ISSN 2179-1627 Revista SÍNTESE - mpsp.mp.br

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Revista SÍNTESE DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL ANO XIV – Nº 84 – FEV-MAR 2014 REPOSITÓRIO AUTORIZADO DE JURISPRUDÊNCIA Superior Tribunal de Justiça – Nº 50/2001 Tribunal Regional Federal da 1ª Região – Nº 18/2001 Tribunal Regional Federal da 2ª Região – Nº 1999.02.01.057040-0 Tribunal Regional Federal da 3ª Região – Nº 20/2010 Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Nº 07/0042596-9 Tribunal Regional Federal da 5ª Região – Nº 10/07 DIRETOR EXECUTIVO Elton José Donato GERENTE EDITORIAL E DE CONSULTORIA Eliane Beltramini COORDENADOR EDITORIAL Cristiano Basaglia EDITORA Herica Eduarda Geromel Vasques CONSELHO EDITORIAL Fernando da Costa Tourinho Filho, Geraldo Batista de Siqueira, Jader Marques, Luiz Flávio Gomes, Milton Jordão, Neemias Moretti Prudente, Paulo José Iasz de Morais, René Ariel Dotti, Roger Spode Brutti, Rômulo de Andrade Moreira, Ronaldo Batista Pinto, Salvador José Barbosa Júnior COMITÊ TÉCNICO Débora de Souza de Almeida, Giovani Agostini Saavedra, Leonardo Schmitt de Bem, Renata Jardim da Cunha Rieger, Rogério Montai de Lima COLABORADORES DESTA EDIÇÃO Amir José Finocchiaro Sarti, Danilo Andreato, Gustavo Noronha de Ávila, Humberto Sant’Ana, Jacinto Teles Coutinho, Lucca Silveira Finocchiaro, Luiz Flávio Gomes, Rômulo de Andrade Moreira, Salah H. Khaled Jr., Sandra Silveira Wünsch, Saulo Sarti, Vera Maria Guilherme ISSN 2179-1627

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Revista SÍNTESEDireito Penal e Processual Penal

Ano XIV – nº 84 – FeV-MAr 2014

reposItórIo AutorIzAdo de JurIsprudêncIASuperior Tribunal de Justiça – Nº 50/2001

Tribunal Regional Federal da 1ª Região – Nº 18/2001Tribunal Regional Federal da 2ª Região – Nº 1999.02.01.057040-0

Tribunal Regional Federal da 3ª Região – Nº 20/2010Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Nº 07/0042596-9

Tribunal Regional Federal da 5ª Região – Nº 10/07

dIretor eXecutIVoElton José Donato

Gerente edItorIAl e de consultorIAEliane Beltramini

coordenAdor edItorIAlCristiano Basaglia

edItorAHerica Eduarda Geromel Vasques

conselho edItorIAlFernando da Costa Tourinho Filho, Geraldo Batista de Siqueira, Jader Marques,

Luiz Flávio Gomes, Milton Jordão, Neemias Moretti Prudente, Paulo José Iasz de Morais, René Ariel Dotti, Roger Spode Brutti, Rômulo de Andrade Moreira, Ronaldo Batista Pinto,

Salvador José Barbosa Júnior

coMItê técnIcoDébora de Souza de Almeida, Giovani Agostini Saavedra,

Leonardo Schmitt de Bem, Renata Jardim da Cunha Rieger, Rogério Montai de Lima

colAborAdores destA edIçãoAmir José Finocchiaro Sarti, Danilo Andreato, Gustavo Noronha de Ávila, Humberto Sant’Ana, Jacinto Teles Coutinho, Lucca Silveira Finocchiaro,

Luiz Flávio Gomes, Rômulo de Andrade Moreira, Salah H. Khaled Jr., Sandra Silveira Wünsch, Saulo Sarti, Vera Maria Guilherme

ISSN 2179-1627

2000 © SÍNTESE

Uma publicação da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos do Grupo SAGE.

Publicação bimestral de doutrina, jurisprudência, legislação e outros assuntos de Direito Penal e Processual Penal.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução parcial ou total, sem consentimento expresso dos editores.

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de total responsabilidade de seus autores.

Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias obtidas nas secretarias dos respectivos tribunais.

A solicitação de cópias de acórdãos na íntegra, cujas ementas estejam aqui transcritas, e de textos legais pode ser feita pelo e-mail: [email protected] (serviço gratuito até o limite de 50 páginas mensais).

Distribuída em todo o território nacional.

Tiragem: 5.000 exemplares

Revisão e Diagramação: Dois Pontos Editoração

Artigos para possível publicação poderão ser enviados para o endereço [email protected].

REVISTA SÍNTESE DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL Nota: Continuação da REVISTA IOB DE DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL

Porto Alegre: Síntese, v. 1, n. 1, abr./maio, 2000

Publicação periódica Bimestral

v. 14, n. 84, fev./mar. 2014

ISSN 2179-1627

1. Direito penal – periódicos – Brasil 2. Direito processual penal

CDU: 343.2(81) (05)CDD: 343

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Bibliotecária responsável: Helena Maria Maciel CRB 10/851)

IOB Informações Objetivas Publicações Jurídicas Ltda.R. Antonio Nagib Ibrahim, 350 – Água Branca 05036‑060 – São Paulo – SPwww.iobfolhamatic.com.br

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Carta do Editor

O Jurista Cézar Roberto Bitencourt assim mencionou:

O Brasil não tem um sistema penitenciário; tem, sim, um caos penitenciário, locais onde se jogam e se amontoam pessoas... o problema da prisão é a própria prisão... não se investe no sistema. É preciso dar efetividade às penas alternativas. Sai muito mais barato que construir presídios.

A sociedade brasileira vive um momento de extrema perplexidade em face do paradoxo que é o atual sistema carcerário brasileiro, que conta com o descrédito da prevenção e da reabilitação do condenado. O abandono, a falta de investimento e o descaso do poder público ao longo dos anos vie-ram por agravar ainda mais o caos chamado “sistema prisional brasileiro”.

É constante o clamor pelo recrudescimento de pena, por outro lado, o avanço da violência, a superpopulação prisional e o ambiente degradante e pernicioso que se encontram os apenados, contribuíram para a construção de um precário sistema prisional.

Diante da importância do assunto, abordamos na edição de nº 84 da Revista SÍNTESE Direito Penal e Processual Penal o tema “O Sistema Prisio-nal e o Impacto Carcerário”.

Para tratar de assunto de extrema perplexidade, a edição contou com a publicação de seis importantes artigos dos mais renomados juristas, sendo eles: Luiz Flávio Gomes, Vera Maria Guilherme, Jacinto Teles Coutinho, Salah H. Khaled Jr., Gustavo Noronha de Ávila e Humberto Sant’Ana.

Na Parte Geral da Revista, publicamos mais três doutrinas de diferen-tes temas do Direito Penal e Processual Penal, além de um Ementário com Valor Agregado Editorial, criteriosamente selecionado e preparado para você, com Comentários elaborados pela equipe SÍNTESE.

Vale destacarmos, ainda, todo o conteúdo publicado na Parte Geral, como Ementário e Acórdãos na Íntegra de diversos Tribunais Regionais e Superiores.

E, por fim, destacamos a seção denominada “Clipping Jurídico”, em que oferecemos a você, leitor, textos concisos que destacam de forma resu-mida os principais acontecimentos do período, tais como Notícias, Projetos de Lei, Normas Relevantes, dentre outros.

É com prazer que a IOB deseja a você uma ótima leitura!

Eliane BeltraminiGerente Editorial e de Consultoria

Sumário

Normas Editoriais para Envio de Artigos .................................................................... 7

Assunto EspecialO SiStema PriSiOnal e O imPactO carceráriO

DOutrinaS

1. Maranhão e Seus Presídios (o Brasil em Miniatura)Luiz Flávio Gomes .....................................................................................9

2. A Nudez do Rei: o Estado Punitivista e a Necessidade AbolicionistaVera Maria Guilherme ..............................................................................12

3. A Indelegabilidade da Execução da Pena e a Inconstitucionalidade da Terceirização Prisional no BrasilJacinto Teles Coutinho .............................................................................21

4. Os Níveis de Dor Intencional e o Holocausto Nosso de Cada Dia: Renúncia aos Discursos de Justificação da Pena e ao Mito da RessocializaçãoSalah H. Khaled Jr. ...................................................................................38

5. Política Não Criminal e Processo Penal: a Intersecção a Partir das Falsas Memórias da Testemunha e Seu Possível Impacto CarcerárioGustavo Noronha de Ávila .......................................................................64

6. A Criminologia Atual em Comparação com a AnteriorHumberto Sant’Ana ..................................................................................83

Parte GeralDOutrinaS

1. Apropriação Indébita Previdenciária: Crime Omissivo Formal de Perigo ConcretoSaulo Sarti, Amir José Finocchiaro Sarti e Lucca Silveira Finocchiaro .......88

2. Tipo Penal do Artigo 89 da Lei de Licitações: Novo Entendimento dos Tribunais SuperioresSandra Silveira Wünsch..........................................................................107

3. A Droga, a Ignorância, a Hipocrisia e o Direito Penal MedievalRômulo de Andrade Moreira ..................................................................130

JuriSPruDência

Acórdãos nA ÍntegrA

1. Superior Tribunal de Justiça....................................................................145

2. Superior Tribunal de Justiça....................................................................150

3. Superior Tribunal de Justiça....................................................................1564. Tribunal Regional Federal da 1ª Região ..................................................1615. Tribunal Regional Federal da 2ª Região ..................................................1756. Tribunal Regional Federal da 3ª Região ..................................................1827. Tribunal Regional Federal da 4ª Região ..................................................1888. Tribunal Regional Federal da 5ª Região ..................................................194

ementário de jurisprudênciA

1. Ementário de Jurisprudência ................................................................... 199

Seção Especialem POucaS PalavraS

1. Crime Cometido contra Agência dos Correios: Competência Federal ou Estadual?Danilo Andreato .....................................................................................229

Clipping Jurídico ..............................................................................................235

Índice Alfabético e Remissivo ............................................................................ 239

Normas Editoriais para Envio de Artigos1. Os artigos para publicação nas Revistas SÍNTESE deverão ser técnico-científicos e fo-

cados em sua área temática.2. Será dada preferência para artigos inéditos, os quais serão submetidos à apreciação

do Conselho Editorial responsável pela Revista, que recomendará ou não as suas publicações.

3. A priorização da publicação dos artigos enviados decorrerá de juízo de oportunidade da Revista, sendo reservado a ela o direito de aceitar ou vetar qualquer trabalho recebido e, também, o de propor eventuais alterações, desde que aprovadas pelo autor.

4. O autor, ao submeter o seu artigo, concorda, desde já, com a sua publicação na Re-vista para a qual foi enviado ou em outros produtos editoriais da SÍNTESE, desde que com o devido crédito de autoria, fazendo jus o autor a um exemplar da edição da Revista em que o artigo foi publicado, a título de direitos autorais patrimoniais, sem outra remuneração ou contraprestação em dinheiro ou produtos.

