, 2001, p. 179-180. 388

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 321. 389

Ao anotar a distinção entre princípios e regras na obra de Luis Virgílio Afonso da Silva, Nelson Nery ressalta o seguinte texto do referido autor: “a nomenclatura pode variar um pouco de autor para autor – e são vários os que se dedicaram ao problema dos princípios jurídicos no Brasil –, mas a idéia costuma ser a mesma: princípios seriam as normas mais fundamentais do sistema, enquanto as regras costumam ser definidas como uma concretização desses princípios e teriam, por isso, caráter mais instrumental e menos fundamental”. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 27.

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princípios. Princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da

validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus

pressupostos necessários390

.

Observados por esse predicado, então, os princípios fundantes agem, na

dicção de Sérgio Sérvulo da Cunha, como “indutores da elaboração das normas,

que se distribuem pelo campo de aplicação do sistema como que a preencher um

espaço até então vazio” 391. É dizer, os princípios caracterizam-se pela síntese de

pontos de vistas que se expraiam pelo sistema jurídico, gerando efeitos práticos.

Ao expor sobre a diferença entre cláusula geral e princípios, Humberto Ávila

adverte que se pode adotar basicamente dois critérios distintivos: o da abrangência

valorativa e o da operatividade. Como os princípios, como visto, referem-se a valores

fundantes, sua abrangência, ou melhor, sua cobertura normativa é bem superior as

das cláusulas gerais, que se localizam “no meio caminho, entre as regras e os

princípios” 392. Ainda para o referido autor,

o elemento diferenciador fundamental entre as duas categorias é sua forma operativa no processo de aplicação: os princípios atuam sobre uma grande parte das normas do sistema, para dar-lhes sentido e fundamento, determinando-lhes o valor; as cláusulas gerais que operam em campo mais restrito são instrumentos de atuação dos valores normativos concretos, em algum período histórico delimitado,

em razão dos quais são também determinados os efeitos jurídicos393

.

Mas não é só.

É no ponto acima referido por Miguel Reale (da falta de evidência dos

princípios em determinadas circunstâncias) que também se observa a diferença. É

que, consoante afirma Judtih Martins-Costa, “não se pode pensar em ‘cláusula geral’

390

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 60-61. Obs: não há o negrito no texto original. 391

DA CUNHA, Sérgio Sérvulo. O que é um princípio... ob. cit., p. 271. 392

ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 434. 393

ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 434.

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inexpressa”394, não se podendo falar, na hipótese, em implicitude. E assim é porque,

a cláusula geral provém do legislador, porquanto, como já antedito, é técnica

legislativa, ao passo que o princípio provém, não raro, da própria Ciência do

Direito395.

2.2.3 As cláusulas gerais e a importância do precedente.

Como já relatado, diante dos textos legais compostos por cláusulas gerais ou

conceitos indeterminados, o magistrado tem uma atuação completamente diferente

daquela originariamente concebida pela escola da exegese.

Ao ter que trabalhar com regras de composição semântica aberta, o

magistrado cria a norma jurídica aplicável ao caso. Se no processo de subsunção o

juiz pouco se dá a perceber o que está a sua volta, no de concreção sua consciência

se volta para o sistema como um todo, em especial, como tem sido presentemente,

para os precedentes criados pelos tribunais superiores. A razão desse

comportamento está no fato de que a utilização da técnica das cláusulas gerais em

muito aproxima o sistema do civil law do common law 396.

Consoante expõe Marinoni, “a ampliação da latitude do poder judicial com

base nas cláusulas gerais não apenas exige um sistema de precedentes, como

ainda reclama um aprofundamento de critérios capazes de garantir o controle das

decisões judiciais” 397 398. Ou seja,

De fato, quando se tem a consciência teórica de que a decisão nem sempre é resultado de critérios previamente normatizados, mas pode constituir regras, fundada em elementos que não estão presentes na legislação, destinada a regular um caso concreto, não há como

394

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... ob. cit., p. 323. 395

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 61. 396

DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais.... ob. cit., p. 6. 397

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 155. 398

Do mesmo modo, em parágrafos seguintes, Marinoni afirma que o direito processual civil foi

também marcado por um paulatino e progressivo aumento dos poderes do juiz: “deixou-se de lado a rigidez das regras e a suposição de que a segurança e a igualdade apenas poderiam ser garantidas caso o juiz não tivesse espaço para fugir da letra da lei e da tipicidade das formas processuais. Foram instituídas no Código de Processo Civil normas com conceitos vagos e outras que expressamente atribuem ao juiz o poder-dever de adotar a técnica processual necessária à adequada tutela do direito material no caso concreto”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 156.

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deixar de perceber que as expectativas que recaíam na lei

transferem-se para a decisão judicial399

.

Disso resulta que, se a decisão passa a ser o centro das expectativas do

sistema jurídico, máxime em se tratando de decisões judiciais proferidas em razão

da criação de cláusulas gerais, evidente que o princípio da segurança jurídica vai

atuar no sentido de impedir que haja diversidade profunda na produção de tais

normas, gerando perplexidade para os jurisdicionados.

Logo se vê que a perspectiva pessimista de que o legislador, enveredando

pela seara da técnica legislativa das cláusulas gerais, aumentará a insegurança

jurídica, somente ganha força na medida em que não sejam produzidos, em

contrapartida, os instrumentos processuais hábeis para fazer valer a unidade dos

precedentes judiciais. Até porque, as cláusulas gerais não podem significar “uma

brecha para que cada juiz decida de acordo com a sua convicção pessoal, a respeito

do sentido que tenham estas normas” 400. É que, caso assim seja, “negar-se-ia a

existência substancial do Poder Legislativo e o Judiciário ficaria ‘pulverizado’ em

tantos quantos fossem o número de juízes que o integram” 401.

Apesar da vagueza semântica das cláusulas gerais, ao magistrado não cabe

decidir com liberdade extrema. Melhor dizendo, o juiz deve socorrer-se de elementos

que colaboram com a concretização das cláusulas gerais. Como demonstrado, um

desses elementos chama facilmente a atenção: os precedentes judiciais. O outro, a

pré-compreensão.

Ora, quando, para fundamentar sua decisão, o magistrado escolhe

componentes axiológicos e extralegislativos, e assim ele resgata antecipadamente

valores que são compreendidos com anterioridade. Significa que, essa valoração se

dá por meio de um movimento circular denominado de pré-compreensão. Sobre o

tema, disserta da seguinte forma Lenio Streck:

399

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 154. 400

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do código civil de 2002 – a função social do contrato. Revistas dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. n. 831, a. 94, jan. 2005, p. 59-79., p. 72. 401

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais”... ob. cit., p. 72.

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O intérprete não pode captar o conteúdo da norma desde o ponto de vista quase arquimédico situado fora da existência histórica, senão unicamente desde a concreta situação histórica na qual se encontra, cuja elaboração (maturidade) conformou seus hábitos mentais, condicionando seus conhecimentos e seus pré-juízos. O intérprete compreende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão, que é o que vai lhe permitir contemplar a norma desde certas expectativas, fazer uma idéia do conjunto e perfilar um primeiro projeto, ainda necessitado de comprovação, correção e revisão através da progressiva aproximação à coisa por parte dos projetos em cada caso revisados com o que a unidade de sentido fica claramente fixada. Dada esta presença do pré-juízo em toda compreensão, trata-se de não se limitar a executar as antecipações da pré-compreensão, sendo, pelo contrário, consciente das mesmas e explicando-as, respondendo assim ao primeiro comando de toda interpretação: proteger-se contra o arbítrio de idéias e a estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis e dirigir o olhar “para as coisas

mesmas” 402

.

Esse processo é, portanto, inibidor do arbítrio ou discricionariedade do

julgador. Há, dessa forma, uma vinculação do magistrado com seus pré-juízos no

instante de decidir, de criar a norma, de fundamentar a decisão. Isso porque, é bom

repetir, as cláusulas gerais “promovem o reenvio do intérprete/aplicador do direito a

certas pautas de valoração do caso concreto” 403.

Os precedentes, por exemplo, vão servir ao magistrado exatamente como um

norte no processo de definição do sentido desses textos, cuja tipificação é

praticamente inexistente. Como bem observado, a concreção não é processo que

permita a vontade pura e simples do julgador. Daí porque a importância da

fundamentação nas decisões em que o magistrado utiliza o processo de concreção.

As razões de convencimento do magistrado necessitam tanto de uma profundidade

vertical quanto de uma boa extensão horizontal, lembrando que esse procedimento

tem que ser pleno, pois visa atingir um auditório amplo, porquanto é dirigido não só

às partes, mas, de igual forma, à comunidade jurídica.

Eis que a concreção das cláusulas gerais e de conceitos indeterminados

requer do magistrado uma capacidade de sintonia elevada, suficiente para captar

dispersos no sistema, e até mesmo fora deles, os valores extralegais a serem

402

STRECK. Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise... ob. cit., p. 271. 403

MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como “um sistema em construção”: as cláusulas gerais

no projeto do código civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa: Brasília, a.35, n.139, p. 5-22, jul./set., 1998, p. 10.

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preenchidos nas normas. Esse proceder evita “o voluntarismo puro, o mero arbítrio

do julgador” 404.

Em outro giro, não recai somente sobre os ombros do magistrado o fardo de

um trabalho meticuloso; a doutrina também recebe sua cota de responsabilidade. O

papel da doutrina passa a ser o de executar uma crítica construtiva ao trabalho dos

magistrados diante da fundamentação das decisões baseadas em normas de textura

aberta405.

Essa influência benéfica que o precedente judicial exerce sobre o juízo de

valoração do magistrado deixa claro que um dos elementos decisivos no processo

de “concretização das cláusulas gerais é a pré-compreensão do aplicador a respeito

de elementos do enunciado normativo” 406.

Nesse contexto, Humberto Ávila adverte que

a pré-compreensão induz o aplicador a reconhecer um certo sentido nas normas, dentre as várias possibilidades de conteúdo e dentre as várias hipóteses de combinações entre as normas. Por isso, a afirmação de LARENZ: “o intérprete está munido de uma ‘pré-compreensão’, com que penetra no texto”. Essa pré-compreensão tem especial relevo para a aplicação daquelas normas abertas cujo sentido é dado, também, por aspectos extra-sistemáticos, porque elas se referem aos contextos sociais, às situações de interesses e às estruturas das relações da vida, reguladas pelas normas

jurídicas407

.

Daí que não será facilmente tolerada pela comunidade aquela decisão do juiz

que despreza o que há de consenso socialmente aceito em relação a certo standard

de comportamento. Didier dá o exemplo:

As práticas negociais de agricultores de uma região, por exemplo, não podem ser ignoradas na compreensão do que significa um comportamento socialmente havido como honesto (standard), para

fim de concretização da cláusula geral da boa-fé408

.

404

MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 88. 405

MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais... ob. cit., p. 89. 406

DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais.... ob. cit., p. 7. 407

ÁVILA, Humberto Bergmann. Subsunção e concreção... ob. cit., p. 440. 408

DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais.... ob. cit., p. 7.

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Bem vistos tais aspectos, é inegável que o consenso social já pode estar

sedimentado por obra da jurisprudência.

2.2.4 Consequências práticas da utilização das cláusulas gerais.

O poder de adaptação à realidade social dos textos legislativos munidos da

técnica das cláusulas gerais é bem maior do que as leis cujas redações de seus

dispositivos primam pela casuística409. É que, ao contar com os espaços abertos

propositadamente produzidos pelo legislador, o juiz pode considerar, diante do caso

concreto, circunstâncias que permitam uma solução mais próxima possível do justo.

Afasta-se, por assim dizer, de uma (ainda que remota) aplicação subsuntiva da

norma, proporcionada pela técnica legislativa casuística. Até porque outro fator

importante deve ser adicionado ao debate: a pluralidade da sociedade moderna.

Se é certo que vivemos hoje em sociedades multifacetadas, dotadas de

grupos particularizados, e com interesses políticos diversos, até a aprovação de leis

especiais se apresenta bem menos complicada, em decorrência de se facultar a

participação popular mais efetiva na discussão legislativa410. Ou seja, a técnica

legislativa das cláusulas abertas proporciona basicamente uma melhor possibilidade

de debate e participação popular, facilitando o processo parlamentar de aprovação

das leis, ao mesmo tempo que favorece a atuação do magistrado na concretização

do direito, “dando-lhe poder para construir a decisão a partir de elementos que não

estão presentes no tecido normativo” 411.

409

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 152. 410

“Diante desse quadro, seria mais interessante a adoção de uma lei geral sobre relação jurídica e

de microssistemas dela decorrentes, tratando sobre os diversos assuntos do direito privado. Teríamos, à semelhança da orientação mais recente adotada por ocasião da promulgação do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), outros microssistemas específicos, tratando de temas como responsabilidade civil extracontratual, responsabilidade civil contratual, casamento, união estável, estatuto dos filhos, estatuto da propriedade, estatuto da posse. A participação popular seria naturalmente mais intensa e tais normas, mais flexíveis consideravelmente menos extensas que uma grande codificação, teriam uma ‘sobrevida’ bem maior, inclusive por meio de modificações mais céleres em seus dispositivos, a fim de melhor acompanhar as transformações sociais (basta lembrar que o Código Civil de 1916 levou dezessete anos para ser promulgado, enquanto o novo Código levou quase trinta)”. LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil... ob. cit., p. 93. 411

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 154.

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Evidentemente que não se pode negar a constatação que nesse passo de

atuação do magistrado, a criação do direito sobreleva-se em muito em relação ao

passado.

Se a cláusula geral é uma norma propositadamente incompleta, ofertada pelo

legislador ao Judiciário com a intenção de que o magistrado a complete, temos que

“a decisão judicial é a verdadeira norma jurídica do caso concreto” 412. Logo, é mais

do que razoável admitir-se que, nessa perspectiva, as decisões judiciais que

propugnam idêntico entendimento, findam por criar o direito, estabelecendo normas

jurídicas que servirão para a solução de casos semelhantes.

2.3 Significado do termo jurisprudência

Alguns autores, como José Rogério Cruz e Tucci413 e Caio Márcio Gutterres

Taranto414, declaradamente preferem empregar a locução precedente em lugar do

termo jurisprudência. O motivo é que, sendo o vocábulo jurisprudência de

significação múltipla, evita-se com isso que ocorram aplicações antagônicas do

termo. Todavia, ao levar em consideração que o presente trabalho pretende, entre

outras coisas, defender a jurisprudência uniforme como supedâneo da segurança

jurídica e instrumento de apoio para os juízes, no ato de fundamentação das

decisões judiciais, entende-se necessário trabalhar aqui com um conceito de

jurisprudência ainda que de feição reducionista.

Observa-se que no dia a dia do fórum também é comum a aplicação sem

rigor de um ou outro termo. Nas peças processuais ou mesmo nas decisões, os

aplicadores do direito fazem referência muita vez à “jurisprudência” quando da

citação de um único precedente.

Esse embaraço pode ter origens históricas.

Somente a partir de Roma é que o termo jurisprudência começou a ser

cunhado. Na Roma antiga, cabia aos pretores, por meio de editos, declararem como

412

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 154. 413 CRUZ e TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2004, p. 9. 414

TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 5.

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seria a justiça administrativa, completando-a e corrigindo-a415 416. Segundo

Mancuso, também aos jurisconsultos cabia interpretar a lei. É que o significado do

termo jurisprudência estava atrelado a uma função exegética que era executada

pelos jurisconsultos da época (prudentes). Os tais prudentes esclareciam os termos

da lei que se faziam necessários, porquanto o Direito estreante da época, na sua

natural miscelânea de fontes, não distinguia moral de religião417. O termo prudente

vem dessa imperiosa faculdade de, com sabedoria, os jurisconsultos distinguirem da

lei o que era moral e o que era religião, auxiliando com isso o proceder dos

cidadãos. Logo, em Roma, dizer o direito (júris+prudentia) era atividade exercida

tanto pelos editos dos pretores, como das respostas fornecidas pelos prudentes418,

cada qual, porém, de maneira própria.

Após esse período de grande autonomia da jurisprudência, o imperador

Adriano determinou que na solução de casos polêmicos os magistrados estavam

autorizados, dentre os principais jurisconsultos, a escolher aqueles que

apresentavam as melhores opiniões sobre as questões discutidas419. Era possível

até, em um segundo estágio de evolução, seguir uma ordem hierárquica de

preferência das obras dos jurisconsultos. Assim, era preferível optar por uma obra

específica, e, se nela não fosse encontrada resposta, demandar diligência em obra

de jurisconsulto diverso, mas sempre obedecendo a uma ordem de preferência.

Depois de um certo período, restou em favor do imperador a tarefa exclusiva de

interpretar a lei420. Somente na Idade Média volta-se a ter notícia de que os órgãos

judiciários procuravam, no momento de declarar o sentido da lei, demonstrar o

alcance da regra421.

415

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 144. 416

“Os magistrados administravam a justiça e emanavam os editos para que os cidadãos soubessem qual direito estes aplicavam em cada caso. Este editos dos pretores construíram o direito honorário: chama-se honorário porque deriva do cargo (honor) do pretor”. CRUZ e TUCCI, José Rogério Cruz. Precedente judicial como fonte do direito... ob. cit., p. 39. 417

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p.10. 418

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p.11. 419

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 145. 420

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 145. 421

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 145.

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Mas foi na Alta Idade Média (XI e XII) que se registrou “um movimento de

releitura das fontes romanas, com os chamados glosadores” 422. A atividade dos

glosadores consistia em formular comentários ou anotações às margens ou nos

planos interlineares da versão original do Corpus Iuris Civilis423

. Essas anotações

recebiam o nome de glosas. Destacava-se, na aludida tarefa, a Escola de Bolonha,

com distinção para Martins, Hugo e Jacob424. Esse método, considerado um prelúdio

da hermenêutica, visava adequar o texto aos reclamos da época.

A partir desse momento, mais especificamente, portanto, quando as glosas

assumem uma conotação mais casuística, a jurisprudência vai adquirindo finalidades

diversas dos primórdios do império romano, conforme se vai solidificando nos vários

países, notando-se que, como observa Mancuso,

No continente europeu, os ordenamentos continuaram a se inspirar nas fontes romanas, com as necessárias adaptações, formando os chamados “direitos codicísticos”, com forte prevalência da norma escrita, ao contrário da vertente anglo-saxã, onde o primado recaiu

no precedente judiciário, como é sabido425

.

Em vista disso, denota-se que, com a derrocada do Império Romano, formou-

se basicamente dois sistemas com maior ou menor importância da jurisprudência:

um calcado nos códigos, outro na força dos precedentes. Porém, ambos com

influência notadamente do Direito romano. Na opinião de Eduardo Parente, “esse

panorama histórico serve para demonstrar que sempre houve, em maior ou menor

422

MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit.,

p.13. 423

“Justiniano foi o responsável pela confecção do Corpus Iuris Civilis, dotado de uma sistemática

interna ora reconhecida, contendo toda a legislação romana que influenciou o direito das nações bárbaras, quando se operou a recepção. O Corpus Iuris Civilis era constituído pelas novelas e institutas e pelos codex e digestos. A novela compreendia as novas constituições e as leis de Justiniano. As institutas se dividiam em quatro livros, redigidos, a pedido de Justiniano, por Teófilo, Triboniano e Doroteu. É obra de cunho didático, como elementos necessários ao ensino do direito, que substituiu as Institutas de Gaio. O digesto ou pandectas era uma compilação de normas do direito civil e de decisões dos jurisconsultos romanos. O Codex, que integrava o Corpus Juris Civilis era, na realidade, um conjunto de códigos refundidos, com modificações hábeis à sua adaptação para aquela época”.LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil... ob. cit., p. 84-85. 424

MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p.13. 425

MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit.,

p.13 e 14.

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grau, obrigatoriedade ou mesmo forte influência da jurisprudência na realidade

jurídica” 426 .

Ora, por conta dessa realidade circunstante, a doutrina procurou, ao longo do

tempo, estabelecer com segurança uma definição para o termo jurisprudência. Essa

mesma preocupação revela-se presente quando o assunto é jurisprudência

dominante, termo que o legislador utilizou por mais de uma vez na reforma do CPC,

levada a efeito pela Lei 9.756/98, como se verá mais adiante.

Um dos fatores que contribuem para dificultar essa segunda tarefa dos

doutrinadores é o fato do próprio termo jurisprudência abarcar mais de uma

acepção427. Deveras, não só algumas acepções do vocábulo jurisprudência

afiguram-se presentemente fora de um contexto prático428, como também entre os

doutrinadores varia o número exato de sentidos que a palavra é aplicada no

universo jurídico. Lenio Streck, por exemplo, admite três significados para o

termo429; Carlos Maximiliano, basicamente, trabalha com dois430. Mancuso dá aviso

de que Limongi França apresenta cinco acepções431. Fabiano Carvalho, em seu

426 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit.,

p.5. 427

Segundo Mancuso: “...ainda hoje, a palavra segue sendo plurissignificativa.” MANCUSO, Rodolfo

Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p. 29. 428

Segundo Sidnei Agostinho Beneti, “o linguajar jurídico nacional vem solapando o conceito de

jurisprudência...” BENETI, Sidnei Agostinho. Doutrina de precedentes e organização judiciária. Revista de Direito Administrativo. São Paulo, v. 246, set./dez, 2007, p. 319. 429

“A palavra ‘jurisprudência’ pode ter, na linguagem jurídica, significados diferentes: a) em sentido

estrito, pode indicar ‘Ciência do Direito’, também denominada ‘Dogmática Jurídica’ ou ‘Jurisprudência’; b) em sentido lato, pode referir-se ao conjunto de sentença dos tribunais, e abranger tanto a jurisprudência uniforme como a contraditória; c) pode significar apenas o conjunto de sentenças uniformes, falando-se, nesse sentido, em ‘firmar jurisprudência’ ou ‘contrariar a jurisprudência’”. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p. 88. 430

“Chama-se Jurisprudência, em geral, ao conjunto das soluções dadas pelos tribunais às questões

de Direito; relativamente a um caso particular, denomina-se jurisprudência a decisão constante e uniforme dos tribunais sobre determinado ponto de Direito”. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 145. 431

“Para Rubens Limongi França o termo comporta cinco acepções: ‘O primeiro, um conceito lato,

capaz de abranger, de modo geral, toda a ciência do direito, teórica ou prática, seja elaborada por jurisconsultos, seja por magistrados’ (...). ‘O segundo, ligado à etimologia do vocábulo, que vem de júris+prudentia, consistiria no conjunto das manifestações dos jurisconsultos (prudentes), ante questões jurídicas concretamente a eles apresentadas. Circunscrever-se-ia ao acervo dos hoje chamados pareceres, quer emanados de órgãos oficiais, quer de jurisperitos não investidos de funções públicas. O terceiro, o de doutrina jurídica, teórica ou prática ou de dupla natureza, vale dizer o complexo das indagações, estudos e trabalhos, gerais e especiais, levados a efeito pelos juristas sem a preocupação de resolver imediatamente problemas concretos atuais. O quarto, o de massa geral das manifestações dos juízes e tribunais sobre as lides e negócios submetidos à sua autoridade, manifestações essas que implicam uma técnica especializada e um rito próprio, imposto por lei. O quinto, finalmente, o de conjunto de pronunciamentos, por parte do mesmo Poder Judiciário, num determinado sentido, a respeito de certo objeto, de modo constante, reiterado e

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estudo sobre os poderes do relator nos recursos – art. 557 do CPC –, enumera

igualmente três significados para dar exemplo da polissemia da expressão432.

Conquanto sejam compreensíveis as acepções diversas que a palavra

jurisprudência tem na Ciência do Direito, já que a origem da expressão remonta aos

primórdios do Direito Romano, convém, como já referido, que não se trabalhe, ao

menos num estudo sobre um tema específico, uma amplitude de significados de um

mesmo termo; o mais adequado é partir para uma postura reducionista a fim de que

se possa elucidar algumas questões que constantemente enveredam pela senda

aberta em torno do tema principal.

Uma dessas primeiras questões: as decisões uniformes de primeiro grau

configuram “jurisprudência”?

Ao menos tomando por parâmetro um senso técnico-jurídico, a doutrina não

associa o termo jurisprudência às decisões que se encontram na base da pirâmide

estrutural do Poder Judiciário433 434. Nesse ser assim, pode-se até chamar a decisão

do juízo de primeiro grau de precedente (ou, no conjunto, quando reiteradas, de

precedentes)435, mas não de jurisprudência – mesmo que, sendo várias, reflitam

uma mesma linha de pensamento. É que falta a tais decisões o prestígio imanente

pacífico.”. MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p. 29. 432

“O vocábulo é empregado na sua acepção clássica: ‘pode ser entendida como o conhecimento

das coisas divinas e humanas e a ciência do justo e do injustos. Nesse sentido foi aplicado por Ulpiano (Livro I Regularum) no D. 2.1.10, § 2º: jurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, justi et injusti scientia. Jurisprudência como ‘Ciência do Direito’, em sentido estrito, também denominada de ‘Dogmática Jurídica’. Nesse sentido, a jurisprudência ‘tem por objetivo o fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente realizado’”. CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 121. 433

Para Sidnei Beneti, a jurisprudência é a “interpretação consistente dos tribunais a respeito das

lides, igualando-a pela de precedente, que é cada julgamento individual. Um julgado não é jurisprudência, mas um precedente, que interagirá com outros julgados idênticos ou análogos, no sentido da formação, ou não, de jurisprudência”. BENETI, Sidinei Agostinho. Doutrina de precedentes e organização judiciária... ob. cit., p. 319. (os destaques não constam no original). 434

“Portanto, a ‘jurisprudência’, no sentido técnico-jurídico antes buscado, não se confunde com a

função primária (e monopolizada) do Estado, de promover a distribuição da justiça: a uma, porque os julgados de primeiro grau, ainda quando homogêneos, não configuram jurisprudência, termos usualmente reservado para designar um encadeamento harmônico de acórdãos sobre um mesmo tema...” . MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p. 22 e 23 (os destaques em negrito não constam no original). 435

“Seria possível pensar que toda decisão judicial é um precedente. Contudo, ambos não confundem, só havendo sentido falar de precedente quando se tem uma decisão dotada de determinadas características, basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados. De modo que, se todo precedente é uma decisão, nem toda decisão constitui precedente”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 215.

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do entendimento oriundo dos tribunais, que, a toda evidência, cresce na medida em

que verticalmente se eleva no âmbito dos órgãos fracionário da Corte de Justiça de

onde as decisões provêm. Prestígio esse que advém igualmente da certeza da

imutabilidade que a decisão vai recebendo ao galgar degrau por degrau a escala

piramidal do Poder Judiciário.

De igual modo, por sequer merecerem a denominação de acórdão, são

inaptos também para a formação de jurisprudência “os atos decisórios prolatados

por órgãos monocráticos existentes nos Tribunais (Presidente, Vice, Corregedor,

Relator, Revisor), quando exercem competência fixada na legislação processual

(v.g., CPC, arts. 541, 557) ou nos textos regimentais (v.g., RISTF, art. 21, VII)” 436;

isso porque, de maneira idêntica às sentenças de primeiro grau, também essas

decisões monocráticas revelam pouco prestígio no grau da imutabilidade, já que

podem sofrer crivo do próprio Tribunal ou de Tribunal ad quem, oportunidade então

que o órgão revisor poderá ou não confirmá-las.

