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19 Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017 Lewis Howard Latimer e sua história aprisionada Introdução N ormalmente, durante aulas regulares de física, estudantes entram em contato com nomes de representantes da ciência, como, a título de exemplo: Isaac Newton (1643-1727), Anders Celsius (1701-1744), Georg Simon Ohm (1789-1854), James Prescott Joule (1818—1889), André-Marie Ampère (1775-1836) etc. A partir de leis, unidades, relações matemáticas ou até mesmo fenômenos físicos que recebem o nome e homenageiam construtores da ciência, estudantes acabam se familiarizando principalmente com seus sobrenomes. Em grande maioria, homens brancos de nacionalidade europeia ou americanos descendentes de europeus. Mesmo quando se utiliza a história da física no transcorrer de uma aula, é comum que somente a vida e a produção científica desses mesmos nomes sejam explorados. Ainda que feitas com boas intenções, a constan- te repetição dessas práticas educacio- nais não fornece ao estudante uma visão geral sobre a diversi- dade de trabalhado- res que contribuíram para construir as teorias e leis científicas. Sob esse ponto de vista, podemos ressaltar que as práticas educacionais em física não são diferentes das realizadas em outras áreas do conhe- cimento. Para citar, em filosofia, salvo pelo esforço próprio de alguns educadores e educadoras, a maioria dos filósofos apresentados para estudantes é grega, ignorando por exemplo os pensadores árabes e africanos - ambos de epiderme mais escura [1, 2]. Sem precisar ser especialista no as- sunto, é fácil constatar que a história de lutas, vitórias e conquistas dos(as) ne- gros(as), de forma consciente ou incons- ciente, são omitidas pela historiografia oficial. Não sendo diferente com a produ- ção científica dos descendentes da diáspora africana, 1 que é simplesmente relegada a segundo plano ou apagadas dos livros. Grandes nomes das ciências da natu- reza e das ciências humanas costumam despertar o interesse dos discentes durante as aulas. Em particular, nas aulas de física, perguntas como “O que diz a teoria da relatividade de Albert Einstein?”, “A maçã realmente caiu na cabeça de Newton?” são frequentes. O que não impede o surgimen- to de questionamentos que envolvam outras áreas do conhecimento, do tipo: “Quem foi Platão?” ou até mesmo “Pro- fessor(a), o que defendia Karl Marx?” O físico José Leite Lopes, em uma de suas palestras afirmou: “A aventura hum- ana é uma beleza”, aconselhando jovens físicos a criarem o hábito de lerem sobre filosofia, sociologia, história, para que não perdessem dimensões em sua formação [3, p. 14]. Seguindo os conselhos de Leite Lo- pes, o escopo deste arti- go tem por finalidade apresentar uma pro- posta de aula contex- tualizada com outras dimensões, utilizando o episódio histórico da invenção da lâmpada incandescente. O texto que será apresentado reconta essa “conhecida” história sob um novo olhar, retomando a história aprisionada do inventor negro Lewis Howard Latimer (1848-1928), com o objetivo de apresen- tar aos alunos e alunas a diversidade que permeia a construção científica, além de contribuir para criar reflexões e debates sobre questões étnico-raciais. Além do mais, tem o propósito de reforçar a iden- tidade do(a) jovem negro(a), explorando essa fundamental representatividade, ou seja, a partir da apresentação de um per- Rodrigo Fernandes Morais C.E. Compositor Manacéia José de Andrade, Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: [email protected] Antonio Carlos Fontes dos Santos Departamento de Física Nuclear, Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Email: [email protected] Este trabalho reconta o episódio histórico da invenção da lâmpada incandescente retomando a história aprisionada do inventor negro Lewis Howard Latimer, com o objetivo de apresentar aos alunos e alunas a diversidade que permeia a construção científica, além de contribuir para criar reflexões e debates sobre questões étnico- raciais. Histórias aprisionadas de personagens como Lewis Latimer quando libertadas e bem trabalhadas servem a não apenas para fornecer uma visão alternativa a historiográfica tradi- cional, mas principalmente em termos pragmá- ticos apresentar para estudantes uma imagem representativa do(a) negro(a) em acontecimen- tos históricos importantes para a sociedade. “Uma vez que o outro hesitava em me conhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer.” (Frantz Fanon) Sem precisar ser especialista no assunto, é fácil constatar que a história de lutas, vitórias e conquistas dos(as) negros(as), de forma consciente ou inconsciente, são omitidas pela historiografia oficial

