Introdução ao Novo Testamento

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Raymond Koester. Documento parcial.

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H EL/vkUT KOESTER

INTRODUÇÃO

AO NOVO TE5TA/v~ENTO

VOLUN~E 2

H

I S T Ó R I A E L I T E R A T U R A

DO CRIST IANIS /v ~O PR I /v ~ IT IVO

PAULUS

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Cãmara Brasileira do Livro, Brasil)

Koester, Helmut, 1926-

Introdução ao NovoTestamento, volume 2:

história e literatura do cristianismo primitivo/Helmut Koester;

[tradução Euclides Luiz Calloni]. -- São Paulo: Pautus, 2005.

Titulo original: Introduction to the New Testament.

Biblioc~ra~a.

ISBN 85-3,1L9-2329-9

1. Bíblia. N.T. - Histõria de acontecimentos contemporãneos

2. Bíblia. N.T. - I. Titulo. li.Título: História e literatura

do cristianismo primitivo.

054018

CDD -225.61

[ndices para catálogo sistemático:

1. Novo Testamento: I ntroduçáo 225.61

)ldede Estaduel de Londrina

Istema de Bibliotecas

II/lllllllllllllllll/llll

000219082

Título original

Introduction to the New Testament:

History and Literature of the Early Christianity

© Walter de Gruyter & Co., 1995, Berlin

Publicado por Aldine Gruyter,

uma divisáo da Walter de Gruyter, Inc.,

200 San MiU River Road, Haw Thome, NY 10532, USA

ISBN 3-11-014592-4

Direção editorial

Paulo Bazoglía

Tradução

Euclides Luiz Calloni

Editoração

PAULUS

Impressão e acabamento

PAULUS

© PAULUS - 2005

Rua Francisco Cruz, 229.04117-091 São Paulo (Brasil)

Fax (1 ] ) 5579-3627 .Tel. (11) 5084-306ó

www.paulus.com.br [email protected]

[~,RN g5-349-2329-9

À MEMÓRIA

DO MEU PROFESSOR RUDOLF BULTMANN

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§ 7

FONTES PARA A H ISTÓRIA

DO CRISTIANISMO PRIMITIVO

1 .

EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES

(a) Formação dos Primeiros Escritos Cristãos

Os primeiros escritos cristãos, inclusive todos os documentos que compõem

o Novo Testamento, são fontes literárias muito problemáticas para a compreen-

são do início do cristianismo, É importante saber por que os materiais escritos

preservados desse período fornecem apenas informações muito vagas. Durante

Bibliografia para §7:Texto

Barbara and Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos, Cario M. Martini, and Bruce M. Metzger (eds.), Nestle-Aland:

Novum Testamentum Graece (27th ed.; Stuttgart: Deutsche Bibelgesells¢haft, 1994).

Wayne A. Meeks (ed.), The HarperCollins Study Bible: New Revised Standard Version. With the Apocryphol/Deutero-

canonical Books (San Francisco: HarperCoUins, 1993).

Bibliografia para §7: Ferramentas

Walter Bauer, GriechischKleuts«hes W6rterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der fr(ihchristlicheñ "

Literotur (6th ed. by Kurt and Barbara Aland; Berlin;de Gruyter, 1988).

Walter 8auer, A Greek-English Lexicon of the New Testa/nent and Other Early Christian Uterature, rev. by FW. Gin-

grlch and F.W. Danker (Chicago: University of Chicago Press, 1979).

Concordance to the Novum Testamentum Graece of Nestle-Aland, 26th Edition, and to the Greek New Testoment, 3d

Edition (Berlin: de Gruyter, 1987).

Sruce M. Metzger (ed.), NRSVExhaustive'Concordonce(Nashville, TN: Nelson, 1991 ).

Paul J. Achtemeier (ed.), Harper's Bible Dictionory (rev. ed.; San Fran¢is¢o: HarperCollins, 1996).

J.D. Ailison, The Bible 5tudy Resource Guide (Nashvllle, TN: Nelson, 1984).

Daniel H. Harrington, The

New Testament:A Bibliogmphy

(Theologi¢al and Biblical Resources 2;Wilmington, DE:

Glazier, 1985).

Joseph A. Fitzmyer, An

Introductory Bibliography to the 5tudy of Scripture

(Subsidia Bíblica 3; rev. ed.; Rome: Bibli-

cal Institute Press, 1981 ).

Otto Kaiser and Werner Georg Kümmel, Exegetical Method:A 5tudent's Hondbook (rev. ed.; New York: Seabury,

1981);

Bibliografia para §7: Pesquisas

Martin Dibelius, A Fresh Approoch to the New Testament and Ear/y Christian Literature (New Yorlc Scribner's,

1936).

Phillpp Vielhauer, Geschichte der urchristlichen Uteratur (GLB; 2d ed.; 8erlin: de Gtuyter, 1978).

Werner Georg Kümmel, Introduction to the NewTestament (Nashville, TN: Abingdon, 1975).

Bibliografia para §7.1

Hans von Campenhausen, The Forrnation ofthe Chrlstlan Bible (Philadelphia: Fortress, 1972).

Paul Wendland, Die urchristlichen Literaturformen (HNT 1/3; 2d and 3d eds.;Tübingen: Mohr/Siebeck, 1912).

Helmut Koester,'Apocryphal and Canonical Gospels,» HTR 73 (1980) 105-30.

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2 F O N TE S PA R A A H I S TÓ R I A D O C R I S T I A N I S M O P R I M I T I V O

§ 7

os dois primeiros séculos, a única Sagrada Escritura que o¿ cristãos aceitavam

era a Bíblia de Israel, a "Lei e os Profetas», que só bem mais tarde foi chamada

de Antigo Testamento. Essa Bíblia era usada principalmente em sua tradução

grega, a versão dos Setenta, que fora feita pelos judeus de Alexandria (§5.3b).

É a ela que os primeiros cristãos se referiam quando mencionavam a Escdtura"

de modo geral ou quando empregavam a fórmula de citação: "Está escrito".

Paralelamente a essa "Escritura", havia desde o começo uma tradição oral,

transmitida sob a autoridade do "Scnhor"~Essa segunda autoridade compreendia

as palavras de lesus e histórias curtas sobre ele. As palavras do Senhor não sé

restringiam aos ditos de Jesus de Nazaré, mas incluíam também declarações do

Senhor ressuscitado (§7.4a-c). Algumas tradições ligadas a essa autoridade po-

dem ter sido transmitidas em forma escrita - os primeiros missionários cristãos

e líderes de igrejas não eram absolutamente pessoas iletradas que não sabiam ler

e escrever. A cultura dos períodos helenístico e romano era até certo ponto uma

cultura literária. Isso certamente sé aplica ao povo de Israel,_dc modo especial à

sua sinagoga de língua grega da diáspora judaica, que sé tomou a matriz para a

formação do cristianismo primitivo. Entretanto, tudo o que era escrito ainda razia

parte do âmbito da comunicação oral na pregação, na catequese e na celebração

em comum, pois destinava-se à leitura em voz alta, voltando assim ao meio de

comunicação da expressão oral - «literatura oral". Por isso, os primeiros escritos

cristãos eram coleções de materiais orais escritos para uso eclesiástico, como as

coleções das palavras de Jesus na forma de catecismos e diretrizes da igreja, ou

séries de parábolas e histórias de milagres. Algumas dessas coleçfes foram mais

tarde incluídas em escritos mais extensos, como, por exemplo, as parábolas ini-

cialmente escritas em aramaico e depois traduzidas para o grego e introduzidas

no Evangelho de Marcos (cap. 4) ou as primciras orações eucarísticas diretrizes

da igreja que entraram na composição da Didaqué (§ 10. lc).

Os documentos escritos mais antigos preservados, porém, não são materiais

sobre Jesus, mas as cartas de Paulo; todas escritas na década de 50 do século I d.C.

Essas cartas são a nossa fonte mais antiga e mais direta para o desenvolvimento

das primeiras comunidades cristãs. Elas não são escritos ocasionais apenas, nem

Bibliografia para §7a

Kurt Aland,~The Problem of Anonymity and Pseudonymity in Christlan Literature of the Flrst Two Centurtes,"

fr5 Nç 12 (1961) 39-49.

Horst R. Balz,"Anonymitãt und Pseudepigraphte ira Urchrlstentum,~ZThK66 (1969) 403°36.

Norbert Brox, Fal$«he Verfasserangaben: Zur Erkldrung derfrühchristlichen Pseudepigraphle (Stuttgart: Katholisch-

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Wolfgang Speyer, Die Uteratische Fdlschung ira heidnischen und ¢hristlichen AItertum (HAW 1/2, München: Seck,

1971).

Pseudepigrapha / (Entretiens sur I'antiquit~ classique 18; Geneva:Vandoeuvres, 1972).

Adolf Deissmann,

Ught from the An¢ient East: The New Testament Illustrated by Re¢ently Discovered Texts of the

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Niebuhr

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Stanley K. Stowers, Letter Writing in Greco-Roman Antlquity (LEQ Philadelp hia: Westminster, 1986).

§ 7.1 a

EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇC'SES

3

são redi~das para comunicar verdades reli~osas. Essas cartas s~o instrumentos

de política eclesiástica que op«avam a par do veículo político e propagandístico

da comunicação oral durante a ausência do apÓstolo, promovendo a organi~ção

contínua e a ma'nutenção das comunidades cristãs que haviam sido fundadas por

Paulo. Embora essas cartas sejam elaboradas com base em modelos judaicos e

~r greco-romanos, sua retórica é inspirada pelas exigências de situações paulinas

~( específicas e devem ser entendidas no contexto imediato das necessidades e

/i problemas das comunidades que ele fundara.

A partir das últimas décadas do século I d.C., isto é, na terceira geração

do povo cristão, a adoção do meio escrito para a comunicação e transmissão de

tradições antigas se tomou mais evidente, o que não significa que a transmissão

oral deixasse de existir. Numa data já adiantada, aproximadamente 130 d.C.,

Pápias de Hierápolis ainda clava preferência não aos evangelhos escritos, mas à

tradição oral que havia sido transmitida pelos sucessores dos apóstolos. Por outro

lado, o instrumento da política da igreja criado por Paulo exerceu forte impacto

sobre o período seguinte, de modo que o uso do meio literário da carta com

objetivos de propaganda e de organização da igreja se tomou bastante popular.

Além disso, formas escritas das tradições sobre ]esus, usadas como fundamen-

tos de estruturação da igreja e como meio de propagação da-mensagem cristã,

eram em muitos casos mais apropriadas do que materiais orais - não, porém,

em virtude de uma cortfiabilidade maior em materiais escritos. Profetas cristãos

ainda anunciaram a palavra do Senhor com autoridade, ao passo que autores

de livros às vezes tratavam seus materiais e fontes tradicionais com um grau de

liberdade surpreendente. A principal razão para o uso do meio escrito era cul-

tural: na cultura da época, o público letrado esperava naturalmente informações

escritas e livros.

Para produzir essa literatura, os cristãos podiam recorrer às cartas de Paulo

como modelo. Foi portanto o gênero da carta paulina que os alunos de Paulo

imitaram nas assim chamadas epístolas deuteropaulinas: 2 Tessalonicenses, Co-

lossenses, Efésios, as Epístolas Pastorais (1 e 2 T'maóteo e Tito), Laodicenses e 5

Coríntios. Todos esses escritos não somente imitam o esquema da carta paulina,

mas também atribuem o seu conteúdo à autoridade do apóstolo. Em pouco

tempo outros também começaram a escrever sob seus próprios nomes ou em

nome de outros apóstolos, mas ainda seguindo a estrutura das cartas originais

de Paulo. 1 Clemente, escrita de Roma para Corinto no fim do século I, tem o

obietivo de conseguir o que Paulo já fizera anteriormente, ou seja, motivar os

coríntios a resolver suas desavenças internas. O bispo Início de Antioquia, na

viagem para o seu martírio em Roma no começo do século II, voltou a adotar

esse modelo na série de cartas que escreveu para comunidades da Ásia Menor.

A carta paulina também influenciou os autores das duas cartas escritas com o

nome do apóstolo Pedro e talvez das três epístolas joaninas. O profeta loão, ao

escrever o Livro do Apocalipse em seu exílio em Patmos, incluiu nele sete cartas

a igrejas situadas na Ásia Menor, procurando aconselhar essas comunidades con-

turbadas. Depois da metade do século I2, o bispo Dionísio de Corinto escreveu

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" 4 F O N T E S P A R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S b A O PR I M I T I V O

§ 7

cartas a várias comunidades na Ásia Menor e em Creta para adverti-las sobre

formas de ascetismo heréticas.

.... Em todos esses casos, é evidente que a carta se toruara o principal instru-

 mento político com que líderes das comunidades cristãs procuravam moldar as

políticas das congregações cristãs e estruturar, pelo menos até certo ponto, uma

organização da igreja que abrangesse o mundo todo. Existem amplas evidéncias

de que esse procedimento continuou durante o século III. A maior parte da

correspondência de Clemente de Alexa~dria, do bispo Irineu de Lião e do bispo

Dionísio de Alexandria se perdeu ou está preservada apenas em fragmentos. As

cartas do bispo Cipriano de Cartago (metade do século III), porém, chegaram

até nós numa coleção mais completa. Vistas como um todo, as cartas do período

inicial do cristianismo - sejam elas "autênticas» ou "pseudo-epigráíicas" - s~o as

fontes mais importantes da história cristã primitiva.

O seguinte corpus literário importante inclui coleções ou compilações

de vários materiais que convergem para a pessoa de Cristo e que começaram

a ser chamados de "evangelhos" antes da metadedo século II. Eles são fontes

de suma importância, mas apresentam obstáculos consideráveis ao historiador

que quer utilizá-los como informação sobre Jesus de Nazaré e sobre a história

do cristianismo. Adiante (§7.4a), demonstrar-se-á mais detalhadamente que a

tradição inserida nesses evangelhos não começa com ~3formações históricas,

mas com proclamação, confissão, legenda, instrução e oração. Os documentos

escritos mais antigos desse tipo - que não estão preservados, mas podem ser

reconstruídos por meio da análise crítica dos escritos evangélicos posteriores

- foram versões escritas simples de tradições sobre Jesus em várias formas que

correspondiam às necessidades litúrgicas, catequéticas e teológicas das respectivas

igrejas. Com o tempo, esses materiais foram incorporados em composições mais

extensas, cujos modelos literários baseavam-se em vários géneros de literatura

judaica e helenística existentes.~¿ks coleções_de histórias de milagres de ~esus têm

estreita relação com o género da aretologia (§3.4d) e revelam uma cristologia-

que compreende Jesus como protótipo do operador de milagres e do exorcista.

ColeçõeS dos ditog de lesus são influenciadas pelo gênero da literatura sapiencial

judaica e correspondem a uma orientação cristológica, para a qual Jesus é um

mestre de sabedoria ou a manifestação terrena da Sabedoria celest~Um exem-plo remanescente desse gênero .literário está preservado no Evangelho de Tomé,

descoberto entre os escritos da Bibliofeca de Nag Hammadi. Outra coleção de

ditos, o assim chamado Evangelho.-de Ditos Sinótic0s, pode ser reconstruída

com ba~~-n0s-evangelhos canônicos de Mateus e Lucas. A narrativã da-paixão

evoluiu para a celebração d a:~eucaristia com o apoio-dos livros proféticos de

Israel e dos Salmos, que falàm do.servo sofredor de Deus e do justo persegui~

Existe também uma extensa lit~~tura em que Jesus aparece como o revelador

celeste; o escrito mais antigo desse gênero é o Livro do Apocalipse de João. Por

influência da literatura apocalgpti¿'a judaica, inúmeros apocalipses cristãos foram

produzidos; o primeiro deles é o pequeno livro conhecido como "Apocalipse' -:-

Sinótico', assimilado pelo Evangelho de Marcos (Marcos 13; cf. Mateus 24-25).

§ 7 . 1 a E X A M E D A S F O N T E S E D E S U A S T R A D I Ç Õ E S

5

Um pouco mais tarde apareceram o Apocalipse de Pedro, o Pastor de Hermas

e os acréscimos aos livros apocalípticos judaicos conhecidos como 5

Esdras e

6 Esdras. A rica literatura de revelação gnóstica está estreitamente relacionada

e agora totalmente acessível com a descoberta e publicação da Biblioteca de Nag

Hammadi (§lO.5b).

Os Evangelhos do Novo Testamento são produto dessas comunidades cristãs

que se tornaram a matriz para as igrejas ortodoxas posteriores. São composições

em que tradições orais e documentos antigos foram inseridos em escritos que

tomaram comoponto de partida o querigma da cruz da ressurreição de Jesus.

Se, por um lado, a narrativa da paixão é essencial para o surgimento da litera-

tura evangélica, por outro, o modelo literário da biografia (§3.4d) influenciou

de modo crescente seu desenvolvimento posterior. Além dos quatro evangelhos

canônicos, vários fragmentos de evangelhos apócrifos estão preservados (o

Evangelho de Pedro e os Evangelhos Judaico-Cristãos), mas inúmeros esc¢it0s

apócrifos denominados "Evangelho" (Evangelho da Verdade, Evangelho de Filipe )

não pertencem a essa categoria; estes são meditações teológicas ou tratados. O

recurso aos evangelhos para informações históricas sobre Jesus é problemático;

no entanto, eles são fontes importantes para o estudo das primeiras comunida-

des cristãs, que produziram e deram forma aos materiais e tradições que foram

usados pelos autores dos vários evangelhos.

Igualmente problemático é o valor histórico dos Aros dos Apóstolos. Embora

a tentativa de escrever história possa ter exercido certa influência na composição

do Livro dos Atos canônico, predominam interesses teológicos e, além disso,

materiais e elementos aretológicos do romance he enístico. (narrativa de viagem

e história do naufrágio; §3.4c). O modelo do romance helenístico é ainda mais

evidente na produção de inúmeros atos dos apóstolos apócrifos.

Escritos que são essencialmente tratados teológicos apareceram apenas

aos poucos. Entre as cartas de Paulo, ã Epístola aos Ronãanos foi às vezes in-

cluída nessa categoria, mas sua função como instrumento de política da igreja

continua sendo sua característica principal, apesar da influência claramente

visí~¢el da literatura apoiiagética judaica, Um tratado teológico de fato aparece

pela primeira vez várias décadás depois de Paulo, naEpist-ola aos Hebreus; com

sua interpretação alegórica de pã~sagens da Escritura, ela pode ser comparada

aos tratados de H on-de:Al~xandda (§5.3f). Entre os escritos não-canônicos, a

Epístola de Barnab~ pertence a essa categoria. A produção ulterior de tratados

teológicos tem vínculos~ estreitos com o surgimento da literatura apologética

cristã, que continua a tradição dos escritos apologéticos judaicos (§5.3e), mas

também revela~onfätos com o gênero filosófico grego da literatura protréptica.

O credo cristão é u_na elemento novo nessa literatura e lhe empresta sua estrutura

básica; cada í~irm~ç~o do credo recebe uma prova escritural. O tratamento de

uma-declaração especffica do credo, sobre a ressurreição, por exemplo, também

podia ser expandidffe transformar-se num tratado sobre esse tema. Alguns exem-

plos dessa literatura apologética e teológica procedem do século II; escritores do

século III, porém, como Orígenes e Tertuliano, empregaram esse gênero literário

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0 FON TES PARA A H ISTÓRI A DO CRI ST IAN ISMO PR IMI TI VO § 7

mais extensamente. Os apologistas do século II usaram esse esquema apologético

também em escritos polêmicos

(Diálogo com Trifão, o Judeu,

de lustino Mártir,

e Adversus Haereses, de Irineu).

Muito poucos escritos documentam a vida das igrejas cristãs e de seus ser-

viços de culto. Vários deles parecem ser publicações de sermões. 2 Clemente e

talvez também o Evangelho da Verdade, da Biblioteca de Nag Hammadi, poderiam

representar essa vertente. A Homilia de Páscoa, do bispo Melitão de Sardes, foi

composta quase no fim do século II. Relatos de martírios redigidos como cartas

circulares também eram escritos para ser lidos em serviços cultuais. Vários desses

relatos são do século II: o

Martírio de Poli«arpo, o

martírio de

]ustino e Seus

Companheiros, o relato dos Mártires de Lião e Viena e os Aros dos Mártires de

Scili. Finalmente, as diretrizes da igreja devem ser mencionadas aqui. Dessas,

somente a Doutrina dos Apóstolos (Didaqué) pode ser datada com certeza ao

período inicial do cristianismo; a

Didascália

(siríaca), a

Tradição Apostólica

de

Hipólito e Cânones Apostólicos foram escritos depois de 200 d.C.

