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    A INVENO DO SOCIAL1E A NORMATIVIDADE

    DAS CINCIAS SOCIAIS: DILEMAS CLSSICOS ETENDNCIAS CONTEMPORNEAS

    Este artigo analisa a pertinncia terico-prtica fundante da sociologia na mo-

    dernidade,2diante do dilema de empobrecimento em massa dos trabalhadores,

    que envolve uma dupla consequncia epistemolgica: o papel da sociologia na

    crtica social, ao contrapor-se ao utilitarismo de uma sociedade organizada em

    torno do interesse;3e o seu papel racionalizador na estruturao das socieda-

    des urbano-industriais pela busca do conhecimento objetivo.

    O uso da noo de modernidade, neste artigo, refere-se a um tempo his-

    trico de mudana social organizado com base no progresso tcnico e em novas

    formas de regulao social inerentes ordem urbano-industrial capitalista. Anoo contm um valor moral contra a tradio, pelo imperativo da razo (Tou-

    raine, 1992). Observando a transio dos diversos sistemas de proteo social

    na Europa no sculo XIX, autores como Alexis de Tocqueville (1958) e George

    Simmel (1988) analisaram a passagem dos regimes de proteo privados, pr-

    prios caridade crist e filantropia, para a institucionalizao de um sistema

    de proteo em termos da responsabilidade pblica do Estado moderno,e suas

    implicaes sobre a condio da cidadania e a posio dos beneficirios da

    assistncia na estrutura social.

    O uso da noo de inveno social, inspirada no ttulo homnimo do

    livro de Jacques Donzelot (1994), busca apreender o conjunto de intervenes

    pblicas (direito e polticas sociais) na passagem de regimes de proteo pri-

    vados (prprias aoAntigo Regime )4para a construo dos sistemas de proteo

    social implementados pelo Estado, e assentados no direito, em diversos pases

    da Europa no sculo XIX. Neste artigo, mais que a descrio dos sistemas de

    proteo sociais, a expresso tem carter heurstico, terico e metodolgico:

    ela se refere tanto natureza de um processo histrico, no qual se processaram

    formas especficas de encaminhamento da assistncia aos mais pobres, mas

    tambm um processo de conhecimento e desvelamento crtico da ordem social,

    que discute as possibilidades da poltica. De acordo com princpios da ideologialiberal, na sociedade industrial capitalista o indivduo poderia transcender as

    suas prprias condies materiais (de pobreza) e responsabilizar-se pela sua

    Anete B. L. Ivo

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    prpria vida por meio do trabalho e do uso da razo5: o sentido da eman-

    cipao do indivduo da perspectiva liberal, cuja crtica mais contundentefoi formulada por Karl Marx & Friedrich Engels, no sculo XIX. Esse dilema

    implicou desafios epistemolgicos sociologia, na modernidade, consideran-

    do a dimenso cultural e histrica que institui a prevalncia desta cincia na

    organizao da sociedade.

    O artigo problematiza a emergncia da questo social clssica como

    questo pblica, entendendo a produo em massa de trabalhadores empobre-

    cidos como um problema de interesse geral, cujo encaminhamento resultou de

    embates e lutas, sustentados em concepes e normas de justia e de equidade

    social, entre foras sociais e polticas distintas (liberais e socialistas) poca.

    Esse debate traz implcitas demandas normativas da cidadania, com base nosvalores da equidade e do bem-estar material, mas envolve, tambm, princpios

    de racionalizao, pela institucionalizao da assistncia e do seguro social aos

    membros da comunidade poltica, pelo Estado.

    Essas concepes e princpios determinaram formas histricas singulares

    de interveno do Estado na rea social, mais amplas ou mais restritas, na regu-

    lao do conflito de interesses entre as classes, com base na gesto e organizao

    da economia, pela redistribuio. Neste sentido, a anlise desloca-se de regimes

    polticos especficos de pases europeus, para assumir a natureza de um para-

    digma mais geral do estado de bem-estar, entre democracia e socialismo, queorienta as formas encontradas para diversos pases6no encaminhamento da

    questo social em regimes de proteo particulares. A concepo de um Estado-

    -providncia (Rosanvallon, 1981) passou gradativamente a se referir a diversos

    sistemas de proteo social criados no contexto da sociedade industrial da Europa,

    que buscavam efetivar diferentes graus de justia e legitimidade, especialmente

    mediante a capacidade de redistribuio da renda. Seria a organizao poltica

    da desmercantilizao do trabalho pelo acesso ao seguro e a um conjunto de

    benefcios, na forma de prestaes sociais (Esping-Andersen, 1990).

    A dimenso pblica da questo social implicou gradativamente o apri-

    sionamento da razo iluminista de bem-estar pela razo instrumental, que

    encobre processos de dominao, como analisa Habermas (1987). Para recolocar

    o potencial emancipatrio da razo iluminista ele adota o ponto de vista da ao

    comunicativa pela qual os conflitos intersubjetivos, a ao poltica e os princpios

    racionais revitalizam as decises na esfera pblica e orientam os contedos

    normativos do mundo da vida.7Habermas faz uma crtica contundente crescente

    instrumentalizao do sistemana modernidade, por restringir a dimenso nor-

    mativaexclusivamente instncia tcnica, mas acabou reconhecendo o papel do

    direito como mediador relevante entre o mundo da vidae o sistema. Essa crtica

    formulada por Arendt (1983) neste artigo, ao refletir sobre a formulao daquesto social. Por outro lado, essa mesma crtica fundamenta o nosso debate

    sobre a passagem de uma perspectiva mais universalista dos direitos sociais

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    para a adoo de um modelo residual eestratgico orientado para a alocao

    dos benefcios sobre os mais necessitados, que, no contexto contemporneovem assumindo prevalncia nas reformas do Estado social em diversos pases.

    O desdobramento dessas questes obedece ao seguinte percurso: em

    primeiro lugar, o artigo situa conceitualmente os significados da expresso in-

    veno do social, caracterizando-a como uma noo hbrida entre a sociedade

    civil e a sociedade poltica, que encaminha a passagem da proteo social para

    o mbito de uma responsabilidade pblica. Apresenta a grande inveno da

    propriedade social de usufruto privado, caracterizado pelo sistema de seguro e

    conclui acentuando duas perspectivas distintas de segurana social: uma liga-

    da ao direito vida e reproduo social; e, a segunda, associada segurana

    civil, que acentua um caminho repressivo da ordem social. Na segunda parte,o artigo discute o fundamento moral normativo da sociedade liberal orienta-

    do pelo interesse, contrapondo a crtica social do homo sociologicusao homo

    conomicus. Mostra como as cincias sociais esto diretamente implicadas na

    modernidade pelo seu papel racionalizador, quando associado funcionalidade

    das instituies modernas, o que traz consequncias tericas e polticas. A ter-

    ceira parte apresenta os principais diagnsticos clssicos sobre o fenmeno da

    pobreza, como uma categoria relevante do homo sociologicus, mostrando o carter

    controverso, poltico e no essencialista da abordagem da questo social como

    questo pblica. A anlise mostra a passagem dos dispositivos normativos damodernidade para a regulao das polticas sociais.

    Na sequncia, o artigo sistematiza algumas ambivalncias da noo de

    social como um campo de regulao no mercantil, mas tambm referido aos

    sujeitos e trabalhadores empobrecidos, concluindo com a formulao crtica da

    tecnificao da poltica, levantada por Arendt. Na concluso, o artigo introduz

    algumas inflexes da reforma do Estado social nos anos 1990 e 2000, que envolve

    ruptura da relao entre proteo, trabalho e solidariedade nacional e apresenta,

    de forma introdutria, alguns paradigmas contemporneos que enfrentam o

    dilema da flexibilizao das relaes de trabalho e a garantia do direito uni-

    versal proteo pela adoo de uma poltica de renda mnima da cidadania.

    A QUESTO SOCIAL COMO A INVENO SOCIAL

    Consideramos inveno social a criao de condies sociais, polticas e

    institucionais implcitas s instituies do Estado moderno, como os direitos

    e polticas sociais, que acompanharam as regulaes do mercado de trabalho

    na formao das sociedades urbano-industriais na Europa. Assumimos esta

    perspectiva a partir da obra clssica de Karl Polanyi A grande transformao(2000), que reconstitui um conjunto de regulamentaes protetoras voltadas

    para compensar as contradies de um mercado de trabalho livre, o qual, apesar

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    dos benefcios gerados, no conseguia superar a destruio e degradao social

    implcitas sua constituio, na sociedade inglesa:[...] o mercado de trabalho foi o ltimo dos mercados a ser organizado sob o novo

    sistema industrial, e esse passo final s foi tomado quando a economia de mercado

    foi posta em marcha e a ausncia de um mercado de trabalho provou ser um mal

    ainda maior para o prprio povo comum do que as calamidades que acompanhariam

    a sua introduo. No final, o mercado livre de trabalho, a despeito dos mtodos

    desumanos empregados em sua criao, provou ser financeiramente benfico para

    todas as partes envolvidas.

    Entretanto, agora surgira o problema crucial. As vantagens econmicas de um

    mercado livre de trabalho no poderiam compensar a destruio social que ele

    acarretaria. Tiveram que ser introduzidas regulamentaes de um novo tipo para

    mais uma vez proteger o trabalho, s que agora, contra o funcionamento do prpriomecanismo de mercado. Embora as novas instituies protetoras sindicatos e

    leis fabris fossem adaptadas, tanto quanto possvel, s exigncias do mecanismo

    econmico, elas interferiam com sua auto-regulao e finalmente destruram o

    sistema (Polanyi, 2000: 99).

    O entendimento dessas mudanas em termos de inveno social no

    significa uma nominao de Karl Polanyi a estes processos, mas destaca a capa-

    cidade heurstica desta expresso para dar conta da construo histrica de um

    conjunto de intervenes pblicas (direito e polticas sociais) que envolveram

    a passagem de regimes de proteo privado para a construo dos sistemas deproteo social implementados pelo Estado.

    Essa expresso foi usada por Jacques Donzelot (1984) para analisar o pro-

    cesso de constituio do Estado e sua mediao na efetivao dos direitos civis

    e sociais na ordem republicana francesa, com vistas a compatibilizar o interesse

    individual com o interesse coletivo e para proteger os trabalhadores quanto

    aos riscos imprevistos no mbito da nova organizao do trabalho capitalista.