5. As opiniões emitidas pelo autor em seu artigo são de sua exclusiva responsabilidade.6. À Editora reserva-se o direito de publicar os artigos enviados em outros produtos jurí-

dicos da SÍNTESE.7. À Editora reserva-se o direito de proceder às revisões gramaticais e à adequação dos

artigos às normas disciplinadas pela ABNT, caso seja necessário.8. O artigo deverá conter além de TÍTULO, NOME DO AUTOR e TITULAÇÃO DO AU-

TOR, um “RESUMO” informativo de até 250 palavras, que apresente concisamente os pontos relevantes do texto, as finalidades, os aspectos abordados e as conclusões.

9. Após o “RESUMO”, deverá constar uma relação de “PALAVRAS-CHAVE” (palavras ou expressões que retratem as ideias centrais do texto), que facilitem a posterior pesquisa ao conteúdo. As palavras-chave são separadas entre si por ponto e vírgula, e finaliza-das por ponto.

10. Terão preferência de publicação os artigos acrescidos de “ABSTRACT” e “KEYWORDS”.

11. Todos os artigos deverão ser enviados com “SUMÁRIO” numerado no formato “arábi-co”. A Editora reserva-se ao direito de inserir SUMÁRIO nos artigos enviados sem este item.

12. Os artigos encaminhados à Revista deverão ser produzidos na versão do aplicativo Word, utilizando-se a fonte Arial, corpo 12, com títulos e subtítulos em caixa alta e alinhados à esquerda, em negrito. Os artigos deverão ter entre 7 e 20 laudas. A pri-meira lauda deve conter o título do artigo, o nome completo do autor e os respectivos créditos.

13. As citações bibliográficas deverão ser indicadas com a numeração ao final de cada citação, em ordem de notas de rodapé. Essas citações bibliográficas deverão seguir as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

14. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, organizadas em ordem alfabética e alinhadas à esquerda, obedecendo às normas da ABNT.

15. Observadas as regras anteriores, havendo interesse no envio de textos com comentá-rios à jurisprudência, o número de páginas será no máximo de 8 (oito).

16. Os trabalhos devem ser encaminhados preferencialmente para os endereços eletrôni-cos [email protected]. Juntamente com o artigo, o autor deverá preen-cher os formulários constantes dos seguintes endereços: www.sintese.com/cadastro-deautores e www.sintese.com/cadastrodeautores/autorizacao.

17. Quaisquer dúvidas a respeito das normas para publicação deverão ser dirimidas pelo e-mail [email protected].

Assunto Especial – Doutrina

O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário

Maranhão e Seus Presídios (o Brasil em Miniatura)

LUIZ FLÁVIO GOMESJurista, Diretor-Presidente do Instituto Avante Brasil.

Nas costas de um dos corpos, de bruços, estão duas cabeças, lado a lado. Elas são exibidas como troféus. Ao lado, o terceiro decapitado ainda tem a cabeça encostada ao pescoço. Um dos presos grita: “Bota de frente pra filmar direito”. Outro pede: “Não puxa a cabeça dele”. Em vão. Um outro colega, também de chinelos, enfia os pés na poça de sangue, se apro-xima e, com a ponta dos dedos, ergue a cabeça, puxada pelos cabelos. A cabeça escapa, cai no chão, mas é erguida novamente e colocada ao lado das outras. Os presos mantêm o clima de comemoração.

Tudo isso foi filmado e mostrado pela Folha (07.01.2014, p. C1). É o inferno de Dante (Divina comédia): “Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno”. Os presídios maranhenses (com 60 assassinatos no último ano), assim como o próprio governo do Maranhão (há 50 anos nas mãos desgovernadas dos Sarneys), são o retrato (uma miniatura) do Brasil, um País injusto, classista, racista, violento, corrupto, patrimonialista, nepotista, desdentado, subnutrido e analfabeto (3/4 dos brasileiros não sabem ler ou escrever ou entender o que leem ou fazer operações matemáticas mínimas – ver relatório do Inaf).

De 1980 a 2011, 1.145.651 pessoas foram assassinadas (ver Instituto Avante Brasil). Um mar de sangue. Há 400 mil anos (pré-história), 1/3 do Brasil era puro mar. Incluindo o Maranhão inteiro. Hoje, é tudo sangue. Um mar de sangue. O Brasil não se converteu no 16º país mais violento do planeta (conforme o UNODC-ONU) por acaso. Tem toda uma história (de violência, de prepotência, de autoritarismo, de desrespeito à vida, de degeneração ética, de domínio classista injusto, desde o colonialismo). O sistema penitenciário brasileiro constitui uma síntese desse lado do Brasil que deu errado.

Os presídios, com prisões determinadas pelos juízes, são uma inven-ção da burguesia capitalista ascendente do século XVIII. Nasceram para

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disciplinar as pessoas para o trabalho assalariado. Corpos dóceis e úteis (Foucault). Para eles eram mandados os vagabundos, carentes, marginali-zados, criminosos, etc. Local de educação (se imaginava). Logo se viu que lugar de educar é na escola. As novas burguesias dominantes, no entanto, continuaram mandando para as prisões todas as “classes perigosas” (concei-to do final do século XIX), mesmo que não tenham cometido nenhum crime violento. Mais de 50% dos presos, hoje, não praticaram crimes violentos. Lá estão amontoados, jogados como coisas. O sistema não ressocializa, ele brutaliza; o sistema não reeduca, ele aumenta o número de soldados para o crime organizado.

A política do encarceramento massivo (aumento de 508% nas prisões de 1990 a 2012), paralelamente à da edição de leis penais novas mais seve-ras (150 reformas de 1940 a 2013), continua a todo vapor, estimulada pela fascista criminologia populista-midiática-vingativa (veja nosso livro Populis-mo penal midiático, Saraiva, 2013), que constitui a fonte de inspiração da burguesia dominante legislativa (que cuida do processo de criminalização primária).

A reforma do Código Penal, fundada no pensamento mitológico (má-gico), emocional e passional (Durkheim), está seguindo exatamente estas duas equivocadas premissas: (a) leis mais severas; e (b) encarceramen-to massivo (sobretudo das “classes perigosas”, não violentas). As políticas alternativas (prisão somente para criminosos violentos + sistema da pena suave, justa e certa – Beccaria) não são consideradas. Reforma penal na contramão da nova história. Nova história que deve ser construída para o salvamento do sistema capitalista e das burguesias governantes, se é que querem ser mantidos.

Sugerem-se as seguintes teses:

Tese 1: o sistema econômico capitalista (o pior de todos, com exce-ção dos demais), cada vez mais contestado no mundo todo (ocidental e oriental), em razão das suas fraudes (como a de 2008), denominadas de “crises”, bem como em virtude das suas injustiças e desigualdades profundas (com a consequen-te divisão de classes), está cavando seu próprio abismo na proporção em que aumentam a burrice, a irracionalidade e as improvisações das classes burguesas dominantes e gover-nantes.

Tese 2: é especialmente no campo criminológico e político criminal, hoje inteiramente dominado pela criminologia populista-mi-

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diática-vingativa, fundada na emotividade e passionalidade decorrentes do delito (como descreveu Durkheim), em que se nota com mais evidência a irracionalidade do pensamento mitológico.

Tese 3: precisamente nos países mais violentos do planeta, a burgue-sia dominante vem conduzindo o processo de criminalização primária (produção da legislação penal) e secundária (atua- ção seletiva da polícia, Ministério Público, juízes, etc.) de for-ma totalmente equivocada. Isso está mais do que evidente, uma vez mais, no processo de reforma do Código Penal brasi-leiro, que novamente está iludindo a população com a oferta de dois produtos fraudulentos (quando pensamos em efeitos preventivos): (a) endurecimento das leis penais; e (b) encarce-ramento massivo.

Tese 4: essa política fraudulenta (porque totalmente ineficaz a mé-dio ou longo prazo) está agravando diária e assustadoramente a situação desses países e dos seus presídios, vergastados pela violência epidêmica, porque, enquanto ilude a população com cosméticos e placebos charlatões, adia o enfrentamento racional do problema da segurança e da criminalidade.

Assunto Especial – Doutrina

O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário

A Nudez do Rei: o Estado Punitivista e a Necessidade Abolicionista

VERA MARIA GUILhERMEGraduada em Educação pela PUC/RJ (1987), Bacharel em Direito (2012), Pós-Graduanda em Direito Penal e Processual Penal no Uniritter (POA), Pós-Graduanda em Direito de Família Con-temporâneo e Mediação (FADERGS), Mestranda em Ciências Criminais na PUCRS. Autora do Livro Quem Tem Medo do Lobo Mau? A Descriminalização do Tráfico de Drogas no Brasil – Por uma Abordagem Abolicionista (2013).

RESUMO: A autora pretende apresentar algumas contradições presentes na relação Estado brasilei-ro-sociedade a partir de uma crítica à política antidrogas implementada pelo Governo brasileiro desde 2006, de cunho punitivista e encarcerador, apoiada por uma mídia essencialmente dependente do Estado e pelo silêncio dos intelectuais outrora opositores de práticas excludentes. Passa a propor, então, algumas questões levantadas por autores abolicionistas para que seja possível uma mudança, considerando a sociedade organizada como personagem central no processo de mudança.

PALAVRAS-CHAVE: Punitivismo; Estado; sociedade; intelectuais; mídia; abolicionismo.

O título deste texto remete a uma história muito conhecida e aprecia-da pelas crianças da minha geração. Com o passar do tempo, pode ter caído no esquecimento, razão pela qual passo a recontá-la a partir de agora.

Era uma vez um rei extremamente vaidoso. Tinha orgulho extremo de suas qualidades, enxergando inclusive as que não possuía, e comemorava intensamente as suas conquistas à frente do seu reino.

Próximo a uma data comemorativa que incluiria festejos públicos, apareceu no reino um homem se dizendo um grande alfaiate, capaz de fazer as roupas mais exclusivas e luxuosas do mundo, e propôs ao gover-nante fazer um traje à sua altura. Como tudo que é bom custaria caro, mas nada acima do que o rei podia pagar, o rei, extremamente orgulhoso, ficou encantado com a possibilidade de usar uma roupa que fosse inesquecível aos olhos de seus súditos. O preço elevado só ressaltava a sua condição econômica. Acertaram tudo, e o alfaiate começou seus trabalhos.

Foram tiradas as medidas e o traje começou a ser experimentado no corpo do rei. Na primeira prova, o rei disse não estar vendo tecido algum. O alfaiate comentou que aquele traje era tão especial que apenas os inteli-

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gentes teriam capacidade de ver o tecido e os bordados com fios de ouro. Imediatamente o rei passou a ver a beleza e o luxo do traje em todos os seus detalhes. E assim foi até o dia dos festejos públicos. Segundo o cerimonial, o rei sairia em desfile pelas ruelas do reino vestindo seu traje exclusivo.

No dia do desfile, a população estranhou a nudez do rei, e começou um burburinho por onde ele passava em comitiva. Mas o rei, do alto de sua arrogância, ria da burrice de seus súditos – eram incapazes de perceber a beleza de seu traje. Estes, por sua vez, com medo de represália real, se res-tringiam aos cochichos.