Na verdade, decisões monocráticas dos relatores, proferidas com base no art.

557 do CPC, por exemplo, refletem a jurisprudência, mas com essa não podem ser

confundidas.

Outra questão que se revela pontual: decisão isolada do Tribunal pode ser

considerada jurisprudência?

Para Carlos Maximiliano, “uma decisão isolada não constitui jurisprudência; é

mister que se repita, e sem variações de fundo. O precedente, para constituir

jurisprudência, deve ser uniforme e constante” 437 438. Diz mais o referido

hermeneuta:

Para evitar confusões, sempre prejudiciais no terreno científico,

parece preferível só chamar jurisprudência ao uniforme e constante

pronunciamento sobre uma questão de Direito, da parte dos

tribunais; e simples precedentes, às deliberações das câmaras

legislativas e às decisões isoladas dos magistrados439

.

436

MANCUSO, Rodolfo Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 2. ed., ob. cit., p.

38-39. 437

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 151. 438

No mesmo sentido, Lenio Streck. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p.

89. 439

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito... ob. cit., p. 153.

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Como se verá mais à frente, essa posição pode ser flexibilizada de acordo

com o contexto em que a decisão única do tribunal se revela.

Por fim, ao somatório de todos os julgados dos tribunais é possível

denominar-se de jurisprudência? Ou jurisprudência é somente aquela parte

destacada da massa geral de acórdãos que corresponde a uma determinada

questão reiterada e uniformemente decidida pelo Tribunal?

Como já referido, embora diversas sejam as significações para a palavra,

observa-se uma indicativa tendência doutrinária para a aceitação conceitual restrita

da jurisprudência como “o conjunto de decisões provindas de tribunais sobre

determinada matéria em sentido isonômico, reiterado e predominante” 440.

Praticamente no mesmo sentido é a proposta conceitual de Fabiano Carvalho:

“jurisprudência é a produção decisória, em série, dos tribunais, por meio dos seus

órgãos colegiados, no exercício da sua jurisdição, sobre determinada matéria

jurídica de sua competência” 441.

Das conceituações acima, e para o que interessa ao presente estudo,

trabalharemos a seguir com essa acepção mais técnica ou restrita de jurisprudência,

quer dizer, como aquela que designa o resultado sistemático e consistente do

entendimento dos juízes que compõem as Cortes de Justiça em relação a um tema

específico.

2.3.1 Jurisprudência dominante

Com efeito, as últimas reformas legislativas implementadas no Código de

Processo Civil deram bastante destaque à força dos precedentes, notadamente no

tocante à jurisprudência oriunda dos tribunais superiores.

Ao que tudo indica, o legislador foi se rendendo aos poucos à necessidade da

sociedade estabelecer paradigmas comuns aos comportamentos humanos e, como

visto, numa sociedade moderna, deveras massificada, indiscutivelmente esses

440

PARENTE, Eduardo Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit., p. 5. 441

CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 122.

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paradigmas são melhores fornecidos pelo Poder Judiciário através de sua produção

jurisprudencial442. A importância que o legislador deu à expressão jurisprudência

dominante resulta dessa necessidade de se apontar para sociedade os paradigmas

judiciais que servem para a configuração do direito a ser seguido por todos.

À partida, vale a afirmação que a expressão jurisprudência dominante é

conceito vago porque “não é possível definir com precisão o seu conteúdo” 443.

Logo, é exatamente por isso que a doutrina vem se debruçando sobre o tema no afã

de dar o sentido exato ao adjetivo dominante.

Como o conceito é vago, impreciso, os critérios desenvolvidos pela doutrina

são basicamente de ordem objetiva. É que parece não ter sentido, ao menos numa

primeira levada de interpretação, estar diante de um conceito vago e não preenchê-

lo com critérios objetivamente declarados. Todavia, como se poderá observar mais

na frente, talvez seja possível conviver com o conceito vago de jurisprudência

dominante sem a necessidade premente de se estabelecer critérios objetivos.

Do ponto de vista cronológico, um dos primeiros trabalhos sobre o tema foi

apresentado por Priscila Kei Sato. Em seu estudo, a doutrinadora propõe a solução

do problema estratificando-o nas principais esferas superiores do Poder Judiciário,

da seguinte forma: (i) em relação ao Supremo Tribunal Federal, o termo refletiria

necessariamente a existência de mais de um acórdão com a unicidade do

entendimento ou decisão do Pleno do STF, mesmo que não unânime444; (ii) no

tocante ao Superior Tribunal de Justiça, os critérios seriam fundamentalmente os

mesmos, com a diferença que a jurisprudência dominante não se formaria no Pleno

do STJ, e sim por meio de decisões da Corte Especial, uma vez que o órgão

máximo desse tribunal exerce função meramente administrativa; e (iii) no que diz

respeito aos tribunais locais, esses deveriam adotar “outros critérios já que há mais

dificuldade em se verificar qual é a jurisprudência dominante em razão do maior

número de órgãos competentes para o julgamento de cada matéria” 445.

442

ROCHA, José de Moura. A importância da súmula... ob. cit., p. 93. 443

SATO, Priscila Kei. Jurisprudência (pre)dominante. In: ARRUDA ALVIM, Eduardo Pellegrini; NERY

JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei. 9.756/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2000, p. 569. 444

SATO, Priscila Kei. Jurisprudência (pre)dominante... ob. cit., p. 579. 445

SATO, Priscila Kei. Jurisprudência (pre)dominante... ob. cit., p. 583.

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Em seguida, Luiz Rodrigues Wambier446, entendendo insuficiente os

parâmetros trazidos por Priscila Kei Sato, acrescenta mais dois: tempo e espaço.

Partindo do pressuposto constitucional que ao Superior Tribunal de Justiça compete

dizer qual seja o direito federal a ser aplicado, assim se expressa o autor:

Em que pese o brilho da autora, a coragem de ter abordado tema tão delicado e a excepcional contribuição trazida para o debate a respeito do tema, parecem-nos insuficientes os parâmetros por ela traçados para delinear o conceito de “jurisprudência dominante”. Imaginamos que melhor seria para a sociedade (para as partes, portanto) que esse conceito fosse determinado no tempo e no espaço, tendo como referencial, no caso do direito federal, apenas e exclusivamente o Superior Tribunal de Justiça. Não é de competência dos Tribunais estaduais, do Tribunal distrital ou dos Tribunais Regionais Federais definir, pela reiteração de seus julgamentos, o entendimento do direito federal. Assim, não pode o relator de determinada matéria, no Tribunal de Justiça de qualquer dos Estados (ou do Distrito Federal ou ainda dos TRF’s), decidir monocraticamente (desnaturando, por assim dizer, a função colegiada dos Tribunais) e “dizer” o direito federal aplicável à

espécie447

.

Em seguida, ainda na linha de um plano numérico para resolver a questão, o

citado processualista propõe que

... o entendimento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da interpretação do direito federal, poderia considerar-se dominante se houvesse a reiteração de decisões majoritárias daquela Corte, no mesmo sentido, na proporção de 70% por 30%, durante o período de cinco anos (ou três anos, ou dois anos, por

exemplo, contados retroativamente) 448

.

À evidência, as duas propostas muito se aproximam, notadamente na

intenção de transmitir um entendimento pragmático. De plano, verifica-se no dia a

dia forense que, não raro, algumas teses que predominam durantes anos acabam

em determinado instante sendo postas de lado em favor de outras, mais modernas e

condizentes com os anseios sociais. A propósito do tema, Jordão Violin traz um

exemplo interessante sobre uma situação concreta. Lembra o autor que tal foi a

446 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência dominante.

Revista dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 100, ano 25, out./dez., 2000, p. 85. 447

WAMBIER, Luiz Rodrigues. Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência dominante... ob. cit., p. 83.

448 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência dominante... ob.

cit., p. 85.

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guinada interpretativa do Supremo Tribunal Federal quanto à eficácia do Mandado

de Injunção:

Após quase vinte anos sustentando que não compete ao Judiciário regular a situação jurídica do impetrante, em 2007 a Suprema Corte reviu sua posição, para avocar-se o poder-dever de formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o

ordenamento jurídico449

.

De fato, nesse caso, como, aliás, em vários outros semelhantes de mudança

de corrente jurisprudencial, é possível ter-se um número (ou um percentual) elevado

de decisões judiciais que não correspondem mais ao entendimento da Corte de

Justiça onde ocorreu a mudança de paradigma. Essa situação paradoxal acabaria

no final, por exigir intervenção do legislador para resolver a equação numérica

oferecida por esses doutrinadores.

Não tem sentido algum devolver ao legislador a tarefa que ele próprio

resolveu fosse realizada pelos aplicadores do direito, quando colocou no texto de lei

um conceito propositadamente vago. Ou seja, não parece razoável remeter de volta

ao legislador a função – que ele não se animou a realizar – de definir as quantidades

numéricas e os percentuais para o propósito de enquadrar o conceito “dominante”.

Porque é isso que acabaria acontecendo se deixássemos a tarefa para cada

membro do tribunal quando exercesse a relatoria no processo. Sim, já que é bem

possível que, em alguns tribunais, o percentual apropriado para designar a

jurisprudência dominante ficasse estabelecido por volta dos 70%, enquanto em

outros poderia ser de 80%, ou até mesmo 90%. Isto é, ao que tudo indica, no final

das contas, o mais aconselhável era mesmo que o legislador se debruçasse sobre o

tema a fim de equacionar tais parâmetros. Fosse para ficar assim, não teria sentido

ter esse mesmo legislador atribuído conceito vago para o aplicador do direito

enfrentar o tema.

Tomando como parâmetro o status que a súmula tem em nosso ordenamento

jurídico, Sérgio Cruz Arenhart elabora uma definição engenhosa, como se a

449

VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator: o artigo 557 do CPC e o reconhecimento

dos precedentes pelo direito brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). A força dos precedentes. Salvador: Editora JusPodivm, 2010, p. 202.

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jurisprudência dominante fosse uma espécie de resíduo de um infrutífero incidente

de uniformização de jurisprudência. De fato, para o referido autor, não sendo

possível no incidente de uniformização atingir-se o número de votos necessários

para se produzir um enunciado (maioria absoluta), isto é, ficando a votação do

incidente de uniformização estacionada na maioria simples, já que não poderíamos

estar diante de uma súmula, estaríamos frente a uma jurisprudência dominante.

Dominante, assim, para Arenhart, seria o entendimento jurisprudencial dos tribunais

que, em um incidente de uniformização, se posicionasse em um degrau abaixo

daquele que alcançaria a ordenação sumular450.

Nesse ponto, convém o reparo: o processualista está dizendo que a

jurisprudência dominante é aquela que, levada a ser súmula por meio do incidente

de uniformização, não obteve aprovação como tal. Essa dicção difere da afirmação

feita por alguns doutrinadores de que jurisprudência dominante é aquela que já

poderia estar sumulada451. Para Arenhart, jurisprudência dominante é aquela que

não pôde ser transformada em enunciado de súmula, não aquela que está na

iminência de sê-la.

Contudo, parece inadequado restringir o conceito de jurisprudência dominante

ao resultado de um incidente processual. A restrição é muito intensa quando

sabemos que, na prática, muitas divergências jurisprudenciais não chegam sequer a

ser alvo do incidente de uniformização. Nem por isso há como verificar na

divergência a jurisprudência dominante. É que, no mais das vezes, a própria

jurisprudência dominante vai se solidificando de forma tão rápida, que já nem se

afigura mais salutar levar a cabo o procedimento de uniformização, que não oferta

em sua estrutura procedimental a necessária agilidade que se espera de um instituto

processual de vital importância para o nosso ordenamento jurídico.

Seja como for, o certo é que o incidente de uniformização de jurisprudência —

lamentavelmente subutilizado, em face de não ter angariado da comunidade jurídica

o prestígio de que era merecedor452

—, é inadequado para o propósito de vincular a

definição de jurisprudência dominante.

450

ARENHART, Sérgio Cruz. A nova postura do relator no julgamento dos recursos. Revista de Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, nº 103, jul./set., 2011, p. 49. 451

SATO, Priscila Kei. Jurisprudência (pre)dominante... ob. cit., p. 582. 452

PARENTE, Eduardo Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit., p. 67.

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Com critérios bem menos objetivos, surgem, pela ordem, as propostas de

Fabiano Carvalho, Hermes Zaneti Júnior e Jordão Violin.

O primeiro, após reconhecer, como Priscila Kei Sato, que o termo dominante

não é termo jurídico453, parte de uma proposta de exclusão de conceitos para chegar

finalmente ao entendimento de jurisprudência dominante.

Com efeito, por meio de um processo de exclusão, Fabiano Carvalho assinala

que jurisprudência dominante não se confunde com jurisprudência majoritária nem

com jurisprudência pacífica. Dominante não equivale à expressão majoritária porque

aqui o sentido é relativo à maioria (50%+1). Ora, assevera o referido autor: “não

basta haver um maior número de julgados ou simples superioridade numérica de

acórdãos... para representar jurisprudência dominante” 454. De fato, a entender que

jurisprudência dominante equivale à jurisprudência majoritária restaria aceitar a tese

inicialmente proposta por Priscila Kei Sato. Por último, o autor rechaça a noção de

que jurisprudência dominante equivale à jurisprudência pacífica. Afinal, pacífico

significa o que é tranquilo, inabalável, indiscutível, ou o que não sofre oposição, e a

lei não exige que o entendimento jurisprudencial seja pacífico para que o julgamento

unipessoal seja realizado pelo relator, com base em jurisprudência dominante455.

Diante disso, Fabiano Carvalho parte na defesa da ideia de que o termo

dominante apresenta significado relacionado à “autoridade” e a “poder”, de sorte que

o termo designa aquela jurisprudência que exerce “influência ou domínio sobre

outras decisões” 456. Ou seja, jurisprudência dominante é a que, no tribunal, se

apresente de forma incontestável 457.

Mas não é só. O processualista, ao término de sua exposição, aponta duas

características, a seu ver, complementares, mas igualmente importantes para a

definição de jurisprudência dominante: que ela seja reiterada, isto é, que haja

repetidos pronunciamentos, “cujos resultados deverão ser no mesmo sentido, por

meio de largas séries de decisões conformes sobre o mesmo assunto jurídico” 458 e

453 CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 127. 454

CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 130. 455

CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 131. 456 CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 127. 457

CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 130. 458

CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 132.

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que, “embora a norma não faça referência à atualidade” 459, é importante que essa

qualidade se manifeste presente na jurisprudência.

Hermes Zaneti Júnior sustenta que a jurisprudência dominante “tem de ser

vista pelo que ela não é, ou seja, definida por exclusão” 460. A certeza do que é

jurisprudência dominante é resultado, por conseguinte, de um processo mental de

aferição do que não se enquadra no conceito de jurisprudência dominante. Nesse

sentido, para o autor, não haverá jurisprudência dominante quando461: (i) a

jurisprudência for formada por um único órgão deliberativo; (ii) havendo divergências

entre os órgãos competentes do tribunal para apreciar a mesma matéria; e (iii) a

jurisprudência mal determinada pela ausência de coerência e identificação interna

entre os precedentes462.

Na mesma linha desses dois últimos autores, o processualista Jordão Violin

contesta as teses objetivas acima expostas, porque entende que, no final, todas

propõem algo que não deve prevalecer na conceituação de jurisprudência

dominante: a limitação. O autor assinala que as dificuldades de limitação são

naturais quando se está diante de uma cláusula aberta. E expõe:

Embora as mencionadas propostas consigam delinear o conceito de jurisprudência dominante, elas são excepcionáveis (defeasible, no

termo consagrado por Hart). Eventualmente, haverá situações em que as propostas não dão conta de explicar a realidade – e essa barreira talvez seja intransponível463.

Desse modo, Violin — aproximando-se sobremaneira da proposição de

Hermes Zaneti Jr. —, propõe que se parta para uma definição de jurisprudência

dominante pela negativa, preservando-se a textura aberta da cláusula imposta pelo

459

CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 132. 460

ZANETI JR. , Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 260.

461 ZANETI JR. , Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil

brasileiro... ob. cit., p. 260. 462

O autor adverte ainda que: “para que seja possível a formação de entendimentos dominantes (ou

pacíficos), a questão deve estar clara e bem acessível em diversos precedentes. Portanto, deve existir uma preocupação dos julgadores em utilizar os mesmos precedentes nos julgamentos análogos, reforçando sua coerência interna. A prática corriqueira de buscar um precedente a esmo para facilitar o julgamento presta enorme desserviço a essa coerência”. ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro... ob. cit., p. 260.

463 VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 204.

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legislador: jurisprudência dominante é aquela que não vacila464. Daí que, para Violin,

“determinado entendimento configurará jurisprudência dominante na medida em que

suas razões sejam acatadas em casos idênticos” 465.

Essas duas últimas teses, além de optarem por dar importância a ratio

decidendi exposta nas decisões paradigmáticas, não importunam a textura aberta

do termo dominante. As divergências nas razões de decidir causam impacto direto

na análise do que se pode entender como jurisprudência dominante.

Para Violin, ainda em relação à importância da ratio decidendi, as

divergências nas razões de decidir, existentes nas jurisprudências contrárias, caso

não sejam bem fundamentadas, “não têm força declaratória suficiente para

enfraquecer entendimento anterior” 466. Logo, esse autor cuida ser necessário que o

relator faça o devido cotejo das razões que fundamentaram as decisões divergentes,

de maneira que, por meio desse procedimento, obtenha um precedente que já tenha

afastado todos os argumentos apresentados pela parte recorrente467. Destarte, por

essa via de raciocínio, o relator somente estaria obrigado a levar ao colegiado

aqueles argumentos que, apresentados pelo recorrente, fossem ainda novidade

perante o colegiado.

Portanto – na síntese do Violin,

o número de julgados apto a formar jurisprudência dominante será a quantidade necessária para que todos os argumentos levantados pelo recorrente tenham sido adequadamente analisados pelo tribunal em recursos anteriores. Apenas argumentos novos, ainda não apreciados pelo tribunal ou por Corte Superior, ensejarão a análise

pelo colegiado468

.

Na verdade, a expressão “dominante” foi carregada, pelo legislador,

intencionalmente de vaguidade. Em casos assim, é aceitável o entendimento de

Violin no sentido de que nem sempre haverá necessidade do aplicador do direito

transformar o que é vago em algo concreto, objetivo, numericamente verificável,

melhor sendo trabalhar com a textura aberta do termo, aplicando-se, quando

464

VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 204. 465

VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 204. 466

VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 204. 467

VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 205. 468

VIOLIN, Jordão. O julgamento monocrático pelo relator... ob. cit., p. 205.

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necessário, critérios axiologicamente excludentes como forma de resolver melhor a

polêmica em relação ao significado do termo dominante. A propósito desse juízo,

verifique-se a lição de Arruda Alvim:

Há “idéias” que, em si mesmas, dificilmente, comportam uma definição. Mais, ainda, se definidas forem, seguramente – agora no campo da operatividade do direito – passam a deixar de ensejar, só por isso, o rendimento esperado de um determinado instituto jurídico que tenha sido traduzido por meio de conceito vago. Com os valores, que são idéias indefiníveis (aporias e, portanto, inverbalizáveis), o que ocorre é que devem ser indicados por conceitos vagos; não são nem devem ser propriamente conceituados, mas devem ser apenas referidos, pois é intensa a interação entre eles e a realidade paralela, a que se reportam. Não há como fazer que fiquem adequadamente cristalizados num texto de lei, ou que sejam verbalizados de forma plena na lei posta. Isto sempre ocorreu. Pra perceber a dificuldade (senão impossibilidade), conducente a resultado fatalmente frustrador, em definir, tanto bastará recordar que, nos Estados Unidos, até hoje, não se definiu – e deliberadamente não se pretende definir –, exaurientemente, o que seja, e, muito menos, qual o efetivo alcance que tenha a expressão due process of law, conforme informa

a literatura, em mais de uma oportunidade469

.

Interessante, por outro lado, é a polêmica do relator poder decidir

monocraticamente quando a jurisprudência, que pretende revelar em decisão

monocrática, além de inferior numericamente, apresenta notadamente uma

indiscutível valoração de suas razões e fundamentos, demonstrando ser a melhor

opção a ser seguida. Ou melhor, até que ponto tem o relator que aguardar que uma

jurisprudência – que dia a dia toma vulto em importância pela força de seus

argumentos – ganhe no conjunto numérico de outras correntes doutrinárias que

trafegam pelo tribunal, para poder proferir uma decisão monocrática? Dito de outra

forma: poderá o relator decidir monocraticamente fazendo um prognóstico de que a

nova tendência jurisprudencial é que será seguida, abandonando-se as demais

teses, mesmo que as primeiras detenham maioria numérica?

Verifique-se que a questão pode ser respondida pela última teoria excludente.

Eis uma hipótese.

469

ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda

Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JR., Luiz Manoel, FISCHER, Octavio Campos; FERREIRA, Wiliam Santos. Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a emenda constitucional n. 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 74.

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Nos casos que envolvem cobranças indevidas de reajuste de planos de saúde

de idosos, a jurisprudência dos tribunais do país tem variado em relação ao prazo

prescricional do pedido de repetição do indébito, quando a empresa contratada é

companhia de seguro. De início, duas correntes jurisprudenciais se formaram: (i) a

mais favorável aos idosos, foi no sentido de que a prescrição seria regida pelo

disposto no CDC (“art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos

danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste

Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de

sua autoria); e (ii) a favorável às companhias de seguro, defendendo que a

prescrição é ânua, em decorrência ao disposto no art. 206, § 1º, inciso II, do

CC/2002470.

O argumento de que o art. 27 do CDC é aplicável ao caso não convence

(embora numericamente sejam em grande número as decisões nesse sentido), tanto

que há decisão do Superior Tribunal de Justiça afastando essa feição

argumentativa471. Isso porque decerto que a prescrição de que trata o art. 27 do

CDC está relacionada a defeito do produto ou prestação de serviços, onde não se

pode enquadrar a questão da repetição do indébito, já que a prestação de serviços

470

CC/2002: Art. 206. Prescreve: ... §1º. Em um ano:...II- a pretensão do segurado contra o

segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo:... 471

Nesse sentido, a jurisprudência do STJ: “Consumidor e Processual. Ação de repetição de indébito. Cobrança indevida de valores. Inaplicabilidade do prazo prescricional do art. 27 do CDC. Incidência das normas relativas à prescrição insculpidas no Código Civil. Repetição em dobro. Impossibilidade. Não configuração de má-fé. - A incidência da regra de prescrição prevista no art. 27 do CDC tem como requisito essencial a formulação de pedido de reparação de danos causados por fato do produto ou do serviço, o que não ocorreu na espécie.- Ante à ausência de disposições no CDC acerca do prazo prescricional aplicável à prática comercial indevida de cobrança excessiva, é de rigor a aplicação das normas relativas a prescrição insculpidas no Código Civil.- O pedido de repetição de cobrança excessiva que teve início ainda sob a égide do CC/16 exige um exame de direito intertemporal, a fim de aferir a incidência ou não da regra de transição prevista no art. 2.028 do CC/02. - De acordo com este dispositivo, dois requisitos cumulativos devem estar presentes para viabilizar a incidência do prazo prescricional do CC/16: i) o prazo da lei anterior deve ter sido reduzido pelo CC/02; e ii) mais da metade do prazo estabelecido na lei revogada já deveria ter transcorrido no momento em que o CC/02 entrou em vigor, em 11 de janeiro de 2003. - Na presente hipótese, quando o CC/02 entrou em vigor já havia transcorrido mais da metade do prazo prescricional previsto na lei antiga, motivo pelo qual incide o prazo prescricional vintenário do CC/16. - A jurisprudência das Turmas que compõem a Segunda Seção do STJ é firme no sentido de que a repetição em dobro do indébito, sanção prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC, pressupõe tanto a existência de pagamento indevido quanto a má-fé do credor. - Não reconhecida a má-fé da recorrida pelo Tribunal de origem, impõe-se que seja mantido o afastamento da referida sanção, sendo certo, ademais, que uma nova perquirição a respeito da existência ou não de má-fé da recorrida exigiria o reexame fático-probatório, inviável em recurso especial, nos termos da Súmula 07/STJ. Recurso especial parcialmente provido apenas para, afastando a incidência do prazo prescricional do art. 27 do CDC, determinar que a prescrição somente alcance a pretensão de repetição das parcelas pagas antes de 20 de abril de 1985 (REsp 1032952/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2009, DJe 26/03/2009).

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dos planos de saúde não está direta nem indiretamente relacionada com as quantias

pagas, mas com a atividade objeto do contrato de prestação de serviços que é

proporcionar assistência médica na conformidade dos termos do contrato

ajustado472.

A outra corrente, que também predomina numericamente nos tribunais de

todo país, também é pouco convincente. Defender-se a tese que as seguradoras,

que trabalham com planos de saúde, devam seguir, na questão da prescrição, com

o privilégio da prescrição ânua, em face do disposto no CC/2002, art. 206, §1º, inciso

II, fere às escâncaras o princípio da isonomia, perdendo, por conseguinte, respaldo

argumentativo. Na verdade, a partir do instante em que as empresas seguradoras

enveredam pela atividade de prestação de serviços no âmbito da saúde

complementar, submetem-se à regência e à fiscalização da ANS da mesma forma

que as cooperativas de serviços médicos ou empresas de medicina de grupo. Ou

seja, diante do consumidor não há que se fazer qualquer distinção, em se tratando

de tais prestações de serviços, por meio de plano de saúde: qualquer empresa que

se proponha a ofertar no mercado de serviços de saúde complementar estará

inexoravelmente subordinada aos ditames da Lei 9.656, de 04 de junho de 1998, e,

portanto, sujeita a obedecer às regras e às fiscalizações impostas pela ANS.

Dessa forma, não se afigura razoável a proposta que pretende fazer distinção

em termos de incidência de norma legal, como a da prescrição. Ou melhor, quando

a empresa seguradora se propõe a oferecer no mercado de serviços regulados por

lei exclusiva e fiscalizada por autarquia especial, perde força qualquer argumento

tendente a manter enquadramento em norma relacionada com a natureza mercantil

da empresa prestadora de serviços (como a do art. 206, § 1º, inciso II, do CC/2002).

É dizer, a hipótese de prescrição deverá ser única para todas as empresas que

prestam serviços de assistência médica, não podendo as companhias que são

seguradoras, somente por terem essa natureza empresarial, gozarem a favor de

prazo prescricional bem inferior às outras empresas que também atuam no referido

mercado. Para a solução do caso, o CC/2002 apresenta dispositivo que em tudo se

472 “Na realidade, a referida Seção II regula toda espécie de defeito que ocorre pelo fato do produto ou

do serviço, de maneira que, sempre que o consumidor sofrer dano por defeito quer diretamente, como lá está expressamente tratado, quer indiretamente, como consequência do não-cumprimento do § 1º do art. 18, no inciso III do art. 19 e no inciso II do art. 20, aplica-se o período prescritivo fixado no artigo em comento”. NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 283.