    O primeiro aspecto da questo social consiste [...] numa dramtica revelao da

    ambivalncia inerente ao conceito fundador da Repblica, o da soberania a ponto

    de tornar impossvel qualquer determinao clara da esfera legtima de interven-

    o do Estado: atribuindo ao mesmo tempo a todos e a cada um a fonte de todaautoridade, a soberania faz, por consequncia, oscilar o papel do Estado entre o

    tudo ou o nada. [... ] A questo , ento, encontrar um princpio estvel de governo,

    prprio a conter essa oscilao e a definir claramente as atribuies do Estado e

    seus limites, para que a Repblica perdure (Donzelot, 1994: 73; as referncias dos

    ttulos em francs foram traduzidas pela autora).

    A Revoluo Francesa, ao romper com um sistema poltico de privilgios

    e protagonizar a instaurao de uma sociedade de indivduos, assume, desde o

    sculo XVIII, com a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, a tarefa

    de encaminhamento de uma poltica social, que foi tornando a caridade e a

    assistncia clerical cada vez mais aleatria. esta poca, o frgil equilbrio

    necessrio para tornar a solidariedade eficaz, entre a riqueza e a pobreza, en-

    tre a generosidade e o sofrimento, se torna a cada dia mais difcil e ilusrio.

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    Aumenta a misria, e a caridade organizada de forma privada nada pode fazer,

    j que insuficiente e mal distribuda, analisa Gonalves (2009: 17) a partir detextos histricos da poca.8

    A esses processos institucionais, que se propagaram por toda a Europa,

    agregamos analiticamente os dilemas fundantes da grande ambio sociolgica

    na formulao de um conhecimento crtico e normativo dessa ordem social

    burguesa, poca organizada em torno do interesse e que teve em Marx o

    seu maior crtico. Nesse sentido, os fenmenos da pobreza em massa dos tra-

    balhadores e as desigualdades sociais, que emergem no contexto da sociedade

    da abundncia, constituem-se nas manifestaes empricas sobre as quais se

    explicita grande parte da crtica social na modernidade, confrontados ao mito

    do progresso e ao valor moral implcito norma do bem-estar material dassociedades capitalistas. Questo social e questes sociolgicas se entrelaam

    em movimentos reflexivos.

    Diante da incompatibilidade dos interesses diversos a sociedade respon-

    deu com a noo da solidariedade . Essa noo influenciou a linguagem intelec-

    tual de juristas, socilogos e historiadores, fazendo autonomizar a dimenso

    social, numa ordem social e pblica que oscilava entre duas foras sociais: a do

    liberalismo e a do marxismo. Nesse sentido, a inveno do social, teorizada

    por Durkheim pela noo de solidariedade dos laos sociais, 9 traduzia esses

    mecanismos sociais e institucionais que permitiam relativa coeso social ordem social burguesa, de carter instvel, dadas as contradies e conflitos

    subjacentes s classes na ordem socioeconmica e poltica capitalista.

    no campo contraditrio entre as utopias solidaristas e socialistas e as

    formas concretas desagregadoras do progresso material inerente reproduo

    da ordem socioeconmica das sociedades capitalistas, particularmente a degra-

    dao e empobrecimento das classes trabalhadoras, confrontada ao princpio

    liberal de emancipao dos sujeitos, que a questo socialemerge como questo

    pblica, e o seu encaminhamento na forma institucional do seguro expressa uma

    inovao social, voltada para mediar as contradies entre as classes e gerar

    pontos de interseo das instncias econmica, poltica e da ordem familiar,

    no contexto das sociedades industriais modernas do sculo XIX.

    Esta soluo representou uma resposta da sociedade do sculo XIX (na

    Europa) crtica marxista sobre o carter formal da igualdade e da liberdade

    poltica, do ponto de vista da democracia liberal. Diante das desigualdades

    socioeconmicas e da degradao das condies de trabalho, os socialistas

    indagavam, entre outras questes: em que medida o indivduo que no come

    e no dispe de meios para ganhar a vida um sujeito verdadeiramente livre

    (Schnapper, 1991)?

    Polanyi analisava que a fome, vivenciada pelo conjunto dos trabalhadoresna emergncia das manufaturas, um fator propcio sujeio e dependncia

    dos trabalhadores aos proprietrios:

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    [...] a fome no apenas uma presso pacfica, silenciosa e incessante, mas, como

    a motivao mais natural para a diligncia e o trabalho, ela se constitui no mais

    poderoso dos incentivos. Quando satisfeita pela livre generosidade de outrem, elacria os fundamentos mais seguros e duradouros para a boa vontade e a gratido.

    O escravo deve ser compelido a trabalhar, mas o homem livre deve ter seu prprio

    julgamento e critrio; deve ser protegido no pleno gozo do que tem [.. .] (Polanyi,

    2000: 140).

    Robert Owen, um dos pensadores ingleses que analisara detidamente

    a sociedade industrial, diante das condies de degradao e pauperizao

    dos trabalhadores, tanto os da cidade como os das aldeias, avaliou: eles esto

    agora numa situao infinitamente mais degradante e miservel do que antes

    da introduo dessas manufaturas, de cujo sucesso depende agora sua merasubsistncia (apud Polanyi, 2000: 156). Ele enfatiza mais a degradao e a misria

    que os rendimentos e aponta como causa dessa degradao as formas de depen-

    dncia desses indivduos fbrica para a mera subsistncia. Assim, mais que

    um problema econmico, Polanyi destaca na fome um problema social, devido

    condio de explorao do trabalho, reconhecendo, entretanto, que, a despeito

    das condies de explorao, eles [os trabalhadores] estavam financeiramente

    melhor que antes (Polanyi, 2000: 157).

    As condies de exerccio da democracia, diante da crescente pauperi-

    zao dos trabalhadores, ao final do sculo XIX, em toda a Europa, deram lugar,

    portanto, a uma inveno social assentada no mais sobre uma solidariedade

    de vnculos primrios, mas na ideia de uma solidariedade nacional, que s po-

    deria ser vivida num regime de liberdade, e que, quela poca, se projetou na

    construo do Estado-providncia, na Frana. Aron (1969) considerou que os

    direitos sociais e o direito-liberdade no se contrapem, mas so complemen-

    tares, sendo os direitos sociais uma condio para o exerccio da liberdade, ou

    seja, uma condio para a liberdade poltica.

    No ps-Guerra, essa concepo de proteo social evoluiu para a formao

    do estado de bem-estar social, assentada na ideia do seguro obrigatrio em di-

    versos pases do mundo sob a base do contrato, cujo modelo implica a cotizaoprvia dos trabalhadores para o seu usufruto futuro, quando perdem parcial ou

    definitivamente a capacidade de trabalho.

    A INVENO DA PROPRIEDADE SOCIAL DO ESTADO:

    A PROPRIEDADE DA TRANSFERNCIA E DA REDISTRIBUIO

    Na vigncia da ordem liberal, como garantir a todos os cidados o direito a um

    bem-estar social mnimo? Esta seo apresenta a soluo clssica da questo

    social encaminhada por diversos pases da Europa, com base na inveno daseguridade, que singulariza a construo de um patrimnio social com usufruto

    privado.

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    Efetivamente, na nova ordem industrial de homens livres, mas sem

    propriedade, os indivduos tm necessidades pessoais que precisam satisfazerpor meios pessoais, por exemplo, continuar a se alimentar, a morar, mas eles no

    dispem de patrimnio privado. Esse dilema vai orientar a criao das instituies

    modernas, o estabelecimento das novas mediaes sociais e institucionais na

    reproduo da sociedade, com a formao do Estado social, na forma de disposi-

    tivos institucionais de direitos e polticas de carter social, como analisa Castel

    (1995). Esta concepo distingue-se da percepo dos liberais que consideram a

    propriedade privada o nico fundamento da ordem social.

    O dilema era o seguinte: pode existir um patrimnio de usufruto pessoal,

    mas que no seja privado? Ou, dito de forma inversa: um patrimnio que tenha

    um carter social, mas seja de uso privado? A resposta a essa questo foi encon-trada em Hammond (apud Castel, 1995: 310) por meio das prestaes do seguro

    obrigatrio: um patrimnio cuja origem e regras de funcionamento so sociais,

    mas que so, de fato, funes de um patrimnio privado. Esta dimenso social

    da propriedade operada pelo Estado nunca foi aceita pelos liberais, pois envol-

    veria para eles um risco propriedade privada,e limitaria a acumulao, pois a

    instituio da propriedade social do Estado social intervm sobre o mercado,

    ainda que a concepo do seguro contributivo esteja apoiada sobre um prin-

    cpio contratualista, condicionado pela cotizao prvia para usufruto futuro.

    Diante do papel mediador do Estado na sustentao do seguro social,Castel (1995) analisa a propriedade de transferncia do Estado social. O pagamento

    das cotizaes constitui uma obrigao inevitvel, mas abre um direito inalien-

    vel. A propriedade do assegurado no um bem vendvel, mas limitada por

    um sistema de constrangimentos jurdicos e as prestaes so liberadas pelas

    agncias pblicas. umapropriedade para a seguranaou garantia, e distingue-se

    da providncia ou benevolncia de uns em relao a outros. O Estado nacional

    assume a institucionalidade dessa forma de proteo social e de guardio de uma

    nova ordem de redistribuio de bens sociais. Castel reconhece na propriedade de

    segurana mediada pelo Estado um ponto de partida de uma teoria da regulao

    sob a forma de uma socializao das rendas, que vai se constituir cada vez mais

    numa parte importante das rendas socialmente disponveis.

    O encaminhamento da questo social, pressionada pelas lutas polticas

    dos trabalhadores, representa assim uma dimenso estruturante da ordem

    social capitalista, e significa, ao mesmo tempo, uma poltica possvel diante

    das contradies das foras sociais, no sentido de minimizar as condies de

    explorao da fora de trabalho e garantir aos trabalhadores, no campo dos

    direitos sociais, suas condies de reproduo contra os riscos advindos dos

    perodos de inatividade por idade ou doena. Esta soluo contribuiu em parte

    para reduzir as desigualdades socioeconmicas (entre proletrios e propriet-rios) pela redistribuio de riquezas e acesso dos trabalhadores e suas famlias

    aos direitos sociais bsicos na defesa da vida.

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    Considerando o papel estruturante e mediador da seguridade diante das

    contradies entre o econmico e o poltico na ordem social burguesa, pode--se associar a inveno da seguridade social como um fato social total, no

    sentido atribudo por Marcel Mauss. Este compreendeu a vida social essencial-

    mente como um sistema de prestaes e contraprestaes que obriga a todos

    os membros da comunidade, da perspectiva de um paradigma da solidariedade.