Até que uma criança (como só poderia ser) percebeu a nudez real e gritou: “O rei está nu!”, e caiu na risada. Em um primeiro momento, o rei manteve seu ar de superioridade, mas, depois de algum tempo, começou a se dar conta de que, de fato, estava nu, mediante a insistência e a convicção da criança. E mais, todo o povo começou a rir e a gritar: “O rei está nu”. Envergonhado por sua própria burrice, o rei saiu em disparada para o seu palácio.

Ouvi versões de que o rei teria chamado o alfaiate e exigido seu di-nheiro de volta. O alfaiate teria alegado a burrice do rei para não devolver o dinheiro, e que tudo teria ficado na mesma situação (o rei sem o dinheiro e sem a roupa, mas com seu orgulho por poder pagar intacto). Ouvi, ainda, outra versão, a de que o alfaiate teria devolvido o dinheiro e sido expulso do reino. Confesso, porém, que nunca me interessei em buscar a “moral da história”, pois o que me fascinava – e fascina até hoje – é a sagacidade do menino, seu destemor em dizer aquilo que os adultos (por sua educa-ção, socialização, oportunismo ou hipocrisia) não tinham coragem de dizer abertamente.

Entre nós, o rei também está nu. Em certas situações tal nudez salta aos olhos de forma inegável.

As imagens feitas por um preso, através de um celular, depois da de-capitação de colegas de Pedrinhas, no Maranhão, divulgaram bem mais do que alguns chamaram de “selvageria” dos presidiários, desrespeito à vida humana pelos “marginais” – colocou em evidência a política encarceradora implementada pelo Governo brasileiro nos últimos anos e seu descaso fren-te aos direitos humanos no sistema carcerário nacional1.

1 Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/120052191/Presidio-Central-de-Porto-Alegre-Representacao-na-Comissao-Interamericana-de-Direitos-Humanos>. Acesso em: 3 fev. 2014.

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No centro de tudo isso, a política antidrogas escolhida pelo Governo brasileiro, expressa na Lei nº 11.343/2006, repleta de normas penais abertas e em branco, delegando a terceiros (que não os legisladores) a definição da identidade e dos critérios caracterizadores dos “criminosos”2.

Uma sociedade historicamente excludente, que identifica como si-nônimo de progresso a ampliação do consumo, exige uma solução, uma destinação aos improdutivos (não consumidores)3. Ao seu encontro, um sis-tema representativo no qual os candidatos, para obterem êxito, necessitam de propostas políticas e projetos que respondam à vontade dessa sociedade, muito fomentada pela mídia. Dentro dessa lógica político-eleitoreira, as propostas punitivistas vêm ganhando cada vez mais espaço. Nos últimos anos, as propostas que visam a criminalizar condutas e movimentos sociais se proliferam a olhos vistos, especialmente em resposta a acontecimentos considerados chocantes ou tendo por pretexto eventos importantes, como agora é a Copa do Mundo.

A sociedade excludente e o Governo que aí está (com seu discurso de inclusão), de forma curiosa, se complementam. Isso porque cabe a ele, Governo no controle da máquina estatal, realizar sonhos manifestos pela sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, buscar manter-se no poder por maior tempo através de reeleições.

O discurso do Governo menciona a inclusão, através da ascensão da classe C, a “nova classe média”, o desenvolvimento econômico, os avanços na saúde e na educação, o fortalecimento da democracia, a necessidade de um combate à violência (costumeiramente identificada com o tráfico de drogas) e a ideia de “segurança pública”. Em função da resposta eleitoral às ansiedades sociais quanto aos “criminosos”, a política antidrogas vem a calhar: aparece como uma solução para os problemas de saúde pública (uso de drogas tornadas ilícitas)4 e de ordem pública.

Assim, um governo que se autodefinia como de esquerda acabou sancionando e implementando a política antidrogas vigente no país hoje, vem sancionando leis de cunho autoritário, cooptando intelectuais outrora contestadores da ordem para ocuparem cargos técnicos (através de concur-sos ou distribuição de cargos de confiança), investindo cada vez mais em

2 GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no Brasil – Por uma abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

3 A noção de que “cada um tem seu lugar” se fez bastante presente nos episódios dos chamados “rolezinhos” em diversas cidades brasileiras.

4 KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a liberdade. Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 3, 2009.

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propagandas governamentais nos meios de comunicação, cooperando para a implantação das UPPs5, inclusive com o oferecimento da Força Nacional, além de realizar o que chamo de “faxina social” – o encarceramento e afas-tamento daqueles que não têm capacidade de consumir6.

O resultado da soma do silêncio dos intelectuais7, à influência da mídia e aos interesses político-eleitoreiros, combinação esta debatida por Mathiesen8, se apresenta de forma cristalina no caso brasileiro.

Os intelectuais simpáticos ao Governo brasileiro (e a seus aliados es-taduais e distrital) costumam se dizer contrários à política antidrogas imple-mentada, mas, quando seu posicionamento é questionado, a parte central de suas críticas está na descriminalização do usuário e na legalização das drogas. Não é por acaso que o presidente uruguaio tem sido considerado, por sua política quanto ao usuário, autor de uma proposta a ser estudada, ainda que o uso aprovado em terras uruguaias tenha que seguir critérios de nacionalidade, quantidade e cadastramento de usuários por parte do Esta-do9. Ou seja, é uma liberação vigiada, controlada pelo Estado.

Em polo completamente adverso ao dos usuários se encontram os in-divíduos considerados traficantes, como se fosse possível imaginar a obten-ção das substâncias a partir de um evento divino – Seriam os traficantes os novos invisíveis, imperceptíveis nesse debate? Penso que isso ocorre porque os traficantes, em geral, são identificados naqueles indivíduos de nenhuma ou pouca escolaridade, nenhuma ou pouca renda, morador de periferia, sem perspectiva de consumo. Portanto, social e geograficamente distante dos intelectuais, diferentemente dos usuários. Além disso, aos traficantes poderá caber o encarceramento, ao passo que aos usuários o cumprimento de pena a céu aberto. Ou seja, os usuários não são os principais alvos da política encarceradora proposta pela lei em vigor, embora sejam criminali-zados. Não serão depositados por um bom período de suas vidas no sistema carcerário, não estarão sob a responsabilidade direta do Estado, não terão que sobreviver à lógica exterminadora do sistema10. Esses desafios caberão

5 BATISTA, Vera Malaguti. Paz armada: criminologia de cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012.6 GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no Brasil – Por

uma abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.7 MATHIESEN, Thomas. Silently Silenced: essays on the creation of acquiescence in modern society.

Winchester: Waterside Press, 2004.8 MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI – Abolição, um sonho possível? Disponível em: <http://

revistas.pucsp.br>. Acesso em: 14 maio 2012.9 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/12/1385863-ativista-que-ja-foi-presa-por-

plantar-maconha-critica-lei-que-legaliza-erva-no-uruguai.shtml>. Acesso em: 3 fev. 2014.10 PEREIRA, Letícia Meleu; GUILHERME, Vera M. De que morremos apenados durante a execução pena na

região metropolitana de Porto Alegre: genocídio autorizado? In: ÁVILA, Gustavo Noronha de (Org.). Fraturas do sistema penal. Porto Alegre: Sulina, 2013.

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aos traficantes. Quando muito, quando questionados sobre o encarcera-mento de um grande número de pessoas em função da acusação por tráfico, esses mesmos intelectuais apresentam como alternativa a decisão holandesa de fechamento de suas cadeias, considerada avançada, inovadora, um mo-delo (quem sabe?). Mas, nesse caso, parecem os debatedores se esquecer de que ainda assim existe pena; a diferença é que será cumprida a céu aberto. Logo, não há uma ruptura com a vontade de punir, mas sim uma mudança no espaço em que isso vai se dar.

O mais impressionante de toda essa cooptação dos intelectuais está na sua cegueira e aparente ingenuidade (?) frente às situações-problema com as quais defrontam: seja na descriminalização do usuário ou na lega-lização uruguaia (como se a questão das drogas tornadas ilícitas ainda não tivesse recebido um tratamento legal – logo, é legalizada, em sentido pleno do termo), o Estado continua ditando as regras do jogo, regulando merca-dos, fiscalizando qualidades e quantidades, definindo o que é tolerável ou não (e, devo dizer, “tolerância” não é o melhor termo nem a melhor política quando se fala em direitos), lucrando com a atividade. Não conseguem, via de regra, pensar em ações que envolvam a coletividade, que reconheçam na sociedade a capacidade e o poder de se organizar e definir seus inte-resses. Os Governos podem até acenar com a possibilidade de, uma vez ocupando os espaços do poder político, poder haver uma mudança com a participação dos intelectuais. Mas a mudança que mais salta aos olhos se dá nos ocupantes dos cargos e das funções. Parecem esquecer suas histórias de vida e suas promessas, alegando que, antes, tudo era ainda pior do que agora e que agora se trabalha no limite do possível. Essa é a lógica do poder estatal, apoiada pelo Direito, a proposta da manutenção do status quo.

Mas os intelectuais, isoladamente, não influenciam tantas pessoas nem definem políticas. O trabalho ideológico precisa ser alicerçado, pavi-mentado por algo mais popular, mais acessível. Aí entra em cena a mídia, grandemente patrocinada por verbas oficiais para exibirem publicidade so-bre as grandes conquistas do Estado, influenciando inclusive nas pautas dos noticiários. Canais de televisão e estações de rádio, operantes pelo sistema de concessão, fomentam a visão do tráfico de drogas como o inimigo nú-mero um dos habitantes das grandes cidades, a ideia de que vivemos em um país em que reina a impunidade e fomentam a busca pela vingança. Seja em programas mais populistas ou nas pautas dos noticiários, o chamado “poder paralelo” ganha força, as UPPs são apresentadas como reconquista do ter-ritório outrora ocupado pelos traficantes (atenção ao termo “reconquista” e ao fato de que as comunidades “pacificadas” sejam grandes desconhecidas

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do Estado), embora os moradores, muitas vezes, expressem ter mais medo da polícia do que dos traficantes, e reclamem das novas contas que têm para pagar11.

A identificação do inimigo possibilita a ignorância de direitos e garan-tias, em nome da preservação da paz e da ordem. Paz armada12. Muitas prá-ticas autoritárias se concretizam em nome do bem da comunidade, da “vida normal”, da tranquilidade dos moradores, ainda que destruam relações e práticas sociais nas comunidades em que as UPPs se apresentam como úni-ca alternativa para a preservação da ordem13. O combate ao inimigo fo-menta ainda uma indústria do medo14 e uma falsa necessidade de vigilância contínua, não só por parte de Governos, como também pela própria socie-dade15. Internalizamos a necessidade do combate e banalizamos violações de direitos e garantias, como se fossem um mal necessário à vida social16. O que não percebemos é que, diante de normas penais em branco e abertas, qualquer um de nós pode ser o inimigo, bastando que nos seja atribuída essa condição. E, em uma sociedade que encontra na crescente criminali-zação uma resposta à “impunidade”, em algum momento esse risco passa a ser real. A produção de normas infraconstitucionais de cunho autoritário17 nos torna, a todos, sujeitos a isso. É mera questão de oportunidade.

