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Anos XXXI Nº 121-122 Janeiro – Junho 2006 Preço 4,50 Boletim de Pastoral Litúrgica ISSN 0873-3295 121 122

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Boletim dePastoral Litúrgica

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A Liturgia é simultaneamentea meta

para a qual se encaminha a acção da Igrejae a fonte

de onde promana toda a sua força.(SC 10)

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BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICAPropriedade do Secretariado Nacional de Liturgia

Director: Pedro Lourenço FerreiraRedacção e Administração: Secretariado Nacional de LiturgiaSantuário de Fátima – Apartado 31 — 2496-908 FÁTIMATel. 249 533 327 – Fax 249 533 343 – E-mail: [email protected]

Publicação registada na SGMJ nº 118776ISSN 0873-3295

Assinatura anual: Portugal: 9 € (IVA incl.) — Outros países: 13 €

G.C. – GRÁFICA DE COIMBRA

Depósito Legal Nº. 88 990/95

A reconciliação, Pedro Lourenço Ferreira ............................................................ 1

Catequeses sobre os Salmos e Cânticos, Bento XVI ............................................. 3

Homilia na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, Bento XVI ........................ 29

A liturgia eucarística – Ritos de Comunhão, José Ferreira ................................. 33

Contributo de João Paulo II para a reforma litúrgica, José Cordeiro ...................... 37

Catequeses para a Confirmação, José de Leão Cordeiro ...................................... 41

Curso de preparação para a Confirmação, José de Leão Cordeiro ...................... 45

A beleza da liturgia, Secr. Dioc. de Liturgia do Porto .......................................... 49

A reconciliação e a beleza de Deus, Bruno Forte ................................................. 51

Peregrinação Nacional dos Acólitos, Redacção .................................................... 57

D. Tomás Gonçalinho de Oliveira, João da Silva Peixoto ................................... 59

Livros litúrgicos oficiais – Situação em Junho de 2006, Redacção .................... 64

JANEIRO – JUNHO 2006

PUBLICAÇÕES DO SNL

A celebração do Tempo do Natal (2ª ed.) .................................................... € 3,50A música sacra nos documentos da Igreja .................................................. € 7,00A Religiosidade Popular e a Celebração da Fé ........................................... € 2,00Adaptação das Igrejas segundo a Reforma Litúrgica ................................ € 3,50Agenda – Directório Litúrgico 2007 ........................................................... € 8,00Akathistos ...................................................................................................... € 2,00Antologia Litúrgica.

– Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio ... € 40,00As bênçãos ..................................................................................................... € 3,50As crianças louvam o Senhor ....................................................................... € 5,00Bênçãos da Família ....................................................................................... € 3,50Cânticos de Entrada e de Comunhão I

– Advento, Natal, Quaresma e Páscoa .............................................. € 6,00Cânticos de Entrada e de Comunhão II – Tempo Comum ......................... € 6,00Cânticos instrumentados para Banda ............................................................. € 10,00Canto Perene I – Ofício Dominical do Advento, Natal, Quaresma

e Páscoa – F. Santos ......................................................................... € 15,00Canto Perene II – Ofício Dominical do Tempo Comum – F. Santos ...... € 15,00Directório para as celebrações dominicais na ausência do presbítero ..... € 0,50Directório Litúrgico 2007 (em preparação)Enquirídio dos Documentos da Reforma Litúrgica .................................... € 25,00Guião do XXIX Encontro Nacional Pastoral Litúrgica ............................. € 5,00Guião do XXX Encontro Nacional Pastoral Litúrgica .............................. € 5,00Guião do XXXI Encontro Nacional Pastoral Litúrgica ............................. € 5,00Introduções aos Salmos e Cânticos de Laudes e Vésperas ........................ € 4,00Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas (2ª ed.) ................................... € 2,00Liturgia das Horas – Edição para canto (Tempo Comum) ........................ € 10,00Liturgia das Horas – Ed. para canto II (Advento, Natal, Quar. e Páscoa) € 12,00O Livro do Acólito – José de Leão Cordeiro .............................................. € 10,00O Tríduo Pascal – Liturgia das Horas – F. Santos ...................................... € 2,50O Tempo Pascal (2ª ed.) ............................................................................... € 3,50Orar cantando – Carlos da Silva .................................................................. € 12,50Ordenamento das Leituras da Missa ............................................................ € 2,50Ritual do Ministro Extraordinário da Comunhão (4ª ed.) ......................... € 4,00Salmos Responsoriais – Organista – (2ª ed.) – P. Manuel Luís ................ € 17,50Salmos Responsoriais – Salmista – (2ª ed.) – P. Manuel Luís .................. € 14,00

Secretariado Nacional de LiturgiaSantuário de Fátima – Apartado 31 — 2496-908 FÁTIMATel. 249 533 327 Fax 249 533 343E-mail: [email protected]ítio: www.liturgia.pt

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A reconciliação

EDITORIAL

A reconciliação faz parte da vida e doministério da Igreja. As palavras de

S. Paulo aos Coríntios: «Deixai-vos re-conciliar com Deus» (2 Cor 5, 20), sãouma síntese do Evangelho de Jesus Cristo.A celebração dos noventa anos das Apa-rições de Fátima e a proposta do Santuáriode Fátima foram o motivo imediato para aescolha da temática a propor à pastoral li-túrgica em plano nacional, já que o Encon-tro de Fátima é normalmente retomado edesenvolvido pelas dioceses. A apresenta-ção do tema em forma de convite é já umadefinição da Reconciliação: «Tudo vem deDeus, que por Cristo nos reconciliou con-sigo e nos confiou o ministério da reconci-liação. Na verdade, é Deus que em Cristoreconcilia o mundo consigo, não levandoem conta as faltas dos homens e confian-do-nos a palavra da reconciliação. Nóssomos, portanto, embaixadores de Cristo;é Deus quem vos exorta por nosso inter-médio. Nós vos pedimos em nome deCristo: deixai-vos reconciliar com Deus»(2 Cor 5, 18-20).

A leitura do estado actual da práticadeste sacramento precipita-se com a pre-missa de que a pastoral litúrgica não con-seguiu renovar esta celebração. Mas aquestão é bem mais complexa. Trata-se deuma iniciativa divina que em Cristo nosreconciliou consigo e nos confiou o minis-tério da reconciliação. O Apóstolo Pauloprecisou bem a questão: «é Deus que emCristo reconcilia o mundo consigo, não

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levando em conta as faltas dos homens econfiando-nos a palavra da reconcilia-ção». O contexto da Segunda Carta aosCoríntios e o tratamento do assunto dareconciliação que tanto preocupava oApóstolo abrem novas perspectivas pasto-rais. Uma determinada prática celebrativada reconciliação está em desuso e é urgen-te uma intervenção pastoral, mas o minis-tério toca um mistério bem mais profundo:«Deus reconcilia o mundo consigo». A re-conciliação é um dos sacramentos darenovação cristã, confiados à Igreja queutiliza «a água e as lágrimas: a água dobaptismo, as lágrimas da penitência»(Preliminares, Celebração da Penitência,2). Depois do Baptismo, o sacramento daReconciliação habilita o homem para todoe qualquer encontro com Deus. A reno-vação cristã passa necessariamente poreste sacramento. A ineficácia das celebra-ções cristãs deve-se, em parte, à falta dereconciliação com Deus. Escutar e falar aDeus compromete a vida e influencia asrelações humanas e os comportamentossociais. A fraqueza do cristianismo encon-tra-se na falta de reconciliação com Deuspela resistência humana à obra da graça epelas implicações que a conversão tem navida familiar, comunitária e social. A re-conciliação não se refere somente ao pró-digo que volta à casa paterna, mas ao filhomais velho que não queria entrar na casado pai por não entender o sentido daquelafesta. Por razões diferentes, ambos os

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2 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

filhos dispensavam a festa, mas o Paiordenou-a aos servos e explicou-a ao filhomais velho. A reconciliação é obra deDeus que pelo ministério da Igreja chamaà conversão e celebra o acontecimento.Este ministério precisa de ser mais explí-cito, como a parábola indica na ordem aosservos: «Trazei depressa a túnica maisbela e vestí-lha. Ponde-lhe um anel nodedo e sandálias nos pés. Trazei o vitelogordo e matai-o. Comamos e festejemos.... E começou a festa» (Lc 15, 22-24). Aexplicação ao filho mais velho vai aindamais longe: «Tínhamos de fazer uma festae alegrar-nos» (Lc 15, 32).

O sacramento da reconciliação precisade celebrar mais a alegria de Deus Pai ealiviar a humilhação dos filhos pródigos.Na parábola o gesto do pai minimiza ahumilhação do filho: «Ainda ele estavalonge, quando o pai o viu: encheu-se decompaixão e correu a lançar-se-lhe aopescoço, cobrindo-o de beijos» (Lc 15,20). Escutou a confissão do filho porque asua dignidade humana a isso tinha direito,mas nem fez perguntas nem censurou opecado. O importante e urgente era a festae a alegria. Os gestos nobres do pai miseri-cordioso seriam a melhor medicina para areintegração do filho na casa paterna.

A pastoral da celebração da reconci-liação dos penitentes precisa de umaprofunda renovação de conceitos. A con-fissão dos pecados perante o sacerdote éum elemento essencial deste sacramentoenquanto reconhecimento e louvor da san-tidade de Deus e da sua misericórdia paracom o homem pecador (cf. CIC 1424). Opecador tem o direito a confessar o seupecado e a santidade de Deus. O confessoré ministro do perdão e da paz para usar detanta compaixão quanto o pecador precisapara percorrer o espaço que lhe resta eter coragem para falar a Deus Pai. Aqui, o

maior milagre da graça não está, a meuver, na confissão do pecador porque a suamiséria a isso o obriga, mas antes na trans-figuração do confessor que, encarnando oamor do Pai e olhando com o rosto doFilho, invoca o Espírito Santo para a re-missão dos pecados. O abraço e o beijo doPai são o ícone do confessor – ministro doperdão e da paz. E não há melhor medicinapara os pecados confessados. A satisfaçãoproporcional ao pecado não pode consistirna acção penitencial, porque se encontrana alegria do Pai e na festa que Ele ordenaaos servos. Essa experiência festiva doamor do Pai marcará definitivamente oscomportamentos do filho e aí encontrará averdadeira medicina, também preventiva.

As grandes dificuldades no acesso àcelebração da confissão e o mau gosto demuitos confessionários dificultam a pasto-ral da reconciliação. Esta terá de começarpela conversão do confessor ao ministérioda reconciliação, mediante o qual se dá aopecador o amor de Deus que reconcilia.Assim sendo, as dificuldades da pastoralda reconciliação estão mais relacionadascom os ministros da reconciliação do quepropriamente com os penitentes, facil-mente acusados de insensíveis à consciên-cia de pecado. Ora, o Apóstolo diz que«tudo vem de Deus, que por Cristo nos re-conciliou consigo e nos confiou o minis-tério da reconciliação» (2 Cor 5, 18).

O ministério da reconciliação, tam-bém chamado «palavra da reconciliação»para designar a iniciativa da acção divinaque recria e renova nas criaturas a imageme a semelhança perdidas pelo pecado, foisempre prioritário e urgente na vida deCristo e terá de o ser para a Igreja que pro-cura zelosamente os interesses do seu Se-nhor: a salvação dos homens.

PEDRO LOURENÇO FERREIRA

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1. Foi chamado “O grande Hallel”, ouseja, o louvor solene e grandioso que, nojudaísmo, era entoado durante a liturgiapascal. Falamos do Salmo 135, do qualouvimos a primeira parte, segundo a divi-são proposta pela Liturgia das Vésperas(cf. vv. 1-9).

Antes de tudo detenhamo-nos no re-frão: “É eterna a sua bondade”. No centroda frase ressoa a palavra “bondade” que,na realidade, é uma tradução legítima, maslimitada, do termo original hebraicohesed. De facto, ele faz parte da lingua-gem característica utilizada pela Bíbliapara exprimir a aliança que existe entre oSenhor e o seu povo. Tal palavra procuradefinir as atitudes que se estabelecem nointerior desta relação: a fidelidade, a leal-dade, o amor e evidentemente a misericór-dia de Deus.

Temos aqui a representação sintéticado vínculo profundo e interpessoal que oCriador instaura com a sua criatura. Den-tro desta relação, Deus não aparece na Bí-blia como um Senhor impassível e impla-cável, nem como um ser obscuro eindecifrável, semelhante ao destino, con-tra cuja força misteriosa é inútil lutar. Elemanifesta-se ao contrário como uma pes-soa que ama as suas criaturas, que vela porelas, as segue no caminho da história esofre pelas infidelidades que muitas vezes

HINO PASCAL

Comentário sobre o Salmo 135 I (136)

A VOZ DO PAPA

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o povo opõe ao seu hesed, ao seu amormisericordioso e paterno.

2. O primeiro sinal visível desta caridadedivina, diz o Salmista, há que buscá-lo nacriação. Depois entrará em cena a história.O olhar, cheio de admiração e assombro,detém-se antes de tudo na criação: os céus,a terra, as águas, o sol, a lua e as estrelas.

Ainda antes de descobrir o Deus quese revela na história de um povo, há umarevelação cósmica, aberta a todos, ofe-recida à humanidade inteira pelo únicoCriador, “Deus dos deuses” e “Senhor dossenhores” (cf. vv. 2-3).

Como tinha cantado o Salmo 18, “oscéus proclamam a glória de Deus e o fir-mamento anuncia a obra das suas mãos. Odia transmite ao outro esta mensagem e anoite a dá a conhecer à outra noite” (vv.2-3). Existe, portanto, uma mensagemdivina, secretamente gravada na criação esinal do hesed, da fidelidade amorosa deDeus que dá às suas criaturas o ser e avida, a água e o alimento, a luz e o tempo.

É preciso ter olhos límpidos paracaptar esta revelação divina, recordando oque diz o Livro da Sabedoria: “Na grande-za e na beleza das criaturas contempla-se,por analogia, o seu Criador” (cf. Sb 13, 5;cf. Rm 1, 20). Então, o louvor orante nasceda contemplação das “maravilhas” de

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4 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

Deus (cf. Sl 135, 4), espalhadas pela cria-ção e transforma-se num hino jubiloso delouvor e de acção de graças ao Senhor.

3. Das obras criadas sobe-se, portanto, àgrandeza de Deus, à sua misericórdiacheia de amor. É o que nos ensinam osPadres da Igreja, em cuja voz ressoa aconstante Tradição cristã.

Assim, São Basílio Magno numa daspáginas iniciais da sua primeira homiliasobre o Exameron, na qual comenta o rela-to da criação segundo o primeiro capítulodo Génesis, detém-se a considerar a acçãosábia de Deus, e chega a reconhecer nabondade divina o centro propulsor da cria-ção. Eis algumas expressões tiradas dalonga reflexão do santo Bispo de Cesareiada Capadócia:

“’No princípio Deus criou o céu e aterra’. A minha palavra rende-se,subjugada pela maravilha deste pensa-mento” (1, 2, 1: Sulla Genesi [Omeliesull’Esamerone], Milão 1990, pp. 9.11).De facto, ainda que alguns, “enganadospelo ateísmo que levavam dentro de si,imaginaram que o universo não tinha guianem ordem, como que à mercê do acaso”,o escritor sagrado, ao contrário, “esclare-ceu-nos de imediato a mente com o nomede Deus no início da narração, dizendo:‘No princípio Deus criou’. E que belezanesta ordem!” (1, 2, 4: ibid, p. 11). “Por-tanto, se o mundo tem um princípio e foicriado, procura quem lhe deu o início equem é o seu Criador... Moisés preve-niu-nos com o seu ensinamento impri-mindo em nossas almas como selo efilactéria o santíssimo nome de Deus,quando disse: ‘No princípio Deus criou’.

A natureza bem-aventurada, a bondadesem inveja, aquele que é objecto de amorpor parte de todos os seres dotados de ra-zão, a beleza mais desejável que nenhumaoutra, o princípio dos seres, a fonte davida, a luz do intelecto, a sabedoria ina-cessível, em suma, ‘no princípio Ele criouo céu e a terra’”. (1, 2, 6-7: ibid, p. 13).

Penso que as palavras deste Padre doséculo IV são de uma actualidade surpre-endente quando diz: “Alguns, enganadospelo ateísmo que levavam dentro de si,imaginaram que o universo não tinha guianem ordem, como se estivesse à mercê doacaso”. Quantos são hoje estes “alguns”!Enganados pelo ateísmo, eles considerame procuram demonstrar que é científicopensar que tudo está privado de guia e deordem, como se estivesse à mercê do aca-so. O Senhor, com a Sagrada Escritura,desperta a razão que dorme e diz-nos: Noprincípio está a Palavra criadora. E a Pala-vra criadora que está no princípio – estaPalavra que tudo criou, que criou este pro-jecto inteligente que é o cosmos – tambémé amor.

Por conseguinte, deixemo-nos desper-tar por esta Palavra de Deus; rezemos paraque ela ilumine também a nossa mente, afim de podermos compreender a mensa-gem da criação – inscrita também nonosso íntimo – segundo a qual o princípiode tudo é a Sabedoria criadora, e que estaSabedoria é amor, é bondade: “É eterna asua bondade”.

BENTO XVI

9 deNovembro de 2005Transcrito de L'Osservatore Romano

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ACÇÃO DE GRAÇAS PELA SALVAÇÃOREALIZADA POR DEUS

Comentário sobre o Salmo 135 II (136)

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A VOZ DO PAPA

1. A nossa reflexão volta ao hino de lou-vor do Salmo 135 que a Liturgia das Vés-peras propõe em duas etapas sucessivas,seguindo uma distinção específica que acomposição oferece a nível temático. Defacto, a celebração das obras do Senhordelineia-se em dois âmbitos, o do espaço eo do tempo.

Na primeira parte (cf. vv. 1-9), que foiobjecto da nossa meditação precedente,apareciam as acções divinas realizadas nacriação: elas deram origem às maravilhasdo universo. Nessa parte do Salmo procla-ma-se a fé em Deus criador, que se revelaatravés das suas criaturas cósmicas. Ago-ra, porém, o jubiloso canto do Salmista,chamado pela tradição judaica “o grandeHallel”, ou seja, o maior louvor dirigidoao Senhor, conduz-nos a um horizontediferente, o da história. Portanto, a pri-meira parte fala da criação como reflexoda beleza de Deus; a segunda fala da histó-ria e do bem que Deus realizou para nós nodecorrer do tempo. Sabemos que a Reve-lação bíblica proclama repetidamente quea presença de Deus salvador se manifestade modo particular na história da salvação(cf. Dt 26, 5-9; Js 24, 1-13).

2. Assim, passam diante dos olhos doorante as acções libertadoras do Senhorque têm o seu centro no acontecimentofundamental do êxodo do Egipto. Com eleestá intimamente ligada a difícil viagempelo deserto do Sinai, cuja meta derra-

deira é a terra prometida, o dom divinoque Israel continua a experimentar emtodas as páginas da Bíblia.

A célebre travessia do mar Vermelho,“dividido em duas partes”, como que ras-gado e dominado como um monstro venci-do (cf. Sl 135, 13), faz nascer o povo livree chamado a uma missão e a um destinoglorioso (cf. vv. 14-15; Ex 15, 1-21), queterá a sua releitura cristã na plena liberta-ção do mal com a graça do baptismo (cf. 1Cor 10, 1-4). Abre-se, depois, o itineráriopelo deserto: nele o Senhor é representadocomo um guerreiro que, prosseguindo aobra de libertação iniciada na travessia domar Vermelho, defende o seu povo, ferin-do os adversários. Deserto e mar represen-tam, portanto, a passagem através do mal eda opressão, para receber o dom da liber-dade e da terra prometida (cf. Sl 135, 16-20).

3. No final, o Salmo apresenta aquelaterra que a Bíblia exalta de modo entusias-ta como “terra óptima, terra de torrentesde água, de fontes e de nascentes profun-das, que jorram por vales e montes; terrade trigo, cevada, uvas, figos, romãs; terrade oliveiras, azeite e mel; terra onde o pãoque comeres não será racionado, ondenada te faltará, onde as pedras são de ferroe de cujas montanhas extrairás cobre” (Dt8, 7-9).

Esta celebração exaltante, que vaipara além da realidade daquela terra, querglorificar o dom divino, dirigindo a nossa

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6 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

expectativa para o bem mais elevado davida eterna com Deus. Um dom que per-mite ao povo ser livre, um dom que nasce– como continua a repetir a antífona queritma cada versículo – do hesed do Senhor,isto é, da sua “misericórdia”, da sua fideli-dade ao compromisso assumido na aliançacom Israel, do seu amor que continua arevelar-se através da “lembrança” (cf. Sl135, 23). No tempo da “humilhação”, ouseja, nas provas e opressões sucessivas,Israel descobrirá sempre a mão salvadorado Deus da liberdade e do amor. Tambémno tempo da fome e da miséria o Senhorentra em acção para oferecer a toda ahumanidade o alimento, confirmando asua identidade de criador (cf. v. 25).

4. Por conseguinte, no Salmo 135 entre-laçam-se duas modalidades da únicaRevelação divina, a cósmica (cf. vv. 4-9)e a histórica (cf. vv. 10-25). Sem dúvida, oSenhor é transcendente enquanto criador eárbitro do ser; mas também está próximodas suas criaturas, entrando no espaço eno tempo. Não fica de fora, no céu longín-quo. Pelo contrário, a sua presença nomeio de nós alcança o seu ponto culmi-nante na Encarnação de Cristo.

É o que a releitura cristã do Salmoproclama claramente, como o testemu-nham os Padres da Igreja que vêem o ápiceda história da salvação e o sinal supremodo amor misericordioso do Pai no dom doFilho, como salvador e redentor da huma-nidade (cf. Jo 3,16).

Assim, São Cipriano, um mártir doséculo III, ao iniciar o seu tratado sobreAs obras de caridade e a esmola, contem-pla com admiração as obras que Deus rea-lizou em Cristo seu Filho em favor do seupovo, terminando depois por um reconhe-cimento apaixonado da sua misericórdia.“Caríssimos irmãos, são muitos e grandio-

sos os benefícios de Deus, que a bondadegenerosa e abundante de Deus Pai e deCristo realizou e sempre realizará paranossa salvação; de facto, para nos preser-var, para nos dar uma nova vida e nospoder redimir, o Pai enviou o Filho; oFilho, que tinha sido enviado, quis serchamado também Filho do homem, paraque nos tornássemos filhos de Deus: hu-milhou-se, para elevar o povo que antesjazia por terra, foi ferido para curar as nos-sas feridas, tornou-se escravo para nosconduzir à liberdade, a nós que éramosescravos. Aceitou morrer, para poder ofe-recer a imortalidade aos mortais. São estesos numerosos e grandiosos dons da divinamisericórdia” (1: Tratados: Colecção deTextos Patrísticos, CLXXV, Roma, 2004,p. 108).