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ajusta à moldura fático-jurídica (art. 206, § 3º, inciso IV)473. Essa, portanto, é a linha

de raciocínio que vem tímida e gradativamente prevalecendo na jurisprudência dos

principais tribunais de justiça do país474, mas por serem as outras tênues nos

argumentos, é a que apresenta a ratio decidendi de maior vigor.

Mas retornando à questão: numa situação como essas, onde a melhor

resposta à polêmica somente surge após debate entre duas outras correntes

majoritárias, em que instante pode o relator decidir monocraticamente com base em

uma terceira via jurisprudencial que começa a ganhar estatura no seu tribunal?

Pelas teorias objetivas, somente quando essa última corrente houver de se

aproximar numericamente na proporção das duas primeiras correntes

majoritariamente aceitas pelos tribunais. Já seguindo o passo de uma teoria

excludente, não. Após um segundo julgamento, quando um anterior já houver

rechaçado os argumentos contrários à nova tese que se avizinha vigorosa, já é

possível para o relator decidir monocraticamente. É necessário apenas que o relator

esteja ciente da oscilação da jurisprudência – para não cometer equívocos em seu

julgamento monocrático – e demonstre fundamentadamente estar convencido da

direção que a nova disposição jurisprudencial está apontando, por força da ratio

decidendi, melhor exposta no último precedente, para que já possa decidir

monocraticamente.

O relator, portanto, não tem motivo para aguardar indícios numericamente

relevantes para prestar a jurisdição unipessoal. Basta que tenha a consciência da

força dos argumentos utilizados nos poucos precedentes anteriores.

473

CC/2002: “Art. 206. Prescreve:...§ 3º. Em três anos:...IV- a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa”. 472 Nesse sentido é a posição atual do TJRS: “Ementa: Apelação cível. Seguros. Plano de saúde. Reajuste da contraprestação em decorrência de alteração da faixa etária. Disposição contratual em desacordo com as disposições do Código do Consumidor, Estatuto do Idoso e Resolução Normativa da ANS. Cláusulas que colocam o consumidor em desvantagem exagerada. Os reajustes de preços praticados devem ficar limitados aos aumentos anuais autorizados pela ANS. Prescrição. Prazo de três anos. Quanto ao prazo prescricional no pedido de restituição dos valores pagos maior tendo em vista o reajuste de mensalidade do plano de saúde em razão da alteração de faixa etária o prazo é trienal. Pretensão de ressarcimento. Inteligência do art. 206, §3º, inc. IV do CC/2002. Posição do 3º. Grupo Cível expressa no julgamento dos EI n. 70037449105. Apelo da parte autora em parte provido e apelo da ré desprovido”. (Apelação Cível Nº 70037895869, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ney Wiedemann Neto, Julgado em 09/12/2010) (os negritos não constam no texto original).

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Em vista disso, é imperioso então que o relator demonstre, através de sólidos

argumentos, que aquela tendência jurisprudencial, que se confina no tribunal com

força persuasiva e característica dominadora, não permitirá mais avanço das

demais475. Nesse ponto, o termo “incontestável”, cunhado por Fabiano Carvalho,

para a definição de jurisprudência dominante, revela-se sobremaneira apropriado,

principalmente se tomado em relação à força ou autoridade da ratio decidendi

presente no primeiro precedente.

Seria atitude contrária ao princípio da celeridade, o relator ter que levar

sucessivas vezes, para o colegiado, questão judicial até obter um número “x” de

julgados suficientes para, objetivamente, poder se fazer equiparação com outras

correntes jurisprudenciais, para, só então, a partir de uma condição plenamente

verificável no plano aritmético, poder decidir monocraticamente476.

A questão que importa agora discutir é se a reiteração de decisões – aspecto

notadamente que se aproxima do palpável – será sempre a pedra-de-toque para a

segura verificação do conceito de jurisprudência dominante, ou haverá possibilidade,

dentro de uma abordagem nada objetiva, de que uma única decisão de Tribunal se

apresente como jurisprudência dominante. Tal poderá ocorrer, por exemplo, em

relação ao Supremo Tribunal Federal, quando a decisão única for originária do

Pleno? Nesse particular, há posicionamento recente de Luiz Guilherme Marinoni no

475

Evidentemente será ônus da parte provar no seu recurso dirigido ao colegiado que não existe a tal

tendência jurisprudencial para servir de fundamento a uma decisão monocrática. Entendendo que, nada obstante o art. 557 do CPC ser omisso em relação a quem deve recair essa obrigação, Fabiano Carvalho expõe o seguinte: “Nessa ordem de idéias, não há qualquer dificuldade em afirmar que a decisão singular do relator deverá ser fundamentada. No caso específico, não se objete que o relator deve indicar a jurisprudência que entende dominante para julgar unipessoalmente o recurso. Mas a mera indicação de modo algum satisfaz. É preciso que o relator aponha em sua decisão os motivos pelos quais a tese aventada no recurso contraria a jurisprudência dominante do tribunal ou dos tribunais superiores, e que por essa razão é aplicável o art. 557, caput, do CPC. O mesmo argumento vale para o recurso que impugna decisão que diverge do STJ ou do STF (art. 557, § 1º-A, do CPC). Nesses casos, ao decidir individualmente o recurso, compete ao relator fazer a demonstração positiva, isto é, evidenciar a jurisprudência dominante”. CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 139-141. 476 É bom esclarecer, não há semelhança nessa postura avançada do relator com o anticipatory

overruling. É que, nesse caso, diferentemente da situação estudada, não se aplica um precedente porque o mesmo está em vias de revogação. Há, no anticipatory overruling, uma espécie de prognóstico de revogação de precedente feito pelos tribunais em relação a um precedente, cujos fundamentos de decidir são incompatíveis com os novos fundamentos de decidir das Cortes Superiores. No anticipatory overruling, o relator está obrigado a levar questão ao colegiado. Ou seja, o anticipatory overruling é uma situação de quebra de paradigma que ocorre em um primeiro julgamento e que poderá servir, posteriormente, de precedente formador da jurisprudência dominante a ser utilizada pelo relator na sua decisão monocrática.

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sentido de que um único precedente pode ser considerado jurisprudência

dominante:

Perceba-se que o precedente respeitante a caso isolado se insere no conceito de jurisprudência dominante pela simples razão de que um precedente, relativo a um único caso, não pode ser outra coisa que não a “jurisprudência dominante”, e não teria sentido descartar a autoridade da ratio decidendi fixada por tribunal superior apenas porque a questão de direito não foi repetida. Não apenas as súmulas e a jurisprudência dominante, mas qualquer precedente, respeitante ou não a causas repetitivas – do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal abre oportunidade ao julgamento monocrático pelo relator. Nesta dimensão, o julgamento monocrático, antes de objetivar a mera abreviação do julgamento dos recursos,

presta-se a tutelar a coerência do direito e a segurança jurídica477

.

Já para boa parte da doutrina, como visto, um único julgado, sem remissão a

outros, por mais expressivo ou persuasivo que possa ser, não deve servir de

fundamento para decisão monocrática, pois esse proceder negaria o próprio

conceito de jurisprudência 478.

Nota-se, claramente, que a noção que Marinoni tem sobre jurisprudência

dominante é bem mais abrangente do que as propostas pelo restante da doutrina,

que opta, em sua maioria, por critérios nitidamente objetivos (numéricos) de

afirmação do sentido de jurisprudência dominante.

Ora, é evidente que a noção de jurisprudência dominante está umbilicalmente

atrelada aos casos repetitivos. Trata-se de técnica processual que busca, por meio

dos precedentes, fornecer aos tribunais instrumentos eficazes de combate aos

recursos que se repetem quase que indefinidamente sobre determinados temas.

Todavia, por exemplo, nem sempre a aplicação do art. 557 do CPC pelo relator terá

que aguardar a repetição de casos para aplicação do referido dispositivo. Deveras, o

477

MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 510. 478

Fabiano Carvalho, em conclusão de seu posicionamento sobre o tema, completa assim seu

raciocínio: “De fato, as decisões do Plenário (STF), da Corte Especial (STJ) e das Câmaras ou Turmas Reunidas (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais) poderão ser adotadas como critério para jurisprudência dominante, com a ressalva de que essas decisões sejam proferidas para dirimir a divergência desabrochada nos órgãos fracionários. Decisão única ditada pelos órgãos por mais eloqüente e incisiva que seja, não pode ser considerada jurisprudência dominante. Uma só decisão revela-se decisão excepcional, cujo assunto a decidir é incomum, e, portanto, incapaz de constituir jurisprudência a fim de caracterizar o entendimento do tribunal”. CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos... ob. cit., p. 134.

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Superior Tribunal de Justiça tem dado sinais de se encaminhar para a maneira de

pensar de Marinoni.

Em decisão relativamente recente, o então Ministro do Superior Tribunal de

Justiça, Luiz Fux, afirmou ser possível a jurisprudência dominante daquele Tribunal

ser superada por precedente do Plenário do Supremo Tribunal Federal479. Em outras

palavras, nada obsta que uma única decisão do Plenário do Supremo sirva como

supedâneo para que o relator de tribunal inferior, em caso análogo, decida recurso

monocraticamente com base no art. 557 do CPC, por exemplo. Pensar o contrário,

não deixa de ser uma forma de deslembrar a função paradigmática que o Supremo

Tribunal Federal de há muito passou a ter, até mesmo com o resultado da

objetivação do recurso extraordinário; e mais: é deixar em segundo plano o princípio

da celeridade que é, sem dúvida, princípio motriz de parte esmagadora das reformas

processuais levadas a cabo nos últimos anos pelo legislador.

Com efeito, não se pode negar a tendência crescente em nosso sistema

jurídico de reconhecer a força dos precedentes judiciais, especialmente quando

esses são formatados nas figuras da jurisprudência dominante e das súmulas.

Contudo, a força dos precedentes sobrepõe-se às molduras da jurisprudência

dominante e da súmula, pois não tem sentido, por exemplo, uma decisão única do

Pleno da Suprema Corte não ter força vinculatória, mormente quando a análise

recursal se restringe especificamente a aspecto jurídico, somente porque não há

reiteração na sequência de casos julgados na mesma linha de raciocínio.

Observe-se que o próprio Supremo Tribunal Federal, quando aos poucos vai

dando nova roupagem a sua função de guardião da Constituição, revela essa

vocação de dar ao seu precedente uma força vinculatória. Na concepção anterior,

tradicional, as decisões do Supremo Tribunal Federal, quando proferidas em recurso

de natureza excepcional (extraordinário), somente se projetavam com eficácia inter

partes. Nos dias atuais, uma nova função paradigmática vem ganhando espaço na

Suprema Corte. Um grande passo foi dado com a objetivação dos recursos

extraordinários.

479

“Desta sorte, o acórdão rescindendo fundou-se em jurisprudência predominante do STJ, superada

em virtude da ulterior declaração direta de constitucionalidade da norma complementar cuja alegação de ofensa literal embasa o pleito rescindens”. (AR 3.032/PB, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/10/2007, DJ 10/12/2007, p. 274).

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Realmente, não havia sentido em se preservar uma situação corriqueira em

que um texto constitucional – muito embora, como qualquer texto, passível de

comportar mais de uma acepção, mormente nas diversas instâncias judiciárias – não

tivesse interpretação uniforme para todos, nas soluções ofertadas pelo Supremo

Tribunal Federal, como guardião máximo da Constituição. Vale dizer, é inconcebível

promover a perpetuação de uma situação em que uma norma ou ato normativo

fosse declarado inconstitucional apenas em face de determinadas partes litigantes.

Era, por exemplo, o que acontecia quando um conflito intersubjetivo

possibilitava que uma empresa ficasse isenta de determinado tributo, em uma

discussão que chegasse ao Supremo Tribunal Federal, por meio de recurso

extraordinário. Isentada a empresa litigante do recolhimento tributário, estariam as

outras empresas, à míngua de efeitos extensivos além-autos, sujeitas ao pagamento

do mesmo tributo, se não propusessem ação idêntica. Era açoitar-se o princípio

constitucional da isonomia, garantidor do direito de todos serem tratados da mesma

forma perante a lei480.

Atualmente, com a quase inexistente diferença de tratamento que o Supremo

Tribunal Federal dá aos efeitos das decisões proferidas em controle difuso e

concentrado, é possível que uma decisão proferida pelo Plenário do Supremo

Tribunal Federal tenha força vinculatória tanto quanto a jurisprudência dominante da

própria Corte481.

Mas não foi só o vitorioso entendimento da objetivação do recurso

extraordinário que deu ao precedente o prestígio que ele angariou no nosso

ordenamento jurídico, outras transformações especialmente encarrilhadas pelo

legislador também serviram para o fortalecimento do precedente.

Uma delas é a disposição encontrada no § 3º do art. 475 do CPC. Segundo o

referido dispositivo, dispensa-se o reexame necessário, quando a sentença basear-

480

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 590. 481

Nesse sentido é o escólio de Mancuso: “A potencialização da eficácia das decisões de mérito do

STF, mesmo nos conflitos intersubjetivos, vem ao encontro do desejável tratamento isonômico aos jurisdicionados, pela curial razão de que, sendo ele o guarda da Constituição, e sendo esta o parâmetro maior da ordem normativa no país, justifica-se que a exegese acerca dos dispositivos constitucionais não se restrinja apenas às partes de cada processo singularmente considerado, mas possa estender-se aos demais onde se debata igual thema decidendum (se A é, então B, tendo a mesma natureza, também deve ser)”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo estado de direito... ob. cit., p. 592.

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se em posicionamento tomado pelo Pleno do Supremo. Ora, se como já visto, a

tendência do Supremo Tribunal Federal é conferir maior efetividade às suas

decisões, com especial projeção extra-autos, não há sentido aguardar que outros

precedentes de seu Plenário sejam proferidos para aplicação do disposto no § 3º do

art. 475 do CPC. É dizer, se uma decisão proferida pelo Plenário do Supremo, em

sede de recurso extraordinário, pode ter eficácia além das partes litigantes, não

parece razoável que o relator monocraticamente não possa decidir recurso ao

depois, com base no art. 557 do CPC, porque está à espera de outros julgados de

índole semelhante do Plenário do Supremo, quando a própria Corte Constitucional já

sinaliza para uma postura de respeito ao próprio precedente.

É certo que algumas decisões do Pleno do Supremo Tribunal Federal são

revistas — e isso tem acontecido482. Mas isso não significa ter que desdizer o que foi

dito acima: precedente oriundo do Pleno da Suprema Corte, em controle difuso ou

concentrado, possui caráter vinculativo de forma a propiciar julgamentos

monocráticos com base, por exemplo, no art. 557 do CPC, ou sob efeito da

objetivação do recurso extraordinário.

2.3.2 Súmula vinculante

O instituto da súmula vinculante continua gerando inúmeros debates na

doutrina. Não é de se estranhar tal fato, porém. Mesmo antes da Emenda

Constitucional de nº 45/2004, a súmula vinculante já vinha ocasionando pontuais

polêmicas entre os mais renomados juristas, havendo logo, no início, uma clara

divisão dos que eram a favor da inovação e dos que eram (e ainda continuam)

contra. Tanto foram os que se debruçaram sobre a súmula que parece dela não ter

havido nada que não tenha sido alvo de análise crítica. A prova talvez esteja no fato

482 Segundo Didier e Cunha: “É o que aconteceu com a discussão sobre a competência da Justiça do

Trabalho para processar e julgar causas envolvendo danos morais decorrentes da relação de trabalho, após a EC/45, em que o Pleno do STF, em um período de quatro meses, adotou posicionamentos antagônicos, prevalecendo a orientação pela competência da Justiça do Trabalho.” DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 7. ed., vol. 3. Salvador: Editora JusPodivm, 2009, p. 349-350.

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que, da doutrina, não escapou sequer a avaliação sobre a opção do termo que o

legislador fez para adjetivar o substantivo súmula483.

Deveras, antes da chegada da súmula vinculante em nosso ordenamento,

não se encontrava o adjetivo vinculante em nossos dicionários. Atualmente, porém,

embora ainda difícil, é possível encontrar, em um ou outro dicionário (por exemplo,

no dicionário eletrônico português Priberam), o vocábulo vinculante como sinônimo

de vinculativo484. Portanto, mais apropriado seria o termo súmula vir acompanhado

das opções adjetivas vinculatório, vinculativo, ou mesmo vinculador, bem mais

usuais no nosso vernáculo. Nada obstante, como é natural vez por outra ocorrer na

praxe judiciária, determinadas acepções acabam ganhando a preferência geral,

mesmo que não tenham concordância com a semântica.

Nos itens anteriores a esse, restou abordada a impacção da atividade criativa

do magistrado no universo jurídico, quando ele é chamado a resolver questões que

dependam do procedimento de concreção do direito, em face dos conceitos jurídicos

indeterminados e das cláusulas gerais.

De impacto semelhante tem sido a gradual alteração orgânica do Poder

Judiciário, com as mudanças decorrentes, em especial, da EC nº 45/2004, proposta

pelo legislador, com finalidade de apresentar ferramentas processuais em condições

de conformar o nosso ordenamento jurídico às necessidades e anseio da sociedade.

A criação das súmulas no direito brasileiro ocorreu, por emenda no regimento

do Supremo Tribunal Federal, perto do final do ano de 1963, sendo que as primeiras

ementas somente foram publicadas apenas no começo do ano seguinte. A primeira

proposta para que fosse instituída a característica de prevalência das súmulas,

como entendimento dominante dos tribunais, veio no projeto de Constituição do

Instituto dos Advogados Brasileiros, em 1946, e, por sugestão do jurista Haroldo

483

“Dentre essas inovações, interessa-me destacar, em especial, o problema da chamada súmula vinculante. Devo, em primeiro lugar, deixar registrado o fato de que o Reformador da Constituiçãoo não se apercebeu que o termo vinculante não existe na língua portuguesa”. ROSA, André Vicente Pires. Súmula ou jurisprudência vinculatórias? Revista Advocatus Pernambuco. Recife. Publicação da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da OAB/PE, ano 2, n. 3, p. 36-40, out. 2009, p.

36. 484 “Vinculante (vincular + -ante) adj. 2 g. O mesmo que vinculativo”. Dicionário Priberam da Língua

Portuguesa,< http://www.priberam.pt>. Acesso em 23.10.2011. O termo também se encontra presente no Volp-Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, p. 841, da Academia Brasileira de Letras (5ª edição, 2009) e no Dicionário Aurélio, 5ª edição, Editora Positivo, 2009.

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Valadão. A denominação utilizada remetia à prática portuguesa dos “assentos”485.

Contudo essa primeira tentativa não teve resultados satisfatórios, e a proposta

regimental que vingou no Supremo foi elaborada pela Comissão de Jurisprudência

do Tribunal, constituída pelos Ministros Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes Leal

(relator) e Pedro Chaves. Essa proposta pretendia que as súmulas fossem

entendidas como um método de trabalho proporcionando maior estabilidade à

jurisprudência e simplificando o julgamento das questões mais frequentes na Corte

Suprema486.

Mas, adverte Marcelo Alves Dias de Souza, “não foi só em resposta ao

acúmulo de processos ou em busca de uma maior celeridade na prestação

jurisdicional, que se criou a Súmula no Supremo Tribunal Federal”487. Também foram

motivos para a criação da súmula, por exemplo, fornecer ao jurisdicionado: (i) uma

maior certeza do Direito; (ii) uma previsibilidade maior para as decisões da Corte; e

(iii) respeito ao princípio da igualdade488.

Contudo, seja como for, em relação à proposta desta pesquisa, importa

analisar a súmula vinculante no aspecto de sua aplicação pelos magistrados,

enquanto instrumento de apoio à fundamentação da decisão judicial.

Não raro, como observa José Carlos Barbosa Moreira, o que se vem

percebendo nos dias presentes em relação à fundamentação das decisões é que “a

motivação reduz-se à enumeração de precedentes: o tribunal dispensa-se de

analisar as regras legais e princípios jurídicos pertinentes (...) e substitui o seu

próprio raciocínio pela mera vocação de julgados anteriores” 489.

Se essa forma de agir do magistrado pode gerar consequências indesejáveis,

na medida em que ele nem sempre é criterioso no instante de colher as ementas

dos acórdãos nos diversos sites ou repositórios de jurisprudência, citando algumas

decisões que pouco ou quase nada têm a ver com o caso concreto a ser decidido,

imagine-se então situação em que o juiz lança mão de uma súmula para

fundamentar sua sentença, em cuja redação do enunciado acodem termos vagos, e

485

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p.118. 486

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p.118. 487

SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente à sumula vinculante.Curitiba: Juruá, 2008, p.253. 488

SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente à sumula vinculante... ob. cit., p. 254. 489

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual: (nona série). São Paulo: Saraiva,

2007, p. 300.

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não procura expor suficientemente as razões pelas quais aquela súmula deva, na

hipótese, ser aplicada. Essa preocupação não se restringe apenas a José Carlos

Barbosa Moreira. Lenio Luiz Streck adverte: o que os tribunais mais fazem hoje é

julgar “teses” ao invés de julgar causas490. Como raiz do problema, Streck aponta o

fato da nossa cultura jurídica pender para uma postura de não diferenciar texto de

norma:

Sim: venho insistindo há muito tempo que texto e norma não são “colados”, nem cindidos. A questão de direito, que surge do julgamento anterior (ou da cadeia de julgamentos), será sempre uma questão de fato e vice-versa. Por isso – e nisso reside o equívoco de setores da doutrina – é impossível transformar uma súmula em um “texto universalizante”. Insisto: isso seria voltar à filosofia clássica-essencialista. É preciso entender que a “aplicação” de uma súmula não pode ser feita a partir de um procedimento dedutivo. Que as súmulas são textos, não há duvida. Só que “esse texto” não é proposição assertórica. Portanto, não pode ser aplicada de forma irrestrita e por “mera subsunção” ou por “dedução”. No paradigma filosófico em que nos encontramos, é equivocado falar ainda em subsunção, indução ou dedução491.

De acordo com Mancuso, a técnica legislativa dos enunciados das súmulas já

era uma preocupação do Senado no Projeto de Lei nº 13/2006, tanto que as

recomendações eram basicamente as seguintes, em relação à forma da redação

adequada de uma súmula: (i) frases curtas e concisas; (ii) orações na ordem direta,

evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis; e (iii) evitar

sinonímias de caráter estilístico492.

Assim, é pouco mais que um ato despropositado a redação de súmula que,

por equívoco ou não, vem a lume repleta de conceitos vagos, porque – como

observou Lenio Streck, se é certo que as súmulas não passam, na realidade, de

“textos”493 – a sua aplicação pelo magistrado na forma simples de subsunção

490

MAURÍCIO, Ramires. Crítica à aplicação do precedente no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, segunda página do prefácio, escrito por Lenio Streck. 491

STRECK, Lenio Luiz. Entrevista: Direito sumular. In:

<http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=3120>. Acesso em 14.12.2010, p. 1-4. 492

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... ob. cit., 4. ed.

p. 346. 493

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis: necessitamos de uma “teoria para

elaboração dos precedentes”? Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: ano 17, n. 78, p. 284-319, maio/jun., 2009, p. 302.

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somente tende a agravar uma praxe que cada vez é mais rotineira no judiciário

brasileiro.

A observação crítica de Caio Márcio Gutterres Taranto é pertinente quando

assinala que

O Direito brasileiro desenvolve estrutura de linguagem para que os precedentes jurisdicionais sejam aplicados na qualidade de paradigmas por dedução, a partir de uma norma (judicada) abstrata para o caso concreto, de forma análoga a um dispositivo de lei, aptos a assumirem a qualidade de premissa maior494.

Ou seja,

a liguagem em que a maior parte dos precedentes brasileiros é expressa faz com que a norma que deles emana seja aplicada, a priori, por dedução, ao contrário da prática indutiva da common law. Nossos precedentes são predominantemente expressos de forma prescritiva, inclusive pela confecção de verbetes e ementas. Não devemos, contudo, excluir a possibilidade de aplicá-los de forma indutiva. Pelo contrário. A aplicação dos precedentes de forma dedutiva/subsuntiva merece cautela por parte do aplicador e não deve ser utilizada de forma acrítica495.

Tais conselhos e diretrizes redacionais acabam tendo pouca utilidade prática,

sobretudo quando se percebe que há uma espécie de tentação natural do

magistrado brasileiro de, perante o texto de uma súmula, efetuar um raciocínio de

subsunção, eis que o enunciado tem um arrebique de se mostrar liberto daqueles

fatos que lhe deram causa.

Aqui está a razão pela qual não se pode esquecer que o procedimento

adequado para a aplicação dos textos legais em que imperam os conceitos jurídicos

indeterminados e as cláusulas gerais é a concreção. É que uma decisão proferida

por um magistrado, cuja fundamentação se apresenta como mero produto de um

raciocínio subsuntivo, tendo uma súmula — constituída de conceitos abertos —

como premissa maior, no lugar do texto legislado, corre até o risco de ser nula, por

ausência de uma adequada fundamentação.

494

TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial... ob. cit., p. 214. 495

TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial... ob. cit., p. 215.

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Gilmar Mendes assinala que “não raras vezes ter-se-á de recorrer às

referências da súmula para dirimir eventual dúvida sobre o seu exato significado”496.

Melhor dito, nossa doutrina se encaminha para sedimentar essa ideia de que, o

magistrado, ao partir para a utilização de uma súmula como motivação de sua

decisão, deverá fazer o cotejo dos fatos da causa com aqueles dos precedentes que

deram origem ao enunciado. Em sendo iguais, aplica-se a súmula vinculante. Não

sendo, deve proceder ao distinguishing497.

Evidentemente que o padrão normativo do enunciado tem influência na

aplicação e interpretação da súmula vinculante. A propósito, revelando essa

preocupação ingente, Mancuso adverte para o cuidado que o Supremo tem que ter

no manejo dos enunciados, haja vista que “as técnicas de livre curso nos países do

common law, tais como o distinguishing (aferição quanto ao enquadramento do caso

concreto ao biding precedent) ou o overruling (demonstração da superação ou

defasagem do holding existente na matéria)”498 exige do aplicador proficiência na

matéria499. E faz o professor paulista a seguinte advertência:

Não há negar que nossas Faculdades de Direito não disponibilizam disciplina voltada a capacitar o operador do Direito a lidar especificamente com a jurisprudência, por modo que futuros juízes e advogados possam, satisfatoriamente, realizar tarefas como (i) identificar, com segurança, qual o entendimento pretoriano realmente predominante num Tribunal ou numa Justiça, sobre dada matéria; (ii) distinguir, num rol de acórdãos, o que neles constitui o núcleo essencial, separando-o demais considerações periféricas (o que, no sistema do common law, corresponde à distinção entre a ratio decidendi e o obiter dicta); (iii) alcançar, com exatidão, toda a extensão – compreensão do enunciado de uma súmula vinculante, para, em seguida, aferir se o caso sub judice realmente nela se

enquadra500.