E as oportunidades se constroem, principalmente, através das elei-ções. Período eleitoral significa uma espécie de prestação de contas por parte dos que desejam ser reeleitos e promessas por parte de todos os can-didatos. E tudo isso deve arregimentar o maior número possível de eleitores, ainda que não sejam cumpridas as promessas durante os mandatos. Mas essa luta pelos votos revela as mais diversas intenções – sendo a criminaliza-ção um dos pontos fortes nos últimos anos. Redução da maioridade penal, penas mais longas, extinção de progressão de regime, nacionalização do projeto das UPPs são apenas alguns dos pontos que, certamente, serão de-batidos. Isso para não falar das alianças regionais e nacional, e o peso que isso tem na formação dos Governos eleitos. Dentro da conjuntura brasileira atual, não seria surpreendente um congresso mais conservador no âmbi-

11 MORRO dos Prazeres. Direção: Maria Augusta Ramos. Documentário, 2013 (duração 90 minutos).12 BATISTA, Vera Malaguti. Paz armada: criminologia de cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012.13 MORRO dos Prazeres. Direção: Maria Augusta Ramos. Documentário, 2013 (duração 90 minutos).14 CHRISTIE, Nils. Crime Control as Industry. 3rd. edition. Oxon: Routledge, 2000.15 MATHIESEN, Thomas. Towards a surveillant society. Hook, Winchester: Waterside Press, 2013.16 PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: ICPC Editora Ltda.,

2012.17 KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro:

Instituto Carioca de Criminologia, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p. 79-92.

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to nacional, assembleias menos progressistas e governos federal e estadual com políticas cada vez mais rigorosas no âmbito do direito penal. Com raras exceções, campanha política não é momento de convencimento de novas posições. Em nome da eleição, vale tudo, uma espécie de “toma lá, dá cá”. Por ser o projeto político partidário movido pelo desejo de ocupar o Estado e lá se manter pelo maior tempo possível, a lógica aponta para uma concor-dância com a chamada “opinião pública”18.

A resposta ao punitivismo não está, assim, dentro da esfera do Esta-do, já que sua própria existência se consolida através do uso da força e de normas legais que possibilitem o controle da situação. Propor mudanças constitucionais ou legislativas em abstrato é abortar qualquer tentativa de mudança em sentido progressista, caso a representação política espelhe a “opinião pública”. O que temos até agora, em relação à política antidrogas, é um recrudescimento de tratamento tanto em relação ao usuário (projeto Osmar Terra)19 quanto ao traficante.

Faz-se necessário gritar que o rei está nu, mostrar as contradições desse sistema excludente, explicitar os efeitos do punitivismo, exibir os inte-resses satisfeitos por essa dinâmica encarceradora20, propor que a sociedade tome para si o projeto de mudanças em direção à liberdade, exercitando práticas libertárias. É nesse sentido que o abolicionismo penal pode contri-buir nas suas mais diversas vertentes.

Por que temos prazer em controlar o outro? Por que a punição exerce tamanho fascínio sobre nós? Porque confundimos justiça com vingança? Por que, dependendo da situação, os fins justificam os meios? Por que naturali-zamos tudo aquilo que nos é dito e ficamos inertes diante dos absurdos do cotidiano? Por que, em nome de uma democracia, aceitamos as leis como são e só vislumbramos saídas institucionais para os problemas que acon-tecem? Acredito serem essas questões a partir das quais podemos avançar.

Pensar o abolicionismo penal hoje não é questão de possibilidade. É uma necessidade. As respostas apresentadas pelo Estado punitivista não concretizam as promessas feitas. Precisamos de alternativas fundamentadas

18 GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no Brasil – Por uma abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

19 Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/pl-lei-drogas-deputado-osmar-terra.pdfacessadoem>. Acesso em: 3 fev. 2014.

20 CHRISTIE, Nils. Crime Control as Industry. 3rd. edition. Oxon: Routledge, 2000.

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em outros princípios, que não a prática político-eleitoreira oportunista, a criação de inimigos de ocasião ou a “faxina social” dos indesejados.

A política antidrogas implementada pelo Brasil é um terreno fértil para a provocação do questionamento sobre as “verdades” apresentadas. A análise dos seus desdobramentos no cotidiano permite vermos que o rei está nu. Falta apenas conseguirmos mais vozes para gritarmos, juntos, diante do cortejo...

REFERÊNCIAS

BATISTA, Vera Malaguti. Paz armada: criminologia de cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

CHRISTIE, Nils. Crime Control as Industry. 3rd. edition. Oxon: Routledge, 2000.

GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no Brasil – Por uma abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a liberdade. Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 3, 2009.

MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI – Abolição, um sonho possí-vel? Disponível em: <http://revistas.pucsp.br>. Acesso em: 14 maio 2012.

______. Silently Silenced: essays on the creation of acquiescence in modern society. Winchester: Waterside Press, 2004.

______. Towards a surveillant society. Hook, Winchester: Waterside Press, 2013.

PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e inseguran-ça. Curitiba: ICPC Editora Ltda., 2012.

PEREIRA, Letícia Meleu; GUILHERME, Vera M. De que morremos apenados durante a execução pena na região metropolitana de Porto Alegre: genocídio autorizado? In: ÁVILA, Gustavo Noronha de (Org.). Fraturas do sistema penal. Porto Alegre: Sulina, 2013.

FIlMe

MORRO dos Prazeres. Direção: Maria Augusta Ramos. Documentário, 2013 (duração 90 minutos).

20 �������������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – ASSUNTO ESPECIAL – DOUTRINA

sItes

Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/120052191/Presidio-Central-de-Por-to-Alegre-Representacao-na-Comissao-Interamericana-de-Direitos-Humanos>. Acesso em: 3 fev. 2014.

Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/12/1385863--ativista-que-ja-foi-presa-por-plantar-maconha-critica-lei-que-legaliza-erva-no--uruguai.shtml>. Acesso em: 3 fev. 2014.

Assunto Especial – Doutrina

O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário

A Indelegabilidade da Execução da Pena e a Inconstitucionalidade da Terceirização Prisional no Brasil

JACINTO TELES COUTINhOEspecialista em Direito Público pelo CEUT, Habilitado em Direito Penal pela UESPI, Graduado em Direito pela FAETE, Aprovado no V Exame Nacional da OAB, Agente Penitenciário e Con-selheiro Penitenciário do Piauí (2005-2013), Foi Vereador, Assessor Jurídico da Prefeitura de Teresina, Presidente da CDH da Câmara Municipal de Teresina, Diretor Jurídico da Confedera-ção Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis – Cobrapol do SINPOLJUSP e Coordenador do Fórum Nacional de Assuntos Penitenciários.

PALAVRAS-CHAVE: Execução penal; regime disciplinar diferenciado; persecução penal; terceirização prisional; inconstitucionalidade.

SUMÁRIO: Introdução; 1 A execução penal como papel fundamental do Estado; 1.1 A persecução penal como função indelegável do Estado; 2 A incompatibilidade da terceirização no sistema peni-tenciário brasileiro; 2.1 Breve histórico acerca da terceirização; 2.2 Natureza jurídica; 3 O princípio constitucional da legalidade como obstáculo à terceirização e à privatização do sistema penitenciá- rio; 3.1 Ação civil pública (ACP) do Ministério Público impede terceirização de presídios no Ceará; 4 A omissão do Brasil para com as regras mínimas da ONU para tratamento dos prisioneiros; 5 A importância da implementação da PEC 308/2004 pelo Congresso Nacional para o sistema prisional; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva fomentar o debate sobre a execução da pena no Brasil e chamar à reflexão acerca do fato de que tal instituto é função indelegável do Estado, e que a conclusão da persecução penal ocorre com o efetivo término da execução da pena no estabelecimento penal; ao con-trário da posição majoritária da doutrina, que afirma ocorrer essa conclusão com o julgamento do acusado.

Isso se reflete de várias maneiras, principalmente por meio de propos-tas de terceirização de penitenciárias, como caminho natural à privatização da execução penal. Tais atitudes ignoram princípios legais e constitucionais, principalmente o da legalidade, expresso na Constituição da República Fe-

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derativa do Brasil (CRFB/1988) e o da indelegabilidade do poder de polícia à iniciativa privada, previsto na Lei nº 11.079/2004, que obstaculizam essa esdrúxula pretensão.

Enfim, procurar-se-á provar, durante toda a exposição do trabalho, que a execução da pena é realmente função indelegável do Estado, que a terceirização é essencialmente incompatível com a execução penal.

1 A EXECUÇÃO PENAL COMO PAPEL FUNDAMENTAL DO ESTADO

Conforme preconiza o art. 1º da Lei Federal de Execução Penal nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (LEP), “a execução penal tem por objeti-vo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do inter-nado”. Efetivar as disposições de sentença ou decisões criminais significa concretizar as finalidades da pena na sentença, garantindo a retribuição e a prevenção.

A LEP estabelece, ainda, os critérios para a classificação dos conde-nados, os quais devem levar em consideração os antecedentes e a persona-lidade do autor do delito. Tal classificação será feita por Comissão Técnica que elaborará o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisório, cujo texto constante do art. 6º da citada lei sofreu alteração por meio de Lei nº 10.792, de 01.12.2003, antes previa a pena restritiva de direitos e autorizava às autoridades com-petentes a propor as progressões e as regressões de regimes, bem como as conversões.

Nesse particular, é importante destacar que o exame de classificação se difere do exame criminológico, porque aquele é mais amplo e genérico, envolve aspectos relacionados à personalidade do condenado, suas carac-terísticas, sua vida familiar social e sua capacidade laborativa, orienta o modo de cumprimento da pena. Já este é mais específico, envolve aspectos psicológicos, psiquiátricos do condenado, atestando sua maturidade, dis-ciplina, capacidade de suportar frustrações, enfim, objetiva construir um prognóstico de periculosidade.

De acordo com Minhoto (2000), em seu livro Privatização de presí-dios e criminalidade, a gestão da violência no capitalismo global, um traço central das modernas democracias é o postulado do monopólio estatal do uso legítimo da força, segundo a clássica formulação weberiana.

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Nesses termos, o direito de privar um cidadão da liberdade, e de entregar a coerção, que o acompanha, constitui uma daquelas situações excepcionais que fundamentam a própria razão de ser do Estado, figurando no centro mesmo do sentido moderno de coisa pública e, nessa medida, seria intrans-ferível. (Minhoto, 2000 p. 87)

Nessa concepção, para que o Estado execute a pena, é importante destacar os diversos tipos de regimes previstos no sistema penitenciário, bem como suas diversas classificações conforme a LEP. O regime fechado, constante do art. 87, é cumprido na penitenciária; o semiaberto, em colônia agrícola ou industrial (art. 91); o aberto, em casa de albergado (art. 93). Nos diversos regimes aqui mencionados, observadas as suas peculiaridades, há que se ter como referencial o aspecto do trabalho e do estudo, que devem ser estimulados pela remição, conforme o art. 126 da LEP, alterado pela Lei nº 12.433/2011, a qual incluiu a possibilidade da remição também pelo estudo.