Com estas palavras, o santo Doutor daIgreja desenvolve o Salmo com uma enu-meração dos benefícios que Deus nos fez,acrescentando ao que o Salmista aindanão conhecia, mas já esperava, o verdadei-ro dom que Deus nos ofereceu: o dom doFilho, o dom da Encarnação, na qual Deusse deu a nós e permanece connosco, naEucaristia e na sua Palavra, todos os dias,até ao fim da história. O perigo que nosespreita está em que a memória do mal,dos males suportados, muitas vezes sejamais forte do que a memória do bem. OSalmo serve para despertar em nós tam-bém a memória do bem, de tanto bem queo Senhor nos fez e faz, e que podemos verse o nosso coração estiver atento: naverdade, a misericórdia de Deus é eterna,está presente dia após dia.

BENTO XVI

16 de Novembro de 2005Transcrito de L'Osservatore Romano

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DEUS SALVADOR

Comentário sobre o Cântico da Carta aos Efé-sios (1, 3-10)

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1. Todas as semanas a Liturgia das Vés-peras propõe à Igreja em oração o hino daabertura solene da Carta aos Efésios, otexto que acaba de ser proclamado. Elepertence ao género das berakot, ou seja,das “bênçãos” que já aparecem no AntigoTestamento e que terão uma difusão ulte-rior na tradição judaica. Trata-se, por con-seguinte, de uma continuidade no louvor

que se eleva para Deus, que na fé cristã écelebrado como “Pai de Nosso SenhorJesus Cristo”.

É por isso que, no nosso hino de lou-vor, Cristo é a figura central, na qual serevela e realiza a obra de Deus Pai. Defacto, os três verbos principais deste Cân-tico longo e compacto conduzem-nossempre ao Filho.

2. Deus “escolheu-nos em Cristo” (Ef1, 4): é a nossa vocação à santidade e àfiliação adoptiva e, por conseguinte, àfraternidade com Cristo. Este dom, quetransforma radicalmente o nosso estadode criaturas, é-nos oferecido “por JesusCristo” (v. 5), uma obra que entra nogrande projecto salvador divino, naquelaamorosa benevolência “da livre vontade”(v. 5) do Pai que o Apóstolo contemplacom emoção.

O segundo verbo, depois do da eleição(“escolheu-nos”), designa o dom da graça:“A graça com a qual nos favoreceu em seuamado Filho” (ibid.). Em grego temos porduas vezes a mesma raiz charis eecharitosen, para sublinhar a gratuidadeda iniciativa divina que precede qualquerresposta humana. Portanto, a graça que oPai nos dá no Filho unigénito é a manifes-tação do seu amor, que nos envolve e nostransforma.

A VOZ DO PAPA

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8 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

3. E eis-nos perante o terceiro verbo fun-damental do Cântico paulino: este tem porobjecto a graça divina que Ele “nos conce-deu em abundância” (v. 8). Por conse-guinte, estamos diante de um verbo deplenitude, poderíamos dizer – segundo oseu significado original – de excesso, dedoação sem limites nem reservas.

Chegamos assim à profundidade infi-nita e gloriosa do mistério de Deus, abertoe revelado por graça a quem foi chamadopor graça e por amor, sendo esta uma reve-lação impossível de alcançar unicamentecom o dote da inteligência e das capacida-des humanas. “O que os olhos não viram,os ouvidos não ouviram e o coração dohomem não percebeu, foi isso que Deuspreparou para aqueles que o amam. Deus,porém, revelou-o a nós pelo Espírito. Poiso Espírito sonda todas as coisas, atémesmo as profundezas de Deus” (1 Cor2, 9-10).4. O “mistério da vontade” divina temum centro que está destinado a coordenartodo o ser e toda a história, conduzindo-osà plenitude querida por Deus: é o desígnio“de instaurar todas as coisas em Cristo”(cf. Ef 1, 10). Neste “desígnio”, em gregooikonomia, ou seja, neste plano harmo-nioso da arquitectura do ser e do existir,eleva-se Cristo, como chefe do Corpo daIgreja, mas também eixo que recapitulaem si “tudo o que há nos céus e na terra”.A dispersão e o limite são superados eesboça-se aquela “plenitude dos tempos”que é a verdadeira meta do projecto que avontade divina tinha preestabelecidodesde as origens.

Estamos, por conseguinte, diante deum fresco grandioso da história da criaçãoe da salvação, que gostaríamos agora de

meditar e aprofundar através das palavrasde Santo Ireneu, um grande Doutor daIgreja do século II, que, nalgumas páginasmagistrais do seu tratado Contra as here-sias, tinha desenvolvido uma reflexão arti-culada precisamente sobre a recapitulaçãorealizada por Cristo.

5. A fé cristã, afirma ele, reconhece que“há um só Deus Pai e um só Jesus Cristo,nosso Senhor, que veio através de toda aeconomia e recapitulou em si todas as coi-sas. Entre todas as coisas está também ohomem, imagem de Deus. Portanto, reca-pitulou também o homem em si mesmo,tornando-se visível, Ele que é invisível,compreensível, Ele que é incompreensí-vel, e homem, Ele que é Verbo” (3, 16, 6:Già e non ancora, CCCXX, Milão 1979,pág. 268).

Por isso, “o Verbo de Deus fez-sehomem” realmente, não apenas em apa-rência, porque então a “sua obra não teriasido verdadeira”. Ao contrário, “Ele eracomo se mostrava: Deus que recapitulaem si a sua antiga criatura, que é o homem,para matar o pecado, destruir a morte e darvida ao homem. É por isso que as suasobras são verdadeiras” (3, 18, 7: ibid. pág.277-278). Constituiu-se Chefe da Igrejapara atrair todos a si no momento justo.

No espírito destas palavras de SantoIreneu rezemos: sim, Senhor, atrai-nospara Ti, atrai o mundo para Ti e concede-nos a paz, a tua paz.

BENTO XVI

23 de Novembro de 2005Transcrito de L'Osservatore Romano

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A VOZ DO PAPA

JUNTO DOS RIOS DE BABILÓNIA

Comentário sobre o Salmo 136 (137)

JANEIRO – JUNHO 2006 9

1. Nesta primeira quarta-feira do Adven-to, tempo litúrgico de silêncio, vigilância eoração em preparação para o Natal, medi-tamos o Salmo 136, que se tornou célebrena versão latina do seu início, Superflumina Babylonis. O texto recorda a tra-gédia vivida pelo povo judeu durante adestruição de Jerusalém, que aconteceuem 586 a.C., e o exílio que se lhe seguiu,em Babilónia. Estamos perante um cantonacional de dor, marcado por uma saudadecrescente do que se perdeu.

Esta angustiosa invocação ao Senhor,para que liberte os seus fiéis da escravidãoda Babilónia, exprime também os senti-mentos de esperança e de expectativa dasalvação com os quais iniciámos o nossocaminho do Advento.

A primeira parte do Salmo (cf. vv. 1-4)tem como fundo a terra do exílio, com osseus rios e canais, precisamente os queirrigavam a planície babilónica, lugaronde viviam os judeus deportados. É qua-se a antecipação simbólica dos campos deextermínio para os quais o povo judeu –no decurso do século que há pouco termi-nou – foi enviado por uma infame opera-ção de morte, que ficou como vergonhaindelével na história da humanidade.

A segunda parte do Salmo (cf. vv. 5-6), ao contrário, está cheia da lembrançaamorosa de Sião, a cidade perdida masviva no coração dos exilados.

2. Nas palavras do Salmista aparecem amão, a língua, o paladar, a voz, as lágri-mas. A mão é indispensável para quemtoca a harpa: mas agora ela está paralisada(cf. v. 5) pela dor, também porque as har-pas estão dependuradas nos salgueiros.

A língua é necessária ao cantor, masagora está pegada ao paladar (cf. v. 6).Em vão os raptores babilónios “pediamcânticos... canções de alegria” (v. 3). Os“cânticos de Sião” são “cânticos do

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Senhor” (vv. 3-4), não são canções fol-clóricas e de espectáculo. Só na liturgia ena liberdade de um povo podem elevar-seao céu.

3. Deus, que é o último árbitro dahistória, saberá compreender e acolhersegundo a sua justiça, também o grito dasvítimas, para além dos acentos ásperosque por vezes assume.

Gostaríamos de nos voltar paraSanto Agostinho, para uma meditação su-plementar sobre o nosso Salmo. Nela ogrande Padre da Igreja introduz uma notasurpreendente e de grande actualidade: elesabe que entre os habitantes de Babilóniahá pessoas que se comprometem pela paze pelo bem da comunidade, apesar de nãocompartilharem a fé bíblica, isto é, de nãoconhecerem a esperança da Cidade eternaà qual nós aspiramos. Eles levam consigouma centelha de desejo do desconhecido,do maior, do transcendente, de uma ver-dadeira redenção. E ele diz que tambémentre os perseguidores, entre os não-cren-tes, se encontram pessoas com esta chama,com uma espécie de fé, de esperança, namedida que lhes é possível nas circunstân-cias em que vivem. Com esta fé, tambémnuma realidade desconhecida, eles estãorealmente a caminho rumo à verdadeiraJerusalém, a Cristo. E com esta aberturade esperança também para os babilónios –como lhes chama Agostinho – para os quenão conhecem Cristo, nem sequer Deus, econtudo desejam o desconhecido, o eter-no, ele adverte-nos também a nós a nãonos fixarmos simplesmente nas coisas ma-teriais do momento presente, mas a perse-verar no caminho para Deus. Só com estaesperança maior podemos também, domodo justo, transformar este mundo.Santo Agostinho diz isto com as seguintespalavras: “Se somos cidadãos de Jerusa-

lém... e devemos viver nesta terra, na con-fusão do mundo presente, nesta Babilónia,onde não habitamos como cidadãos massomos prisioneiros, é preciso que quantofoi dito pelo Salmo não só o cantemos masvivamos: o que se faz com uma aspiraçãoprofunda do coração, plena e religiosa-mente desejoso da cidade eterna”.

E acrescenta, a propósito da “cidadeterrestre chamada Babilónia”: ela “tempessoas que, movidas pelo amor por ela,se esforçam por garantir-lhe a paz – paztemporária – sem alimentar no coraçãooutra esperança, pondo mesmo nisso todaa sua alegria, sem buscar nada mais. E nósvemo-los fazer todos os esforços para setornarem úteis à sociedade terrena. Ora, seeles trabalham com consciência puranestas tarefas, Deus não permitirá quepereçam com Babilónia, pois os predesti-nou para serem cidadãos de Jerusalém:mas contanto que, vivendo na Babilónia,eles não lhe imitem a soberba, a ostenta-ção caduca e a arrogância irritante... Elevê a sua escravidão e mostrar-lhes-á aoutra cidade, à qual devem verdadeira-mente aspirar e para ela orientar todosos esforços” (Exposições sobre os Salmos,136, 1-2; Nova Biblioteca Agostiniana,XXVIII, Roma 1977, pp. 397.399).

Pedimos ao Senhor que desperte emtodos nós este desejo, esta abertura aDeus, e que também os que não conhecemCristo possam ser tocados pelo seu amor,de modo que todos juntos nos coloquemosem peregrinação para a Cidade definitivae a luz desta Cidade possa surgir tambémneste nosso tempo e no nosso mundo.

BENTO XVI

30 de Novembro de 2005Transcrito de L'Osservatore Romano

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A VOZ DO PAPA

ACÇÃO DE GRAÇAS

Comentário sobre o Salmo 137 (138)

JANEIRO – JUNHO 2006 11

1. Colocado pela tradição judaica sob opatrocínio de David, embora provavel-mente tenha surgido numa época poste-rior, o hino de acção de graças que agoraescutámos, e que constitui o Salmo 137,abre com um cântico pessoal do orante.Ele eleva a sua voz no meio da assembleiado templo ou, pelo menos, tendo comoreferência o Santuário de Sião, sede dapresença do Senhor e do seu encontro como povo dos fiéis.

De facto, o Salmista afirma que seprostrará em adoração, “voltado para otemplo santo” de Jerusalém (cf. v. 2): ali,ele canta diante de Deus que está nos céuscom a sua corte de anjos, mas que tambémestá à escuta no espaço terreno do templo(cf. v. 1). O orante tem a certeza de que o“nome” do Senhor, isto é, a sua realidadepessoal viva e operante, e as suas virtudesde fidelidade e de misericórdia, sinais daaliança com o seu povo, são a base dequalquer confiança e esperança (cf. v. 2).

2. O olhar volta-se então, por um mo-mento, para o passado, para o dia do sofri-mento: então, ao grito do fiel angustiadotinha respondido a voz divina. Ela tinhainfundido coragem na alma perturbada(cf. v. 3). O original hebraico fala literal-mente do Senhor que “agita a força naalma” do justo oprimido: é como se fosse

a irrupção de um vento impetuoso quevarre as dúvidas e medos, confere umanova energia vital, faz florescer a fortalezae a confiança.

Depois deste início, aparentementepessoal, o Salmista alarga o olhar aomundo e imagina que o seu testemunhoabarca todo o horizonte: “todos os reis daterra”, numa espécie de adesão universal,se associam ao orante judeu num louvorcomum em honra da grandeza e do podersoberano do Senhor (cf. vv. 4-6).

3. O conteúdo deste louvor comum quese eleva de todos os povos, deixa já entre-ver a futura Igreja dos pagãos, a futuraIgreja universal. Este conteúdo tem comoprimeiro tema a “glória” e os “caminhosdo Senhor” (cf. v. 5), isto é, os seus pro-jectos de salvação e a sua revelação.Assim se descobre que Deus é certamente“excelso” e transcendente, mas “olha parao humilde” com afecto, enquanto afastado seu rosto o soberbo em sinal de rejei-ção e de julgamento (cf. v. 6).

Como proclamava Isaías: “Isto diz oExcelso e Sublime, Aquele cuja morada éeterna e cujo nome é santo: Eu habitonum lugar alto e santo, mas estou com osoprimidos e humilhados, para reanimar oespírito dos humilhados, e dar novo alentoao coração dos oprimidos” (57, 15). Por

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conseguinte, Deus decide declarar-se emdefesa dos débeis, das vítimas, dos últi-mos: isto é dado a conhecer a todos osreis, para que saibam quais devem ser assuas opções no governo das nações. Natu-ralmente não só se diz aos reis e a todos osgovernantes, mas a todos nós, porquetambém nós devemos saber que escolhasfazer, que opções tomar: colocar-se dolado dos humildes, dos últimos, dos po-bres e fracos.

4. Depois desta referência, a nível mun-dial, aos responsáveis das nações, não sódaquele tempo, mas de todos os tempos, oorante volta ao louvor pessoal (cf. Sl 137,7-8). Com um olhar que se dirige para ofuturo da sua vida, ele implora uma ajudade Deus também para as provações que aexistência ainda lhe possa apresentar. Etodos nós rezamos assim com este orantedaquele tempo.

Fala-se de modo sintético da “ira dosinimigos” (cf. v. 7), uma espécie de símbo-lo de todas as hostilidades que podemapresentar-se ao justo durante o seu cami-nho na história. Mas ele sabe – e com elenós também o sabemos – que o Senhornunca o abandonará e estenderá a sua mãopara o amparar e guiar. O final do Salmo é,então, uma última e apaixonada profissãode confiança em Deus, cuja bondade éeterna: Ele “não abandonará a obra dassuas mãos”, isto é, a sua criatura (cf. v. 8).E nesta confiança, nesta certeza da bonda-de de Deus, devemos viver também nós.

Devemos ter a certeza de que, por maispesadas e tormentosas que sejam as pro-

vações que nos esperam, jamais seremosabandonados, nunca cairemos fora dasmãos do Senhor, essas mãos que nos cria-ram e que nos acompanham agora no ca-minho da vida. Como o confessará SãoPaulo, “Aquele que em vós começou essebom trabalho, vai continuá-lo até à perfei-ção” (Fl 1, 6).

5. Assim, também nós rezámos com umSalmo de louvor, de acção de graças e deconfiança. Agora, desejamos continuar afazer correr este fio de louvor em forma dehino através do testemunho de um cantorcristão, o grande Efrém Sírio (século IV),autor de textos de uma extraordinária be-leza poética e espiritual.

“Por maior que seja a nossa admiraçãopor ti, Senhor, / a tua glória supera o queos nossos lábios podem expressar”, cantaEfrém num hino (Hinos sobre a Virginda-de, 7: A harpa do Espírito, Roma 1999, p.66), e noutro: “Louvor a ti, para quemtodas as coisas são fáceis, / porque és om-nipotente” (Hinos sobre a Natividade, 11: ibid., p. 48), e este é o último motivo danossa confiança: Deus tem o poder da mi-sericórdia e usa o seu poder para a miseri-córdia. Por fim, uma última citação: “Lou-vem-te todos os que compreendem a tuaverdade” (Hinos sobre a Fé, 14: ibid., p.27).

Bento XVI

7 de Dezembro de 2005Transcrito de L'Osservatore Romano

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A VOZ DO PAPA

DEUS VÊ TUDO

Comentário sobre o Salmo 138 I (139)

JANEIRO – JUNHO 2006 13

1. A Liturgia das Vésperas – cujos Sal-mos e Cânticos estamos a meditar – pro-põe-nos, em dois momentos diferentes, aleitura de um hino sapiencial de límpidabeleza e de grande força emotiva, o Salmo138. Temos hoje diante de nós a primeiraparte da composição (cf. vv. 1-12), isto é,as primeiras duas estrofes que exaltamrespectivamente a omnisciência de Deus(cf. vv. 1.6) e a sua omnipresença no espa-ço e no tempo (cf. vv. 7-12).

O vigor das imagens e das expressõestem como finalidade celebrar o Criador: “Se é tanta a grandeza das obras criadas –afirma Teodoreto de Ciro, escritor cristãodo século V – quanto deve ser grande oseu Criador!” (Discursos sobre a Provi-dência, 4: Colecção de Textos Patrísticos,LXXV, Roma 1988, p. 115). A meditaçãodo Salmista busca sobretudo penetrar nomistério do Deus transcendente, mas queestá perto de nós.

2. A mensagem fundamental que ele nosoferece é clara: Deus sabe tudo e estápresente ao lado da sua criatura, que a Elenão pode subtrair-se. Mas a sua presençanão é dominante nem examinadora; semdúvida, o seu olhar é também severo emrelação ao mal, pois não pode permanecerindiferente diante dele.

Contudo, o elemento fundamental é ode uma presença salvífica, capaz deabraçar todo o ser e toda a história. Tra-ta-se, na realidade, do cenário espiritual aque alude São Paulo, quando, ao falar noAreópago de Atenas, recorre à citaçãode um poeta grego: “Nele vivemos, nosmovemos e existimos” (Act 17, 28).

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14 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

3. A primeira passagem (cf. Sl 138, 1-5),como dizíamos, é a celebração da omnis-ciência divina: de facto, repetem-se aspalavras do conhecimento como “obser-var”, “saber”, “conhecer”, “penetrar”,“compreender” e “envolver”. Como sesabe, o conhecimento bíblico supera opuro e simples aprender e compreenderintelectual; é uma espécie de comunhãoentre aquele que conhece e o conhecido: por conseguinte, o Senhor está em intimi-dade connosco, quando pensamos e agi-mos.

A segunda passagem do nosso Salmo(cf. vv. 7-12), ao contrário, é dedicada àomnipresença divina. Nela se descreve, demaneira viva, a ilusória vontade do ho-mem de se subtrair a essa presença. Todo oespaço é percorrido: antes de mais, o eixovertical “céu-abismos” (cf. v. 8), e depoisa dimensão horizontal, que vai da aurora,isto é, do oriente, e chega até “aos confinsdo oceano”, o Mediterrâneo, ou seja, oocidente (cf. v. 9). Cada lugar do espaço,mesmo o mais secreto, contém uma pre-sença activa de Deus.

O Salmista prossegue, introduzindotambém a outra realidade na qual estamosimersos, o tempo, simbolicamente repre-sentado pela noite e pela luz, pelas trevas epelo dia (cf. vv. 11-12). Mesmo a obscuri-dade, na qual é difícil mover-se e ver, estápenetrada pelo olhar e pela epifania doSenhor do ser e do tempo. A sua mão estásempre pronta a pegar na nossa para nosguiar no nosso itinerário terreno (cf. v.10). Não se trata, portanto, de uma proxi-midade de julgamento que causa terror,mas de apoio e de libertação.

E assim podemos compreender qual éo conteúdo último e essencial deste Sal-mo: trata-se de um cântico de confiança.Deus está sempre connosco. Mesmo nasnoites mais obscuras da nossa vida, não

nos abandona. Mesmo nos momentosmais difíceis, permanece presente. Emesmo na última noite, na última solidãona qual ninguém nos pode acompanhar, nanoite da morte, o Senhor não nos abando-na. Acompanha-nos também nesta últimasolidão da noite da morte. E por isso nós,cristãos, podemos ter confiança: nuncasomos deixados sós. A bondade de Deusestá sempre connosco.

4. Começámos por uma citação do escri-tor cristão Teodoreto de Ciro. Concluímosrecorrendo ainda a ele e ao seu IV Discur-so sobre a Providência divina, porque, emúltima análise, é este o tema do Salmo. Eledetém-se no v. 6, no qual o orante excla-ma: “Prodigiosa ciência, que não possocompreender, tão sublime que a não possoalcançar”. Teodoreto comenta esta passa-gem dirigindo-se à interioridade da cons-ciência e da experiência pessoal e afirma:“Voltado para mim mesmo e tendo-metornado íntimo de mim próprio, depois deme afastar dos ruídos exteriores, quismergulhar na contemplação da minha na-tureza... Reflectindo sobre estas coisas epensando na harmonia entre a naturezamortal e a imortal, sinto-me dominado portanto prodígio e, não conseguindo con-templar este mistério, reconheço a minhaderrota; e ainda mais, enquanto proclamoa vitória da sabedoria do Criador e a elecanto hinos de louvor, grito: ‘Prodigiosaciência, que não posso compreender, tãosublime que a não posso alcançar’”(Colecção de Textos Patrísticos, LXXV,Roma 1988, pp. 116.117).

BENTO XVI

14 de Dezembro de 2005Transcrito de L'Osservatore Romano

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A VOZ DO PAPA

SONDAI-MEE CONHECEI O MEU CORAÇÃO!

Comentário sobre o Salmo 138 II (139)

JANEIRO – JUNHO 2006 15

1. Nesta Audiência geral da Quarta-feirada Oitava de Natal, festa litúrgica dosSantos Inocentes, retomamos a nossa me-ditação sobre o Salmo 138, cuja leitura éproposta como oração pela Liturgia dasVésperas em duas etapas distintas. Depoisde ter contemplado na primeira parte (cf.vv. 1-12) o Deus omnisciente e omnipo-tente, Senhor do ser e da história, agoraeste hino sapiencial de intensa beleza e

paixão volta-se para a realidade mais altae admirável de todo o universo, o homem,definido como a “maravilha” de Deus (cf.v. 14). Trata-se, na realidade, de um temaprofundamente em sintonia com o climanatalício que vivemos nestes dias, duranteos quais celebramos o grande mistério doFilho de Deus que se fez homem, ou antes,que se fez Menino para nossa salvação.

Depois de ter considerado o olhar e apresença do Criador que abrangem todo ohorizonte cósmico, na segunda parte doSalmo, que hoje meditamos, os olhoscheios de ternura de Deus voltam-separa o ser humano, considerado na sua ori-gem plena e completa. Ele ainda está“informe” no útero materno: o vocábulohebraico usado é entendido por alguns es-tudiosos da Bíblia como equivalente ao“embrião”, descrito por essa palavra comouma pequena realidade oval, envolvidaem si mesma, mas sobre a qual já poisa oolhar benévolo e amoroso dos olhos deDeus (cf. v. 16).