    Diferentemente da dimenso contratualista do seguro assentada na contrapar-

    tida das prestaes econmicas, a crtica antiutilitarista inspirada na tradio

    de Mauss, quando aplicada responsabilidade pblica das prestaes do Estado,

    questiona toda tentativa de limitar as motivaes humanas apenas moral do

    interesse ou hegemonia da economia de mercado, na produo do bem-estar

    social. Essa perspectiva de Mauss constri as bases para se repensar alternativascontemporneas da relao entre proteo, trabalho e solidariedade social, a

    exemplo do debate atual sobre a instituio da renda bsica universal com base

    no paradigma da ddiva, como apresentamos ao final.

    A NOO OBJETIVA DA PROTEO SOCIAL:

    RESPONSABILIDADES COLETIVAS E DIREITOS SOCIAIS

    O encaminhamento da questo social, atravs da seguridade, corresponde,

    para Donzelot (1994) a uma inveno hbrida, construda na interseo do civile do poltico (liberdades polticas e igualdade social), associada preocupao

    de neutralizar as contradies existentes no mbito da sociedade civil e mer-

    cantil, produzidas nas sociedades capitalistas industriais e que se opem ou

    questionam o imaginrio poltico ou a utopia da modernidade e o seu horizonte

    iluminista do progresso.

    Essa inovao social implica, portanto, uma transio histrica que

    envolveu tanto avanos na construo de um sistema terico e autorreflexivo

    sobre a sociedade (a sociologia), como princpios normativos e de ao assenta-

    dos numa moral de solidariedade, orientada segundo o princpio de igualdade

    para todos,e que se legitimou pela necessidade de minimizar o conflito social

    para alm do sonho republicano de uma sociedade voluntarista e criao de

    instituies modernas.

    No mbito institucional, passou-se de um regime baseado na responsa-

    bilidade individual e fundado no direito civil para um regime de solidariedade

    assentado num contrato social e fundado na noo de direito social (Ewald,

    1986), mediante um conjunto de leis relacionadas s condies do trabalho e

    proteo aos trabalhadores que perderam a capacidade do uso da fora de

    trabalho (doenas, invalidez, desemprego, velhice, acidentes etc.).

    Assim, a noo de responsabilidade social, antes restrita ao mbito damoral caritativa individual, passa a uma noo coletiva da proteo social. Ou

    seja, o direito social criou as condies de interveno do Estado na preveno de

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    perigos que ameaam a sociedade, e consolidou o princpio de uma responsabi-

    lidade pblica institucionalizada10

    no Estado social. Este mecanismo assenta-sena instaurao de uma propriedade social (mas de uso pessoal) para o conjunto

    dos cidados e se distingue da noo de propriedade privada liberal. Mas o di-

    reito que protege os trabalhadores das condies de vulnerabilidade e risco , ao

    mesmo tempo, um direito de todos, e mesmo restrito uma matriz corporativa

    influencia o conjunto da sociedade na expanso dos direitos sociais, ampliando

    gradativamente o papel do Estado pelas transferncias via polticas pblicas.

    A instituio do direito social (com base no clculo do seguro e no

    contrato social) acompanha, portanto, essa inveno e busca protegeros indi-

    vduos contra os prejuzos e riscos advindos da nova diviso social do trabalho no

    regime capitalista. Essa formulao de direitos proteo avanou de uma ideiageneralizada de direitos civis para outra, do nossoDireito, nossodireito social, que

    define compensaes para os trabalhadores e suas famlias, diante dos prejuzos

    e riscos a que estavam submetidos, em face da diviso social do trabalho, como

    explicita Donzelot (1994: 11). Esses direitos sociais contrapem-se ao direito de

    propriedade e subvertem de alguma forma o princpio de subordinao impl-

    cito aos contratos de trabalho. Eles socializam de alguma forma a economia e

    reforam a integrao social das famlias trabalhadoras, num contexto em que

    a propriedade privada os separa. Buscam assegurar o ideal do pertencimento

    igualitrio, no mbito da ordem poltica, na garantia desses direitos, apesar dasreconhecidas e profundas desigualdades na matriz socioeconmica. Assim, ao

    longo da histria do capitalismo, a insero nas relaes assalariadas contm

    uma contradio: ela uma condio de sujeio do trabalhador, mas se cons-

    titui ao mesmo tempo no espao onde os trabalhadores exercem seus direitos

    de negociao e formalizam as suas condies de proteo social, cujo resultado

    ao longo da histria tem se expressado numa regulao pblica da reproduo

    social, mediante direitos dos trabalhadores.

    A noo de responsabilidade tambm se modifica, passando de um

    princpio caritativo da moral religiosa, que se apoiava na providncia e na fi-

    lantropia da Igrejapara uma responsabilidade coletiva, a partir da obrigao

    socializada dos processos aleatrios de riscos da vida, chamando a sociedade

    a implicar-se coletivamente.

    Assim, a noo de proteo social, atrelada tradicionalmente s formas

    de sociabilidade primrias (famlia, comuna, religio), passa a ser encaminha-

    da gradativamente como questo social pblica, e de direitos, como preocupa-

    o social e funo do Estado e um dos mecanismos de sua legitimao social.

    Perrot (1992) mostra que, desde o sculo XVII, filsofos economistas, como

    Vauban e Fnelon, propuseram uma reviso da fiscalidade, de forma a permitir

    aos mais pobres viverem decentemente e participarem da riqueza do reino.Vovelle (1978) analisa que, apesar de as administraes reais no estarem pre-

    paradas para empreender as reformas radicais devido a uma avaliao dos li-

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    berais de que os pobres no deveriam ser objeto da responsabilidade do Estado,

    os autores do Iluminismo preconizavam uma interveno do Estado na reasocial.

    A Revoluo Francesa proclamou o direito segurana, e deu lugar a in-

    meras polmicas e a polticas de Estado diferentes: de um lado, a que acentua

    o princpio da segurana dos bens ou das pessoas e, de outro, aquela orientada

    para a garantia da liberdade e do direito vida, expressando-se como direito ao

    trabalho ou renda da assistncia (Lvy, 2003: 8). A abordagem que privilegia

    a segurana civil foi encaminhada pelo aparato de represso, enquanto aquela

    relativa ao direito vida, ao trabalho e assistncia, efetiva-se pelos direitos

    sociais, numa concepo de reconhecimento de relativa igualdade entre os

    cidados. A tenso entre essas duas concepes de proteo a da seguranapblica ou a da segurana social se inscreve na histria das lutas sociais e

    polticas no curso dos ltimos sculos, como proteo civil e proteo social.

    Assim, nas sociedades contemporneas, a seguridade do domnio pblico e

    se aplica ao interesse comum. A segurana da populao tambm a garantia

    da sua liberdade. Ela ao mesmo tempo individual e coletiva (Lvy, 2003: 8).

    REFLEXIVIDADE E INTERESSE:11O HOMO CONOMICUSE

    O HOMO SOCIOLOGICUSNA MODERNIDADE

    O conjunto das mudanas histricas da modernidade foi acompanhado por um

    esforo autorreflexivo e crtico sobre esta prpria ordem social, que se constituiu

    na ambio sociolgica, voltada para desnaturalizar a ordem social subordi-

    nada hegemonia do mercado. As cincias sociais, assim, esto diretamente

    implicadas na modernidade, pelo papel racionalizador da sociologia na com-

    preenso dos fenmenos sociais, implicitamente associado estruturao das

    instituies modernas.

    Como analisam os estudiosos da modernidade (Touraine, 1992; Giddens,

    1994; e Martucceli, 1999, entre outros), a conscincia da modernidade s se

    constitui verdadeiramente nesse duplo movimento, como conscincia de per-

    tena a um tempo especfico ( sociedade urbano-industrial) e por uma vontade

    de dar sentido e de intervir no mundo, construindo a utopia de uma sociedade

    harmnica e coesa, na verso solidarista, que orientou a constituio da so-

    ciologia da integrao durkheimiana, no final do sculo XIX; ou de um projeto

    de emancipao das classes sociais e da dominao do Estado capitalista, na

    verso revolucionria marxiana.

    Trata-se de um modelo de reflexividade no qual no existe paralelismo entre a

    acumulao do conhecimento sociolgico, de um lado, e o controle progressiva-mente do desenvolvimento social, do outro. [...]. O impacto das cincias sociais

    e das teorias sociolgicas , no entanto, enorme; as descobertas e os conceitos

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    sociolgicos, como os dados empricos, so elementos constitutivos do que a

    modernidade (Giddens, 1994: 24-25).

    H, portanto, uma dupla hermenutica, como formula Giddens, que

    diz respeito forma como o conhecimento proveniente das cincias sociais

    apropriado pelos atores sociais, em suas prticas, disposies e representaes,

    e, por sua vez, como tais modificaes induzem a novas anlises, modificando a

    realidade anterior. Analiticamente, Existe um vaivm entre o universo da vida

    social e o saber sociolgico, e neste processo o saber sociolgico se modela e

    remodela o universo social(Giddens, 1994: 24).

    A modernidade compreende, portanto, da perspectiva aqui analisada,

    profundas transformaes da sociedade urbano-industrial capitalista europeia,

    organizada em torno do trabalho e da constituio do Estado-nao e, ao mes-

    mo tempo, uma abertura compreenso da ordem social e do progresso social

    a partir do uso da cincia e da racionalidade,12entendida como um sistema

    racional e ordenado pela relao entre causa e efeito regido pela razo que

    assumiu, no positivismo, uma forma de empiria.

    Se as cincias sociais possuam uma pertinncia prtico-ideolgica na

    modernidade, foi, portanto, por uma razo normativa particular, que continha

    uma consequncia epistemolgica: a busca de um conhecimento objetivo.

    Assumindo a ideologia da legitimao e as finalidades prprias modernidade,

    as cincias sociais pretenderam se identificar com um modelo de cientificida-de positivo, prprio s cincias da natureza, que apreendia a sociedade de

    maneira instrumental (Freitag, 1987: 63). O positivismo das cincias sociais,

    ao explicar a atividade humana com base no mtodo experimental integrava,

    portanto, esse projeto de sociedade racional, no qual a razo se identificava

    com a ideia de liberao da pessoa humana soberana e livre, no capitalismo.