1.1 A persecução penAl coMo Função IndeleGáVel do estAdo

A doutrina tem se manifestado de forma unânime sobre o reconhe-cimento de que a persecução penal é função indelegável do Estado. Neste particular, Mirabete (2001) ensina que, praticado um fato caracterizado como infração penal, surge para o Estado, o jus puniendi, que só pode ser efetivado por meio do processo. Justamente porque é na ação penal que deve ser procedida em juízo a pretensão punitiva do Estado. A partir daí deverá sair a aplicação da sanção penal adequada. Para ser intentada a ação penal, é necessário que o Estado disponha de um mínimo de ele-mentos probatórios que indiquem a ocorrência da infração, bem como de sua autoria.

Indiscutivelmente, o meio mais comum para a colheita de tais ele-mentos é o inquérito policial. O Jurista penalista Júlio Fabbrinni Mirabete (2003), citando José Frederico Marques, autor do anteprojeto do Código de Processo Penal, classifica o inquérito assim: “A apuração de fato que confi-gure infração penal e respectiva autoria, para servir de base à ação penal ou às providências cautelares”.

Obviamente que este não é o único instrumento, já que ao Ministério Público, por incumbência constitucional e entendimento majoritário da ju-risprudência do Supremo, cabe também, diretamente, a colheita de provas à instrução da ação penal competente.

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Nos termos do art. 4º do CPP, cabe à polícia judiciária, a qual exer-cida pelas autoridades policiais competentes, a atividade destinada à apu-ração das infrações penais e da autoria por meio do inquérito policial, preparatório da ação penal, ou seja, como peça subsidiária desta. À soma dessa atividade investigatória com a ação penal promovida pelo Minis-tério Público ou do próprio ofendido, denomina-se de persecução penal (persecutio criminis). Com ela se procura tornar efetiva o jus puniendi resultante da prática do crime, a fim de se impor ao seu autor a sanção penal cabível.

Persecução penal significa, portanto, a ação de perseguir o crime; como diz literalmente o Dicionário Aurélio: “Qualquer violação grave da lei moral, civil ou religiosa; ato ilícito; contravenção”.

Registre-se que não encontramos na pesquisa bibliográfica para a feitura deste modesto estudo divergência no sentido de que a persecu-ção penal seja função típica de Estado. Quase a unanimidade da doutrina pesquisada ensina que sua conclusão deve se dar com o julgamento do acusado, pois é mínima a posição na doutrina brasileira de que a conclu-são da persecução penal se materialize com o cumprimento da pena, fato que deve ser repensado pela doutrina dominante dessa área penal e/ou penitenciária.

É fundamental destacar que o direito/dever de punir atribuído ao Es-tado, data venia aos contrários, não se conclui apenas com o julgamento do acusado, com a imposição da pena, em caso de sê-lo considerado culpado, haja vista que, no momento em que o sentenciado é encaminhado ao esta-belecimento penal ou a outro órgão para a execução de sua pena, continua o processo de punição do Estado, agora exercendo o direito/dever de punir e cuidar, desse que é comprovadamente o autor do delito.

A nosso sentir, a persecução penal só vai ser exaurida quando do integral cumprimento da pena. Independentemente do regime penitenciário a que esteja submetido o detento, este poderá vir a ter a persecução inter-rompida, inclusive por meio da fuga. A partir daí volta-se a persecução, ou seja, a perseguição do evadido continua até a sua recaptura para o retorno ao interior do estabelecimento penal.

A renomada penitenciarista Armida Bergamini Miotto (1992) defen-de, senão explícita, mas implicitamente, que a persecução penal deva se dar com a devida execução da pena, quando assegura taxativamente que o

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direito/dever de punir compete exclusivamente ao Estado, como parte inte-grante da persecução penal. Veja-se:

O direito de punir é um direito subjetivo público, estatal. Como todo direito subjetivo público, não é simples facultas agendi (como é o direito subjetivo privado), mas potesta agendi, poder de agir. Desdobra-se ele em três fases: a da cominação da pena, a da aplicação e a da execução. A cominação é feita pelo Poder Legislativo, na elaboração das leis (promulgadas pelo Executivo), constando, pois, de lei, para cada tipo de crime: a aplicação é feita pelo Po-der Judiciário (juiz tribunal), na sentença condenatória, segundo cada caso concreto; a execução é feita, tendo em vista a pena aplicada na sentença, formalmente pelo Poder Judiciário (juiz tribunal), formalmente pelo Poder Judiciário (juiz de execução) e praticamente pelo Poder Executivo (Adminis-tração Penitenciária). Nesse desdobramento em três fases sucessivas, o exer-cício do direito de punir compete a adequados órgãos dos três poderes do Estado. Em nenhuma das três fases pode o direito de punir ser transferido ou delegado a pessoas ou entidades privadas, nem a órgãos paraestatais, autar-quias etc. essa exclusividade da titularidade do direito de punir pelo Estado é uma conquista da civilização, em favor da garantia dos direitos pessoais, da tranqüilidade e segurança pessoais e sociais, e da justiça da punição. [...]. (Miotto, 1992, p. 112-113)

Ainda de acordo com Miotto (1992), não colidem com este princípio acima descrito, o jus querelandi, que é o direito que o Estado confere ao particular para, através de queixa ou representação, provocá-lo a exercer o direito de punir (jus puniendi). “O Estado ao ser provocado, procederá por meio de seus órgãos competentes e de acordo com a legislação penal e processual penal, para ao final aplicar e executar a pena, ou mesmo não aplicá-la, se assim for o caso”.

Comprovado como está, que verdadeiramente a execução penal é função indelegável do Estado, como também o é o processo até a fase de julgamento; a conclusão lógica desse raciocínio é a de que a execução da pena, irrefutavelmente, é a conclusão da persecução penal. Porque tanto aquela fase como esta são atividades jurisdicionais do Estado, do que decor-re a indelegabilidade dos serviços. A primeira se manifesta por meio do juiz sentenciante; já, a segunda, pelo juízo da execução penal.

Na execução, a persecução penal está intrinsecamente presente, ora na vigilância permanente dos agentes penitenciários do Estado na rotina da prisão, ora na recaptura do preso, quando este se evade, situação que ad-vém, principalmente, de um instinto natural de quem está privado da liber-dade, ou mesmo para se livrar de uma situação de humilhação, como uma

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espécie de autodefesa, cuja realidade jamais é admitida pelas autoridades do Estado ou mesmo para voltar a delinquir.

2 A INCOMPATIBILIDADE DA TERCEIRIZAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO

2.1 breVe hIstórIco AcercA dA terceIrIzAção

Terceirização deriva do latim tertius, que seria o estranho a uma rela-ção entre duas pessoas. Terceiro é o intermediário, o interveniente. No caso, a relação entre duas pessoas poderia ser entendida como a realizada entre o terceirizante e o seu cliente, sendo que o terceirizado ficaria fora dessa relação, daí, portanto, ser terceiro. A terceirização, entretanto, não ficaria restrita a serviços, podendo ser feita também em relação a bens e serviços ou produtos.

Com relação ao seu conceito, conforme Martins (2007), não existe na legislação vigente nenhuma definição sobre a denominação de terceiriza-ção, trata-se, na verdade, de uma estratégia na forma de administração das empresas, que tem por objetivo, bem definido, organizar a empresa e esta-belecer métodos da sua atividade empresarial. A utilização da terceiriza-ção pelas empresas traz problemas jurídicos que necessitam ser analisados, mormente no campo trabalhista. É evidente que a empresa deverá obedecer às estruturas jurídicas vigentes, principalmente às trabalhistas, sob pena de arcar com as consequências decorrentes de seu descumprimento, o que diz respeito aos direitos trabalhistas sonegados ao empregado. Visando a ilus-trar, para melhor entendimento sobre a tão falada terceirização, transcreve--se a seguir parte do que diz o Jurista Sérgio Pinto Martins:

Consiste a terceirização na possibilidade de contratar terceiro para a realiza-ção de atividades que geralmente não constitui o objeto principal da empre-sa. Essa contratação pode envolver tanto a produção de bens como serviços, como ocorre na necessidade de contratação de serviços de limpeza, de vigi-lância ou até de serviços temporários. Envolve a terceirização uma forma de contratação que vai agregar a atividade-fim de uma empresa, normalmente a que presta os serviços, à atividade-meio de outra. É também uma forma de parceria, de objetivo comum, implicando mútua e complementariedade. O objetivo comum diz respeito à qualidade dos serviços para colocá-los no mercado. A complementariedade significa a ajuda do terceiro para aperfei-çoar determinada situação que o terceirizador não tem condições ou não quer fazer. [...] Na verdade, os empresários pretendem, na maioria dos casos, a diminuição de encargos trabalhistas e previdenciários, com a utilização da terceirização, podendo ocasionar desemprego no setor [...]. (Martins, 2007, p. 24)

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Como aqui demonstrado, a terceirização é plenamente incompatível com a execução da pena, haja vista que esta é função indelegável do Esta-do, justamente por ser atividade-fim, já que é por meio do cumprimento da pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos que o autor do delito é devolvido à sociedade na perspectiva de que não retorne ao cometimento de ilícito penal.

2.2 nAturezA JurídIcA

Difícil é dizer qual a natureza jurídica da terceirização, pois, como visto, existem várias concepções a serem analisadas. Dependendo da hipó-tese em que a terceirização for utilizada, haverá elementos de vários con-tratos, sejam eles nominados ou inominados. Sérgio Martins sobre o assunto assim se manifesta:

Poderá haver a combinação de elementos de vários contratos distintos: de fornecimentos de bens ou serviços; de empreitada, em que o que interessa é o resultado, de franquia, de locação de serviços, em que o que importa é a atividade e não o resultado; de concessão, de consórcio, de tecnologia, knowhow, com transferência da propriedade industrial, como inventos, fór-mulas. A natureza jurídica será do contrato utilizado ou da combinação de vários deles. (Martins, 2007, p. 25)

Se a natureza jurídica da terceirização, nos segmentos aceitáveis, é tão difícil de ser caracterizada, imagine no sistema penitenciário, que não admite tal instituto. Poder-se-ia estabelecer uma denominação, fosse a ter-ceirização para o fornecimento de alimentação nos estabelecimentos pe-nais, nesse particular, acredita-se ser compatível com as atividades do sis-tema prisional do País. É realmente dificílimo nominar a natureza jurídica da terceirização na execução penal, porque patente é a sua dissociação da desejável ressocialização do apenado, são institutos visivelmente díspares.

3 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE COMO OBSTÁCULO À TERCEIRIZAÇÃO E À PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

O art. 5º, II, da CRFB/1988 consagrou o princípio da legalidade nos seguintes termos: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Logo, o princípio da legalidade é corolário do Estado Democrático de Direito, na medida em que estabelece a obriga-ção de o Estado, apenas e tão somente, exigir ações dos particulares ante a aprovação de leis em sentido amplo, respeitando o processo democrático e representativo, previsto no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.

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O princípio constitucional da legalidade é o fundamento básico do Estado Democrático de Direito, nesse diapasão somente a lei obriga de for-ma eficaz e validamente às pessoas físicas ou jurídicas, a fazer ou deixar de fazer algo. Porque pressupõe que a lei seja a manifestação clara da vontade da maioria, obviamente que tudo deve ocorrer em conformidade com o devido processo legislativo, indispensável ao Estado de Direito.