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19Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017

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Lewis Howard Latimer e sua história aprisionada

Introdução

Normalmente, durante aulasregulares de física, estudantesentram em contato com nomes

de representantes da ciência, como, a títulode exemplo: Isaac Newton (1643-1727),Anders Celsius (1701-1744), Georg SimonOhm (1789-1854), James Prescott Joule(1818—1889), André-Marie Ampère(1775-1836) etc. A partir de leis, unidades,relações matemáticas ou até mesmofenômenos físicos que recebem o nome ehomenageiam construtores da ciência,estudantes acabam se familiarizandoprincipalmente com seus sobrenomes. Emgrande maioria, homens brancos denacionalidade europeia ou americanosdescendentes de europeus.

Mesmo quando se utiliza a históriada física no transcorrer de uma aula, écomum que somente a vida e a produçãocientífica desses mesmos nomes sejamexplorados. Aindaque feitas com boasintenções, a constan-te repetição dessaspráticas educacio-nais não fornece aoestudante uma visãogeral sobre a diversi-dade de trabalhado-res que contribuíram para construir asteorias e leis científicas. Sob esse ponto devista, podemos ressaltar que as práticaseducacionais em física não são diferentesdas realizadas em outras áreas do conhe-cimento. Para citar, em filosofia, salvo peloesforço próprio de alguns educadores eeducadoras, a maioria dos filósofosapresentados para estudantes é grega,ignorando por exemplo os pensadoresárabes e africanos - ambos de epidermemais escura [1, 2].

Sem precisar ser especialista no as-sunto, é fácil constatar que a história delutas, vitórias e conquistas dos(as) ne-

gros(as), de forma consciente ou incons-ciente, são omitidas pela historiografiaoficial. Não sendo diferente com a produ-ção científica dos descendentes da diásporaafricana,1 que é simplesmente relegada asegundo plano ou apagadas dos livros.

Grandes nomes das ciências da natu-reza e das ciências humanas costumamdespertar o interesse dos discentes duranteas aulas. Em particular, nas aulas de física,perguntas como “O que diz a teoria darelatividade de Albert Einstein?”, “A maçãrealmente caiu na cabeça de Newton?” sãofrequentes. O que não impede o surgimen-to de questionamentos que envolvamoutras áreas do conhecimento, do tipo:“Quem foi Platão?” ou até mesmo “Pro-fessor(a), o que defendia Karl Marx?”

O físico José Leite Lopes, em uma desuas palestras afirmou: “A aventura hum-ana é uma beleza”, aconselhando jovensfísicos a criarem o hábito de lerem sobrefilosofia, sociologia, história, para que não

perdessem dimensõesem sua formação [3,p. 14]. Seguindo osconselhos de Leite Lo-pes, o escopo deste arti-go tem por finalidadeapresentar uma pro-posta de aula contex-tualizada com outras

dimensões, utilizando o episódio históricoda invenção da lâmpada incandescente.

O texto que será apresentado recontaessa “conhecida” história sob um novoolhar, retomando a história aprisionadado inventor negro Lewis Howard Latimer(1848-1928), com o objetivo de apresen-tar aos alunos e alunas a diversidade quepermeia a construção científica, além decontribuir para criar reflexões e debatessobre questões étnico-raciais. Além domais, tem o propósito de reforçar a iden-tidade do(a) jovem negro(a), explorandoessa fundamental representatividade, ouseja, a partir da apresentação de um per-

Rodrigo Fernandes MoraisC.E. Compositor Manacéia José deAndrade, Rio de Janeiro, RJ, BrasilE-mail: [email protected]