496 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso

de direito constitucional... ob. cit., p. 1012. 497

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional... ob. cit., p. 1012. 498

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... 4. ed., p. 383. 499 As exposições do citado autor têm relação com o que foi dito no final da primeira parte desta

pesquisa. Afinal, em um país em que os juízes são aprovados em concursos públicos onde se exige mais do candidato que interprete a norma de forma subsuntiva, causa preocupação quando esse principal aplicador da súmula vinculante tenha que se deparar com esse instrumento cujo manuseio exige dele conhecimentos para os quais não foi devidamente treinado. Sim, pois decerto que, numa rápida e superficial análise, dificilmente terá o magistrado traquejo para observar que será necessário, diante de uma súmula, cotejar o caso em exame com os precedentes que deram origem ao enunciado. 500

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante.... 4 ed. ob. cit., p. 383.

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A despeito de ter o enunciado de uma súmula vinculante texto de cariz

generalizante, ela é a essência do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre

determinado tema jurídico, não podendo, por certo, que sua aplicação seja acrítica,

como bem afirma Paulo Roberto Soares Mendonça, “desconsiderando as

particularidades do momento histórico e dos casos a partir dos quais foi criada a

síntese jurisprudencial” 501 502.

Ainda para Paulo Roberto Mendonça, a tarefa dos aplicadores do direito

consiste, basicamente, em conferir se uma determinada questão se enquadra ou

não em um enunciado de súmula vinculante, realizando-se, para esse fim, um

procedimento retrospectivo, levantando-se os precedentes que deram origem ao

enunciado503 504. Somente seguindo essa linha de procedimento poderá o aplicador

do direito ser capaz de efetuar o distinguishing, porquanto esse desafio importa no

desenvolvimento de sólidos argumentos, sem os quais o enunciado da súmula será

indevidamente aplicado.

Do que foi até aqui sucintamente exposto, é possível conceber o

entendimento de que, no nosso sistema jurídico, o princípio da legalidade divide

agora com a súmula vinculante o primado de interferência na vida do cidadão e da

própria administração pública, na medida em que os precedentes obrigatórios do

Supremo Tribunal Federal também geram obrigações e direitos para as pessoas

naturais ou jurídicas, públicas ou privadas, tornando expansiva a visão crítica de

501

MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A súmula vinculante como fonte hermenêutica de direito.

Biblioteca Digital Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 13, n. 67, maio/jun. 2011. Disponível em: <htpp://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=73655>. Acesso em: 21 de julho de 2011. 502

Para Marinoni, se a súmula for compreendida como enunciado geral e abstrato, “a sua leitura

pode aproximá-la ou afastá-la, sem qualquer critério racionalmente adequado, do caso sob julgamento. Nessas condições, torna-se difícil constatar se os precedentes que a elegeram estão superados, já que, para tanto, deveria o intérprete mergulhar no ambiente que lhes era próprio”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 482. 503

MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A súmula vinculante como fonte hermenêutica de direito... ob. cit. 504

Também comungam desse entendimento Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Jensen: “Em sendo

vinculante a súmula, compreendida em sua acepção técnica, como conjunto de precedentes representativos da jurisprudência dominante do STF e editada com força vinculante, segundo o iter constitucionalmente preconizado, insta ao julgador ir buscar nos precedentes integrantes da súmula – e não em seu enunciado – a norma jurídica a aplicar ao caso concreto”. SGARBOSSA, Luís Fernando. JENSEN, Geziela. Súmula vinculante, princípio da separação dos poderes e metódica de aplicação do direito sumular. Repercussões recíprocas. Jus Navegandi, Teresina, ano 13, n. 1798, 3. Jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11.327>. Acesso em 17 de outubro de 2011.

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aproximação entre as duas famílias. Esse é, com os devidos e melhores retoques, o

pensamento de Rodolfo Mancuso:

De outra parte, a inserção (rectius: ampliação) da súmula vinculante em nosso desenho constitucional permite intuir que nosso modelo jurídico-político, antes restrito ao primado da norma legal, fica agora a meio-caminho, entre o regime da civil law (prioridade à norma legislada) e o regime da common law (prioridade ao precedente judiciário, ou à norma judicada). Não vemos como se possa entender diversamente, em face da impositividade e da eficácia erga omnes da súmula vinculante, implicando, pois, na sua oponibilidade, qual um Janus bifronte, em dupla direção: ao próprio Estado (Judiciário, Executivo) e aos jurisdicionados, entre si e nas suas relações com o Estado. Isso, sem falar em dois importantes efeitos reflexos ou indiretos: um, projetado em face do Legislativo, onde é fácil intuir que um projeto de lei encontrará dificuldades em sua tramitação, quando seu objeto se contraponha ao enunciado de súmula vinculante; e outro projetado sobre a própria sociedade civil, em face da qual a súmula vinculante projetará em efeito preventivo geral nas pendências e controvérsias, efetivas e virtuais. Nem por isso, todavia, se poderá afirmar, à outrance, que o Brasil assim se desfilia

da família jurídica romano-germânica, dado que remanescem fortes os laços que ligam nosso ordenamento à norma positivada e ao direito codicístico. Antes, se diria que ambas as famílias jurídicas, civil law e common law – estão em rota de aproximação, já que,

dentre nós, o precedente judiciário encontra cada vez mais espaço, tanto no ordenamento positivo como na práxis judiciária, ao passo que na Inglaterra e Estados Unidos o direito escrito está cada vez mais valorizado505.

Muito embora seja certo que a realidade das duas famílias se confundem no

Brasil, como de resto no mundo todo, convém colocar aqui a ressalva feita por Elival

da Silva Ramos, em relação ao poder normativo do Supremo Tribunal Federal ao

editar enunciado de súmulas vinculantes. Na verdade, ilustra o autor, ao Supremo

Tribunal Federal não foi dada a mesma disposição que tem o legislador de se

movimentar entre as estruturas constitucionais. Numa síntese de grau de liberdade

normativa, teríamos, em ordem crescente, Supremo Tribunal Federal, Poder

Legislativo, constituinte reformador e, por fim, o constituinte originário506.

Até aqui, como já se notou, a polêmica girou em torno de se saber se o

equívoco de aplicação cega da súmula, por meio da subsunção, é consequência do

despreparo dos aplicadores do direito, no trato dos institutos ligados à família do

505

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante... ob. cit., p.

365-366. 506

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial... ob. cit., p. 296.

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common law, ou se é por conta da formulação equivocadamente geral e abstrata do

enunciado, como se tratasse a súmula de texto legislativo como outro qualquer.

Todavia, Teresa Arruda Alvim abre outra frente de discussão ao categorizar

quais assuntos ou temas podem ser alvos de súmula. Nesse contexto, o

posicionamento da professora é o seguinte:

Necessário que se trate de questão de direito. Sabe-se como é difícil separarem-se questões de direito e questões de fato. Tem-se dito, com acerto, que, rigorosamente, seria impossível fazer-se esta distinção, pelo menos no plano ontológico, já que o fenômeno direito ocorre, de fato, no momento de incidência da norma, no mundo real, no universo empírico. As decisões jurídicas são proferidas depois do que se pode ver como um movimento ‘pendular’, que se dá entre o mundo dos fatos e o das normas, até que o aplicador da lei consiga enxergar com clareza a subsunção, qualificando os fatos e determinando-lhes as conseqüências no plano normativo. Mas, ainda que seja difícil separarem-se as questões de fato das de direito, o que se pode dizer é que se, de um lado, o fenômeno jurídico envolve necessariamente fato/direito, a nosso ver, pode-se falar em questões que sejam predominantemente de fato e predominantemente de direito. Com isso, queremos dizer que o fenômeno jurídico é sempre de fato e de direito, mas o problema pode estar girando em torno do aspecto fático ou em torno do aspecto jurídico. Queremos com isso dizer que, embora indubitavelmente o fenômeno jurídico não ocorra senão diante de fato e de norma, o aspecto problemático desse fenômeno pode estar lá ou cá. Para fins de se saber que tipo de questão pode ser objeto de súmula é importante salientar que o seu enunciado não pode deixar margem de dúvida alguma a respeito do quadro fático a que se aplicaria. Com isso, queremos dizer que o quadro fático em que incide a súmula deve ser passível de ser apreendido por duas ou três frases, de modo integral. É por isso que nos parece razoável dizer-se que o aspecto fático tem que estar ‘resolvido’. Com a súmula, se pode resolver a questão da qualificação daquele fato ou do entendimento da norma que se aplica àquele quadro fático. Em princípio, pode-se afirmar que não podem ser objeto de súmula, por exemplo, questões relativas ao direito de família ou acidentes de veículos. Isso porque são situações de tal modo multifacetadas, o que torna impossível que sejam apreendidas por um enunciado curto. Ademais muitíssimos aspectos destas situações são relevantes para enquadrá-las nas normas e para determinar-lhes as conseqüências jurídicas. Isto faz com que não possa haver um acidente de veículos exatamente igual a outro. Exemplifiquemos: não poderia constar de súmula que ‘em acidente de veículos deve ser imputada a culpa ao condutor do automóvel que colide com o da frente’. Inúmeras peculiaridades, verificáveis necessariamente caso a caso, podem impedir que se aplique a regra. Deve-se levar em conta se o da frente não teria freado de repente, não teria dado marcha à ré etc...Como também não se poderia sumular ‘considera-se injúria grave internar a mulher em hospital psiquiátrico contra sua vontade’. Incontáveis fatores têm necessariamente de serem tomados em consideração. Não se trata

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de uma regra que possa ser tornada abstrata, aplicável a todas as situações em que maridos internem suas mulheres contra a vontade delas. Perguntas devem ser feitas: ela estava, realmente, doente? A

família dela estava a par? Concordou? E o médico? 507.

Logo, tais preocupações têm suas razões de ser, sobretudo quando já

observado acima que a tendência ainda forte entre os magistrados é solucionar os

casos mediante processo intelectivo de subsunção, até porque os casos de

elucidação simples, que permitem esse proceder (inexistente para muitos, como

Lenio Streck), ainda são maioria entre os litígios levados aos juízos508.

A preocupação de juristas com a problemática redacional do enunciado de

súmula remete à questão: há necessidade de termos no país uma teoria para

elaboração de precedentes?

Em artigo relativamente recente, Lenio Luiz Streck expõe essa questão

tomando como ponto de partida a preocupação de Fredie Didier com as redações

das súmulas vinculantes, em especial a de nº 11509.

Didier afirma que a utilização de termos vagos no enunciado da súmula é

postura paradoxal, porquanto conflita com a essência da ratio decidendi, já que esta

507

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Súmula vinculante: desastre ou solução? Revista de Processo,

ano 25, n. 98, p. 295-306, abr./jun. 2000, p. 302-303. 508

“Em nosso ordenamento jurídico, como em qualquer outro, há inúmeros conflitos para os quais existe uma solução pré-pronta. Por exemplo, a Constituição dispõe que o Presidente da República não tem direito a uma segunda reeleição. Dessa maneira, ele está impedido de registrar sua candidatura e essa é uma questão muito singela, de fácil resolução jurídica, pois a lei é clara. Outro exemplo é o caso de um proprietário de imóvel urbano que se recusa a pagar o imposto predial municipal alegando sua situação econômica desfavorável. É evidente que essa também é uma questão que não envolve maiores esforços, a elucidação é simples, pois a norma é clara. É possível dizer que maioria dos litígios possuem a solução dada pelo direito, sendo que, em relação a esses casos, um juiz terá a simples tarefa de subsunção do fato à norma. Portanto, o modelo tradicional, silogístico, em que a norma é a premissa maior, os fatos relevantes são a premissa menor, sendo a sentença a conclusão óbvia, ainda é capaz de resolver uma boa quantidade de problemas”. BARROSO, Luis Roberto. Entrevista concedida à Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Revista do TCE, ano XXVIII, n. 2, vol. 25, p. 13-22, abr./maio/jun. 2010, p. 19. 509

Sumula vinculante de nº 11: só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado

receio de fuga ou de perigo à integridade físca própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do estado.

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é fruto exatamente da “concretude de termos vagos, abertos, gerais e abstratos do

direito legislado” 510.

O processualista baiano, na sua crítica, segue apontando os demais

equívocos redacionais da vinculante súmula nº 11, notadamente no tocante à

extensão do enunciado, para, em arremate, advertir da necessidade do

“aprimoramento na utilização das técnicas desenvolvidas a partir desse conjunto

teórico” 511.

É nesse ponto que Lenio Streck intervém com sua crítica. Para Streck, toda

polêmica começa com o pressuposto equivocado de que precedente e súmula são

as mesmas coisas512. Depois, prossegue esse autor, “o outro problema reside no

fato de que a experiência das súmulas possibilita que o Supremo Tribunal Federal

seja ao mesmo tempo o criador do texto e seu aplicador/concretizador no momento

em que julga as reclamações” 513. Melhor dizendo, as súmulas seriam “quase

ordenanças com valor de lei” 514.

Em apertada síntese, os precedentes e as súmulas, para Lenio Streck, são

coisas distintas e, portanto, não seria possível desejar ver um instituto com as

mesmas lentes que se utiliza para ver o outro. O precedente possui, na sua própria

natureza, uma força atrativa, em virtude de seu paradigma (holding), e sua aplicação

em outros casos, não se procede por conta de um processo dedutivo, mas em

decorrência de uma aproximação histórica515. Daí a conclusão de Lenio Streck de

que “precedentes são formados para resolver casos concretos e, eventualmente,

influenciam decisões futuras; as súmulas, ao contrário, são enunciados gerais e

abstratos – características presentes na lei – que são editadas visando à ‘solução de

casos futuros’” 516.

Contudo, essa não é exatamente a visão de Marinoni, para quem a distinção

de precedentes e súmulas não está no fato de que os primeiros servem para

510

DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.

5 ed., vol. 2. Salvador: Editora Podivm, 2009, p. 392. 511

DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil...

ob. cit., p. 393. 512

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 287. 513

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 287. 514

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 287. 515

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 289. 516

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 290.

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aplicação de casos passados, enquanto os últimos foram pensados para melhor

solucionar os futuros processos517. Na verdade, Marinoni segue asseverando que os

precedentes obrigatórios “objetivam garantir a unidade da ordem jurídica, assim

como a segurança jurídica e a igualdade, e, nesta dimensão, são vocacionados para

o futuro”518.

Percebe-se que a celeuma está na visão diferenciada com que cada autor

observa o processo de imbricação que hoje é uma realidade entre os sistemas

(common law e civil law). Para quem, como Lenio Streck, “as súmulas não são stare

decisis à semelhança da common law”519 e, portanto, muito mais se assemelham

aos assentos portugueses, tão combatidos por Castanheira Neves520, é natural a

crítica de que em nosso sistema as citações dos verbetes sejam

descontextualizados521. É que a nossa doutrina, arremata Streck, ainda não se

conscientizou de que a produção do direito judicial não se dá por indução ou

dedução, mas por aplicação, consoante a proposta do círculo hemenêutico de

Gadamer, para quem está superada a relação hermenêutica sujeito-objeto522.

Noutro giro, Marinoni entende que, mesmo que as súmulas no Brasil tenham

sido “pensadas como normas com pretensões universalizantes, ou melhor, como

enunciados abstratos e gerais voltados à solução dos casos” 523, nada obsta que os

enunciados das súmulas sejam bons instrumentos de auxílio ao desenvolvimento do

direito, bastando, para tanto, que se busque seu DNA, isto é, que o aplicador, diante

do enunciado sumular não se afaste do “contexto dos casos que por eles foram

solucionados” 524.

Nesse ponto, há igualdade de pensamento entre os dois juristas, já que Lenio

Streck preleciona exatamente que:

Cada enunciado sumular/jurisprudencial, etc., tem um “DNA”. Esse “DNA” é a integridade e a coerência de que fala Dworkin. O “DNA” contém também, necessariamente, os genes da doutrina, sob pena de sacramentarmos a tese de que o direito é aquilo que o judiciário

517

MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 481. 518

MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 481. 519

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p. 289. 520

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 289. 521

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p. 292. 522

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 314. 523

MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 481. 524

MANINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 481.

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diz que é (lembremos sempre do Min. Barros Monteiro, que dizia “não me importa o que a doutrina diz...” – sic) 525.

Mesmo que para Lenio Streck não seja viável nem devida a transformação de

precedentes em súmula, notadamente com propósito universalizante, posto que um

precedente não cabe em uma súmula526, o certo é que a problemática de utilização

correta do enunciado sumular pode ser resolvido voltando-se os olhos para os

precedentes que deram origem ao enunciado, independentemente de qualquer que

seja a técnica redacional utilizada no verbete, que somente influenciará no grau de

melhoria da utilização dos precedentes obrigatórios.

2.3.3 Jurisprudência como fonte do direito.

A questão de onde provém a ordem jurídica de uma nação é respondida de

maneira objetiva pela doutrina positivista de Kelsen: a norma fundamental é a fonte

do Direito527.

Essa posição kelseniana, porém, admite certa ponderação. A expressão fonte

do Direito teria um outro sentido de cariz não-jurídico, representado pelas ideias que

contribuem para formar o entendimento do órgão legislador estatal. Dessa forma,

por exemplo, as regras de natureza política ou moral influenciam o norte que o

legislador irá seguir na confecção da norma positiva528.

Essas fontes não-jurídicas, contudo, não possuem qualquer obrigatoriedade.

É opção que o legislador poderá tomar em consideração ou não na formulação do

direito. Ou seja, somente quando transformadas tais opiniões em normas positivas é

que poderão ganhar força impositiva, transformando-se em verdadeiras fontes do

Direito529.

Daí que, a despeito de toda a importância que a jurisprudência vem tendo em

nosso sistema jurídico, ainda é significativo o número de juristas que não admitem a

525 STRECK, Lenio Luiz. Entrevista: direito sumular. In:

<http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=3120>. Acesso em 14.12.2010. 526

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis... ob. cit., p. 304. 527

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 192. 528

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 192. 529

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito... ob. cit., p. 192.

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jurisprudência como fonte do direito. Mesmo na edição mais recente de uma de suas

obras – “Introdução ao Estudo do Direito; técnica, decisão, dominação” (2011) –,

Tercio Sampaio Ferraz assere que “a jurisprudência, no sistema romanístico, é, sem

dúvida, ‘fonte’ interpretativa da lei, mas não chega a ser fonte do direito”530.

Tercio Ferraz adverte que são várias as razões pelas quais a doutrina

costuma negar à jurisprudência o caráter de fonte do direito. Entre as diversas

razões, está o histórico diferenciado da origem das duas principais famílias do direito

(common law e civil law). Enquanto o common law buscou sustentação em regras

não legislativas, mas em princípios conectados ao bom senso e à justiça, o sistema

do civil law, caracterizou-se pelo apego aos dispositivos de lei e, consequentemente,

pelas desvinculações: (i) dos juízes inferiores aos tribunais superiores em termos de

decisões; (ii) dos juízes em relação às decisões dos demais pares (mesma

hierarquia); e (iii) dos tribunais às próprias decisões531. Toda essa delineação factual

pode ser sintetizada na máxima segundo a qual o juiz julga segundo a lei e conforme

sua consciência532. Vêm daí também outras afirmações tais e quais a primeira e

muito comuns na doutrina, no sentido de que, mesmo nos casos em que a lei

confere ao magistrado a oportunidade de criar a lei, a atribuição resulta na verdade

da própria lei533.

Aliás, questão de teor semelhante também é debatida no sistema do common

law.

Com efeito, em relação à natureza jurídica do precedente judicial há duas

teorias: a declarativa e a constitutiva. A declarativa afirma que “o Direito preexiste à

530

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 211. 531

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito... 6. ed., ob. cit., p. 210-211. 532

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito... 6. ed., ob. cit., p. 211. 533 Franco Montoro, por exemplo, muito embora admita que a lei constitui o grau mais acabado de

formação do direito positivo, como a legislação não é naturalmente capaz de abarcar todos os casos verificados na sociedade, é inadmissível restringir a expressão “fontes do direito” unicamente ao direito oriundo do processo legislativo. Partindo dessa premissa, Franco Montoro afirma ser possível fazer uso de fontes subsidiárias, que teriam “apenas em parte ou indiretamente o caráter positivo” (p.12). Baseado na lição de Del Vecchio, Franco Montoro elabora uma equação a fim de dar solução à polêmica. Na “fonte das fontes”, ou seja, na base de tudo está o espírito humano, que corresponde à exigência fundamental de justiça. Essa fonte dá origem às fontes históricas e sociológicas, representativas de uma vontade social que impulsionam os órgãos representantes da sociedade a elaborar fontes técnicas, que, no caso, são as leis, os costumes e a jurisprudência. MONTORO, André Franco. O problema das fontes do direito: fontes formais e materiais: perspectiva filosófica, sociológica e jurídica. Brasília: Revista de Informação Legislativa, out./dez., 1971, p. 12.

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decisão judicial”534. Melhor dizendo, o direito existe independentemente de haver ou

não uma decisão judicial. Dessa forma, quando um tribunal superior julga um caso,

ele apenas está declarando o direito que já existe.

Oposta à primeira, a teoria constitutiva, como o nome já adianta, defende

categoricamente que o juiz, ao decidir um caso concreto, cria o direito (judge make

law). A razão principal dos que defendem essa tese está na alegação de que há

situações várias em que os tribunais decidem expondo soluções que sequer foram

aventadas antes.

Marcelo Alves Dias de Souza expõe, em forma de questionamento, o seguinte

argumento de John Chipman Gray, um dos arautos dessa tese, que hoje é

predominante nos Estados Unidos da América: “qual era o direito na época de

Ricardo Coração de Leão sobre a responsabilidade de uma companhia de telégrafos

para com as pessoas a quem foi enviada a mensagem?” 535.

Victoria Sesma apresenta questão análoga para ser solucionada pelos

doutrinadores que defendem que a natureza jurídica dos precedentes é apenas

declaratória: quando uma decisão anterior haja sido revogada por uma posterior, em

um terceiro caso pode surgir a seguinte controvérsia: qual era o direito após a

revogação da primeira decisão, mas antes de vigorar a decisão posterior? 536

537

Embora haja essa resistência nos dois principais sistemas jurídicos em aceitar

a jurisprudência como fonte do direito, é bom que se enfatize: “esmagadoramente

majoritário, contudo, é o entendimento dos que arrolam a jurisprudência como fonte

do direito” 538 539.

534

SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente à sumula vinculante... ob. cit., p. 41. 535

SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente à sumula vinculante... ob. cit., p. 43. 536 SESMA, Victoria Iturralde. El precedent em el common law. Madrid: Civita, 1995, p. 30-31. 537

O raciocínio de Sesma segue adiante nesse sentido, com as seguintes questões: “Si la decisión A es derogada por la decisión B y em el caso C surge la cuestión de cuál era el derecho después de la decisión A pero antes de la decisión B, el efecto retroactivo de la decisión B no está implicado a menos que el tribunal em el caso C considere que B es el derecho a la vista de la decisión B; y si B es el derecho, entonces A nunca podia haber sido el derecho de acuerdo com esta teoria, puesto que B es uma correcta declaración del derecho preexistente y es contrario a A. Sería entonces lógicamente necessario bajo la teoria declarativa, que uma decisión derogatoria podría operar retroactivamente si dicha decisión se mantiene em su totalidad”. SESMA, Victoria Iturralde. El precedent em el common law… ob. cit., p. 31. 538

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A jurisprudência como fonte do direito e o aprimoramento da

magistratura. Revista dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 553, nov./81, p. 18-26, p. 20.

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Decerto que a tradição romanística, que aportou com força no Brasil, por

conta da influência das nações europeias, era expressamente contra a utilização do

precedente. Desde Justiniano proibia-se decidir por meio de precedentes. Na época

das grandes codificações, esse vezo foi sendo acentuado: os códigos eram

considerados a forma mais acabada e perfeita do direito540.

Como já exposto em tópicos anteriores desta pesquisa, era o pretor,

notadamente na Roma do meado do século II a.C., que elaborava a regra que seria

aplicada pelo juiz ao caso concreto. Ao juiz, cabia analisar as provas produzidas e

verificar, segundo seu entendimento, se a circunstância fática autorizava a aplicação

das regras pretorianas541.

Já nas sociedades cuja tradição jurídica remonta à família do civil law, a

jurisprudência, notadamente após a Revolução Francesa, passou a ter um papel

secundário. A jurisprudência nem era vista como atividade interpretativa, já que,

como dito e repetido nesta pesquisa, a função do magistrado era de somente

declarar o direito aplicável ao caso (“o boca da lei”).

Porém, que vem sucedendo nos dias atuais?

539 Também de maneira enfática Hermes Zaneti expõe a sua opinião: “revela-se impossível negar o

caráter primário das fontes jurisprudenciais, como normas jurídicas em si mesmas”. ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: a virada do paradigma racional e político no processo civil brasileiro do estado democrático constitucional. Tese de doutorado. Porto Alegre, 2005, p. 106. 540

Segundo Alf Ross, “associativamente às grandes codificações, o legislador, na vã esperança de

preservar sua obra, tem proibido, amiúde, a interpretação das normas e que a prática dos tribunais se desenvolva como fonte do direito. Já Justiniano proibiu decisões de acordo com precedentes (non exemplis, sed legibus judicandum est). No Código Prussiano (Allgemeines Landrecht) de 1794 encontramos preceitos similares. Na Dinamarca, depois da provação do Código Dinamarquês, em 1683, proibiu-se que os advogados citassem precedentes perante a Corte Suprema”. ROSS, Alf. Direito e Justiça.... ob. cit., p. 112. 541

“Nesse período, quem tinha uma pretensão ia ao pretor, espécie de magistrado e também em

parte legislador, já que muitas vezes tinha que elaborar a regra jurídica a ser aplicada ao caso que lhe era apresentado. Exposto o problema, o pretor, se fosse o caso de conceder a ação, elaborava uma fórmula escrita, encaminhando as partes ao juiz. Nessa fórmula, além de enumerar os elementos do processo, o pretor ordenava ao juiz condenar ou absolver, conforme a sua convicção sobre os fatos. Era algo mais ou menos assim: ‘Porque Tício vendeu um escravo a Caio, condene Caio a pagar dez mil sesTercios a Tício; se não te parecer que deva pagar, absolve’ (...). Como se vê, o pretor elaborava a fórmula ou regra jurídica apenas apreciando o fato em tese, sem procurar saber se estava ou não provado. Cabia. Ao juiz apreciar as provas e aplicar a regra jurídica ao caso concreto. Os casos se repetiam, o que proporcionava ao pretor utilizar uma fórmula anteriormente elaborada para outro caso idêntico, e assim, com o passar do tempo, foi se formando uma rica jurisprudência, que se convencionou chamar direito pretoriano, extremamente fecundo como fonte do direito”. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 42.

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A partir do instante em que os juízes no cotidiano se veem na condição de

solucionar os casos sem se sentirem presos ao enunciado do texto legal — ou

porque assim desejou o legislador com a redação do dispositivo repleto de conceitos

indeterminados, ou porque a própria norma vai, com o passar do tempo,

inadequando-se à realidade social e, portanto, aos anseios da comunidade —, o

papel criador da jurisprudência torna-se evidente. Tanto que se pode afirmar, com

respaldo em Sérgio Cavalieri Filho que, nos dias atuais, os magistrados, com esse

papel notadamente de co-criador do direito, em muito se assemelham ao pretor

romano542. O que significa dizer, o magistrado hoje é parte julgador e parte

legislador.