(b) Cânon do Novo Testamento

(1) O Senhor e as Cartas de Paulo. Durante as primeiras décadas depois da

morte de ]esus, os apóstolos se consideraram imbuídos do espírito de Deus para

pro.clámar a nova mensagem da salvação de Israel tanto para os judeus como

para os gentios, Essa proclamação era aprovada pelas profecias de Israel e pelas

aparições do Cristo ressuscitado, o Senhor. "O Senhor" era portanto a principal

autoridade que assegurava a validade de sua pregação e a fidedignidade da tra-

dição. Em questões controversas, o pregador podia sempre recorrer ao "que o

Senhor havia dito" ou consultar os profetas sobre o que "o Senhor" lhes havia

revelado. Naturalmente, como Escritura, «a Lei e os Profetas" podiam ser toma-

dos como autoridades, e além deles a autorização podia também simplesmente

proceder da posse do Espírito Santo ou derivar da "Natureza", da moralidade

geral ou ainda do julgamento racional. Alguns começaram a recõrrer à autoridade

de apóstolos nomeados individualmente apenas quando a primeira geração de

apóstolos completou seus dias. A primeira evidência disso é o testemunho das

comunidades paulinas, que em pouco tempo começaram a coletar e a distribuir

as cartas de Paulo e a produzir novas cartas com o nome do apõstolo, por fim

integrando-as numa coleção que se tornou o corpus paulino. Conjetura-se que a

Bibliografia

para §7.1 b

Lee M.McDonald,

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(rev.ed.; Peabody, MA: Hendrickson, 199S).

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Oxford: Clarendon, 1992).

§ 7.1 b EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES

7

Epístola aos Efésios estava associada à primeira coletânea dessas cartas, tendo

sido es«fita como carta representativa para ela. Seja como for, temos evidências

claras de que a autoridade de um apóstolo em particular, especificamente Paulo,

instituiu uma autoridade especial para os escritos que tiveram origem no contexto

anterior da atividade desse apóstolo.

(2) Pedro, Tomé e ]oão. Infelizmente, não existem fontes que poderiam

fornecer idéias diretas, como no caso de Paulo, sobre o ministério e o raio de

ação dos outros apóstolos. Chama a atenção, porém, o fato de que em várias

áreas geográficas limitadas estão preservadas tradições e escritos com o nome

de um determinado apóstolo, a quem esses documentos atribuem autoridade.

Inúmeros escritos preservados procedentes da Síria ocidental teriam sído escritos

por Pedro: o Evangelho de Pedro, o Apocalipse de Pedro e o Querigma de Pedro

(e, se não for idêntica a esse escrito, a Do«trina Petri), e também uma fonte das

Pseudoclementinas, conhecida como as Kerygmata Petrou. Afinal, sabemos que

Pedro esteve na cidade de Antioquia, na Síria, fato confirmado pela carta de Pau-

lo aos Gálatas (G1 2,11-14). É portanto bastante provável que os escritos mais

recentes sob a autoridade de Pedro derivem de uma tradição petrina que surgiu

da atividade missionária efetiva do apóstolo nessa área geográfica. Confirma

esse fato o Evangelho de Mateus, certamente um escrito da Síria ocidental, que

contém as famosas palavras de ]esus a Pedro designando-o como a pedra sobre

a qual será edificada a sua igreja (Mt 16,17-19).

A tradição de Tomé, oriunda da Síria oriental, resultou de um padrão se-

melhante, embora seja impossível provar que a lenda da jornada missionária de

Tomé para o leste, inclusive até a própria ~ndia, assente-se sobre bases históricas.

A única coisa certa é a origem sírio-oriental dos Aros de Tomé, escritos no início

do século III. Muito provavelmente, incluem-se aqui dois outros escritos que

aparecem sob autoridade de Tomé na Biblioteca de Nag Hammadi: o

Evangelho

de Tomé e o Livro de Tomé. O primeiro foi composto numa data clue não pode

ser posterior ao começo do século II; quanto ao segundo, nenhuma data lhe pode

ser atribuída com certeza. Se os três escritos procedem da Síria oriental (Edessa),

é possível que tenham como base uma tradição com o nome de Tomé que teve

origem na missão efetiva desse apóstolo nessa região.

A relação da literatura joanina com o apóstolo loão continua enigmática.

É indubitável que loão foi um dos três apóstolos da igreja de lerusalém que,

com Pedro e Tiago, irmão de lesus, eram conhecidos como as «colunas» quando

Paulo visitou lerusalém menos de vinte anos depois da morte de ]esus (GI 2,9).

Na última visita de Paulo a Jerusalém alguns anos depois, porém, Tiago era o

único líder da igreja; loão não e mais mencionado (At 21,18). A resposta de le-

sus à pergunta de loão e Tiago, os filhos de Zebedeu, em Marcos 10,39, implica

que ambos padeceriam a morte como mártires; entretanto, só a morte de Tiago

consta da tradição (At 12,2). O bispo P ápias de Hierápolis (primeira metade do

século II) tinha conhecimento de uma tradição oral dos ditos de lesus relacio-

nada com loão, a quem ele chama de discípulo do Senhor. Muito mais tarde, no

fim do século II, afirma-se que loão morreu de morte natural em Éfeso (Aros de

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8 FONTES PARA A HISTÓR IA DO CRI ST IANI SMO PRIMI TI VO

§ 7

]oão 111-115). Também por essa época," os escritos joaninos, o Evangelho de

João, e pelo menos a primeira Epístola de loão, são conhecidos em Éfeso. No

entanto, é mais provável que o Evangelho de ~oão tenha sido escrito em algum

lugar na Síria ou na Palestina. Além disso, este Evangelho em si é anônimo e não

se atribui a autoria de loão; antes, ele recorre à misteriosa figura do discípulo

amado como autoridade. Não é possível, portanto, demonstrar que houve um

elo histórico real entre o apóstolO loão, filho de Zebedeu, e a literatura joanina.

Por outro lado, é inquestionável que laouve realmente uma tradição literária

que se atribuía a autoridade desse apóstolo. Nela se incluem não somente os

quatro escritos joaninos do Novo Testamento, mas também os

Atos de ]oão e o

Apocryphon de João.

Nos séculos II e III, nomes de apóstolos ou de discípulos específicos de Jesus

foram amplamente empregados para dar autoridade e legitirnidade a diversos

escritos, especialmente em seitas e escolas gnósticas, loão, Pedro, Paulo, Filipe,

Tomé e outros aparecem f reqüentemente, mas também o irmão de lesus, Tiago,

e Maria (Madalena). Em geral, o apóstolo é o receptor de uma revelação especial

que é comunicada no livro publicado com .seu nome. Na maioria dos casos, é

impossível saber se a utilização desses nomes como autoridades literárias se apóia

no uso de tradições anteriormente ligadas ao apóstolo a que um determinado

escrito recorre, embora às vezes esse pode ter sido o caso. Como a formação do

conceito de apostolicidade, que se tomou fundamental para o cânon do Novo

Testamento, aconteceu nas controvérsias constantes com seitas gnósticas, pode-se

presumir que foi exatamente o apeio gnóstico à autoridade apostólica que induziu

os Padres da Igreja a enfatizarem por sua vez a apostolicidade dos escritos orto-

doxos. Mostrar-se-á, porém, que o conceito de apostolicidade teve papel muito

secundário na inclusão dos escritos no cânon do Novo Testamento.

(3) Os Doze Apóstolos. A autoridade dos Doze Apóstolos manifestou-se

num período bastahte adiantado no século I. Paulo conhecia apenas os y.Doze~,

que ele distinguia de "todos os apóstolos" (1Cor 15,5.7). Na época de Paulo,

o termo "apóstolo" não se limitava aos Doze, mas compreendia o grupo bem

maior de tódQs :aqUeles a quem 0Senhor apareceu. Paulo não inclui somente a

si nesse grupo; também mulheres são merecedoras dessa designação (cf. lúnia

em Rm 16,7). Referências gerais aos "Apóstolos", sem indicação de um número

específico, aparecem na Epístola aos Efésios, em Inácio de Antioquia, em 1 Cle-

mente, em Policarpo de Esmima e em 2 Pedro. A restrição do termo "apóstolo"

aos Doze é uma ficção posterior que aparece primeiro nos Evangelhos do Novo

Testamento e recebe maior elaboração no Livro dos Atos, onde eles se tomam

os abonadores da tradição e o protótipo de um presbitério ecumênico. Os "Doze

Apóstolos» são tomados como autoridade paraa composição de uma instrução

da igreja consubstanciada na Doutrina dos Doze Apóstolos (Didaqué), um docu-

mento que em sua forma preservada foi redigido no século II. Multas diretrizes

posteriores também recorreram à autoridade dos (Doze) ApÓstolos

(Constituições

Apostólicas, Cânones Apostólicos etc.). Mas o conceito dos Doze Apóstolos não

influenciaria a formação do cânon do Novo Testamento.

§ 7.1 b

EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES

9

(4) Mar,ião. A força propulsora para a formação do cânon, isto é, para a

seleção de um número limitado de escritos tradicionais de autores cristãos como

Sagrada Escritura autorizada, veio de um teólogo radical da primeira metade

do século II, oriundo da tradição das igrejas paulinas: Marcião (para a vida e

ensinamentos de Marcião, ver (§ 12.3c). Até esse momento, a Sagrada Escritura

indiscutível de todos os cristãos havia sido a Bíblia de Israel, a "Lei e os Profetas",

que os cristãos compartilhavam com a diáspora judaica por meio da tradução

grega dos Setenta. Embora as igrejas cristãs e as sinagogas judaicas já fossem

nessa época organizações separadas, elas ainda invocavam as mesmas Escrituras

como autoridade. O empenho de Marcião estava intrinsecamente ligado à questão

dessa "judeidade" das igrejas cristãs, sintetizada no uso mesmo da Escritura de

Israel como autoridade suprema. Marciã0, porém, havia aprendido pelas cartas de

Paulo que Cristo era o frua da lei. Como essa lei judaica ainda podia ser Escritura

autorizada? Sem dúvida, os gnósticos interpretariam essa lei alegoricamente,

mas Marcião era literalista e não aceitava nenhuma interpretação alegórica.

Ele via toda a Escritura de Israel como testemunho da atividade do Deus justo

que govern.ava o mundo de acordo com o princípio da lei e da punição; mas

a salvação por meio de ~esus viera de um Deus "estrangeiro" muito diferente,

cujo Filho trouxera misericórdia e amor. Só havia uma solução possível: essa

Escritura "~udaica" precisava ser posta de lado, introduzindo em seu lugar uma

nova Sagrada Escritura específica para os cristãos.

Marcião criou essa nova Sagrada Escritura que se tomou obrigatória para

suas igrejas. Ela consistia no Evangelho de Lucas e no corpus das cartas de Paulo

(exceto as Epístolas Pastorais). Seu autor, porém, estava convencido de que esses

escritos não estavam preservados em sua forma original. Por isso, ele produziu

uma edição crítica, purificando-os de todos os elementos que julgava ser acrés-

cimos posteriores, especialmente as referências às Escrituras de Israel. Apesar

de Marcião ser duramente atacado mais tarde por alterar esses escritos, não se

deve esquecer que seus adversários também procuraram corrigir a imagem de

Paulo transmitida nas cartas autênticas do apóstolo, em parte acrescentando as

: Epistotas Pastorais ao eorpus paulirto. ,Mém disso, fazer uma nova edição de um

evangelho era um ato coerente com um procedimento muito difund~do na época:

afinal, os Evangelhos de Lucas e de Mateus são novas edições do Evangelho de

Marcos. Assim, a tarefa editorial de Marcião para produzir o seu novo cânon

escritural não se diferenciava fundamentalmente do modo como os seus contem-

porâneos tratavam esses escritos. O elemento novo na ação de Marcião foi ele

elevar esses escritos cristãos em nova edição à condição de "Escritura Sagrada",

com a simultânea rejeição das escrituras de Israel. O próprio Marcião estava

convencido de que simplesmente estava dando prosseguimento a um processo

que havia sido iniciado pelo grande apóstolo Paulo. A implicação fatal da obra de

Marcião foi a asserção de que o cristianismo não devia ser compreendido como

a continuação legitima da religião e da tradição de Israel.

Pouco depois de 140 d.C., Marcião foi excomungado pela igreja romana;

com isso, ele fundou sua própria igreja, que se expandiu rapidamente e se tomou

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FONTES PARA A HISTÓRIA DO CRISTIANISMO PRIMI TIVO

uma igreja universal, cuja existência como organização separada continuou du-

rante muitos séculos. Remanescentes da igreja de Marcião nos Bálcãs, conhecidos

como "paulícios", foram reorganizados no século X por um homem chamado

"Bogomil" (= "amigo de Deus"). Com sua cosmovisão dualista, os bogomilos

constituíram o movimento sectário mais importante do império bizantino e um

apoio decisivo para os movimentos heréticos medievais na Europa central e

ocidental. Apesar de perseguidos pelas instituições eclesiásticas tanto ortodoxa

grega como católica romana, eles conse~,uiram sobreviver especialmente na Bós-

nia, onde por fim aceitaram a proteção dos conquistadores turcos (1463-1483),

concordando em converter-se ao islamismo - os muçulmanos da Bósnia.

(5) Reação a Marcião. Conhecemos apenas parte da fase inicial da reação a

Marcião. ~ustino Mártir é a testemunha principal. Ele exercia suas atividades em

Roma nessa época e escreveu o primeiro livro conhecido (mas não preservado)

contra Marcião. Em seus extensos escritos conservados, lustino nunca cita as

cartas de Paulo, a parte mais importante do novo cânon de Marcião. Parece que

Justino evitava essas cartas deliberadamente. Ele conhecia, porém, os Evangelhos

de Mateus, de Marcos e de Lucas, chamando-os de "Memórias dos Apóstolos",

e produziu uma harmonia desses três escritos - jamais imaginando que esse es-

forço poderia violar-lhes a inte.gridade. Esses evangelhos eram para ele as únicas

autoridades cristãs possíveis. As vezes ele os cita com a fórmula "está escrito",

que até então fora usada somente para citações das Escrituras de Israel. Essa

promoção dos evangelhos como autoridades escritas a uma posição equiparável

à dignidade das Sagradas Escrituras talvez se deva à influência de Marcião. Em

alguns casos, Justino chama esses escritos de "evangelhos", aplicando assim para

essa literatura um termo que aparentemente só Marcião antes dele havia adotado

para designar livros dessa espécie.

Embora a influência de Marcião seja visível na reavaliação dos escritos da

tradição cristã feita por Justino - negativa enquanto evita as cartas de Paulo e

positiva enquanto valoriza a posição dos evangelhos - Jusüno não tem intenção

de criar um novo cânon cristão. Em vez disso, ele se empenha deliberadamente

em reafirmar a condição de Sagrada Escritura da Lei e os Profetas. Somente esses

escritos são verdadeiramente inspirados (Justino atribui inspiração à tradução

grega da Bíblia Hebraica). Ele reforça a importância dessas Escrituras utilizando

uma nova recensão dos Setenta, cujo objetivo era aproximar a tradução grega

da versão babilônia do texto hebreu (§5.3b).

A questão de um cânon das Escrituras Cristãs, porém, continuou sem

solução durante toda uma geração, até que Irineu enveredou por um caminho

que se afastaria da perplexidade causada pelo desafio de Marcião. Nas últimas

décadas do século II, Irineu era bispo de Lião, no sul da Gália, mas procedia da

tradição das igrejas paulinas da Ásia Menor, onde crescera. Aí, ele também se

famfliarizara com o Evangelho e as Epístolas de João,-que combínou com a me-

mória de outro João, o que havia escrito o Livro do Apocalipse. Ele se orgulha de

ter sido aluno do famoso bispo Policarpo de Esmirna (c. 100-167 d.C.), embora

ainda fosse criança na época. Apesar de ser bispo de uma igreja ocidental, em

§ 7.1 b

EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADtÇÕES 1 1

seus escritos (gregos) ele foi mais um representante da tradição da Ásia Menor

do que de Roma. Na Ásia Menor, as cartas de Paulo ainda eram muito usadas

(ver, porém, as advertências de 2 Pedro 3,15-16) e continuaram selado parte

intocável da tradição cristã, não obstante a grande consideração que os círculos

marcionitas e gnósticos demonstraram por elas. Apesar de rejeitar Marcião,

Irineu não hesitou em fazer das cartas de Paulo a base da nova Escritura Cristã,

a que ele acrescentou os quatro evangelhos.

O novo livro cristão das Sagradas Escrituras assim criado e que Irineu colo-

cou como Novo Testamento ao lado das Escrituras de Israel, agora chamadas de

Antigo Testamento, tinha uma base muito mais ampla do que o cânon de Marcião.

Ele incluía as cartas do

corpus

paulino, com o acréscimo das Epístolas Pastorais,

e também algumas das epístolas "católicas" (isto é, as que foram dirigidas a rodas

as igrejas). Quanto aos evangelhos, Irineu aceitava não apenas um evangelho,

mas os quatro Evangelhos "separados» (ou seja, não numa forma harmonizada)

de Mateus, Marcos, Lucas e loão. Ele defendia a existência de quatro evangelhos

em vez de apenas um, fundamentando-se na especulação cosmológica de que

eles correspondiam às quatro extremidades da terra.

A evidente inclusividade da concepção de Escritura Cristã sustentada por

Irineu tem significado extraordinário. Marcião, como também os gnósticos e

suas Escrituras, multas atribuindo-se autoria apostólica, foram rejeitados; mas

Irineu não adorou um conceito doutrinai estreito como critério para sua seleção.

Todos os escritos que as comunidades cristãs haviam usado desde o começo

foram incluídos, e isso apesar de Irineu saber muito bem que alguns deles,

como Marcos e Lucas, não haviam sido obra de um apóstolo. Por outro lado,

diante da constatação de que um escrito fora composto apenas recentemente,

ele era suprimido do cânon, mesmo que pretendesse autoridade apostólica e

fosse adotado por algumas igrejas. A questão da inspiração não influenciou esse

processo de composição do cânon, porque a pretensão de possuir o Espírito

Santo era tão comum, que esse critério só teria causado confusão. O conceito de

apostolicidade aparece em forma modificada. Uma aplicação rigida do critério

de autoria por um dos Doze Apóstolos teria acarretado a exclusão de todo o

corpus paulino. Para Irineu, portanto, "apostolicidade" inclui aqueles escritos

que haviam alimentado e instruído as igrejas, que haviam dado organização a

essas igrejas e que haviam orientado seu culto desde o começo. Este princípio

está evidente no fato de que somente evangelhos com uma narrativa da paixão

foram aceitos no cânon, porque essa narrativa era e continuou sendo a história

constitutiva da celebração do ritual cristão central, a eucaristia. Ele está também

visível na preservação do corpus paulino com as Epístolas Pastorais, porque estas

apresentaram Paulo não tanto como o grande teólogo, mas como o instrutor da

igreja e o criador de sua organização.

O fato de que as práticas das igrejas da ~sia Menor e da Grécia se adapta-

ram à coletânea de Irineu, e de que Antioquia, Cartago, provávelmente também

Alexandria e mais tarde mesmo Roma confirmaram esse uso, forneceu a base

política da igreja para que a criação de Irineu tivesse sucesso. Não deve ser subes-

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t 2 F O N T ES PA R A A HI S TÓ R I A DO CR I S T I A N I S M O PR I M I T I V O

§ 7

timado o fato, porém, de que esse novo cânon também excluiu inúmeros escritos

e, conseqüentemente, alguns grupos cristãos que os adotavam. Os marcionitas,

vários grupos gnósticos e os cristãos judeus (não ainda, porém, os montanistas)

foram excluídos, apesar do princípio da inclusividade de Irineu e a despeito da

alegação de que seus escritos eram apostólicos e inspirados. Diferenças teoló-

gicas certamente contribuíram para isso, e os argumentos teológicos às vezes

ocupavam lugar de destaque nas controvérsias. Entretanto, as causas subjacentes

precisam ser vistas no âmbito da prática. A rede de bispos, abrangendo todo o

mundo romano desde Antioquia até a África, Roma e a Gália, e mantida por

visitas mútuas, intercâmbio de missionários e uma extensa correspondência,

conseguira estabelecer práticas comuns para o batismo (inclusive a instrução

dos catecúmenos) e para a celebração da eucaristia, códigos morais e rituais, e

numerosas instituições sociais e formas de apoio mútuo. Esse conjunto todo está

expresso na composição do cânon empreendida por Irineu. No geral, considerando

que não existia uma autoridade central, essa foi uma conquista extraordinária.

Não sabemos se esse contexto incluía a maioria de todos os cristãos no fim do

século II. Igrejas marcionitas podiam-se encontrar em toda parte; cristãos judeus

seguidores da lei ritual mosaica espalhavam-se pela Ásia Menor, Síria e Egito.

Inúmeros grupos, escolas e seitas de cristãos gnósticos estavarn presentes em

Roma e também na Asia Menor, Síria e Egito, e rnuitas vezes membros das igrejas

organizadas teriam participado dos conciliábulos dessas instituições.

Havia também um preço a pagar. Uma conseqüência da inclusão das

Epístolas Pastorais no corpus paulino foi a exclusão das mulheres dos oficios

eclesiásticos, enquanto os marcionitas e muitos grupos gnósticos continuaram

a aceitar mulheres em funções de liderança. Mesmo atualmente, multas igrejas

cristãs têm dificuldade em libertar-se dessa herança nefasta. A exclusão do cris-

tianismo judaico e, em geral, a instituição de uma Sagrada Escritura Cristã, em

acréscimo às Escrituras de Israel, com a asseveração de que o Antigo Testamento

só podia ser lido legitimamente a partir da perspectiva do Novo Testamento,

consolidaram a posição do judaísmo e do cristianismo como religiões separadas.