Constata-se, assim, que esse importante princípio constitucional é plenamente aplicável ao caso da terceirização ou privatização da execução da pena, isto é, para impedi-la, haja vista que em nenhum momento o Con-gresso Nacional, por meio de suas casas legislativas, Câmara dos Deputados e Senado Federal, editou qualquer espécie legislativa visando a tão falada terceirização ou mesmo a privatização do sistema prisional.

É fato público e notório no meio acadêmico que o princípio da legali-dade possui, ao menos, dois entendimentos de aplicabilidade, ou seja, com relação aos particulares é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Já, no que diz respeito à Administração Pública, o mesmo fundamento se apresenta ao contrário, pois a garantia para agir em determinada situação só será lícita se amparada no ordenamento jurídico, isto é, se calcada expres-samente em lei.

A lei para o particular significa pode fazer assim, enquanto que para o Poder Público significa deve fazer assim. O Estado não pode agir ao arrepio da lei, sob pena de violar a legalidade constitucional mencionada, além do princípio da segurança jurídica, que, indiscutivelmente, é a base primeira do Estado Democrático de Direito.

Essa conclusão nada mais é do que decorrência lógica do também princípio da legalidade, insculpido no caput do art. 37 da CRFB/1988. As-sim, não podendo o administrador público inovar sem que sua conduta esteja previamente definida e amparada por lei.

Nessa mesma linha, é importante observar o que leciona o Jurista Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto:

É inegável que o princípio da legalidade assume significado muito especial para o Direito Administrativo, visto que constitui o pilar de toda ordem jurídi-ca nacional, revelando-se elemento de garantia e segurança jurídica. A partir dai, deve o administrador público conscientizar-se de que não age em nome próprio, mas sim em nome da coletividade representando uma garantia aos administrados, pois qualquer ato da administração pública somente terá vali-dade de acordo com a lei, representando desta forma um limite para atuação do Estado [...]. (Peixoto, 2008, p. 1)

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Por outro lado, à luz do que dispõe o inciso III do art. 4º da Lei nº 11.079/2004, que institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da Administração Pública, impede a delegabilidade do poder de polícia para pessoa jurídica de direito privado. O inciso em referência assim disciplina a matéria: “III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado”. Como se observa, essa questão está amparada duplamente, já que a execução da pena é também reconhecida como função jurisdicional do Estado.

3.1 Ação cIVIl públIcA (Acp) do MInIstérIo públIco IMpede terceIrIzAção de presídIos no ceArá

É importante destacar que fatos concretos de terceirização na exe-cução da pena aconteceram em alguns Estados, entre eles os do Paraná e do Ceará, e continuam acontecendo, agora mais recentemente no de Mi-nas Gerais. Ocasião em que os dois primeiros entes públicos celebraram contratos com a Empresa Humanitas – Administração Prisional Privada S/C Ltda. Nesta oportunidade, destaca-se o caso do Ceará, cujo contrato visava à terceirização dos serviços necessários ao pleno funcionamento da Peni-tenciária Industrial Regional do Cariri.

O Ministério Público do Ceará, após ampla mobilização de segmen-tos da sociedade, como Pastoral Carcerária da Igreja Católica, OAB local, Sindicato dos Agentes Penitenciários, Fórum Nacional Permanente de As-suntos Penitenciários, entre outros, ajuizou ação civil pública por meio da Promotoria de Defesa da Moralidade Administrativa, cuja titularidade à época (dezembro de 2001) estava a cargo do promotor de Justiça, Eduardo Araújo Neto, visando à anulação do tal contrato administrativo, o qual rea-lizado, nas palavras do representante ministerial: “À margem da legalidade e de princípios constitucionais básicos”.

Ressalte-se que não somente os serviços de conservação e alimen-tação dos presos do estabelecimento penal, mas, inclusive, os serviços de segurança e gerência da administração penitenciária, todos ficaram a cargo da Empresa Humanitas.

Objetivando corroborar com o que aqui se expõe, transcreve-se fragmentos de argumentos lógicos que ajudaram a fundamentar a ACP do Parquet cearense:

João Marcello de Araújo Júnior, ao apresentar a obra coletiva por si coorde-nada, de nome Privatização das prisões (São Paulo: Revista dos Tribunais,

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1995), considera, baseado nos ensinamentos de René Ariel Dotti, “prova-velmente, o Professor brasileiro mais autorizado para falar sobre a lei de execução penal, por ter sido o mais notório dos seus autores”, “que a admi-nistração penitenciária participa da atividade jurisdicional”. O pessoal peni-tenciário, de qualquer nível, embora vinculado ao Poder Executivo para fins de gestão financeira e disciplinar, ao praticar os atos de execução são a longa manus do juiz da execução. Estão para este, assim como estão o Oficial de Justiça e o Escrivão. A administração penitenciária participa, portanto, da execução de decisões judiciais. Sendo, assim, a execução penal uma ativida-de jurisdicional e sendo, como se sabe, a atividade jurisdicional indelegável, devemos concluir que a administração penitenciária é, também, indelegável e, por isso, somente poderá ser exercida pelo Estado. [...]. (Ação Civil Pública nº 00810-2006-017-10-00-7, de 18 de dezembro de 2001)

O MP e o Poder Judiciário do Ceará prestaram relevantes serviços ao sistema penitenciário brasileiro, no momento em que, atendendo reivindi-cações de diversos segmentos sociais, por meio de ação civil pública, con-seguiram expurgar a famigerada terceirização prisional naquele Estado, na década passada. Essa decisão afastou a famigerada política da privatização da execução penal na região do Cariri cearense (Juazeiro/Crato). Foi assim defenestrado um modelo retrógrado, mas que já estava se proliferando por outras regiões do País. Ação como essa é digna de ser difundida, por todas as razões já elencadas.

4 A OMISSÃO DO BRASIL PARA COM AS REGRAS MÍNIMAS DA ONU PARA TRATAMENTO DOS PRISIONEIROS

As Regras Mínimas da ONU para tratamento dos reclusos são funda-mentais para a correta execução penal no País. Tais regras foram adotadas no Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tra-tamento dos Delinquentes, realizado em Genebra (Suíça), em 1955, apro-vadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU, por meio da Resolução nº 663, de 31 de julho de 1957, a qual foi aditada pela Resolução nº 2.076, de 13 de maio de 1977.

Em 25 de maio de 1984, por meio da Resolução nº 47/1984, o Con-selho Econômico e Social aprovou 13 procedimentos para a efetiva aplica-ção das Regras Mínimas supracitadas. Cujo objetivo visava a estabelecer princípios e regras de uma boa organização penitenciária, primando pelo adequado tratamento dos prisioneiros. Tendo como pressuposto básico fun-damental o que está consignado no art. 6º da Declaração Universal dos Di-

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reitos Humanos, que diz textualmente: “Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”.

Esse documento da ONU sobre as prisões, do qual o Brasil é signa-tário, embasou substancialmente a LEP de 1984, que, não se tem dúvida, é uma lei bastante avançada, mas pouco cumprida nos estabelecimentos penais Brasil afora.

Não é necessário conhecer pessoalmente para se ter uma noção da lamentável situação do sistema penitenciário brasileiro, basta que se obser-ve o Relatório da CPI do Sistema Carcerário de 2009 (Disponível em: http://www.camara.gov.br) para se comprovar que tanto as Regras Mínimas da ONU como a LEP são explicitamente violadas em todo o território nacional.

O cumprimento dessas Regras Mínimas sempre foi bastante ques-tionado, tanto é verdade que, em 1971, a Assembleia-Geral das Nações Unidas chamou a atenção dos Estados signatários para o cumprimento de todos os seus dispositivos, e para isso adotou resolução especial criando procedimentos para regulamentar tal cumprimento. Dos treze pontos proce-dimentais adotados pela ONU, visando ao efetivo cumprimento das Regras Mínimas, pelos Países-membros da ONU, destacamos aqui os seguintes:

Procedimento 1 – Todos os Estados cujas normas de proteção a todas as pessoas submetidas a qualquer forma de detenção ou prisão não estiverem à altura das Regras Mínimas para o tratamento de prisioneiros, adotarão essas Regras Mínimas.

Comentário: A Assembleia-Geral, em sua Resolução nº 2.858 (XXVI), de 20 de dezembro de 1971, chamou a atenção dos Estados-membros para as Re-gras Mínimas e recomendou que eles as aplicassem na administração das instituições penais e correcionais e que considerassem favoravelmente a pos-sibilidade de incorporá-las em sua legislação nacional. É possível que alguns Estados tenham normas mais avançadas que as Regras e, portanto, não se pede aos mesmos que as adotem. Quando os Estados considerarem que as Regras necessitam ser harmonizadas com seus sistemas jurídicos e adaptadas à sua cultura, devem ressaltar a intenção e não a letra fria das Regras.

Procedimento 2 – Adaptadas, se necessário, às leis e à cultura existentes, mas sem distanciar-se do seu espírito e do seu objetivo, as Regras Mínimas serão incorporadas à legislação nacional e demais regulamentos.

Comentário: Este procedimento ressalta a necessidade de se incorporar as Regras Mínimas à legislação e aos regulamentos nacionais, com o que se abrange também alguns aspectos do procedimento 1.

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Procedimento 3 – As Regras Mínimas serão postas à disposição de todas as pessoas interessadas, em particular dos funcionários responsáveis pela apli-cação da lei e do pessoal penitenciário, a fim de permitir sua aplicação e execução dentro do sistema de justiça penal.

Comentário: Este procedimento lembra que as Regras Mínimas, assim como as leis e os regulamentos nacionais relativos à sua aplicação, devem ser co-locados à disposição de todas as pessoas que participem na sua aplicação, em especial dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal penitenciário. É possível que a aplicação das Regras exija, ademais, que o organismo administrativo central encarregado dos aspectos correcionais or-ganize cursos de capacitação. [...].

As Regras Mínimas da ONU, de acordo com o Procedimento nº 3 transcrito, deveriam ser distribuídas a todas as pessoas interessadas, em par-ticular aos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal pe-nitenciário, a fim de permitir sua aplicação e execução no sistema de justiça criminal.

No Brasil, a maioria esmagadora dos juízes da execução penal e dos promotores de justiça não conhece integralmente as Regras Mínimas da ONU sobre tratamento de reclusos, tampouco o pessoal penitenciário, uma prova inequívoca do descaso com que o Estado brasileiro trata tão impor-tante questão.

5 A IMPORTÂNCIA DA IMPLEMENTAÇÃO DA PEC 308/2004 PELO CONGRESSO NACIONAL PARA O SISTEMA PRISIONAL

É importante destacar a necessidade de implementação da PEC 308/2004, haja vista está inserida diretamente nesse contexto do sistema penitenciário. Cuja proposta já aprovada em todas as comissões temáticas competentes sobre o tema, na Câmara dos Deputados, que institui a polícia penal, órgão que, entre outras funções, terá as de combater o crime organi-zado a partir do interior dos estabelecimentos penais, o Substitutivo aprova-do na Comissão Especial, sob a presidência do deputado Nelson Pelegrino (PT-BA), que discutiu o mérito da matéria, teve como relator o deputado Alberto Fraga (PTB-SP), que assim se manifestou:

Substitutivo adotado pela Comissão

Altera os arts. 7º, 21, 32, 39 e 144 da Constituição Federal, criando as polí-cias penitenciárias federal e estaduais.