2. Para definir a acção divina dentro doventre materno, o Salmista recorre àsclássicas imagens bíblicas, comparandoa cavidade geradora da mãe às “profundi-dades da terra”, ou seja, com a vitalidadeconstante da grande mãe terra (cf. v. 15).

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16 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

Antes de mais nada, há o símbolo dooleiro e do escultor que “forma”, que plas-ma a sua criação artística, a sua obra-pri-ma, exactamente como se dizia no livro doGénesis a propósito da criação do homem:“O Senhor Deus formou o homem do póda terra” (Gn 2, 7). A seguir, há o símbolodo “tecido” que evoca a delicadeza dapele, da carne, dos nervos “entretecidos”no esqueleto ósseo.

Também Job evoca com força estas eoutras imagens para exaltar aquela obra-prima que é a pessoa humana, apesar deaçoitada e ferida pelo sofrimento: “Foramas tuas mãos que formaram e modelaramtodo o meu ser... Lembra-te de que me fi-zeste do barro... Não me espremeste comoo leite e me coalhaste como quem fazqueijo? Revestiste-me de pele e de carne,e teceste-me de ossos e nervos” (Job 10,8-11).

3. Extremamente poderosa é, no nossoSalmo, a ideia de que Deus já vê todo ofuturo desse embrião ainda “sem forma”:no livro da vida do Senhor já estão ins-critos os dias que aquela criatura viverá eque Deus cumulará de obras durante a suaexistência terrena. Assim, volta a emergira grandeza transcendente do conheci-mento divino, que não abarca somente opassado e o presente da humanidade, mastambém a perspectiva ainda oculta dofuturo. Mas aparece também a grandezadesta pequena criatura humana que aindanão nasceu, formada pelas mãos de Deus erodeada pelo seu amor: um elogio bíblicodo ser humano, desde o primeiro momentoda sua existência.

Gostaríamos, agora, de reler a refle-xão que São Gregório Magno, nas suasHomilias sobre Ezequiel, elaborou a partir

da frase do Salmo que antes comentámos:“Ainda em embrião se viam minhas obrase já meus dias estavam marcados no teulivro” (v. 16). Sobre estas palavras oPontífice e Padre da Igreja construiu umameditação original e delicada, acercadaqueles que, na comunidade cristã, sãomais frágeis no seu caminho espiritual.

Ele diz que até os mais débeis na fé ena vida cristã fazem parte da arquitecturada Igreja, “estão incluídos nela... em virtu-de da sua boa vontade. É verdade que sãoimperfeitos e pequenos, mas naquilo queconseguem compreender, amam a Deus eao próximo, e não deixam de realizar obem que podem. Embora ainda não alcan-cem os dons espirituais, até ao ponto deabrir a alma à acção perfeita e à contem-plação ardente, todavia não renunciam aoamor a Deus e ao próximo, na medida emque são capazes de o compreender. Porisso, ainda que ocupem um lugar menosimportante, é verdade que também elescontribuem para a edificação da Igrejaporque, embora sejam inferiores por dou-trina, profecia, graça dos milagres e re-núncia completa ao mundo, todavia estãoalicerçados sobre o fundamento do temore do amor, onde encontram a própria soli-dez” (2, 3, 12-13, Obras de GregórioMagno, III/2, Roma 1993, pp. 79.81).

Assim, a mensagem de São Gregóriotorna-se uma grande consolação para to-dos nós que, frequentemente, progredimoscom dificuldade ao longo do caminho davida espiritual e eclesial. O Senhor conhe-ce-nos e a todos nos envolve no seu amor.

BENTO XVI

28 de Dezembro de 2005Transcrito de L'Osservatore Romano

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A VOZ DO PAPA

CRISTO, GERADO ANTES DE TODA A CRIATURA,É O PRIMOGÉNITO DOS QUE RESSUSCITAM

DE ENTRE OS MORTOS

Catequese sobre o Cântico da Carta aos Colossenses(1, 12-20)

JANEIRO – JUNHO 2006 17

1. Nesta primeira Audiência geral donovo ano, vamos meditar o célebre hinocristológico contido na Carta aos Colos-senses, que é como que o solene pórtico deentrada deste rico texto paulino e tambémum pórtico de entrada neste ano. O Hinoproposto à nossa reflexão é introduzidopor uma ampla fórmula de acção de graças(cf. vv. 3.12-14), que nos ajuda a criar oclima espiritual para viver bem estes pri-meiros dias de 2006, assim como o nossocaminho ao longo de todo o novo ano (cf.vv. 15-20).

O louvor do Apóstolo, e também onosso, eleva-se a “Deus, Pai de nosso Se-nhor Jesus Cristo” (v. 3), fonte da salvaçãoque se descreve primeiro de forma negati-va como “libertação do poder das trevas”(v. 13), ou seja, como “redenção e perdãodos pecados” (v. 14), e a seguir de formapositiva como “participação na herançados santos, na luz” (v. 12) e como entrada“no Reino do seu amado Filho” (v. 13).

2. Neste ponto começa o grande e densoHino, que tem Cristo como centro, do qualse exaltam o primado e a obra, tanto nacriação como na história da redenção (cf.

vv. 15-20). Portanto, são dois os movi-mentos do cântico. No primeiro apre-senta-se a Cristo como anterior a toda acriação, “o Primogénito de toda a criatu-ra” (v. 15). De facto, Ele é a “imagem deDeus invisível”, e esta expressão tem todaa força que o “ícone” possui na cultura doOriente: mais do que a semelhança, subli-nha-se a intimidade profunda com o sujei-to representado.

Cristo torna a propor, no meio de nós,de modo visível, o “Deus invisível”; n’Elevemos o rosto de Deus através da naturezacomum que os une. Em virtude desta suaaltíssima dignidade, Cristo é anterior a“todas as coisas”, não só por causa da suaeternidade, mas também e sobretudo pelasua obra criadora e providente: “n’Eleforam criadas todas as coisas, no céu e naterra, visíveis e invisíveis... e por Ele tudosubsiste” (vv. 16-17). Mais ainda, ascoisas foram criadas “para Ele” (v. 16).

E assim, São Paulo indica-nos umaverdade muita importante: a história temuma meta, uma direcção. A história orien-ta-se rumo à humanidade unida em Cristo,vai em direcção ao homem perfeito, aohumanismo perfeito. Por outras palavras,

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18 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

São Paulo diz-nos: sim, há progresso nahistória. Há – por assim dizer – umaevolução da história. Progresso é tudo oque nos aproxima de Cristo e assim nosaproxima da humanidade unida, do verda-deiro humanismo. Estas indicações impli-cam também um imperativo para nós:trabalhar pelo progresso que todos quere-mos. Podemos fazê-lo, trabalhando pelaaproximação dos homens a Cristo; pode-mos fazê-lo, tornando-nos pessoalmentesemelhantes a Cristo, caminhando destemodo na linha do progresso autêntico.

3. O segundo movimento do Hino (cf. Cl1, 18-20) é dominado pela figura de Cristosalvador, no íntimo da história da salva-ção. A sua obra revela-se, antes de tudo, nofacto de ser “a Cabeça da Igreja, que é oseu Corpo” (v. 18): este é o horizonte sal-vífico privilegiado no qual se manifestamem plenitude a libertação e a redenção, acomunhão vital que existe entre a Cabeçae os membros do corpo, ou seja, entreCristo e os cristãos. O olhar do Apóstolodirige-se para a última meta, em direcçãoà qual a história converge: Cristo é “o Pri-mogénito de entre os mortos” (v. 18), éAquele que abre as portas da vida eterna,arrancando-nos aos limites da morte e domal.

De facto, este é o pleroma, a “pleni-tude” de vida e de graça, que reside nopróprio Cristo e que nos é doada e comu-nicada (cf. v. 19). Com esta presença vital,que nos faz participar da divindade, somostransformados interiormente, reconcilia-dos, pacificados: esta é uma harmonia detodo o ser redimido, em que Deus será“tudo em todos” (1 Cor 15, 28). E vivercomo cristãos significa deixar-se transfor-

mar interiormente segundo a forma deCristo. Assim se realiza a reconciliação, apacificação.

4. A este grandioso mistério da redençãodedicamos agora um olhar contemplativo,retomando as palavras de São Próclo deConstantinopla, que morreu no ano de446. Na sua Primeira Homilia sobre aMãe de Deus, Maria, ele apresenta o mis-tério da Redenção como consequência daEncarnação.

De facto, recorda o Bispo, Deus fez-sehomem para nos salvar e assim nos arran-car do poder das trevas e nos reconduzirao reino do seu amado Filho, como o re-corda este hino da Carta aos Colossenses.“Aquele que nos redimiu não é um sim-ples homem – observa Próclo –, pois todoo género humano era escravo do pecado;mas também não era um Deus sem nature-za humana, pois tinha um corpo. Se não setivesse revestido de mim, não me teria sal-vo. Aparecendo no seio da Virgem, Elevestiu-se de condenado. Foi ali que tevelugar o admirável comércio: Ele deu oespírito e tomou a carne” (8: Testi marianidel primo millennio, I, Roma 1988, p.561).

Estamos, portanto, diante da obra deDeus, que realizou a Redenção precisa-mente por ser também homem. Ele é oFilho de Deus, salvador, mas ao mesmotempo é também nosso irmão, e é graças aesta proximidade que Ele infunde em nóso dom divino. É realmente o Deus con-nosco. Amen.

BENTO XVI

4 de Janeiro de 2006Transcrito de L'Osservatore Romano

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A VOZ DO PAPA

ORAÇÃO DO REI PELA VITÓRIAE PELA PAZ

Catequese sobre o Salmo 143 I (144)

JANEIRO – JUNHO 2006 19

1. O nosso itinerário no Saltério utiliza-do pela Liturgia das Vésperas chega agoraa um hino real, o Salmo 143, do qual foiproclamada a primeira parte: de facto, aLiturgia propõe este cântico dividindo-oem dois momentos.

A primeira parte (cf. vv. 1-8) revela, demodo claro, a característica literária destacomposição: o Salmista recorre a citaçõesde outros textos sálmicos, desenvolven-do-os num novo projecto de canto eoração.

Precisamente porque o Salmo perten-ce a uma época posterior, é fácil pensarque o rei exaltado já não tem os traços dosoberano davídico, pois a realeza judaicaterminou com o exílio babilónio do séculoVI a.C., mas representa a figura luminosae gloriosa do Messias, cuja vitória não éum acontecimento bélico e político, masuma intervenção de libertação contra omal. Não se fala do “messias” – termohebraico que indicava o “consagrado”,como era o soberano – mas do “Messias”por excelência, que, na releitura cristã,tem o rosto de Jesus Cristo, “filho deDavid, filho de Abraão” (Mt 1,1).

2. O hino começa com uma bênção, ouseja, com uma exclamação de louvordirigida ao Senhor, celebrado com uma

pequena ladainha de títulos salvíficos: eleé o rochedo seguro e estável, é a graçaamorosa, é a cidadela protegida, o abrigodefensivo, o libertador, o escudo que afas-ta qualquer ataque do mal (cf. Sl 143, 1-2).Há também a imagem marcial do Deusque adestra para a guerra o seu fiel paraque saiba enfrentar as hostilidades doambiente, os poderes obscuros do mundo.

Diante do Senhor todo-poderoso oorante, apesar da sua dignidade real, sen-te-se débil e frágil. Faz, por isso, umaprofissão de humildade que é formula-da, assim se dizia, com as palavras dosSalmos 8 e 38. De facto, ele sente que é“como um sopro”, semelhante a umasombra passageira, frágil e inconsistente,imerso no fluxo do tempo que passa,marcado pelos limites que são próprios dacriatura (cf. Sl 143, 4).

3. Então surge a pergunta: por que é queDeus cuida desta criatura tão miserável ecaduca e se preocupa com ela? A esta per-gunta (v. 3) responde a grandiosa irrupçãodivina, chamada teofania, que é acom-panhada por um cortejo de elementoscósmicos e acontecimentos históricos,orientados para celebrar a transcendênciado Rei supremo do ser, do universo e dahistória.

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20 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

Eis os montes que fumegam emerupções vulcânicas (cf. v. 5), raios que seassemelham a setas que põem em fuga osinimigos (cf. v. 6), eis o “o abismo daságuas” oceânicas que são símbolo do caosdo qual, contudo, o rei é salvo por obra daprópria mão divina (cf. v. 7). Em segundoplano permanecem os ímpios que “profe-rem mentiras” e “juram falso” (cf. vv. 7-8), uma representação concreta, segundo oestilo semita, da idolatria, da perversãomoral, do mal que verdadeiramente seopõe a Deus e ao seu fiel.

4. Agora, para nossa meditação, vamosdeter-nos em primeiro lugar na profissãode humildade que o Salmista faz, ser-vindo-nos das palavras de Orígenes,cujo comentário a este texto chegou aténós na versão latina de São Jerónimo.“O Salmista fala da fragilidade do corpo eda condição humana”, porque “no que dizrespeito à condição humana, o homem éuma nulidade. ‘Vaidade das vaidades,tudo é vaidade’, diz o Eclesiastes”. Masvolta então a pergunta admirada e reco-nhecida: “’Que é o homem, Senhor, paraque dele cuideis?’... Que grande felici-dade é para o homem, conhecer o seuCriador. Nisto nos diferenciamos dosanimais selvagens e dos outros animais,porque sabemos que temos o nosso Cria-dor, enquanto que eles não o sabem”.

Vale a pena meditar um pouco sobreestas palavras de Orígenes, que vê a dife-rença fundamental entre o homem e os ou-tros animais no facto de que o homem écapaz de conhecer a Deus, seu Criador, deque o homem é capaz da verdade, capaz deum conhecimento que se transforma emrelação, em amizade. É importante, nonosso tempo, que não esqueçamos Deus,juntamente com todos os outros conheci-mentos que entretanto adquirimos, e são

tantos! Mas tornam-se todos problemá-ticos, e às vezes perigosos, se falta o co-nhecimento fundamental que dá sentido eorientação a tudo: o conhecimento deDeus Criador.

Voltemos a Orígenes. Ele diz: “Nãopoderás salvar esta miséria que é o ho-mem, se tu mesmo não a assumes sobre ti.‘Abre, Senhor, os céus e desce’. A tua ove-lha perdida não se poderá curar, se não forcolocada sobre os teus ombros... Estas pa-lavras dirigem-se ao Filho: ‘Abre, Senhor,os céus e desce’... desceste, abriste os céuse estendeste lá do alto a tua mão, e muitosacreditaram em ti” (Orígenes - Jerónimo,74 homilias sobre o livro dos Salmos,Milão 1993, pp. 512-515).

Para nós, cristãos, Deus já não é, comona filosofia anterior ao cristianismo, umahipótese mas uma realidade, porque Deus“abriu os céus e desceu”. O céu é Elemesmo, e desceu até nós. Orígenes vê jus-tamente na parábola da ovelha perdida,que o pastor carrega em seus ombros, a pa-rábola da Encarnação de Deus. Sim, naEncarnação Ele desceu e assumiu sobre osseus ombros a nossa carne, a nós próprios.Assim o conhecimento de Deus tornou-serealidade, amizade, comunhão. Dêmosgraças ao Senhor porque “abriu os céus edesceu”, carregou sobre os seus ombros anossa carne e nos guia pelas estradas danossa vida.

O Salmo, tendo partido da nossa des-coberta de que somos débeis e estamoslonge do esplendor divino, chega no finala esta grande surpresa da acção divina: aonosso lado está o Deus-Emanuel, que parao cristão tem o rosto amoroso de JesusCristo, Deus feito homem, feito um denós.

BENTO XVI11 de Janeiro de 2006Transcrito de L'Osservatore Romano

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A VOZ DO PAPA

ORAÇÃO DO REI

Catequese sobre o Salmo 143 II (144)

JANEIRO – JUNHO 2006 21

1. Concluiu-se hoje a Semana de Oraçãopela Unidade dos Cristãos, durante a qualreflectimos na necessidade de pedir cons-tantemente ao Senhor o grande dom daunidade plena entre todos os discípulos deCristo. De facto, a oração contribui demaneira substancial para tornar maissincero e rico de frutos o compromissoecuménico comum das Igrejas e Comuni-dades eclesiais.

Neste nosso encontro desejamos reto-mar a meditação sobre o Salmo 143, que aLiturgia das Vésperas nos propõe em doismomentos distintos (cf. vv. 1-8 e vv. 9-15).O tom é sempre o de um hino, mas nestesegundo movimento do Salmo entra emcena também a figura do “Ungido”, isto é,do “Consagrado” por excelência, Jesus,que atrai a si todos os homens “para quetodos sejam um só” (cf. Jo 17, 11.21). Poresta razão, a cena que dominará o cânticoserá marcada pela prosperidade e pela paz,símbolos típicos da era messiânica.

2. Por isso, o cântico é definido como“novo”, palavra que na linguagem bíblicaevoca menos a novidade exterior das pala-vras do que a plenitude última que sela aesperança (cf. v. 9). Por conseguinte, can-ta-se a meta da história na qual finalmentese calará a voz do mal, que o Salmista des-creve como a “mentira” e o “juramentofalso”, expressões que aludem à idolatria(cf. v. 11).

Mas este aspecto negativo é substi-tuído, de maneira muito mais ampla, peladimensão positiva, a do novo mundo jubi-loso que está para chegar. Este é o verda-deiro shalom, ou seja a “paz” messiânica,um horizonte luminoso que se desenvolvenuma sucessão de cenas da vida social,

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que podem tornar-se, também para nós,em voto pelo nascimento de uma socieda-de mais justa.

3. Em primeiro lugar está a família (cf. v.12), que se baseia na vitalidade da gera-ção. Os filhos, esperança do futuro, sãocomparados a árvores vigorosas; as filhassão representadas como colunas sólidasque sustêm o edifício da casa, semelhantesàs de um templo. Da família passa-se paraa vida económica, para os campos com osseus frutos conservados em celeiros, comos prados cheios de rebanhos que pastam,com os animais de trabalho que avançamnas planícies férteis (cf. vv. 13-14a).

O olhar dirige-se depois para a cidade,isto é, para toda a comunidade civil quefinalmente goza do dom precioso da paz eda tranquilidade pública. De facto, cessampara sempre as “brechas” que os invasoresabrem nas muralhas das praças durante osassaltos; terminam as “incursões”, quetrazem pilhagens e deportações e, por fim,não se ouve mais o “gemido” dos desespe-rados, dos feridos, das vítimas, dos órfãos,triste herança das guerras (cf. v. 14b).

4. Este retrato de um mundo diverso,mas possível, é confiado à obra do Mes-sias e também à do seu povo. Todos jun-tos, sob a direcção do Messias Cristo,devemos trabalhar para este projecto deharmonia e de paz, pondo fim à acçãodestruidora do ódio, da violência, daguerra. É preciso, contudo, fazer umaopção, pondo-se ao lado do Deus do amore da justiça.

Por isso o Salmo termina por estaspalavras: “Feliz do povo que possui taisbens, feliz do povo de quem Deus é o

Senhor”. Deus é o bem dos bens, a condi-ção de todos os outros bens. Só um povoque conhece a Deus e defende os valo-res espirituais e morais, pode realmenteencaminhar-se rumo a uma paz profunda etornar-se também uma força de paz para omundo, para os outros povos. Por conse-guinte, ele pode entoar com o Salmista o“cântico novo”, cheio de confiança e deesperança. Espontaneamente nós pensa-mos na nova aliança, na própria novidadeque é Cristo e o seu Evangelho.

É o que nos recorda Santo Agostinho.Lendo este Salmo, ele interpreta tambémas palavras: “Tocarei para ti a harpa de dezcordas”. A harpa de dez cordas é para ele alei resumida nos seus dez mandamentos.Mas destas dez cordas, destes dez manda-mentos, devemos encontrar a chave justa.E estas dez cordas dos dez mandamentossó tocam bem – diz Santo Agostinho – seas fizermos vibrar pela caridade do cora-ção. A caridade é a plenitude da lei. Quemvive os mandamentos como dimensão daúnica caridade, canta realmente o “cânticonovo”. A caridade que nos une aos senti-mentos de Cristo é o verdadeiro “cânticonovo” do “homem novo”, capaz de criartambém um “mundo novo”. Este Salmoconvida-nos a cantar “com a harpa de dezcordas”, com um coração novo, a cantarcom os sentimentos de Cristo, a viver osdez mandamentos na dimensão do amor,contribuindo assim para a paz e a harmo-nia do mundo (cf. Exposições sobre osSalmos, 143, 16: Nova Biblioteca Agosti-niana, XXVIII, Roma 1977, pp.

BENTO XVI

25 de Janeiro de 2006Transcrito de L'Osservatore Romano

22 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

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A VOZ DO PAPA

EM LOUVOR DA MAJESTADE DIVINA

Catequese sobre o Salmo 144 I (145)

JANEIRO – JUNHO 2006 23

1. Neste momento foi o Salmo 144 quese tornou a nossa oração, um louvor jubi-loso ao Senhor que é exaltado como umrei cheio de amor e ternura, preocupadocom todas as suas criaturas. A Liturgiapropõe-nos este hino em dois momentosdistintos, que correspondem também aosdois movimentos poéticos e espirituais dopróprio Salmo. Vamos deter-nos sobre aprimeira parte, que corresponde aos vv.1-13.

Este Salmo é um cântico elevado aoSenhor, que se invoca e descreve como“rei” (cf. Sl 144, 1), uma representaçãodivina que aparece com frequência nou-tros Salmos (cf. Sl 46; 92; 95-98). Aliás, ocentro espiritual do nosso cântico éconstituído precisamente por uma cele-bração intensa e apaixonada da realezadivina. Nela se repete quatro vezes – comopara indicar os quatro pontos cardeais doser e da história – a palavra hebraicamalkut, “reino”(cf. Sl 144, 11-13).

Sabemos que esta simbologia régia,que será central também na pregação deCristo, é a expressão do projecto salvíficode Deus, que não é indiferente à históriahumana; pelo contrário, em relação a ela,tem o desejo de realizar connosco e paranós um projecto de harmonia e de paz.Para levar a cabo este plano, convoca-setambém toda a humanidade, a fim de queadira à vontade salvífica divina, uma von-tade que se estende a todos os “homens”, a“todas as gerações” e a “todos os séculos”.Uma acção universal, que arranca o maldo mundo e nele estabelece a “glória” doSenhor, isto é, a sua presença pessoaleficaz e transcendente.

2. É para este coração do Salmo, coloca-do precisamente no centro da composição,que se dirige o louvor orante do Salmista,que se faz voz de todos os fiéis, e quereria

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ser hoje a voz de nós todos. De facto, aoração bíblica mais elevada é a celebraçãodas obras de salvação que revelam o amordo Senhor em relação às suas criaturas.Continua-se a exaltar neste Salmo “onome” divino, isto é, a sua pessoa (cf. vv.1-2), que se manifesta no seu agir histó-rico: fala-se precisamente de “obras”,“maravilhas”, “feitos grandiosos”, “po-der”, “grandeza”, “justiça”, “paciência”,“misericórdia”, “graça”, “bondade” e“ternura”.