A liderança episcopal na criação de uma igreja "católica" universal também in-

troduziu estruturas hierárquicas na organização local das igrejas, substituindo

as estruturas antigas mais democráticas das igrejas de Paulo e, por exemplo, do

Evangelho de Mateus, Por outro lado, a criação do cânon do Novo Testamento

preservou alguns dos documentos mais valiosos dos primeiros passos do cris-

tianismO, embora a história inicial desse movimento religioso só possa ser bem

compreendida se a profusão de novas descobertas de materiais não-canônicos

for totalmente integrada à pesquisa histórica.

(6) O Cânone de Muratori. Muitos estudiosos aceitam esta relação de escri-

tos canônicos, elaborada em latim, como a lista mais antiga de livros canônicos,

datando aproximadamente do ano 200 d.C. Existem, porém, fortes razões para

duvidar dessa data tão antecipada; é mais provável que essa elaboração tenha

sido feita no século IV. Enquanto a inclusão dos quatro Evangelhos, do corpus

paulino e de algumas epístolas católicas no Novo Testamento é bem aceita no

§ 7.1 b

EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIçÕES 1 3

fim do século II - não somente Irineu, mas também Tertuliano, Clemente de

Alexandria, Orígenes e Cipriano coniordam com esse conceito - a discussão

da inclusão ou exclusão de escritos específicos, isto é, a delimitação exata do

cânon, não começou antes do século IV. A lista do Cânone de Muratori enumera

os quatro Evangelhos, treze cartas de Paulo (sem a Epístola aos Hebreus), o

Apocalipse de Ioão, o Apocalipse de Pedro, a Epístola de Judas, duas epístolas

de ]oão, uma de Pedro e a Sabedoria de Salomão. Explicitamente rejeitadas são

as cartas de Paulo aos

Laodicenses e

aos

Alexandrinos e

os escritos dos heréticos

(Valentim, Marcião e outros).

(c) Escritos Não-Canônicos do Cristianismo Primitivo

(1) Os Padres Apostólicos.

Além dos escritos do cânon do Novo Testamento,

existem várias outras coletâneas antigas e modernas de escritos do cristianismo

primitivo. Essas coleções incluem tanto os livros aceitos e utilizados pelos Padres

da Igreja como também os reieitados como heréticos. Durante muitos séculos, a

mais importante delas foi a dos Padres Apost61icos, organizada no século XVII.

Na época foi escolhido o título "Padres Apostólicos" (Partes Apostolici) porque

os estudiosos acreditavam que todos o escritos haviam sido compostos no período

apostólico por discípulos dos apóstolos. Caso, porém, se entenda "período apos-

tólico" mais estritamente como o decurso de tempo até o fim da Guerra Judaica,

isto é, de 30 a 70-73 d.C., a datação ao período apístólico não se sustenta para

nenhum desses escritos. Com efeito, mesmo dos escritos do Novo Testamento,

somente as cartas autênticas de Paulo foram compostas nesse período, ao passo

que os evangelhos, as epístolas deuteropaulinas, as epístolas católicas e o Livro do

Apocalipse foram escritos durante as últimas décadas do século I e as primeiras

do século II d.C. Este último período da segunda e terceira gerações do cristia-

nismo é na verdade também a época em que a maioria dos escritos dos Padres

Apostólicos foi composta. Desses escritos, 1 Clemente, a Epístola de Barnabé e

as fontes inseridas na

Didaqué

(incorporada a essa coleção depois de sua desco-

berta em 1885) foram compostas antes do ano 100 d.C., as cartas de Inácio de

Antioquia e uma parte da Epístola de Policarpo logo depois da virada do século,

enquanto

2 Clemente e o Martírio de Policarpo

só foram escritas, ao que parece,

depois da metade do século II. O

Pastor de Hermas

ocupa seu justo lugar nessa

coleção, embora seja dificil determinar sua data exata. A Epístola a Diogneto,

em geral incluída nas edições dos Padres Apostólicos, é um escrito apologético

Bibliografia para

§7.1c (1):Textos

Bihlmeyer,

ApostVdt.

Lightfoot, Apostolic F«ther~

J.B. Lighffoot and J.R. Harmer, The Apostolic Fathers (ed. and ~ev. Michael W. Holmes; Grand Rapids, MI: Baker,

1989).

Kirsopp Lake, The

Apostolic Fathers

(LCL; 2 vols.; Cambridge, MA: Harvard University Press, 1912 and reprints).

Bibliografia para

§7.1 c O ):

Ferramentas

Hendcus Kraft, Clavls Patrum Apostolicorum (Darmstadt: Wissenschaftliche Suchgesellschaft, 1963).

Page 10: Introdução ao Novo Testamento

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1 4 F O N T E S PAR A A HI ST Ó R I A DO CR I ST I A N I S M O PR I M I T I VO

§ 7

de um período posterior. Em contraste com os escritos do Novo Testamento,

que estão preservados num grande número de manuscritos e traduções, muito

poucas cópias dos Padres Apostólicos chegaram até nós, em alguns casos apenas

um único.manuscrito (o único manuscrito conhecido da Epístola a Diogneto foi

queimado numa biblioteca municipal de Estrasburgo durante o bombardeio da

cidade na guerra de 1870).

(2)

Coleções Gnósticas e M.aniqueístas.

Grupos cristãos antigos que não

reconheciam o cânon da Igreja Católica~criaram coleções de seus próprios escri-

tos. A mais importante dessas é a Biblioteca de Nag Hammadi, descoberta em

1945-46 no Alto Egito, hoje publicada e traduzida em sua totalidade, É composta

de treze códices encadernados em couro contendo mais de cinqüenta escritos,

predominantemente gnósticos; todos eles haviam sido traduzidos de originais

gregos para o copta. Alguns desses datam já do período em que os Padres Apos-

tólicos foram escritos, como o Evangelho de Tomé, o Diálogo do Salvador, o

Apocryphon de Tiago, o Apocalipse de Adão, a Hipóstase dos Arcontes, o Pri-

meiro e Segundo Apocalipses de Tiago, e

talvez alguns outros. Como um todo,

os escritos dessa recém-descoberta Biblioteca Gnóstico-Copta são um recurso

importante para uma nova compreensão da história do cristianismo primitivo

e de sua literatura.

Os maniqueus se distinguiam por sua elevada cultura literária. Embora

esse movimento se tenha originado apenas no século III d.C., suas coleções

literárias também incluíam alguns escritos cristãos mais antigos, especialmente

um conjunto apócrifo de cinco aros dos apóstolos que foi atribuído a um certo

Leukios Charinos - apesar de que somente algumas partes dos remanescentes

fragmentários dessa literatura (ver §7.1.c[3]) possam derivar dessa coleção

maniqueísta. O Alto Egito produziu uma biblioteca maniqueísta em coptä que

atualmente está em processo de edição e tradução. Inúmeras partes dos escri-

tos maniqueístas foram descobertas entre 1902 e 1914 por várias expedições

alemãs em Turfan, na borda nordeste do deserto Taklamakan, na Ásia Central.

Uma seleção desses escritos, traduzida para o inglês a partir do parto, do persa

Bibliografia para §7.1c (2):Textos

James M. Robinson (ed.),

The Nag Harnmadi Library in English

(3d ed.; San Fran¢is¢o: HarperCollins, 1990).

Hans-Joa¢him Klimkeit,

Gnosis on the Silk Road: Gnosti¢ Texts from Central Asia

(San Franclsco: HarperCollins,

1993).

Layton, Gnostic Scriptutes.

L Gardner, The Kephaloia of the Teocher: The Edited Coptic Manichaeon Texts in Tronslotion with Commentary

(NHMS 37; Leiden: Brill, 1995).

Bibliografia para §7.1 c (2): Estudos

Knut Schãferdiek, "The Manichean Collection aí Apocryphal Acts

ascribed to Leuclus

Charinus," In Sch-

neernelcher, NTAI~oc 2.87-100.

Bibliografia para §7.1 ç (2): Ferramentas

Craig A. Evans, R.L.Webb, and R.L.Wiebe (eds.),

Nog HammadiTexts ond the Bible:A Synopsis and Index

(N3-1"S 18;

Leiden: Brill, 1993).

Bibliografia para §7.1c (2): Bibliografia

David Scholer, Nag Hammodi Bibliography 1970-1994 (NHMS 32; Leiden: Brill, 1997).

EXAME

DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES

médio e do turco antigo (uighur), foi publicada recentemente por Hans-Joachim

Klimkeit. Embora todos esses textos tenham sido escritos após o período do

cristianismo primitivo, são importantes para uma compreensão melhor do

gnosticismo cristão primitivo.

(3) Os Apócrifos do Novo Testamento. O corpus conhecido como Apócrifos

do Novo Testamento é uma coleção moderna dos primeiros escritos cristãos. A

intenção da coletânea foi reunir escritos cristãos primitivos atribuídos a auto-

res apostólicos e também evangelhos anônimos, atos de apóstolos, apocalipses

e cartas que não haviam sido incluídos no cânon do Novo Testamento. Esses

apócrifos abrangem escritos que podem ser atribuídos a uma data tão remota

como o século I e tão recente como os séculos IV, V ou mesmo VI. Nenhum

deles jamais recebeu aprovação canônica, pois quase todos tiveram origem em

círculos cristãos que não faziam parte das igrejas católicas estabelecidas. Por

isso, eles estavam sujeitos a reelaborações contínuas e a mudanças causadas pela

comunicação oral e por adaptações intencionais a novas situações eclesiásticas

e políticas.

Os apócrifos chegaram até nós de diferentes maneiras. Muitos ainda eram

lidos na Idade Média e foram publicados pela primeira vez na Renascença; outros

foram conhecidos através de citações e excertos nos Padres da Igreja. A maioria,

porém, teve sua origem em descobertas de manuscritos, em geral fragmentários,

ao longo dos últimos cem anos. As publicações mais recentes de apócrifos contêm

mais que o dobro dos incluídos em edições publicadas no começo do sécult~ XX.

Em muitos casos, o texto está preservado num único manuscrito, e freqüen-

temente não na língua grega original, mas apenas em traduções ou traduções

secundárias para o latim, o copta, o siríaco, o armênio, o georgiano, o etíope ou

o árabe. Com freqüência, o enunciado original e a composição desses escritos só

podem ser reconstruídos por meio da comparação laboriosa de vários fragmentos,

cópias e traduções. Por isso, em geral é muito difícil decidir com algum grau de

certeza questões de autoria, datação e forma original do texto.

 Seja ou não possível atribuir a qualquer desses apÓcrifos uma data antiga ou

tenha ele sua origem num período mais recente, esses escritos são testemunhos

importantes da história do cristianismo primitivo. Mesmo nos casos em que uma

data relativamente tardia dera ser levada em conta, multas vezes são incorporadas

tradições cujas origens remontam aos primeiros momentos do cristianismo. Se

Bibliografia para §7.1c (3):Textos

Schneemelcher, NTApoc

J.K. Elliott, The Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christlan Literature in an English Translation

(Oxford: Clarendon, 1993).

Bibliografia para §7.1 c (3):

Estudos

François 8ovon and R Geoltraln (eds.), ~crits opocryphes chrétiens (Bibliothèque de la Pldiade 442; Paris: Galli-

mard, 1997).

Bibliografia para §7.1c (3): Bibliografia

J.H. Charlesworth with J.R. Muetler, The New Testoment Apocrypha anal Pseudepigrophm A Guide to Pub/ications ,

wirh Excurses on Apocalypses

(ATLA Bibliography Sedes 17; Metuchen, N J: Scarecrow, 1987).

Page 11: Introdução ao Novo Testamento

7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento

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FONTES PARA A HISTÓRIA DO CRISTIANISMO PRIMITIVO

a perspectiva teológica desses apócrifos se desvia da visão dos Padres da Igreja,

ela pode muito bem fornecer esclarecimentos importantes sobre as pereepções

e práticas religiosas dos primeiros cristãos. Seu espectro variado possibilita ver

a grande diversidade da devoção e da prática religiosa cristã primitivas - uma

perspectiva que a orientação polêmica do cânon do Novo Testamento obstrui

ou procura limitar.

(d) Testemunhos Fora do Cris tianismo ~

Testemunhos não-cristãos para os primórdios do cristianismo são poucos e

infelizmente não muito informativos. Há um relato sobre ]esus no Antiguidades

(18.63) do historiador judeu ]osef0, falecido no ano 100 d.C., mas não está

preservado em sua forma original, pois foi totalmente revisto por um escriba

cristão posterior. Reconstruções do texto original do relato de ]osefo foram ten-

tadas, mas continuam incertas. ]osefo (Ant. 20.200) também fala da morte de

Tiago, "irmão de ]esus, que era chamado Cristo", dizendo que ele foi acusado

pelo sumo sacerdote Anás de ter transgredido a lei, e entregue para ser apedre-

jado (provavelmente no ano 62 d.C.) - um relato que parece confiável, pois é

muito menos lendário que uma história narrada por Hegesipo, preservada na

História Eclesiástica de Eusébio (2.23.11.18). Outras informações sobre ]esus

e o cristianismo primitivo procedentes de fontes judaicas, isto é, rabínicas, não

têm valor histórico.

Os testemunhos romanos mais antigos aparecem nas obras de Suetônio,

Tácito e Plínio, o Moço - os três escreveram no começo do século II d.C. Suetônio

(Vida de Cláudio 25.4) faz um breve relato sobre a expulsão de judeus de Roma

durante o reinado de Cláudio (41-54 d.C.), porque provocavam perturbações

constantes "incitados por Cresto" (impulsore Chresto). Com toda probabilida-

de, essa é uma referência a judeus que viviam em Roma e eram seguidores de

Cristo ("Christus'). Em Vida de Nero (16.2), Suetônio diz que os cristãos, que

seguiam uma crença nova e maléfica (male]icus superstitio), foram expulsos de

Roma por Nero. Tácito relata mais detalhadamente que os cristãos, que deri-

varam seu nome de Cristo, crucificado sob Pôncio Pilatos, foram executados

de forma extremamente cruel, por ordem de Nero, depois do grande incêndio

de Roma.Ele acrescenta que foram punidos não tanto por serena suspeitos do

incêndio, mas por causa do ódio que alimentavam contra a humanidade (Ann.

15.44.2-8). Pertence ao mesmo período o primeiro relato mais extenso sobre

os cristãos, escrito por Plínio, o Moço. No ano 112 d.C., Plínio era governador

da Bitínia, na Ásia Menor, e nessa qualidade escreveu uma carta ao imperador

Trajano pedindo orientações sobre o tratamento que deveria dar aos cristãos e

sobre as medidas legais apropriadas a adorar contra eles (Epist. 10.96). Por essa

carta, sabemos que os cristãos se reuniam de manhã cedo, juraram não cometer

Bibliografia para §7.1 d

W.

den Boer,

Scriptorum paganorum I-IVsaec. de Christianis testimonia(2d ed.; Lelden: Brill, 1965).

FF Bruce,Jesus and Chrstan Orgns Outsde the New Testarnent(rev ed.;

London: Hodder

& Stoughton, 1984).

§ 7.1d EXA/v~E DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES

1 7

crimes, e que voltariam a se encontrar mais tarde para uma refeição comum;

é interessante também que os únicos dois ministros cristãos que ele menciona

são duas escravas que eram diaconisas. Essas informações romanas têm pouco

valor no que diz respeito à história cristã primitiva. São importantes, porém,

porque revelam uma ponderada tentativa romana oficial no começo do século

II de formular uma política imperial relacionada com o tratamento a esse novo

movimento religioso. A correspondência de Plínio com Trajano e o rescrito de

Adriano a Minúcio Fundano serão analisados mais detalhadamente numa seção

futura (§12.3d). Pouco se pode depreender do relato de Dio Cássio (Epitome

67.14) sobre a execução do cônsul Flávio Clemente e o desterro de sua esposa,

que fora acusada:de ateísmo, e do seu comentáriode que eles pereceram com

outros que se inclinavam para crenças judaicas, É possível que isso se retira à

perseguição dos cristãos promovida por Domiciano.

Informações sobre os cristãos começam a fluir mais profusamente na metade

do século II. Luciano de Samósata relata em grande detalhe a morte do filósofo

cínico Peregrino Proteu, que no passado havia sido cristão. Em seu livro sobre

o pseudoprofeta Alexandre de Abunoteichos, ele inclui cristãos, ateus e epicu-

ristas na mesma categoria. O imperador Marco Aurélio fez algumas observações

negativas sobre os cristãos em suas

Meditações.

Seu professor, o orador romano

Fronto, publicou um discurso contra os cristãos, hoje perdido. Os relatos mais

detalhados sobre os cristãos estão preservados no escrito do platônico Kelsos

(Celso), citado em parte por Orígenes em sua contestação da obra de Celso. Em-

bora interessante, esse material apresenta um testemunho vívido da diversidade

cristã na segunda metade do século II, mas pouco contribui para a história do

início do cristianismo. Ele é mais importante para a controvérsia entre paganismo

e cristianismo que começou no século II d.C.

2 . O T E X T O D O N O V O T E S T A / ~ E N T O

; /

(a) Problemas de Transmissão dos Textos do Novo Testamenta7~

Nem um único autógrafo de qualquer livro do Novo Testamento foi preser-

vado. As cópias mais antigas conservadas foram feitas em torno de 200 d.C., com

exceção de um minúsculo fragmento do Evangelho de loão de um manuscrito

Bibliografia para

§72.:Texto

Barbara and Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos, Carlo M. Martini, and Bruce M.Metzger (eds.),Nestle Aland:

Novum Testomentum Groece(27th ed.;Sttrtt<jart: Deutsche Bibelgesellscha~ 1994).

Bibliografia para §73.: Estudos Inforrnações

Frederi¢kG. Kenyon, TheText oftheGreekBbe(3d ed., revA.W Adams; London: Du¢kworth, 1975).

Bruce M. Metzger,The Text of the New Testament: Its Transmission, Corruption, and Restoration(3d ed.; New Yorlc

Oxford University Press, 1992).

Kurt

Aland and

Barbara Aland, The

Text of the New Test«ment: An Introduction to the Criticai Editions ond to

the

Theory and Proctce of Modern Textua Crtcsm(2d ed.;

Grand Rapids, MI: Eerdmans,

1989).

Hans Uetzmann, Textegeschichte und Textkritik, in idem,Kleine Schriften(3 vols.; TU 67, 68, 74; Berlin: Akad-

emle-Verlag,1958-1962) 2.15250.

Page 12: Introdução ao Novo Testamento

7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento

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1 8

F O N T ES PAR A A H I ST Ó R I A D O C R I ST I AN I SM O PR I M I T I VO

§ 7

escrito na primeira metade do século II d.C. (q~52). Todas as cópias mais antigas

preservadas são papiros (para materiais de escrita, ver §2.6d) e rodas foram

encontradas no Egito, onde a areia seca dodeserto retarda a decomposição de

materiais de escrita. Elas eram manuscritos "unciais', também chamados «maiús-

culos", isto é, eram escritos em letras grandes sem separação entre as palavras.

Manuscritos posteriores são "minúsculos", escritos em letras cursivas pequenas,

ligando várias letras a grupos ou.sílabas. Se o formato preferido para livros na

antiguidade era o rolo, todos os manusSritos do Novo Testamento eram códices

(com exceção de alguns que foram escritos no verso de rolos mais antigos, como

q~l»). O formato do códice possibilitava incluir mais do que apenas um evangelho

ou uma epístola num único manuscrito. De fato, vários manuscritos datados de

antes de 300 d.C. eram coleções de numerosos escritos, como q04», que incluía os

quatro evangelhos e o Livro dos Aros, ou 0~«6, que incluía quase todas as cartas

de Paulo. Os manuscritos mais antigos contendo todo o Novo Testamento foram

escritos no século IV d.C. (Códice Sinaítico e Códice Vaticano). Esses são códices

de pergaminho e, como os papiros anteriores, são também "unciais'. Embora

ainda haja numerosos manuscritos do Novo" Testamento em papiro, datados de

séculos posteriores, o códice em pergaminho passou a ser o formato empregado

com mais freqüência para manuscritos da Bíblia cristã inteira, abrangendo o

Antigo e o Novo Testamentos.

Em alguns aspectos, os problemas da transmissão textual do Novo Testa-

mento são os mesmos que se encontram para a transmissão manuscrita de outros

autores antigos. Em ambos os casos, os erros feitos na cópia de manuscritos são

os mesmos: inversão de letras e omissão de letras individuais, com a conseqüência

do surgimento de uma palavra diferente; haplografia (omissão de letras idênticas

ou de grupos de letras idênticos); ditografia (cópia repetida de uma letra ou de

um grupo de letras); confusão de letras semelhantes; e finalmente "homoioteleu-

ton", isto é, omissão de uma palavra ou de uma linha inteira porque ela termina

com as mesmas letras de uma palavra ou linha precedente - um erro muito fre-

qüente. Existem também mudanças deliberadas. Algumas dessas são puramente

estilísticas, como a substituição de expressões da coiné (fala vernácula) por Um

grego mais literário (aticismo). Outras resultam da comparação com diferentes

manuscritos do mesmo escrito. Citações b~licas nos escritos do Novo Testamento

são com freqüência corrigidos comparando-os com manuscritos do Antigo Tes-

tamento. Textos paralelos dos evangelhos foram absorvidos e incorporados uns

aos outros. Motivos dogmáticos também causaram correções, por exemplo, em

1Ts 3,2, onde Paulo chama Timóteo «companheiro-colaborador (ouwp¥óç) de

Deus"; um escriba alterou essa expressão para "serro (5~áKovoç) de Deus", outro

Kurt Aland, Kurzgefosste Liste der griechischen Hondschriften des Neuen Testoments (ANT 1; 2d ed.; Berlin:

de

Gruyter, 1994).