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As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao Texto Constitucional:

Art. 1º O caput do art. 7º da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte inciso XIV-A:

“Art. 7º [...]

[...]

XIV – duração do trabalho de 6 (seis) horas diárias e 36 (trinta e seis) horas semanais, para o serviço prestado a estabelecimentos prisionais.” (NR)

Art. 2º O inciso XIV do caput do art. 21 da Constituição Federal passa a vigo-rar com a seguinte redação:

“Art. 21. [...]

[...]

XIV – organizar e manter a polícia civil, a polícia militar, a polícia penal e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assis-tência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos por meio de fundo próprio;

[...]” (NR)

Art. 3º O § 4º do art. 32 da Constituição Federal passa a vigorar com a se-guinte redação:

“Art. 32. [...]

[...]

§ 4º Lei federal disporá sobre a utilização pelo Governo do Distrito Fe-deral das polícias civil, militar e penal e do corpo de bombeiros militar.” (NR)

Art. 4º O § 3º do art. 39 da Constituição Federal passa a vigorar com a se-guinte redação:

“Art. 39. [...]

[...]

§ 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto nos incisos IV, VII, III, IX, XII, XIII, XIV-A, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII E XXX do caput do art. 7º, podendo a lei estabelecer requisitos diferencia-dos de admissão quando a natureza do cargo o exigir.” (NR)

Art. 5º O art. 144 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes incisos VI e VII e do seguinte § 10:

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“Art. 144. [...]

[...]

VI – polícia penal federal;

VII – polícias penais estaduais.

[...]

§ 10. Às polícias penais incumbe, no âmbito das respectivas circunscri-ções e subordinadas ao órgão administrador do sistema penitenciário da unidade federativa a que pertencer:

I – supervisionar e coordenar as atividades ligadas, direta ou indiretamen-te, à segurança interna e das áreas de segurança dos estabelecimentos penais;

II – promover, elaborar e executar atividades policiais de caráter preven-tivo, investigativo e ostensivo, que visem a garantir a segurança e a inte-gridade física dos apenados, custodiados e os submetidos às medidas de segurança, bem como dos funcionários e terceiros envolvidos, direta ou indiretamente, com o sistema penitenciário, nas dependências das unida-des prisionais, inclusive em suas áreas de segurança;

III – diligenciar e executar, junto com os demais órgãos da segurança pública estadual e/ou federal, atividades policiais que visem a imediata recaptura de presos foragidos das unidades penais;

IV – promover, elaborar e executar atividades policiais de caráter preven-tivo, investigativo e ostensivo, nas dependências das unidades prisionais e respectivas áreas de segurança, que visem a coibir a prática de infrações penais direcionadas às unidades prisionais, mediante a instauração de inquérito de polícia judiciária;

V – promover a defesa das instalações físicas das unidades prisionais, inclusive no que se refere à guarda das suas muralhas;

VI – executar a atividade de escolta dos apenados, custodiados e dos sub-metidos às medidas de segurança, para os atos da persecução criminal, bem como para o tratamento de saúde. [...]” (NR)

Art. 6º O quadro de servidores das polícias penais será oriundo, mediante lei específica de iniciativa do Poder Executivo, de transformação dos car-gos, isolados ou organizados em Carreiras, com atribuições de segurança a que se refere o art. 77 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.

Parágrafo único. Fica assegurado aos servidores das Carreiras policiais ci-vis, militares e bombeiros militares do Distrito Federal que exerçam suas atividades no âmbito do sistema penitenciário o direito de opção entre

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as Carreiras a que pertencem e a correspondente Carreira do quadro da Polícia Penal.

Art. 7º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publi-cação.

Sala da Comissão, em 17 de outubro de 2007. (Brasil, 2007, p. 1)

Com a criação da Polícia Penal no âmbito dos Estados-membros, do Distrito Federal e da União, haverá substancial alteração no sistema de in-vestigação criminal no País, já que à polícia penal será incumbida, além de outras, a função de promover, elaborar e executar atividades policiais de caráter preventivo, investigativo e ostensivo, nas dependências das unida-des prisionais e respectivas áreas de segurança, que visem a coibir o nar-cotráfico direcionado às unidades prisionais. Convém destacar que o texto aprovado na Comissão Especial que discutiu a PEC em referência, sofreu modificações superficiais posteriormente.

No Brasil, o crime organizado é comandado, em grande escala, de dentro dos presídios, mas atualmente os agentes penitenciários não têm po-der de investigação criminal, o que de certa forma favorece as ações cri-minosas nos estabelecimentos penais. A polícia civil dos Estados, a quem compete a investigação criminal, não dispõe das condições necessárias para promover a investigação adequada no interior desses estabelecimentos, ali-ás, esta instituição já faz além das condições que lhe são propiciadas pelos Governos, e um dos principais motivos por que não conseguem desenvol-ver a contento suas atribuições é justamente porque estão a cuidar de presos nas delegacias de polícia, em completo desvio de função.

Recebendo os agentes penitenciários as condições imprescindíveis à investigação, como investimento no conhecimento técnico, por meio de aparatos de inteligência, como as demais condições de trabalho, inclusive salariais, nenhuma outra categoria tem mais condições de investigar o crime organizado no interior dos presídios do que os agentes penitenciários, haja vista que estes abnegados profissionais conhecem mais do que ninguém as peculiaridades internas dos estabelecimentos integrantes do sistema peni-tenciário brasileiro.

O que lhes falta é a atenção das autoridades responsáveis pela gestão do sistema prisional, já que esse segmento da segurança pública está sub-metido ao caos. A aprovação da PEC 308 traz, inexoravelmente, a perspec-tiva de um futuro melhor, não somente para os agentes penitenciários, mas, sobretudo, à população usuária dos serviços públicos de segurança, que

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convive no Brasil com setenta por cento dos presos que são colocados em liberdade, reincidindo na criminalidade.

A propósito, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ministro Cezar Peluso, afirmou ao Jornal Valor Econômico, em 05.09.2011, que sete em cada dez presos que deixam o sistema penitenciário voltam ao crime, uma das maiores taxas de reincidência do mundo.

É melhor também para os que cumprem pena, os detentos, já que os executores da execução penal (agentes prisionais) serão melhor qualifica-dos, conhecedores, e, consequentemente, respeitadores dos direitos funda-mentais da pessoa humana cerceada da liberdade.

Por outro lado, registra-se o fato relevante de retirar das estruturas físicas dos estabelecimentos penais os policiais militares, que ficarão a dis-posição da população, desenvolvendo suas funções constitucionais, quais sejam, as de atividades preventivas no combate ao crime e à preservação da ordem pública, medida mais que necessária, já que a população ressente-se tanto pela falta de efetivo policial no trabalho ostensivo.

CONCLUSÃO

A precariedade aviltante em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro é fato público, incontestável e estarrecedor. Da mesma forma que está comprovada, a nosso sentir, que sua solução não está na política de ter-ceirização ou privatização do sistema, seja pelo óbice constitucional e das normas vigentes em nosso ordenamento jurídico, seja pela própria essência da realidade peculiar à execução penal, que não se amolda às normas de mercado adotadas por essa política de terceirização.

Os institutos da terceirização e da privatização, com raríssimas exce-ções, são inaplicáveis e inservíveis aos serviços penitenciários, em especial àqueles relacionados à segurança, à disciplina e à gerência nos estabeleci-mentos penais, e ao efetivo acompanhamento ao/a presidiário(a), além da avaliação da individualização da execução da pena.

É evidente que ainda precisa-se de algumas inovações no ordenamen-to jurídico acerca do sistema penitenciário, com a edição de normas legais previstas no art. 59 da CRFB/1988, como leis e emendas constitucionais, en-tre as quais as que tenham o objetivo de regulamentar a Polícia Penal, essa que, formada e equipada adequadamente, como previsto na PEC 308/2004, terá grande responsabilidade no combate ao crime organizado no interior

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dos estabelecimentos penais do Brasil, reconhecendo constitucionalmente a categoria de agentes penitenciários, que, não obstante as recomendações da ONU, de que esses profissionais exercem funções de alta relevância para o Estado, padecem à falta de uma política de valorização adequada.

O que efetivamente falta é o Estado brasileiro tratar o sistema peniten-ciário com a necessária prioridade e seriedade que a questão requer. Deve ser tratado como função típica e indelegável, já que o direito/dever de punir atribuído ao Estado não se conclui apenas com o julgamento do acusado, com a imposição da sanção penal, quando julgado culpado, mas quando se constata que é no sistema penitenciário que o condenado vai se submeter às regras da execução da pena que representa a conclusão da persecução penal.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ação Civil Pública nº 00810-2006-017-10-00-7, datada em 18 de dezembro de 2001. Disponível em: www.pgj.ce.gov.br. Acesso em: 20 mar. 2013.

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 20 abr. 2013.

______. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984: Institui a Lei de Execução Penal. Legislação federal. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 20 abr. 2013.

______. PEC 308/2004. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em: 10 maio 2013.

MARQUES, J. F. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1965.

MARTINS, Sergio Pinto. A terceirização e o direito do trabalho. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2007.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 11. ed. São Paulo: Atlas 2001.

MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo Malheiros, 1994.

MIOTTO, Armida Bergamini. A violência nas prisões. 2. ed. Goiânia: Centro Editorial e Gráfico/UFG, 1992.

Assunto Especial – Doutrina

O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário

Os Níveis de Dor Intencional e o Holocausto Nosso de Cada Dia: Renúncia aos Discursos de Justificação da Pena e ao Mito da Ressocialização

SALAh h. KhALED JR.Professor Adjunto de Direito Penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Professor Permanente do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS), Mestre em História (UFRGS), Especialista em História do Brasil (Fapa), Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS), Licenciado em História (Fapa), Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: para Além da Ambição Inquisitorial (2013).

RESUMO: O artigo em questão problematiza a pena privativa de liberdade no Brasil a partir do abo-licionismo de Nils Christie, das teses sobre a história de Walter Benjamin e da teoria agnóstica da pena de Zaffaroni, indicando a necessidade de rompimento com os discursos de justificação da pena, para que ao menos seja possível ter a esperança de reduzir os danos da catástrofe penitenciária que chamamos de holocausto nosso de cada dia.

PALAVRAS-CHAVE: Criminologia; teoria da pena; ressocialização; abolicionismo; modernidade.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Segurança e catástrofe: ardis do discurso moderno; 2 O holocausto nosso de cada dia: breve relato de uma tragédia brasileira; 3 Minimizar a dor ou justificar a pena como meio de reintegração social?; 4 A necessária rejeição aos discursos justificantes da pena; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

Em 1993 foi lançada a edição argentina de Indústria do Controle do Delito: La Nueva Forma del Holocausto? – uma das obras mais expressivas de Nils Christie –, com direito a prefácio de Zaffaroni. No prefácio, o autor discu-tiu o argumento central da obra de Christie: a sociedade industrial conduziu ao Holocausto – como seu ponto máximo de realização –, e esse parece ser o rumo do sistema penal dos Estados Unidos, que caminha na mesma direção.