Em outro giro, a complexidade e diversidade das atividades do homem na

sociedade mais que impossibilitam uma formação de textos legislativos capazes de

abarcar todas as hipóteses com que se deparavam os magistrados no seu ofício.

Daí porque, mesmo naqueles países cuja família do civil law contribuiu

historicamente para a formação do Estado-nação, nem todas decisões judiciais são

produzidas ou derivam diretamente de um direito legislado.

Daí a perplexidade de Hermes Zaneti que, diante do texto do art. 126 do

CPC543, questiona: “como aplicar esse preceito quando as leis se constitucionalizam,

a Constituição se principializa, as leis processuais admitem o julgamento com base

na ‘jurisprudência dominante’ (...) e o Código Civil adota cláusulas abertas que

deverão ser interpretadas e densificadas pela jurisprudência?” 544 545

542

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica... ob. cit., p. 50. 543

Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei.

No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. 544

ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo... ob. cit., p. 337. 545

Em certa medida, respondendo a questão Mancuso afirma: “Nesse contexto, quando o próprio

Direito Positivo empresta caráter vinculante a certas decisões (CF, art. 102, § 2º), a certas Súmulas (CF, art. 103-A) ou parametriza a admissibilidade de recurso com em Súmula (CPC, art. 557 e § 1º-A), constata-se que, sob o ponto de vista prático, o precedente judiciário acaba até por se avantajar sobre a norma legal, porque, enquanto esta prescreve conduta obrigatória, não se forrando, todavia, à natural interpretação – o que não raro leva a exegeses discrepantes – já a Súmula, além de ser um enunciado normativo (=conduta impositiva), já representa o extrato de uma coleção de acórdãos consonantes, sobre o mesmo tema, donde se preordenar a ser, simplesmente, aplicada aos casos nela subsumidos, dispensando maiores questionamentos. Por esse prisma, a súmula vinculante apresenta um plus, em comparação com a norma legal, nisso em que ela traz embutida, no bojo de seu próprio enunciado uma sorte de ‘interpretação autêntica’ ou oficial da matéria, destinando-se, pois, a ser... cumprida. Nessas condições não há demasia em afirmar que a Súmula revestida de força vinculativa autoriza uma releitura dos princípios constitucionais da isonomia (‘todos são iguais perante a lei’) e da reserva legal (‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa,

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A influência da jurisprudência na criação do direito, porém, não está apenas

intimamente ligada à crise notória do Poder Legislativo, ou às questões de cunho

sociológico, ou mesmo estruturais e orgânicos do Poder Judiciário, a jurisprudência

vem conquistando maior espaço nos pronunciamentos judiciais influenciada também

pelo desenvolvimento da Filosofia do Direito. Realmente, na visão de Sálvio

Figueiredo, Recaséns Siches teve, no ponto, papel fundamental com sua doutrina do

“logos de razonable”, de cujo ensinamento derivou a proposta legislativa, entre nós,

do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil de 1916 (“na aplicação da lei, o juiz

atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”) 546.

Em uma linha de raciocínio semelhantemente da até aqui exposta, de que a

aproximação do nosso sistema com o anglo-saxônico tem como causas fatores que,

no conjunto da obra, favorecem o fortalecimento de uma jurisprudência fonte do

Direito, Ricardo Maurício Soares revela o seguinte:

No sistema jurídico brasileiro, reconhecimento de que a jurisprudência pode figurar como fonte direta e imediata do Direito é fortalecido à medida que se constata na sua progressiva aproximação ao paradigma anglo-saxônico do common law nas

últimas décadas, como se depreende dos seguintes fenômenos: a consagração do poder normativo da Justiça do Trabalho; o aprimoramento dos mecanismos de uniformização jurisprudencial; o prestígio das súmulas dos tribunais superiores, mormente daquelas oriundas do Supremo Tribunal Federal; a previsão legal da súmula impeditiva de recurso; e a positivação constitucional da súmula vinculante, sob a inspiração da doutrina conhecida como stare decisis(...). Considerando o Direito como um fenômeno histórico-

cultural e o sistema jurídico como um sistema aberto à realidade social, deve-se reconhecer o papel criativo e construtivo do julgador, bem como a capacidade de as decisões judiciais engendrar uma

normatividade jurídica antenada com os valores comunitários 547.

Essa aproximação deriva não só da criação judicial que é feita pelo

magistrado ao prolatar sua decisão, elaborando a norma jurídica a ser aplicada ao

caso, mas também, embora não tanto quanto na família do common law, em razão

senão em virtude de lei’), porque já agora a tais garantias é de ser justaposto um adendo, deste teor:’(...) inclusive a lei quando, interpretada pelo STF; ao final se formalize em Súmula, como força vinculante’”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante.... 4. ed., ob. cit., p. 89-90. 546

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A jurisprudência como fonte do direito... ob. cit., p. 25. 547 SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica. São Paulo: Saraiva,

2010, p. 123.

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das decisões de nossos tribunais superiores ganharem cada vez mais força

vinculante, seja pela imposição do preceito constitucional (com a Emenda

Constitucional de nº 45/2004, que instituiu a súmula vinculante) ou mesmo por conta

do alastramento da própria consciência jurídica de se dar respeito a decisões

precedentes.

Sobre a prevalência da consciência do respeito aos precedentes, Eduardo de

Albuquerque Parente traz interessante estudo demonstrando que, em relação aos

magistrados de alguns países da família do civil law (Áustria, Alemanha, Itália, v.g.),

nada obstante declararem as leis e códigos desses países que as decisões judiciais

não têm, em regra, força de lei, é possível observar o aumento gradativo do respeito

natural às orientações das cortes superiores548 549.

É provável que o fato de o sistema jurídico brasileiro estar ligado

historicamente à família romano-germânica inconscientemente faça com que alguns

juristas tenham dificuldade de perceber o estágio em que se encontra a função

criativa atual de nosso Poder Judiciário, negando-lhe com justificativas filosóficas

esse papel político, de sorte que, somente com força de exemplos, é possível

discutir essa racionalidade.

E assim é que, enquanto a lei é um produto da informação legislativa, a

jurisprudência é uma construção feita sobre um problema. Essa construção, quando

resta sedimentada, isto é, quando passa a ser repetida de forma constante pelos

tribunais superiores, pode ser sumulada; e, em vindo a ser sumulada, ou mesmo

que subsista no patamar da categoria inferior da jurisprudência dominante, pode

ocorrer até da construção jurisprudencial ser devolvida ao legislador, por critérios

vários, inclusive em face do princípio da segurança jurídica, transformando-se em

leis. Ou seja, a jurisprudência é capaz de servir, aqui numa visão sociológica do

548

PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit., p. 11-13. 549

Aproximando-se desse entendimento, José Rogério Cruz e Tucci afirma que “nunca foi da tradição

da experiência jurídica alemã a existência de precedentes judiciais com eficácia vinculante. No entanto, em certas circunstâncias prevista em lei, o juiz de tribunal que pretendesse divergir de orientação jurisprudencial dominante, tinha (e continua tendo) o dever funcional de submeter a quaestio iuris à apreciação de um órgão superior no âmbito do mesmo tribunal”. CRUZ e TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito... ob. cit., p. 228.

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direito550, como fonte material, subsidiando, em muitos casos, a outra fonte formal do

direito – que é a lei 551.

Exemplo disso é o que aconteceu muito recentemente em nosso sistema

jurídico com a renovada lei de mandado de segurança (Lei nº 12.016, de 7.12.09),

em que o legislador sedimentou no texto legislado parte da jurisprudência construída

pelos tribunais, desde a década de 1950, quando da promulgação da lei anterior.

Sérgio Cavalieri, entre outros exemplos de jurisprudência que influenciaram o

legislador, lembra o caso da súmula de nº 187 do Supremo Tribunal Federal, que foi

transformada, ipsi verbis, no artigo 735 do Código Civil552 553.

Vale, ainda, a afirmação de Sérgio Cavalieri Filho de que tantas outras

inovações jurídicas poderiam ainda ser citadas, “o que evidencia que a

jurisprudência constitui uma atividade verdadeiramente construtora e pode,

consequentemente, contar-se entre as fontes do direito” 554.

Diante do pragmatismo característico da vida social contemporânea, a

jurisprudência tem respondido melhor às necessidades de respostas céleres do que

mesmo o texto legislado. Historicamente, o sentido de ser da força persuasiva da

550 “Costuma-se classificar as fontes do Direito em materiais e formais. As fontes materiais são assim

chamadas porque, na realidade, materialmente falando, são as responsáveis pela elaboração do Direito. A palavra material vem de matéria, substância, essência, razão pela qual é usada para indicar aquelas fontes que verdadeiramente têm substância de fonte. Se lhe examinarmos o conteúdo, veremos que o Direito é aí elaborado. Por isso as fontes materiais são também chamadas fontes substanciais ou de produção. As fontes formais, por sua vez, são assim chamadas porque de fonte só têm a forma; nada, porém, de conteúdo. Aparentemente o Direito tem origem nas fontes formais, mas na realidade elas apenas o tornam conhecido. Por isso são também chamadas fontes de conhecimento. Se pudéssemos usar uma figura nada ortodoxa, diríamos que o Direito é produzido nas fontes materiais e embalado e distribuído pelas fontes formais. Para o sociólogo, portanto, ao contrário do jurista, as fontes formais não passam de meios de exteriorização, ou de conhecimento do Direito elaborado pelas fontes materiais, as únicas que realmente merecem a designação de fonte”. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica... ob. cit., p. 42. 551

Interessante ter em mente nessa discussão o posicionamento de Rubens Limongi França. Com efeito, o autor entende que há impropriedade no uso do termo “fonte” para designar as fontes do direito. Melhor seria, segundo o autor, utilizar-se da expressão “forma” do direito. O que gera o direito, ainda na dicção do professor, não é a lei ou os costumes. Essas são as “formas” que o direito se apresenta. O que gera o direito são as necessidades sociais e a vontade humana (FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica jurídica. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 93). Por essa postura filosófica sequer haveria razão para discussão: leis, costumes e jurisprudência, catalogadas todas como formas de expressão do direito, jamais se comparariam às fontes propriamente do direito: arbítrio humano e o direito natural. 552

Súmula 187 do Supremo Tribunal Federal: “A responsabilidade contratual do transportador, pelo

acidente com passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”. 553

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica... ob. cit., p. 53. 554

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica... ob. cit., p. 53.

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jurisprudência sempre foi a busca da uniformização de um dizer o direito que nem

sempre é fácil de ser obtido por meio das normas abstratas e gerais da lei.

Na verdade, a função de persuasão dos precedentes sempre existiu e

continua a existir. A jurisprudência que sempre foi compilada nos periódicos tem

primordialmente essa função. É bom lembrar também que, quando da criação da

súmula, o Ministro Victor Nunes Leal estava muito mais preocupado com a facilidade

que os enunciados das súmulas trariam para o julgamento dos casos repetidos do

que qualquer outra inquietação.

Porém, o que ocorre hoje é que a atuação dos aplicadores do direito no foro é

de tal maneira voltado aos precedentes que não raro pouco se dá valia aos dizeres

da lei. O ofício no foro, seja por parte dos advogados, seja por parte dos juízes e

promotores, é basicamente uma busca interminável nos sites dos tribunais daquele

precedente que consiga se amoldar ao caso em debate. No contexto dessa

realidade circunstante, difícil negar a condição de fonte do direito da jurisprudência,

mormente diante da oceânica literatura jurídica atualmente produzida, que privilegia

obras de coletânea e interpretação de precedentes, em torno dos mais diversos

temas, superiormente à edição dos manuais de doutrina. Afinal, nem poderia ser

outra nossa realidade, se os casos julgados pelos tribunais podem trazer um

conteúdo normativo diverso do texto inicialmente posto pelo legislador no mundo

jurídico e se tais decisões se repetem com tal frequência, de forma a incrustar na

consciência do julgador como verdadeira norma de conduta a ser seguida, que é

pouco mais que moderado admitir-se ser esse fenômeno um produto, uma fonte

criadora do direito.

Nada obstante, encontra-se fácil na doutrina restrições à aceitação geral da

jurisprudência como fonte do direito, limitando-se o reconhecimento dessa condição

àquelas hipóteses onde a força vinculativa impera. A jurisprudência, como um todo,

ou seja, como uma “massa judiciária, exposta em modo assistemático, e

compreendendo todas as decisões, de primeiro e segundo graus, uniformes ou

não”555, por se encontrar em um estágio inferior ao direito sumular, é dizer, por não

555 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed... ob. cit.,

p. 95.

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revestir-se de caráter geral, não se enquadraria no conjunto das espécies de fonte

formal do direito556. Claramente, nesse sentido, é o que expõe Mancuso:

A jurisprudência, vista sob aquele quarto e especial enfoque (alínea d, supra), a saber, assistida dos efeitos vinculante ou impeditivo de

recurso, pode ser erigida à condição de fonte formal do Direito, sem embargo de ser o nosso país filiado à família jurídica romano-germânica, onde o primado repousa no Direito escrito (princípio da reserva legal: CF, art. 5º, II)557.

Daí que, nesse passo, Hermes Zaneti cataloga em número de três os

momentos em que a jurisprudência assume a característica de fonte primária do

direito, “quer atuando como modelo (conceito naturalmente mais amplo – ligado à

característica persuasiva dos precedentes), quer como fonte stricto sensu 558: (i)

súmulas vinculantes; (ii) as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal com

eficácia erga omnes e com efeito vinculante nas ações de controle de

constitucionalidade concentrado; e (iii) jurisprudência dominante dos tribunais, bem

como as súmulas não vinculantes dos tribunais estaduais e superiores.

Se é certo que há um novo papel do magistrado, mesmo nos sistemas em

que a lei sempre imperou, a função da jurisprudência, como um todo, no

ordenamento jurídico brasileiro, não pode ser outra que não evidenciar sua

propensão a manancial do direito ao lado da lei.

Pensar o contrário é rejeitar as observações daqueles que já não admitem

mais possa existir distinção clara entre os principais sistemas jurídicos do mundo

moderno (civil law e common law), preferindo manter a jurisprudência como um

discreto distintivo da norma legislada.

Vista dessa forma a questão, pode-se afirmar seguramente que a

jurisprudência se apresenta como fonte formal do direito. Em resumo do que foi

acima dito, Lenio Streck:

A jurisprudência acaba impondo ao legislador uma visão nova dos institutos jurídicos, forçando o processo de criação das leis na

556

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed... ob. cit.,

p. 96. 557

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed... ob. cit., p. 96. 558

ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo... ob. cit., p. 349.

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direção da orientação construída pelos tribunais. Assim, é induvidoso que a jurisprudência no Brasil se constitui, além de fonte de normas jurídicas gerais, em uma fonte subsidiária de informação a

alimentação ao sistema de produção de normas jurídicas559

De resto, o debate aqui apresentado, com os diversos e opostos

entendimentos, somente revela a necessidade de nossa doutrina elaborar uma nova

teoria das fontes do direito.

3. UTILIZAÇÃO DO PRECEDENTE NA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO

JUDICIAL

3.1 Aspectos polêmicos em relação à diversidade jurisprudencial

O sistema jurídico brasileiro integra a família romano-germânica do civil law.

Na prática, porém, boa parte da doutrina vem entendendo que os dois principais

sistemas (common law e civil law) “constituem dois aspectos de uma mesma e

grande tradição jurídica ocidental” 560 561.

Embora seja certo que a doutrina do stare decisis presta homenagem ao

sistema jurídico do common law, de forma a configurar o precedente judicial com

força vinculante, pesquisas realizadas em vários sistemas jurídicos – como já

referido – demonstraram que a menção ao precedente “não é, há muito tempo, uma

característica peculiar dos ordenamentos filiados ao common law, estando presente

em quase todos os sistemas, inclusive os civil law (romano-germânico)” 562.

Aqui no Brasil, porém, só recentemente o legislador tem procurado atender

aos reclamos da sociedade no sentido de elaborar mecanismos processuais que

valorizam o respeito ao precedente judicial. Precisou que houvesse manifestações

559 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro... ob. cit., p. 93. 560

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 17. 561

No mesmo sentido é o posicionamento de Hermes Zanetti Junior: “não há modelo puro, mas, simplificando na comparação, apresentam-se os modelos como na Arquitetura, na qual se define o estilo de uma construção pelas suas características mais marcantes e pela ênfase em determinados elementos no desenho do prédio. Nada obsta que a unidade externa seja quebrada ou desmentida pelo interior da morada, contudo as características de sua fachada ainda assim permitem identificar uma forma de fazer Arquitetura”. ZANETTI JUNIOR, Hermes. A constitucionalização do processo... ob. cit., p. 88. 562 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência... ob. cit., p.1.

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várias de juristas de renomes, principalmente oriundos das mais altas Cortes de

Justiça do país, para que esse panorama começasse a mudar563.

É fácil observar, na comunidade jurídica, a defesa da criação judicial por parte

do juiz. Contudo, vivemos momentos de um evidente paradoxo: de um lado, “cada

vez mais o Poder Judiciário é provocado para ‘dizer o direito’ diante do

esvaziamento de conteúdos prévios das regras do sistema” 564; de outro, a

necessidade de se conter exatamente o efeito decorrente desse novo chamamento

imposto aos julgadores: a divergência jurisprudencial. Sim, pois não é fácil conceder

essa franquia criativa do direito ao magistrado, sem que se padeça dos efeitos

colaterais provenientes da dispersão natural que essa faculdade é capaz de

promover na estrutura de um sistema como o nosso, não totalmente adequado a

essa nova realidade.

Com efeito, o cenário tem se mostrado assim, pois se é certo que os

julgadores avançam ainda confiantes na criação do direito, a tendência é de

agravamento dessa dispersão jurisprudencial. Dispersão essa, a propósito, bem

pormenorizada por Eduardo Cambi no texto Jurisprudência lotérica, de abril de 2001,

que ressaltou a necessidade de se impor limites à liberdade dos juízes de interpretar

o Direito565:

...se é necessário assegurar aos juízes a liberdade para assegurar o

Direito, essa liberdade não pode ser absoluta, porque dá margem à existência do fenômeno da jurisprudência lotérica, o qual compromete a legitimidade do exercício do poder jurisdicional pelo Estado-juiz.

563

Segundo Cândido Dinamarco: “Quando o Min. José Paulo Sepúlveda Pertence, então na Presidência do Supremo Tribunal Federal, ergueu a bandeira das decisões vinculantes dos Tribunais Superiores da União não faltaram todavia vozes divergentes a sustentar a inconveniência da propostas, seja em face do princípio político da Separação dos Poderes do Estado, seja do postulado da independência dos juízes ou da efetividade do contraditório. Mas a angustiosa realidade do Poder Judiciário brasileiro, sobrecarregado e moroso, exige uma solução liberta de preconceitos políticos ou jurídicos radicalizadores dessas conquistas liberais”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno... ob. cit., p. 1123. 564 GOUVEIA, Lúcio Grassi. Breves considerações acerca da construção da norma jurídica diante do

caso concreto pelo julgador. Rio Grande do Sul: Revista da AJURIS, n. 117, ano XXXVIII, março de 2010, p. 245-255. 565 CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais n. 786, São Paulo: RT, abr./2001,

p. 108-128.

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Todavia, essa diversidade jurisprudencial, naturalmente admitida como uma

espécie de efeito colateral, decorrente da dinâmica particular própria da tradição dos

sistemas jurídicos oriundos do civil law — isto é, da tradição “do império das regras

fixadas pelo Legislativo”566

—, já não encontra espaço confortável no ambiente

jurídico atual, mormente quando se verifica a abrangência das circunstâncias no

segundo grau de jurisdição. Se por um lado, na estrutura do sistema jurídico do civil

law, é razoável aceitar-se a convivência (ainda que somente no primeiro grau de

jurisdição – daí o nosso notável e complexo sistema recursal) com decisões

antagonicamente ofertadas ao jurisdicionado, em face de idênticas hipóteses legais;

por outro, no seio de uma sociedade estruturada constitucionalmente baseada em

princípios caros ao Estado Democrático de Direito, como o da igualdade, por

exemplo, tal fato tende a perder a razoabilidade na órbita dos tribunais superiores

para se tornar fonte praticamente incessante de injustiças sociais, em que um

processo judicial não pode ter resultado para o jurisdicionado, semelhante a um jogo

de azar567.

Porém, a divergência jurisprudencial não é um mal em si.

Sabe-se que o julgador, ao criar a norma jurídica para o caso concreto, é

influenciado por diversos fatores, além daquilo que vem exposto no texto legislado.

Entre as causas que motivam a decisão de um magistrado, do mesmo modo que

acontece conosco quando tomamos decisões relacionadas com o nosso cotidiano,

decerto estão a ideologia, o estado de ânimo, o psicológico, os preconceitos, a

cultura jurídica, etc.568. Aliás, o processo de elaboração de uma sentença judicial

parece mesmo ter o efeito, nos dias atuais, de uma “espécie de justificação ex post

da decisão tomada pelo aplicador do direito” 569. Pelo menos, essa é a ótica pela

qual boa parte da doutrina analisa essa disciplina: o juiz se valeria, ainda que de

566

SANTOS, Evaristo Aragão, Sobre a importância e os riscos que hoje corre a criatividade jurisprudencial. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 181, a. 35, mar./2010, p. 38-58. 567

CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica... ob. cit., p. 108-128. 568

BELTRAN, Jordi Ferrer. Considerações sobre o conceito de motivação das decisões judiciais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Revista Brasileira de Filosofia, ano 59, n. 234, p. 291-312, jan.-jun/2010, p. 294. 569

GOUVEIA, Lúcio Grassi. Breves considerações acerca da construção da norma jurídica... ob. cit., p. 247. Ainda, na lição desse autor (p. 247): “não queremos aqui afastar a importância da lógica jurídica, mas constatarmos que se a decisão é lógica não é somente lógica, até porque o julgador, antes de acionar as ferramentas lógicas, faz uma série de escolhas, servindo a lógica muitas vezes para legitimar uma das decisões possíveis para o caso concreto”.

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forma inconsciente, da lógica do razoável, professada por Ricaséns Siches, nada

obstante ofereçam à vista de todos suas decisões como fruto de exemplar raciocínio

silogístico570. Nojori revela a síntese desse entendimento:

O juiz chegaria primeiro à solução para o caso e depois revestiria sua decisão de uma logicidade fictícia, ou seja, o julgamento viria primeiro que a própria argumentação do julgador, que não se utilizaria para tal fim de uma dedução lógica, que partisse das premissas para a conclusão, conforme um raciocínio dedutivo. O silogismo jurídico seria apenas aparente571.

Seguindo essa linha de raciocínio572, pode-se dizer que, em grande parte dos

processos em que se deparam os magistrados, o raciocínio utilizado para a solução

da lide não é determinado especificamente por critérios apenas jurídicos573.

Levando-se em conta tais observações, forçoso crer que muitos dos citados

elementos metajurídicos que circundam a mente do julgador são resgatados quando

este está diante de ações propostas com base em textos legais que não foram alvo

ainda de debate profícuo. Isso ocorre costumeiramente naquelas situações em que

o diploma legal é de vigência recente, ou cuja materialidade fática não sofreu

regulamentação suficiente, ou mesmo naquelas hipóteses de influência recíproca de

duas ou mais normas, ao mesmo tempo, sobre o mesmo caso concreto (ex: diálogo

das fontes).

São nesses momentos em que as teses são fixadas. Além do mais, não se

pode desconhecer que a realidade social é dinâmica. Se a sociedade, em todas as

frentes (econômica, cultural, antropológica) sofre mutações constantes, exigindo

que, no plano do ordenamento jurídico, o legislador promova diversas e constantes

alterações legislativas, além de fartamente utilizar estruturas normativas cada vez

mais genéricas, flexíveis, principiológicas e de conteúdo aberto (como as cláusulas

570

NOJORI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 79. 571

NOJORI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais... ob. cit., p. 79. 572

Segundo Jordi Beltran, essa é a linha de raciocínio do realismo jurídico, especialmente o norte-americano, que pôs especial atenção nos mecanismos causais que motivam as decisões judiciais. “Por isso, os realistas deram destaque à necessidade de estudar estes fatores sociológicos como método adequado de prever as decisões judiciais, i.e., a seu entender, conhecer o direito vigente”. BELTRAN, Jordi Ferrer. Considerações sobre o conceito de motivação... ob. cit., p. 294. 573

TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz... ob. cit., p. 171-204.

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gerais e os conceitos indeterminados), não se pode entender que a divergência seja

um mal em si, tendo que ser combatida a todo custo.

Observando-se a questão por esse prisma, o desenvolvimento do direito

necessita das muitas interpretações variantes possíveis dadas ao texto legal. Ou

seja, a divergência jurisprudencial, além de previsível e aceitável em nosso sistema

jurídico é necessária, a fim de que o Poder Judiciário possa, a contento,

acompanhar as alterações levadas a efeito por toda a sociedade em seus diversos

segmentos estruturantes (econômico, político, etc.).

Então, se a divergência jurisprudencial “é uma moeda de dois lados” 574,

apresentando pontos positivos e negativos575, tem valor substancial a análise da

utilização dos precedentes pelos aplicadores do direito. Ou melhor, se

especificamente os magistrados estão sabendo empregar os precedentes

corretamente na fundamentação da decisão judicial. Pois pouco vai adiantar

criarmos mecanismos para a utilização dos precedentes, se o magistrado –

especialmente esse aplicador do direito – não souber utilizar com precisão o

precedente na fundamentação de suas decisões.

3.2 A decisão judicial

3.2.1 - Uma brevíssima análise da importância do princípio da motivação no

Estado Democrático de Direito.

Embora devidamente posicionado com assento constitucional (art. 93, inciso

IX, da CF/88), o princípio da motivação das decisões judiciais não é objeto de estudo

que desperte maiores interesses e incursões dogmáticas dos doutrinadores

pátrios576. Tal fato, até certo ponto, é paradoxal, na medida em que o legislador

constituinte, que procurou, em regra, dotar a Constituição com texto descritivo e

principiológico, afirmando direitos e impondo deveres577 578, resolveu, no caso

574

PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização... ob. cit., p. 35. 575

(Passim) SANTOS, Evaristo Aragão, Sobre a importância... ob. cit. 576

DELGADO, José Augusto. A sentença judicial e Constituição Federal de 1988. Disponível em:

<http://www.bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/9400>. Acesso em: 04.05.2010. 577

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo... ob. cit., p. 293.

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específico, produzir norma de cunho sancionador, com prescrição de nulidade para

a desobediência do referido princípio579 — coisa rara na sistemática constitucional —

demonstrando o quanto ponderou de grave e ofensivo a um Estado Democrático de

Direito o mau vezo dos membros do Poder Judiciário de proferir decisões sem

fundamentação válida.

A propósito, sobre esse mau exemplo dado pelo Poder Judiciário, Fredie

Didier assevera que:

É bastante comum o operador do direito deparar-se, no seu dia-a-dia, com decisões do tipo “presentes os pressupostos legais, concedo a tutela antecipada”, ou simplesmente “defiro o pedido do autor porque em conformidade com as provas produzidas nos autos”, ou ainda, “indefiro o pedido, por falta de amparo legal” 580.