Idem (ed.), Materialien zur neutestamentlichen Handschriftenkunde (ANT 1; Berlin: de Gruyter, 1969).

Idem, Text und Textwert der griechischen Handschriften des Neue n Testaments (3 vols.; Berlin: de Gruyter, 1987-

1993).

Bart

Ehrman and Michael W. Holmes (eds.), The Text of the New Testament in Contemporary Research: Essays on

the Sratus Questionis: A Volume in Honor of 8ruce It4. Me~zger (SD 46; Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995).

§ 7 . 2 a

O T E XTO D O N O V O T E STAM E N T O 1 9

manuscrito omite "de Deus", e uma combinação posterior de diferentes leituras

resulta num texto que diz "serro de Deus e meu colaborador". Mesmo depois

do século II d.C., materiais da tradição oral ainda eram acrescentados ao texto

dos evangelhos, como a perícope do operário num dia de sábado em Lueas 6,5

(Códice D) e a história de lesus e da mulher surpreendida em adultério, que em

muitos manuscritos se encontra depois de loão 7,52; e num outro manuscrito,

depois de Lucas 21,38. O acréscimo dogmático mais evidente é a inserção da

fórmula trinitária em 1 Ioão 5,6-7 na tradução latina (a assim chamada

Comina

lohanneum).

Em muitos outros modos, porém, os problemas de crítica textual do Novo

Testamento diferem daqueles de sua disciplina irmã clássica. Os autores clássicos

sãogeralmente preservados em apenas alguns manuscritos, e com freqüência em

apenas um, mas existem centenas de manuscritos do Novo Testamento em grego,

numerosas traduções que derivam de um estágio anterior do desenvolvimento

textual, um grande número de lecionários, e finalmente, a partir do século II d.C.,

um número incontável decitações nas obras dos Padres da Igreja. Além disso,

enquanto os únicos manuscritos preservados de autores clássicos com freqüên-

cia vêm da Idade Média, a tradição manuscrita do Novo Testamento começa já

no fim do século II d.C.; apenas o período de um século, portanto, separa essa

tradição da época em que os autógrafos foram escritos. Pareceria assim que a

crítica textual do Novo Testamento se assenta numa base muito mais vantajosa

do que aquela em que se fixa a tradição textual de autores clássicos.

No entanto, as vantagens que essa rica tradição parece oferecer não devem

ser superestirnadas. Problemas na reconstrução de um texto original são, até certo

ponto, independentes do número de manuscritos preservados, porque a maioria

das corrupções de textos antigos ocorreu durante os primeiros cinqüenta a cem

anos, isto é, antes dos manuscritos subsistentes mais antigos e de uma tradição de

cópia regular. Por outro lado, dificuldades surgem da própria riqueza da tradição

de manuscritos por causa da complexidade das inter-relações de manuscritos,

o que torna impossível a construção de um estema (uma árvore genealógica de

manuscritos). A construção de um estema é o método fundamental na critica

textual de autores clássicos; no momento em que as relações e dependências

de manuscritos subsistentes se tornam claras, é bastante fácil eliminar rodas as

variantes secundárias. Para manuscritos do Novo Testamento, porém, dependên-

cias só podem ser estabelecidas esporadicamente e para um número limitado

de manuscritos, ou somente para variantes individuais ou grupos de leituras

diferentes. Em geral, os vários ramos da transmissão de manuscritos se cruzaram

e mesclaram numa data tão antiga e a tal ponto, que um estema se torna absur-

damente complexo. Isso se aplica também para as traduções, das quais algumas

estão preservadas numa grande quantidade de manuscritos, como a Vulgata.

Em vez de reconstruir um estema, a crítica textual do Novo Testamento

procura classificar famílias de manuscritos. Essas classificações tiveram um certo

sucesso e ajudaram a introduzir alguma ordem na diversidade aparentemente inex-

tricável da transmissão. Depois de algumas tentativas anteriores de estabelecer

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F O NT E S P A R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S M O P R I M I T I V O

famílias, o sistema de B.E Westcott e EH. Hort, os mais influentes especialistas

da crítica textual (§7.2f), classificou todos os manuscritos seja como represen-

tantes seja como fusões de quatro grandes famílias. As designações adotadas por

Westcott e Hort para essas famílias ainda são úteis como recurso para uma ca-

racterização preliminar de muitos manuscritos ou grupos de manuscritos. Outras

pesquisas, porém, questionaram a validade do seu "Texto Neutro" (ver abaixo) e

acrescentaram o "Texto de Cesaréia" como uma possível família a mais.

1. O Texto Ocidental.

Esta família~subsiste no Códice D dos Evangelhos e

Aros, no Códice D das epístolas, nas traduções do latim e do siríaco arcaicos e

em citações em autores dos séculos II e III (Marcião, lustino, Irineu, Tertuliano,

Hipólito e Cipriano). Apesar-de haver apenas alguns manuscritos gregos repre-

sentando este texto, ele deve ter existido já na metade do século II d.C., e foi

muito usado, especialmente no Ocidente. Entretanto, ele é às vezes considerado

um texto "rústico", não revisto, com leituras principalmente inconsistentes.

2. O Texto Alexandrino. O critério fundamental para esta família é a ocor-

rência de suas leituras especiais nas citações dos Padres da Igreja alexandrinos

desde Clemente e Origenes até Cirilo. Westcott e Hort atribuíram a esta família

apenas alguns manuscritos unciais (como C e L), o minúsculo 33 e as primeiras

traduções coptas. Hoje nela se incluiriam também os códices ~ e B, e ainda A e

alguns outros unciais e vários papiros que Wescott e Hort não conheciam. O texto

alexandrino mais recente era certamente um texto editado, revelando considerável

erudição filolÓgica, mas foi precedido por um texto mais antigo muito próximo

dele, que está em destaque em papiros anteriores, em citações em Clemente e

Orígenes e talvez também em ~ e B.

3. O Texto Neutro.

De acordo com Westcott e Hort, os dois códices da

Bíblia Grega mais antigos subsistentes }~ e B (especialmente o último) foram

testemunhas de um texto que estava livre de contaminações e de revisÕes in-

tencionais. Hoje, porém, os estudiosos classificam esses dois manuscritos com

a família Alexandrina.

4. OTexto deCesaréia. Esta família ainda não era reconhecida por West-

cott e Hort e parece ser a menos certificada. Supõe-se que tenha sua origem no

texto que Orígenes levou de Alexandria quando se mudou para Cesaréia; mas

ele foi contaminado posteriormente, de modo especial por leituras ocidentais.

Suas testemunhas subsistentes são o O uncial, várias minúsculas e as traduções

armênia e georgiana mais antigas.

5. O Texto Coiné ou Bizantino.

Não há dúvida de que esta família de ma-

nuscritos é, no geral, uma mistura de rodas as famílias mais antigas - um fato

que não exclui a subsistência de leituras mais antigas. Ela parece derivar de uma

revisão do texto do Novo Testamento que foi preparada por Luciano de Antio-

quia no fim do século III d.C. Apesar de incluir a imensa maioria de todos os

manuscritos e traduções conservados, ela é em geral considerada a família textual

mais recente e menos fidedigna. De fato, o textus receptus, o "texto recebido"

da Reforma e do período pós-Reforma, baseado exclusivamente em manuscritos

gregos medievais, é mais ou menos idêntico a essa família.

§ 7 . 2 a O T E X T O D O N O V O T E S T A M E N T O 2 1

Qualquer tentativa, porém, de tomar decisões de crítica textual simplesmen-

te com base nas relações familiares de leituras variáveis é insatisfatória, porque

muitos manuscritos contêm textos "misturados", isto é, algumas de suas leituras

pertencem a uma família, outras a uma família diferente. Além disso, algumas

famílias são tão grandes e contêm tantos textos diferentes, que é necessário cons-

truir subfamílias, o que aumenta a complexidade. Outro problema da exuberância

da transmissão é a quantidade, É necessário trabalhar com imensa quantidade

de material para encontrar testemunhas para uma leitura antiga possivelmente

importante em alguns manuscritos tardios que por sua vez são cheios de erros

de escrita e de variantes inúteis. A avaliação das citaçÕes nos Padres da Igreja

também apresenta dificuldades insólitas, embora ela seja de grande importância

para a localização geográfiea de manuscritos e de suas diferentes leituras. O uso

dessas testemunhas, porém, é complicado pelo fato de que com freqüência os

escritos dos Padres da Igreja estão preservados apenas em manuscritos medievais,

em que escribas podem ter corrigido o enunciado de citações bíblicas de acordo

com seus próprios textos. Além disso, para os Padres da Igreja como também para

as traduções antigas, que também seriam valiosas para a localização geográfica

da transmissão do texto grego, edições modernas confiáveis nem sempre estão

disponíveis. Assim, vista como um todo, a riqueza mesma da tradição põe o es-

tudioso diante de tarefas imensas e de muitos obstáculos, que mesmo a pesquisa

por computador não resolverá com rapidez e facilidade.

Considerando, porém, que o registro e a avaliação completos e abrangentes

de todas as diferentes leituras em manuscritos, traduçÕes, citações e lecionários

seriam pelos menos teoricamente possíveis, alguns problemas fundamentais da

crítica textual do Novo Testamento'não podem ser plenamente resolvidos desse

modo. Embora a maior parte do texto do Novo Testamento esteja bastante segura

com base no trabalho de crítica textual que foi realizado até aqui, numerosos

problemas pendentes pedem soluções que não podem simplesmente basear-se

na avaliação de leituras subsistentes e de tipos de texto e de famílias em que

elas ocorrem. O primeiro desses problemas surge do fato de que a transmissão

manuscrita dos escritos do Novo Testamento é muito inconstante. Existem ape-

nas algumas dezenas de manuscritos que contêm o Novo Testamento inteiro, e

somente uma porção muito reduzida desses são unciais dos séculos IV ao X d.C.;

os outros são minúsculos medievais que em geral representam o texto bizantino.

A vasta maioria dos manuscritos conhecidos apresenta apenas uma fração do

Novo Testamento. Entre esses, grande parte são manuscritos dos evangelhos, as

Epístolas Paulinas são representadas muito menos freqüentemente, as Epístolas

Católicas aparecem apenas esporadicamente e o Livro do Apocalipse raramente

é copiado.

O segundo problema é a grande linha divisória do inicio do século IV

d.C. A Grande Perseguição ao cristianismo de 303 a 311-13 d.C. representou a

destruição de um número incontável de manuscritos bíblicos, especialmente de

manuscritos gregos na parte oriental do império romano, onde a perseguição foi

mais implacável e durou mais tempo. Parece que essa destruição de manuscritos

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2 2 F O N T ES PA R A A H I S T Õ R I A D O CR I S T I AN I SM O P R I M I T I V O

§ 7

gregos trouxe como resultado a conservação de alguns tipos de texto mais antigos

apenas em traduções baseadas em textos gregos anteriores, como as traduções

do latim arcaico (Vetus Latina ou Itala), do siríaco arcaico e do copta saídico.

A reconstrução de um original grego a partir de uma tradução, porém, é noto-

riamente difícil, porque traduções oferecem apenas uma certeza relativa com

relação ao texto do original grego. Sabe-se muito bem que os editores modernos

dificilmente levarão a sério uma .variante textual que não esteja preservada em

algum manuscrito grego subsistente, rl)as apenas em traduções antigas, mesmo

não havendo dúvida de que essa variante deve ter existido num texto grego do

século li ou III.

O terceiro problema surge do fato de que temos acesso direto aos textos

gregos do século li tardio e do século III por meio de um número cada vez maior

de papiros - mas todos eles provêm do Egito e não dizem nada sobre tipos de

texto que eram correntes nesse tempo na Síria, na Ásia Menor ou na Grécia.

Além disso, em sua maioria, esses papiros são fragmentários (§7.2b) e em alguns

casos não permitem uma avaliação satisfatória do tipo de texto representado. A

situação se complica ainda mais com uma descoberta surpreendente no estudo

desses papiros antigos: poder-se-ia esperar que todos os papiros egípcios confir-

massem o texto de apenas uma das famílias de manuscritos estabelecidas pelos

peritos em crítica textual, especificamente o texto Alexandrino; esse, porém,

não é o caso. Em várias situações, papiros do século III apresentam o que, da

perspectiva dessas famílias, deve ser designado como "texto misturado». Isso não

necessariamente invalida a hipótese dessas famílias, mas significa simplesmente

que elas derivam de arquétipos que foram criados nas décadas iniciais do século

IV, ao passo que elementos típicos de rodas essas famílias existiam em textos

anteriores, embora as famílias em si ainda não existissem.

O quarto problema é que, por mais valiosas que possam ser as informações

dos papiros antigos, eles não nos dizem nada sobre a história do texto antes do

fim do século li, isto é, o tempo anterior à organização do cânon do Novo Testa-

mento (§7. lb). Não há dúvida de que só foi dada atenção especial ao texto desses

escritos depois que eles se tomaram «Sagrada Escritura" e somente quando os

primeiros grandes comentaristas do Novo Testamento, como Orígenes e Hipólito,

surgiram no século III. Como foram tratados os textos nos 100 a 150 anos que

separam os autógrafos da elevação do seu produto escrito à condição de Sagrada

Escritura? Deve-se observar também que um número muito menor de cópias

estava provavelmente em circulação nas primeiras décadas da transmissão. Se

um escriba se via diante de um texto corrupto ou ilegível e não tinha acesso a

outra cópia do mesmo texto, ele seria forçado a retocar o texto de acordo com

seus próprios critérios. Outro problema surgia quando um escriba encontrava

uma nota marginal no manuscrito que ele estava copiando. Essas marginalia

são em geral palavras ou frases que um escriba anterior havia acidentalmente

esquecido. Elas também podiam ser, porém, acréscimos posteriores como, por

exemplo, a determinação de que as mulheres devem ficar caladas na igreja, que

alguém escreveu na margem de ICor 14, e que um escriba inseriu depois de I Cor

§ 7 . 2 a O T E XTO D O N O V O T E STAM E N T O

23

14,34 e'outro depois de 1Cor 14,40. CorrupçÕes textuais decisivas, mudanças e

revisões de textos antigos gerahnente ocorriam durante os primeiros cem anos de

sua transmissão, isto é, durante o período em que o significado permanente de

um texto ou seu autor ainda não foi reconhecido ou ainda é tema de controvérsia.

Há inúmeros exemplos de alterações e corrupções dos autógrafos dos es-

critos do Novo Testamento durante o período inicial de sua transmissão. Esses

apresentam ao especialista em critica textual problemas que não podem ser

resolvidos com métodos de crítica textual convencionais que Hdam com ma-

nuscritos preservados apenas. Por exemplo, a edição do Evangelho de Marcos

que foi usada por Mateus e Lucas deve ter sido substancialmente diferente do

Evangelho de Marcos como ele é transmitido em todos os manuscritos antigos

(§I0.2b). No Evangelho de Ioão, um redator do início do século li acrescen-

tou diversas passagens (a mais importante é João 6,52-59) e um capítulo final

(cap. 2 I) que possivelmente não devem ter feito parte do texto original de Ioão

(§ 10.3b), embora apareçam em todos os manuscritos preservados. O que todos

os manuscritos transmitem como a Segunda Epístola de Paulo aos C0líntios é

na verdade uma compilação de várias cartas menores que Paulo havia enviado

a Corinto (§9.3d), o mesmo parece acontecer com relação à carta de Paulo aos

filipenses (§9.3e[2]). Até que ponto essas novas edições podiam alterar o texto

original é demonstrado na edição das cartas de Paulo realizada por Marcião

(§7.1b[4]) - observe-se que não era outro o objetivo de Marcião senão o de

restaurar o texto original dos escritos de Paulo Instrutivo é também o caso de

2 Pedro, que, escrito no século li, incorporou toda a Epístola de ludas numa

nova edição (2 Pedro 2; §12.20. A crítica textual por si só não pode resolver, e

em alguns casos não consegue sequer reconhecer, essas corrupções antigas do

original. A restauração do texto original requer em alguns casos o julgamento

critico e até a conjetura do intérprete do escrito do Novo Testamento em ques-

tão e a aplicação de outros métodos como a crítica da fonte e a crítica literária.

(b) Os Papiros

Os papiros, especialmente os que foram escritos desde o século II tardio

até o século IV d.C., ocupam lugar importante entre os manuscritos do Novo

Testamento. Eles são designados por um número precedido por um P gótico (~).

Os primeiros papiros do Novo Testamento foram descobertos no fim do século

XIX e começo do século XX, embora esses fossem principalmente pequenos

fragmentos, em geral medindo apenas alguns centímetros quadrados. Exceção

foi o Papiro de Oxirrinco 4.657 (q9t~) do século III ou IV d.C., contendo grandes

porções de Hebreus 2-5 e 10-12. Papiros mais extensos, em grande número,

Bibliografia para §7.2b

Kurt Aland,"Das Neue Testament auf Papyrus,~ in idem, 5tudien zur Oberlieferung des Neuen Testament$ und

seines Textes

(ANT 2; 8erlin: de Gruyter, 1967) 91-136.

Frederic Kenyon, Our Bible and the Ancient Manuscripts (rev. A.W. Adams, New York: Harper, 1958).

Joseph van Haelst, Catalogue des papyrus litteralres]uifs et chré~iens (Série Papyrologie 1; Paris: Publications de

la 5orbonne, 1976).

Page 15: Introdução ao Novo Testamento

7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento

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46

F O N T E S P A R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I $ / ~ O P R I / ~ I T I V O

§ 7

tos de textos primitivos subsistentes em cópias inéditas de manuscritos, que em

última análise dependiam dos autógrafos ou, no caso das cartas paulinas, da

publicação dessas cartas pelas igrejas que as haviam recebido. Assim, a tarefa

fundamental e mais difícil da crítica textual do Novo Testamento é a descrição

da história do texto nos séculos I, II e III. Para o século III, os papiros egípcios

fornecem algumas evidências valiosas, mas apenas para essa área geográfica

específica. Para o século II, porém, existem apenas testemunhos indiretos, como

as citações em Justino Mártir, Irineu e~Clemente de Alexandria, as traduções do

latim arcaico e do siríaco arcaico, e as evidências para a edição do Novo Tes-

tamento de Marcião e do Diatéssaron de Taciano (e a reconstrução dos textos

de Taciano e de Marcião é a tarefa mais complexa da crítica textual ). A crítica

textual deve portanto definir critérios que ajudem a compreender esse período

antigo, não controlado e pré-canônico da transmissão. Alguns princípios desse

passo importantíssimo na busca do texto mais antigo do Novo Testamento são

os seguintes:

1. Deve-se ter sempre presente que mesmo a melhor decisão possível com

base nas evidências de manuscrito disponíveis e na identificação mais correta

do arquétipo mais antigo de uma família de manuscritos não nos fornece infor-

mações sobre a transmissão textual durante os primeiros cinqüenta a cem anos

da transmissão de um texto.

2. A melhor leitura de manuscrito possível de obter pode ainda ser a re-

construção de um texto corrompido feita por um escriba, isto é, de corrupções

que com toda probabilidade ocorreram em períodos anteriores de transmissão

do texto, especialmente quando um escrito ainda não estava ao abrigo de status

canônico.

3. Arquétipos das famílias textuais são representados por manuscritos

antigos subsistentes apenas para uma área geográfica limitada, especifica-

mente o Egito, enquanto a reconstrução dos arquétipos de testemunhos mais

distantes geograficamente, como traduções antigas, está repleta de fatores de

incerteza.

4. Deve-se estar preparado para reconhecer uma leitura antiga potencial-

mente valiosa em manuscritos e traduções procedentes de áreas marginais da

transmissão textual. As concordâncias, por exemplo, das traduções do latim

arcaico e do siríaco arcaico devem ser reconhecidas como testemunho de leituras

que existiam já no século II.

5. Um manuscrito relativamente tardio pode ter preservado leituras antigas

valiosas, ao passo que mesmo manuscritos mais antigos podem conter leituras

de pouco valor para a reconstrução do texto primitivo. Um bom exemplo disso

é o minúsculo 1739 do século X, cujo texto é quase idêntico ao do Papiro mais

antigo das epístolas paulinas, de cerca-de 200 d.C. (~94e). Mesmo o julgamento

sobre o caráter geral de um manuscrito posterior não necessariamente determina

o valor de todas as suas variantes.