Antonio Carlos Fontes dos SantosDepartamento de Física Nuclear,Instituto de Física, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Rio deJaneiro, RJ, BrasilEmail: [email protected]

Este trabalho reconta o episódio histórico dainvenção da lâmpada incandescente retomandoa história aprisionada do inventor negro LewisHoward Latimer, com o objetivo de apresentaraos alunos e alunas a diversidade que permeiaa construção científica, além de contribuir paracriar reflexões e debates sobre questões étnico-raciais. Histórias aprisionadas de personagenscomo Lewis Latimer quando libertadas e bemtrabalhadas servem a não apenas para forneceruma visão alternativa a historiográfica tradi-cional, mas principalmente em termos pragmá-ticos apresentar para estudantes uma imagemrepresentativa do(a) negro(a) em acontecimen-tos históricos importantes para a sociedade.

“Uma vez que o outro hesitava em me conhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer.”

(Frantz Fanon)

Sem precisar ser especialista noassunto, é fácil constatar que a

história de lutas, vitórias econquistas dos(as) negros(as),

de forma consciente ouinconsciente, são omitidas pela

historiografia oficial

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20 Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017Lewis Howard Latimer e sua história aprisionada

sonagem da ciência negro em meio àdemografia científica predominante bran-ca.

A utilização desse recurso ideacional,2

além do reforço de identidade que contri-bui para redução da inferiorização, podecolaborar para que estudantes negros des-pertem atração pela área das exatas apósuma possível identificação, tanto pela corquanto pela história de vida do persona-gem apresentado.

É importante ressaltar que vivencia-mos um período histórico consideradopela Organização das Nações Unidas(ONU) como sendo a Década InternacionalAfrodescendentes (2015-2024), baseadaem valores comoreconhecimento, jus-tiça e desenvolvimen-to. Segundo a ONU,os países devem con-siderar o direito àigualdade e à nãodiscriminação e for-necer educação para aigualdade e a amplia-ção da conscienti-zação, além de pro-mover a participação e inclusão de pessoasautoidentificadas como afrodescendentes.

Ao declarar esta década, a comuni-dade internacional reconhece que os povosafrodescendentes representam um grupodistinto cujos direitos humanos precisamser promovidos e protegidos [5].

Embora, hoje, tenhamos em nossopaís algumas políticas públicas, como aimportante Lei 10.639/03 que alterou aredação da Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (Lei n.9.394/1996),tornando obrigatório o ensino da históriae cultura afro-brasileira e africana emtodos os estabelecimentos de ensino fun-damental e médio, consideramos aindainsuficiente a implementação de práticaseducacionais correlacionadas com estalegislação em ciências exatas.

As Diretrizes Curriculares Nacionaispara a educação das relações étnico-raciaise para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana chamam a atençãopara a necessidade da adoção de açõesafirmativas, ou seja, um conjunto de açõespolíticas empregadas para que ocorra acorreção de desigualdades sociais e raciais.Essas ações devem ter o objetivo de criarcondições para que estudantes negros(as)não sejam rejeitados(as), de maneira cons-ciente ou inconscientemente, em virtudede cor da pele e características físicas,evitando que estes(as) sejam desencora-jados prosseguir seus estudos.

É fundamental a elaboração de polí-ticas afirmativas que se destinem a:

[...] reconhecer as disparidades entrebrancos e negros na educação e intervirde forma positiva, assumindo o com-promisso de eliminar as desigualdadesraciais, dando importante passo rumoà afirmação dos direitos humanos bá-sicos e fundamentais da população ne-gra brasileira [7, p. 8].

Infelizmente, ainda persevera no Bra-sil um imaginário étnico-racial que favo-rece os brancos. Imaginário este, baseadoem uma visão eurocêntrica, que poucovaloriza ou ignora outras culturas. Omovimento negro tem alertado para oquanto é dura a experiência, vivida pelos

descendentes da diás-pora africana, deterem seus comporta-mentos, ideias e inten-ções previamente jul-gados negativamente.Além disso, têm elesalertado para o fato dequão alienante é aexperiência de fingirser o que não são paraserem aceitos.