É uma espécie de oração em forma deladainha, que proclama a entrada de Deusnos acontecimentos humanos, para levartoda a realidade criada a uma plenitudesalvífica. Nós não estamos à mercê deforças obscuras, nem vivemos de formasolitária a nossa liberdade, mas estamosconfiados à acção do Senhor poderoso echeio de bondade, que tem um plano anosso respeito, um “reino” a instaurar(cf. v. 11).3. Este “reino” não consiste em poder edomínio, em triunfo e opressão, como in-felizmente sucede muitas vezes nos reinosda terra, mas é a sede de uma manifestaçãode piedade, de ternura, de bondade, degraça, de justiça, como se afirma váriasvezes ao longo dos versículos que contêmo louvor.

A síntese deste retrato divino encon-tra-se no v. 8: o Senhor é “clemente e com-passivo, paciente e cheio de bondade”.São palavras que evocam a apresentaçãoque Deus fez de si mesmo no Sinai, quan-do disse: “O Senhor, o Senhor, Deus mise-ricordioso e clemente, vagaroso na ira,cheio de bondade e fidelidade” (Ex 34, 6).Temos aqui uma preparação da profissãode fé em Deus que o Apóstolo São Joãofaz, quando nos diz simplesmente que Eleé amor: “Deus caritas est” (cf. 1 Jo 4,8.16).

4. Além de reflectirmos nestas belas pa-lavras, que nos mostram um Deus “cle-mente e compassivo, paciente e cheio debondade”, sempre disposto a perdoar e aajudar, a nossa atenção fixa-se também nobonito versículo 9: “O Senhor é bom paracom todos, e a sua misericórdia se estendea todas as criaturas”. Eis uma palavra parameditar, uma palavra de conforto, umacerteza que Ele dá à nossa vida.

A este propósito, São Pedro Crisólogo(por volta de 380-450) exprime-se assimno Segundo discurso sobre o jejum:“’Grandes são as obras do Senhor’: masesta grandeza que vemos na grandeza dacriação, este poder é superado pela gran-deza da misericórdia. De facto, tendo ditoo profeta: ‘Grandes são as obras de Deus’,noutra passagem acrescentou: ‘A sua mi-sericórdia é superior a todas as suasobras’. A misericórdia, irmãos, enche océu, enche a terra... Eis a razão pela qual agrande, generosa, única, misericórdia deCristo, que reservou qualquer julgamentopara um só dia, destinou todo o tempo dohomem à trégua da penitência... Eis arazão pela qual o profeta, que não temconfiança na sua própria justiça, se pre-cipita totalmente para a misericórdia:‘Compadece-te de mim, ó Deus – diz ele –pela tua bondade’ (Sl 50, 3)” (42, 4-5:Sermões 1-62 bis, Escritores da ÁreaSantambrosiana, 1, Milão-Roma 1996,pp. 299.301).

E assim dizemos também nós ao Se-nhor: “Compadece-te de mim, ó Deus,pela tua grande misericórdia”.

BENTO XVI

1 de Fevereiro de 2006Transcrito de L'Osservatore Romano

24 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

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A VOZ DO PAPA

O TEU REINO É UM REINO ETERNO

Catequese sobre o Salmo 144 II (145)

JANEIRO – JUNHO 2006 25

1. Seguindo a Liturgia, que o divide emduas partes, voltamos a reflectir sobre oSalmo 144, um cântico admirável em hon-ra do Senhor, rei amoroso e atento às suascriaturas. Queremos agora meditar a se-gunda parte na qual o Salmo foi dividido:são os versículos 14-21, que retomam otema fundamental do primeiro movimentodo hino.

Ali exaltavam-se a piedade, a ternura,a fidelidade e a bondade divina, que se es-tendem a toda a humanidade, envolvendotodas as criaturas. Agora o Salmista centraa sua atenção no amor que o Senhor sente,de modo particular, pelo pobre e pelo frá-gil. Por conseguinte, a realeza divina não éindiferente nem altiva como por vezespode acontecer no exercício do poder hu-mano. Deus exprime a sua realeza ao in-clinar-se sobre as criaturas mais frágeis eindefesas.

2. De facto, Ele é antes de tudo um paique “ampara os que vacilam” e levanta to-dos os que caíram na poeira da humilha-ção (cf. v. 14). Por conseguinte, os seresvivos tendem para o Senhor quase comomendigos famintos e Ele oferece, comopai solícito, o alimento que lhes é necessá-rio para viver (cf. v. 15).

Neste ponto, aflora aos lábios do oran-te a profissão de fé nas duas qualidadesdivinas por excelência: a justiça e a santi-dade. “O Senhor é justo em todos os seuscaminhos, e perfeito em todas as suasobras” (v. 17). Existem em hebraico doisadjectivos típicos para ilustrar a aliançaestabelecida entre Deus e o seu povo:saddiq e hasid. Eles expressam a justiçaque quer salvar e libertar do mal, e a

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26 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

fidelidade que é sinal da grandeza amo-rosa do Senhor.

3. O Salmista coloca-se do lado dos be-neficiados, aos quais define com váriasexpressões: na prática, são termos queconstituem uma representação do verda-deiro crente. Ele “invoca” o Senhor naoração confiante, “procura-o” na vida “emverdade” (cf. v. 18), “teme” o seu Deus,respeitando a sua vontade e obedecendo àsua palavra (cf. v. 19), mas sobretudo“ama-o”, com a certeza de ser acolhidosob o manto da sua protecção e da sua inti-midade (cf. v. 20).

A última palavra do Salmista é, então,a mesma pela qual tinha começado o seuhino: é um convite a louvar e a bendizer oSenhor e o seu “nome”, isto é, a sua pessoaviva e santa, que actua e salva no mundo ena história. Mais ainda, o seu apelo é umconvite a todas as criaturas, marcadas pelodom da vida, a associarem-se ao louvororante do fiel: “Todo o ser vivo bendigaeternamente o seu nome santo” (n. 21). Éuma espécie de cântico perene que deveelevar-se da terra ao céu, é a celebraçãocomunitária do amor universal de Deus,fonte de paz, de alegria e de salvação.

4. Para concluir a nossa reflexão, volte-mos àquele consolador versículo que diz:“O Senhor está perto de quantos o invo-cam, de quantos o invocam em verdade”(v. 18). Esta frase era particularmente caraa Barsanúfio de Gaza, um asceta que mor-reu nos meados do século VI, interpeladocom frequência pelos monges, eclesiásti-cos e leigos devido à sabedoria do seu dis-cernimento.

Assim, por exemplo, a um discípuloque lhe expressava o desejo “de procuraras causas das diversas tentações que o ti-nham assaltado”, Barsanúfio respondia:“Irmão João, nada temas das tentaçõesque surgiram contra ti para te provar, por-que o Senhor não permitirá que caias ne-las. Por isso, quando tiveres uma dessastentações, não te preocupes em averiguarde que se trata; o que deves fazer é invocaro nome de Jesus: ‘Jesus, ajuda-me’. E Eleouvir-te-á porque ‘o Senhor está perto dequantos o invocam’. Não desanimes, masao contrário, corre com ardor e chegarás àmeta, em Cristo Jesus, nosso Senhor”(Barsanúfio e João de Gaza, Epistolário,39: Colecção de Textos Patrísticos, XCIII,Roma 1991, p. 109).

E estas palavras do antigo Padre sãoválidas também para nós. Nas nossas di-ficuldades, problemas e tentações, nãodevemos fazer apenas uma reflexão teó-rica – de onde vêm? – mas devemos reagirpositivamente: invocar o Senhor, manterum contacto vivo com o Senhor. Maisainda, devemos invocar o nome de Jesus:“Jesus, ajuda-me!”. E tenhamos a certezade que Ele nos ouve, porque está pertode quem o procura. Não desanimemos,mas corramos com ardor – como dizeste Padre – e alcançaremos tambémnós a meta da vida, Jesus, o Senhor.

BENTO XVI

8 de Fevereiro de 2006Transcrito de L'Osservatore Romano

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JANEIRO 2004 – DEZEMBRO 2005 27

A VOZ DO PAPA

MAGNIFICAT:CÂNTICO DA VIRGEM MARIA

Catequese sobre o Cântico de São Lucas(1, 46-55)

JANEIRO – JUNHO 2006 27

1. Chegámos agora ao final do longo iti-nerário começado, há precisamente cincoanos, na primavera de 2001, pelo meuamado Predecessor, o inesquecível PapaJoão Paulo II. Este grande Papa quis per-correr, nas suas catequeses, toda a sequên-cia dos Salmos e dos Cânticos que consti-tuem o tecido fundamental da oração daLiturgia das Laudes e das Vésperas. Aoterminar a peregrinação através destestextos, semelhante a uma viagem no jar-dim florido do louvor, da invocação, daoração e da contemplação, reflectiremoshoje sobre o Cântico com que se concluiidealmente cada celebração das Vésperas,o Magnificat (Lc 1, 46-55).

É um cântico que revela em filigrana aespiritualidade dos anawim bíblicos, istoé, dos fiéis que se reconhecem “pobres”não só pelo seu afastamento de qualquertipo de idolatria da riqueza e do poder,mas também pela profunda humildade docoração, atento a rejeitar a tentação doorgulho, e aberto à irrupção da graça di-vina salvadora. De facto, todo o Magnifi-cat, que acabámos de escutar cantado pela“Capela Sistina”, está marcado por esta“humildade”, em grego tapeinosis, que in-dica uma situação concreta de humildadee de pobreza.

2. O primeiro movimento do cântico ma-riano (cf. Lc 1, 46-50) é uma espécie devoz solista que se eleva em direcção aocéu para chegar até ao Senhor. Escutámosprecisamente a voz de Nossa Senhora, quefala assim do seu Salvador, que fez mara-vilhas na sua alma e no seu corpo. Comefeito, convém notar que o cântico estácomposto na primeira pessoa: “A minhaalma... o meu espírito... o meu Salvador...chamar-me-ão bem-aventurada... fez emmim maravilhas...”. A alma da oração é,portanto, a celebração da graça divina queirrompeu no coração e na vida de Maria,tornando-a a Mãe do Senhor.

A estrutura íntima do seu canto oranteé, portanto, o louvor, a acção de graças, aalegria, fruto da gratidão. Mas este teste-munho pessoal não é solitário e intimista,puramente individualista, porque a Vir-gem Mãe está consciente de que tem umamissão a cumprir em favor da humanidadee que a sua história pessoal se insere nahistória da salvação. E assim pode dizer:“A sua misericórdia se estende de geraçãoem geração sobre aqueles que o temem”(v. 50). Com este louvor ao Senhor, a Vir-gem dá voz a todas as criaturas resgatadasque, no seu “Fiat”, e portanto na figura deJesus nascido da Virgem, encontram amisericórdia de Deus.

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3. É neste ponto que se desenvolve o se-gundo movimento poético e espiritual doMagnificat (cf. vv. 51-55). Ele possui umatonalidade mais coral, como se à voz deMaria se unisse a de toda a comunidadedos fiéis que celebram as surpreendentesescolhas de Deus. No original grego doEvangelho de São Lucas, temos sete ver-bos no aoristo, que indicam igual númerode acções que o Senhor realiza de modopermanente na história: “Manifestou opoder do seu braço... dispersou os sober-bos. Derrubou os poderosos e exaltou oshumildes. Aos famintos encheu de bens...despediu os ricos... acolheu Israel”.

Nestas sete acções divinas, é evidenteo “estilo” em que o Senhor da história ins-pira o seu comportamento: coloca-se dolado dos últimos. O seu projecto estámuitas vezes oculto no terreno obscurodos acontecimentos humanos, nos quaistriunfam “os soberbos, os poderosos e osricos”. Contudo a sua força secreta estádestinada a revelar-se no final, para mos-trar quem são os verdadeiros predilectosde Deus: “Os que o temem”, fiéis à sua pa-lavra; “os humildes, os famintos, Israelseu servo”, isto é, a comunidade do povode Deus que, como Maria, é constituídapelos que são “pobres”, puros e simples decoração. É este “pequeno rebanho” queestá convidado a não temer porque aprou-ve ao Pai conceder-lhe o seu reino (cf. Lc12, 32). Assim, este cântico convida-nos aunirmo-nos a este pequeno rebanho, a serrealmente membros do Povo de Deus, napureza e na simplicidade do coração, noamor de Deus.

4. Aceitemos então o convite que no seucomentário ao texto do Magnificat nos di-

rige Santo Ambrósio. O grande Doutor daIgreja diz: “Esteja em cada um a alma deMaria para glorificar o Senhor, esteja emtodos o espírito de Maria para se alegrarem Deus; embora, segundo a carne, hajauma só mãe de Cristo, segundo a fé todasas almas geram Cristo: de facto, cada umaacolhe em si o Verbo de Deus... A alma deMaria glorifica o Senhor, e o seu espíritoalegra-se em Deus, porque, consagradacom a alma e com o espírito ao Pai e aoFilho, ela adora com afecto devoto umsó Deus, do qual tudo provém, e um sóSenhor, em virtude do qual todas as coisasexistem” (Exposição do Evangelho se-gundo Lucas, 2, 26-27: SAEMO, XI,Milão-Roma 1978, p. 169).

Neste maravilhoso comentário doMagnificat de Santo Ambrósio sensibili-za-me sempre de modo particular a pala-vra surpreendente: “Embora, segundo acarne, haja uma só mãe de Cristo, segundoa fé todas as almas geram Cristo: de facto,cada uma acolhe em si o Verbo de Deus”.Assim o santo Doutor, interpretando aspalavras de Nossa Senhora, convida-nos afazer com que o Senhor encontre umamorada em nossa alma e em nossa vida.Não só devemos levá-lo no coração, masdevemos levá-lo ao mundo, de forma quetambém nós possamos gerar Cristo para osnossos tempos. Peçamos ao Senhor quenos ajude a glorificá-lo com o Espírito ecom a alma de Maria e a levar de novoCristo ao nosso mundo.

BENTO XVI

15 de Fevereiro de 2006Transcrito de L'Osservatore Romano

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JANEIRO – JUNHO 2006 29

HOMILIA NA SOLENIDADEDO CORPO E SANGUE

DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

A VOZ DO PAPA

Na véspera da sua Paixão, durante aCeia pascal, o Senhor tomou o pão emsuas mãos – como escutámos há pouco noEvangelho – e, depois de pronunciar abênção, partiu-o e deu-o aos seus discí-pulos, dizendo: «Tomai: este é o meu cor-po». Depois, tomou o cálice, deu graças eentregou-lho, e todos beberam dele. Edisse-lhes: «Este é o meu sangue, o san-gue da Aliança, que vai ser derramado

por muitos» (Mc 14, 22-24). Toda a histó-ria de Deus com os homens se resumenestas palavras. Elas não só recordam einterpretam o passado, mas antecipamtambém o futuro, a vinda do Reino deDeus ao mundo. Aquilo que Jesus diz. nãosão simples palavras. O que Ele diz éacontecimento, o acontecimento centralda história do mundo e da nossa vidapessoal.

Estas palavras são inesgotáveis. Que-reria meditar convosco, neste momento,num só aspecto. Jesus, como sinal da suapresença, escolheu pão e vinho. Com cadaum destes dois sinais dá-se inteiramente, enão só uma parte de si. O Ressuscitadonão está dividido. Ele é uma pessoa que,através dos sinais, se aproxima de nós e seune a nós. Os sinais, contudo, representamà sua maneira, cada um dos aspectos parti-culares deste mistério e, com o seu modotípico de manifestar-se, querem falar-nos,para que cheguemos a compreender umpouco mais do mistério de Jesus Cristo.Durante a procissão e na adoração, nósolhamos para a Hóstia consagrada, aforma mais simples de pão e de alimento,feito apenas com um pouco de farinha e deágua. A oração com que a Igreja, durante aliturgia da Missa, apresenta este pão aoSenhor, fala dele como fruto da terra e dotrabalho do homem. Nele se sintetiza o

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cansaço humano, o trabalho quotidiano dequem cultiva a terra, semeia e recolhe, efinalmente prepara o pão. Contudo, o pãonão é apenas e só um produto nosso, umacoisa feita por nós: é fruto da terra e por-tanto também dom. O facto de a terra darfruto não é mérito nosso; só o Criador po-dia dar-lhe a fertilidade. E agora podemostambém ampliar um pouco esta oração daIgreja, dizendo: o pão é fruto da terra e aomesmo tempo do céu. Pressupõe a energiaconjunta das forças da terra e dos dons doalto, ou seja, do sol e da chuva. E mesmo aágua, da qual temos necessidade para pre-parar o pão, não podemos produzi-la nósmesmos. Num tempo em que se fala dadesertificação e no qual ouvimos denun-ciar o perigo de que os homens e os ani-mais morram de sede nas regiões semágua, damo-nos de novo conta da grande-za do dom da água e de como somos inca-pazes de a conseguir sozinhos. Então,olhando de mais perto este pequeno peda-ço de Hóstia branca, este pão dos pobres,ele aparece-nos como uma síntese da cria-ção. Unem-se o céu e a terra, tal como aactividade e o espírito do homem. Asinergia das forças que torna possível nonosso pobre planeta o mistério da vida e aexistência do homem vem ao nosso encon-tro em toda a sua maravilhosa grandeza.Deste modo, começamos a compreenderpor que é que o Senhor escolhe este peda-ço de pão como seu sinal. A criação, comtodos os seus dons, aspira, para além desi mesma, a algo que é ainda maior. Paraalém da síntese das próprias forças, paraalém da síntese até da natureza e do espíri-to que em certo sentido experimentamosno pedaço de pão, a criação está orientadapara a divinização, para a santa aliança,para a unificação com o próprio Criador.

Mas ainda não explicámos plena-mente a mensagem deste sinal do pão. OSenhor fez referência ao seu mistério maisprofundo no Domingo de Ramos, quandolhe apresentaram o pedido de uns gregosque queriam encontrar-se com Ele. Na suaresposta a esta pergunta, encontra-se afrase: «Em verdade, em verdade vos digo:se o grão de trigo, lançado à terra, nãomorrer, fica ele só; mas, se morrer, dá mui-to fruto» (Jo 12, 24). No pão, feito degrãos moídos, esconde-se o mistério daPaixão. A farinha, o grão moído, pressu-põe o morrer e o ressuscitar do grão. O sermoído e cozido manifesta uma vez mais opróprio mistério da Paixão. Só através domorrer chega o ressurgir, chega o fruto e anova vida. As culturas do Mediterrâneo,nos séculos anteriores a Cristo, tinhamintuído profundamente este mistério.Baseando-se na experiência deste morrere ressurgir, conceberam mitos de divin-dades, que morrendo e ressuscitandodavam nova vida. O ciclo da naturezaparecia-lhes uma promessa divina nomeio das trevas do sofrimento e da morteque se nos impõem. Nesses mitos, a almados homens, em certo sentido, orienta-va-se para aquele Deus que se fez homem,que se humilhou até à morte na cruz eque, deste modo, abriu para todos nós aporta da vida. No pão e no seu tornar-sepão, os homens descobriram como queuma expectativa da natureza, como queuma promessa da natureza de que isso te-ria tido que existir: o Deus que morre eque desse modo nos leva à vida. O que nosmitos era expectativa e que no própriogrão se esconde como sinal da esperançada criação, aconteceu realmente emCristo. Através do seu sofrer e morrerlivremente, tornou-se pão para todosnós e, deste modo, esperança viva ecredível: Ele acompanha-nos em todos os

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nossos sofrimentos até à morte. Os cami-nhos que Ele percorre connosco e atravésdos quais nos conduz à vida são caminhosde esperança.

Quando contemplamos em adoração aHóstia consagrada, o sinal da criaçãofala-nos. Então encontramos a grandezado seu dom; mas encontramos também aPaixão, a Cruz de Jesus e a sua Ressur-reição. Através desta adoração contem-plativa, Ele atrai-nos para si, para dentrodo seu mistério, por meio do qual quertransformar-nos, como transformou aHóstia.

A Igreja primitiva encontrou no pãoainda outro sinal. A «Doutrina dos dozeapóstolos», um livro redigido por volta doano 100, refere nas suas orações a afirma-ção: «Assim como este pão partido estavadisperso pelas colinas, e, depois de colhi-do se tornou um só, assim se reúna a tuaIgreja dos confins da terra no teu Reino»(IX, 4). O pão, feito de muitos grãos detrigo, encerra também um acontecimentode união: o converter-se em pão a partir degrãos moídos é um processo de unifica-ção. Nós mesmos, dos muitos que somos,devemos converter-nos num só pão, numsó corpo, diz-nos São Paulo (1 Cor 10,17). Deste modo, o sinal do pão conver-te-se ao mesmo tempo em esperança eobra a realizar.

De modo semelhante nos fala ainda osinal do vinho. Porém, enquanto o pão fazreferência ao quotidiano, à simplicidade eà peregrinação, o vinho expressa a beleza

da criação: através deste sinal, exprimea festa de alegria que Deus quer ofere-cer-nos no fim dos tempos e que antecipajá agora, sempre de novo. Mas o vinhotambém fala da Paixão: a videira tem queser podada repetidamente para poderlimpar-se; a uva tem que amadurecer sobo sol e a chuva, e tem que ser pisada: sóatravés dessa paixão amadurece um vinhoapreciado.

Na festa do Corpus Christi contem-plamos, sobretudo, o sinal do pão. Elerecorda-nos também a peregrinação de Is-rael durante os quarenta anos no deserto.A Hóstia é o nosso maná com o qual o Se-nhor nos alimenta, é verdadeiramente opão do céu, com o qual se entrega a si mes-mo. Na procissão, seguimos este sinal edeste modo o seguimos a Ele mesmo. Epedimos-lhe: guia-nos pelos caminhos danossa história! Mostra à Igreja e aos seuspastores sempre de novo o caminho justo!Olha a humanidade que sofre, que cami-nha insegura entre tantas interrogações;olha a fome física e psíquica que a ator-menta! Dá aos homens o pão para o corpoe para a alma! Dá-lhes trabalho! Dá-lhesluz! Dá-te a ti mesmo! Purifica-nos e san-tifica-nos a todos! Faz-nos compreenderque só através da participação na tua Pai-xão, através do «sim» à cruz, à renúncia,às purificações que tu nos impões, a nossavida pode amadurecer e alcançar o seu au-têntico cumprimento. Reúne-nos de todosos confins da terra. Une a tua Igreja, une ahumanidade dilacerada! Dá-nos a tua sal-vação! Amen.

BENTO XVI

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SECRETARIADO NACIONAL DE LITURGIA

A MÚSICA SACRANOS DOCUMENTOS DA IGREJA

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Depois da liturgia da Palavra vem aliturgia da ceia do Senhor, a refeição, deque a oração eucarística foi uma verdadei-ra “bênção da mesa”.

Na celebração eucarística celebra-se omistério da Páscoa do Senhor, que Ele ins-tituiu na ultima ceia e entregou à Igrejapara que ela o celebre como sinal da suamorte, na qual Ele ofereceu a vida ao Paiem sacrifício de reparação, louvor e acçãode graças para salvação de toda a huma-nidade, “até que Ele venha” no fim dostempos.