6. Citações feitas pelos Padres da Igreja são um guia importante para a data

e o local dos textos que estavam realmente em uso nos primeiros séculos.

§ 7 . 2 g

O T E X T O D O N O V O T E $ T A / v ~ E N T O 4 7

7. Incertezas importantes e um amplo espectro de variantes nos testemu-

nhos conservados podem apontar para uma antiga corrupção de um texto de um

tempo anterior à composição de qualquer manuscrito subsistente. Nesses casos,

é muito possível que todas as leituras variantes sejam tentativas diferentes de

corrigir um texto corrompido e que nenhum manuscrito por si só preservou o

texto original.

8. Se é possível reconstruir um texto plausível com a ajuda de todos os

testemunhos disponíveis, não se pode excluir a reconstrução hipotética do texto

mais antigo (conjetura). Essa reconstrução, porém, exige não somente um domí-

nio competente dos métodos de critica textual, mas também um conhecimento

preciso da língua, terminologia e teologia do autor em questão. A crítica textual

e a crítica do conteúdo são componentes inseparáveis da disciplina.

9. O conceito de um texto "original" é problemático em si mesmo. Paulo

pode ter redigido sua Epístola aos Romanos em várias formas, uma para ser en-

viada a Roma, uma segunda forma como missiva a Éfeso e uma terceira versão

para ser distribuída a todos. 2 Coríntios é uma compilação de quatro ou cinco

cartas de Paulo. O texto mais antigo do Evangelho de Marcos usado por Mateus

e Lucas não era idêntico ao texto que aparece mais tarde nos manuscritos mais

antigos do Evangelho de Marcos.

Se tudo o que foi dito, pelos problemas relacionados, sugere que a recons-

trução de um texto "original" dos escritos do Novo Testamento é uma tarefa

desanimadora e talvez impossível, deve-se acrescentar que apenas uma porção

muito pequena do texto do Novo Testamento está sujeita a dúvidas. De modo

gerai, é alto o grau de certeza com relação aos textos mais antigos. Como disci-

plina importante da ciência bíblica, porém, a crítica textual precisa ser reaplicada

constantemente, mesmo nos casos em que uma solução parece ter sido alcançada.

Cada edição impressa do Novo Testamento Grego é uma reconstrução hipotética. )

Além disso, leituras variantes demonstram em muitos casos como certas passagens

foram interpretadas nos primórdios da Igreja e com freqüência apontam para (

 dificuldades e problèmas na com.preensã0 de um texto. Assim, a critica textual é

em gerai o primeiro passo para a descoberta e solução de questões relacionadas

com a interpretação dos escritos do Novo Testamento.

3 . CR{T ICA DA FONTE

(a) Considerações Gerais

Uma pequena parcela apenas dos escritos do Novo Testamento e de outras

peças da literatura do cristianismo primitivo pode ser considerada como produto

criativo de um autor individual. O recurso a fontes escritas era disseminado e

determinou consideravelmente o conteúdo e a forma desses escritos. Além dis-

so, muitos livros não são preservados em sua forma original, mas em sua forma

subsistente são produto de redações, edições e compilações secundárias. Essa

situação força o estudante do Novo Testamento a enfrentar mui tos problemas

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F ON TES PAR A A H I ST Ó R I A D O C R I ST I AN E SM O PR I M I T I VO

de crítica da fonte. A análise a seguir esboçará alguns problemas fundamentais

e característicos dessa espécie. Uma abordagem mais completa está disponível

nos livros que tratam da história da literatura cristã primitiva relacionados na

bibliografia para este capítulo.

~. (b) O "Problema Sinótico" e as Fontes dos Evangelhos

"Evangelhos Sinóticos" é ã desi~rmção para os três primeiros evangelhos

do Novo Testamento, Mateus, Marcos e Lucas. Há muito tempo já se perce-

beu que esses três evangelhos apresentam materiais paralelos numa estrutura

semelhante e com freqüência na mesma seqüência de perícopes individuais.

Além disso, a redação das respectivas passagens paralelas em quaisquer dois

ou três desses evangelhos é multas vezes quase a mesma, ou tão próxima, que

certamente se deve concluir pela existência de algum tipo de relação literária.

Por outro lado, ao comparar o Evangelho de João com esses três evangelhos,

existem, sem dúvida, certas semelhanças, mas, exceção feita à narrativa da pai-

xão, o enunciado e a seqüência dos materiais são bastante diferentes, e grandes

porções dos materiais do Quarto Evangelho, especiaimente os longos discursos

Bibliografia para §73b:Textos

Albert Huck, Synopsis of the First Three Gospels with the Addition of the Johonnine Porollels (rev. ed. by Heinrich

Greeven;Tübingen: Mohr/Siebeck, 1981).

Kurt Aland

(ed.),Synopsis Quo~uorEvongeliorum

(lOth ed.;Stu~gart:WOrttembergis¢he Bibelanstalt, 1978).

Idem (ed.), Synopsis o f the Four Gospels: GreekoEngl ish Edition of the Synopsls Quottuor Evongeliorum with the Text

ofthe Revised Version (United Bible Societies, 1972 and later editions).

M.-I~. Boisrnard and A~ Lamouille, Synopsis Graeca Quattuor Evangeliorufn (Leuven: Peeters, 1986).

Burton H.Throckmorton (ed.), Gospel ParaUels: A Comparison of the Synoptic Gospels: With Alternative Readings

from the Manus(ripts and Non-Canonical Parallels (5th ed.; Nashville, TN: Nelson, 1992).

John S. Kloppenborg, Q

Parallels: Synopsis, Criticol Notes & Concordance

(F&F;Sonoma, CA: Polebridge, 1988).

Robert W. Fu nk (ed,), New Gospel Parallels (2 vols.; Philadelphia: Fortress, 1985).

James M. Robinson, Paul Hoffmann, and John ç. Kloppenborg (eds.), The Criticai Edition ofQ:A Synopsls (Leuven:

Peeters, and Minneapolis: Fortress, 2000).

Bibliografia para §7.3b: Estudos

Heinrich-Julius Holtzmann,

Die synoptischen Evan9elien: Ihr Ursprun9 und ihr geschichtlicher Charakter

(Leipzig:

Engelmann, 1863). A apresentação clássica da hip6tese das duas fontes.

Julius Wellhausen, Einleitung in die drelersten Evangelien (2d ed.; Berlin: Reimer, 1911; reprinted in idem, Evan9e-

Uenkommentare;

Berlin: de Gruyter, 1987).

B.H. Streeter, The

Four Gospel~A Study ofOrigins

(London: Macmillan, 1924 and reprints). A reconstrução mais

detalhada das fontes para os Evangelhos Sinóticos.

Wllliam R. Farmer, The Synoptic Problem (Dillsboro, NC:Western North Carolina Press, 1976). Farrner questiona a

hipótese das duas fontes.

James M.Robinson,'LOGOI SOPHON:On the Gattung aí Q,»in idem and

Koester, Trajectories,71-113.

James M. Robinson, Paul Hoffmann, and John S, Kloppenborg eds.), Documenta Q: Reconstruction of Q through

Two Centurles of Gospel Research Excerpted, 5orted and Evaluated

(I.euven: Peeters, 1996-).

John S. Kloppenborg, The Formation of Q: Trajectories in Anclent Wisdom Conections (Studies in Antiquity and

Christianity; Phi adelphla: Fortress, 1987).

Koester, Ancient Christian Gospels, 128-72 (on Q) a nd 216-39 (on the passion na rrative).

Bibliografia para §73b: Bibliografia Histõria dos Estudos

T.R.W. Longstaffand P.A.Thomas, TheSynopticProblem:A Bibliography, 1716-1988 (New Gospel Studies 4; Macon,

GA: Mercer University Press, 1988).

Arthur J. Beilinzoni with J.B.Tyson and W.O. WaJker (eds.), The Two-$ource Hypothesis: A Criticai Appraisal (Macon,

GA: Mercer University Press, 1985).

§ 7 . 3 b o T E X TO D O N O V O TE S TA M EN TO

4 9

de Jesus, não têm paralelos nos Evangelhos Sinóticos. É fácil imprimir os três

primeiros evangelhos lado a lado para demonstrar suas seqüências de perícopes

paralelas, mas a incorporação do Quarto Evangelho a essa "sinopse" representa

uma grande dificuldade.

«-7-. Essas semelhanças dos Evangelhos Sinóticos geraram uma série de hipóteses

sobre suas relações literárias. A hipótese mais antiga, que também concorda com

a venerável tradição eclesiástica, sustentava a prioridade de Mateus. Nesse caso,

Marcos é visto como uma condensação de Mateus, e Lucas como uma composição

posterior baseada tanto em Mateus como em Marcos. A proposição da prioridade

de Mateus foi apresentada numa forma modificada no fim do século XVIII por

Johann Jacob Griesbach. De acordo com Griesbach, Mateus foi antes usado por

Lucas, e Marcos é um resumo de Mateus e de Lueas. Essa "hipótese de Griesbach"

só interessa porque foi reapresentada recentemente pelo pesquisador americano

WiUiam R. Farmer e seus colaboradores, embora com aceitação limitada. Uma

segunda solução é a "hipótese do evangelho primitivo", que propõe a existência,

originalmente, de um único escrito evangélico oniabrangente, disponível no

passado a todos os autores dos nossos evangelhos, mas agora perdido, do qual

os evangelhos subsistentes, inclusive o de João ( ), extraíram excertos de acordo

com as necessidades de suas comunidades. A terceira tentativa de uma explicação

do problema sinótico, conhecida como "hipótese do fragmento», foi proposta

inicialmente por Friedrich Schleiermacher. Ele atirmava que é suficiente pensar

que a forma mais antiga dos escritos evangélicos consistia em várias coleções frag-

mentárias dos materiais sobre Jesus. Esses fragmentos devem ter sido diferentes,

dependendo do interesse do colecionador, um interessando-se apenas pelos ditos

de Jesus, outro pelas histórias de milagres de Jesus. É evidente que a hipótese

de Schleiermacher é de fato uma espécie de hipótese de duas fontes - uma fonte

para ditos, outra para as histórias sobre Jesus - embora ele não analise a possível

dependência de qualquer dos evangelhos sinóticos de outro.

Os estudos de Christian Gottlob Wilke e de Christian Hermann Weisse,

ambos publicados em 1838, demonstraram convincentemente que o Evangelho

de Marcos deve ter sido o evangelho mais antigo e que foi usado tanto por

Mateus como por Lucas. Pouco depois Heinrich lulius Holtzmann aprofundou

essa proposta demonstrando que Mateus e Lucas devem ter usado uma segunda

fonte comum, a assim chamada Fonte dos Ditos Sinóticos (sigla "Q», da palavra

alemã

Quelle;

ver § 10. la[1 ]). Enquanto os dois últimos evangelhos extraíram

sua estrutura e também a maioria dos materiais sobre a vida e atividades de

Jesus do Evangelho de Marcos, a Fonte dos Ditos forneceu-lhes as palavras de

Jesus, que foram então transformadas, de vários modos, em discursos de Jesus.

Essa solução do problema sinótico, conhecida como "hipótese das duas fontes»,

é hoje amplamente aceita, embora algumas objeções ainda sejam levantadas,

especialmente com relação à existência real da Fonte dos Ditos (O).

Os argumentos a favor da hipótese das duas fontes mudaram um pouco

desde que ela foi concebida. O argumento mais forte foi proposto bem no começo

da descoberta da prioridade de Marcos, especificamente, de que Mateus e Lucas

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5 0

FONTES PAPA A HISTÓRIA DO CP, IST IANISMO PRIMIT IVO

§ 7

s~ coincidem na seqüência de suas perícopes nos casos em que Marcos apresenta

a mesma seqüência. Esse argumento ainda é válido. Entretanto, originalmente,

ele se relacionava com o pressuposto de que essa seqüência correspondia ao

curso real dos eventos no ministério de Jesus, fazendo assim do Evangelho de

Marcos o testemunho mais antigo para a vida do Jesus histórico. Essa confiança

sofreu um abalo quando, pouco depois do início do século XX, WiUiam Wrede

demonstrou que a seqüência de eventos de Marcos no ministério de Jesus tem

pouca relação com o ministério histódco de Jesus, sendo de fato um construto

teológico do autor do evangelho mais antigo. Isso fortaleceu o argumento a fa-

vor da prioridade de Marcos. Seja qual for o conhecimento que Mateus e Lucas

possam ter tido, se é que tiveram, do ministério do Jesus histórico, eles adotaram

em suas composições a construção artificial da seqüência de eventos do Evan-

gelho de Marcos; essa conclusão reforça os argumentos de que eles dependem

literariamente de Marcos.

Mais difícil do que a demonstração da prioridade de Marcos é a reconstru-

ção da segunda fonte comum de Mateus e Lucas, o Evangelho dos Ditos Q. Em

alguns casos, as palavras comuns a esses dois evangelhos, não somente ocorrem

numa seqüência muito próxima, mas também revelam muitas semelhanças na

composição e no fraseado. Essa afinidade é especialmente evidente nas porções

paralelas do Sermão da Montanha (Mateus 5-7) e do Sermão da Planície (Lucas

6). Em outras porções dos ditos comuns, porém, podem-se observar diferenças

marcantes tanto no fraseado quanto na seqüência. Deve-se presumir portanto que

"Q" foi realmente a fonte escrita, mas que Mateus ou Lucas, ou ambos, também

usaram essa fonte com bastante liberdade ou que cada um deles tece acesso a

diferentes estágios desse desenvolvimento. Entretanto, o Projeto Internacional

sobre Q, coordenado pelo pesquisador americano James M. Robinson, concluiu

recentemente com sucesso a reconstrução do texto grego dessa segunda fonte

,usada por Mateus e Lucas. O trabalho desse grupo internacional de especialistas

oferece fartas evidências da existência dessa segunda fonte de Mateus e Lucas

como um texto grego - mesmo que alguns dos seus materiais fossem originaria-

mente traduzidos do aramaico.

.~¿--,Á(':. Reconhecer que Mateus e Lucas empregaram as mesmas duas fontes es-

critas, o Evangelho de Marcos e o

Evangelho de Ditos Q,

não resolve todos os

problemas das fontes de Mateus e Lucas. Ao lado dos materiais comuns extraídos

dessas duas fontes, Mateus e Lucas incluem ambos materiais diferentes. Entre

esses estão as narrativas da infância de Mateus 1-2 e de Lucas 1-2, diversas

parábolas em Mateus 13 e materiais apocalípticos especiais em Mateus 24-25,

e em Lucas especialmente boa parte do material incorporado à narrativa de

viagem de Lucas 9,51-18,15. Isso levou à sugestão de duas fontes adicionais,

uma para os materiais especiais de Mateus (identificada com "M") e outra para

os materiais especiais de Lucas (identificada com "L"). Quanto a esta última,

parece haver concordância geral, embora seja mais difícil determinar-lhe o grau

de abrangência (ela continha apenas os materiais especiais de Lucas ou também

perícopes comparáveis a seções do Evangelho de Marcos?). De qualquer modo,

O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO

esquadrinhar teorias da fonte em ~aos de detalhes cada vez mais complexos

revela os limites de sua utilidade(Nem no estágio de formação dos evangelhos

nem em seu desenvolvimento posterior é possível explicar todas as características

exclusivamente com o pressuposto de fontes escritas. Antes, a tradição livre e

predominantemente orai que existia no início do processo de transmissão con-

tinuou século II adentro e além dele, e foi~ssim um recurso constante para o

desenvolvimento dos evangelhos escdto~

Importante para o estabelecimenfõ da hipótese do

Evangelho dos Ditos

Q é não somente o julgamento de que Mateus e Lutas devem ter usado alguns

materiais escritos, mas também a determinação do seu gênero e do seu caráter

literário. Isso foi feito com sucesso por James M. Robinson, que reconheceu que o

gênero desse escrito corresponde a um tipo de literatura judaica que ele chamou

de Logoi Sophon, «Palavras dos Sábios". lohn S. Kloppenborg aprofundou a

sugestão de Robinson ao comparar Q com a literatura sapiencial antiga. Outro

representante desse gênero na literatura cristã primitiva é o Evangelho de Tomé

(§ 10.1 b[ 1 ]). A fonte dos materiais especiais de Lucas também pode talvez ser

class~a'cada como um livro desse gênero.

¡O gênero literário de outra fonte escrita primitiva para os evangelhos

subsistentes do Novo Testamento também pode ser reconhecido: uma ou várias

coleções de histórias de milagres de lesus, que foram usadas pelo Evangelho de

Marcos e também pelo Evangelho de ~oão. Esse tipo de literatura enumera os

grandes atos de um deus, herói ou pessoa famosa; sua denominação adequada

é "aretologia» (§3.4d). O conteúdo e a seqüência de várias histórias de milagres

em Marcos e João têm bastante em comum para permitir a conclusão de que

eles usaram diferentes versões da mesma coletânea literária. Essa fonte, que no

Evangelho de João é chamada de Semeia Source ("Fonte dos Sinais"; § 10.3a[5]),

apresenta Jesus como um curador que possui poderes milagrosos, podendo con-

trolar as próprias forças da natureza (ver as narrativas em que Jesus acalma a

tempestade, anda sobre o mar e alimenta as multidões).J

Uma terceira fonte escrita compartilhada pelos evangelhosdo Novo Tes-

tamento é a narrativa da paixão. Versões diferentes dessa fonte foram usadas

pelo Evangelho de Marcos, pelo Evangelho de loão e pelo

Evangelho de Pedro

(§ 10.2a[2]); as narrativas da paixão de Mateus e Lucas são no geral dependentes

do Evangelho de Marcos. O gênero literãrio da paixão é a história do justo sofredor

que ocorre repetidamente na literatura de Israel no período do Segundo Templo

e é em.última análise baseada no "servo sofredor» do Dêutero-Isaías.

//Os Evangelhos do Novo Testamento baseiam-se assim em três diferentes- '

composições cristãs mais antigas, cada uma das quais pertence a um gênero lite-

rário especial, É bem possível que outros materiais evangélicos também derivem

de fontes escritas; entretanto, essas fontes não são «literatura», mas composições

casuais de materiais orais em forma escrita, como coleções de parábolas (Marcos

4), materiais apocalípticos (Marcos 13; outra coleção desses ditos apocalípticos

está preservada na

Didaqué

16) e séries de instruções catequéticas. Em rodas as

instâncias, é necessário reconhecer fontes escritas para avaliar as contribuições