O filósofo, psiquiatra e revolucionáriomartinicano Frantz Fanon argumenta emsua obra, sobre descolonização e desalie-nação, Peau noire, masques blancs (1952),que o sujeito negro, em sua vida, por di-versas vezes e em inúmeras situações, éconduzido a “vestir” a máscara brancacomo estratégia de convivência e sobrevi-vência em suas relações sociais. Segundoo autor, a assimilação dos padrões brancosde comportamento cria complexos psíqui-cos - por exemplo, sentimento de inferio-rização - que podem acompanhar o sujei-to negro por toda a vida [8].

Em acordo com o pensamento de Fa-non, as DCNs para a educação das relaçõesétnico raciais e para o ensino de história ecultura afro-brasileirachamam a atençãopara o quanto é dolo-rosa “a experiência dedeixar-se assimilar poruma visão de mundoque pretende impor-secomo superior e, porisso, universal e que osobriga a negarem atradição de seu povo”[7, p. 14].

É importante des-tacar que a escola éuma das engrenagens, no mecanismo delibertação (descolonização e desalienação),que podem oferecer sensível contribuiçãona erradicação das injustiças sociais, assimcomo tem papel preponderante na eman-

cipação dos grupos racializados e discri-minados. Como educadores, propomosintervenções planejadas - durante as au-las, em particular as de física - que cola-borem para alicerçar a equidade em nossasociedade, proporcionando a estudantestanto conhecimento científico e aprendi-zagem significativa quanto consciênciacultural e o reconhecimento de históriasaprisionadas que reforcem a identidade esirvam para libertá-los das amarras pro-movidas pela falácia, consciente ou in-consciente, da superioridade - estética,intelectual etc. - greco-ocidental.

Texto Histórico: O inventor negroLewis Howard Latimer (1848-1928)

No dia 4 de setembro de 1848, emChelsea, Massachusetts, nascia Lewis Ho-ward Latimer, filho de um escravo fugiti-vo do sistema escravocrata americano.Lewis Latimer enfrentou as dificuldadesde nascer em uma família humilde, emuma época de extremo preconceito e se-gregação racial. Porém, superando todasas dificuldades, tornou-se um grande in-ventor. Latimer, naturalmente, por contada escravidão, guardava dissabores. Con-tudo, sua jornada de superação iniciou-se aos dez anos de idade, quando começoua trabalhar aplicando papel de parede comseu pai, que nessa época havia adquiridoa liberdade. Em seguida, trabalhou comooffice-boy para um renomado advogadode Boston. Aos 16 anos alistou-se na ma-rinha norte-americana e lutou contra aescravidão no período da Guerra CivilAmericana (1861-1865). Tendo cumpridoo período referente ao serviço militar, vol-tou para casa, quando foi contratado porum advogado do ramo de patentes comoauxiliar de escritório. Foi nessa época queos interesses de Lewis Latimer pelo dese-nho se iniciaram. Detectada sua habilida-de, logo se tornou projetista e em seguida

foi nomeado projetis-ta-chefe da empresade patentes. Foi quan-do teve a oportuni-dade de desenvolver epreparar projetos deinvenções que foramincorporadas ao acer-vo do escritório de pa-tentes na capital,Washington.

Foram dele tam-bém os desenhos ini-ciais que cooperaram

para a preparação do pedido de patentedo telefone de Alexander Graham Bell [9,p. 5].

Infelizmente, a historiografia tradi-cional parece ter esquecido esse importan-

Embora tenhamos em nossopaís algumas políticas públicastornando obrigatório o ensino

da história e cultura afro-brasileira e africana em todos os

estabelecimentos de ensinofundamental e médio,

consideramos insuficiente aimplementação de práticas

educacionais correlacionadascom esta legislação em ciências

exatas

É importante destacar que aescola é uma das engrenagens,

no mecanismo de libertaçãoque podem oferecer sensível

contribuição na erradicação dasinjustiças sociais, assim comotem papel preponderante na

emancipação dos gruposracializados e discriminados

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te personagem da história das ciênciasexatas, já que o nome de Latimer (Fig.1)não costuma frequentar os relatos “ofi-ciais” dos autores que escrevem sobre oepisódio da invenção da lâmpada.