    Augusto Comte atribuiu cincia essa nova misso de presidir a ordem social,

    da mesma forma como as ideias religiosas haviam presidido a ordem social

    no passado. Ou seja, a modernidade pertence ao mundo dos homens pela

    ao reflexiva13do conhecimento da sociedade e pelas possibilidades que esta

    conscincia e essas tcnicas tm de intervir sobre essa realidade, superando os

    antigos constrangimentos da religio e da tradio, que estruturavam a ordem

    social do Antigo Regime.

    A sociologia contm, assim, uma razo terica da crtica social (implcita

    no projeto sociolgico), no esforo de desnaturalizar as contradies e dilemas

    da nova ordem social, que valoriza a inovao e o progresso, e uma razo prti-

    ca e instrumental, como nos fala Habermas, apoiada na busca da objetividade

    e da sistematizao do conhecimento, de forma a intervir sobre a sociedade a

    partir de exigncias estritamente definidas pela ordem humana, pelos interes-

    ses materiais e individuais das classes sociais na produo da riqueza, utopiaprodutiva e base de estruturao da ordem sobre a qual os homens formulavam

    as leis e calculavam benefcios, tentando controlar a destruio social inerente

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    prpria ordem do capitalismo. Como analisa Michel Freitag (1987: 17) a busca

    da objetividadepositivano conhecimento da sociedade, no sculo XIX, imps-se,tambm, e paradoxalmente, como palavra de ordem normativa.14

    Como razo prtica, a sociologia profissionaliza-se na produo de in-

    formaes sobre a vida social, suscetveis de permitir o controle das instituies

    sociais. Esse princpio de interveno racional sobre a vida social foi acompanhado

    de tcnicas de contagem e recenseamentos sobre as condies de vida social,

    que alm de subsidiarem o processo do conhecimento, se impem tambm como

    necessidade poltica, j que os agregados que compem uma populao no

    so neutros, mas objeto de poder e riqueza, e operam a via funcional da razo

    prtica instrumental. No entanto, se essa contradio sociolgica entre a cr-

    tica e a regulao social expressa os dilemas clssicos das cincias humanas esociais, no se pode desconhecer que o desenvolvimento das instituies sociais

    modernas e a profissionalizao da sociologia em todo o mundo colaboraram

    para melhores condies de segurana e bem-estar, que aquelas vivenciadas

    nas sociedades tradicionais.

    O INTERESSE COMO PRINCPIO ESTRUTURANTE DA CULTURA MODERNA

    Assim, as dimenses do progresso tcnico e da razo, na modernidade, natu-

    ralizaram-se, como norma de sociabilidade, situando sua historicidade sobredois limites: o da crise da tradio, da ordem social que a antecedeu, e o da

    construo de uma sociedade organizada com base no princpio do interesse,

    nem sempre concilivel, entre a acumulao e a reproduo dos trabalhadores,

    entre o interesse individual e o coletivo, estruturando a organizao econmica

    e poltica da sociedade moderna.

    Desde o sculo XVII, o interesse transformou-se no ordenador natural da

    sociabilidade humana na cultura burguesa, instituindo-se para alm do prprio

    jogo do mercado e das trocas. Ele funda uma representao do mundo de natu-

    reza utilitarista,15pela qual os vnculos humanos no mais se estruturam sobre

    uma moral e crena religiosa comum, como na tradio, mas pela constituio

    dos mltiplos interesses individuais contraditrios e sob a hegemonia da vida

    econmica. Este princpio influencia todas as relaes sociais e instituies

    sociais e polticas, que passam a ser consideradas tambm como parte da esfera

    econmica, e objeto de clculo. Ou seja, essa subordinao e funcionalidade do

    social e da sociedade ao princpio da utilidadepassa a se constituir no princpio

    estruturante da cultura e da poltica das sociedades burguesas ocidentais, tanto

    no plano das representaes sociais como das estruturas.

    Assim, o paradigma utilitarista no constitui apenas uma doutrina,

    mas contm, ao mesmo tempo, uma dimenso plenamente social, j que elese insere nas prticas dos sujeitos e na estruturao das instituies sociais

    da vida moderna urbano-industrial. Nesse sentido, o utilitarismo no apenas

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    uma ideologia, mas diz respeito, tambm, s estruturas fundamentais das so-

    ciedades industriais ocidentais, articulando esse princpio e essa ideologia sprticas sociais dos agentes, os localizando, hierarquizando e estratificando,

    como homens teis ou inteis a essa ordem burguesa.

    A doutrina prope uma imagem do homem indissocivel das condies

    materiais concretas. o ser egosta, essencialmente econmico o homo

    conomicus , sempre identificado com o clculo racional, analisado por Weber.

    Esse axioma do homem calculista racional pensa a reorganizao social e a re-

    fundao da ordem social e poltica, as instituies e polticas sociais da ordem

    moderna como uma ordem natural. A razo que o caracteriza contabilizvel,

    supe apenas a adequao dos meios aos fins.

    Elisa Reis, num artigo de 1989, contrape o homo conomicus(weberiano)ao homo sociologicusdo paradigma solidarista (durkheimiano). Ela mostra como

    o primeiro referencial para as mais diversas disciplinas:

    Todas elas teriam indivduos maximizantes, variando apenas a natureza do objetivo

    maximizado. Ou seja, o homem arquetpico seria o mesmo: o indivduo possessi-

    vo e egosta que, no af de realizar suas paixes, age de forma utilitria. Mesmo

    quando a ao aparece disciplinada e regulamentada por clusulas contratuais, o

    contrato aparece apenas como instrumento da vontade calculista e soberana do

    indivduo (Reis, 1989: 25).

    incontestvel a dimenso econmica na representao utilitarista dointeresse, mas esse paradigma no se restringe apenas aos fenmenos econ-

    micos e se expande, tambm, sobre as dimenses sociais e polticas de carter

    coletivo: no limite, o calculador da utilidade geral o legislador e o prprio

    Estado. Produzir coletividades a chave do novo vnculo social. Contra a lgica

    frrea do comportamento individual maximizante, ela [a sociologia] afirma a

    existncia de um referente coletivo que inseparvel do prprio indivduo. A

    idia bsica a existncia de algo alm das puras motivaes individuais, algo

    que conforma e d sentido a essas motivaes (Reis, 1989: 25).

    Essa articulao indissocivel entre a dimenso individual e social, entre

    a sua efetivao e suas representaes constitui-se o constructo tpico dohomo

    sociologicus, sendo a sociologia cientfica o lugar especfico dessa inteligncia, mas,

    tambm, o polo de resistncia da produo dominante. Portanto, se a utilidade

    o princpio do bem-estar individual, ela no inseparvel de uma cultura

    de organizao cientfica da sociedade moderna, nem das formas institucionais

    que organizam a vida coletiva.

    A hegemonia do econmico sobre o social foi objeto de anlise por

    diferentes autores da sociologia clssica, considerando distintas abordagens,

    dimenses e mediaes. Todo esforo analtico da obra de Marx e Engels estru-

    turou uma crtica radical voltada para a desmitificao da ordem capitalistatida como ordem natural orientada para a ideia de bem-estar individual e

    crescimento econmico das naes.

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    Por meio de uma teoria da histria Marx desvenda a natureza do capital

    como relao social. Ofetichismoda mercadoria instituda na falsa ideia dastrocas equivalentes expressa a dominao implcita na tendncia reduo

    do valor da fora de trabalho e da subsuno do trabalho ao proprietrio. Pela

    articulao do materialismo dialtico (a Filosofia do conhecimento do marxis-

    mo) e uma teoria da histrica (o materialismo histrico) ele faz contundente

    crtica s liberdades formais da democracia liberal, emancipao do sujeito

    da perspectiva liberal, mobilizando as prprias noes econmicas do mercado

    de trabalho, para mostrar como nelas esto implcitas as formas modernas de

    explorao e subsuno daqueles trabalhadores livres ao capital, tanto no

    mbito das relaes econmicas, como da construo ideolgica da troca entre

    iguais. A superao dessa condio, para ele, portanto, implicava a constituiodo trabalhador em sujeito coletivo, que, poca, ultrapassaria seus interesses

    particulares, em defesa de toda a sociedade.

    Durkheim analisa a transio teorizando sobre a natureza do novo vn-

    culo social prprio s sociedades modernas, mediante a noo de solidariedade

    social, como forma de mediao necessria coeso das sociedades modernas.

    A anlise do Contrato socialem Rousseau mostra que o confronto dos interesses

    mltiplos, num regime de liberdades, tem efeitos contraproducentes implci-

    tos a esses prprios interesses, e sua resoluo implica um contrato social.

    Max Weber entende que a ao social s pode ser compreendida pelo sentidoque os agentes sociais lhe atribuem e, por essa via, a cincia pretende explicar

    causalmente seus desdobramentos e efeitos. Alexis de Tocqueville produz uma

    crtica ao capitalismo, mas, como liberal, menos pessimista sobre a nova

    ordem estruturada pelo interesse. Ele considera que a relao de utilidade e

    a representao individualista contm tambm capacidade de laos sociais e

    de prescrio moral, apesar de reconhecer os riscos do individualismo pelos

    efeitos indesejveis da atomizao da sociedade ou pelas possibilidades do

    despotismo burocrtico. A partir de observaes da Amrica, ele considera

    que o princpio do interesse econmico nem sempre levaria desintegrao

    social se a sociedade for suficientemente ativa e associativa, submetida s

    instncias coletivas, nas quais o interesse individual se relativiza diante do in-

    teresse do outro, do coletivo etc.

    Ou seja, a anlise sociolgica e poltica, sob diferentes perspectivas, tende

    a desenvolver a crtica do paradigma utilitarista, economicista, tomando por

    base muitas destas prprias premissas econmicas. No entanto, todas as rela-

    es induzidas pelo interesse, produtos espontneos de necessidades e desejos

    individuais, so, elas prprias, problemticas e conflituosas: como concili-las?

    Como garantir a unidade necessria ordem social? O campo das polmicas

    sociais refere-se capacidade de inventar alternativas capazes de garantir aunidade da sociedade, a natureza dos vnculos humanos e das relaes sociais,

    o que implica a mediao simblica e ideolgica, capaz de alimentar a utopia da

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    coeso social pela via da reforma social. O deslindamento deste simbolismo

    social e da ideologia implcita representao do utilitarismo est, portanto, nocentro da ambio sociolgica.16Contra a ideia da vida estruturada no mercado,

    a sociologia prope uma refundao cultural e social, implcita na renovao da

    crena de valores da solidariedade e/ou da luta poltica capazes de enquadrar

    as energias liberadas das sociedades industriais e mercantis.