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FONTES PARA A HISTÓRIA DO CRISTIANISh ~O PRIMITIVO

redacionais dos autores dos evangelhos. Em última análise, porém, todos os

materiais preservados nos evangelhos do Novo T,e~amento derivam de tradições

orais (ver abaixo sobre Crítica da Forma, §7.4a~

~~~ (c) Os Aros dos Apóstolos

Lucas, autor do terceiro Evangelho do Novo Testamento e dos Atos dos

Apóstolos, pertence à terceira geração Ao cristianismo (§ 12.3a). Ele dificilmente

foi testemunha ocular dos eventos que descreve e por certo não foi companheiro

de viagem e colaborador do apóstolo Paulo. Não há dúvida de que precisou recor- .

rer a fontes escritas - principalmente Marcos e Q - para compor o seu Evangelho;,:

mas também para a segunda parte da sua obra, os Aros dos Apóstolos, Lucas ficou

na dependência de outras fontes. Enquanto as fontes consultadas para a com-

posição do Evangelho são bastante claras, as relacionadas com o Livro dos Aros

continuam enigmáticas. Para este, os especialistas se empenh .am em identificar

duas fontes escritas diferentes, uma "Fonte Antioquense" para os materiais da

primeira parte (Atos 6-12 e 15), e uma narrativa de viagem, denominada "Fonte

Nós", para a segunda parte do livro (Atos 16-28). Ambas as teorias, porém,

apresentam dificuldades consideráveis. Ainda não se encontrou uma explicação

convincente para o gênero literário de uma suposta Fonte Antioquense. Ela teria

incluído histórias de milagres e também informações de arquivo, um relato de

martírio (o de Estêvão) e até alguns discursos dos apóstolos. A combinação de

todos esses elementos tem explicação melhor como resultado dos esforços lite-

rários de Lucas, que relacionou tradiçÕes parcialmente legendárias com alguns

documentos autênticos e acrescentou discursos em ocasiões apropriadas, criando

assim uma narrativa coerente. A busca de uma fonte antioquense parece por-

tanto um esforço inútil, apesar de ninguém negar que o Livro dos Aros preserva

algumas irLformaçÕes históricas. Essas informações incluiriam, por exemplo, a

lista dos "diáconos" helenísticos (Ar 6), o martírio de Estêvão (Ar 7), a fundação

da igreja de Antioquia (Ar 11) e a lista dos profetas e doutores em Antioquia

(Ar 13). Também a Fonte Nós é problemática porque o «estilo nós" da narrativa

aparece em passagens que são evidentemente composição do autor do Livro

dos Aros; esse estilo por si só não pode, portanto, ser assurnido como critério

de distinção entre fonte e redação. Por outro lado, o aparecimento multas vezes

Bibliografia para §7.3¢ (ver também abaixo §12.3a.3)

Henry J. Cadbuw, The

Moking ofLuke-Acts

(2d ed.; London: SPCK, 1958).

Idem et al.,'The Composition and Purpose of Acts,*in Foakes Jackson and Lake, Seginnings, 2.3-204.

Ernst Haenchen,'Das~~Vir' in der Apostelges¢hichte und das Itinerar,* in idem, Go¢t und Menseh, 227-ó4.

Idem,'Tradition und KomposKion in der Apostelgeschichte,* In idem, Gott und Menseh, 202-26.

Idem,'The Book of Acts as $ource Material for the Hlstory of Early Christiantty,* in Leander Keck and J. Louis

Martyn (eds.),5tudies in Luke-Acts: Essay$ Presented in Honor of Poul 5chuber1: (Nashville,TN: Abingdon, 1966)

258-78.

Peter M. Head,'Ac~ and the Problem of Its Texts,* in B.W.Winter and A.D. Clark (eds.), The Book ofActs in lis

Ancient Literary 5etting, vol. 1: The Book of Acts in t$ First Century 5etting (GrandRapids, MI: Eerdmans, 1993)

415-44.

J. Wehnert, Die Wir-Passagen der Apostelgeschichte: Ein lukonisches Stilmittel aus jü~'scher Tradition (G~t~inger

Theologische Arbeiten 40; G~ttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1998).

O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO

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5 4 FONTES PARA A HISTÓRI A DO CRI ST IANI SMO PRIMI TI VO

§ 7

inesperado da primeira pessoa do plurat ("nós") em relatos sobre as viagens de

Paulo permite a conclusão de que o autor de Atas realmente usou um itinerário

ou relato de viagem que pode ter sido escrito por um companheira de jornada de

Paulo. Ao mesmo tempo, parece que o autor de Atas também empregou "nós"

como expediente estilíítico em seções para as quais ele certamente não utilizou

nenhuma fonte; essa conjetura é mais evidente na narrativa da viagem pelo mar

e do naufrágio (Ar 27-28).

%,~¿, Atas apresenta ainda outro problema literário na medida em que é transmi-

tido em duas versões que multas vezes diferem uma da outra. O texto geralmente

impresso em edições críticas do Novo Testamento é o dos unciais egípcios do

século IV (~, B etc.), cujas leituras são em grande parte idênticas às dos Padres

da Igreja alexandrinos. Outra versão eneontra-se nos representantes do Texto

Ocidental (Códice D e a tradução do Latim Arcaico) com leituras que são sus-

tentadas pelos Padres da Igreja latinos. Essa versão contém inúmeras leituras

e passagens especiais que parecem ser "acréscimos". Entre esses está a famosa

adição da Regra de Ouro ao Mandado Apostólico em Atas 15,29. Quer se con-

sidere ou não o texto Ocidental de Atas como secundário, não há dúvida de que

ele já existia no século II. Uma sugestão interessante vê essa versão como o texto

original de Atas ou então como a segunda edição do livro feita pelo autor. Isso

poderia explicar o fato de que o texto Ocidental apresenta algumas informações

valiosas que estão ausentes na versão Alexandrina, como as que se referem a

lugares (Atas 12,10; 20,15) e tempos (Atas 19,9; 27,5). Ao mesmo tempo, ou-

tras leituras Ocidentais devem ser secundárias, especialmente as tentativas de

adaptar contradições e de acentuar as tendências antijudaicas do livro, É portanto

mais provável que o texto Ocidental de Atas seja uma segunda edição (feita pelo

próprio Lucas?), mas não uma degeneração do texto original.

O problema das fontes do Livro dos Atas está estreitamente relacionado

com a questão do seu gênero literário. Muitos estudiosos supõem que Lucas tinha

intenção de produzir uma obra histórica e que se pode comparar o uso de fontes

feito por ele com procedimentos análogos adotados por escfitores de história

antigos. Típica para obras históricas gregas e latinas~ com essas características é,

por exemplo, a composição de discursos, que os autores inseriam em suas fon-

tes para ressaltar situações particulares e para sublinhar seu significado. Nesse

sentido, pode-se concluir que Atas emprega um expediente literário utilizado

..... pelo histofiad9_r. Também a concepção do livro como um todo, que descreve um

desenvolvimento histórico que começa em lerusalém e termina em Roma, poderia

ser classificada como típica para uma história antiga (§3.4c). Por outro lado, o

uso de inúmeros materiais lendários e histórias de milagres, muitas vezes inclusive

aperfeiçoados pelo autor, levariam à conclusão de que Lucas foi um historiador

muito pouco crítico, mesmo em comparação com os padrões da antiguidade.

Somente informações como o relato sobre os inícios da igreja de Antioquia

(Atas 11) são intrinsecamente condizentes com a intenção da histofiografia. As

ficas informações históricas sobre as Viagens de Paulo também são pertinentes,

mas falta uma descrição das ações organizacionais de Paulo relacionadas com

§ 7 . 3 c O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO

5 5

a fundação de igrejas, e a apresentação da atividade do missionário consiste

principalmente em histórias de milagres.

Essas observações resultaram na sugestão de que o modelo literário de Lu-

cas não foi o registro da história, mas o romance antigo (§3.4e). Essa hipótese é

reforçada pela longa narrativa do naufrágio (Atas 27-28). Os Atas dos Apóstolos

tefiam assim uma relação muito estreita com os atas apócrifos, cujos exemplares

mais antigos foram escritos pouco tempo depois da própria obra de Lucas (ver,

por exemplo, Atas de Pedra, Atas de Paulo [§12.3b] e Atas de ]oão [§ 10.3d]).

Esses atas apócrifos também empregam o motivo da viagem, usam acfiticamente

uma fica tradição de histórias de feitos e eventos milagrosos, inserem discursos

freqüentes feitos pelos apóstolos (o que reflete a prática da pregação missionária

dos tempos da composição desses livros) e são quase totalmente desprovidos de

informações historicamente valiosas. Essa hipótese é atraente, mas esquece o fato

de que o Livro dos Atas é apenas a metade de uma obra maior que compreende

o Evangelho de Lucas e os Atas dos Apóstolos.

Uma solução talvez esteja na recente dissertação de Marianne Bortz apre-

sentada na Universidade Harvard. Bonz defende convincentemente que o modelo

literário da obra de Lucas foi a antiga epopéia grega recfiada na obra latina

Eneida, de Virgílio. A epopéia é um esforço político e intensamente carregado

de oferecer a uma comunidade a história da sua fundação. Como a Eneida de

Virgílio está relacionada com eventos lendários da antiga Tróia, onde o seu herói,

Enéias, tem sua origem, assim o herói de Lucas-Atos, Jesus de Nazaré, é apresen-

tado como herdeiro das antigas profecias de Israel. A divina providência dirige

o curso da atividade de Jesus e da atividade dos apóstolos numa história que,

semelhante à história de Enéias, começa num antigo país do Ofiente e termina

gloriosamente em Roma. A seqüência dos eventos demonstra legitimação divina

para uma nova nação que, apesar da adversidade, está destinada a preparar o

cenário para uma nova era da história que é vista como a realização escatológi-

ca da antiga profecia. Na composição de uma epopéia, a inclusão de materiais

lendários é legitima porque realça a sanção divina do curso dos eventos. Se a

epopéia 6 realmente o modelo literário de Lucas, i~ possível avaliar a totalidade

da obra de Lucas como uma unidade autocontida, em que o autor foi capaz de

empregar suas fontes e materiais a despeito do seu valor específico como infor-

mação histórica possivelmente fidedigna. (Para uma análise mais aprofundada

da obra de Lucas, ver §12.3a.)

(d) Composição e Problemas Literários das Cartas de Paulo

Somente as cartas seguramente genuínas de Paulo serão analisadas aqui,

especificamente, Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessaloni-

canses e Filêmon (para as epístolas deuteropaulinas, ver § 12. la; 12.2a, b, g).

Bibliografia para §7.3d

Dieter Georgi,

The Opponents of Paul in Second Corinthians: A Study In Religious Propaganda In Late Antlquity

(Philadelphia:

Fortress, 1986).

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62 FONTES PARA A HISTÕRIA DO CRISTIANISMO PRIMITIVO

§ 7

período da Renascença. Uma versão posterior dessa recensão aparece em alguns

manuscritos latinos medievais que contêm cartas adicionais de Início ao apóstolo

]oão, a Maria, mãe de lesus, e uma carta de Maria a Início. Uma edição diferente

das cartas de Início era também conhecida na Idade Média, quando foi traduzida

para o latim, para o inglês e para o armênio. Em grego, porém, essa edição está

preservada somente num manuscrito, o Códice Mediceo Laurentianus de Floren-

ça, escrito no século XI. Esse manuscrito contém também as cartas da "Recensão

Longa", mas difere dela enquanto seis~las sete cartas mencionadas por Eusébio

(falta a carta aos romanos) aparecem numa forma mais breve, sendo por isso

chamado de "Recensão Média». Também a carta aos romanos está preservada

numa forma mais breve num manuscrito grego do martírio de Início, chamado

Martyrium Colbertinum (do qual existem também versões latinas e siríacas).

Essa "Recensão Média» das cartas de Início foi redescoberta no século XVII,

reimpressa várias vezes, e o passar do tempo levou à aceitação generalizada de

que as cartas dessa recensão mencionadas por Eusébio eram as cartas originais

de Início. Em 1845, porém, o pesquisadoringlês Cureton publicou uma nova

recensão, preservada em tradução siríaca e contendo apenas três cartas ainda

mais breves, espechícamente, as cartas aos efésios, aos romanos e a Policarpo.

Subseqüentemente, alguns estudiosos aceitaram somente essas três cartas em

forma breve como inacianas autênticas.

As várias coleções e recensões das cartas de Início formam assim um total

de quatorze canas escritas por ele e duas cartas enviadas para ele. As sete cartas

mencionadas por Eusébio são transmitidas numa versão mais breve e numa mais

longa, e três delas numa recensão ainda mais breve. Os estudos de Theodor Zahn

e I.B. Lighffoot no fim do século XIX demonstraram convincentemente que as seis

cartas da Recensão Média e a carta aos romanos na forma em que ela aparece no

Martyriurn Colbertinum -

isto é, as sete cartas mencionadas por Eusébio - eram

as cartas originais de Início. Em seu comentário, William Schoedel defendeu

essa visão com sucesso contra alguns críticos mais recentes. A Recensão Longa

resultou de controvérsias teológicas na dividida igreja de Antioquia do século

IV, quando ambos os lados recorreram à autoridade de Início. Nessa época, as

cartas originais de Início foram expandidas e outras cartas pseudo-epigráficas

foram acrescentadas à coleção. As cartas originais subsistiram em duas tradi-

ções textuais apenas, uma, a carta aos romanos, no Martyrium Colbertinum, as

outras seis no Códice Mediceo Laurentianus. A ausência da carta aos romanos

no Códice Mediceo talvez se dera ao fato de que a Recensão Média depende

da coleção de Policarpo, que não teve acesso à carta enviada a Roma, ou então

porque ela pode ter sido retirada da coleção; Eusébio sabia da existência dessa

carta. A Recensão Média, conservada no Códice Mediceo Laurentianus, incluiu

também as cartas pseudepigráficas da Recensão Longa. Ela depende portanto da

Recensão Longa, embora preservando ao mesmo tempo seis das cartas em sua

forma original. A versão siríaca, mais breve de três dessas cartas é uma redução

secundária, não das cartas originais, mas da forma dessas cartas que aparece na

Recensão Longa; elas são assim inúteis para a reconstrução do texto original, que

O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO

deve basear-se principalmente no texto grego de um único manuscrito medieval

antigo, apoiado por várias traduções e por um papiro grego que contém partes

do texto para Esmirneus 3.1-12.1.

A história da transmissão e expansão das cartas inacianas demonstra clara-

mente o possível destino de uma coleção dos primórdios da literatura cristã que

não foi protegida pelo status canônico. Como a proteção canônica para as cartas do

Novo Testamento só começou no fim do século II, é preciso lembrar que também

as cartas do Novo Testamento podem ter sido submetidas a uma grande revisão e

a acréscimos antes que o cânon do Novo Testamento fosse criado. Isso realmente

aconteceu com o corpus paulino, como conseqüência do acréscimo das Epístolas

Pastorais e da nova edição das cartas de Paulo realizada por Marcião (§ 12.3c).

4 . PROBLEN~AS DE CRIT ICA DA FOR/v~A, DA TRADIÇÃO,

DA NARRAT I VA E DA RET Ó RI CA

(a) A T{adição Sinótica ,

O pai da crítica da forma (Formgeschichte) foi Johann Gottfried Herder

(1744-1803). Ele reconheceu que as formas da língua, por meio das quais o

passado se toma presente, não são uma questão de livre escolha individual, pois

Bibliografia para §7.4

Gerhard Lohfink, The Bible: Now I Get It/A Forrn-Criti«ism Handbook (Garden City, NY: Doubleday, 1979).

Erich Dinkler,'Form Critldsrn of the New Testament,» in Black a nd Row[ey, Peoke's Commentory, 683-85.

Vielhauer, Geschichte,9-57.

J.L. Bailey and L.D. Vander Broek, Literary Forros in the New Testament: A Handbook (Loulsville, KY: Westminster

John Knox, 1992).

Klaus Berger, Formgeschichte des Neuen Testaments(Heidelberg: Quelle & Meyer, 1984).

Georg Strecker, Litemturges«hichte des Neuen Test«ments (Uni-Taschenbücher,no. 1682; G6ttingen: Vanden-

hoeck & Ruprecht, 1992).

Bibliografia para §7.4: Estudos clássicos seminais

André Jolles, Einfache Formen (2d ed. A. çchossig; Halle [Saale]: Niemeyer, 1956; reprint ed.: Darmstadt: Wissen-

schaftllche Buchgesellschaft, 1964).

Eduard Norden, Agnostos Theos: Untersuchungen zur Formengeschichte religiOser Rede (2d ed.; Leipzig:Teubner,

1923; reprint: Darmstadl: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1956).

Alfred Seeberg, Die Didache des Judentums und der Urchristenheit (Leipzig: Deichert, 1908}.

Idem,

Der Katechismus der Urchristenheit

(Leipzig: Deichert, 1903; reprint:Th80 26; MÕnchen: Kaiser, 1966).

Bibliografia para §7.4a

Rudolf Bultmann, The History ofthe Synoptic Tradition (2d ed.; New Yorlc Harper, 1968).

Idem and Karl Kundsin, Forro Criti¢ism (New York: Harper, 1962).

Martin Dibelius, From Trodition to Gospe/(2d ed.; New York: Scribner's, 1934).

Karl

Ludwig Schmidt, Der Rahmen der Geschichte Jesu (Darmstadt: Wlssenschaftliche Buchgesellschaft, 1964).

As obras de Bultmann, Dibelius Schmidt, publicadas de 1919 a 1921, constituem a base do método da

crítica da forma.

Vincent Taylor, The Formation of the.GospelTradition (New Yorlc çt. Martin's, 1953).

Edgar W. McKnight, What Is Forra Criticisrn? (GBSNTS; Philadelphia: Fortress, 1969).

Norman Perrin,

What Is Redaction Criticisrn?

(GBSNTS; Philadelphia: Fortress, 1969).

Helmut Koester,'Formgeschichte/Formenkritik It. Neues Testament,"TRE 11 (1983) 286-99.

Ferdinand Hahn (ed.), ZurForrngeschichte des Evangeliurns (WdF 81; Oarmstadt:Wissenschaftliche Buchgesell-

scha~ 1985).

Klaus 8erger et ai.,

Studien und Texte zur Formgeschichte

(TANZ 7;Tübingen: Francke, 1992).

Page 21: Introdução ao Novo Testamento

7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento

http://slidepdf.com/reader/full/introducao-ao-novo-testamento-56d7248cbbe82 21/28

6 4 F O N T E S PA R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S M O PR I M I T I V O

§ 7

a língua não é algo que o indivíduo inventa espontaneamente em cada nova situa-

ção. Pelo contrário, a língua já é dada como uma realidade social; ela pertence

a um povo ou comunidade. Isso se aplica não somente às formas convencionais

de vocabulário e sintaxe, mas também aos gêneros pelos quais palavras e frases

se fixam em certas formas, como o canto, a anedota, o provérbio, a lenda, a

epopéia e o mito. Todas essas formas, por mais fluidas que sejam em si mesmas,

estão sociologicamente presas a padrões institucionalizados de comunicação e

convenções por meio dos quais um& sociedade regula os relacionamentos dõs

seus membros. Todas essas formas são por definição orais, porque a oralidade 6

a situação de vida da comunicação entre membros da mesma sociedade. A ora-

lidade precisa ser compreendida no sentido mais amplo como tudo o que não é

controlado pelos padrões críticos de publicação em forma escrit.a.

As idéias de Herder só ganharam força depois da consolidação da hipótese

das duas fontes. Uma das primeiras conseqüências dessa hipótese foi a convicção

de que o Evangelho de Marcos refletia o curso original da vida e do ministério de

Jesus. A publicação do livro de William Wrede em 1901, O Segredo Messiânico

nos Evangelhos, destruiu essa confiança.-Segundo Wrede, toda a estrutura do

Evangelho de Marcos é resultado de uma reflexão teológica do autore não tem

relação com o curso, real dos eventos n° ministério de Jesu.s. Nos anos seguin-

tes, lulius Wellhausen, em seus comentários sobre Mateus, Marcos e Lucas,

publicados em 1903 e 1904, procurou mostrar como os autores haviam usado

e configurado materiais que foram originariamente transmitidos em forma oral.

Isso possibilitou o surgimento tanto da questão da história da tradição oral como

da questão da critica da redação.

NO ano de publicação da obra de Wrede, 1901, Hermann Gunkel demons-

trou em seu comentário sobre o Livro do Gênesis que esse livro era essencialmente

uma coleção de histórias que originariamente haviam circulado em forma oral.

Essa posição foi apoiada por filólogos clássicos. Em sua obra Formasde Litera-

tura Cristã Primitiva (3a ed. 1912), Paul Wendland afirmou que "o entendimento

do estágio primitivo da tradição oral e de suas características especiais ¿ tim

pressuposto essencial para a compreensão das produções literárias". Em 19 i 3,

outro estudioso dos clássicos, Eduard Norden, publicou sua ainda famosa obra

AFNOZTOZ OEOX, com o subtítulo "Investigações sobre a História das Formas

do Discurso Religioso". A tese desse livro é a de que o Discurso de Paulo no

Areópago, descrito em Atos 17, reflete as formas do estilo oral dos discursos de

propaganda religiosa.

Isso preparou o ambiente para as obras decisivas de crítica da forma de

Rudolf Bultmarm e Martin Dibelius sobre a tradição sinótica. Em sua dissertação

de 1911, "O Estilo da Pregação de Paulo e a Diatribe Estóico-Cínica", Bul~ann

já havia mostrado que o estilo e a retórica das cartas de Paulo eram devedoras à

pregação popular de missionários religiosos e fd0sÓfic0s da antiguidade'Martin

Dibelius havia publicado um livro em 1913 demonstrando que as histórias sobre

João Batista foram compostas com base em tradições orais sobre esse famoso

precursor de Jesus. As obras de 1919 e 1921 de Dibelius e Bultmann se empe-

§ 7 . 4a P R OB L E M A S D E C R Í T I C A D A F O R M A , TR A D I Ç Ã O, N A RR A TI VA E R E T Ó RI C A 6 5

nhavam então em analisar todos os materiais nos primeiros três evangelhos do

Novo Testamento e em explicar como eles se baseavam num período de tradição

oral. Nesse processo, eles identificaram certas "formas" de uso e transmissão