Nesses relatos sobre essa invenção deimprescindível utilidade para a humani-dade na era moderna, somente o nome deThomas Alva Edison é lembrado. Porém,é importante reescrever a história e reto-mar um detalhe que completa esse episó-dio. A história conta que no final da déca-da de 70 do século XIX, foi criada umanova demanda de conhecimento elétricoa partir da emergência exigida pela indús-tria elétrica [10, p. 320]. Nesse período,um grande número de inventores buscavaelaborar protótipos de fontes artificiais deluz que utilizassem energia elétrica comofonte alimentadora. Em resposta a esserecente mercado, Thomas Edison desen-volveu seu protótipo de lâmpada incan-descente em 1879, porém essas lâmpadastinham vida útil muito baixa - em termosatuais, queimavam rapidamente.

Olhando em retrospectiva, a partir de1874 as invenções de Latimer começaram aaparecer e se destacar no cenário. Em 1880,Hiram S. Maxim, um inventor e tambémfundador da United States Electrical Light-ing Company, convida Latimer para fazerparte da sua companhia. Enquanto traba-lhava nessa empresa, no ano de 1882, LewisLatimer inventou e patenteou o processopara fazer o filamento de carbono presentenas lâmpadas [9, p. 6].

Nas palavras do próprio Latimer:

Saiba-se que Eu, Lewis H. Latimer, deNova York, no condado de Nova Yorke estado de Nova York, inventei novose úteis melhoramentos na manufaturade carbono para lâmpadas elétricas (...)Minha invenção se refere mais parti-

cularmente a carbonizar os condutorespara lâmpadas incandescentes, emboraseja igualmente aplicável a manufaturade folhas delicadas de carbono denso eduro projetado para qualquer propó-sito (...) (Tradução livre [11])3

O processo consistia na carbonizaçãode tiras de materiais fibrosos ou têxteis.Essas tiras eram inseridas dentro de umaespécie de envelope feito com folhas de pa-pel cartão - ou qualquer material equiva-lente - de maneira que fosse prevenida aentrada de ar (Fig. 2). Em seguida, esseconjunto era submetido a temperaturaselevadas.

Esse processo, ao contrário dos pro-cessos utilizados anteriormente, evitouque as tiras extremamente delicadas vies-sem a se romper ou serem distorcidas.Somente após a fabricação de filamentosque utilizavam esse processo o tempo devida útil das lâmpadas incandescentes setornou considerável. Além disso, o pro-cesso tornou-as mais em conta financei-ramente. Sendo assim, ofilamento de carbono deLatimer foi fundamentaltanto para o funcionamentodas lâmpadas desenvolvidaspor Edison quanto para acomercialização das mesmaspela indústria (Fig. 3).

Em 1884, Latimerjunta-se à Edison EletricLight Company, sendo no-meado engenheiro projetista.A famosa Edison GeneralEletric Company nasceu em1889, a partir da coligaçãoentre a Edison Eletric LightCompany e outras empresas.Em 1890 Latimer publicouum livro técnico, altamenteconceituado e de extremarelevância para estudantes deengenharia e engenheiros,intitulado Incandescent Elec-tric Lighting - A Practical De-scription of the Edison System.Esse livro serviu como guiageral para a engenhariaelétrica da época [9, p. 7].

É importante ressaltarque mesmo com todas as res-trições que a vida lheimpôs, sua “força de vonta-de”4 aliada a suas habilida-des, talento para desenhar eaptidão para criação de pro-jetos o transformaram emum expoente da engenhariaelétrica, grande inventor eespecialista em patentes.Além dessas qualidades,

Latimer também desenvolveu outrosvariados desejos e interesses, tornando-se poeta e músico, como relata sua his-tória.