A eucaristia é assim o sacrifício do en-tretanto, que vai desde o calvário até àvinda do Senhor, o sacrifício que acompa-nha toda a vida da comunidade cristã nestemundo, como corre uma torrente de vidaque nasce do coração de Cristo aberto nacruz até desaguar no mar da vida eternaem Deus.

A comunhão é rito central da celebra-ção da Eucaristia segundo a palavra doSenhor: “Tomai e comei, tomai e bebei”,mas, com o tempo, tornou-se o momentomenos participado pelas pessoas, certa-mente pela consciência que elas muitasvezes têm de não se encontrarem nas devi-das disposições espirituais para a receber.

Esta distância em relação à comunhãoé, muitas vezes, ainda consequência deuma espiritualidade pouco cristã, comofoi o jansenismo, que colocou Deus muitodistante do homem, quando Ele próprio Sefez homem em Jesus Cristo. Em resposta

ao jansenismo, ocorreram, no séculoXVII, as revelações do Coração de Jesus aSanta Maria Margarida, numa linguagemo mais humana possível, quando o Senhorlhe mostrou o seu coração, dizendo-lhe:“Eis o coração que tanto tem amado oshomens, sem que eles o reconheçam e lhecorrespondam”.

Outro sinal da má compreensão da co-munhão como parte integrante da missafoi a separação entre uma e outra como sefossem duas realidades autónomas, aponto de a comunhão ser um rito comoque independente da missa, chegando a re-ceber um acto penitencial próprio, o eupecador me confesso, com a respectivaabsolvição: Deus todo-poderoso tenhacompaixão de nós, repetido do princípioda missa. Isto veio assim até à reforma daliturgia do Concílio Vaticano II.

MISSA

A LITURGIA EUCARÍSTICA

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Ritos da Comunhão

1. Oração dominical“Pai Nosso”

Textos muito antigos da tradição cris-tã, como, por exemplo, a Didakhê (séc. I),dizem que os cristãos rezam o Pai Nossotrês vezes ao dia, certamente de manhã nanossa Hora de Laudes, durante o dia naMissa, à tarde na Hora de Vésperas, comoainda hoje fazemos.

É evidente que o poderiam rezar nou-tros momentos, mas aquela maneira de seexprimir mostra que o Pai Nosso tinha umlugar de relevo por si mesmo e não erausado, como hoje acontece, como maisuma forma de oração ao lado de outras,como hoje o Ave Maria; a forma do rosá-rio só havia de nascer muitos séculos maistarde.

A última súplica do Pai Nosso: “Li-vrai-nos do mal”, é desenvolvida noembolismo, isto é, precisamente numdesenvolvimento como a palavra signi-fica: “Livrai-nos de todo o mal, Senhor”.

O “pão nosso de cada dia nos daihoje” refere-se em primeiro lugar, ao pãoda nossa sustentação, mas colocado nestemomento da celebração, mesmo antes dacomunhão, esta oração orienta-se agorapara a comunhão como preparação para amesma, como igualmente a outra petição:“perdoai-nos como nós perdoamos”.

Não é só na missa que o Pai nossoentra na preparação da comunhão, mastambém na celebração da comunhão emSexta-Feira Santa, em que não há missa, eé bom que entre também sempre que sedistribua a comunhão fora da missa.

O embolismo que se segue ao PaiNosso vai ter a concluí-lo a aclamação:“Vosso é o reino e o poder e a glória parasempre”, que se encontra também já na

Didakhê com o mesmo sentido aclama-tivo. É uma bela aclamação que bemmereceria ouvir-se noutros momentos daoração cristã.

2. Rito da Paz

O Rito da paz compreende:a) uma oração que o introduz e que

faz compreender que a paz é, antes detudo, um dom de Deus à Igreja de Cristo:“dai-lhe a união e a paz” (à vossa Igreja).

b) o voto da paz: “a paz esteja con-vosco”;

c) a indicação à assembleia para quetroque entre si o sinal da paz: “Saudai-vosna paz de Cristo”;

d) o gesto da paz: este gesto da paznasceu num ambiente totalmente diferentedaquele em que hoje o fazemos. No tempode Tertuliano o gesto da paz fazia-se nãocomo preparação para a comunhão, mascomo conclusão da oração, como selo daoração, como signaculum orationis¸como assinatura da oração que acabamosde fazer, o que ainda hoje teria sentido.

Quanto ao próprio sinal com que se dáa paz, as Conferências Episcopais deter-minarão como se há-de fazer, tendo emconta a mentalidade e os costumes dos po-vos, mas é conveniente que cada um dê apaz com sobriedade apenas aos que estãomais perto de si.

Em várias igrejas, para encontrar umaforma ao mesmo tempo discreta e expres-siva de significar a paz que se transmite depessoa a pessoa, recorreu-se a um instru-mento, por vezes de grande valor artístico,o porta-paz, que passa de mão em mão e ébeijado por quem o apresenta e por quemo recebe, ao mesmo tempo que diz: “A pazseja contigo” ou outra fórmula semelhan-te; hoje praticamente já não é usado.

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O Missal não prevê nenhum cânticopara este rito da paz. O Cordeiro de Deus éum cântico que acompanha a fracção dopão e não o rito da paz.

3. A fracção do pão

É um dos nomes primitivos para de-signar a celebração da missa. Segundo anarração do Novo Testamento, Jesus to-mou o pão, partiu-o e deu-o. De partir vemfracção. Jesus tomou o pão e depois depronunciar a bênção sobre o pão partiu-o,e dando-o aos discípulos, disse: “Tomai,comei, isto é o meu corpo”. Os cristãos, aocelebrarem a Eucaristia repetiam o gestode Jesus. O partir do pão, que é o gestomais visível a abrir a refeição, passou achamar-se simplesmente: Fracção do pãoque veio a dar o nome a toda a celebração.Como se pode ler na passagem referidaaos discípulos de Emaús: “Eles reconhe-ram-n’O na fracção do pão” (Lc 24, 35).

O Missal faz assim a apresentaçãodeste momento: “O sacerdote parte o pãoeucarístico com a ajuda, se for oportuno,do diácono ou de um concelebrante. Ogesto da fracção praticado por Cristo naÚltima Ceia e que serviu para designarnos tempos apostólicos toda a acção euca-rística significa que os fiéis, apesar demuitos, se tornam num só corpo pela co-munhão do mesmo pão da vida que éCristo, morto e ressuscitado pela salvaçãodo mundo”.

Depois num pequeno gesto aparente-mente sem explicação, o sacerdote deitauma parte da hóstia no cálice para signifi-car “a unidade do Corpo e do Sangue doSenhor, na obra da salvação, isto é, doCorpo de Jesus Cristo vivo e glorioso”(IGMR, 83).

É este rito da fracção e da união doCorpo e Sangue (a commixtio) que éacompanhado do cântico do Cordeiro deDeus.

4. A comunhão

A Palavra do Senhor: Tomai e comei,tomai e bebei” encontra agora plena reali-zação e manifesta claramente que a cele-bração da eucaristia tem a forma de ceiado Senhor. A palavra ceia não está relacio-nada com a hora da celebração, como onome português podia lembrar, mas é atranscrição quase literal da palavra latinaCaena, que vem já de longa tradição, enem se vê que pudesse ser substituída pelonome que é dado em português à refeiçãoque varia conforme a hora em que é reali-zada.

“É muito para desejar que os fiéis, talcomo o sacerdote é obrigado a fazer, rece-bam o corpo do Senhor com hóstias consa-gradas na própria missa”, (IGMR, 85) semrecorrer ao sacrário, que, por natureza, é olugar da Reserva para dar a comunhãonoutras ocasiões; a presença do Senhor é amesma, mas a acção celebrativa não é amesma.

Nos casos previstos, os fiéis partici-pem também do cálice (cf. IGMR, 283).

“Enquanto o sacerdote toma o sacra-mento, dá-se inicio ao “canto da comu-nhão”, que deve exprimir, com a unidadedas vozes, a união espiritual dos comun-gantes, manifestar a alegria do coração erealçar melhor o carácter comunitário daprocissão daqueles que vão receber a Eu-caristia. O cântico prolonga-se enquantose ministra aos féis o sacramento. Procu-re-se também que os cantores possam co-mungar comodamente (cf. IGMR, 86).

“Se não se canta a antífona que vemno missal, esta pode ser recitada ou pelos

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fiéis ou por alguns deles ou por um leitor,ou então pelo próprio sacerdote depois deter comungado e antes de dar a comunhãoaos fiéis” (IGMR, 87).

“Terminada a distribuição da comu-nhão, o sacerdote e os fiéis, conforme aoportunidade, oram alguns momentos emsilêncio. Se se quiser, também pode sercantado por toda a assembleia um salmoou outro cântico de louvor ou um hino”(IGMR, 88).

5. Oração depois da comunhão

“Para completar a oração do povo deDeus e concluir todo o rito da comunhão,o sacerdote diz a Oração depois da comu-nhão que termina com a conclusão breve”(IGMR, 89); mas é mais uma anomalia daedição portuguesa do missal, que maisuma vez se afastou da edição latina; masvivemos ainda na esperança de que neste

ponto, como nalguns outros mais se venhaa encontrar ainda a devida solução, jávarias vezes proposta. E toda a oração seconclui com o Amen da assembleia, comoé habitual.

6. Ritos de conclusão

a) Avisos e notícias brevesb) Saudação e bênção do sacerdote,

que, sobretudo em ocasiões especiais,pode ser enriquecida e amplificada comuma oração sobre o povo ou outra fórmulamais solene de bênção.

c) Despedida da assembleia, feita pelodiácono ou pelo sacerdote;

d) Beijo ao altar por parte do sacerdotee do diácono, inclinação ao altar por partedo sacerdote e do diácono e dos outrosministros.

J. FERREIRA

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2. MAGISTÉRIO DA RENOVAÇÃOAO APROFUNDAMENTO

A fidelidade à renovação litúrgica doII Concílio do Vaticano e a continuidadeda Tradição eclesial nortearam a liturgianos 27 anos de pontificado de João PauloII, tanto na lex credendi (lei da fé, magisté-rio) como na lex orandi (lei da oração, ce-lebrações litúrgicas) e, sobretudo, na artede viver e celebrar o mistério de Cristo.

Ao levar a cabo a reforma e o incre-mento da liturgia, o Sumo Pontífice JoãoPaulo II realizou a finalidade da mesma,isto é, «fomentar a vida cristã entre osfiéis, adaptar melhor às necessidades donosso tempo as instituições susceptíveisde mudança, promover tudo o que podeajudar à união de todos os crentes emCristo, e fortalecer o que pode contribuirpara chamar a todos ao seio da Igreja»1. Adinâmica da reforma litúrgica é a da reno-vação na continuidade da Tradição daIgreja e a abertura ao legítimo progresso.A par das línguas nacionais inscreve-se asimplificação dos ritos conduzidos poruma nobre simplicidade e beleza.

Em ordem à prossecução da reformalitúrgica, J. Paulo II advertiu constante-mente para a importância dos princípiosorientadores da Constituição Sacrosanc-

O CONTRIBUTO DE JOÃO PAULO IIPARA A REFORMA LITÚRGICA

( II )

1 SC 1.2 JOÃO PAULO II, Vicesimus Quintus Annus (04.12.1988), n. 10.

tum Concilium, a saber: a actualização doMistério pascal; a leitura da Palavra deDeus; a manifestação da Igreja a si pró-pria.

Partindo destes princípios que devemreger a renovação da vida litúrgica, o Papaapontou para a etapa seguinte, isto é, apastoral e a espiritualidade litúrgicas:«Efectivamente a reforma da Liturgia pre-conizada pelo Concílio do Vaticano II jáse pode considerar posta em prática. Apastoral litúrgica, pelo contrário, constituitarefa permanente no intuito de haurircada vez mais abundantemente, na riquezada Liturgia, energia vital que, dimanandode Cristo, se difunde pelos membros doseu Corpo que é a Igreja»2. De facto, po-demos dizer que as novidades introduzi-das pela reforma litúrgica já foramimplementadas, dando lugar à fase dapastoral e da espiritualidade litúrgicas.

Consciente de que a liturgia deviacontribuir para a renovação global de todaa Igreja, o Papa afirmou: «Existe, efecti-vamente, uma ligação muito íntima e or-gânica entre a renovação da Liturgia e arenovação de toda a vida da Igreja. AIgreja não só age, mas também se exprimena Liturgia vive da liturgia e vai haurir naLiturgia as energias para a sua vida. (...) Etambém daqui por diante há-de ser nossa

JOÃO PAULO II E A LITURGIA

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particular solicitude promover e dar segui-mento à renovação da Igreja, segundo adoutrina do Concílio Vaticano II, no es-pírito de uma sempre viva Tradição»3. Areforma da liturgia não é um movimentoisolado. Esta interage com o movimentobíblico, o movimento ecuménico, o re-novado vigor missionário e com a investi-gação teológica, antes e depois do eventoconciliar. A renovação litúrgica aparece,em certo sentido, como o padrão e acondição para se porem em prática osensinamentos conciliares.

Em geral, a reforma litúrgica foi bemacolhida na Igreja de rito latino. Todavia,na aplicação concreta desta reforma, oPapa identificou algumas dificuldades,realçou alguns resultados positivos e refe-riu algumas aplicações erradas4. Quantoàs dificuldades e erros assinala a indife-rença de alguns no acolhimento dos novoslivros, a maneira unilateral e exclusiva narecepção da renovação por outros e as ino-vações fantasiosas realizadas. Por outrolado, o Santo Padre dá graças a Deus pelamesa da Palavra de Deus aberta a todos;pelo esforço das traduções da Bíblia, doMissal Romano e os demais livroslitúrgicos; pelo aumento da participaçãodos fiéis; pelos ministérios desempe-nhados por um número cada vez maior deleigos; pela vitalidade que irradia detantas comunidades cristãs.

A tal propósito, o Papa lembrou a to-dos os responsáveis do dicastério da Cúriaromana que promove a liturgia, o objec-tivo da reforma litúrgica: «quanto foirealizado pela vida litúrgica, tanto antesdo Concílio Vaticano II como no períododos trabalhos conciliares e depois da re-forma litúrgica, que deles derivou como

aplicação, era facilitar a assimilação do“espírito da liturgia” e, a partir dele, acompreensão das acções litúrgicas no seuvalor justo e essencial»5. O verdadeirosentido da liturgia é celebrar o mistério deCristo no mistério da Igreja, para glória deDeus e para a santificação dos homens.

Aquando da reforma da Cúria romanaatravés da Constituição apostólica Pastorbonus, o Santo Padre deu uma configura-ção nova à então chamada Congregaçãopara o culto divino. A Congregação pas-sou a designar-se Congregação para o cul-to divino e a disciplina dos sacramentos,com a missão de animar e de coordenar omunus santificandi na Igreja latina. A estaCongregação compete regular e promovera Liturgia, especialmente os sacramentos,vigiar sobre a disciplina sacramental eapoiar os diversos organismos que se de-dicam ao apostolado litúrgico, à música,ao canto e à arte sacra.

Em ordem ao futuro da renovação li-túrgica, o Papa J. Paulo II salientou que:«A Liturgia da Igreja ultrapassa muito areforma litúrgica. Não nos encontramosna mesma situação que se vivia em 1963;há uma geração de Sacerdotes e de fiéisque não chegaram a conhecer os livroslitúrgicos anteriores à reforma, sobre aqual incide a responsabilidade na Igreja ena sociedade. Por conseguinte, não sepode continuar a falar de mudança, comona altura da publicação do Documento,mas sim de aprofundamento cada vez maisintenso da Liturgia da Igreja, celebradasegundo os livros actuais e vivida, pri-meiro que tudo, como um facto de ordemespiritual»6. Da renovação ao aprofunda-mento, eis o impulso para o futuro da pas-toral e espiritualidade litúrgicas.

3 JOÃO PAULO II, Carta Dominicae Cenae (24.02.1980), n. 13.4 Cf. JOÃO PAULO II, Vicesimus Quintus Annus (04.12.1988), nn. 11-13.5 JOÃO PAULO II, «Audiência à assembleia plenária da Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramen-

tos», Osservatore Romano, edição portuguesa 20 (1996) 5.6 JOÃO PAULO II, Vicesimus Quintus Annus (04.12.1988), n. 14.

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O progresso na renovação implica, porsua vez, a formação bíblica e litúrgica dospastores e dos fiéis, a começar nos Semi-nários e casas de formação até chegar àscomunidades paroquiais e aos vários gru-pos cristãos. Quanto a este aspecto, o Papareconhece que «onde os responsáveis es-tabeleceram uma boa catequese sobre ostemas fundamentais e sempe recorrentesna celebração litúrgica, tais como a his-tória da salvação, o mistério pascal, aaliança, os vários modos da presença deCristo na liturgia, o sacerdócio de Cristo,o sacerdócio ministerial e o comum, etc.,os fiéis puderam progredir de modo sensí-vel na compreensão dos conteúdos da fé,dela tirando motivo para aquele amadure-cimento cristão que o contexto sócio-cul-tural hodierno exige com urgência cadavez maior»7.

Se já muito se fez depois do II Con-cílio do Vaticano para viver o sentidoautêntico da liturgia, falta ainda muito porfazer. O grande esforço de formação e derenovação tem como finalidade favorecera compreensão do verdadeiro sentido dascelebrações da Igreja, através de uma mis-tagogia litúrgica e da participação activa econsciente dos fiéis. Daí a interpelação dosucessor de Pedro «é urgente que se reavi-ve na Igreja o autêntico sentido daliturgia»8. A liturgia é, com efeito, um ins-trumento de santificação na celebração dafé da Igreja. Ela constitui, juntamente coma Sagrada Escritura e os ensinamentos dosPadres da Igreja, uma fonte de sólida everdadeira espiritualidade cristã.

De um conceito assim da liturgiaemerge “o estilo sacramental da vida docristão”: «Efectivamente, levar uma vida

baseada nos Sacramentos, animada pelosacerdócio comum, quer dizer, antes demais nada, da parte do cristão, desejar queDeus actue nele para o fazer chegar no Es-pírito “à plena estatura de Cristo”. E Deus,da Sua parte, não o toca somente atravésdos acontecimentos e com a sua graçainterna, mas age nele, com maior certeza evigor, através dos Sacramentos. Estesconferem à vida do cristão um estilo sa-cramental»9. A liturgia é, portanto, o lu-gar dos sacramentos e a sua celebraçãofunciona como pedagogia da fé e da expe-riência cristã. Na verdade, a fé que se cele-bra nas acções litúrgicas é a mesma que éformulada pela teologia.

O Santo Padre deu um grande relevo àcelebração dos sacramentos, especial-mente à Eucaristia e à Reconciliação. Elemesmo testemunhou que «o momentomais importante e mais sagrado é a cele-bração da Eucaristia. É dominante emmim a consciência de celebrar no altar inpersona Christi. (...) A Santa Missa é demodo absoluto o centro da minha vida e decada um dos meus dias»10. Ao mesmotempo, promoveu também outras formasde oração comunitaria, como o culto euca-rístico fora da Missa; a celebração pessoale comunitária da Liturgia das Horas e asua ligação com o mistério eucarístico; apiedade popular a «ser vivida sempre deharmonia com a liturgia da Igreja e em co-nexão com os sacramentos»11; o domingo,dia do Senhor.

Entre as prioridades pastorais para onovo milénio, João Paulo II apontou a san-tidade, a oração, a Eucaristia dominical, osacramento da Reconciliação, o primadoda graça, a escuta da Palavra e o anúncio

7 JOÃO PAULO II, Dircurso aos Presidentes e secretários das comissões nacionais de liturgia, no XX aniversário daConstituição Sacrosanctum Concilium, Osservatore Romano, edição portuguesa 45 (04.11.1984), 3.

8 JOÃO PAULO II, Ecclesia in Europa (28.06.2003), n. 70.9 JOÃO PAULO II, Carta Dominicae Cenae (24.02.1980), n. 7.10 JOÃO PAULO II, Testemunho (27.10.1995), n. 3.11 JOÃO PAULO II, Ecclesia in Europa (28.06.2003), n. 79.

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da Palavra12. A liturgia é interpelada di-rectamente pela nova evangelização, pelodesafio da arte “mistagógica”, pela redes-coberta do valor do silêncio, pela ousadiada oração da Liturgia das Horas13. A esterespeito, o Papa lançou uma proposta:«A ideia de um dia da comunidade cristã,em que se conjuguem, os múltiplos com-promissos pastorais e de testemunho nomundo, com a celebração eucarística emesmo com a reza de Laudes e Vésperas,é talvez mais “pensável” do que se crê»14.Aprender esta arte de rezar é entrar dentrodo mistério da liturgia como meta e fonteda vida eclesial.

Outro elemento importante a conside-rar é a adaptação da Liturgia às diferentesculturas. Primeiro foi a adaptação das lín-guas, passando à adaptação dos ritos, mas«A adaptação às culturas exige também aconversão do coração e, se for necessário,até a ruptura com hábitos ancestrais in-compatíveis com a fé católica»15. O vastocampo da inculturação litúrgica continua areclamar um maior cuidado e atenção detodos os agentes pastorais.

O Papa salienta ainda problemas no-vos e importantes, como por exemplo: odiaconado permanente, as funçõeslitúrgicas confiadas aos leigos, as cele-brações litúrgicas para as crianças, paraos jovens e os deficientes. Por fim, pedeque se tenha em consideração a piedadepopular cristã e a sua relação com a vidalitúrgica16. Para tal propõe que as formaspopulares sejam valorizadas com o devidodiscernimento e que se eduque para asformas litúrgicas.

A quarenta anos da SacrosanctumConcilium o Papa expressa o grande de-sejo da passagem de uma pastoral litúrgicaa um verdadeira espiritualidade liturgica:«Que este início de milénio se desenvolvauma “espiritualidade litúrgica”, que leveas pessoas a tomarem consciência deCristo como o primeiro “liturgo”, quenão cessa de agir na Igreja e no mundo,em virtude do Mistério pascal continua-mente celebrado, e associa a Si mesmo aIgreja para louvor do Pai, na unidade doEspírito Santo»17.

As realidades fundamentais para aespiritualidade litúrgica, operada pelorenovamento litúrgico do II Concílio doVaticano são, entre outras, o uso dos Sal-mos, a frequência da leitura da Bíbliacomo lectio divina, a experiência de umaassembleia orante, o conhecimento e afamiliaridade com os grandes textos dosPadres da Igreja e dos escritores eclesiás-ticos. A espiritualidade litúrgica é a espiri-tualidade cristã, porque esta não pode serassim chamada a não ser por via sacra-mental.

Por fim, qual a resposta para a grandequestão: «É vivida a liturgia como “fonte ecume” da vida eclesial, segundo o ensina-mento da Sacrosanctum Concilium?»18.Respondendo ao desafio, João Paulo IIpropôs que a pedagogia renovadora davida litúrgica seguisse um itinerário desdea reforma litúrgica do II Concílio do Vati-cano até à pastoral e à espiritualidadelitúrgicas.

JOSÉ CORDEIRO

12 JOÃO PAULO II, Novo Millenio Ineunte (06.01.2001), nn. 38-55.13 Cf. JOÃO PAULO II, Spiritus et Sponsa (04.12.2003), n. 11-15.14 JOÃO PAULO II, Novo Millenio Ineunte (06.01.2001), n. 34.15 JOÃO PAULO II, Vicesimus Quintus Annus (04.12.1988), n. 16.16 JOÃO PAULO II, Vicesimus Quintus Annus (04.12.1988), n. 17-18.17 JOÃO PAULO II, Spiritus et Sponsa (04.12.2003), n. 16.18 JOÃO PAULO II, Tertio Millennio Adveniente (10.11.1994), n. 36.