oral que ainda eram reconhecíveis no modo em que foram escritas. Ao mesmo

tempo, materiais evangélicos, para os quais formas de antecedentes orais não

podiam ser identificadas, foram classificados como "redacionais". O método

que três décadas mais tarde se tomou conhecido como "crítica da redação" não

contribuiu com nada de novo; apenas apurou um pouco mais a análise dos ma-

teriais redacionais nos Evangelhos e resultou assim num reconhecimento mais

detalhado das estratégias literárias dos redatores dos Evangelhos.

A transmissão oral inicial dos materiais sobre Jesus não ocorreu por falta

de capacidade dos primeiros cristãos de produzir registros escritos - as cartas

de Paulo mostram que os primeiros missionários cristãos podiam muito bem

comunicar-se por escrito - nem por uma preferência dogmática pelo meio oral

(como no caso do judaísmo rabínico); foram os interesses e as necessidades das

primeiras comunidades cristãs que tornaram a transmissão oral necessária.//Á

tradição de Jesus e sobre Jesus estava viva na propaganda e na pregação missioná-

rias, na vida prática e na liturgia, no ensino e debates das primeiras comunidades

cristãs. Foi nesses contextos que as palavras de Jesus foram criadas e ensinada~

e as histórias sobre ele receberam seus contornos de modo que pudessem ser

narradas e lembradas. A forma e o conteúdo da tradição foram assim moldados

pelas exigências sociológicas e religiosas da pregação do evangelho e da formaçã~

das comunidades cristãs. A lembrança e transmissào de tudo o que 0 própfi~

Jesus fez, ensinou e pre~ou foram marcadas pelas necessidades e pela situação

das comunidades cristãs. Foram aS comunidades, e não o próprio Jesus, que

criaram as formas da tradição que preservou a memória de Jesus. Seguramente,

algumas das primeiras comunidades cristãs ainda pertenciam ao meio cultural

e religioso do povo judeu da Palestina, ao qual o próprio Jesus pertencia. Em

pouco tempo, porém, o cristianismo ultrapassou as fronteiras desse meio e foi

ao encontro do mundo helemstlc0-romano/Sua sltuaçao soclolog:ca, cultural e

religiosa mudou~ isto é, a situação' de vidä (situação hístórico-exàstencial[Sitz

ira Leben] não era mais a mesma que a do Jesus histórico. Uma situação de vida

não-palestina tornou-se assim determinante para a formação da tradição.

Para a crítica da forma, a definição da situação de vida é crucial. A oração

do Senhor, transmitida nos Evangelhos do Novo Testamento em duas formas

diferentes, foi moldada pela situação de Mateus numa comunidade judeo-cristã

fora da Palestina, e de modo diferente pela situação de Lucas na comunidade

helenistica - em nenhum dos casos sua forma depende da situação de vida de

Jesus na GaliléiaA-Iistórias e parábolas exemplares são narradas de acordo com

sua função como parte do sermão cristão para edificação e formação da comuni:

dade. Nessas situações, as parábolas - fossem ou não narradas originalrfiente piar

Jesus - sofreram muitas mudanças, como interpretações alegóricas. As coleçSes

de ditos têm sua situação de vida na parênese e na instrução batismal, as histórias

de milagres a têm na propaganda missionária da igreja. Em cada caso, o termo

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66

F O N T E S P A R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S h ~ O P R I / ~ I T I V O

§ 7

"situação de vida" se refere em primeiro lugar à comunidade cristã. Segurameflte,

uma tradição particular pode não ter suas origens nela, mas airtda deve a essa

comunidade a sua existência e forma. Não é possível, portanto, traçar umalinha

teta de uma tradição da comunidade ao próprio Jesus, nem sé pode simplesmente

suprimir acréscimos secundários para ter acesso ao Jesus histórico. Tudo o que

Jesus disse e fez sofreu refraçÕes as mais variadas, como através de um prisma,

no processo de sé transformar numa tradição da comunidade. A situação de vida

original de um dito ou história na vida de Jesus não é mais acessível, porque a

formação de rodas as tradições está profundamente inserida nas situaç5es'de

vida da comunidade. A integração em relatos coerentes, como nos- evangelhos

escritos, é um passo seguinte, em que essas histórias e ditos são incorporados

numa estrutura redacional secundária.

Com o objetivo de definir mais detalhadamente as formas específicas da

tradição, é necessário distinguir entre ditos e narrativas. Naturalmente, os autores

dos evangelhos derivaram esses dois tipos de materiais de tradições que estavam

formadas na vida das primeiras comunidades cristãs. Todos os materiais de nar-

rativas, porém, são formados por essas comunidades, enquanto alguns materiais

na tradição de ditos podem realmente refletir o que Jesus disse, É improvável,

todavia, que preservem a forma exara em que foram enunciados por Jesus,

porque a forma em si dos ditos resulta de rifração ocorrida na situação de vida

da comunidade. Entre os materiais de ditos, predominam os ditos sapienciais

e proféticos. Suas formas têm analogias principalmente nos livros proféticos e

sapienciais das Escrituras de Israel, o que, para sua formação, remete para a

situação de vida das prirneiras comunidades judeo-cristãs.

As parábolas, narrativas parabólicas e histórias exemplares em suas formas

não-alegóricas podem realmente derivar de Jesus; as interpretações das comuni-

dades são demasiadamente óbvias em sua alegorização secundária. A parábola,

original convida os ouvintes a se apropriarem da história, como se fosse a sua

própria, e assim a se tornarem eles mesmos «história". A parábola do «Pai que

tinha dois filhos" (geralmente conhecida como "O Filho Pródigo", Lucas 15,11-

32), por exemplo, inspira o ouvinte a se tomar um ser humano amoroso como o

pai da história; o lugar onde Lutas insere essa parábola sugere uma alegorização

que compreende o pai como uma figura de Deus, que perdoa o pecador que sé

arrepende. A parábola dos «Trabalhadores da vinha", também conhecida como

"O homem que possuía uma vinha" (Mt 20,1-15), dá o exemplo de alguém que

está determinado em seu esforço a deixar que outros participem igualmente de

sua bondade; Mateus transforma essa alegoria numa história q.ue demonstra que

os últimos serão os primeiros (Mt 20,16). A parábola do homem que convida

para o seu jantar ("Parábola do Grande Banquete", Lc 14,16-24) é a história de

uma pessoa que quebra rodas as convenções sociais para alcançar seu objetivo;

em sua forma alegórica («Parábola do Banquete Nupcial", Mt 22,1-14), ela se

torna uma narrativaa respeito de Deus, que pune Israel por matar os profetas

e em seguida convida os gentios para a festa. As parábolas originais encontram

analogias na tradição profética de Israel; a alegorização era típica para a cul-

,

§ 7 . 4 a P R O B L E M A S D E C R I T I C A D A F O R M A , T R A D I Ç Ã O , N A R R A T I V A E R E T Ó R I C A

6 7

tura da época. É portanto muito provável que as parábolas originais reflitam a

pregação profética de Jesus mais diretamente do que qualquer outra parte da

tradição dos ditos.

Regras de conduta e asserções legais relacionadas com o ordenamento da

vida cristã são totalmente criações da comunidade. Em parte, os enunciados legais

derivam diretamente do ambiente judaico das primeiras comunidades cristãs ou

são formulados nas controvérsias com os fariseus e outros grupos judaicos. Essas

situações de vicia são especialmente evidentes na formação dos apotegmas (termo

de Bultmann; Dibelius os chama de "paradigmas"). Apotegmas são cenas curtas

que contêm uma pergunta ou apresentam um problema cuja resposta ou solução

é um dito tradicional (ver, por ex., a questão do jejum, as espigas olhidas num

sábado e a cura do homem com a mão atrofiada, Marcos 2,18-3,6). As questões

podem ser levantadas pelos discípulos, pelos adversários, por lesus mesmo ou

por outras pessoas. Em vários casos, as perguntas feitas por discípulos ou por

adversários são provoeadas por alguma ação de Jesus, como o exorcismo de um

demônio (Lucas 11,14-20). Em sua maioria, esses apotegmas São histórias contro-

versas; outros podem ser classificados como diálogos escolásticos ou instrucionais.

A ocasião para a composição de todos os tipos de apotegmas era-o interesse da

comunidade, que precisava de materiais para fins polêmicos ou para instrução dos

seus membros. Os evangelhos também contêm apotegmas biográficos cuja origem

está no interesse das comunidades pela vida e ministério de Jesus, que assim são

representados em breves cenas paradigmáticas, É preciso distingüir aqui entre

os apotegmas que fornecem uma estrutura secundária para um dito tradicional e

outros em que a cena e o dito foram compostos como peça única (a estes pertence

a história de Maria e Marta, Lucas 10,38-42). Somente no primeiro caso é possível

que um dito tradicional de Jesus, e possivelmente original, tenha sido preservado.

Característicada tradição dos apotegmas é a inserção ou inclusão de ditos livres

adicionais ou de formulações análogas secundárias (cf., por exemplo,

Màrcos

2,23-28 com Mateus 12,1-8), de modo que não é raro encontrar num apotegma

respostas concorrentes entre si para a questão que deu origem à sua formação.

As narrativas tradicionais são predominantemente histórias de milagres.

Uma variante característica dessas histérias é o exorcismo, geralmente narrado

segundo um esquema fixo: a pessoa possuída encontra lesus; o demônio reconhece

o poder do exorcista; Jesus ameaça e expulsa o demônio, freqüentemente com

demonstraçãoi expressão do triunfo; manifestação das testemunhas (por exemplo,

Mc 1,21-28; 5,1-20). Nos milagres de cura, em seguida ao encontro do doente

com lesus, há geralmente um comentário sobre a gravidade da doença~ A cura é

realizada por meio de uma palavra de Jesus (termos mágicos do aramaico são às

vezes preservados, cf. Mc 5,41; 7,34); d~alguma manipulação (Mc 8,23) ou de

--uma combin~ção de ambas; a conclusão registra o êxito da ação e o aplauso dos

presentes. Todas essas características correspondem às formas padronizadas da

narração de exorcismos e das histórias de cura da antiguidade, embora seja notá-

vel que adjurações complexas e longas de demônios e manipulações elaboradas

- muito comuns nessas histórias - não apareçam nos materiais narrativos dos

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68

F O N TES PA RA A HI ST Ó R I A D O CR I ST I AN ISM O PR IM IT I VO § 7

evangelhos. Milagres com elementos da natureza (por exemplo, da Tempestade

Acalmada, Mc 4,35-41) são relativamente raros na tradição sinótica. Como nos

exorcismos e nos milagres de cura, a brevidade desses relatos é uma característica

surpreendente dessas histórias de milagres na tradição sinótica. Sua forma básica

e esquema narrativo, porém, correspondem quase exatamente aos de histórias

análogas do mundo greco-romano, inclusive aos que se encontram nos aros dos

apóstolos apócrifos.

Inúmeras lendas também" forano inseridas na tradição sinótica. «Lenda" é

uma história que narra um evento particular com detalhes admiráveis ou prodigio-

sos. A tradição sinótica encerra uma única lenda cultual, a da instituição da Ceia

do Senhor. Todas as outras são lendas biográficas (as narrativas do nascimento

e da infância, as histórias sobre loão Batista, a tentação de Jesus, a entrada em

lerusalém). A maioria dessas lendas segue o modelo das narrativas da Bíblia de

Israel. Isso está especialmente evidente no relato da paixão, todo ele baseado

nos motivos bíblicos da história do justo sofredor do Dêutero-Isaias e de vários

salmos. Típico dessas lendas é adotarem floreios descritivos com moderação e

realçarem um único evento. Características novelescas são taras (no entanto, a

história de Emaús em Lucas 24,13-35).

As narrativas do batismo de Jesus, da transfiguração e das aparições do

Senhor ressuscitado são todas histórias de epifania. Elas não devem ser classi-

ficadas com as lendas ou com as histórias de milagres. Seu objetivo principal é

expressar a autorização divina para o comissionamento de uma pessoa humana,

e por isso sua forma corresponde à das histórias de delegação de um profeta em

Israel. Essas histórias de epifania começam com a apresentação da pessoa que

será o receptor da manifestação divina e com a designação de um lugar especial

(deserto, montanha, rio), fazem uma descrição da situação, e continuam com o

relato de uma experiência extraordinária (uma pomba, luz brilhante, o Senhor

ressuscitado), com a voz de Deus ou de Jesus ressuscitado como a auto-revelação

da divindade que autoriza, com uma descrição da impressão recebida pelos pre-

sentes, e terminam com uma ordem, um comissionamento ou uma designação.

As histórias de aparições do Senhor ressuscitado nos evangelhos eram original-

mente análogas à história da vocação de Paulo em Aros 9, que ressalta o envio

de Paulo como apóstolo aos gentios. Somente num estágio posterior as histórias

da ressurreição de Jesus foram interpretadas como provas da ressurreição física.

Seu propósito original - como nas histórias do chamado de um profeta - é a

designação e comissionamento de uma pessoa para uma missão divinamente

autorizada. Esse é também o caso na versão mais antiga subsistente da história

do batismo de Jesus (Me 1,9-11), onde a voz divina, "Tu és meu filho», designa

lesus como mensageiro de Deus; a redação posterior transformou a história

numa apresentação de Jesus às multidões ("Este é o meu filho', Mt 3,17). Os

nomes dos apóstolos são um elemento importante das histórias da ressurreição;

a comunidade que transmite e conta essas histórias estabelece assim sua própria

pretensão de sucessão legítima. Nas histórias mais antigas, esses nomes podem

bem ser históricos, e os relatos podem ter sido feitos primeiro pelo apóstolo, que

§ 7 . 4 a PR O BL EM AS D E C R I T I C A D A F O R M A, T R AD I Ç ÃO , N AR R AT I VA E R ET Ó R I C A

69

"havia visto o Senhor". Um relato de primeira mão está realmente preservado

no caso do próprio Paulo em GI 1,12-17. A diferença entre um relato tão antigo

e o desenvolvimento posterior dessas histórias é bem visível na comparação do

testemunho de Paulo com a história de epifania do seu chamado em Aros 9.

Ambas as descrições se amoldam a uma forma tradicional apropriada, mas o

relato de Paulo ecoa o chamado de Jeremias, ao passo que a versão posterior de

Lucas segue o formato da vocação de Ezequiel.

Os materiais narrativos dos evangelhos nao sao relatos diretos de eventos

observados ou vividos, mas histórias adaptadas às formas de comunicação po-

pulares. A busca de um núcleo histórico está portanto fadada a perder o foco

dessas narrativas e a fracassar. Todas elas foram feitas tendo em vista a missão,

a edificação, o culto, a apologia ou a teologia (especialmente a cristologia) e não

fornecem respostas para a busca de informações históricas confiáveis. Se histó-

rias de epifania (ressurreição) podem ainda preservar o nome original da pessoa

receptora da epifania, por outro lado, detalhes precisos de nomes e lugares são

sempre secundários e freqüentemente introduzidos pela primeira vez no estágio

literário da tradição. Exatamente aqueles elementos e características de narrati-

vas que levam ao clímax da história não derivam de informações historicamente

confiáveis, mas pertencem ao estilo dos gêneros dos vários tipos de narrativa.

Características inesperadas podem às vezes refletir alguma memória histórica,

como a de que lesus foi batizado por João, o líder de uma seita rival que competia

com os discípulos de Jesus (§8.1). É possível, porém, tirar algumas conclusões

históricas da totalidade das narrativas de um determinado gênero. A proeminência

das histórias de exorcismo de Jesus, por exemplo, permite a conclusão de que

o ministério de Jesus de fato se caracterizou por sua atividade de exorcista. Por

outro lado, é sumamente problemático propor que os muitos milagres de curas

e com elementos da natureza relatados na tradição sinótica sugerem que lesus

deve ser classificado como um mago helenístico típico. A propaganda religiosa.(e

política ) na antiguidade sempre apresenta grandes personalidades - sejam elas

deusesou serçshumanos -como curadores poderosos. Numa sociedade onde

nã9 .haja serviços de saúde pública, a enfermidade e a doença eram tão Comuns

que nenhuma mensagem de salvação poderia ter sucesso sem o anúncio de que

0 salvador era um "homem divino" capaz de realizar curas milagrosas.

(b) Tradições Antigas nas Cartas do Novo Testamento

Os materiais incluídos nas cartas do Novo Testamento que não foram cria-

dos pelos autores, mas derivaram das tradições da igreja, estão preservados com

grande riqueza e variedade. Só raramente esses materiais tradicionais são citados

ou identificados explicitamente como tradicionais. Além disso, as passagens que

Bibliografia para §7.4b

Rudolf Bultmann,

Der Stil der paulinischen Predigt und die Kynisch-stoische Diatribe

(FRLANT 13; G~ttingen:Van-

denhoeck & Ruprecht, 1910; reprintc 1984).

Martin Dibettus,'Zur Formgeschichte

des Neuen

Testaments (au erhalb der Evangelien),'ThR NF 3(1931) 207-42.

Page 24: Introdução ao Novo Testamento

7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento

http://slidepdf.com/reader/full/introducao-ao-novo-testamento-56d7248cbbe82 24/28

7 0 F O N TE S PAR A A H I ST Ó R I A D O CR I S T I A N I S M O PR I M I T I VO

§ 7

se baseiam em materiais tradicionais podem não reproduzi-los em sua forma

original. Sua delimitação e enunciado exatos a partir do contexto em.que a apa:

recem continuam, portanto, um problema evidente. Como indicações externas

do emprego de materiais tradicionais estão em geral ausentes, sua identificação

com uma determinada passagem precisa basear-se em outros critérios, como uma

terminologia que difere do vocabulário normal do autor, uma linguagem métrica

ou poética introduzida numa seção de prosa normal da carta, sentenças ou frases

formulares estereotipadas e finairnent~ a ocorrência de paralelos em outros escritos

onde a dependência literária não pode ser estabelecida. Às vezes também é possível

descobrir que existem contradições entre materiais citados e a opinião do autor.

Fórmulas querigmáticas sobre o sofrimento, a morte ou cruz e a ressurreição

de lesus são usadas com freqüência; a citação de uma das mais antigas encontra-

se em 1Cor 15,3-5. O esquema básico dessas fórmulas foi expandido ainda nos

primórdios por aspectos característicos como a referência à morte de lesus como

expiação (ver Rm 4,25 e o acréscimo típico "por nós": Rm 3,25-26; G1 1,4-5;

1Pd 2,21-25). A expectativa da segunda vinda de lesus em toda sua glória para

o julgamento foi logo combinada com essas fórmulas querigrnáticas (1Ts 1,10).

Uma expectativa teológica um pouco diferente aparece em expressões formulares

que falam do sofrimento e morte de lesus e de sua exaltação e entronização (Hb

1,2b-3; 1Pd 3,18-19 e 4,1 ). Fórmulas confessionais cristãs posteriores combinam

a afirmação da ressurreição com a da exaltação. Chama a atenção, porém, que

muito raramente uma fórmula dessas é repetida literalmente na literatura sub-

sistente. O esquema básico continua o mesmo, mas o enunciado exato permite

grande liberdade de inovação na formulação do detalhe. Existe uma tradição,

mas ela ainda não está sujeita ao controle canônico.

Hinos cristológicos são citados freqüentemente. Eles têm uma forma fácil

de reconhecer, com seqüências de frases relativas e participiais em que o sujeito

é sempre Cristo. O conteúdo desses hinos é informado pela história mítica da

descida de uma figura celeste, da sua atuação e experiências entre os homens e

da sua ascensão e exaltação final. O mais antigo desses hinos está preservado em

FI 2,6-11. Ele segue o modelo do mito de Israel da Sabedoria celeste. De modo

particular, a ap,rçsentação de Cristo como mediador da criação, que introduz

muitos desses hinos, deriva desse mito da Sabedoria (CI 1,15-20; lo 1,1-5,9-

12,14,16). Em muitos casos, somente fragmentos desses hinos são citados (Ef

2,14ss; 1Tm 3,16; 2Cor 9,9; cf. 2Cor 5,19).

Como esses hinos, as doxologias também derivam da tradição litúrgica. Elas

às vezes aparecem na conclusão de epístolas, onde podem ter sido acrescentadas

secundariamente (este é certamente o caso em Rm 16,25-27), mas encontram-se

também no corpo de cartas (Rm 11,36; 1Cor 8,6). Bênçãos no fim de uma carta

Walter Bauer, "Der Wortgottesdienst der ältesten Christen," in idem, Aufsätze und kleine 5chriften (T0bingen:

Mohr/Siebeck, 1967), 155-209.

James M. Robinson,"Die Hodajot-Formel in Gebet und Hymnus des Frühchristentums," in Apophoreta, 194-

235.

Ernst Käsemann,'Sentences of Holy Law in the NewTestament," in idem, New Testament Questione 66-81.

§ 7 . 4 b

P R O BL E / v~ A S D E C RI T I CA DA FO R MA , TR A D IÇ Ã O, N A RR AT I VA E R E T ÓR I CA 7 1

tãmbém podem refletir materiais litúrgicos, como 2Cor 13,13, que liturgias cristãs

ainda hoje adoram. Da liturgia da Eucaristia, Paulo cita as palavras da institui-

ção da ceia do Senhor (1Cor 11,23-27) e a invocação: "Vem, Senhor " (1Cor

16,22; cf. Ap. 22,20). Diferenças no enunciado de várias citações das palavras

da instituição (comparar 1Cor 11,23-25 com Mc 14,22-25) refletem diferenças

na prática litúrgica, É provável que várias passagens das cartas preservaram

materiais litúrgicos do rito batismal, mas é difícil identificar essas passagens com