A “luz” de filamento de carbono

As lâmpadas incandescentes atuaisutilizam filamentos de tungstênio, masmesmo esses modelos estão sendo subs-tituídos por lâmpadas que utilizam, cadauma delas, tecnologias próprias e expli-cações físicas diferentes em suas produ-ções de luminosidade. Por exemplo, aslâmpadas fluorescentes e as modernaslâmpadas de LED (light emitting diode). Noentanto, variados modelos com filamentode carbono, releituras das lâmpadas doinício do século XIX, vêm ganhando desta-que em projetos de iluminação. Essas lâm-padas têm fascinado profissionais da deco-ração e clientes, já que no interior de seubulbo de vidro o filamento incandescentede carbono forma uma espécie de desenho,além de emitir uma luz amarela e de

Figura 1: Lewis H. Latimer.

Figura 2: Esquema que buscava representar e auxiliar aexplicação de como era feito o processo de carbonizaçãoproposto por Latimer.

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menor intensidade luminosa do que sua“irmã” caçula de filamento de tungstênio.Em outras palavras, uma lâmpada de fila-mento de carbono, que produz a mesmapotência elétrica que uma de filamento detungstênio, fornece aos nossos sentidosvisuais uma luminosidade que interpre-tamos como mais “suave”.

O interessante é que em pleno séculoXXI conseguimos com facilidade adquirirlâmpadas de filamento de carbono paraelaboração de práticas experimentais. Taispráticas podem ser elaboradas para seremapresentadas após os debates gerados pelotexto da seção anterior.

Com criatividade, um circuito simplese aparelhos de medidas apropriados po-demos em nossas aulas aferir correnteelétrica e voltagem, além de calcular aresistência elétrica do filamento de carbo-no e sua potência. Estudantes terão aoportunidade de trabalhar a Primeira Leide Ohm, o Efeito Joule, entre outros con-ceitos, em proximidade com as caracte-rísticas da lâmpada idealizada por Edisone aperfeiçoada por Latimer.

Da mesma forma, comparando-a a

Figura 3: Lâmpada original com filamentode carbono fabricado pelo processo de car-bonização de condutores inventado porLewis H. Latimer em 1882.

outros exemplares, estudantes terão apossibilidade de verificar a diferença deluminosidade entre os diferentes tipos delâmpadas construídas a partir de diferen-tes recursos e tecnologias, assim comoanalisar as diferenças no consumo de ener-gia elétrica entre os diferentes tipos delâmpadas.

É importante dei-xar claro para os alu-nos e as alunas queessas lâmpadas retrôde filamento de carbo-no não são os protó-tipos originais do sé-culo XIX. Porém, ava-liamos que a contex-tualização é válida e,ainda, a visualização,o contato, o manuseioe o estudo de umalâmpada construídacom o “mesmo” fila-mento descrito notexto histórico podecolaborar para despertar e avivar o inter-esse de estudantes pela física envolvida.

Considerações finais

A ressignificação da história da inven-ção da lâmpada incandescente apresentadaé um exemplo significativo que parececonfirmar a frase atribuída a GeorgeOrwell: “a história é escrita pelos vence-dores”. Com efeito, a historiadora damatemática Tatiana Roque, em seu livro,História da Matemática: Uma Visão CríticaDesfazendo Mitos e Lendas, corroborandocom a célebre frase, salienta que:

Os europeus foram erigidos em herdei-ros privilegiados dos milagres gregos ea ciência passou a ser vista como umacriação específica do mundo greco-ocidental. [13, p. 23]

Endossando esse ponto de vista eacrescentando a questão racial comomantenedora de poder, Achille Mbembeem sua obra Crítica da Razão Negra, argu-menta:

(...) ainda há bem pouco tempo, a or-dem do mundo fundava-se num dua-lismo inaugural que encontrava partedas suas justificações no velho mito dasuperioridade racial. Na sua ávidanecessidade de mitos destinados a fun-damentar o seu poder, o hemisfério oci-dental considerava-se o centro do glo-bo, o país natal da razão, da vida uni-versal e da verdade da humanidade.Sendo o bairro mais civilizado do mun-do, só o Ocidente inventou um<<direito das gentes>>. [14, p. 27]