Após o fracasso do Estado Liberal, que fincou suas raízes na liberdade do

indivíduo, surgiu o Estado Social (Welfare State) com o propósito claro de prover a

sociedade com necessidades públicas capazes de garantir, ao menos,

minimamente, programas de amparo ao cidadão, como, v.g., saúde, educação e

proteção ao trabalho.

A reboque dessa evolução histórica do Estado veio a transformação do

processo hermenêutico de integração do texto legal: o magistrado passou a extrair

do texto a norma jurídica (sentido teleológico) e a não mais se preocupar em

desvendar ou declarar a vontade do legislador, controlando, inclusive, a

578

Em texto onde rebaixa o “neoconstitucionalismo” à categoria de mero movimento, sem uma adequada estrutura dogmática, Humberto Ávila afirma o seguinte, em contradição à ideia geralmente difundida de que nossa Constituição é notadamente principiológica: “Não se pode, em primeiro lugar, asseverar que o tipo normativo prevalente adotado pela Constituição Brasileira de 1988 seja o principiológico: embora não se possa afirmar que a Constituição tenha adotado um modelo exclusivo de princípios, nem um arquétipo único de regras, se um qualificativo tiver de ser escolhido para representar a sua espécie normativa típica, esse qualificativo deverá ser o de ‘Constituição regulatória’. Não é exato declarar, pois, que se passou das regras para os princípios, nem que se deve passar ou é necessariamente bom que se passe de uma espécie para outra. O que se pode afirmar é, tão-só, que a Constituição é um complexo de regras e princípios com funções e eficácias diferentes e complementares. ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 17, janeiro/fevereiro/março, 2009. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em 1º de outubro de 2011. 579

Rui Portanova adverte: “a doutrina discrepa sobre se as decisões sem fundamentação são nulas ou inexistentes, mas não há dúvida quanto à gravidade do defeito”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil... ob. cit., p. 249. 580

DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil... ob. cit., p. 236.

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constitucionalidade das normas. Surgiu daí o embrião de uma nova postura de

atuação, por parte dos juízes, que é plenamente reconhecida pela doutrina como a

judicialização da política ou politização da justiça581.

Com a evolução do Estado de Direito, portanto, o Poder Judiciário passou a

se apresentar ao jurisdicionado como corresponsável pela consecução dos objetivos

fundamentais da República, da mesma forma que os demais Poderes da

República582. É dizer, na quadra atual de nossa história política, todos os três

poderes que compõem o Estado Democrático de Direito restaram inexoravelmente

subordinados à vontade popular583, de forma que nem mesmo o Judiciário está livre

para decidir em confronto com os interesses públicos.

É nessa quadra evolutiva do Estado que se pode afirmar: a qualidade

democrática das instituições passou a qualificar o próprio poder estatal584 585. Ou

seja, os valores democráticos passaram a irradiar seus preceitos em todas as

instituições e órgãos que compõem o Estado. É o Estado como promotor de justiça

581

“Diante da clareza do texto constitucional, o juiz não pode recusar a escancarada verdade: a constatação de que está fazendo política. Evidente que não é a política partidária, a cuja atividade não pode dedicar-se o juiz brasileiro. Mas é a política resultante de incursão nunca antes admitida em temas sensíveis à condição da política nacional. Em outros, termos, ocorre no Brasil, o fenômeno já detectado em outros Estados-nação e conhecido por judicialização da política ou politização da justiça. Por conta desse fenômeno contemporâneo é que o Judiciário é chamado a apreciar o mandado de segurança coletivo, suscetível de ser impetrado por partido político representado no Congresso Nacional e por outros órgãos intermediários. Dentre eles, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”. NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306-307. 582

NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306. 583

“O dispositivo constitucional potencializou a garantia de ser motivada qualquer decisão judicial. Permite, assim, que se pratique ato revestido de justiça, sem qualquer característica de ato de imposição de vontade autoritária. Pressupõe o sistema jurídico em ação que o poder do juiz emana do povo e em seu nome o exerce, pelo que está obrigado a convencer, quando decide, não somente as partes, como também a opinião pública”. DELGADO, José Augusto. Alguns aspectos controvertidos no processo de conhecimento. RT 664/27. São Paulo: Revistas dos Tribunais. 1991. 584

MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais e a democratização no processo civil: aspectos de cidadania. Revista da Esmese, Aracaju, n. 5, p. 167-193, 2003, p. 171. 585

“Cada revolução daquelas intentou ou intenta tornar efetiva uma forma de Estado. Primeiro, o estado liberal; a seguir, o Estado socialista; depois o Estado social das Constituições programáticas, assim batizadas ou caracterizadas pelo teor abstrato e bem-intencionado de suas declarações de direitos; e, de último, o Estado social dos direitos fundamentais, este, sim, por inteiro capacitado da juridicidade e da concreção dos preceitos e regras que garantem estes direitos”. BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 15.

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social, tendo como nota característica a função de equacionar seus interesses com

os interesses sociais586.

Eis aí uma nova maneira de ver a atuação profissional do magistrado.

Sobremaneira ampliado o alcance dos fundamentos de decidir, posto que a eficácia

da decisão do magistrado depende agora de outro componente que antes não lhe

era cobrado — o da legitimação social — torna-se cada vez mais possível que a

decisão tenha alcance democrático, isto é, seja aceita pela sociedade para produzir

a eficácia da norma 587.

Dessa forma, para boa parte da nossa doutrina, afigura-se não ser mais

concebível possam existir decisões cujo teor apenas represente graficamente um

exercício mental silogístico, como bem dá um exemplo emblemático Letícia Balsama

Amorim:

Vistos os autos (...) Relatado (...) segue-se a motivação: O princípio da dignidade da pessoa humana é norma constitucional de eficácia imediata e portanto pode e deve ser aplicado a casos concretos (premissa maior). O contrato celebrado entre Autor e Réu fere o princípio da dignidade da pessoa humana (premissa menor). Logo, dou provimento ao pedido do Autor para declarar nulo o referido contrato (conclusão) 588 .

Diante dessa moderna obrigação funcional do magistrado, o processo deixa

de representar para o Estado Democrático de Direito um mero mecanismo de

composição de litígio e passa a ser pensado — a partir de sua efetividade — como

instrumento de mudança social e aplicação da justiça589. Destaca-se aí a importância

da função política da motivação das decisões judiciais. É o processo como

instrumento político de efetivação do próprio direito.

O entendimento fica melhor esposado, nas palavras de Rodolfo Mancuso:

Num ambiente de democracia participativa (CF, parágrafo único do art. 1º), há de entender-se que a participação direta da população

586

MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais... ob. cit., p. 167 - 171. 587

MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais... ob. cit., p. 167 - 193. 588

AMORIM, Letícia Balsamão. A insuficiência do silogismo para cumprimento do dever de motivar as decisões judiciais. Revista Virtual da AGU Ano 6, n. 48, jan./ 2006. <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=83091&ordenacao=1&id_site=1115> . Acesso em 14.01.2011. 589

MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais... ob. cit., p. 174.

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não se confina ao voto popular para eleição de governantes e parlamentares, aos projetos de lei de iniciativa popular, ao plebiscito e às audiências públicas, senão que tal participação se faz também por meio do processo, visto como fator de inclusão social, na medida em que recepciona e encaminha ao Judiciário – ou aos meios alternativos, auto e heterocompositivos – os reclamos, anseios e pretensões da coletividade, os quais, sem essas formas de expressão, continuariam a fomentar a chamada litigiosidade contida, ao interno da coletividade. Portanto, o fato de em muitos países, como o nosso, os juízes não serem eleitos, não serve como argumento ou premissa para dispensá-los de dar o seu quinhão para a boa gestão da coisa pública e preservação do interesse geral, mediante os processos em que são chamados a atuar590.

A permeabilização interativa dos aspectos sociais e políticos com o processo

abre ensejo para que as decisões judiciais sejam aferidas, no tocante à legitimidade,

em vários graus de valores, notadamente em relação à questão da imparcialidade,

cujo critério é o mais próximo do que se entende por democrático.

Com efeito, é inescusável a força política com que na modernidade revestem-

se as decisões judiciais, a ponto de se falar constantemente em politização do Poder

Judiciário. A razão é que, no mais das vezes, decisões judiciais, principalmente

aquelas oriundas dos tribunais superiores, não se restringem unicamente às partes

interessadas diretamente no litígio, mas, de maneira substancial, a toda sociedade

que é afetada pelo comando inserido na sentença. Não é por outro motivo que, ao

longo do tempo, foram paulatinamente aperfeiçoando-se as formas de controle do

ato decisório do magistrado.

Todavia, no Brasil, o princípio da motivação das decisões judiciais somente

obteve registro constitucional na Carta de 1988. Antes, o princípio do dever de

motivar a sentença vinha sendo contemplado unicamente na seara da legislação

processual ordinária.

Ora, com a influência da política no processo de evolução do pensamento

jurídico, decerto redundou no posicionamento do princípio da motivação das

decisões na Constituição da República, passando-se a ter, nos dias atuais, uma

590

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos... ob. cit., p. 286-287.

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ampla e indiscutível controlabilidade da fundamentação das decisões judiciais, “que

não se adstringe ao quadro das impugnações previstas nas leis do processo” 591 592.

Temos, assim, dois tipos de controle das decisões judiciais: controle

endoprocessual e extraprocessual593.

Como rescaldo do racionalismo do Estado Liberal, a motivação das decisões

judiciais teve, na ciência processual, inicialmente, função dirigida basicamente às

partes litigantes da lide. Fundamentalmente, ainda hoje, tal função consiste em

conceder oportunidade às partes para conhecer na inteireza as razões que levaram

o magistrado a proferir sentença em favor de um dos sujeitos da relação processual.

Mas não é só. A importância da motivação tem como propósito incutir na

parte vencida a ideia de que o insucesso de sua pretensão não foi fruto de uma

posição arbitrária do magistrado, e, portanto, persuadi-la a se dar por satisfeita com

a decisão. Diz-se que a função aí seria social, porque apaziguadora dos ânimos

exaltados.

591

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia ao Estado de Direito. Tese aprovada pela VII Conferência Nacional da OAB (Curitiba, 1978), acervo bibliográfico do Prof. José de Moura Rocha. Biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco, p. 111-125. 592

Na palavra Maria Thereza Gonçalves Pero: “Se todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, então é natural que o povo possa acompanhar as decisões do poder Judiciário, e constatar a idoneidade de sua atuação para atender aos postulados do Estado de Direito, fazendo com que permaneça o seu consentimento a essa instituição. A correção com que é atuada a tutela jurisdicional, sob esse aspecto, deixa de interessar imediatamente apenas às partes interessadas no processo, para constituir, mediante um interesse de toda uma coletividade...”. PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 62. 593

Segundo o melhor escólio de Carlos Romero Lauria Paulo Neto: “Em um sentido mais amplo,

entendemos que função interna da motivação da decisão jurisdicional, por um lado, não se circunscreve ao aspecto de sua interconexão com a impugnabilidade da decisão e, por outro lado, não é meramente uma função processual (rectius: formal). Deveras, especialmente, no caso das decisões da justiça constitucional, a motivação desempenha a importante função interna de favorecer a autocontenção do juiz constitucional. A inexorabilidade de expressa motivação jurídica traz consigo não só uma exigência de racionalidade argumentativa, mas também de congruência lógica, coerência e conformação ao Direito, o que, tudo somado infunde a imperatividade de prudência e contenção judiciais (...). Assim, a motivação das sentenças, sob a perspectiva da controlabilidade externa, é funcionalmente instrumental em relação ao fim de legitimar a decisão perante a crítica doutrinária e a própria opinião pública, ou a esfera pública pluralista, no sentido de Härbele. Ainda que modernamente a cobertura massificada dos media sobre julgamentos importantes propicie uma intensa interface entre o tribunal constitucional e a comunidade, não se trata, obviamente, de o juiz nortear suas decisões cedendo a qualquer populismo judicial, ainda que não se excluam totalmente interferências pontuais da opinião pública nos rumos de certas correntes jurisprudenciais. Por outro aspecto, tampouco, como adverte Taruffo, trata-se de submeter a controle social cada decisão singularmente considerada, mas, isto sim, de relevante garantia contra o arbítrio judicial a qual se propicia a todos os cidadãos a partir da exigência geral de pública motivação do ato decisório jurisdicional, caracterizando a atividade dos juízes como uma atividade limitada e controlável pela Sociedade. PAULO NETO, Carlos Romero Lauria. A decisão constitucional vinculante. São Paulo: Editora Método, 2011, p. 126-127.

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Nada obstante demonstrar ser esse realmente um dos propósitos do princípio

da motivação das decisões – persuadir as partes a se darem por satisfeitas com a

decisão – Barbosa Moreira enfatiza que, na prática forense, contudo, isso não é

verificável:

Com maior vigor ainda, costuma-se acentuar o papel da motivação na economia das impugnações: mesmo deixando de lado, porque freqüentemente desmentido na prática, o suposto valor persuasivo das boas fundamentações, a que se pretende atribuir o efeito de desencorajar a interposição de recursos, restam outros aspectos de inegável relevância: só os conhecimentos das razões de decidir pode permitir que os interessados recorram adequadamente e que os órgãos superiores controlem com segurança a justiça e a legalidade das decisões submetidas á sua revisão. (...) A obrigatoriedade da motivação é vista, ademais, como condição do funcionamento eficaz dos mecanismos destinados a promover a uniformização da jurisprudência, para a qual são as teses jurídicas que importam, e não as conclusões nuas dos julgados 594.

Se, por um lado, a despeito dessa realidade subjacente, a motivação da

sentença ainda mantém, no âmago do processo, a função social de garantia às

partes litigantes “de ver suas argumentações devidamente apreciadas pelo

magistrado, como decorrência do princípio do próprio direito de ação” 595; por outro

lado, relembre-se que, na lição de Cruz e Tucci, “a motivação da sentença, ainda no

plano técnico, resulta útil para enriquecer e uniformizar a jurisprudência, servindo,

desse modo, como valioso subsídio àqueles que contribuem para o aprimoramento e

aplicação do direito” 596.

Seja como for, essa prestação de contas ofertada aos jurisdicionados em

geral nem sempre é executada com precisão pelo magistrado em sua sentença.

Além disso, é muito comum, no cotidiano forense, o juiz deparar-se com pedidos das

partes que, de tão idênticos a tantos outros anteriormente propostos e já analisados

por outros magistrados e pelos próprios tribunais, dispensam uma fundamentação

inovadora ou própria por parte do magistrado sentenciante, fazendo com que o

julgador, nessa hipótese, limite-se apenas a fazer referências a textos ou

julgamentos outros, no intuito de motivar sua decisão.

594

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia... ob. cit., p. 115. 595

MARTINS, Suzete Ferrari Madeira. A motivação das decisões judiciais... ob. cit., p. 173. 596

CRUZ E TUCCI, José Rogério. Ainda sobre a nulidade da sentença imotivada. RP 56/223.

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Essa tem sido a problemática de vulto a ser enfrentada por nossa doutrina, na

medida em que, o objeto alvo da verificação foge aos padrões esperados no tocante

ao princípio da motivação.

3.2.2 – Algumas questões práticas envolvendo o princípio da motivação

judicial

Na hipótese, hoje tão comum, de o magistrado se servir de um precedente

para fundamentar sua decisão, importa destacar o entendimento dominante no

Superior Tribunal de Justiça de que o julgador, que assim procede, transcreva na

íntegra a parte que é capaz de servir de motivação para sua sentença, não bastando

apenas fazer referência àquela outra decisão paradigmática, ainda quando inserta

nos próprios autos em que se resolve a lide. É que a prática usual de adotar como

fundamento de decidir apenas o reenvio ou remissão ao jurisdicionado a

determinado acórdão que se quer sirva de paradigma, sem a sua devida e

necessária transcrição, é de todo repugnável pelo nosso Tribunal Cidadão 597.

Apesar de a recomendação clara do Superior Tribunal de Justiça, ainda são

comuns os casos em que os juízes, ao proferir sentenças onde apenas invocam, na

análise das questões jurídicas, precedentes jurisprudenciais, transcrevem “apenas

as respectivas ementas no corpo do julgado” 598, como se tal proceder fosse

bastante para dar por bem e encerrada a prestação jurisdicional599. Não é!

597

A exigência da motivação das decisões judiciais é mandamento constitucional, havendo, no caso de progressão de regime, específica e expressa exigência legal, certamente dirigida a impedir decisões de simples reenvio a cálculos de pena e a atestados de comportamento de Diretor de Unidade Prisional e a fazer certo que o mérito do sentenciado, vale dizer, a sua resposta à execução penal, como vista progressiva da pena criminal....Tal motivação, que se impõe como dever do magistrado, como ocorre na espécie, em nada se identifica com reenvios puros e simples a certidões de tempo de pena cumprida e atestados de conduta carcerária, averbados de aplicação aritmética a pronunciamentos técnicos, com o que se isenta o Juiz de valorar os fatos da execução, eles mesmos” (STJ - HC 93.322/RS, Sexta Turma, Rel. Min. Hamilton, j.17.04.2008, DJe 04.08.2008, v.u.). 598

DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil... ob. cit., p. 233. 599

É bom ter em mente que, no tocante ao Juizado Especial, a flexibilização do disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988 é latente; isso porque a Lei nº 9.099/95, por exemplo, faculta ao Colégio Recursal do Juizado Especial (art. 82, § 5º) a remissão aos fundamentos adotados na sentença, sem que isso implique afronta à garantia constitucional. Em recente julgado, que teve como relator o Ministro Dias Toffoli, esse entendimento, que reflete a jurisprudência dominante no Supremo, foi reafirmado: “EMENTA – Juizado especial. Parágrafo 5º do art. 82 da Lei nº 9.099/95. Ausência de fundamentação. Artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Não ocorrência. Possibilidade de o colégio recursal fazer remissão aos fundamentos adotadas na sentença.

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Com efeito, em se tratando de precedentes, o juiz não fica desincumbido do

dever de motivar sua sentença, somente pelo fato de ter encontrado ementa ou

julgado que, a seu ver, se enquadra perfeitamente à hipótese exposta nos autos. O

magistrado há que materializar sua fundamentação expondo de forma clara os

motivos pelos quais entende que esse ou aquele precedente se aplica ou não ao

caso em julgamento; é dizer: as razões que justificam, no seu modo de entender a

questão, que o precedente escolhido é aderente à justificação que ele percebe ser a

mais justa para o deslinde da lide.

De outro modo, admite-se a possibilidade de aceitação de uma decisão

judicial composta de uma motivação implícita. Embora possa originar-se daí uma

impressão inicial de surpresa diante de nosso ordenamento jurídico, que determina

que o magistrado indique os motivos de seu convencimento600, tal possibilidade se

explica por meio de uma construção jurisprudencial. Deveras, mesmo antes da

promulgação da Constituição de 1988, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

já acenava com a possibilidade, hoje de indiscutível validade, de que as decisões

judiciais pudessem ser proferidas com motivação implícita601.

Jurisprudência pacificada na Corte. Matéria com repercussão geral. Reafirmação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” (Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 635.729-SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, DJe nº 162, p. 24.08.2011). 600

Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.

Art. 458. São requisitos da sentença: I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem. (destaques não constam do original). 601

“Os segundos embargos de declaração – do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários no Estado de Goiás e outros – alegam: omissão do fundamento que justificou o conhecimento e provimento do recurso do Banco do Brasil (fls. 871). Ora, no relatório, no despacho do Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, se invocou o art. 154, § 4º, da Constituição Federal – pela negativa de prestação jurisdicional (fls. 852). E no voto, em expressa referência à ‘jurisprudência predominante’ da Corte, indicam-se os RREE 96.918 e 100.121 (fls. 856/857): daquele – transcreveu-se a Ementa, a Turma, o Eminente Relator e RTJ que publicou (RTJ 103/1286), na qual o ilustre patrono dos embargantes, por certo, se não o soubesse – e sabe-o e ressabe – poderia haurir os esclarecimentos suplementares que deseja, e que, inseridos na publicação oficial da Corte, não precisam ser largamente transcritos, principalmente a quem os conhece; do segundo (RE 100.121) – indicou-se o D.J., órgão oficial de publicação do judiciário e se adiantou: ‘com ementa idêntica à do acórdão anterior’ (fls. 857).Exigir mais seria o Relator fazer pouco da competência dos que defendem, no Tribunal, o direito das partes. Lesse, contudo, o embargante o texto do acórdão embargado e veria a invocação dos fundamentos que pretende explicitados: o art. 153, § 4º, da Constituição Federal, suficiente para que a irresignação fosse conhecida e acolhida pelo Tribunal, além dos demais dispositivos que invocou. E os precedentes citados deixaram claro ‘desconhecer, por ilegitimidade, o recurso de terceiro, abrangido pelos efeitos da sentença e alegando direito próprio, importa em

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As razões, de ordem prática, resultam do seguinte raciocínio: a exigência da

motivação não significa que o magistrado tenha que enfrentar ou responder um a um

cada argumento apresentado pela parte de forma detalhada.

Realmente, hoje em dia parece impossível imaginar, diante de um volume

avassalador de processos que sobrecarrega os foros, que um magistrado vá se

debruçar por completo sobre as várias alegações expostas pelas partes, para ao fim

e ao cabo proferir uma decisão, sabedor que muitas impugnações apresentadas

pelas partes não representam satisfatoriamente o verdadeiro reflexo do interesse

principal posto em debate na lide.

Além do mais, há situações em que, por coerência, uma premissa pode estar

“em contraposição lógica com a escolhida como fundamento do decisum com a

prática processual” 602 603.

Até aí, nenhum problema, posto que, como foi visto, esse enredo foi

paulatinamente construído pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A

situação torna-se merecedora de atenção quando o julgador, por entender que não

está obrigado a enfrentar uma miríade de alegações apresentadas nos autos do

processo pelas partes litigantes, deixa de apreciar devidamente, por meio do

confronto adequado, as provas produzidas nos autos do processo, acometendo-se

de uma postura notadamente parcial.

Quem dá a explicação para a polêmica é Fredie Didier:

negação de prestação jurisdicional’ (RE 96.918, loc.cit.). Não está o juiz obrigado a examinar, uma a um, os pretensos fundamentos das partes, em todas as alegações que produzem: o importante é que indique o fundamento suficiente de sua conclusão, que lhe apoiou a convicção no decidir. De outra forma, torna-se-ia o juízo o exercício fatigante e estéril de alegações contra-alegações, mesmo inanes, ‘flatus voci’ inconseqüente, para suplício de todos; e não prevalência de razões, Isto é, capazes de convencimento e conduzindo à decisão” (RE-ED 97558/GO, Rel. Min. Oscar Corrêa, DJ 25.05.84, 1ª Turma, j. 27.04.1984, v.u.) . Original sem destaques. 602

LEMOS, Jonathan Iovane de. Garantia à motivação das decisões. Biblioteca Digital Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 17, n. 67, jul./set. 2009. Disponível em: http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow,aspx?idConteudo=62832. Acesso em: 10 de março 2010. 603

Segundo Maria Thereza Gonçalves Pero, “.... ao acolher fundamentadamente uma de duas teses contrapostas, é de lógica perceber-se que o julgador também deixa implicitamente claras as razões por que deixou de atender à outra, o que elimina a possibilidade de se considerar omissa a decisão que não menciona as razões do desatendimento... PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil... ob. cit., p. 96.

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Muitas vezes o magistrado, analisando os argumentos e provas trazidos ao processo, tende a realçar, em sua motivação, apenas aquilo que dá sustentação à tese vencedora. É bastante comum que o juiz, por exemplo, julgando procedente um pedido, fundamente sua decisão com base apenas, ou ao menos predominantemente, nos argumentos e provas produzidos pelo autor. Isso, porém, não é correto. É imprescindível que se indique também por que as alegações e provas trazidas pela parte derrotada não lhe bastaram à formação do convencimento. Trata-se de aplicação do princípio do contraditório, analisando sob a perspectiva substancial: não basta à parte seja dada a oportunidade de manifestar-se nos autos e de trazer as provas cuja produção lhe incumbe; é necessário que essa sua manifestação, esses seus argumentos, as provas que produziu sejam efetivamente analisados e valorados pelo magistrado. Além disso, o julgador deve expor na sua decisão os motivos por que tais argumentos e provas não o convenceram604.

Vale dizer, na hipótese acima debatida, por falta de uma postura imparcial na

valoração das provas, não há que se falar em motivação implícita605. Ressalte-se,

por oportuno, que essa praxe forense põe em xeque o princípio da livre convicção

motivada606.

Verdade seja dita, por essa razão é que o estudo do princípio da motivação é

de capital importância; o juiz aí exerce uma de suas funções primordiais: dar solução

definitiva ao litígio com a segurança e a justiça necessárias à pacificação social.

Uma outra questão, porém simplória: a adoção da súmula vinculante dispensa

o magistrado de piso ou mesmo os diversos tribunais superiores de motivar a

decisão judicial? Na verdade, seja em que hipótese for – de adoção ou não da

súmula vinculante –, o magistrado terá que cumprir seu dever constitucional de

fundamentar sua decisão.

604

DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil... ob. cit., p. 230. 605

“Aceitar a motivação implícita em matéria de apreciação de provas não pode chegar às raias de permitir valorações que sejam – ou possam aparentar ser – arbitrárias e unilaterais. Em virtude da discricionariedade que lhe é reservada, o julgador não fica preso a qualquer versão e, como regra geral, nem obrigatoriamente deve prestar a mesma importância e a nenhum dos pontos à sua disposição, mas a declaração e os fundamentos de sua irrelevância, nesses casos, devem estar expressos...”. PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil... ob. cit., p.104. 606

Em síntese apropriada, Rui Portanova expõe o seguinte: “O mesmo sistema jurídico que dá ao juiz o poder de livremente convencer-se, dando às normas a interpretação que entender mais adequada, atribuindo valor às provas dos autos, enfim concedendo direito e impondo deveres conforme seu sentimento, o mesmo sistema, repetimos, impõe ao juiz o dever de motivar sua convicção, justificando às razões que determinaram o julgamento”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil... ob. cit., p. 247.

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Assim, quando entender que súmula é aplicável ao caso concreto, o

magistrado “terá que demonstrar quais as bases fáticas que assemelham o caso que

tem em mãos autorizadoras da aplicação da súmula, da mesma forma que hoje o

juiz precisa explicitar o motivo pelo qual os fatos se subsumem à lei” 607

.

Ou, na lição de Didier:

Com a possibilidade de edição pelo STF, de “súmula vinculante” em matéria constitucional (conforme art. 103-A da CF, acrescentado pela EC 45/2004 e regulamentado pela Lei Federal n. 11417/2006), parece ser lícito ao magistrado, simplesmente, fazer alusão à súmula, quando da análise da questão de direito, mas deverá, antes, demonstrar se e de que modo a situação concreta que lhe é posta para julgamento se encaixa na hipótese sobre a qual versa a referida

súmula608.

Em relação aos tribunais, o mesmo Didier adverte que, “como dispõe o

Regimento Interno do STF, a citação de qualquer enunciado da ‘súmula’, pelo

número correspondente, dispensará, perante o Tribunal, a referência a outros

julgados no mesmo sentido (102, § 4º)” 609. Melhor dizendo, os tribunais não

necessitarão fazer referência aos precedentes que compuseram a súmula, posto

que a indicação do número do enunciado para tanto já é suficiente. Mas as razões

continuam sendo necessárias.