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CATEQUESES PARA A CONFIRMAÇÃO

Um Ritualpreocupado com a Catequese

O Capítulo IV do Ritual da IniciaçãoCristã dos Adultos (= RICA) tem um títulolongo – “Preparação para a Confirmaçãoe para a Eucaristia dos adultos que, bap-tizados em criança, não receberam cate-quese”.

Conheço-o bastante bem. Em teoria,porque o ensinei, como professor deliturgia, ao longo de vários anos, primeironum Seminário Maior e depois num Insti-tuto Superior de Teologia de uma das nos-sas dioceses. Na prática, porque muitasvezes, como pároco, me tenho servidodele para organizar as celebraçõeslitúrgicas que acompanham as catequesesdesses mesmos adultos.

Um Ritual é um livro litúrgico e nãoum catecismo. O que nele encontramos,de maneira ordenada, são os vários ritosde cada celebração (p. ex. do Baptismo, doMatrimónio, das Exéquias), e não asrespectivas catequeses. Curiosamente,porém, o Capítulo IV do RICA dedicamais espaço e atenção à organização dascatequeses destes adultos, do que aos ritoslitúrgicos que as acompanham. Mais pare-ce um “directório” catequético do que um“ritual”.

É que a maior dificuldade, quando sepensa na preparação desses adultos, nãoé a liturgia das celebrações mas as cate-queses a dar-lhes. Os ritos litúrgicosvêm sugeridos no Ritual, ao passo que

as catequeses há que prepará-las. Eraassim quando o Ritual apareceu e conti-nua a ser assim ainda hoje.

Um capítulo de sugestões pastorais

O Capítulo de que estamos a tratar temum conjunto de sugestões pastorais, e co-meça por uma observação, que vem muitoa propósito, num livro que, nos três pri-meiros capítulos, fala sempre de catecú-menos: Embora estes adultos não tenhamainda ouvido o anúncio do mistério deCristo, todavia a sua condição difere dacondição dos catecúmenos (n. 295). Por-quê? Porque os catecúmenos ainda não re-ceberam o Baptismo, ao passo que estesadultos já o receberam, e isso tem de sertido em conta nas catequeses a prepararpara eles e nas celebrações litúrgicas emque vierem a tomar parte.

Digo catequeses a preparar, porqueelas não existem preparadas. Catequesespensadas para eles, e que tenham em contaas orientações do RICA, não as conhece-mos, apesar de já terem passado algunsanos após a promulgação deste livrolitúrgico.

A primeira dessas orientações diz res-peito ao tempo a dedicar a esta catequese:A preparação destes adultos exige umtempo prolongado (n. 296). Será que ummês, dois meses ou mesmo seis, como porvezes se faz, poderão considerar-se umtempo prolongado?

CATEQUESE

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Os adultos preocupam-se com otempo que as coisas demoram, as da vidasocial e as da Igreja (missa, casamento,catequese). E compreende-se porquê. Porisso julgamos que ano e meio é um tempoequilibrado para esta preparação, tendoem conta que ela se interrompe nas fériasdo Natal, da Páscoa e do Verão. Se as cate-queses forem semanais, em ano e meiohaverá cerca de 35 semanas úteis e, por-tanto, outras tantas catequeses. Na hipó-tese de uma paróquia começar a catequesepara a Confirmação em Novembro de2006 (o mês de Outubro é para as ins-crições e a preparação do primeiro ma-terial), o sacramento poderá ser celebradoa partir de Abril ou Maio de 2008.

Este “tempo prolongado” tem umobjectivo: permitir que a fé, infundida noBaptismo, cresça nesses adultos, até atin-gir a maturidade, e se imprima nelesatravés da formação pastoral que lhes édada (n. 296). O crescer exige tempo, e amaturidade não se atinge em dois ou trêsmeses. Além disso, não se imprime nadano ser profundo de uma pessoa só com pa-lavras. É indispensável fazer a experiênciada vida paroquial e da graça divina. E tudoisso precisa de tempo.

Formação pastoral

O RICA fala de “formação”. Formarum cristão é dar forma, é organizar, é im-primir qualidades, a partir da visão domundo e do homem que Jesus propôs aosseus discípulos. Hoje há muitas verdades,como há muitos valores, e, portanto, tam-bém há muitos mestres. Mas um só é sin-cero, e ensina o caminho de Deus segundoa verdade, sem se deixar influenciar porninguém, pois não olha à condição das

pessoas (cf. Mt 22, 16). Esse mestre éCristo. As catequeses para os adultosbaptizados em criança têm de ter comoobjectivo fazer de cada candidato à Con-firmação e à Comunhão um discípulo,melhor direi, um amigo de Cristo. Semisso, nada feito.

Essa formação deve ser “pastoral”,palavra que vem de pastor, e que implicatrabalho coordenado e em conjunto, impli-cando o pároco, a comunidade, os cate-quistas e os candidatos. Não fora, nem aolado, mas dentro de uma comunidade eorientado para a vida em comunidade.Nada disto é novo. Está no Evangelho. Foiassim que Jesus pensou, ensinou e fez. Oseu modelo é um desafio à criatividade e àfidelidade. Criatividade porque é precisoestar atento aos valores do homem dehoje; fidelidade porque a fé é um dom deDeus transmitida, pela Igreja, desde Cristoaté hoje, e da qual nenhum catequista édono, mas simples despenseiro, pessoaque o dicionário define como aquele quedistribui os dons da generosidade alheia.

A catequese destes adultos, diz o Ri-tual, deve ser acomodada ao seu caso(n. 296), que é como quem diz, não háduas propostas catequéticas exactamenteiguais para eles. Esta frase incitou-me aescrever uma série de catequeses, com opensamento naqueles e naquelas paraquem o fazia, em linguagem o mais sim-ples possível. A ideia que passou a guiar--me foi esta: cada grupo terá de ter umcatequista, mas o primeiro catequista éaquele que escreve a catequese. Ele devefazê-lo de tal modo, que o seu texto possaser lido e entendido, à primeira vista e semdificuldade, pelo catequista e pelo grupo.

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Catequeses bíblicas

Mas, ao escrever essas catequeses, eutinha ainda outro objectivo a atingir. Que-ria ajudar estes adultos a familiarizarem-se com a Bíblia. Tomei então a decisão deque tudo o que viesse a escrever fossejustificado e iluminado pela palavra deDeus, como vem na Bíblia. As iniciais TP(= trabalho prático), que aparecem em to-das as lições, significam que cada citaçãobíblica pressupõe um trabalho a realizarpelos catequizandos: o de procurarem, le-rem e entenderem o sentido do texto, talcomo vem na Bíblia, ajudados pelo cate-quista, mas nunca substituídos por ele.Essa é a razão pela qual nas catequesesquase nunca se transcreve a palavra deDeus. Procurar a citação, ver o texto comos próprios olhos, reparar onde ele seinsere, é uma iniciação indispensável efrutuosa.

Agora que estão escritas e já foramdadas 36 catequeses, penso que é essa asua maior riqueza. A Bíblia continua a ser,para os cristãos do século XXI como o foipara os judeus de há muitos milhares deanos, o livro dos livros, o livro da históriade Deus que falou aos homens. Essas “fa-las” não são apenas para citar, mas paraserem vistas e lidas pelos fiéis, a partir daBíblia. Nenhuma catequese pode prescin-dir deste trabalho prático, que levará osadultos a gostar de ler a palavra de Deusdessa maneira.

Para que isto fosse possível, nas duasparóquias para as quais preparei as cate-queses, cada candidato trazia de casa a suaBíblia. Os que já tinham uma, qualquerque fosse a sua edição, não precisaram deoutra; aos que ainda a não tinham, foi-lhespedido que adquirissem uma.

No início de cada lição ou catequese,era-lhes entregue uma folha A4, dobrada

ao meio, com o texto que ia sendo pre-parado, semana após semana.

É este texto que damos a conhecer, apartir de agora, aos leitores do Boletim dePastoral Litúrgica, e que foi sendo publi-cado com o título genérico de GUIÕES PARA

PEQUENOS GRUPOS NO SEIO DA PARÓQUIA.

Catequese semanal,missa dominical

e celebrações litúrgicas próprias

A preparação para a Confirmação e aEucaristia não se faz só na catequese, por-que não se trata apenas de aprender coisas,mas também de receber sacramentos, eisso não acontece na catequese, mas naliturgia. Essa é a razão pela qual é precisoajudar os candidatos a criarem hábitos departicipação na Eucaristia dominical. Nãohá melhor forma de um adulto se prepararbem para o Crisma e a Comunhão do queparticipar na celebração da missa domi-nical. É esse o caminho que o levará adescobrir e a afirmar que para si a missanão é obrigação, mas uma necessidadeimperiosa. Sem ela não há vida cristã,mesmo depois de recebida a Confirmação.

A presença desses adultos, que já re-ceberam o Baptismo mas ainda estão acaminho dos outros dois sacramentos dainiciação cristã, é óptima para fazer, a todaa comunidade, uma catequese que a ajudea tomar consciência de várias coisas: deque o Baptismo não é tudo na vida de umcristão, de que há cristãos baptizados naassembleia e que participam na Comu-nhão sem terem sido ainda confirmados, ede que há outros que estão a ser catequiza-dos para receberem a Confirmação e a Eu-caristia. Descobrir estas várias situações,compreendê-las e orientar-se para aquilo

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que a Igreja apresenta como o ideal, é amelhor formação que se pode dar a umacomunidade, para que a cultura cristã dosseus membros os leve a confessar interiore exteriormente que Jesus Cristo é o Se-nhor, para glória de Deus Pai, sempredispostos a dar a razão da sua esperançaa todo aquele que lha peça (1 Pe 3, 15).

Mas o caminho dos sacramentos temvários carreiros de aproximação, que sãoos ritos e as celebrações litúrgicas quepara eles preparam os candidatos, e que oRitual distribui, de maneira organizada eprogressiva, ao longo do todo o tempo dapreparação, como iremos ver a seguir.

Catequeses que têm em contaos ritos litúrgicos

Os ritos litúrgicos propostos peloRICA para os adultos baptizados emcriança são em menor número do que ossugeridos para os catecúmenos. No casodestes adultos o Ritual fala apenas emparticipação em certos ritos litúrgicos (n.296).

Quais são esses ritos? Vamosenumerá-los, pela ordem em que o Capí-tulo IV os indica (nn. 299-305):

1. apresentação à comunidade por umgarante:

2. rito de acolhimento na comunidade ede reconhecimento, por parte dessesadultos, de que fazem parte dela, umavez que já foram assinalados peloBaptismo;

3. escolha de um padrinho por parte decada candidato;

4. participação em celebrações daliturgia da palavra destinadas à assem-bleia dos fiéis (missa dominical) enoutras mais directamente destinadasaos catecúmenos;

5. sendo oportuno, lançar mão de algunsritos próprios do catecumenado, comosão as tradições do Símbolo, da Ora-ção dominical e até dos Evangelhos;

6. organização de celebrações peniten-ciais que conduzirão à celebração dosacramento da Penitência;

7. participação na Vigília pascal, em queos adultos fazem a profissão de fé bap-tismal, e recebem os sacramentos daConfirmação e da Eucaristia;

8. tempo da mistagogia a viver em con-junto com os neófitos.

As Catequeses que vão seguir-se irãotê-los em conta. Por meio desses ritoslitúrgicos a Igreja ajuda estes adultos nasua caminhada.

Agora que estes cerca de cem adultosreceberam O Espírito Santo, o Dom deDeus, há que incentivá-los a responderemcom generosidade e alegria ao amor deDeus que foi derramado nos seus coraçõespelo mesmo e único Espírito. Esse é umtrabalho que nunca estará terminado.

JOSÉ DE LEÃO CORDEIRO

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PREPARAÇÃO PARAA CONFIRMAÇÃO E A EUCARISTIA

1

A Bíblia, O Livro dos Livros

CONFIRMAÇÃO

1. Oração inicial(a dizer por todos, em conjunto)

Ao iniciarmos a nossa preparaçãopara o Crisma e a Eucaristia,nós Vos pedimos, Senhor,a graça de conhecer e amar a Bíblia,e de acreditarque as palavras que ela contémforam ensinadas por Vós,para nossa instrução.

Pai Nosso...

2. IntroduçãoO assunto da nossa primeira lição vai

ser a Bíblia. Uma vez que nos vamos ser-vir muito dela, é natural que lhe dedique-mos esta catequese, não só para ficarmos asaber algumas coisas básicas a seu respei-to, mas também para aprendermos a en-contrar, neste livro de tantas páginas, ostextos que irão ser citados nas lições.

É natural que algumas pessoas do gru-po saibam mais coisas sobre este livro outenham mais facilidade em servir-se deledo que outras. Cada qual sabe o que sabe.

Se sabe muito, dê graças a Deus; se sabepouco, vai ter ocasião de aprender algomais. Aquele que sabe mais, esteja dispos-to a ajudar quem sabe menos, com toda asimplicidade. Aqui não é como na volta aPortugal em bicicleta, onde cada corredorprocura cortar a meta em primeiro lugar,ou como no futebol, onde os clubes tudofazem para ganhar o campeonato ou ataça. Nós, pelo contrário, o que pretende-mos é caminhar em grupo. No fim da cor-rida, queremos cortar a meta em conjunto.O prémio, isto é, o dom de Deus será omesmo para todos: os sacramentos doCrisma e da Comunhão.

Vamos lembrar coisas muito simplessobre este livro feito de livros, no qual seencontra, segundo a fé dos judeus e doscristãos, a revelação de Deus.

Embora escrito por homens, foi ins-pirado por Deus. Ele é, por isso, o nossolivro sagrado. Não o devemos tratar dequalquer modo. Ele não é um livro igualaos outros. É feito de papel e tinta, mas oseu valor é diferente do valor de outroslivros.

Siglas utilizadas nas lições: P = Per-gunta; TP = Trabalho prático.

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3. A Bíbliaé um conjunto de livrosA Bíblia é, para os judeus e para os

cristãos, o mais importante dos livros. Nãoapenas por conter a palavra de Deus, mastambém pela sua própria organização econteúdo. Trata-se de uma verdadeirabiblioteca.

Estamos habituados a olhar para aBíblia como um só livro, pois é assim queela se apresenta nas suas edições. Mas averdade é que se trata de uma colecçãode livros encadernados num só volume.Bíblia significa os livros, ou livro feito demuitos livros (P: Porque é que a Bíblia éum livro muito importante?).

4. As duas partes da Bíblia

A Bíblia divide-se em duas grandespartes. Nós, os cristãos, chamamos AntigoTestamento à primeira, ou seja, a tudo oque foi escrito antes de Jesus nascer, eNovo Testamento à segunda, ou seja, aoque foi escrito depois da morte e Ressur-reição de Jesus (TP: Cada qual abre a suaBíblia e identifica as duas partes).

O conteúdo da Bíblia judaica não éigual ao da Bíblia cristã. A Bíblia judaica éapenas aquilo que nós chamamos AntigoTestamento. A Bíblia cristã, além do An-tigo Testamento tem também o Novo Tes-tamento (TP: Exemplificar as dimensõesda Bíblia judaica e da Bíblia cristã).

O Novo Testamento é muito mais pe-queno do que o Antigo, e divide-se emduas partes: os Evangelhos e os outros li-vros do Novo Testamento. Quais são esseslivros? São os Actos dos Apóstolos, asCartas de São Paulo, as Cartas dos outrosApóstolos e o Apocalipse (TP: Ver a or-dem e o nome dos Evangelhos).

A Bíblia está traduzida na maiorparte das línguas que se falam em todo omundo. Mas a língua original do AntigoTestamento é o hebraico e a do Novo Tes-tamento é o grego. Em cada língua hávárias traduções da Bíblia (TP: Ler, emBíblias diferentes, as várias traduções deGénesis 1, 1).

5. Aprendera gostar da BíbliaComo é que se chega a gostar de um

alimento? Provando-o, saboreando-o.Como é que se aprende a gostar de umapessoa? Falando com ela, admirando oque ela faz bem feito, descobrindo os seusencantos, deixando-se cativar por aquiloque ela diz, por aquilo que ela faz, por elaprópria.

Como é que se chega a gostar da Bí-blia? Abrindo-a, lendo-a com fé, sabore-ando-a, descobrindo cada dia mais coisassobre ela, aplicando a si mesmo aquilo queela diz. Todos devemos aprender a gostarassim da Bíblia. Todos devemos gostarde aprender algo mais sobre este livromaravilhoso. Aprende-se muito lendo asvárias introduções que nela vêm. Mas,sobretudo, aprende-se muito lendo-a pes-soalmente e fazendo-o como quem reza(TP: Vamos ver quais são as introduçõesdas várias Bíblias antes do Livro do Géne-sis).

6. Breve apresentaçãoda Bíblia6.1 O Antigo Testamento

O Pentateuco

A palavra Pentateuco quer dizer con-junto dos cinco primeiros livros da Bíblia

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(TP: Abrir a Bíblia e procurar esses cincolivros, que são: Génesis, Êxodo, Levítico,Números e Deuteronómio).

Os livros históricos

A seguir vêm catorze livros que con-tam a história de Israel desde a conquistada Terra Prometida até quase à época deJesus (TP: Ver esses catorze livros, que sechamam: Josué, Juízes, Rute, Primeiro li-vro de Samuel, Segundo livro de Samuel,Primeiro livro dos Reis, Segundo livro dosReis, Primeiro livro das Crónicas, Segun-do livro das Crónicas, Esdras, Neemias,Tobias [ou Tobite], Judite, Ester, Primeirolivro dos Macabeus, Segundo livro dosMacabeus).

Os livros sapienciais

A palavra sapiência quer dizer sabedo-ria. Os livros sapienciais da Bíblia sãosete: cinco em prosa e dois em verso. Aordem pela qual vêm na Bíblia nem sem-pre é a mesma (TP: Ver esses livros que sechamam: Job, Salmos, Provérbios, Ecle-siastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria,Ben Sirá [ou Eclesiástico].

Os livros proféticos

Chamam-se assim porque cada um de-les é atribuído a um profeta. Os livros pro-féticos são dezoito e os profetas também.Há quatro “profetas maiores” e catorze“profetas menores” (TP: Ver esses livrosque se chamam: Isaías, Jeremias, Lamen-tações, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oseias,Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias,Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacari-as, Malaquias).

6.2 O Novo Testamento

Os Evangelhos

“Evangelho” quer dizer “Boa Nova”ou “Boa Notícia” trazida por Jesus aos ho-mens. Essa “Boa Nova” é uma só, masapresenta-se em quatro versões, que sãoos quatro Evangelhos, cada um deles es-crito por um autor (TP: Ver os Evangelhossegundo São Mateus, São Marcos, SãoLucas e São João).

Os Actos dos Apóstolos

Os “Actos dos Apóstolos” são a conti-nuação dos quatro Evangelhos e a maisantiga história da Igreja. Falam-nos damaravilhosa implantação das Igrejas deCristo dum extremo ao outro do impérioromano (TP: Ver o livro dos Actos dosApóstolos).

As Cartas de Paulo

As “Cartas de Paulo” foram ditadaspor ele, e dirigem-se quer às Igrejas porele fundadas ao longo das suas viagensapostólicas, quer a pessoas suas conhe-cidas. No total são treze (TP: Ver essasCartas: Carta aos Romanos, PrimeiraCarta aos Coríntios, Segunda Carta aosCoríntios, Carta aos Gálatas, Carta aosEfésios, Carta aos Filipenses, Cartaaos Colossenses, Primeira Carta aosTessalonicenses, Segunda Carta aosTessalonicenses, Primeira Carta a Ti-móteo, Segunda Carta a Timóteo, Cartaa Tito, Carta a Filémon).

A Carta aos Hebreus

O autor da “Carta aos Hebreus” édesconhecido. Tudo indica que seja umahomilia, e não propriamente uma carta.

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Não tem endereço (TP: Ver a Carta aosHebreus).

As Cartas Católicas

As “Cartas Católicas” são Cartas Uni-versais, ou seja, Cartas dirigidas a todosos cristãos e não, como as de Paulo, a umaIgreja concreta. São sete (TP: Ver essasCartas: Carta de São Tiago, PrimeiraCarta de São Pedro, Segunda Carta deSão Pedro, Primeira Carta de São João,Segunda Carta de São João, Terceira Car-ta de São João, Carta de São Judas).

O Apocalipse

O “Apocalipse” é o último livro da Bí-blia. Apocalipse quer dizer Revelação. Éuma série de visões para reconfortar a

Este curso de preparaçãopara a Confirmação e a Eucaristiacontinua nos próximos números

Igreja perseguida (TP: Ver o Livro doApocalipse).

7. Capítulos e versículosCada um dos livros da Bíblia que

acabamos de nomear e que cada um de vósfoi convidado a ver, está dividido em capí-tulos e estes, por sua vez, em versículos.É muito importante saber procurar osdiversos livros da Bíblia e os respectivoscapítulos e versículos (TP: Vamos abrir oúltimo livro da Bíblia, que se chama Apo-calipse, e ler o versículo 1 do capítulo 1;a seguir ler o versículo 21 do último capí-tulo, que é o 22).

JOSÉ DE LEÃO CORDEIRO

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Dissertando sobre o tema, na facul-dade de teologia de Nápoles, em 23 deNovembro de 2003, Mons. Piero Marini,cerimoniário do Papa, deu-nos conta nãosó de quanto a beleza é necessária àliturgia, de que beleza se trata mas, sobre-tudo, da sua própria experiência profundaao serviço da liturgia papal. A proximida-de das celebrações natalícias provoca-nosa reflectir sobre o tema, e incita-nos a tudofazer para que, nas nossas celebrações,transpareça essa beleza única que é o Mis-tério de Cristo que enche a liturgia. Passa-mos a transcrever algumas passagens daconclusão da referida conferência.

“A beleza da liturgia, pois, é antes demais a beleza da simplicidade e do amordo gesto de Cristo, mas é também a belezados nossos gestos e a beleza dos sinais edos elementos da criação que a liturgiaordena e harmoniza no tempo e no espaço.A beleza da liturgia é a ordem que alcançacriar em nós, nas nossas relações com osnossos irmãos, a ordem que conseguecriar na nossa relação pessoal com Deus.A beleza da liturgia é qualquer coisa quenos ultrapassa. Não é a que se impõe subi-tamente à atenção, que se faz ver atravésdos gestos, dos sinais e dos elementos ma-teriais, mas sobretudo a beleza que elesdeixam transparecer. Com efeito, é maisuma beleza que transparece que uma bele-za que se vê. Se queremos ter uma bela

liturgia, devemos deixar-nos guiar pelaprópria liturgia, pelo seu espírito, pelassuas normas.