segurança. A breve confissão "]esus é Senhor" (1Cor 12,3) e o apelo «Ó tu, que

dormes, desperta " (Ef 5,14) parecem proceder de liturgias batismais.

Mesmo seções parenéticas das cartas foram atribuídas à liturgia do batismo;

mas tradições parenéticas não tiveram sua situação de vida exclusiva na instrução

dos catecúmenos. Há duas formas básicas em que materiais parenéticos foram

transmitidos, especificamente, como catálogos de vícios e virtudes e como compo-

sições de grupos de ditos. Catálogos de vícios e virtudes iá haviam sido formados

em círculos judaicos por influência da filosofia helenística e são freqüentemente

usados e interpretados nos primeiros escritos cristãos. Eles ocorrem em contextos

parenéticos como listas simples ( 1 Cor 6,9-10; GI 5,19-24; C13,5-8, 12) ou como

a estrutura subjacente de admoestações mais elaboradas (1Ts 4,3-7; Ef 4,17-5,6;

e multas vezes nas Epístolas Pastorais). A parênese na forma de ditos era típica

da tradição judaica no período helenístico. Uma carta do Novo Testamento, a

Epístola de Tiago, não é senão uma coleção de ditos tradicionais (dos quais alguns

têm paralelos em Mateus 5-7). Grupos de ditos tradicionais multas vezes fazem

parte das seções conclusivas das cartas (Rm 12,9-21; GI 6,1-10; 1Ts 5,14-22).

Esses grupos podem ser dispostos num esquema de "dois caminhos», o caminho

da vida e o caminho da morte. Em outros casos, eles seguem o esquema dos de-

veres familiares, uma forma que deriva da diatribe estóica do mundo helenístico.

Essa relação de deveres familiares trata das obrigações mútuas dos membros de

uma famflia (marido e mulher, pais e filhos, senhores e escravos) e dos deveres

do indivíduo para com os amigos, o governo e os estrangeiros. Eles aparecem

na parênese cristã pela primeira vez nas cartas deuteropaulinas (CI 3,18-4,1; Ef

5,22-6,9; 1Pd 2,13-3,7). As Epístolas Pastorais adotam esse esquema tradicional

para o desenvolvimento da organização da igreja; assim, são mencionados não

somente os deveres dos velhos e dos jovens, mas também as qualificações e obri-

gações dos ocupantes de cargos eclesiásticos, especificamente bispos, presbíteros,

diáconos e viúvas (1Tm 2,1-3,13; 5,1-21; 6,1-2; Tt 1,7-9; 2,1-10).

Palavras de lesus também são usadas na parênese, às vezes citadas expli-

citamente (1Cor 7,10-11; 9,14); em muitos casos, porém, sem um reconheci-

mento especial da autoridade de ~esus (Rm 12,14.17; 14,13-14; 1Ts 5,15; Ef

4,29; um dito de Jesus que não" se encontra em nossos evangelhos é citado em

Atos 20,35). A ausência de uma referência a ~esus no uso de alguns ditos na

parênese é surpreendente, especialmente em 1Pd (2,19-20; 3,9, 14, 16; 4,14) e

na Epístola de Tiago (por exemplo, 4,9,10; 5,12). Serão alguns desses ditos tra-

dicionais que só mais tarde foram atribuídos a Jesus? Materiais apocalípticos são

às vezes citados como palavras do Senhor. Essas são provavelmente afirmações

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7 2 F O N T E S PA R A A HI S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S M O P R I M I T I V O

§ 7

de profetas cristãos que fizeram predições sobre o futuro em nome do Senhor.

Paulo cita uma «palavra do Senhor" assim em 1Ts 4,15-17; em outra carta ele

se refere à mesma tradição como "mistério" (1Cor 15,51). Referências a esses

mistérios, isto é, revelações sobre o futuro, acessíveis somente aos iniciados,

não são raras. Nas cartas de Paulo, o termo lauoxríptov ("mistério" no singular)

sempre designa um dito ou tradição específicos (Rm 11,25-26a; ver também

2Ts 2,7), enquanto no plural o termo se refere a numerosos desses ditos de

revelação (1Cor 13,2; 14,2). Mesmo~em 1Cor 2,7, o termo parece referir-se a

um dito específico sobre a vinda do Senhor (cf. Mt 13,35), e a estreita relação

entre essas tradições de ditos é hoje evidente na citação seguinte de um dito em

1Cor 2,9 que foi encontrado como dito de Jesus no Evangelho de Tomé (17).

Somente numa época posterior o termo "mistério" se toma idêntico ao termo

"evangelho" (Ef 3,3-8; CI 1,26-28; e a conclusão secundária de Romanos em

16,25-27).

Há também outra atividade dos profetas cristãos que se manifestava

em expressões que se tomaram tradicionais: a formulação de sentenças da lei

sagrada; são pronunciamentos que afirmam o ius talionis (a lei da retribuição)

formulado para a esfera sagrada e religiosa da vida da comunidade. Paulo cita

essas sentenças várias vezes (por exemplo: "Se alguém destrói o templo de Deus,

Deus o destruirá", 1Cor 3,17; ver também 1Cor 14,38; 16,22; Rm 10,11,13).

É evidente que essas declarações de profetas contribuíram para o aumento dos

ditos de Jesus (cf. 1Tm 2,11-13 com Me 8,30).

O uso de materiais tradicionais é evidente finalmente, mas não secundaria-

mente, nas citações e na interpretação de passagens da Escritura. Inúmeras dessas

citações foram extraídas de coleções tradicionais de testemunhos para tópicos

específicos (por exemplo, Rm t 0,18-21; Hb 1,5-13). Em geral, porém, deve-se

presumir que os autores do Novo Testamento, especialmente Paulo, conheciam

todo o contexto das passagens da Escritura, apesar de serem realmente citados

apenas um ou alguns versículos. Além disso, comentários sobre essas passagens

muitas vezes revelam familiaridade com tradições de interpretação escritural

que podem ter vindo de convenções exegéticas pré-cristãs (por exemplo: 1 Cor

10,1-10) ou de interpretações escriturais criadas por adversários, as quais são

criticamente anotadas por Paulo (é o caso em 2Cor 3,7-18).

Como os evangelhos nao sao criações livres de seus autores, mas compi-

lações de fontes e de tradições orais, também as epístolas não devem ser vistas

como produtos das mentes inventivas de pensadores teológicos criativos, mas

como elaborações de vários e diferentes materiais tradicionais que eram cor-

rentes em Israel, no mundo helenístico-romano e especialmente nas primeiras

comunidades cristãs.

(c) Materiais Tradicionais Preservados nos Padres Apost6licos,

nos Apócrifos e nos Apologistas

O que se disse acima também se aplica aos escritos não-canônicos do

cristianismo primitivo. Esses escritos, porém, receberam todos muito menos

§ 7 . 4C P R O BL E M AS D E C RÍ T I C A D A F O RM A , TR A D IÇ Ã O , N A R R A TI V A E R E T Ó R I C A 7 3

atenção do que o Novo Testamento em si, e por isso grande parte do tesouro de

materiais tradicionais, quase sempre muito valiosos e antigos nesses escritos,

continua praticamente inexplorada. Muitos desses materiais não foram clara-

mente reconhecidos. Na seqüência, abordarei apenas alguns exemplos típicos

dessa rica literatura.

Palavras de Jesus e tradições ligadas a Jesus que são semelhantes aos evange-

lhos canônicos encontram-se em escritos pertencentes ao gênero dos evangelhos

e em outras formas de literatura. Com relação a muitos desses escritos, não se

pode supor que dependam literariamente dos evangelhos canônicos. Antes, as

fontes dessas tradições de Jesus ou são a transmissão oral livre ou então materiais

escritos independentes. 1 Clemente menciona duas pequenas coleções de palavras

de Jesus da tradição oral (1 Clem. 13,2; 46.8). Uma coletânea semelhante de ditos

foi inserida no primeiro capítulo da

Didaqué,

enquanto

2 Clemente

aparentemente

usou uma coleção de ditos de Jesus em parte baseada nos evangelhos canônicos e

em parte em tradições orais não-canônicas. Uma transmissão independente dos

ditos veio à luz recentemente no recém-descoberto Evangelho de Tomé (copta)

que contém principalmente ditos proféticos, ditos sapienciais e parábolas de

Jesus com semelhanças nos evangelhos canônicos, mas foi enriquecido com

numerosos ditos gnósticos no curso de sua história literária. Um fragmento de

um Evangelho Desconhecido (Pap. Oxy. 840) e o fragmento evangélico Papiro

Egerton 2

apresentam palavras de Jesus que foram inseridas em cenas semelhantes

às dos apotegmas sinóticos, mas são um pouco mais elaboradas. O bispo Pápias

de Hierápolis (inícios do século II) coletou ditos de Jesus da tradição oral, in-

clusive lendas e revelações - infelizmente, apenas alguns fragmentos deles estão

preservados. Finalmente, desde o século II ar~ alguns séculos posteriores ainda

se encontram muitos dos assim chamados

ágrafos (agrapha) -

palavras de Jesus

que não se encontram em evangelhos escritos - citados nas obras dos Padres da

Igreja. Embora, em sua grande maioria, esses ágrafos não possam ser conside-

rados palavras autênticas de Jesus, ainda assim são testemunhos importantes da

origem e do desenvolvimento iniciai da tradição dos ditos de Jesus nas primeiras

comunidades cristãs, se novos ditos de Jesus ainda eram criados e podiam cir-

cular livremente, raramente se encontram novas histórias de milagres de Jesus

na tradição extracanônica; por outro lado, histórias de milagres dos apóstolos

se tomaram cada vez mais populares. As lendas, porém, narrando o nascimento

e a infância de Jesus, formaram-se num estágio ainda iniciai. Coleções e edições

dessas histórias resultaram na publicação do Proto-Evangelho de Tiago e do

Evangelho da Infância de Tomé.

Ao mesmo tempo, histórias de epifania sobre

a aparição de Jesus a seus discípulos pareciam circular oralmente e reaparecer

secundariamente no gênero literário das discuss6es de Jesus com seus discípulos

depois da ressurreição (embora estas mal preservem tradições mais antigas). O

fragnlento do Evangelho de Pedro conserva uma versão mais antiga da história

do túmulo vazio na forma de uma história de epifania. Fragmentos da mesma

história podem efetivamente aparecer em Marcos 9,2-9 e Mateus 27,51-53.62-

66; 28,2-4. Início de Antioquia (Smym. 3.2-3) cita uma variante independente

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76

F O N T ES PAR A A H I ST Ó R I A D O C R I ~ T I AN I SM O PR I M I T I VO

§ 7

usaram os recursos da oratória greco-romana para organizar e posicionar dis-

cursos convincentes. Ambos os métodos focalizam modelos de comunicação e

podem ser compreendidos como extensões ou suplementos da crítica da redação

e da composição, visto que se propõem a localizar os objetivos e as estratégias

dos autores dos livros bíblicos. Esses e outros enfoques inspirados pelo estudo

da literatura geral ou secular (como a crítica da resposta do leitor) são ricos e

complexos e têm multas aplicações possíveis, podendo levar a observações e

conclusões históricas e também pur~nente literárias.

Os últimos anos têm testemunhado aplicações produtivas de crítica da

narrativa aos Evangelhos, aos Atos, às epístolas paulinaí e ao próprio Livro do

Apocalipse. Os Evangelhos e os Aros apresentam as narrativas mais obviamente

desenvolvidas, cujas linhas de enredo, personagens principais e secundários,

temáticas e perspectivas narrativas podem ser analisados com proveito. Mas as

cartas de Paulo também contêm histórias embutidas, especialmente a narrativa

de sua carreira como apóstolo, com seus sucessos, lutas e contratempos. Essa

narrativa nem sempre é expressa explicitamente, mas apesar disso fornece uma

estrutura em que as cartas particulares de Paulo podem ser lidas, comparadas

e classificadas. Isso por sua vez pode levar a observações literárias e históricas

sobre a intenção persuasiva da breve carta de Paulo a Filêmon sobre Onésimo,

por exemplo, quando suas palavras são lidas no contexto da história mais longa

das relações de Paulo com os cristãos de Colossas e da Laodicéia. A análise nar-

rativa (e retórica) pode aguçar nossa percepção da integridade ou da composição

secundária de outras cartas, como 2 Coríntios ou Filipenses, observando como

o enredo se desdobra ou então é interrompido abruptamente.

O enredo e os temas narrativos do Evangelho de Marcos podem ser outro

exemplo. A crítica da forma e da redação se combinaram para identificar o ar-

ranjo secundário ou artificial feito por Marcos de episódios isolados sobre Jesus

realizando milagres, exorcizando demônios, chamando alguns a "segui-lo" e

enfrentando adversários. Examinando esses contextos à luz da análise da nar-

rativa, podemos ver como o autor dispôs os diferentes elementos para compor

uma trama de grande efeito e ironia com um elenco fascinante de personagens

que segue na contramão das expectativas do leitor. O narrador informa o leitor

desde o início sobre a identidade de Jesus como Filho de Deus (1,1; também 1,11;

9,7; cf. 15,39); no entanto, esse fato supostamente importante permanece oculto

à maioria dos demais participantes da história. O narrador insiste na identidade

de Jesus como professor e mestre e no papel dos seus seguidores como alunos

(discípulos), e todavia a história constrói grande parte da sua força dramática

exatamente com o fracasso contínuo desses «alunos" em compreender e aprender

a mensagem central de Jesus. Exorcismos e curas (sinais da missão divina de

Jesus) são muitas vezes apresentados como o conteúdo do seu "ensinamento",

Stanley E. Porter and David Tombs

(eds.),Approaches to New Testament Study(JSNTSup

120; Sheffield: Sheffield

Acadernic Press,

1995).

David L Barr, Tales of the End: A Narrative Commentary on the Book of Revelation (Santa Rosa, CA: Polebridge,

1998).

§ 7 . 4 c PR O BL EM AS D E C R I T I C A D A F O R M A, T R AO I Ç ÀO , N AR R AT I VA E R ET Ó R I C A

7 7

que deslumbra as multidões, enfurece os demônios e mistifica os discípulos.

Inicialmente, o leitor se identifica com Jesus e seus seguidores mais próximos,

mas depois esse envolvimento sofre um questionamento muito sério à medida

que o destino de Jesus se define e que a dúvida e a apreensão dos discípulos os

lançam na incerteza. A última lição bem compreendida é a agonia de obediência

de Jesus à vontade de Deus diante do abandono e da desolação: um final triste

que aponta para um futuro apenas parcialmente resolvido.

A atenção ao fluxo direcional da narrativa de Marcos ajuda a solucionar

alguns problemas não equacionados pelo gênero ou pela análise gramatical. O

final estranhamente truncado de Marcos é um caso clássico: ~ço[3oôwo yáp. O

leitor que ouviu Jesus predizer três vezes a prisão, julgamento e execução do "Fi-

lho do Homem" - sempre seguidas pela insistência de que ele "ressurgirá depois

de três dias" (Mc 8,31; 9,31; 10,33-34) - não entra num estado de abatimento

tão intenso quanto Maria e suas amigas quando encontraram o túmulo vazio,

fugiram "e nada contaram a ninguém, pois tinham medo" (16,8). O leitor, que

supostamente já é membro de uma congregação cristã, sabe que as predições de

Jesus se tomarão (e, de fato, já se tomaram) verdadeiras fora da narrativa que

ele está lendo: o leitor é capaz, na verdade compelido, a preencher o restante da

história. Não obstante, a mensagem também deixa muito claro que a privação

e o sofrimento sem dúvida acompanharão todo seguidor perseverante de Jesus

- todos receberão sua recompensa "cem vezes mais desde agora - com persegui-

çges - e, no mundo futuro, a vida eterna" (Mc 10,30).

As parábolas atribuídas a Jesus nos evangelhos são especialmente propí-

cias ao estudo literário. Essas histórias curtas (especialmente as narradas ou

recontadas por Lucas) muitas vezes revelam uma sofisticação incomum em

mudanças bruscas do enredo, na sagacidade dos personagens, no uso do símbolo

e da hipérbole e no detalhe vívido. As histórias do "Filho Pródigo", do "Bom

Samaritano" e do "Semeador e a Semente" estão profundamente impressas na

consciência literária ocidental. Os especialistas observam como as parábolas e

símiles de Jesusprendem a atenção dos ouvintes com um senso surpreendente do

imediato e em seguida desafiam audaciosamente os pressupostos desses ouvintes

com reviravoltas da sorte inesperadas e às vezes chocantes. Embora a maior

parte se perca, algumas das sementes lançadas frutificarão e produzirão colheita

abundante (Mc 4,3-8 par.); aquele que Deus envia em auxílio dos desesperados

acaba sendo exatamente o tipo de pessoa que a vítima (e os ouvintes dentro da

narrativa) mais despreza (Lc 10,30-35); o filho dissoluto e impaciente que de-

monstra pouco respeito e nenhuma consideração por seu pai idoso é aquele que

é bem recebido em casa com um novilho «evado (Lc 15,11-32).

A análise literária do Livro do Apocalipse enfatiza a construção da obra

como uma experiência litfirgica dramatizada, revestida de uma estrutura epistolar

(ver § 12.1c). O ponto de vista adotado nos cicios de revelações auditivas e vi-

suais é o de um vidente transportado que experimenta o alto drama da adoração

angélica oferecida a Deus em tomo do trono celeste. As repetições, transições

abruptas e contradições aparentes não são sinais de uma combinação inade-

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7 8 F O N T ES PA R A A HI S TÓ R I A DO CR I S T I A N I S M O PR I M I T I V O

§ 7

quada de fontes diferentes, mas uma tentativa literária de imaginar e recriar os

efeitos de um evento visionário desorientador. Uma vez mais, porém, a análise

literária não pode ser separada da compreensão sócio-histórica. Apesar de suas

intervenções teatrais complicadas, o livro tem o objetivo claro de impressionar

uma audiência de crentes contemporâneos da Asia imperial romana de fins do

século I quanto à necessidade de perrnanecer fiel a Cristo apesar da ameaça de

sanções políticas e até criminosas.

A análise da retórica também me,ela a sensibilidade literária da narratologia

com as preocupações históricas da crítica da redação e social-científica. O estudo

atual da retórica na literatura do Novo Testamento se baseia em pesquisas das

variedades e propósitos da oratória pública em contextos específicos do mundo

helenístico: forense ou judicial (praticada nos tribunais de justiça); deliberativa

(adotada nas assembléias políticas); e epidítica (voltada para o elogio ou a crí-

tica, própria para alocuções fúnebres ou encomiásticas). Fora dessas situações

sociopolíticas imediatas, os autores podiam compor seus discursos adorando uma

mistura de estilos para alcançar efeitos específicos. Os especialistas mostraram,

por exemplo, como Paulo utilizou tanto a-retórica apo ogética (forense) como

a deliberativa ao escrever para os gálatas em defesa do seu apostolado (como

também em 1 Cor 9), enquanto por sua vez os escritores dos evangelhos pratica-

ram variedades de oratória deliberativa e epidítica para desenvolver e elaborar

chreiai

(anedotas instrutivas) sobre Jesus.

Embora os primeiros escritores cristãos raramente seguissem com alguma

exatidão ou rigidez os padrões ideais desenvolvidos pelas escolas retóricas, eles

(e por extensão seus antigos leitores) parecem à vontade com as convenções re-

tóricas de composição e argumento, que normalmente adotavam uma estrutura

mais ou menos fixa de introdução, narração histórica e várias espécies de provas

e apelos. Quando Pedro e Paulo proferem discursos missionários no contexto

narrativo de Atos, por exemplo, eles se referem coerentemente aos seus feitos

milagrosos (narrados ao longo dos discursos) como parte das provas de sua

autoridade divina. Quando Jesus é acusado de exorcizar demônios com o poder

de Belzebu, o(s) autor(es) do Evangelho de Ditos Q compõe(m) uma versão

elaborada da resposta de Jesus a essa acusação (Lc 11,14-23 par.), combinando

vários elementos originalmente separados para caracterizar e defender Jesus

com argumentos e exemplos do contexto forense e epidítico. De modo gerai

na tradição sinótica, Jesus debate adotando a analogia, o exemplo e a anedota

simbólica (parábola), mas sua prática é excepcional no apelo pouco freqüente a

~ d ã ~ e - c l ü e n ã o a s u a p r ó p r i a .

Como as cartas de Paulo não eram comunicações particulares, mas se

destinavam à leitura pública nas congregações (cf. §g), ele naturalmente e de

acordo com a necessidade recorreu a técnicas de persuasão já estabelecidas em

ambientes deliberativos. O conhecimento dessas técnicas e de outras semelhantes

do âmbito da retórica antiga ajuda o leitor moderno a compreender o estilo de

argumentação de Paulo. O uso paulino do estilo da diatribe estóico-cínica (§4.2a),

especialmente em Romanos, é uma adaptação de técnicas retóricas praticadas

§ 7 . 4 C PR O BL EM AS D E C R I T I C A D A F O R M A, T R AD I Ç ÃO , N AR R AT I VA E R ET Ó R I C A

7 9

nas escolas filosóficas para suscitar e refutar possíveis objeções de adversários

ou alunos (cf. Epicteto). Longe de ser um exercício artificial ou meramente

literário, o recurso de Paulo à retórica persuasiva, como a diatribe, deve refletir

suas práticas como pregador missionário e professor. Um bom exemplo do uso

paulino da oratória deliberativa é a defesa que o apóstolo faz da esperança futura

na ressurreição do corpo em 1 Coríntios 15, apresentada a cristãos que hesitaram

em aceitar esse conceito não-helênico (cf. Aros 17,32). O argumento de Paulo

começa com uma breve transição introdutória (exórdio, 1Cor 15,1-2) e segue

com uma narração histórica tanto do resumo do credo culminando na ressurrei-

ção de Cristo (w. 3-7) como da experiência do Senhor ressuscitado vívida pelo

próprio Paulo (w. 8-11); em seguida, ele relaciona um conjunto de provas cujo

objetivo é refutar as idéias dos seus oponentes (w. 12-19, 35-44) e corroborar a

sua posição com exemplos e analogias (w. 20-34.44-57). O argumento termina

com uma exortação-síntese (peroração) no versículo 58: "Assim sabei que a vossa

fadiga não é vã no Senhor "