Visando contribuir para o desmanchedessa visão, durante as aulas de físicapropomos a adoção de práticas educacio-nais que trabalhem com a diversidadeétnico-racial (e também de gênero) emciências e que contribuam com a forma-ção geral (dimensões) de estudantes. Aproposta não deve ser confundida e tam-

pouco deve ser inter-pretada como umconcurso étnico-racialentre sujeitos da ciên-cia. Pelo contrário, oque se almeja é, apartir da apresentaçãoda diversidade demo-gráfica científica, con-tribuir para constru-ção coesa da equidade.Apresentar o(a) ne-gro(a) como constru-tor(a) da ciência emum universo ondeo(a) negro(a) é asso-ciado(a), na maioria

das vezes, a trabalhos braçais é de extremariqueza educacional e importância social.

Histórias aprisionadas de personagenscomo Lewis Latimer, quando libertadas ebem trabalhadas, servem a esse propósito- não apenas por fornecer uma visão alter-nativa à historiografia tradicional, masprincipalmente em termos pragmáticosapresentar para estudantes uma imagemrepresentativa do(a) negro(a) em aconte-cimentos históricos importantes para asociedade. Colocar o nome de Latimer nohall de grandes inventores, ao lado degrandes personagens da ciência, como opróprio Thomas Edison, serve para de-monstrar para alunos e alunas que o pro-cesso de criação científica é feita por tra-balhadores(as) (em ciência), desfazendo asensação de que somente o grupo demo-gráfico constituído por homens brancoseuropeus é capaz de fazer ciência.

Textos como o apresentado podemservir como alicerce para a gênese de inú-meros debates de cunho socioeconômicoe racial em sala de aula, podendo, inclu-sive, ser trabalhados de maneira inter-disciplinar. Por conseguinte, a implemen-tação desse modelo de prática afirmativacolabora para reforçar a identidade deestudantes negros e negras, tendo afinalidade de desconstruir possíveis ima-gens negativas de si introjetadas em rela-ção ao mundo, bem como as referentes àárea das exatas.

Da mesma forma, acreditamos quetextos com o “espírito”, ou melhor, compropósito semelhante ao apresentadoneste trabalho possam ser utilizados paraque estudantes tomem conhecimento da

Colocar o nome de Latimer nohall de grandes inventores, aolado de grandes personagens

da ciência, como o próprioThomas Edison, serve parademonstrar para alunos ealunas que o processo de

criação científica é feita portrabalhadores(as) (em ciência),desfazendo a sensação de quesomente o grupo demográfico

constituído por homens brancoseuropeus é capaz de fazer

ciência

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Referências

[1] F.A. de Vasconcelos, in: IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-Brasileiras e Africanas (Universidade Estadual do Piauí,Teresina, 2015), p. 1.-7.

[2] A.F. Machado, Revista de Educação Ciência e Tecnologia 3, 1 (2014).[3] J.L. Lopes, in: Do átomo Grego à Física das Interações Fundamentais, editado por F. Caruso e A. Santoro (CBPF, Rio de Janeiro, 2000), 2ª ed., p. 13-

44.[4] S. Hall, Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais (Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006).[5] Organização das Nações Unidas, 2015-2024 Década Internacional Afrodescendentes, disponível em www.decada-afro-onu.org, acesso em 20/4/

2017.[6] N. Nasir, Racialized Identities: Race and Achievement Among Africam American Youth (Stanford University Press, California, 2012).[7] Brasil, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana

(MEC, Brasília, 2004).[8] F. Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas (SciELO-EDUFBA, Salvador, 2008).[9] Thomas Alva Edson’s Associate, Lewis Howard Latimer: A Black Inventor. A Biography and Related Experiments You Can Do (Thomas Edison

Foundation, Michigan, 1985).[10] B.J. Hunt, in: The Modern Physical and Mathematical Sciences, editado por M.J. Nye (Cambridge University Press, Cambridge, 2008), p. 311-