A beleza da liturgia exige sempre al-guma renúncia da nossa parte: renúncia àbanalidade, à fantasia, ao capricho. Mais,importa dar à liturgia o tempo e o espaçoque ela precisa. Não se deve ter pressa.Mais que à nossa iniciativa, importa con-ceder a Deus a liberdade de nos falar e denos reunir pela sua Palavra, oração, ges-tos, música, canto, luz, incenso, perfumes.A liturgia, como uma composição musi-cal, tem necessidade de espaço, de tempo,de silêncio, de despojamento de nós mes-mos, para que as palavras, os gestos e ossinais nos possam falar de Deus...

a) A participação activa. Na primeirafase de execução da reforma, a partici-pação tomou um aspecto principalmenteexterior e didáctico, degenerando, de se-guida, frequentemente, numa espécie departicipação a todo o preço e sob todas asformas. A liturgia não é a soma das emo-ções de um grupo, nem, muito menos, oreceptáculo de sentimentos pessoais. Ésobretudo um tempo e um espaço para in-teriorizar as palavras que nela se escutame os sons que se ouvem, para nos apro-priarmos dos gestos que se realizam, paraassimilarmos os textos que se recitam e secantam, para nos deixarmos penetrar pelas

A BELEZA DA LITURGIA

A BELEZA

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imagens que se observam e pelos perfu-mes que se sentem.

b) A presidência litúrgica. A qua-lidade dos sinais exige sobretudo a quali-dade da presidência da celebração. O quepreside perante a assembleia não é apenasolhado, mas é também aprovado e julgadono exercício da função que exerce in per-sona Christi ou, se se quiser, como “íconede Cristo”, no Espírito Santo. Entretanto,esta presidência não pode ser exercidasem ter em conta a qualidade da assem-bleia e sem ser capaz de responder às aspi-rações do Povo de Deus. Com efeito,quem preside, preside também de certomodo, in persona Ecclesiae. Fugindo atoda a espécie de protagonismo, o padre,modelado pelo autêntico espírito daliturgia, presidirá à Sinaxe como “aqueleque serve” (Lc. 22, 27), à imagemd’Aquele de que é o pobre sinal. Também,a qualidade da presidência litúrgica, nasua forma mais alta e mais fecunda, estarámuito para lá de uma simples arte de presi-dir, de um puro savoir-faire, de modo atornar-se princípio de comunhão, na cons-ciência interior de que o conjunto dosdons do Espírito Santo se encontra unica-mente no conjunto da Igreja.

c) A beleza e a dignidade do culto.No começo do terceiro milénio, importadar a imagem de uma Igreja que celebra,que reza, que vive o Mistério de Cristo, nabeleza e na dignidade da celebração. Umabeleza que não é apenas formalismo esté-tico, mas que está fundada sobre a “nobresimplicidade”, capaz de manifestar a rela-ção entre o humano e o divino da liturgia.Trata-se do dinamismo da Incarnação: oque o Filho único, cheio de graça e de ver-dade, fez de modo visível, passou para ossacramentos da Igreja. A beleza devetransparecer a presença de Cristo no cen-tro da liturgia: poderá ser tanto mais evi-dente quanto mais se possa apreender, nascelebrações, a contemplação, a adoração,a gratuidade e a acção de graças...

A liturgia continuará deste modo, gra-ças também à sua beleza, a ser fonte ecume, escola e norma da vida cristã”.

SECRETARIADO DIOCESANO DE LITURGIA DO PORTO

Voz Portucalense, nº 46 – 22 de Dezembrode 2004

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A RECONCILIAÇÃOE A BELEZA DE DEUS

Carta pastoral de Bruno Forte,arcebispo de Chieti-Vasto,

para o ano pastoral 2005-2006

Tentemos compreender juntos o que éa confissão: se alguém o conseguir deverdade, com a mente e com o coração,sentirá a urgência e a alegria de fazer a ex-periência deste encontro, no qual Deus,dando-lhe o seu perdão através do minis-tro da Igreja, cria no homem crente um co-ração novo e lhe infunde um Espíritonovo, para que possa viver uma existênciareconciliada com Ele, consigo mesmo ecom os outros, tornando-o, por seu lado,capaz de perdoar e amar, para além dequalquer tentação de desconfiança ecansaço.

1. Porquê confessar-se?

Entre as perguntas que o meu coraçãode bispo se põe a si mesmo, escolhouma que me fazem sempre: porquê con-fessar-se? É uma pergunta que se formulade muitos modos: porquê ir até junto deum sacerdote para lhe dizer os própriospecados e não o fazer directamente aDeus, que nos conhece e compreendemuito melhor que qualquer interlocutorhumano? E, de maneira mais radical:

A CONFISSÃO

porquê falar das minhas coisas, especial-mente daquelas de que me envergonho atécomigo mesmo, a alguém que é pecadorcomo eu, e que talvez valorize de modocompletamente diferente de mim a minhaexperiência pessoal, ou que a não com-preende totalmente? Que sabe ele doque é pecado para mim? Alguém acres-centa: além disso, será que existe verda-deiramente o pecado, ou trata-se apenasde uma invenção dos padres para que noscomportemos bem?

A esta última pergunta creio poderreplicar de imediato e sem temor de queme desmintam: o pecado existe, e não só émal, como faz mal. Basta olhar para ocenário quotidiano do mundo, onde seacumulam violências, guerras, injustiças,abusos, egoísmos, ciúmes e vinganças(p. ex. os “boletins de guerra” que nos sãodados diariamente pelas notícias dosjornais, rádio, televisão e internet). Alémdisso, quem acredita no amor de Deus,percebe que o pecado é amor voltado parasi mesmo (“amor curvus”, “amor fecha-do”, diziam os medievais), ingratidão dequem responde ao amor com a indiferença

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e a rejeição. Esta rejeição tem consequên-cias não só em quem a vive, mas tambémem toda a sociedade, até produzir con-dicionamentos e entrelaçamentos deegoísmos e de violências que se consti-tuem em autênticas “estruturas de peca-do” (pensemos nas injustiças sociais, nadesigualdade entre países ricos e pobres,no escândalo da fome no mundo…). Portudo isto não há que ter medo de sublinharcomo é grande a tragédia do pecado ecomo a perda do seu sentido – bem dife-rente dessa enfermidade da alma a quechamamos “sentimento de culpa” – debili-ta o coração diante do espectáculo do male das seduções de Satanás, o adversárioque tenta separar-nos de Deus.

2. A experiência do perdão

Porém, apesar de tudo, não creio po-der afirmar que o mundo é mau e que fazero bem é inútil. Pelo contrário, estou con-vencido de que o bem existe e é muitomaior do que o mal, que a vida tem belezae que viver rectamente, por amor e comamor, vale verdadeiramente a pena. Arazão profunda que me leva a pensar assimé a experiência da misericórdia de Deusque faço em mim mesmo e que vejo res-plandecer em tantas pessoas humildes: éuma experiência que vivi muitas vezes,quer dando o perdão como ministro daIgreja, quer recebendo-o. Há anos que meconfesso com regularidade, várias vezesao mês e com alegria, cada vez que o faço.A alegria nasce do sentir-me amado demodo novo por Deus, cada vez que o seuperdão me alcança por intermédio dosacerdote que mo dá em seu nome. É aalegria que vi sempre no rosto de quemvinha confessar-se: não o trivial sentido dealívio de quem “esvaziou o saco” (a con-

fissão não é um desabafo psicológico nemum encontro consolador, ou não o é princi-palmente), mas a paz de nos sentirmosbem por “dentro”, tocados no coração porum amor que cura, que vem de cima e nostransforma. Pedir com convicção o per-dão, recebê-lo com gratidão e dá-lo comgenerosidade é fonte de uma paz que nadanem ninguém pode pagar: por isso, é justoe é belo confessar-se. Quereria partilhar asrazões desta alegria com todos aqueles aquem consiga chegar através desta carta.

3. Confessar-se a um sacerdote?

Um fiel pergunta-me: porquê confes-sar a um sacerdote os próprios pecados enão o fazer directamente a Deus? Nin-guém duvida de que cada pessoa se dirigesempre a Deus quando confessa os pró-prios pecados. Que seja, contudo, neces-sário fazê-lo também a um sacerdote foi opróprio Deus que nos levou acompreendê-lo: ao enviar o seu Filhonuma carne semelhante à nossa, Deusmostrou querer encontrar-se connoscomediante um contacto directo, que passapelos sinais e as linguagens da nossa con-dição humana. Assim como Ele saiu de simesmo por nosso amor e veio “tocar-nos”com a sua carne, também nós somos cha-mados a sair de nós mesmos por seu amore a ir com humildade e fé até junto dequem pode dar-nos o perdão em seu nome,com palavras e gestos. Só a absolviçãodos pecados que o sacerdote te dá no sa-cramento pode comunicar-te a certezainterior de teres sido verdadeiramenteperdoado e acolhido pelo Pai que estános céus, porque Cristo confiou ao mi-nistério da Igreja o poder de ligar e des-ligar, de excluir e admitir na comunidadeda aliança (Cf. Mt 18, 17). Foi Ele que,

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ressuscitado de entre os mortos, disse aosApóstolos: «Recebei o Espírito Santo.Àqueles a quem perdoardes os pecados,ficarão perdoados; àqueles a quem os reti-verdes, ficarão retidos» (João 20, 22-23).Portanto, confessar-se a um sacerdote émuito diferente de fazê-lo no segredo docoração, exposto a tantas inseguranças eambiguidades que enchem a vida e a histó-ria. Tu sozinho não saberás nunca verda-deiramente se quem te tocou foi a graça deDeus ou a tua emoção, se quem te perdooufoste tu mesmo ou foi Ele pelos caminhosque Ele próprio escolheu. Absolvido porquem o Senhor chamou e enviou comoministro do perdão, poderás experimentara liberdade que só Deus dá e compreen-derás a razão pela qual confessar-se éfonte de paz.

4. Um Deus próximoda nossa fraqueza

A confissão é, portanto, o encontrocom o perdão divino, que nos é oferecidoem Jesus e que nos é transmitido pelo mi-nistério da Igreja. Neste sinal eficaz dagraça, encontro com a misericórdia semfim, é-nos oferecido o rosto de um Deusque conhece como ninguém a nossa con-dição humana e se faz próximo com amorde ternura. Os inumeráveis episódios davida de Jesus mostram-no bem, desde oencontro com a Samaritana até à cura doparalítico, desde o perdão da adúltera atéàs lágrimas perante a morte do seu amigoLázaro... Nós temos imensa necessidadedesta proximidade terna e compassiva deDeus, como o mostra também um simplesolhar para a nossa própria vida: cada umde nós convive com a própria fraqueza,atravessa a enfermidade, aproxima-se damorte, e dá-se conta do desafio das per-

guntas que todas estas coisas dirigem aocoração. Por muito que possamos desejarfazer o bem, a fragilidade que nos caracte-riza a todos expõe-nos continuamente aorisco de cair na tentação. O apóstolo Paulodescreveu com precisão esta experiência:«Querer o bem está ao meu alcance, masrealizá-lo não está. Na verdade, não faço obem, que quero, mas pratico o mal, quenão quero» (Rom 7, 18s). É o conflitointerior do qual nasce a invocação: «Quemme libertará deste corpo que me leva àmorte?» (Rom 7, 24). A ela responde demodo especial o sacramento do perdão,que vem socorrer-nos, sempre de novo,em nossa condição de pecado, alcançan-do-nos com a força curativa da graça divi-na e transformando o nosso coração e osnossos comportamentos. Por isso, a Igrejanão se cansa de nos propor a graça destesacramento durante todo o caminho danossa vida: através dele, Jesus, verdadeiromédico celeste, toma os nossos pecados eacompanha-nos, continuando a sua obrade cura e de salvação. Como aconteceem cada história de amor, também a alian-ça com o Senhor tem de ser renovada semdescanso: a fidelidade e o empenhosempre novo do coração que se entrega eacolhe o amor que lhe é oferecido, até aodia em que Deus será tudo em todos.

5. Etapas do encontrocom o perdão

Precisamente porque foi desejado porum Deus profundamente “humano”, oencontro com a misericórdia que nos éoferecida por Jesus acontece em váriasetapas, que respeitam os tempos da vida edo coração. No início, está a escuta da boanotícia, na qual te alcança o convite doAmado: «Completou-se o tempo e o Reino

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de Deus está próximo: arrependei-vos eacreditai no Evangelho» (Mc 1, 15). Pormeio dessa voz o Espírito Santo actua emti, dando-te docilidade para consentires ecreres na Verdade. Quando te tornas dócila esta voz e decides responder com todo ocoração a Quem te chama, empreendes ocaminho que te leva ao presente maior, umdom tão valioso que leva Paulo a dizer:«Em nome de Cristo vos suplicamos:reconciliai-vos com Deus!» (2 Cor 5, 20).

A reconciliação é precisamente o sa-cramento do encontro com Cristo que,pelo ministério da Igreja, vem socorrer adebilidade de quem traiu ou rejeitou aaliança com Deus, o reconcilia com o Pai ecom a Igreja, o refaz como criatura novana força do Espírito Santo. Este sacra-mento é chamado também “penitência”,porque nele se expressa a conversão dohomem, o caminho do coração que se arre-pende e vem pedir o perdão de Deus. Otermo “confissão” – usado normalmente –refere-se, em contrapartida, ao acto deconfessar as próprias culpas diante do sa-cerdote, mas recorda também a trípliceconfissão que se há-de fazer para viver emplenitude a celebração da reconciliação: aconfissão de louvor (“confessio laudis”),com a qual fazemos memória do amor di-vino que nos precede e nos acompanha,reconhecendo os seus sinais na nossa vidae compreendendo assim melhor a gravida-de da nossa culpa; a confissão do pecado,com a qual apresentamos ao Pai o nossocoração contrito e humilhado, reconhe-cendo os nossos pecados (“confessiopeccati”); e por último a confissão de fé,com a qual nos abrimos ao perdão queliberta e salva, e que nos é oferecido com aabsolvição (“confessio fidei”). Por suavez, os gestos e as palavras nos quais seexpressa o dom que recebemos, manifes-tarão na vida as maravilhas realizadas emnós pela misericórdia de Deus.

6. A festa do encontro

Na história da Igreja, a penitência foivivida numa grande variedade de formas,comunitárias e individuais, que manti-veram, no seu conjunto, a estrutura fun-damental do encontro pessoal entre opecador arrependido e o Deus vivo, pelameditação do ministério do bispo ou dopresbítero. Por meio das palavras da ab-solvição, pronunciadas por um homempecador mas eleito e consagrado para oministério, é o próprio Cristo que acolhe opecador arrependido e o reconcilia com oPai e que, no dom do Espírito Santo, o re-nova como membro vivo da Igreja. Recon-ciliados com Deus, somos acolhidos nacomunhão vivificante da Trindade e re-cebemos em nós a vida nova da graça, oamor que só Deus pode infundir em nos-sos corações: o sacramento do perdãorenova, assim, a nossa relação com o Pai,com o Filho e com o Espírito Santo, emcujo nome nos é dada a absolvição dasculpas. Como o mostra a parábola do pai edos dois filhos, o encontro da reconcilia-ção culmina num banquete de pratos sabo-rosos, no qual se participa com o trajenovo, o anel e os pés calçados (Cf. Lc 15,22s), imagens que expressam a alegria e abeleza do dom oferecido e recebido.Verdadeiramente, para usar as palavras dopai na parábola, «vamos fazer um ban-quete e alegrar-nos, porque este meu filhoestava morto e voltou à vida; estava perdi-do e foi encontrado» (Lc 15, 24). É belopensar que aquele filho pode ser cada umde nós!

7. O regresso à casa do Pai

Em relação a Deus Pai, a penitênciaapresenta-se como um “regresso a casa”(este é propriamente o sentido da palavra

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“teshuvá”, que o hebraico usa para dizer“conversão”). Mediante a tomada deconsciência das tuas culpas, dás-te contade estar no exílio, longe da pátria do amor:sentes mal-estar, dor, porque compreendesque a culpa é uma ruptura da aliança como Senhor, uma rejeição do seu amor, é“amor não amado”, e por isso é tambémfonte de alienação, porque o pecadotira-nos da nossa verdadeira morada, ocoração do Pai. É então que faz falta re-cordar a casa onde alguém nos espera: semesta memória do amor não poderíamosnunca ter a confiança e a esperança neces-sárias para tomar a decisão de voltar aDeus. Com a humildade de quem sabe quenão é digno de ser chamado “filho”, pode-mos tomar a decisão de ir bater à porta dacasa do Pai: que surpresa descobrir queEle está à janela olhando o horizonte, por-que há muito tempo espera o nosso regres-so! Às nossas mãos abertas, ao coraçãohumilde e arrependido, responde a ofertagratuita do perdão com o qual o Pai nosreconcilia consigo, “convertendo-nos” dealguma maneira a nós mesmos: «Estandoele ainda longe, o pai viu-o e, enchendo-sede compaixão, correu a lançar-se-lhe aopescoço e cobriu-o de beijos» (Lc 15, 20).Com ternura magnânima, Deus introduz-nos de modo renovado na condição de fi-lhos, oferecida pela aliança estabelecidaem Jesus.

8. O encontro com Cristo,morto e ressuscitado por nós

Em relação ao Filho, o sacramento dareconciliação oferece-nos a alegria do en-contro com Ele, o Senhor crucificado eressuscitado, que, através da sua Páscoanos dá a vida nova, infundindo o seu Espí-rito em nossos corações. Este encontro re-aliza-se mediante o itinerário que leva

cada um de nós a confessar as própriasculpas com humildade e dor pelos pecadoscometidos, e a receber com gratidão cheiade assombro o perdão. Unidos a Jesus eà sua morte de Cruz, morremos para opecado e para o homem velho que neletriunfou. O seu sangue, derramado por nósreconcilia-nos com Deus e com os outros,derrubando o muro da inimizade que nosmantinha prisioneiros da nossa solidãosem esperança e sem amor. A força da suaressurreição alcança-nos e transforma-nos: o Ressuscitado toca-nos o coração,fá-lo arder com uma fé nova que nos abreos olhos e nos torna capazes de o ver juntode nós e de reconhecer a sua voz em quemtem necessidade de nós. Toda a nossaexistência de pecadores, unida a Cristocrucificado e ressuscitado, se oferece àmisericórdia de Deus para ser curada daangústia, libertada do peso da culpa, con-firmada nos dons de Deus e renovada nopoder do seu Amor vitorioso. Libertadospelo Senhor Jesus, somos chamados a vi-ver como Ele livres do medo, da culpa edas seduções do mal, para realizarmosobras de verdade, de justiça e de paz.

9. A vida nova do Espírito

Graças ao dom do Espírito que infun-de em nós o amor de Deus (Cf. Rom 5, 5),o sacramento da reconciliação é fonte devida nova, comunhão renovada com Deuse com a Igreja, da qual precisamente oEspírito é a alma e a força de coesão. OEspírito impulsiona o pecador perdoado aexpressar no meio do mundo a paz rece-bida, aceitando sobretudo as conse-quências da sua culpa, a chamada “pena”,que é como que o efeito da enfermidaderepresentada pelo pecado, e que se há-deconsiderar como uma ferida a curar com oóleo da graça e a paciência do amor que

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temos de ter a nós próprios. O Espírito,além disso, ajuda-nos a amadurecer o fir-me propósito de iniciar um caminho deconversão feito de atitudes concretas decaridade e de oração: o sinal penitencialproposto pelo confessor serve justamentepara expressar esta eleição. A vida nova,para a qual assim renascemos, podemostrar mais do que qualquer outra coisaa beleza e a força do perdão invocado erecebido sempre de novo (“perdão” querdizer justamente dom renovado: perdoar édar infinitamente!) Pergunto-te agora:porquê rejeitar um presente tão grande?Aproxima-te da confissão com coraçãohumilde e contrito e vive-a com fé: mu-dar-te-á a vida e dará paz ao teu coração.Então, os teus olhos abrir-se-ão para re-conheceres os sinais da beleza de Deuspresentes na criação e na história, e da tuaalma irromperá um cântico de louvor.

E também a ti, sacerdote que me lês eque, como eu, és ministro do perdão, que-reria dirigir um convite que me nasce daalma: mantém-te sempre pronto – comtempo ou sem tempo –, a anunciar a todosa misericórdia e a dar a quem te pede operdão de que necessita para viver e mor-rer. Para cada pessoa que vem ter contigo,poderia tratar-se da hora de Deus em suavida!

10. Deixemo-nos reconciliarcom Deus!

O convite do apóstolo Paulo conver-te-se, assim, também no meu: expresso-oservindo-me de duas vozes distintas. Aprimeira, é a de Friedrich Nietzsche, que,

na sua juventude, escreveu palavras apai-xonadas, sinal da necessidade da miseri-córdia divina que todos levamos dentro denós: “Uma vez mais, antes de partir e di-rigir o meu olhar para o alto, ao ficar só,elevo as minhas mãos para Ti, em quemme refugio, a quem no mais fundo docoração consagrei altares, para que, emcada hora, a tua voz me volte a chamar...Quero conhecer-te, a Ti, o Desconhecido,para que penetres até ao fundo da alma ecomo tempestade sacudas a minha vida, tuque és incansável e contudo semelhante amim! Quero conhecer-te e também ser-vir-te” (“Scritti giovanili”, “Escritos Juve-nis” I, 1, Milão 1998, 388). A outra voz é aque se atribui a S. Francisco de Assis,que expressa a verdade de uma vida reno-vada pela graça do perdão: “Senhor, fazeide mim um instrumento da vossa paz.Onde há ódio, que eu leve o Amor. Ondehá ofensa, que eu leve o Perdão. Onde hádiscórdia, que eu leve a União. Onde hádúvida, que eu leve a Fé. Onde há erro,que eu leve a Verdade. Onde há desespero,que eu leve a Esperança. Onde há tristeza,que eu leve a Alegria. Onde há trevas, queeu leve a Luz. Oh Mestre, fazei que euprocure menos ser consolado do queconsolar; ser compreendido do que com-preender; ser amado do que amar”. Sãoestes os frutos da reconciliação, invocadae acolhida por Deus, que vos desejo a to-dos vós que acabais de me ler. Com estedesejo, que se faz oração, vos abraço eabençoo um a um.

Bruno, vosso pai na fé.

Chieti, 16 de Fevereiro de 2006.

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PEREGRINAÇÃO NACIONALDOS ACÓLITOS A FÁTIMA

No dia 1 de Maio realizou-se a Pere-grinação Nacional dos Acólitos a Fátima.Presidiu à celebração o Senhor Arcebispode Évora, Dom Maurílio Gouveia, poraquele dia ser de peregrinação da Diocesede Évora a Fátima.

Depois do desfile solene dos acólitos,devidamente paramentados, até à Capeli-nha, rezou-se o terço com comentários eorientação dos acólitos de Évora.

A procissão da Capelinha para o lugarda celebração da Missa na esplanada dorecinto foi um sem fim de acólitos, que seacomodaram em lugares próprios ao fun-do da escadaria. Eram milhares de meni-nos e meninas, adolescentes, jovens esempre jovens, muitos com os seus estan-dartes próprios.

Na homilia, o Senhor Arcebispo di-rigiu-se aos acólitos e integrou-os naperegrinação, exortando-os ao fiel de-sempenho do seu ministério litúrgico.

ACÓLITOS

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No final da celebração, os acólitos fi-zeram a sua consagração a Nossa Senhorae despediram-se da sua imagem. O gestode despedida, movendo os cíngulos, nãofoi o mais bonito, mas no futuro serão da-das indicações sobre o modo de proceder.