    Polanyi descreve como a conscincia da sociedade teve por base a eco-

    nomia poltica:

    Do pesadelo da populao e das leis salariais destilou-se a esperana [...] e ela se

    materializou num conceito de progresso to inspirador que parecia justificar as

    enormes e dolorosas distores por vir [...]. A pobreza representava a sobrevivncia

    da natureza humana. A limitao de alimentos e a ilimitao dos homens chegarama um impasse justamente quando surgia a promessa de um aumento ilimitado da

    riqueza [...]. Foi assim que a descoberta da sociedadeintegrou-se no universo espiritual

    do homem. Mas de que forma essa nova realidade da sociedade seria traduzida em

    termos de vivncia? (Polanyi, 2000: 10, grifos meus).

    A dimenso da pobreza, nesse trecho de Polanyi menos que um destino

    de indivduos moralmente condenados nessa nova ordem, limitado pela pro-

    criao da sua raa ou a condenar-se irremediavelmente liquidao atravs

    da guerra e da peste, da fome e do vciotinha um significado de resistncia,

    nas formas da sobrevivncia desses indivduos trabalhadores e suas famliassubmetidos s condies de extrema pobreza.

    A POBREZA COMO CATEGORIA DO HOMO SOCIOLOGICUS

    A emergncia das desigualdades econmico-sociais, no contexto do progresso e

    da acumulao da riqueza, constitui, ento, uma das manifestaes empricas

    sobre a qual se formulou a crtica social na modernidade. O seu enfrentamento

    continha um duplo movimento epistemolgico: (1) a construo de representaes

    sociais adequadas norma do bem-estar social material dos trabalhadores; e (2)

    a conscincia de uma distncia imediata entre essa norma de bem-estar e pro-

    gresso ea realidade, pela qual a emancipao do indivduo no se converteu em

    progresso material para todos. esse paradoxo explicitado nas distncias entre

    a riqueza e a pobreza, mediadas pelas relaes de subordinao do trabalho na

    ordem capitalista que se constituram, em parte, nos desafios da modernidade,

    autodeterminada e autolegitimada em referncia negao da tradio (Freitag,

    1987: 19). Assim, a emergncia de trabalhadores pobres e miserveis no mbito

    das sociedades da abundncia e do progresso, o aumento das desigualdades so-ciais entre os homens diante do iderio liberal se transformam em questo social

    (e pblica) e, igualmente, esto na base do projeto sociolgico.

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    O dilema era saber como garantir a liberdade e a igualdade prprias aos

    ideais democrticos, frente s condies humanas degradadas do homem livree ao pauperismo dos trabalhadores? Como restaurar os vnculos sociais, quando

    a cidadania poltica abstrata constitui tanto o princpio da legitimidade poltica

    como a fonte do vnculo social, no sentido abstrato do termo?

    Karl Polanyi (2000: 108) afirma que foi em relao ao problema da pobreza

    que as pessoas comearam a explorar o significado da vida numa sociedade

    complexa. E, do ponto de vista prtico, acrescenta que o encaminhamento

    dessa questo social assumiu duas perspectivas opostas: por meio do princpio

    da harmonia e da autorregulao, de um lado, e o da competio e conflito, do

    outro. Para ele, o liberalismo econmico e o conceito de classes foram moldados

    dentro dessas contradies. Mediante uma cuidadosa recuperao histrica dasociedade inglesa, esse autor mostra como os pobres emergiram na Inglaterra

    da primeira metade do sculo XVI, desligados da sociedade feudal, e que sua

    transformao gradual em classe trabalhadora livre resultou da perseguio

    vagabundagem e do patrocnio da indstria domstica. Nesse processo, en-

    quanto os pobres, no sculo XVI, representavam um perigo para a sociedade,

    no final do sculo XVII, para os liberais, eles passaram a representar uma carga

    de maiores impostos para a sociedade, fundamentando as teses crticas quanto

    ao modelo de seguridade, que acompanham as tenses do welfaresobre a crise

    fiscal e o aumento dos gastos sociais, desde os anos 1970 do sculo XX.

    O pauperismo, a pobreza e os pobres na sociologia clssica

    Essas observaes foram analisadas e teorizadas por vrios autores do sculo

    XIX a respeito do fenmeno do pauperismo. As contribuies de Alexis de Toc-

    queville, Karl Marx & Friedrich Engels, e Georg Simmel expressam interpretaes

    crticas distintas relativas reproduo da pobreza no contexto das sociedades

    urbano-industriais europeias, particularmente da Inglaterra e da Frana. O ponto

    de partida de todos estes se refere transio da ordem feudal ao capitalismo,

    na qual, no obstante a ideia de progresso e a produo da riqueza, tambm se

    produzem e reproduzem, no capitalismo, a pobreza massiva expressando enor-

    mes desigualdades sociais. Para Marx, no entanto, a pobreza no diz respeito aos

    atributos morais de sujeitos incapazes, como consideravam os liberais da poca,

    mas resulta diretamente das condies de estruturao do mercado de trabalho

    capitalista, condicionado pela reproduo da acumulao. No Captulo XXIII de

    O Capital, ele analisa: Assim como os trabalhadores tornam os homens ricos,

    quanto mais trabalhadores houver, mais haver homens ricos..., o trabalho dos

    pobres a mina dos ricos (Marx, 1975: 762). Atravs da noo de superpopulao

    relativa, Marx destaca a funo de uma populao trabalhadora excedentesobre as condies de reproduo do capital, bem como as possibilidades de

    sua organizao em classe:

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    Mas se uma superpopulao trabalhadora o produto necessrio da acumulao ou

    do desenvolvimento da riqueza sobre uma classe capitalista, esta superpopulao,

    por sua vez, se converte em alavanca da acumulao capitalista e inclusive emcondio de existncia do modo capitalista de produo [...] (Marx, 1975: 786-787).

    Para Tocqueville (1958), a questo se refere responsabilidade pblica

    sobre os desvalidos e a vigncia de direitos da cidadania nas sociedades de-

    mocrticas liberais. Ele tece uma critica aos direitos dos pobres assistncia

    pblica, considerando que estes podem produzir uma desqualificao socialda

    cidadania. Para ele, a caridade deve ser atribuda aos setores privados e no

    uma responsabilidade coletiva pblica.

    Paugam (2005: 20) considera que tanto em Tocqueville como em Marx a

    pobreza correspondia mais a uma questo social que a um objeto especfico dasociologia. Se ambos tentaram colocar esta questo na evoluo das sociedades

    e a construir um quadro analtico que permitisse interpretar o funcionamento

    social, eles no definiram explicitamente o que caracteriza sociologicamente

    os pobres em relao aos demais membros da sociedade, nem explicaram, de

    forma completa, os modos de construo desta categoria e os laos que a vin-

    culam sociedade.

    Georg Simmel (1907) retoma questes postas por Tocqueville um sculo

    antes e prope uma anlise explicitamente sociolgica sobre a posio dos

    pobres na sociedade moderna (Paugam, 2005), definida com base na anliseintersubjetiva da ddiva e a transio da caridade e da doao pblica como

    obrigao moral crist e a assistncia pblica, que s se reconhece plenamen-

    te no campo do direito. O conjunto de regulaes de ordem moral implcitas

    noo da ddiva (os significados da esmola na cultura crist ocidental)

    explicita as relaes complexas entre o indivduo e o coletivo, retomando, por

    fim, a dimenso da cidadania dos pobres como condio do seu pertencimento

    e dos direitos. Nessa anlise, ele destaca os paradoxos entre os princpios da

    induo moral da caridade (prpria ordem tradicional) e analisa as tenses

    que essa questo se reveste na teleologia do Estado moderno. A pobreza refere-

    -se, portanto, a uma situao de reconhecimento da dvida social, permitindoassociar direitos e deveres, quando a ideia da troca entre iguais no mais

    possvel no plano econmico.

    Trs paradigmas sobre o pauperismo no sculo XIX:

    Tocqueville, Marx & Engels, e Simmel

    A contribuio desses quatro autores representa, em realidade, trs paradig-

    mas distintos sobre os significados da pobreza e das desigualdades sociais no

    capitalismo, que implicam formas de resoluo poltica diversas. O retorno aessas contribuies elucida questes contemporneas relativas s responsabi-

    lidades pblicas num contexto de acumulao globalizada, em que o volume do

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    excedente recoloca novos desafios, seja para a ao pblica, seja para as impli-

    caes sobre a classe trabalhadora, e, enfim, em que as distncias entre a pobrezae a riqueza ganham contornos mais complexos, devido fluidez do capital numa

    economiaglobalizada.

    Num esforo de sntese, essas contribuies podem ser esquematizadas

    em trs paradigmas: o paradigma da igualdade democracia liberal (Alexis de

    Tocqueville); o paradigma da explorao e das classes da economia poltica (Karl

    Marx & Friedrich Engels); e o paradigma da ddiva do solidarismo e da cidadania

    (Georg Simmel).

    O paradigma da igualdade , analisado por Tocqueville, refere-se ao reconhe-

    cimento dos cidados no mbito do direito poltico, na democracia de carter li-

    beral, e encaminha a questo da assistncia como de responsabilidade privada, e,portanto, da filantropia, restringindo a ao do Estado ao socorro da urgncia, na

    garantia das condies mnimas da vida. O paradigma daexplorao, desenvolvido

    por Marx & Engels, entende a questo da pobreza como resultado da acumulao

    capitalista e da produo dos excedentes no mercado de trabalho e coloca o enca-

    minhamento dessa contradio no campo da organizao e luta dos trabalhado-

    res, num diagnstico de superao radical da estrutura, como condio de toda a

    sociedade. Dessa perspectiva, a assistncia pobreza mitigadora, e se constitui

    apenas um alvio s condies de explorao, dificultando a verdadeira emancipao

    do trabalhador e da sociedade. A questo diz respeito, portanto, redistribuioda riqueza. O terceiro paradigma, o paradigma da ddiva, apresentado por Simmel,

    contrape-se ao entendimento restrito da pobreza e dos pobres como inteis no

    mundo, populao extranumerria, ou desqualificados sociais e indesej-

    veis, situando-os em termos de reconhecimento dos direitos da cidadania no

    contexto poltico republicano, e das formas institucionais que definem o vnculo

    desses indivduos com a comunidade poltica. Ele supe formas de representao

    negativas associadas aos vnculos sociais e entende que a sada do reconhecimento

    se d no plano da cidadania.17

    Esses trs paradigmas, portanto, subsidiam debates clssicos, mas tambm

    atuais, sobre a natureza da proteo social, da distribuio e do reconhecimento.