Importa ainda ressaltar que o controle das decisões judiciais não se cinge

somente no âmbito interno do processo, como já antedito aqui, de forma en passant.

Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição concede à população os

instrumentos necessários para fiscalizar a atuação daqueles que integram o

governo610. Decerto, pois se todo poder emana do povo e em seu nome é exercido,

é corolário que ao povo tenha sido igualmente outorgado o direito de fiscalizar

qualquer poder instituído.

607

AZEVEDO, Marco Antonio Duarte de. Súmula vinculante... ob. cit., p. 111. 608

DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.... ob. cit., p. 233. 609

DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.... ob. cit., p. 233. 610

Cf. art. 5º, LXXIII, da CF/88: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular...”.

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Deveras, no atual contexto democrático, o Poder Judiciário, ao lado dos

outros dois poderes do Estado, tem responsabilidade idêntica na defesa e

consecução dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil611.

Disso resulta claro que não se pode mais analisar a garantia da motivação

das decisões como técnica processual que visa unicamente atingir objetivos

endoprocessuais, do tipo a proporcionar às partes as razões postas pelo juízo, a fim

de poderem, com isso, exercer o direito recursal e permitir que os órgãos colegiados

judiciários possam examinar com acuidade necessária a imparcialidade (justiça) das

decisões recorridas.

Embora o povo não possa impor ao magistrado suas razões e valores, de

forma a influir diretamente na motivação do juízo, é indiscutível o reconhecimento de

que os destinatários da decisão não são unicamente formados pelo bloco fixo

composto das partes litigantes e juízes de segundo grau, mas por toda a estrutura

que integra a sociedade, porque também a comunidade deseja constatar se os

órgãos jurisdicionais estão decidindo com imparcialidade; melhor dizendo: se estão

cumprindo com o seu papel de instituição ou poder democraticamente vinculado à

soberania popular. Diante da clareza da cena de fundo em que contracenam os

atores políticos, já não se pode recusar a realidade subjacente: o Judiciário faz

política por meio das suas decisões judiciais612 613.

Em tom agudo, Michele Taruffo expõe assim sua visão sobre a influência

externa que as decisões judiciais modernas trazem em seu bojo:

A decisão judiciária não é microcosmo fechado ou uma mônade que encontra em si mesma as suas razões e exaure, somente, em si mesma, os seus efeitos. Se assim fosse, encontrar-se-ia novamente, na específica e particularística solução do caso síngulo, que bem poderia ser, absolutamente, arbitrária. Isso, porém, acontece – pelo menos – nos ordenamentos modernos inspirados nos princípios da legalidade – pois, espera-se que cada decisão possa se inserir seja no contexto geral do ordenamento globalmente considerado, seja como fluxo dinâmico da interpretação das normas. Essa tendência, em ser parte de um contexto mais amplo, implica que a decisão judiciária, por ser cultural e socialmente aceitável, deve possuir ulteriores características em relação àquelas que definem a sua

611

NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306. 612

NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306. 613

É claro que não se está falando aqui da política partidária, mas da política “resultante de incursão nunca antes admitida em temas sensíveis à condução da política nacional”. NALINI, José Renato. A rebelião da toga... ob. cit., p. 306.

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formal validade e a sua coerência interna. Isso equivale a dizer que a atividade criativa do juiz não se exaure em atos decisórios de caso a caso e isolados, mas deve conectar-se – para resultar aceitável – a parâmetros de ordem mais geral, em certo sentido ‘externos’, no que diz respeito ao contexto específico da decisão única614.

Ora, ao fazer política o Judiciário impõe a si próprio uma nova postura perante

a sociedade: buscar a legitimação necessária da população para as suas decisões.

E como fazer isso acontecer em um panorama institucional político-democrático no

qual o povo não tem o direito de eleger os componentes do Poder Judiciário, é que é

o grande desafio.

A bem da verdade, não se quer aqui, incutir a noção de que o magistrado

está, a partir de agora, obrigado inexoravelmente a buscar o apoio incondicional da

população sempre quando chamado a decidir. Não se defende aqui o ponto de vista

muito difundido de que o magistrado deve também julgar a lide “jogando para a

platéia” ou mesmo tratando de colher nas ruas o direito eventualmente lá

encontrado; ou ainda, que suas decisões sejam reflexas de pesquisas de opinião. O

que se propõe é que, diante do contexto atual do Estado Democrático de Direito,

com o fortalecimento e importância dos direitos fundamentais, e em face de uma

crise na estrutura do texto legal, consequência aparentemente inevitável de uma

sociedade que impõe ao legislador leis as mais flexíveis possíveis615 – compostas de

cláusulas gerais e conceitos indeterminados –, a fundamentação das decisões “não

pode bastar-se apenas com o plano da justificação interna, devendo também chegar

ao domínio da justificação externa” 616.

614

TARUFFO, Michele. Legalidade e justificativa da criação judiciária do direito. Recife: Revista da Esmape, vol. 6, nº 14, p. 431-456, jul./dez., 2001, p. 446. 615

Em relação à “crise da legislação”, Michele Taruffo revela o seguinte: “É conhecido, por todos, que o modelo do legislador simples, claro, racional e coerente desapareceu há tempo (admitindo que tenha já existido na realidade, além de nos sonhos dos filósofos). Em todos os ordenamentos, a produção normativa tornou-se imensa, descontrolada, incoerente, invasora, fragmentária, variável. Além disso, devido à fortíssima aceleração das mudanças econômicas e sociais, a intervenção do legislador está sempre, e mais frequentemente, em atraso no que diz respeito à evolução dos fatos que desejaria disciplinar(...). As lacunas aumentam porque o legislador está sempre em menores condições de regular, tempestiva e eficazmente os fenômenos econômicos, sociais e culturais (os exemplos podem ser milhares, desde os problemas da bioética aos da tutela do consumidor). As antinomias aumentam porque é uma legislação que escapou a qualquer controle, só pode conter um sempre crescente número de contradições internas, de todo tipo”. TARUFFO, Michele. Legalidade e justificativa... ob. cit., p. 441. 616

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional... ob. cit., p. 248.

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Nesse contexto, Maria Thereza Gonçalves Pero relata caso emblemático

ocorrido na Capital de São Paulo, em que um médico autorizou uma paciente a se

submeter ao aborto, mediante parecer clínico, no sentido de que o feto gestado era

portador de anencefalia:

O tema despertou o interesse de pelo menos a maioria da população. A primeira questão que todos procuraram esclarecer, ao tomar conhecimento da notícia, foi: ‘quais foram as razões que levaram esse juiz a autorizar tal intervenção?... a autorização foi dada em consideração a alguma circunstância especial?”. Ainda, para a referida autora, o juiz, ao fundamentar sua decisão na interpretação da norma penal em confronto com a intenção do legislador e os métodos e os recursos de que dispõe a medicina moderna, simplesmente apresentou razões suficientes para que a decisão fosse aceita pelo povo em geral, sem que dela, da decisão, se pudesse dizer que houvesse ofendido qualquer princípio constitucional. E concluiu: “Não se pode negar ter havido aí um verdadeiro controle difuso sobre a decisão. Não um controle da decisão, mas sobre a decisão proferida. Se os motivos inexistissem ou deixassem transparecer uma ilegalidade, se ferissem o sentimento natural do povo ou a lei que este soberanamente impôs, por meio do poder competente, o clamor seria intenso. Certamente todos os veículos da imprensa e as pessoas, por seu intermédio, teriam se manifestado de maneira contrária à decisão, e com todo direito, pois, como já se afirmou anteriormente, cada indivíduo, mesmo os que não integram o processo como parte ou terceiro interessado, assim como a sociedade, como um todo, têm também interesse, em tese, em examinar as decisões judiciais que são

proferidas, sendo seus julgados naturais 617.

Como se vê, em face da presente evolução do Estado – Democrático de

Direito –, tem força a assertiva de que o princípio da motivação das decisões

judiciais é “expressão do princípio da participação popular na administração da

justiça” 618 619.

Nesse sentido, está plenamente configurada a função extraprocessual ou

política que caracteriza o princípio das motivações das decisões judiciais no atual

estágio do Estado Democrático de Direito.

617

PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil... ob. cit., p. 66 e 67. 618

PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil... ob. cit., p. 6. 619

Ainda na dicção de Uadi Lammêgo Bulos: “O pórtico constitucional já não se dirige, apenas, às partes e aos juízes de segundo grau, mas também à comunidade como um todo, que, tomando conhecimento do teor de uma decisão, poderá verificar se o juiz foi imparcial em sua sentença, se decidiu com conhecimento de causa”. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada... ob. cit., p. 868.

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3.2.3 – A importância dos precedentes na fundamentação da decisão judicial.

Ao ser elevado a cânone constitucional na Carta Magna de 1988, o princípio

da motivação das decisões judiciais passou a ser cobrado pelos jurisdicionados e

pela sociedade, a rigor, como sinônimo de controle da imparcialidade do magistrado.

Imparcialidade que representa, por certo, o Estado Democrático de Direito, porque

só é imparcial quem não se porta de maneira arbitrária. E o arbitrário é postura

característica da administração que pertence a Estados que não respeitam as

instituições democráticas.

Logo, a consequência primordial do panorama atual do controle do princípio

das motivações das decisões judiciais é hoje uma cobrança maior de toda sociedade

sobre o apuro da fundamentação apresentada pelo juiz em sua decisão. É que a

necessidade de motivação das decisões judiciais há muito deixou de ter função de

simples controle endoprocessual – ou seja, a ensejar que no segundo grau a parte

vencida possa validamente rediscutir a sentença primária nas instâncias superiores

– para desempenhar, nos governos democráticos, indiscutível função política.

Função essa inegavelmente constatada na necessidade de se fiscalizar um Poder

democraticamente instituído. Com efeito, é a motivação das decisões judiciais que

irá fornecer à população o instrumento mais adequado de controle sobre a efetiva e

democrática postura imparcial do julgador.

O elevado número de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, inseridos

sem distinção em praticamente todos os códigos e legislações extravagantes

nacionais, aliado às imprecisões técnicas, bem ao estilo de um Poder Legislativo,

por demais desqualificado e, porque não dizer, cada dia mais distante dos interesses

da população, acabam devolvendo ao Poder Judiciário uma obrigação ingente que

não pode ser vilipendiada pela utilização simplória e muitas vezes

descompromissada dos precedentes jurisprudenciais.

Como posto em relevo nos parágrafos anteriores, o sistema jurídico nacional,

muito embora ainda fortemente baseado na lei escrita, notadamente com grande

ênfase ainda para o método da codificação, tem demonstrado uma permeabilidade

notável à influência do stare decisis oriundo do common law e, por consequência, à

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utilização dos precedentes judiciais na fundamentação das sentenças judiciais. Essa

façanha, digna de elogios, aliás, haja vista o clamor da sociedade para que o Poder

Judiciário apresente respostas jurídicas semelhantes para casos iguais, importa na

análise de um problema fundamental: no instante de fundamentar a decisão com

base em precedente judicial, tem o magistrado brasileiro exercido seu mister

adequadamente? Ou seja, os nossos magistrados estão devidamente preparados

tecnicamente para utilizar de forma satisfatória os precedentes na fundamentação

das decisões judiciais? E mais: o que tem levado especificamente os juízes muitas

vezes a desprezar praticamente o texto da lei, para buscar direto um precedente

semelhante ao caso concreto? A facilidade de pesquisa eletrônica disponível nos

diversos sites de jurisprudência, aliada à pressão pura e simples pela agilização das

decisões, por conta do estabelecimento de metas relacionadas com produtividade,

podem representar as causas dessa conjuntura? Ou, é a certeza do desprestígio do

julgamento de primeiro grau, dado pelos jurisdicionados, em face de um sistema

jurídico que valoriza sobremaneira o princípio do duplo grau de jurisdição, a razão

primordial do panorama descrito?

Na verdade, são muitas as questões, sendo difícil responder a todas

objetivamente. O que se pode dizer é que muitos desses questionamentos partem

de um intricado problema a se discutir no tocante ao nosso sistema jurídico. Por

exemplo, ninguém levanta a voz contra quem afirma que as decisões de primeiro

grau precisam ser prestigiadas pelos operadores do direito. Afinal, é notório que na

quadra atual de nossa história, as sentenças de primeiro grau têm assumido

“características de decisão intermediária, algo como um despacho saneador

qualificado, necessário para ensejar a apelação” 620, merecendo, realmente, melhor

prestígio.

Ora, se é assim, maior é a razão para que se defenda que a utilização dos

precedentes não seja feita açodadamente, de forma irresponsável, ou mesmo de

maneira aleatória, sem ao menos uma pesquisa séria sobre a ratio decidendi do

paradigma a ser escolhido para servir de norte ao julgador, caso contrário as

inovações legislativas que visam valorizar os precedentes no nosso sistema jurídico

não obterão o efeito desejado.

620

BENETI, Sidnei Agostinho. Doutrina de precedentes e organização judiciária... ob. cit.

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Na práxis judiciária, como já debatido, é comum observar julgados que são

utilizados como se precedentes fossem, onde, na ementa, de forma genérica, o caso

até parece se assemelhar ao debatido nos autos, mas quando se procede à análise

proficiente dos termos do acórdão paradigma — melhor dizendo: da ratio decidendi

—, constata-se que os fatos postos em confronto estão em total desacordo entre si.

Ou seja, o procedente é inservível para fundamentar a decisão.

Nesse sentido, é imperioso destacar a lição de Marinoni:

O significado de precedente não é atingido apenas mediante a sua diferenciação dos conceitos de decisão, súmula, etc., mas também a partir da consideração dos seus conteúdos e, especialmente, das porções que, em seu interior, identificam o que o tribunal realmente pensa acerca de dada questão jurídica. De outra parte, é vital saber usar o precedente, identificando-o como algo que, ao mesmo tempo que orienta as pessoas e obriga os juízes, não imobiliza as relações sociais ou impede a jurisdição de produzir um direito consentâneo com a realidade e com os novos tempos621.

A questão se torna também séria quando muitas vezes o juízo de primeiro

grau utiliza um único precedente para fundamentar sua decisão que sequer compõe

ou faz parte da jurisprudência dominante do tribunal superior.

Então, se é assim, não basta apenas entender as razões pelas quais os

magistrados se empenham em utilizar-se dos precedentes na fundamentação de

suas decisões, mas principalmente, compreender o processo do raciocínio

elaborado pelo magistrado sentenciante. Nesse passo, importa saber, por exemplo,

em quais circunstâncias o julgador deve se valer do precedente para fundamentar

sua decisão. Aqui, no bojo desse questionamento, duas outras problemáticas estão

instaladas: o raciocínio lógico-dedutivo ainda pode ser utilizado pelo juiz? Se há uma

ampla discricionariedade que o legislador tem ofertado aos magistrados, qual o

limite, então, a ser imposto à criatividade judicial?

621

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 214.

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3.2.4 – Decisão logicamente deduzida versus decisão fundamentada.

Por certo, fundamentar uma decisão não é a mesma coisa que explicá-la

simplesmente. Ao fundamentar a decisão, o juiz deve expor de modo criterioso as

razões pelas quais está plenamente convencido de que determinada prova

demonstra coerência com o fato descrito na inicial. O julgador não tem que

convencer ninguém; juiz não é advogado. O que o juiz necessita é demonstrar, por

meio das razões expostas em sua decisão, que está plenamente convencido do seu

juízo. Via de consequência, a legitimação popular estará sufragada.

Ora, daí exsurge a importância de que, no processo racional da

fundamentação, o magistrado tenha plena consciência da distância que separa a

ratio decidendi do obter dictum622.

Do que já foi dito, não deve ter espaço na práxis forense a postura do

magistrado que, ao fundamentar sua decisão, tão somente explica que assim o faz

por haver tal hipótese discutida nos autos incidido nessa ou naquela norma legal.

Vale dizer, sabendo-se que nos dias atuais, gradativamente, aumenta o número de

leis que são redigidas com normas com duas ou mais acepções — até porque o

legislador persiste no intento de elaborar o texto legal com um crescente apanhado

de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, como aqui já debatido —, cujo

sentido há que ser dado pelo julgador, é possível concluir que, “quando o juiz disser

que julga de tal ou qual modo porque esse é o sentido da norma aplicável, ele ainda

não forneceu nenhum fundamento válido à sentença” 623.

Ora, se em um panorama não muito distante, a fundamentação já não se

esgotava na citação literal do dispositivo de lei aplicável ao caso, nos dias atuais,

então, diante dos vários textos legais que podem reger determinado fato, é forçoso

622

“A ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão: a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso concreto...Já o obter dictum (obter dicta, no plural) consiste nos argumentos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão...sendo apenas algo que se fez constar “de passagem”, não podendo ser utilizado com força vinculativa por não ter sido determinante para a decisão”. DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.... ob. cit., p. 233-234. (os destaques constam do original). 623

SILVA, Ovídio Baptista da. Fundamentação da sentença como garantia constitucional... ob. cit.

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reconhecer que gera perplexidade as duas posturas muito comuns ainda adotadas

pelos magistrados: (i) sentenciar informando simplesmente qual a norma aplicável

ao caso; e (ii) decidir a demanda utilizando aleatória e exclusivamente um ou outro

precedente judicial.

Numa assertiva precisa: como tem predominado no nosso sistema jurídico a

preferência pelo legislador de elaborar textos legais cuja linguagem é

essencialmente ambígua624, a fundamentação das decisões não pode ser reduzida a

um apanhado de citações normativas ou jurisprudenciais, ou, muito menos, como

assinala Michele Taruffo, “de uma simples concatenação de silogismo, porque o

raciocínio justificativo é de algum modo mais complexo, rico, flexível, e aberto, ao

emprego de elementos persuasivos dos topoi da ciência jurídica e dos precedentes

judiciários” 625.

Assim igualmente adverte Ovídio:

É mais freqüente do que se imagina depararmo-nos com decisões judiciais, cuja fundamentação preocupa-se em mostrar a preferência do juiz por uma das versões probatórias, ou por uma das incontáveis possibilidades de interpretação jurídica da norma, sem que ele, no entanto, examine criticamente as versões que a infirmem, para mostrar as razões pelas quais as desmerecera.

É comum verem-se sentenças fundamentadas, esquematicamente, mais ou menos assim: ‘A’ alegou tais e tais razões, tendo provado os seguintes fatos. Entretanto, considero que a prova contrária fornecida por ‘B’ é a que reflete a versão verdadeira dos fatos.

Em geral, para chegar a essa falsa motivação, o julgador estende-se em argumentos jurídicos, tentando justificar a decisão que lhe pareceu a mais justa. Costuma trazer, em seu apoio, doutrina e jurisprudência, além de proceder à análise da prova que favoreça a conclusão por ele ‘livremente’ escolhida, esquecendo-se, porém, de examinar criticamente a versão contrária, para mostrar sua inconsistência, seja quanto aos fatos alegados pelo sucumbente, seja quanto a sua fundamentação jurídica” 626.

O apuro como essas questões são abordadas por juristas de escol, somente

demonstra o quanto é atual e séria a problemática da fundamentação das decisões

judiciais, nada obstante o descaso com que são enfrentadas no dia a dia pelos

624

SILVA, Ovídio Baptista da. Fundamentação da sentença como garantia constitucional... ob. cit. 625

TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz... ob. cit., p. 179. 626

SILVA, Ovídio Baptista da. Fundamentação da sentença como garantia constitucional... ob. cit.

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operadores do direito, mormente pelos tribunais superiores que, sob justificativas

várias, em especial o princípio instrumental do processo, muito raramente anulam

uma sentença por falta ou insuficiência de fundamentação. Aliás, num verdadeiro

paradoxo, aos tribunais superiores parece bastar que a conclusão da decisão

decorra lógica e adequadamente das premissas fáticas para ser considerada

praticamente de origem demoníaca a voz que clama pela nulidade a decisão

proferida nesses termos sem a adequada fundamentação.

Com o momento decisivo e inovador que começamos a vivenciar, ou seja,

com a utilização constante — mas nem sempre precisa — dos precedentes, a

tendência poderá ser o agravamento da crise do Poder Judiciário, já que é

conveniente lembrar que o número de recursos tende a aumentar na proporção em

que cresce o número de decisões judiciais mal fundamentadas627.

Quem sintetiza bem o problema é Maurício Ramires

A aplicação desse “raciocínio distorcido” amiúde se dá da seguinte forma: o juiz escolhe “livremente” (leia-se arbitrariamente) uma das interpretações trazidas pelas partes, e a seguir a “confirma” com uma rápida e simples busca em alguns dos vários repertórios eletrônicos de jurisprudência, selecionando julgados que convêm à tese (e que passam a constar da decisão) e ignorando os que a infirmam (e que não são sequer mencionados). O resultado dessa operação é uma decisão não fundamentada e, portanto, nula do ponto de vista constitucional628.

Uma questão será adicionada aqui propositadamente para instalar nova e

relevante polêmica: nada obstante tudo que foi analisado até o presente instante, a

627

Segundo Ovídio Baptista da Silva, “Ninguém ignora que nosso sistema recursal, além de outros defeitos, mostra-se submisso aos pressupostos do racionalismo, compreendendo o direito apenas como ‘norma’, distante dos ‘fatos’, que é a premissa de todos os normativismos modernos. O que nem todos têm presente é que estamos convivendo com um momento crucial do que se convencionou chamar de crise do Poder Judiciário, no capítulo dos recursos, causada por decisões, sentenças e acórdãos despidos de fundamentação, ou ostentando fundamentação precária ou insuficiente. É compreensível que assim o seja, tendo em conta a elevada e sempre crescente litigiosidade que caracteriza a cultura do capitalismo competitivo e individualista. Entretanto, é correto dizer que o número de recursos aumenta no proporção em que aumente o número de provimentos judiciais carentes de fundamentação. O resultado inverso também é verdadeiro: quanto mais bem fundamentado o ato jurisdicional, tanto menor será o número dos recursos que o podem atacar”. (os negritos não constam do texto original). SILVA, Ovídio Baptista da. Fundamentação da sentença como garantia constitucional... ob. cit. 628

RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação do precedente... ob. cit., p. 46.

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argumentação jurídica – base para a fundamentação do julgado – apresentada pelo

magistrado na forma de raciocínio silogístico está realmente fadada ao desuso?

Segundo Neil MacCormick, muitos autores se sentem incomodados, e até

mesmo demonstram-se hostis, ante a ideia de que a argumentação jurídica possa

ser feita por meio do processo lógico-dedutivo629. Não é para menos, diante do que

ficou demonstrado anteriormente, o que representa para boa parte da doutrina a

utilização desse tipo de raciocínio nos dias atuais.

O método dedutivo, todavia, pode ser considerado como o método eficiente

para contribuir inclusive com a pretensão de estabilidade das decisões, tornando o

sistema previsível da mesma forma que se pretende com a utilização dos

precedentes na fundamentação de um julgado.

Se temos um sistema jurídico praticamente baseado na lei escrita (muitas

vezes codificada), com precedentes dos mais variados matizes, que ainda não

obtiveram finalmente o status de vinculantes, a utilização de um raciocínio dedutivo

das regras válidas não pode soar de todo absurdo.

Na época oitocentista, como não se admitia a concepção de normas

indeterminadas (como parece sói acontecer hoje em dia), a escola exegética

desconhecia outra forma de aplicação do direito senão aquela que fosse originária

de um raciocínio lógico-dedutivo. Posteriormente, percebeu-se que o direito

comportava necessariamente criação e realização de valores, no que se ampliou

decisivamente a atividade judicial, sujeitando praticamente a aplicação dedutiva pura

e simples da letra da lei ao anátema. Ou seja, não faz algumas dezenas de anos,

criticava-se aberta e desafetuosamente o sistema pela estreiteza que a exegese

dogmática impunha ao magistrado, ao mesmo tempo em que se requeria do

legislador textos compostos de normas jurídicas abertas, flexíveis, conceitos

indeterminados e cláusulas gerais, que permitissem a aplicação ao caso concreto da

justiça; agora, com essa flexibilidade olímpica dos conceitos textuais da lei, discute-

se o limite a ser imposto ao magistrado.

629

MAcCORMICK, Neil. La argumentación silogística: uma defensa matizada. Doxa, Cuadernos de Filosofia Del Derecho, 30, 2007, p.321-334,: <http://descargas.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12476288760181621132679/035341.pdf?incr=1>. Acesso eletrônico em 11.01.2011.

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Deveras, todos os novos mecanismos processuais de uniformização da

jurisprudência levados a efeito pelo legislador, através das últimas reformas do

CPC630, têm sido considerados, no plano geral, como úteis para o fim de limitar o

que hoje se pode denominar de excesso criativo por parte dos magistrados.

O que se tentará pôr em discussão adiante é se o magistrado pode ainda

decidir seguindo os critérios precisos da lei (quando, por óbvio, esses forem

realmente precisos), ou está irremediavelmente forçado a decidir baseado mesmo

numa interpretação criativa conquistada, como se sabe, à custa de uma oferta

considerável de espaço concedido à jurisdição por parte do legislador. Ou, de outra

forma: o procedimento dedutivo-lógico não representa uma forma de legitimar uma

série de escolhas previamente feitas pelo magistrado diante do caso concreto?

Ao que tudo indica, as críticas endereçadas à concepção silogística de

fundamentar a decisão, parecem, pelo visto, voltadas muito mais à sua insuficiência

do que a sua inutilidade631, afinal de contas, se válida uma norma, “não se pode,

diante de um texto legal que não comporta minimamente na sua letra uma

determinada interpretação, usar um parâmetro mais claro a ponto em que se

reescreva um novo texto para adequar a norma que se pretende aplicar” 632 633 634.

A propósito da questão aqui posta, Lenio Streck traz exemplo interessante,

demonstrando o quanto tem sido exagerada a postura criativa dos aplicadores do

direito nos dias atuais. O autor cita a “interpretação” dada por juristas, e pelo próprio

Superior Tribunal de Justiça, em relação à inovação legislativa imposta através do

630

Segundo Tereza Arruda Wambier, “muitos dispositivos, como, por exemplo, os arts. 557, 544, §§3º e 4º, 518, § 1º, 285-A, 543-B e 543-C do CPC, são sintomas de que a nossa lei processual está caminhando no sentido de proporcionar condições para que haja uniformidade da jurisprudência num grau socialmente desejável. O mesmo se pode dizer relativamente à repercussão geral e a súmula vinculante”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. São Paulo: Revista de Processo, ano 34, n.172, p. 121-174, jun./2009. Revista dos Tribunais, p. 146. 631

BELTRÁN, Jordi Ferrer. Considerações sobre o conceito de motivação das decisões... ob. cit., p. 299. 632

RAMOS, Elival da Silva. Consultor Jurídico... ob. cit. 633

No mesmo sentido, Teresa Arruda Wambier: “Em casos ‘fáceis’, do dia-a-dia (como categoria diferente da dos hard cases) não deve o juiz exercer criatividade alguma. Se o fizer, estará comprometendo o Estado de Direito. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito... ob. cit., p. 143. 634

Para o jurista argentino Ricardo Lorenzentti, “existindo uma regra válida aplicável, este passo deve ser o início, porque a consequência de omiti-lo seria uma sentença contra legem”. LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p.159.