O programa da parte da tarde ficou aocuidado das dioceses e grupos que se orga-nizaram para fazer o melhor aproveita-mento do tempo disponível.

A Peregrinação encerrou com a pro-cissão do Santíssimo pelo recinto do San-tuário e a bênção final.

Na continuação desta Peregrinação re-alizou-se uma reunião convocada peloReitor do Santuário e com a presença doDirector do Secretariado Nacional deLiturgia, o Director do Serviço Nacionalde Acólitos e o responsável dos acólitos dadiocese de Leiria-Fátima. Desta reuniãoresultou o compromisso de serem elabora-dos uns estatutos para um Serviço Nacio-nal de Acólitos com estruturas próprias ecapacidade para dinamização do ministé-rio dos acólitos. No início do próximo anopastoral apresentaremos um novo ServiçoNacional de Acólitos.

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D. TOMÁS GONÇALINHO DE OLIVEIRA

MEMÓRIA

Entrevistei-o em Singeverga, no dia24 de Junho de 1989. Os apontamentosque se seguem reproduzem fielmente asnotas que então recolhi.

Bastante fresco para os seus 89 anos.Magro, olhar vivo. Ainda caminhavamuito bem, embora o passo, um poucovacilante, nem sempre fosse regular. Diziaestar muito cansado. Mas quando co-meçava a falar demonstrava ser aindasenhor de boa memória. O cansaço reve-lava-se na dificuldade em manter a se-quência da narrativa, saltando de assuntopara assunto e perdendo facilmente ofio à meada. Tinha alguma dificuldadeem recordar nomes e, quanto às datas,dizia que nunca foram o seu forte.

Memórias domovimento litúrgico em Portugal

O seu grande mestre foi o P.e AntónioCoelho que recorda com saudade. Fezparte do grupo que ele guiou a Samos e,depois, à Falperra. O seu olhar ilumina-seao falar com entusiasmo da experiênciainolvidável desses tempos épicos darestauração beneditina em Portugal, soba liderança efectiva do P.e António Coelho.

Em relação ao movimento litúrgico,não se pode dizer que António Coelho te-nha sido o seu iniciador em Portugal. Essetítulo atribui-o a Mons. Pereira dos Reis,

de quem também guarda muitas e gratasrecordações. Pereira dos Reis frequentavatodos os anos, pelas férias do Verão, osmosteiros beneditinos europeus, sobretu-do da Bélgica. E estava por isso a par detudo o que por lá fora se ia fazendo nesteâmbito. Contudo, a acção de Pereira dosReis não tinha projecção nacional. Maistarde, enquanto reitor do Seminário dosOlivais onde se formavam padres de ou-tras dioceses para além de Lisboa, a sua

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acção passou a ter um influxo mais am-plo. Nomeadamente no capítulo do CantoGregoriano, o Seminário dos Olivais tevegrande influência, sobretudo com as trans-missões radiofónicas da missa cantada aosdomingos. António Coelho, portanto, nãofoi o «iniciador». Mas foi o verdadeiroprotagonista principal, o «propagador» domovimento litúrgico em Portugal.

Para o P. Tomás, em termos de movi-mento litúrgico a revista Opus Dei tevemais influência do que o Curso deLiturgia Romana. Redigido de forma algoprecipitada para a primeira edição, oCurso tinha ainda uma base ritualista,rubricista. O P.e António Coelho deixouadiantados os trabalhos de revisão para a2ª edição, que não chegou a ver publicada.Nela trabalhou, inicialmente, o próprio P.eTomás e, depois, o P.e Paulo de Carvalhoque a ultimou (e com o qual teve algumasdivergências, precisamente por causa doCurso). Na 2ª e 3ª edição, o Curso melho-rou. E teve, certamente influência na for-mação do clero em Portugal durante uns20 a 30 anos. Entretanto, na opinião do P.eTomás, na evolução das mentalidades e nadinamização de um verdadeiro movimen-to litúrgico, a revista Opus Dei foi muitomais influente. Tinha muitos assinantes,inclusive entre o laicado.

Desta fase, D. Tomás recorda umapolémica com a revista Mensageiro doCoração de Jesus a propósito da legitimi-dade da Missa Dialogada. Foi tambémnesse período que o P.e Tomás se estreounas lides literárias. Ainda recorda o títulodo primeiro artigo, que lhe foi «imposto»por D. António Coelho: Jesus Cristo nosSalmos [in Opus Dei 5 (1930-31) 82-83].O saudoso director de Opus Dei punha osseus noviços e alunos a fazer recensões, aler e traduzir artigos de outras revistasestrangeiras – foi assim que aprendeu

italiano – e de quando em quandoencomendava-lhes algum pequeno artigocujo tema e título ele próprio indicava. Poressa época o P.e Tomás assegurava, em co-laboração com o P.e Roberto de Oliveira,seu companheiro de noviciado, a secçãode consultas da Revista… (Mais tarde as-sumirá idênticas secções no Mensageirode S. Bento, na Lumen e em Ora &Labora). Recorda o P.e Tomás que as per-guntas eram quase sempre autênticas.Mas, por vezes, eram construídas a partirde situações observadas. Recorda uma«resposta» que deu, anos mais tarde (noMensageiro de S. Bento), a uma consultaque inventou para ir ao encontro de umasituação que não era excepcional: a de co-munidades religiosas em que todas as frei-ras comungavam por sistema antes daMissa sob pretexto (alegado por uma su-periora das Irmãs Franciscanas de Calais)de assim poderem fazer a acção de graçasdurante a Missa…

A morte prematura do P.e Coelho foimuito prejudicial para o movimentolitúrgico. Pouco antes, a própria revistaOpus Dei tivera de ser suspensa porquenão havia ninguém com possibilidades deassumir a sua direcção…

A revista Mensageiro de S. Bento pro-curou manter acesa a chama da liturgia.Até 1948, ano em que partiu para Lamego,o P.e Tomás foi, na prática, o director dessarevista. De 1947 a 1951 publicou-se umsuplemento que podia ser assinado inde-pendentemente – Liturgia – e que, na prá-tica, era dirigido pelo P.e Paulo de Carva-lho. Quando regressou a Singeverga, em1951, a situação das revistas era insusten-tável e elas foram interrompidas. A partirde 1954 passou a publicar-se uma nova re-vista, sob a designação já anteriormenteadoptada pelas Edições do Mosteiro: Ora& Labora. Até 1961, data em que regressa

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a Lamego, sobretudo por motivos desaúde, o P.e Tomás será o seu principalresponsável. Nessa época, também, desen-volve intensa actividade em prol do movi-mento litúrgico.

Transcendendo o plano nacional, paraD. Tomás as grandes referências eramOdo Casel no plano teológico (desde osanos 40) e Pius Parsh nas orientaçõespráticas. O pensamento de Odo Casel eratão profundo que não se lhe via o fundo…Foi muito criticado e, sobretudo, incom-preendido pela sua teoria dos mistérios.Mas o Concílio Vaticano II veio vingá-lo.

A hierarquia portuguesaperante o movimento litúrgico

Qual a atitude da hierarquia Portugue-sa em relação ao movimento litúrgico? OP.e Tomás reconhece que a mentalidadedos Prelados Portugueses não era muito«litúrgica». Um dos mais abertos era oCardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira.Mas mesmo assim, de uma vez que Mons.Pereira dos Reis lhe pediu licença parausar «casulas amplas», este não quis «to-mar conhecimento do pedido» alegandoque o Episcopado Português decidira emcomum não autorizar esse tipo de para-mentos e que não queria ser ele a abrirqualquer precedente…

Mais hostil era o Arcebispo de Braga,D. Francisco Maria da Silva, que era con-trário a que o clero da arquidiocese assi-nasse as revistas de Singeverga… Houvemesmo um enfrentamento entre o Arce-bispo primaz e o P.e Tomás. Foi em Gui-marães, numa sessão pública. D. Tomásrecomendava a prática da comunhãodentro da missa e com hóstias consagradasna mesma celebração. Era uma posição jáconsagrada pelo próprio Magistério. E,para a reforçar, recorreu a um exemplo:

dar a Comunhão na Missa a partir da Sa-grada Reserva, por princípio e como regra,seria como num banquete de festa serviraos convidados alimentos confeccionadospara a refeição da véspera. O arcebispotomou então a palavra para o censurar,proibindo-o de repetir tal coisa na Arqui-diocese. Isto passou-se no fim da sessãoda manhã. O P.e Tomás pretendia justifi-car-se e esclarecer o seu pensamento nasessão da tarde, mas o arcebispo ausenta-ra-se e presidia à sessão um bispo auxiliar.Este explicou-lhe então que o motivo dareacção tão veemente de D. FranciscoMaria da Silva estaria relacionado comum facto alegadamente ocorrido no Semi-nário dos Olivais: a comunhão era minis-trada habitualmente na Missa e com aspartículas consagradas na própria cele-bração. Mas num dia as hóstias consa-gradas não foram suficientes e foi precisorecorrer à Sagrada Reserva. Alguns semi-naristas teriam então desistido da sagradacomunhão sob pretexto de que não co-miam sobras… D. Francisco terá visto nacomparação feita pelo P.e Tomás uma ina-ceitável convalidação do suposto argu-mento dos seminaristas dos Olivais… Daía sua reacção escandalizada.

A propósito do Seminário dos Olivais,o P.e Tomás Gonçalinho referiu outroepisódio. Ele e Mons. Pereira dos Reistrabalharam em equipa na elaboração dorito do Baptismo para o Ritual BilinguePortuguês. E havia divergência entre elesem relação à colocação do Epphetta. OP.e Tomás apresentava o argumento dasfontes. Mas Pereira dos Reis, que nessaépoca vivia em Singeverga como oblatobeneditino, desafiou-o a pensar tambémpela própria cabeça… Contrapôs-lhe o Pe

Tomás: «isso está bem para o Monsenhor,que sabe muito». E a conversa terminoupor ali. No fim do dia, Mons. Pereira dos

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Reis veio dizer-lhe que aquelas palavraslhe tinham ocasionado a mágoa de reviveruma época dolorosa do Seminário dos Oli-vais em que o acusavam de heresia…Mais adiantou o P.e Tomás que Mons. Pe-reira dos Reis era criticado por não cele-brar em privado nos dias em que assistia àMissa de Pontifical presidida pelo Patriar-ca, e na qual comungava… Tinha tambémuma teoria pessoal acerca da consagraçãoque seria realizada por todo o cânone enão apenas pelas palavras de Jesus…

A Comissão Nacional de Liturgia

Das suas relações com a hierarquia fazparte a experiência como Secretário daComissão Nacional de Liturgia, ao tempoem que D. Florentino de Andrade e Silvaera o presidente. D. Florentino era de rela-cionamento difícil. Recorda que ao partirpara uma viagem ao estrangeiro, D. Flo-rentino lhe pedira um esquema para a or-ganização do Secretariado Nacional e queele elaborou uma proposta completa, como respectivo organigrama. O próprio Car-deal Patriarca apreciou a proposta e lhedisse para fazer cópias para todos os bis-pos. À sua chegada, o P.e Tomás entregou aD. Florentino, o programa e as cópias.Mas ele não gostou do projecto e arquivouas cópias, não as distribuindo (pelo me-nos, a todos os Bispos)… Quando lheapresentou o pedido de demissão – cujaaceitação, ao contrário da nomeação, foipublicada na Lumen –, alegou problemasde saúde e falta de condições de traba-lho… Sucedeu-lhe o Dr. Justiniano Santosdo Porto, durante cerca de meio ano. Nãoaguentou mais tempo… Foi durante omandato do Dr. Justiniano que se reuniuna casa da Buraca a comissão mista Portu-guesa e Brasileira para acertar a versãocomum dos diálogos do Ordinário da

Missa. E foi então que, não havendoconsenso quanto à resposta em portuguêsao Dominus Vobiscum, foi feita uma con-sulta-experiência a um grupo do «Movi-mento para o Mundo Melhor» que estavanesses dias na casa da Buraca. O «Ele estáno meio de nós» foi aí encontrado e é umeco próximo de uma das saudações típicasdesse movimento… Ao P.e Justinianosucedeu no Secretariado Nacional o P.e

Barbosa Pinto, jesuíta. A este, por fim,foram dadas as condições mínimas detrabalho por que lutaram os dois ante-cessores…

O Canto Gregoriano

Um dos capítulos em que o Semináriodos Olivais maior influxo exerceu paraalém de Lisboa foi, como já se disse, o docanto gregoriano. Aqui também Singe-verga desempenhou algum papel, nomea-damente com as audições comentadastransmitidas pela Emissora Nacional nasQuaresmas de 1941 a 1944. O P.e Tomásera comentador habitual desses «concer-tos espirituais» e alguns dos textos lidosaos microfones da Emissora Nacional fo-ram também publicados no Mensageiro deS. Bento. Essas audições radiofónicas,gravadas em condições técnicas muitodeficientes pelo Coro monástico de Singe-verga, tiveram muito sucesso e favorece-ram a causa do Canto Gregoriano. Mas oP.e Tomás considera que as transmissõesradiofónicas que depois se começaram afazer da Missa dominical cantada peloSeminário dos Olivais tiveram impactomaior e mais duradouro. Foi também o Se-minário dos Olivais quem teve a iniciativada primeira Semana Nacional de CantoGregoriano. Posteriormente a D.ra JúliaAlmendra organizou uma série de sema-nas de canto gregoriano e convidou o P.e

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O P. Tomás Gonçalinho nasceu em Vila Nova de Souto de El-Rei(Lamego) a 16 de Abril de 1910.

Entrou no noviciado no Mosteiro de Samos (Galiza), onde ogrupo beneditino português estava exilado, mas veio fazer a suaprofissão religiosa a Portugal em 21 de Dezembro de 1926.

Foi ordenado sacerdote, no Porto, a 16 de Outubro de 1932.De 1933 a 1938 esteve na casa de Cucujães, a cuja comuni-

dade pertencia; vindo em seguida para Singeverga, pertenceu a estacomunidade nos períodos mais longos da sua vida: de 1938 a 1948 ede 1951 a 1963.

Nos dois tempos intermédios esteve na comunidade de La-mego, onde veio a falecer em 6 de Janeiro de 2006.

O P. Tomás foi bem conhecido do público português pela suaautoridade em Liturgia, de que foi brilhante perito.

Sempre se dedicou apaixonadamente ao seu estudo e divul-gação, mantendo regularmente a sua colaboração nas revistas domosteiro “Opus Dei”, “Mensageiro de São Bento”, “Liturgia” e “Ora etLabora”, sendo mesmo director de quase todas durante longosperíodos.

Em 1965 tomou parte no “Congresso Internacional de Traduto-res dos Textos Litúrgicos” como delegado da Comissão Litúrgica Na-cional; em Setembro de 1971 participou também em Estrasburgonum congresso da “Societas Liturgica Internationalis”, tendo sido aínomeado membro correspondente para Portugal; e foi membro doSecretariado Nacional de Liturgia nos anos de 1977 e 1978. Aindanesta matéria colaborou sempre na edição da Enciclopédia “Verbo”.

Tomás a fazer uma comunicação naquelaque foi publicitada como «a primeira» Se-mana Nacional». O P.e Tomás Gonçalinhoaceitou o convite mas começou por ressal-var que a primeira Semana Nacional forajá organizada pelo Seminário dos Olivais,observação que desagradou à organiza-dora… Mais tarde Júlia Almendra pro-moveu a criação do «Centro de EstudosGregorianos» de Lisboa e organizou uma«Liga dos amigos do canto gregoriano».

Mas não aceitou conselhos no sentido devincular essa iniciativa à Igreja. Era umapessoa muito independente. O resultadofoi que em Portugal o movimento a favordo canto gregoriano se desvinculou par-cialmente do movimento litúrgico. O seuinteresse estava mais voltado para a pro-moção dos valores estéticos do canto gre-goriano do que para a pastoral do canto naliturgia…

JOÃO DA SILVA PEIXOTO

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LIVROS LITÚRGICOS OFICIAIS

Situação em Junho de 2006

Missal (1ª ed.)– Formato maior ................................................................................................... Disponível

Missal (2ª ed.) ............................................................................................................ ElaboraçãoLeccionário:

– I. Ano A ...................................................................................................... Disponível– II. Ano B ...................................................................................................... Disponível– III. Ano C ...................................................................................................... Disponível– IV. Ferial I: Advento, Natal, Quaresma, Páscoa ............................................ Disponível– V. Ano II: Anos ímpares .............................................................................. Disponível– VI. Ano III: Anos pares ................................................................................. Disponível– VII. Santoral e Comuns ................................................................................... Disponível– VIII. Missas Rituais, Diversas e Votivas .......................................................... Disponível

Evangeliário ............................................................................................................... DisponívelOração Universal Dominical (Domingos, solenidades e festas do Senhor) .............. DisponívelOração Universal Ferial ............................................................................................. Elaboração

Liturgia das Horas– Vol I. Advento e Natal .................................................................................. Disponível– Vol II. Quaresma e Páscoa ............................................................................. Disponível– Vol III. Tempo Comum ................................................................................... Disponível– Vol IV. Tempo Comum ................................................................................... Disponível– Abrev. Edição abreviada [Laudes-H. Int.-Vésp. e Completas] ....................... Disponível– Abrev. Laudes e Vésperas [Laudes-Vésp. e Completas] ................................ Disponível

Iniciação Cristã dos Adultos ...................................................................................... DisponívelCelebração do Baptismo ............................................................................................ DisponívelCelebração da Confirmação....................................................................................... DisponívelSagrada Comunhão e Culto do Mistério Eucarístico Fora da Missa ......................... DisponívelRitual do Ministro Extraordinário da Comunhão ...................................................... DisponívelCelebração da Penitência ........................................................................................... DisponívelUnção e Pastoral dos Doentes ................................................................................... DisponívelOrdenação do Bispo, dos Presbíteros e Diáconos ..................................................... DisponívelCelebração do Matrimónio ........................................................................................ DisponívelDedicação da Igreja e do Altar .................................................................................. DisponívelBênção dos Óleos dos Catecúmenos

e dos Enfermos e Consagração do Crisma ........................................................... DisponívelBênção de um Abade e de uma Abadessa ................................................................. DisponívelRitual da Profissão Religiosa ..................................................................................... DisponívelRitual dos Exorcismos ............................................................................................... DisponívelConsagração das Virgens ........................................................................................... EsgotadoCelebração das Bênçãos ............................................................................................ ElaboraçãoCelebração das Exéquias ........................................................................................... DisponívelInstituição dos Leitores e dos Acólitos ...................................................................... DisponívelCelebrações dominicais na ausência do presbítero .................................................... Elaboração

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BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICAPropriedade do Secretariado Nacional de Liturgia

Director: Pedro Lourenço FerreiraRedacção e Administração: Secretariado Nacional de LiturgiaSantuário de Fátima – Apartado 31 — 2496-908 FÁTIMATel. 249 533 327 – Fax 249 533 343 – E-mail: [email protected]

Publicação registada na SGMJ nº 118776ISSN 0873-3295

Assinatura anual: Portugal: 9 € (IVA incl.) — Outros países: 13 €

G.C. – GRÁFICA DE COIMBRA

Depósito Legal Nº. 88 990/95

A reconciliação, Pedro Lourenço Ferreira ............................................................ 1

Catequeses sobre os Salmos e Cânticos, Bento XVI ............................................. 3

Homilia na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, Bento XVI ........................ 29

A liturgia eucarística – Ritos de Comunhão, José Ferreira ................................. 33

Contributo de João Paulo II para a reforma litúrgica, José Cordeiro ...................... 37

Catequeses para a Confirmação, José de Leão Cordeiro ...................................... 41

Curso de preparação para a Confirmação, José de Leão Cordeiro ...................... 45

A beleza da liturgia, Secr. Dioc. de Liturgia do Porto .......................................... 49

A reconciliação e a beleza de Deus, Bruno Forte ................................................. 51

Peregrinação Nacional dos Acólitos, Redacção .................................................... 57

D. Tomás Gonçalinho de Oliveira, João da Silva Peixoto ................................... 59

Livros litúrgicos oficiais – Situação em Junho de 2006, Redacção .................... 64

JANEIRO – JUNHO 2006

PUBLICAÇÕES DO SNL

A celebração do Tempo do Natal (2ª ed.) .................................................... € 3,50A música sacra nos documentos da Igreja .................................................. € 7,00A Religiosidade Popular e a Celebração da Fé ........................................... € 2,00Adaptação das Igrejas segundo a Reforma Litúrgica ................................ € 3,50Agenda – Directório Litúrgico 2007 ........................................................... € 8,00Akathistos ...................................................................................................... € 2,00Antologia Litúrgica.

– Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio ... € 40,00As bênçãos ..................................................................................................... € 3,50As crianças louvam o Senhor ....................................................................... € 5,00Bênçãos da Família ....................................................................................... € 3,50Cânticos de Entrada e de Comunhão I

– Advento, Natal, Quaresma e Páscoa .............................................. € 6,00Cânticos de Entrada e de Comunhão II – Tempo Comum ......................... € 6,00Cânticos instrumentados para Banda ............................................................. € 10,00Canto Perene I – Ofício Dominical do Advento, Natal, Quaresma

e Páscoa – F. Santos ......................................................................... € 15,00Canto Perene II – Ofício Dominical do Tempo Comum – F. Santos ...... € 15,00Directório para as celebrações dominicais na ausência do presbítero ..... € 0,50Directório Litúrgico 2007 (em preparação)Enquirídio dos Documentos da Reforma Litúrgica .................................... € 25,00Guião do XXIX Encontro Nacional Pastoral Litúrgica ............................. € 5,00Guião do XXX Encontro Nacional Pastoral Litúrgica .............................. € 5,00Guião do XXXI Encontro Nacional Pastoral Litúrgica ............................. € 5,00Introduções aos Salmos e Cânticos de Laudes e Vésperas ........................ € 4,00Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas (2ª ed.) ................................... € 2,00Liturgia das Horas – Edição para canto (Tempo Comum) ........................ € 10,00Liturgia das Horas – Ed. para canto II (Advento, Natal, Quar. e Páscoa) € 12,00O Livro do Acólito – José de Leão Cordeiro .............................................. € 10,00O Tríduo Pascal – Liturgia das Horas – F. Santos ...................................... € 2,50O Tempo Pascal (2ª ed.) ............................................................................... € 3,50Orar cantando – Carlos da Silva .................................................................. € 12,50Ordenamento das Leituras da Missa ............................................................ € 2,50Ritual do Ministro Extraordinário da Comunhão (4ª ed.) ......................... € 4,00Salmos Responsoriais – Organista – (2ª ed.) – P. Manuel Luís ................ € 17,50Salmos Responsoriais – Salmista – (2ª ed.) – P. Manuel Luís .................. € 14,00

Secretariado Nacional de LiturgiaSantuário de Fátima – Apartado 31 — 2496-908 FÁTIMATel. 249 533 327 Fax 249 533 343E-mail: [email protected]ítio: www.liturgia.pt

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Boletim dePastoral Litúrgica

SECRETARIADO NACIONAL DE LITURGIA

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A Liturgia é simultaneamentea meta

para a qual se encaminha a acção da Igrejae a fonte

de onde promana toda a sua força.(SC 10)

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