    Polanyi (2000: 129-136) mostrou como os projetistas sociais ingleses, desde o sculo

    XVII, j apontavam para sadas distintas aos dilemas do pauperismo e do desem-

    prego. John Bellers (1696), por exemplo, concebe uma alternativa ao desemprego

    e empobrecimento dos trabalhadores atravs de uma perspectiva solidarista de

    autoajuda. Se o trabalho do pobre a mina do rico, dizia Bellers, por que eles

    no poderiam se manter explorando essas riquezas para o seu prprio benefcio,

    mesmo deixando sobrar alguma coisa? Bellers enxergava na troca direta de pro-

    dutos entre os pobres uma via alternativa bolsa de trabalho (Labor Exchange), que

    funcionava como uma agncia de emprego. Para tanto, seria necessrio organiz-losem cooperativas, o que, posteriormente, veio a se constituir no cerne do pensamen-

    to socialista em relao pobreza e em alternativas para a economia solidria. A

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    articulao entre suas notas de trabalho, a autoajuda e a cooperao signifi-

    cativa na sua proposta. Seriam combinados o pagamento da sobrevivncia como pagamento conforme os resultados obtidos. O esquema nacional de Bellers

    para assistncia ao desemprego, na verdade, seria dirigido por capitalistas e

    com lucro! Jeremy Bentham (1794) teve um plano de usar indigentes em grande

    escala para fazer funcionar sua indstria. Ele decidira aplicar o plano panp-

    tico(pelo qual as prises seriam projetadas de forma a tornar barata e efetiva

    sua superviso) simplesmente sua fbrica. Ou seja, ele transpe o modelo

    de superviso e sujeio das prises para o da produo fabril, substituindo,

    nesse caso, os prisioneiros pelos pobres. Esse plano foi seguido por uma anlise

    cuidadosa e classificatria dos desempregados. Na sua classificao a mo de

    obra fora do lugar era formada por aqueles que foram demitidos recentementedo emprego e distinguia-se de outros que no podiam encontrar emprego em

    funo de sua estagnao casual. A estagnao peridica dos trabalhadores

    sazonais era distinta da situao da mo de obra superada, que se tornava

    suprflua com a introduo da maquinaria. O ltimo estrato identificado por

    Bentham consistia no grupo da mo de obra dispersa, que adquiriu proemi-

    nncia na guerra francesa poca vivida por Bentham. Polanyi (2000: 133) diz

    que o plano de Bentham representava nada menos que o nivelamento do ciclo

    de negcios mediante a comercializao do desemprego em escala gigantesca.

    Robert Owen (1819), confiante na igualdade entre os homens, reeditou o planode Bellers quase 120 anos depois.

    Polanyi mostra que esses trs homens entenderam que uma organizao

    correta do trabalho dos desempregados deveria produzir um excedente: Bel-

    lers, o humanista, queria usar os excedentes basicamente na assistncia aos

    sofredores; Owen, o socialista, queria devolv-lo aos prprios desempregados;

    mas Bentham (o liberal utilitarista) desprezava a igualdade, ridicularizava os

    direitos humanos e se inclinava totalmente para o laissez-faire.O fato que

    esses inmeros projetos mostram que a questo social polmica e poltica, e

    seu encaminhamento envolve um conjunto de paradoxos que se reatualizam

    em funo do arranjo poltico das foras sociais em cada sociedade.

    Os operadores normativos na modernidade:

    a passagem do conflito regulao

    As cincias sociais, desde as suas origens, ao assumirem a legitimao do pro-

    cesso modernista de transformao da sociedade, promoveram tambm, no

    plano terico-crtico, a dissoluo do seu prprio objeto, na crtica ao utilitaris-

    mo e, paradoxalmente, no plano prtico, acabou por substituir-se sociedade,

    socialidade e historicidade, pela regulao tecnocrtica da realidade social

    (Freitag, 1987: 34).Do ponto de vista da sociologia da integrao social, Durkheim deslo-

    cou a referncia utilitarista do indivduo para a sociedade como um todo. Se

    artigo | anete b. l. ivo

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    sociologia&antropologia

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    a sociedade capitalista-industrial ou estatal-nacional do sculo XIX e comeo

    do sculo XX, nascida da autonomizao econmica da sociedade civil, traz,em si, a contradio de classes que mina a legitimidade da representao

    formal , os arranjos das polticas reformistas implantadas desde o sculo XIX,

    sob presso do movimento trabalhador, vo desmentir o carter natural dessa

    economia de mercado e do laissez-faire. A moderna sociedade industrial adquire

    progressivamente legitimidade como sociedade do crescimento, ocultando e

    naturalizando o modo conflituoso dos interesses das classes.

    Os direitos sociais e as polticas sociais, ao mediarem as contradies

    entre a economia e a poltica; entre o trabalho e o capital; entre a cincia e a

    tcnica; entre a participao poltica e a vida familiar e cultural, constituem

    mediaes que substituem as antigas estruturas de regulao de carter socie-trio e a sua legitimao a partir da autoridade tradicional. Elas asseguram a

    superao da tradio, tanto no plano ideolgico como no plano prtico, ou seja,

    como forma e sistema operatrio efetivos da regulao das relaes sociais e

    como referncia da legitimao (Freitag, 1987: 61).

    As normas do bem-estar, da satisfao das necessidades, da auto-

    nomia do indivduo, da igualdade perante a lei, da liberdade de participao

    poltica, da soberania da conscincia reflexiva, tomadas no campo cognitivo

    como fundamentos da pretensa objetividade, no constituem apenas mitos da

    sociedade do crescimento, mas integram as prticas sociais como operadoresnormativos e institucionais; como expresso de finalidades que asseguram

    sua legitimao e conferem sentido a todo o projeto da modernidade. Assim,

    a modernidade enunciou uma verso abstrata, formal e apurada, suscetvel de

    ser interiorizada em cada indivduo sob a forma de identidade pessoal e de valor

    tico-normativo. Tal estrutura no suprimia a unidade a priorida sociedade, mas

    projetava, no futuro, a ideia utpica de uma sociedade inteiramente unida pela

    razo e tornada transparente pela conscincia de si mesma (Freitag, 1987: 62). Desta

    forma a modernidade criou mecanismos de regulao social suscetveis de con-

    duzir, de maneira prtica, uma ordem mnima de convvio social, ambgua porque

    integrava e legitimava a ordem, ocultando as contradies dessa mesma ordem.

    Tal ordem se define, naprimeira modernidade, para usar a expresso de Beck

    (2001: 13), no marco do Estado-nao, na noo de pleno emprego, quando as po-

    lticas sociais (de bem-estar social) e a organizao cotidiana das biografias tm

    por vetor a plena ocupao e a mobilidade social. Em segundo lugar, as sociedades

    se constituem atravs de identidades coletivas, mais ou menos homogneas, com

    nfase na identidade de classes, grupos ou etnias. Ademais, elas se definem pelo

    mito do progresso, supondo que os problemas gerados pelo desenvolvimento

    industrial possam ser superados pelo avano da tcnica, da mobilidade ascen-

    dente e da integrao dos trabalhadores, acompanhando a perspectiva evolutivado mito do progresso.

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    O SOCIAL, UMA NOO TERICO-METODOLGICA AMBIVALENTE

    A noo do social , portanto, ambivalente e acompanha as dificuldades de ex-

    plicitao das relaes paradoxais entre as representaes burguesas e liberais

    dominantes e as formas de estruturao desigual do trabalho nas sociedades

    capitalistas. O social aparece ao mesmo tempo como um campo de regulaes

    no-mercantis, mas diz respeito tambm posio e condio de indivduos

    e trabalhadores empobrecidos a partir da forma de sua insero no mercado de

    trabalho capitalista.

    O social integrava a dimenso da ordem social18ameaada pela presso

    dos homens livres que no encontravam um lugarna organizao do trabalho.

    Essa ameaa ordem dos trabalhadores livres ocorre, sobretudo, no territriodas cidades em formao. Adam Smith em A riqueza das naes (1776) oferece

    um campo conceitual dessa dimenso, orientando a representao filantrpica,

    esttica e ao mesmo tempo repressiva da pobreza, no processo de urbanizao

    das sociedades industriais. A interpretao de Smith sobre a massa de homens

    sem propriedade vista como o(s) inimigo(s) da ordem pblica, expressa uma

    representao at hoje prevalecente, que articula o encaminhamento dapobreza

    (especialmente urbana) a uma viso repressiva ou ideia de uma ordem social19

    exclusivamente regulada pelos proprietrios.

    Essas dimenses histrico-sociais tm implicaes terico-metodolgicas(como analisa Giddens, 1994). A primeira a confuso entre sociedade e siste-

    mas sociais. Essa perspectiva reifica a questo social, traduzindo-a nas formas

    institucionais regulatrias do Estado-nao, e do ponto de vista metodolgico

    se expressa num nacionalismo metodolgiconas cincias sociais, para usar a ex-

    presso de Beck (2001). Ou seja, na delimitao da sociedade restrita aos limites

    do Estado-nao. Dessa forma, a questo social retraduzida e localizada

    como um sistema de polticas sociais e pblicas do ponto de vista do sistema

    tcnico gerencial, confundindo a sociedade e as relaes polticas com os modos

    regulatrios e instrumentais desta prpria sociedade.

    Uma segunda dimenso problemtica do social, associada perspec-

    tiva sistmica, refere-se dimenso da defesa da ordem e s modalidades de

    controles de uma sociedade. Dessa perspectiva, o papel regulatrio das polticas

    sociais, como modos de integrao e adaptao social, volta-se para tornar

    a sociedade coesa, em face dos diferentes e contraditrios interesses sociais.20

    Em contraposio a essa viso encontra-se um paradigma que reconhece a

    natureza conflituosa e paradoxal, inerente ao processo de redistribuio entre

    proprietrios e no proprietrios, entre trabalhadores e capitalistas, na repro-

    duo da ordem social.