327.[11] L.H. Latimer, Process of Manufaturing Carbon, No. 252,386. Patented Jan. 17, 1882, disponível em https://www.google.com/patents/US252386

acesso em 06/4/2017.[12] M. Gadotti, Educação e Poder - Introdução à Pedagogia do Conflito (Cortez, São Paulo, 2012), 16ª ed.[13] T. Roque, História da Matemática: Uma Visão Crítica, Desfazendo Mitos e Lendas (Zahar, Rio de Janeiro, 2012), 2ª reimpressão.[14] A. Mbembe, Crítica da Razão Negra (Antígona, Lisboa, 2014), 1ª ed.[15] R. Katemari, in: XXI Simpósio Nacional de Ensino de Física - SNEF (SBF, São Paulo, 2015), p. 1-12.

Notas1Dispersão - imigração forçada - do povo africano para fins escravistas mercantis para fora da África, principalmente o continente americano [4].2Recursos ideacionais são definidos como ideias que o indivíduo possui de si próprio e a sua relação e posição frente ao mundo, bem como ideias

sobre o que é valorizado e o que é considerado uma qualidade [6].3“Be it known that I, Lewis H. Latimer, of New York, in the county of New York and State of New York, have invented certain new and useful

Improvements in the Manufacture of Carbons for Electric Lamps (…) My invention relates more particularly to carbonizing the conductorsfor incandescent lamps, though it is equally applicable to the manufacture of delicate sheets or strips of dense and tough carbon designed forany purpose whatever (…)” [11].

4Deve-se tomar cuidado com esse termo, pois apesar do empenho pessoal ser fundamental, o êxito ou fracasso profissional do indivíduo nãodepende apenas de sua dedicação. “Força de vontade” é uma expressão presente nos editoriais de auto-ajuda que funcionam como pilar desustentação da concepção meritocrática burguesa que ignora as condições sociais a partir de uma perspectiva individualista, responsabilizandocada ser humano pela sua condição. “É fundamental compreender que em uma sociedade dividida em classes não existe igualdade deoportunidades.” [12, p. 128]

5Ver a contribuição sobre o tema apresentado na Ref. [15].

produção científica de mulheres - minoriana construção da Ciência5 - que registra-ram seus nomes na roda viva da históriadas ciências exatas. Servirão, assim, paradesmitificar a errônea, preconceituosa edeterminista visão introjetada no tecidosocial de que a mulher não desenvolve ashabilidades e competências necessáriaspara área de exatas.

Pesquisas no campo da psicologia so-cial têm demonstrado a influência dodenominado stereotype threat (ou ameaçade estereótipo, numa tradução livre). Ste-reotype threat é definido como uma ameaçapsicológica que um indivíduo sentequando ele(a) acredita que um determi-nado estereótipo pode influenciá-lo(a) a

realizar uma certa atividade de maneiraineficaz. Com tal visão enraizada, o indi-víduo acaba, consciente ou inconsciente-mente, afastando-se de certas funções,assim como de algumas categorias pro-fissionais. Estudos atuais realizados napsicologia mostram que esse tipo decrença prejudica o rendimento de estudan-tes que pertencem a grupos étnico-raciaise de gênero diferentes dos dominantes emciência.

Esperamos que este trabalho colaborecom a produção de mais materiais e quepromova e estimule a inclusão de cientis-tas representantes da diáspora africananos livros e materiais didáticos de física ede ciências exatas em geral. Além disso,

almejamos que as discussões sobre diver-sidade e equidade no ensino de ciênciasexatas, tanto na comunidade acadêmicacomo no ambiente escolar, se torne pautarelevante e práxis entre educadores e edu-cadoras. E ainda, almejamos que a imple-mentação de mais práticas educacionaissemelhantes à recomendada neste traba-lho colaborem para melhorar o interessee o desempenho em exatas de gruposminoritários, além de colaborar para quecada vez mais a diversidade cresça emciência.

Agradecimentos

Agradecemos à CAPES, programaAbdias Nascimento.