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art. 212 do CPP, que muitos — ao contrário do professor gaúcho — entendem

praticamente nada ter alterado do antigo sistema inquisitório processual penal:

Vejamos: o art. 212, alterado em 2008, passou a conter a determinação de que “as perguntas serão formuladas pelas partes, diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. No parágrafo único fica claro que “sobre pontos não esclarecidos, é lícito ao magistrado complementar a inquirição”. Consequentemente, parece evidente que, respeitados os limites semânticos do que quer dizer cada expressão jurídica posta pelo legislador, houve uma alteração substancial no modo de produção da prova testemunhal que o envolve, marcada pela opção do constituinte pelo modelo acusatório. Por isso, é extremamente preocupante que setores da comunidade jurídica de terrae brasilis, por vezes tão arraigados aos textos legais, neste caso específico ignorem até mesmo a semanticidade mínima que sustenta a alteração. Daí a minha indagação: em nome de que e com base em que é possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa aprovada democraticamente? É possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição constitucional?

Parece que, no Brasil, compreendemos de forma inadequada o sentido da produção democrática do direito e o papel da jurisdição constitucional. Tenho ouvido em palestras e seminários que “hoje possuímos dois tipos de juízes”: aquele que se “apega” à letra fria(sic) da lei (e esse deve “desaparecer”, segundo alguns juristas) e aquele que julga conforme os “princípios”(esse é o juiz que traduziria os “valores” – sic – da sociedade, que estariam “por baixo” da “letra fira da lei”). Pergunto: cumprir princípios significa descumprir a lei? Cumprir a lei significa descumprir princípios? Existem regras (leis ou dispositivos legais) desindexados de princípios? Cumprir a “letra da lei” é dar mostras de positivismo? Mas, o que é ser um positivista?

....

E, permito-me insistir: por vezes, cumprir “a letra da lei” é um avanço considerável. Lutamos tanto pela democracia e por leis mais democráticas...! Quando elas são aprovadas, segui-las à risca é nosso dever. Levemos o texto jurídico a sério, pois!

....

Obedecer “à risca o texto da lei” democraticamente construído (já superada a questão da distinção entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga (positivismo primitivo) 635.

635

STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? Revista NEJ – Eletrônica, vol. 15, n.1, p.158-173, jan.-abr./2010. <https:/www6.univali.br/seer/índex.php/nej/article/viewFile/2308/1623>. Acesso em 14.12.2010.

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Por essa e outras razões é que para o autor argentino, Ricardo Lorenzetti, o

ideal não é o magistrado excluir métodos de raciocínio judicial, mas sim

complementá-los, porque, no seu entendimento, “a complexidade é tal que se deve

recorrer a todos eles”636

. E propõe como norte para os magistrados a seguinte

ordem de raciocínio no momento de decidir:

...entendemos que deve existir uma ordem no raciocínio, e este deve

ser sucessivo; primeiro, aplicar a dedução das regras válidas; segundo, controlar esse resultado conforme os precedentes, o resto do sistema legal e as conseqüências; terceiro – e se restarem problemas, estaremos diante de um caso difícil –, deve ser aplicada a solução baseada em princípios; quarto, se houver paradigmas que definam a solução, serão explicados, devendo ser procurada a sua

harmonização637

.

Do que acima foi exposto, importa, antes do mais, destacar que, para o autor

argentino, a sequência dos passos enumerados significa que a sua tese se

contrapõe não só àqueles que entendem que somente são aplicáveis os critérios

pessoais ou políticos para decidir, mas também aos racionalistas, já que o próprio

Ricardo Lorenzetti reconhece que a forma dedutiva de decidir é insuficiente e que há

critérios pessoais e políticos (paradigmas) necessários para se buscar a

harmonização do sistema jurídico, posto que a pura discricionariedade não deve ser

defendida de todo “numa sociedade que pretenda o cumprimento da lei, e onde os

cidadãos devem perceber com clareza as razões da decisão judicial” 638.

O jurista argentino afasta-se da linha que sustenta uma dogmática flexível ou

fluida de tal maneira que todos os casos seriam difíceis – ou passíveis de

interpretação – a ponto de se resolverem com base nos princípios. Nesse ponto, ele

se aproxima do entendimento esposado por Neil MacCormick, no sentido de que os

casos fáceis são a regra, e os casos difíceis a exceção639. Segundo essa concepção,

A maioria das situações é resolvida com base no raciocínio dedutivo de uma norma válida (requisito de validade) e aceita (norma de reconhecimento). Os casos difíceis são aqueles em que se detectam dificuldades no elemento normativo (determinação da norma

636

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 157. 637

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 157. 638

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 157. 639

É o próprio Ricardo Lorenzetti que, em nota de rodapé na referida obra (p.158), admite tal assertiva.

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aplicável, interpretação), ou no fático (prova dos fatos) ou na dedução (qualificação) 640.

Em síntese, decidir com base na dedução pura e simples é a regra geral,

comportando como limites, é claro, pela sua própria insuficiência prática, diante da

complexidade do sistema legislativo, que produz os denominados hard cases. São

os casos de difícil solução que impõem o limite de aplicação ao processo dedutivo

de decidir.

A questão que se impõe agora é: o que são casos difíceis? À primeira vista,

casos de difícil solução passam a impressão de que estamos lidando com uma

dificuldade pessoal do magistrado ao elaborar uma decisão. Mas não é.

Assim, por exemplo, para Teresa Arruda Alvim Wambier, os casos difíceis

(hard cases) são aqueles cuja solução “não está clara no sistema (porque não é

evidente que a situação esteja abrangida pelos dizeres da lei) ou cuja solução não

foi formulada no sistema e, portanto, precisa ser inteiramente criada, com base, por

exemplo, em princípios jurídicos” 641. Ainda para a autora, é evidente que, “quando o

juiz decide com base tanto em um conceito vago, quanto numa cláusula geral, ele

cria direito, na medida em que formula uma regra para o caso concreto” 642.

Para Ricardo Lorenzetti, situações difíceis ocorrem basicamente

...quando não se pode deduzir a solução de modo simples da lei, porque há dificuldades na determinação da norma aplicável ou na sua interpretação;

...quando é necessário afastar-se da lei, porque ela é inconstitucional643.

640

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 158. 641

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade... p. 141. Ainda explicando sobre o que são os hard cases, a professora expõe que “hard cases, nos sistemas de common law, são, principalmente, cases of first impression, ou seja, a respeito dos quais não há precedentes. Mas são também aqueles mais complexos, em que o juiz faz escolhas. Os exemplos são muitos: seria ilícita a separação de gêmeos siameses, quando houvesse forte probabilidade da morte de uma deles?” (p.142). 642

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade... ob. cit., p. 143. 643

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 163.

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Nesse ser assim, fato é que difíceis não são os casos que o juiz

pessoalmente entenda assim, mas aqueles em que, efetivamente, ele necessita

recorrer ao processo de concreção para informar os valores presentes no texto legal.

Feitas tais ponderações, resta claro que a utilização pura e simples de

precedentes, como fundamento ou razão de decidir, escolhidos de forma aleatória e

assistemática, não substituem nem dispensam o magistrado de, nos casos de

absoluta simplicidade normativa, utilizar o processo dedutivo, de maneira a expor

com detalhes as razões pelas quais julga desse ou daquele modo a lide. A se agir

do contrário, como, aliás, vem sendo gradativamente observado na praxe forense,

os juízes somente estarão contribuindo para elevar ainda mais a dispersão da

jurisprudêncal — alimentada pela utilização equivocada e desnecessária de um

número elevado de precedentes —, agravando, com isso, o problema da aplicação

correta do princípio da motivação das decisões judiciais.

É bom dar aviso: não se está aqui condenando a utilização dos precedentes

como forma de justificar ou dar exemplo de um raciocínio ou ponto de vista

defendido, ou ainda como forma costumeira de corroborar uma posição doutrinária.

Trata-se de criticar excessos que não contribuem em nada para a celeridade e o

andamento dos processos644.

Como sem dificuldade se constata nos fóruns de todo país, seja diante de um

caso fácil ou difícil, o magistrado, após a elaboração de um relatório, imediatamente

procura socorro em um ou mais precedentes para “fundamentar” sua decisão, sem

ao menos lançar mão de um único argumento de sua própria lavra645. Ora, “se a

mera enunciação do artigo da lei não é suficiente para se registrar a observância ao

644

“Ademais a ciência de que o precedente guiará as decisões futuras dá ao juiz maior responsabilidade ao firmá-lo. Nessa perspectiva, importa a maneira como o precedente poderá ser utilizado e manipulado, especialmente pelas partes. Para evitar injustiças futuras, o juiz deve refletir sobre as repercussões do precedente, o que, evidentemente, atribui-lhe maior responsabilidade ao decidir. Todavia, a necessidade de cautela em relação ao futuro faz com que o juiz fique inibido de tratar o caso que no presente lhe é submetido de forma arbitrariamente diferenciada. Nesse sentido, o respeito aos precedentes também colabora para a garantia da imparcialidade”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 176. 645

“A propósito do julgamento do direito, é preciso que o juiz argumente, justificando as suas escolhas interpretativas, seja porquanto se atém às normas, seja pelo emprego dos precedentes. É, sobretudo, no contexto da justificativa, de fato, que se descobre, em toda a sua amplitude, o desenvolvimento dos argumentos interpretativos, que sustentam a individuação da regra de decisão”. TARUFFO, Michele. Legalidade e justificativa... ob. cit., p. 455.

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postulado da fundamentação das decisões judiciais” 646, com igual razão não poderá

ser aceita como válida decisão do magistrado que apenas cita os precedentes como

forma de justificar o seu entendimento. Ou seja, a argumentação jurídica é

negligenciada tanto nas questões simples quanto nas difíceis, porque para uma

parcela de magistrados basta utilizar o processo dedutivo como se a ementa do

precedente fosse texto de lei, fazendo-se, no mais das vezes, “boca da

jurisprudência”.

Daí porque Ricardo Lorenzetti defende que o magistrado comece sua

fundamentação utilizando o método dedutivo, aplicando uma regra formalmente

válida ao suporte fático que ela descreve647, para que não incorra na possibilidade

de decidir contra legem ou produzir norma arbitrária. Só em uma segunda fase de

seu raciocínio é que o próprio magistrado deve procurar controlar sua decisão

buscando apoio no precedente. Ou seja, se após o raciocínio dedutivo o magistrado

verificar que os precedentes aplicáveis ao caso concreto dão por solução diversa do

seu entendimento, então deverá assumir de duas posturas uma: ou aplica de

imediato o precedente, modificando decerto sua fundamentação, para adequá-la ao

caso paradigmático; ou insiste na defesa de seu raciocínio, mas tendo que arcar aí

com o ônus de uma profícua argumentação justificadora da não aplicação dos

precedentes, sob pena de proferir uma sentença arbitrária e injusta648.

É bem verdade que essa primeira postura a ser tomada pelo magistrado

requer, como já debatido – mas não é ocioso repetir – os pressupostos de clareza e

simplicidade do texto legal. Acontece que, diante da crise desses pressupostos, ou

seja, diante de leis cada vez mais ambíguas, recheadas de cláusulas gerais e

conceitos indeterminados, que obstam esse procedimento, outra saída não há para

o magistrado senão utilizar-se do juízo da concreção. Porém, o vezo de valer-se

aleatoriamente do precedente, com apoio em raciocínio subsuntivo, é utilizado pelos

magistrados também em casos difíceis, proporcionado um clima de insegurança

jurídica. Não é à toa que o número de embargos declaratórios não para de crescer

em nossos fóruns. Há, aí, evidente paradoxo: afinal, a utilização em maior grau de

precedentes na fundamentação das decisões e a imposição cada vez mais forte do

646

NOJORI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais... ob. cit., p. 121. 647

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 164. 648

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 164.

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nosso sistema para que eles sejam vinculantes e obrigatórios deveria diminuir os

casos de embargos de declaração649. Porém, isso não ocorre. E não ocorre porque,

no mais das vezes, o magistrado, ao julgar, apela para uma discricionariedade

sinônima de “escolha”. Dito de outra forma: no ato de julgar o juiz sentenciante opta

entre vários existentes aquele precedente que entende melhor se adapta a sua

“escolha”. Ora, quem escolhe age de forma parcial, arbitrária. Se ao juiz fosse dado

o direito de escolher o norte de sua decisão não precisava sequer argumentar.

Como circunstância agravante, tem-se presente o entendimento de parcela

respeitável da doutrina nacional que rechaça a noção de que é possível uma

decisão correta650 651.

Mas, reflita-se: essa crítica, muito embora adequada do ponto de vista

filosófico652, é dolorosa quando exposta ao jurisdicionado, que percebe facilmente

não haver um critério mínimo de correção que limite a interpretação jurídica

meramente subjetiva do magistrado653 654. Um limite, portanto, a tanta criação judicial

é essencial para que os cidadãos tenham percepção clara de que as decisões são

baseadas na igualdade e no Estado de Direito655.

Na melhor exposição de Luiz Marinoni,

649

Embora analisando pelo prisma hermenêutico-constitucional, Lenio Streck também entende que os embargos de declaração representam o sintoma de algo de muito errado ocorre no instante de julgar por parte de nossos juízes: “Tudo isso deve ser compreendido a partir daquilo que venho denominando de uma ‘uma fundamentação da fundamentação’, traduzida por uma radical aplicação do art. 93, IX, da Constituição. Por isso é que uma decisão mal fundamentada não é sanável por embargos (sic); antes disso, há uma inconstitucionalidade ab ovo, que a torna nula, írrita, nenhuma! Aliás, é incrível que, em havendo dispositivo constitucional tornando a fundamentação um direito fundamental, ainda convivamos – veja-se o fenômeno da ‘baixa constitucionalidade’ que venho denunciando há duas décadas – com dispositivos infraconstitucionais pelos quais sentenças contraditórias (sic), obscuras (sic) ou omissas (sic) possam ser sanadas por embargos...!”. STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Coleção o que é isto? Vol. 1. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. 650

Para Teresa Arruda Alvim Wambier é possível existir uma decisão melhor para cada caso. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade... ob. cit., p. 143. 651

As duas correntes são assim equacionadas por Lorenzetti: “nos casos difíceis há uma discricionariedade: Hart sustenta que ‘não há uma única resposta correta nos casos difíceis’, pelo que se produz uma ‘indeterminação normativa’. Nos casos difíceis há uma forma correta de decidir: nos casos difíceis o juiz não pode decidir como quiser, senão que deve ser guiado pelos princípios e aplicar o juízo de ponderação”. LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 163. 652

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 182. 653

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 182. 654

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 175. 655

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 182.

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ao permitir decisões díspares a casos iguais, o sistema estimula o arbítrio e a parcialidade. Se o juiz pode atribuir significados distintos a mesma norma, o juiz parcial está livre para decidir como lhe convier, bastando justificar as suas ações arbitrárias. Porém, quando está sujeito ao seu passado, isto é, ao que já decidiu, o juiz não pode, ainda que deseje, ser parcial ou arbitrário. Fica-lhe vedado decidir casos iguais segundo o rosto das partes. Lembre-se que MacCormick, em Rethoric and the rule of law, enfatiza a relação entre a necessidade de dar tratamento igual a casos similares e o princípio da imparcialidade. Segundo o recém-falecido teórico escocês, cuja produção jurídica teve e tem grande impacto na teoria do direito e na filosofia jurídica, decorre do princípio treat like cases alike ‘a ideia de um sistema jurídico imparcial que faz a mesma justiça a todos, independentemente de quem foram as partes do caso e de quem está julgando656.

Para Ricardo Lorenzetti

Aqueles que sustentam que não é possível encontrar um critério correto dentro do sistema de regras e princípios argumentam que o juiz ou o estudioso tem uma concepção prévia que o inclina a decidir de acordo com ela, qualquer que seja a norma.

Sob a perspectiva da lógica jurídica, quem se baseia somente em paradigmas dá preeminência ao contexto sobre a norma. O procedimento habitual é subsumir uma expressão legal em um contexto que lhe dá sentido, e que não é o ordenamento, senão o modelo de decisão adotado pelo intérprete de antemão. Isso é possível em um sistema de direito aberto, onde existem vocábulos que podem ser interpretados em sentidos muito diferentes. Não há dúvida que isso existe e faz parte do modo como são tomadas as decisões657.

Por tais razões é que, em casos simples, o juiz deve procurar seguir o

dispositivo da lei, utilizando-se para fundamentar sua decisão, do itinerário

elementar de subsunção, fornecendo, por meio de argumentação sólida, as razões

para o entendimento seguro de seu ponto de vista conclusivo; já naqueles casos

onde é evidente a dificuldade de solução, em face dos conceitos normativos

indeterminados ofertados pelo texto legal, o juiz, que se pretenda imparcial, tal qual

exige uma sociedade pluralista e complexa como a nossa, deve evitar expor suas

convicções pessoais em prol daquelas oriundas da maioria; ou seja: deve procurar

656

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... ob. cit., p. 175. 657 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial... ob. cit., p. 183.

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com acuidade na jurisprudência dominante — resultante do melhor precedente — o

freio justo e adequado para a sua criação judicial.

4. CONCLUSÃO

A Revolução Francesa pretendeu estabelecer uma ordem jurídica estável

diante de um regime anterior em que as monarquias absolutas detinham a

supremacia completa da estrutura do Estado. Com base nas contribuições de

filósofos da estatura de Hobbes, Locke e Montesquieu, os revolucionários franceses,

impondo-se ao povo como seus verdadeiros representantes, instalaram-se com

força necessária no Parlamento, desenvolvendo, via de consequência, todo um

arcabouço jusfilosófico a fim de justificar o fortalecimento daquela Casa. A vontade

do povo, portanto, na palavra de seus representantes no Poder Legislativo é que

tinha que prevalecer. O enorme prestígio de então do Poder Legislativo é que vai

explicar o fetichismo à lei com que os juristas da época lidavam com a exegese.

O que se verifica, porém, especialmente com o fim da Segunda Grande

Guerra (1945), é a busca da sociedade contemporânea pela realização dos direitos

sociais diante de uma comunidade mundial já caminhando a passos largos para a

globalização, mas economicamente ainda abalada com o pós-guerra e incapaz de,

com as estruturas anteriormente concebidas, consagrar o tão desejado bem-estar

social, haja vista que o Poder Judiciário ainda se apresentava composto, em regra,

por juristas doutrinados para aplicar o direito de forma positivista.

A crise da dogmática jurídica, que até então se avizinhava, se instala por

completo, a ponto de se verificar com desconforto a tensão existente entre os

conceitos estabelecidos de segurança e certeza e o valor atualizado de justiça que a

sociedade moderna já de muito reclamava.

Em poucas palavras: a supremacia do Parlamento já não se concilia com a

superioridade normativa da Constituição

Assim, fixados tais parâmetros, ou seja, de uma Constituição que se

apresenta dotada de supremacia jurídica em relação ao que é produzido

ordinariamente pelo Poder Legislativo, não só no aspecto formal, mas igualmente no

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plano material, força reconhecer que se tais postulados modernos não forem

observados, seguramente o serão pelos magistrados, que, na condição de agentes

políticos do Estado, estão encarregados de prestar resultados jurisdicionais, que já

não poderão mais ser resolvidos sem que se leve em conta novas concepções

hermenêuticas.

No tocante à hermenêutica, e considerando-se que a melhor forma de

aplicação do direito atualmente concretiza-se por meio de uma disputa de forças

entre diferentes correntes, pôde-se verificar uma variação entre extremos

radicalmente opostos durante os recentes séculos passados: de um lado a Escola

da Exegese, com todo o seu rigor positivista, como forma de transmitir segurança ao

direito; e de outro lado, movimentos como o do Direito Livre, por exemplo, muito

menos preocupado como a segurança, mas voltado para a valorização do sentido de

justiça no direito.

De outro norte, também restou pontuado que, no âmbito ainda da

hermenêutica jurídica, e em relação à prevalência de uma ou de outra teoria de

interpretação do direito, encontra-se subjacente uma disputa de forças entre os

poderes Legislativo e Judiciário, a ponto de se afirmar constantemente que

vivenciamos uma época de judicialização da política ou de politização do judiciário.

Em defesa da prevalência do Poder Legislativo está o discurso voltado para a

democracia, e porque não dizer, muitas vezes do positivismo puro e simples, sob a

alegação de que com isso se estaria privilegiando a vontade popular, por meio de

seus representantes legalmente eleitos pelo voto direto. Na segunda hipótese,

defende-se a maior ingerência do Poder Judiciário na condução política do Estado,

como guardião dos princípios plasmados na Constituição.

Isso tudo, porém, sem esquecer que, para alguns658, o que há por baixo de

toda essa polêmica é simplesmente uma crise do próprio Estado.

Na luta pela superação dessa crise, nota-se que o nosso sistema recursal não

está sendo mais reformado com base apenas nas razões de outrora (pacificação

definitiva do inconformismo natural do ser humano e controle dos desacertos dos

julgadores). Atualmente, mais do que nunca, o sistema recursal evolui visando

658

Cf. Eros Grau, em prefácio à obra de Lênio Streck: Hermenêutica jurídica e(em) crise...

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atender a outros reclamos do legislador: uniformização da jurisprudência – respeito

aos precedentes – e celeridade dos julgamentos.

Frustrada a possibilidade dos códigos de acompanharem as constantes e

rápidas transformações da sociedade moderna, o legislador tem procurado, por meio

dos microssistemas jurídicos, regular de maneira satisfatória os principais pontos de

entraves sociais. Tais circunstâncias ressaltam o quanto o peso dos códigos foi

redimensionado nos sistemas jurídicos atuais. A conduta do legislador de levar

adiante a recodificação é notória. A maneira como o Poder Legislativo encontrou

para dispor a recodificação tem sido redigir os textos normativos com uma tessitura

aberta, cuja inovação técnica tem como mais destacado expoente as cláusulas

gerais.

O aumento de poder criativo concedido aos magistrados por obra da técnica

legislativa das cláusulas gerais exige a elaboração de um sistema que valorize no

mais das vezes, e em alguns casos até mesmo imponha, o respeito aos precedentes

e evite uma acentuada dispersão jurisprudencial, que em medida de disparidade não

contribui para o aperfeiçoamento do direito. Ainda, um controle das decisões

judiciais por meio dos precedentes, valorizando o princípio da segurança jurídica,

evita que, na maioria dos casos, os magistrados decidam com base na sua

convicção pessoal. Daí que, a despeito da tessitura das cláusulas gerais, o sistema

não tem tolerado mais decisões cuja convicção pessoal do magistrado vai de

encontro ao consenso socialmente aceito em relação a certos standards de

comportamento. Muitas vezes, aliás, esse consenso social já está sedimentado por

obra da jurisprudência.

A força com que a jurisprudência e as súmulas dos nossos tribunais

superiores têm atraído a racionalidade dos aplicadores do direito revela que o

princípio da legalidade não subsiste único como primado de interferência na vida do

cidadão e da própria administração pública, na medida em que as decisões

baseadas nos precedentes obrigatórios também produzem direitos e obrigações

para pessoas naturais ou jurídicas, públicas ou privadas.

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Todo esse desenvolvimento jurídico como pano de fundo acentua a noção de

que estamos vivenciando uma rota de convergência entre as duas principais famílias

jurídicas do ocidente (civil law e common law) suficiente para admitir-se a

necessidade de uma nova teoria das fontes do direito.

Observa-se ainda na comunidade jurídica atual que os precedentes judiciais

têm sido uma ferramenta importante para o desenvolvimento e agilidade de nosso

sistema jurídico. Os juízes têm se utilizado bastante dos precedentes para

fundamentar seus julgados, e, ao que tudo indica, ao menos no plano das

aparências, na mesma medida e proporção com que os advogados têm se socorrido

das jurisprudências para embasar suas peças processuais, notadamente os

recursos.

Na prática, porém, sem maiores esforços, o que se verifica é que essa

utilização generalizada dos precedentes pelos aplicadores do direito não tem

produzido, no mais das vezes, a resposta adequada aos reais propósitos de

fundamentação ou embasamento do direito perseguido. Convém não deslembrar

que uma das funções do princípio da motivação das decisões judiciais é inibir uma

descontrolada inquietação criativa, além de exigir do julgador a exposição, no

julgado, de uma racionalidade argumentativa suficiente para dar a coerência e a

conformidade necessária da hipótese discutida com o sistema jurídico.

Por um lado, essa utilização exagerada dos precedentes pelos aplicadores do

direito tem difundido a falsa noção, de que qualquer um – quem sabe até mesmo, no

futuro, um supercomputador – pode fazer às vezes de um juiz ou advogado

bastando que, para tanto, tenha domínio das ferramentas eletrônicas dos sites de

busca de jurisprudências dos tribunais e, concomitantemente, tenha uma razoável

ideia do assunto posto em debate.

Por outro lado, embora o sistema jurídico se defenda da excessiva dispersão

jurisprudencial apresentando mecanismos processuais de respeito aos precedentes,

a facilidade com que os aplicadores do direito têm, nos dias atuais, de utilizá-los faz

com que a estes sejam dadas utilidades meramente formais, na maioria dos casos.

É dizer, em regra, o que se tem visto é o magistrado fundamentar sua decisão sem

ao menos despender uma linha sequer de argumentação jurídica para embasar suas

razões de convencimento, procurando via precedentes os atalhos mais curtos para

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resolver a ação, escolhendo sem critério algum, a jurisprudência que entende se

adapte melhor ao caso posto na lide – reduzindo o processo, com esse proceder

assistemático, à declaração de uma mera tese jurídica.

Do “boca da lei”, o magistrado passou a ser “o boca da jurisprudência” pura e

simplesmente.

Tal vezo não tem contribuído em nada para o aperfeiçoamento dos institutos

postos pelo legislador para combater a dispersão jurisprudencial, tampouco para

desenvolver a doutrina do stare decisis no nosso sistema jurídico, e, muito menos,

para o respeito e observância do princípio da motivação das decisões judiciais.

Princípio da motivação das decisões judiciais, por sinal, que tem sido cada vez mais

valorizado pelo Estado Democrático de Direito, em decorrência da necessidade

evidente de que os juízes, através de suas decisões, se dirijam com clareza não

somente às partes e aos juízes de segundo grau, mas também a toda sociedade,

que poderá, como isso, manter controle eficaz sobre a imparcialidade do magistrado.

Naquelas hipóteses de casos de simplicidade indiscutível, melhor do que

transformar um clique de um mouse em precedente, talvez seja aplicar o julgador

pura e simplesmente à letra da lei, utilizando-se mesmo do raciocínio silogístico,

desenvolvendo uma argumentação sólida e consistente em relação aos fatos e às

provas constantes dos autos, deixando para um segundo estágio o emprego do

precedente como forma de controle da sua própria decisão, nos casos, por óbvio,

em que o legislador não optou por confeccionar o texto legal com conceitos

indeterminados ou cláusulas gerais, evitando assim a cultura jurídica predominante,

especialmente no Brasil, de decidir tão somente reproduzindo-se outros precedentes

tribunalísticos.

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