    Neste sentido, o encaminhamento da questo social representa ao mesmotempo melhorias para as condies de reproduo social das famlias trabalha-

    doras, na ordem capitalista, mas so limitadas, tanto por controles sociais que

    artigo | anete b. l. ivo

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    regulam as condies do trabalho, no sentido de rebaixamento do valor trabalho,

    como gerenciam a aplicao dos benefcios sociais assistncias e os direitossociais mais universais. A associao dessas duas dimenses, a do controle da

    ordem social e a dos direitos do trabalhador, expressam um campo de contro-

    vrsias e luta por hegemonia dos liberais quanto ao destino da riqueza social.

    Por fim, a inveno do social na modernidade, ao integrar o projeto

    iluminista do progresso social, contrapondo-se parcialmente radicalizao

    do homo conomicus,tambm ultrapassa as estruturas e formas institucionais

    do Estado, para se efetivar no plano das prticas sociais e das formas concretas

    como ossujeitos encaminham no cotidiano as condies de sua resistncia e

    as alternativas de sua integrao, orientadas segundo valores que instituem a

    normatividade das suas prprias sociabilidades. Assim, os controles estruturadose os mecanismos sociais so insuficientes para entender o que faz sociedade,

    ou para saber como se constri a solidariedade.

    Esta resulta da forma efetiva como os atores sociais atravs das mo-

    dalidades de interveno, de seus interesses, de suas representaes e de suas

    prticas e redes sociais se organizam e do sentido s formas institucionais.

    E essas relaes no so lineares, mas paradoxais. A representao coletiva

    unificadora (Durkheim) tem uma idealizao do bem-estar material, nas de-

    mocracias liberais, de promoo do Eu individual (Laval, 2002:33).E esse

    um paradoxo das sociedades capitalistas.Essas diversas dimenses do social podem deslocar o princpio da defe-

    sa da vida social, radicalizando o princpio utilitarista de organizao da vida

    social e institucional, como norma legtima da ordem social, subordinando

    o social tcnica de gerenciamento dos benefcios. Hannah Arendt (1983)

    chama a ateno para a transmutao do socialnaturalizado em tcnica,

    em detrimento da poltica. Para ela, quando o desenvolvimento tecnolgico

    passa a se constituir no elemento central de superao da escassez, a gesto

    das polticas e o seu modo de operao assumem a prioridade de avaliao da

    poltica social, traduzindo e transformando a questo social em problema de

    gesto de metas, de gesto do gasto social, priorizando a dimenso estratgica

    do Estado, no contexto contemporneo. Essa verso instrumental-gerencial do

    social, no concebe a sociedade, as tenses polticas do seu ordenamento,

    mas traduz o social como tcnica, na forma inteiramente quantificvel dos

    beneficirios, subordinando a dimenso da justia e do bem-estar eficcia

    da alocao de benefcios e gesto estratgica do volume da distribuio nos

    limites mnimos aceitos pela sociedade.

    Para Arendt, a absolutizao da questo social implicou estreitamento

    da noo de bem comum restrita s condies materiais de bem-estar das popu-

    laes. Essa reduo da questo social reproduo material tornou o socialum meio a servio da acumulao e da abundncia. Embora Arendt no se co-

    loque contra o encaminhamento da questo social, ela critica os defensores

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    do sacrifcio da esfera pblica, necessariamente poltica, para tornar eficaz o

    problema da escassez e da pobreza. Para ela, a grandeza humana no se reduz maximizao do que se pode alcanar, mas se realiza na convivncia humana,

    onde se expressa o quem ou o sujeito social e no apenas as funes sociais,

    como analisava Simmel a respeito da teleologia do Estado moderno em relao

    aos pobres. Esse espao conflituoso e se constitui na pluralidade dos seres

    individuais, acrescento. O sacrifcio dessa dimenso em nome do crescimento

    econmico no gera a soluo do problema social, uma vez que as sociedades

    da abundncia, para Arendt, no geram cidados, mas produzem, fundamen-

    talmente, consumidores. Alm do mais, a absolutizao da questo social pela

    tcnica pode dar lugar a violncias sem limites.21Essa crtica de Hannah Arendt

    refere-se especialmente aos regimes autoritrios, a exemplo da experinciade implantao do seguro social bismarckiano encaminhado por um Estado

    autoritrio e pode refletir, a meu ver, a natureza da implantao de leis sociais

    no contexto autoritrio da modernizao brasileira.

    CONCLUSO

    Este artigo analisou a constituio da questo social no marco das sociedades

    modernas urbano-industriais como uma grande inveno social da modernidade,na qual a ambio sociolgica esteve diretamente imbricada. Essa reflexividade

    entre a questo social e a construo sociolgica, entre esta e a estruturao

    das instituies modernas das sociedades urbano-industriais, forneceu as bases

    terico-metodolgicas que permitem identificar dilemas e singularidades no

    encaminhamento da questo social contempornea, marcado pelo desemprego

    de massa e de longa durao e pela reforma liberal do Estado social.

    Os campos institucionais, prprios do estado de bem-estar social, se

    estruturaram na forma de uma socializao da economia (Offe, 1984; Santos,

    1999), por meio da qual se reconhecia que o capitalismo no era apenas cons-

    titudo por fatores de produo e pelo mercado, mas por sujeitos sociais com

    necessidades bsicas, que se constituem em cidados de direitos. Esse processo

    se traduzia no marco normativo e institucional dos Estados nacionais, na regu-

    lao da economia e na mediao do conflito entre acumulao e emancipao

    social, que expressa uma politizao do Estado. Como anteriormente indicado,

    Esping-Andersen (1990) se refere a esses processos como desmercantilizao

    do trabalho.

    As mudanas dos anos 1980 e 1990, de reestruturao produtiva e reforma

    do Estado social, operaram uma ruptura nos pilares deste modelo, atravs de

    uma dessocializao da economia por mudanas nos regimes de proteo social,aumento crescente do desemprego e da precarizao, e, ao mesmo tempo, de uma

    despolitizao do Estadona mediao do conflito redistributivo, constrangido

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    pela autorregulao do mercado.22Estes processos produziram uma ruptura

    do modelo clssico que articula proteo e trabalho, proteo e solidariedadenacional (Ivo, 2005). Isto quer dizer que a proteo passa a ser encaminhada,

    fora do universo do trabalho e que a regulao do conflito redistributivo opera

    sob modalidades que no comprometem a liberdade dos capitais.

    Diante dos efeitos adversos e da gravidade dos ajustes (econmicos e

    institucionais) dos anos 2000, no entanto, a sociedade reconheceu a necessidade

    de refundao do Estado social, de modo a minimizar os efeitos adversos dos

    ajustes institucionais. Estes priorizaram as polticas monetrias de transferncia

    de renda mnima aos segmentos extremamente pobres e um modelo estrat-

    gico de combate pobreza por polticas sociais focalizadas, em reas que no

    comprometam o ncleo central dos ajustes e das polticas securitrias, nem aliberao dos mercados.

    No entanto, a concepo que orienta esse processo responde por tradies

    diversas. Em relao s propostas de renda mnima, identificam-se, na Europa,

    no contexto contemporneo, trs paradigmas: o do contrato, o do direito e o da

    ddiva (ver Chanial, 2004). O paradigma do contrato defendido por Pierre

    Rosanvallon (1995); para este, nenhuma renda pode estar desconectada de uma

    atividade de trabalho. O paradigma do direito defendido especialmente por

    J-M. Ferry (1995, 1996), que justifica o direito renda, integrando-a s regras

    constitucionais dos direitos democrticos. O terceiro paradigma, antiutilitaris-ta, o da ddiva, questiona os anteriores (o do contrato e o do direito), rearticu-

    lando os princpios da ddiva incondicionalidade e condio da cidadania

    (Caill, 2002).

    A crtica de Rosanvallon (1995: 122-125) renda incondicional que sua

    implantao gera um sistema de proteo social puramente indenizatrio, na

    forma de um Estado-providncia-passivo, como um direito sem contrapartida,

    um direito sem dever. A sua crtica funda-se no imaginrio contratualista que

    estabelece uma ideia de equivalncia, ou seja, a de que ningum pode receber

    uma ajuda sem uma contrapartida para a coletividade. Portanto, a integrao

    via poltica social pressupe a utilidade social ou o compromisso com a cole-

    tividade. Segundo este paradigma do contrato, na hiptese em que a recipro-

    cidade entre direitos e deveres rompida a cidadania fica ameaada, j que a

    relao entre direitos e deveres consistiria a base de todo lao cvico, conforme

    Rosanvallon (1995). Mesmo que os direitos inerentes cidadania justifiquem

    o direito renda como um direito vida, esse direito, para ele, no pode estar

    separado de obrigaes positivas desses cidados. Todo direito renda supe

    o direito ao trabalho, ou, utilizando os termos de Rosanvallon, supe um dever

    de insero ou de utilidade social.23

    O paradigma da ddiva rompe de forma radical com o imaginrio con-tratualista e reafirma o princpio da incondicionalidade de acesso aos direitos

    fundamentado em dois princpios morais: o do valor das pessoas e a cidadania

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    democrtica. A atribuio de uma renda desconectada da prestao de trabalho

    consiste em reconhecer, primeiramente, dignidade igual para todos, independentede sua situao profissional, possibilitando a cada um escapar da misria e dos

    estigmas sociais, como tambm da servido e da humilhao prprias tutela

    da assistncia.

    Por outro lado, considera que o pacto democrtico tem um valor intrn-

    seco, como analisa Chanial, j sugere que ele no seja cogitado sob o princpio

    corporativo do contrato, e que a condio da cidadania no esteja limitada ao

    clculo dos direitos e das obrigaes, como indicava Simmel (1998) . Uma pes-

    soa legitima, e se constitui em sujeito de direitos porque a fazemos cidad.

    Somente a partir desta condio que se pode exigir dela qualquer civismo, e

    no o contrrio. Nesse sentido, a cidadania distingue-se do registro do contratodas prestaes, estruturado sobre o princpio dando que se recebe. O direi-

    to proteo incondicionalmente reconhecido como princpio universal da

    cidadania, de forma a que o indivduo autnomo possa, de retorno, agir como

    cidado. Tal o sentido do desafio da renda incondicional da cidadania.

    O esforo da busca de alternativas contemporneas no tarefa sim-

    ples, por vrias razes. Primeiramente, porque estamos falando de uma rea-

    lidade submetida a mudanas radicais, na qual algumas dessas teses ainda

    no foram suficientemente submetidas crtica. Em segundo lugar porque,

    no campo dessas mudanas, patinamos sobre novos princpios e categorias deanlise que aproximam, muitas vezes, tradies polticas contraditrias, como

    liberalismo e socialismo, como analisa Lo Vuolo (2004), ao falar sobre a renda

    mnima de cidadania. Essa zona cinzenta24gera polissemia conceitual e pouca

    clareza quanto direo da poltica. Essa ambiguidade participa, em realidade,

    de movimentos de construo de hegemonia e contra-hegemonia do processo

    de transio em curso, no qual os princpios que organizaram a formao do

    estado de bem-estar social esto reformulados, em favor do mercado.

    Artigo recebido para publicao em maro de 2011.

    Anete B. L. Ivo sociloga, doutora em Sociologia pela Universidade

    Federal de Pernambuco (UFPE), professora do Programa de Ps-

    Graduao em Cincias Sociais e pesquisadora do Centro de Recursos

    Humanos da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi titular da

    Ctedra Simon Bolvar (Universit de Paris III, 2000) e professora

    convidada da Universit de Paris XII, 2006. autora de artigos e

    livros de sociologia, publicados no Brasil e no exterior, nas temticas:modernidade e questo social; pobreza, desigualdades e polticas

    sociais; espao pblico e ao coletiva, destacando-se os livros

    Metamorfoses da questo democrtica (2001) e Viver por um fio (2008).

    artigo | anete b. l. ivo

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    sociologia&antropologia

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    NOTAS

    1 A obra de Karl Polanyi, A grande transformao (1944) a

    grande inspirao dessa inveno social, do ponto de

    vista heurstico. O ttulo, no entanto, inspira-se no livro

    com ttulo homnimo Linvention du social,de Jacques Don-

    zelot (1994), que analisa a emergncia do Estado social, na

    Frana, especialmente da perspectiva das instituies de

    direitos polticos. O social aqui diz respeito s mediaes

    criadas pela sociedade e o Estado para mitigar os riscos

    resultantes da constituio do mercado de trabalho capi-talista e no se confunde com a noo de societal, que diz

    respeito ao atributo relacional da sociedade humana e seus

    membros, vida em grupo etc.

    2 A noo de modernidade, na sua acepo mais frequente

    se refere ao que contemporneo, ao tempo presente, sub-

    metido a uma inquietude constante (Martucceli, 1999: 9).

    Para Giddens (1994) ela designa um modo de vida e uma

    organizao social que apareceu na Europa no sculo XVIII

    e teve influncia planetria. A noo contm um valor mo-ral de mudana contra a tradio por meio da razo (Tou-

    raine, 1992), que envolveu progresso tcnico e novo padro

    de consumo e modo de vida, resultante da nova ordem

    urbano-industrial. Neste artigo, a noo faz apelo a um

    tempo histrico de instaurao da ordem burguesa urbano-

    -industrial, e aos desafios da ruptura das modalidades de

    proteo tradicionais e criao de instituies modernas,

    do Estado e dos direitos sociais. Ao mesmo tempo conside-

    ra a prevalncia da cincia (sociologia) como ordenadora

    desta nova ordem.

    3 Karl Marx mostra que por trs da compra e venda da fora

    de trabalho e do desenvovolvimento tcnico se escondem

    processos de dominao econmica, social e poltica dos

    trabalhadores pelo capital.

    4 Antigo Regime (Ancien Rgime ) implica a transio do feu-

    dalismo para o capitalismo, a passagem da sociedade es-

    tamental para a ordem burguesa. Esta expresso foi usada

    por Tocqueville no ensaio LAncien Rgime et la rvolution(O

    Antigo Regime e a revoluo) de 1856, publicado no Brasil

    pela Martins Fontes em 2009.

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    5 Essa a perspectiva inerente viso liberal, que atribui aos

    pobres a responsabilidade sobre a sua prpria condio edestino. Alexis de Tocqueville, no texto Memoire sur la pau-

    prisme (1835) faz importante crtica caridade pblica,

    a respeito das intervenes do Estado em relao ao so-

    corro aos pobres.

    6 A passagem de uma anlise histrica singular como um

    paradigma relativo a mediao do Estado social em outros

    pases deve ser assumido com cautela e considerar a sin-

    gularidade histrica de formao social de cada sociedade,

    sua cultura poltica e as formas concretas e ambivalentes

    de estruturao dos regimes de proteo social. Neste tex-

    to no recupero as relevantes e importantes contribuies

    da literatura brasileira sobre o enigma da questo social,

    no Brasil, dado os limites deste artigo. Um esforo inicial,

    e ainda provisrio, foi feito da perspectiva da sociologia no

    meu livro Viver por um fio (Ivo, 2008).

    7 Para Habermasa normatividade moral articulava-se com a

    questo social e poltica de institucionalizao da formas

    de vida, distinta da concepo sistmicaque atende s exi-

    gncias funcionais e operacionais do mundo da vida. Este

    compreendido pelo autor como as formas efetivas de re-

    produo cultural, societal e pessoal atravs de normas

    consensualmente aceitas.

    8 Ver tambm Schwartzman (2004) sobre a emergncia da

    pobreza como questo sociolgica, no contexto de formao

    da sociedade burguesa, especialmente ao final do sculo

    XIX.

    9 mile Durkheim deu estatuto terico a essa noo no livroA diviso do trabalho social (1989).

    10 Ver Jamur (1999), que analisa a construo dos processos

    institucionais de solidariedade.

    11 Segundo Giddens (1994: 45), a reflexividade, na moderni-

    dade, significa o exame e a reviso constante das prticas

    sociais luz de novas informaes relativas a essas prprias

    prticas, reiterando constitutivamente o carter dessas e

    sua reflexo.

    12 Essa racionalidade retorna e intervm sobre as prticas erepresentaes sociais.

    artigo | anete b. l. ivo

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    13 Essa reflexividade participa da reproduo do sistema, de

    maneira que pensamento e ao se refletem constante-mente um sobre a outra, na modernidade.

    14 Essa dimenso fundamental, pois a norma metodolgi-

    ca que se confronta com a crtica normatividade da so-

    ciologia desconhece o fato de ela mesma se constituir nu-

    ma norma social prpria dimenso culturalda cincia.

    15 O utilitarismo constitui-se numa doutrina que se expandiu

    nos sculos XVIII e XIX. O termo foi inventado por Bentham

    e reinventado por Stuart Mills. Alm deles, figuram como

    autores principais dessa doutrina Adam Smith, Ricardo,James Mills, Alfred Marshall , Henry Sidgwick e Herbert

    Spencer. O que os articula nesta doutrina o papel do

    interesse na ordem e na mudana social. O fato de a Ingla-

    terra, na poca moderna, no ter conhecido o regime da

    monarquia absoluta e centralizada e as diversas mudanas

    sociais e econmicas que a se processaram explicam, sem

    dvida, em parte, a centralidade do pensamento utilitaris-

    ta como um fenmeno ingls (Boudon & Bourricaud, 1982).

    16 Marcel Mauss dispe os primeiros elementos de uma so-ciologia explcita do simblico. Para ele, a base de uma

    sociedade a capacidade de desenvolver trocas. Essas po-

    dem ser materiais ou simblicas, sempre se considerando

    a distribuio e a circulao desse elemento. Max Weber

    busca uma interpretao da vida social (deutend verstehen)

    de forma a desvendar o sentido que os atores atribuem s

    suas prprias posies para alm da sua simples descrio.

    Ele critica o economicismo sem renunciar viso atomiza-

    da e individualizada do indivduo egosta. Reis (1989) con-

    sidera que Ohomo sociologicus weberiano , na verdade,

    anlogo ao homo conomicus. Ele um dos recortes analti-

    cos possveis do indivduo atomizado, gerado pelo mesmo

    movimento de racionalizao que d origem cincia mo-

    derna, ao capitalismo, tipificao do indivduo racional

    etc. Karl Marx desenvolve a noo de fet ichismoda merca-

    doria, pela qual a mercadoria e o capital aparecem como

    coisas, e no como relaes sociais e trabalho materiali-

    zado. Essa relao, no entanto, no falsa. Ela existe, mas

    oculta e falsifica a relao de explorao do trabalho aconstitudo.

    a inveno do social e a normatividade das cincias sociais

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    17 Estaria a uma tese que fundamentaria as teorias do reco-

    nhecimento contemporneas?18 Sobre essa perspectiva da ordem, ver Hlne Thomas (1997).

    Para ela, tanto as protees civis como as assistenciais

    integravam essa dimenso da sociedade da ordem.

    19 Kowarick (1987) mostrou as relaes entre cidade e questo

    social, no Brasil. Ele articulou a dimenso da ordem e as

    formas repressoras no espao urbano brasileiro. Ver, tam-

    bm, Valladares (1991) e Bresciani (2002).

    20 Durkheim indagava o que faz e torna uma sociedade coesa.

    Algumas interpretaes sociolgicas, como a de TalcottParsons, priorizam a dimenso dos controles na anlise da

    sociedade.

    21 Essas crticas de Arendt resultam de um contexto analtico

    das reformas sociais realizadas em meio ao totalitarismo

    na Alemanha de Hitler e na Rssia de Stalin e, por outro

    lado, sua perspectiva de construo de um espao pbli-

    co e cvico da sociedade americana, onde ela viveu at a

    sua morte (1975).

    22 Especialmente no que se refere s relaes entre capital e

    trabalho. Em relao s aes de assistncia aos mais po-

    bres, ao contrrio, foi mais forte.

    23 Este registro da equivalncia do contrato, segundo Chanial,

    tambm o de John Rawls, que discutiu a justia como

    equidade. O imposto negativo, que complementa uma ren-

    da, supe uma prestao de trabalho.

    24 Refiro-me ao carter nebuloso e ainda pouco claro, porque

    subordinado a contextos conceituais e valorativos distintos.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Arendt, Hannah.A condio humana.Rio de Janeiro: Forense,

    1983.

    Aron, Raymond. Les dsillusions du progrs: essai sur la dia-

    lectique de la modernit. Paris: Calmann-Lvy, 1969.

    Beck, Ulrich. Polticas alternativas a la sociedad del trabajo.In: _____; Le Grand, Julian; Glennerster, Howard; Esping-

    Andersen, Gosta & Paugam, Serge. Presente y futuro del esta-

    artigo | anete b. l. ivo

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    do de bienestar: el debate europeo. Buenos Aires: Mio y D-

    vila Editores, 2001, p. 13-29.Boudon, R