Sem discordar completamente de Christie, Zaffaroni afirma que é mo-deradamente mais otimista e aponta que existem outras interpretações, que

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consideram que o Holocausto foi produto de circunstâncias específicas da Alemanha – que dificilmente se repetiriam em outro lugar –, não sendo possível estabelecer uma correlação direta entre o sistema punitivo das so-ciedades industriais e a emergência do Holocausto. Desse modo, mesmo que o modelo estadunidense possa conduzir a tragédias análogas às que foram cometidas na Alemanha, fica em aberto o quanto a sua tecnologia punitivista seria exportável para outros países, já que a situação americana é produto de um contexto muito particular.

Zaffaroni considera que o racismo também é um elemento necessário para a compreensão do Holocausto. Para ele, racismo é um discurso que pretende legitimar o domínio de um grupo humano sobre outro grupo hu-mano, por razões de ordem biológica que explicariam a superioridade de suas pautas e costumes. Ele destaca que o racismo é extremamente susce-tível de apropriação e instrumentalização política e aponta que o discurso penal já nasceu racista: a esterilização de anormais se iniciou nos Estados Unidos e se espalhou por toda Europa, ainda que o Holocausto tenha ocor-rido especificamente na Alemanha.

Apesar de concordar em grande medida com Christie, Zaffaroni afirma que não é apenas o desenvolvimento industrial que provoca o Holocausto, mas o desenvolvimento industrial em um país com cultura profundamente racista e que tenha certas minorias a destruir. Nesse sentido, é possível iden-tificar a existência de uma tradição cultural racista na Alemanha (que con-tribuiu para o Holocausto) e nos Estados Unidos (o que explicaria a massiva criminalização da população negra).

Com base nesse argumento, ele sustenta que o modelo estadunidense não seria automaticamente exportável e que não teríamos como ter qual-quer coisa semelhante à escala da “guerra contra as drogas” estadunidense na América Latina. Zaffaroni contrasta a tese de Christie com a realidade marginal latino-americana e aponta que, no Brasil, as penitenciárias estão lotadas, mas que é impossível cumprir as ordens de prisão (cerca do triplo da população carcerária) por falta de espaço, o que favorece a seletividade policial e, consequentemente, a corrupção. Ele encerra o prefácio insistindo que a parcial dissidência com Christie o leva a crer em um espaço mais amplo para prevenir um novo Holocausto e a sua extensão, como também para diminuir a magnitude dos genocídios que já se encontram em curso1.

Mais de vinte anos se passaram desde então. Será que o grande mes-tre argentino estava certo?

1 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p. 11-20.

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1 SEGURANÇA E CATÁSTROFE: ARDIS DO DISCURSO MODERNO

Por ora vamos manter a pergunta em suspenso e refletir um pouco mais sobre a questão. Embora Christie introduza a discussão sobre socie-dade industrial e o Holocausto a partir de Bauman, a estratégia de análise aqui proposta tem como ponto de partida as teses sobre a história de Walter Benjamin.

Benjamin foi um dos espíritos mais sensíveis de seu tempo. De cer-ta forma, soube perceber que a Europa decididamente caminhava para a maior das catástrofes que o homem já conheceu. Na nona tese sobre a história, Benjamin – em diálogo com P. Klee – evoca a imagem de um anjo que não vê no passado uma mera cadeia de acontecimentos orientados ao progresso, mas uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína. O anjo gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos, mas uma tempestade sopra do paraíso e o impele com força irresistível para o futuro, de forma que ele não consegue mais fechar suas asas. Enquanto isso, o amontoado de ruínas cresce até o céu. Benjamin cha-ma a tempestade de progresso2. Como Benjamin intuiu, o progresso acabou produzindo a maior das catástrofes: o Holocausto não foi uma mancha na evolução histórica da racionalidade moderna. Foi a expressão mais extrema de uma grande tragédia possibilitada pela ênfase desmedida na técnica e que no final acumulou ruína sobre ruína, com um custo incalculável de vi-das humanas ceifadas por um poder punitivo extremamente seletivo3. E tudo isso em nome da igualdade e da segurança, categorias que por excelência conduziram ao extermínio massivo da diferença, percebida como obstáculo para o progresso. O direito penal esteve envolvido profundamente no ponto culminante dessa barbárie, através de um de seus grandes dogmáticos, o penalista alemão Edmund Mezger4.

2 LOWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incendio. Una lectura de las tesis “sobre el concepto de historia”. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica de Argentina, 2002. p. 100-101.

3 Para Christie, “el exterminio no se considera una excepción, sino una prolongación lógica de nuestro principal tipo de organización social. Desde este punto de vista, el Holocausto se convierte en una consecuencia natural de nuestro tipo de sociedad, no una excepción. En lugar de ser una regresión a una etapa anterior de barbarie, el exterminio se convierte en un hijo de la modernidad. Las condiciones que dieron lugar al Holocausto son precisamente las que han ayudado a crear la sociedad industrial: la división del trabajo, la burocracia moderna, el espíritu racional, la eficiencia, la mentalidad científica y, en particular, el hecho de relegar valores de importantes sectores de la sociedad” (CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p. 166).

4 Mezger nasceu em 1883 e faleceu em 1962. Foi aluno de Beling, Binding, Frank e Von Lizst. Foi discípulo de Beling. Publicou a primeira edição de seu Tratado de direito penal em 1931. Sucedeu Beling na Universidade de Munique. A partir de 1933 foi o penalista mais destacado do regime que dominou a Alemanha até 1945. Neste mesmo ano publicou sua Política criminal sobre fundamentos criminológicos, propondo adaptar o direito penal ao novo Estado, baseado nas ideias de “povo” e “raça”. Em 1935 foi nomeado chanceler do Reich Adolf Hitler. Quase ao final da Segunda Guerra Mundial, solicitou visitar campos de concentração, como o de Dachau, pedido que foi inclusive atendido. Entre as “contribuições” de Mezger, destacam-se o

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Embora o Holocausto represente o apogeu dessa doentia racionalida-de, isso não significa que o moinho racional-instrumental de trituração da vida humana tenha cessado de funcionar: o direito penal continua sendo chamado a desempenhar uma missão de destruição. Não é por acaso que Christie procurou denunciar a aceleração punitivista: o moinho permanece em movimento, legitimado por artifícios discursivos ardilosos que dão a essa barbárie a aparência de uma técnica racional e civilizada, obtida a partir do avanço progressivo da ciência e do saber jurídico. Trata-se exata-mente da racionalidade hegemônica que urgentemente é preciso combater, pois a promessa utópica de segurança é deliberadamente empregada como meio de legitimação da guerra empreendida contra o outro pela indústria do controle do delito5.

É preciso deixar de lado o apego romântico ao projeto civilizatório moderno e reconhecer que a promessa de realização do ideal de segurança absoluta não pode ser mais do que mera ilusão. Em outras palavras, o ele-mento violência é constitutivo da própria vida em sociedade: não é um res-to bárbaro do passado que será necessariamente extinto pela civilização6. Portanto, embora a violência possa assumir várias formas, não é possível concebê-la concretamente como aberração a ser erradicada por completo, mesmo que isso possa ser desejável: são padrões de comportamento que não estão à margem da cultura, mas que a compõem, como um de seus ele-mentos nucleares7. Pode ser dito inclusive que o reconhecimento do caráter constitutivo desses fenômenos é um passo importante para a desconstrução dos sistemas discursivos de enfrentamento da violência que acenam com a possibilidade de superá-la e que, em nome dessa promessa, apenas pro-duzem ainda mais violência: ela simplesmente está para além de qualquer possibilidade de controle embasada em utópicas promessas de segurança.

“delinquente habitual” e seu tratamento (projeto de lei “estranhos à comunidade”); medidas de internamento em custódia de segurança policial; castração para delinquentes habituais perigosos (associais); analogia como fonte de criação do direito penal “conforme o são sentimento do povo”; a finalidade por ele atribuída à pena: “ausmerzung”, a eliminação dos elementos prejudiciais para o povo e a raça; culpabilidade pela condução da vida (aplicada ao erro de proibição) e não somente pelo fato; revelação de atitude de total de desprezo para com o são sentimento do povo alemão (posição que manteve posteriormente sem referir o povo alemão, o que motivou críticas de Welzel) (MUNÕZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo: estudos sobre o direito penal no nacional-socialismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005).

5 Segundo Christie, “en comparación con la mayoría de las industrias, la industria del control del delito se encuentra en una situación más que privilegiada. No hay escasez de materia prima: la oferta de delito parece ser infinita. También son infinitas la demanda de este servicio y la voluntad de pagar por lo que se considera seguridad. Y los planteos habituales sobre la contaminación del medio ambiente no existen. Por lo contrario, se considera que esta industria cumple con tareas de limpieza, al extraer del sistema social elementos no deseados” (CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p. 21).

6 GAUER, Ruth M. Chittó. Alguns aspectos da fenomenologia da violência. In: GAUER, Gabriel J. Chitto; GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). A fenomenologia da violência. Curitiba: Juruá, 2008. p. 13.

7 Idem, p. 14.

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O progresso não conduziu ao paraíso projetado pelo homem racional. Pro-duziu o extermínio massivo de populações rotuladas como indesejáveis pelo poder punitivo.

Nesse sentido, até mesmo a pretensão aqui esboçada de contenção da violência institucional deve operar inevitavelmente a partir de uma pers-pectiva de redução de danos, reconhecendo que historicamente a interven-ção jurídico-penal muitas vezes se mostrou mais apta a maximizar danos do que a contê-los. Afinal, o que representam em termos de custo social os mandamentos e proibições penais? Temos um sistema que para muitos é voltado para o combate ao crime, mas que continuamente amplia a esfera do que é classificado como crime, fazendo com que cada vez mais aspectos da vida humana sejam criminalizados em nome da irrealizável promessa civilizatória. Com isso, a imagem bélica do sistema penal é continuamente fortalecida, o que legitima o poder punitivo por via da absolutização do valor segurança, debilitando os vínculos sociais horizontais e reforçando os verticais8.

Embora não exista uma legislação claramente dirigida ao extermínio massivo no contexto contemporâneo, o sistema acaba operando em torno de uma seletividade brutal quando deslocado da generalização da crimi-nalização primária para a secundária: o programa legislativo “igualitário” é facilmente transformado em prática de persecução ao inimigo, o que cer-tamente diz algo sobre suas condições de possibilidade9. Como observou Zaffaroni, o exercício de poder de todos os sistemas penais é conducente à reprodução de violência, seletividade, corrupção institucionalizada, con-centração de poder, verticalização social e destruição das relações horizon-tais ou comunitárias: não são características conjunturais, mas estruturais10. O sistema acaba sempre tendo como alvos preferenciais os protagonistas das obras toscas da criminalidade, que causam menos problemas por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou à comu-nicação massiva11.

8 ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 59.

9 Segundo Zaffaroni, “a criminalização primária é um programa tão imenso que nunca e em nenhum país se pretendeu levá-la a cabo em toda a sua extensão nem sequer em parcela considerável, porque é inimaginável [...] por conseguinte, considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário” (Idem, p.44).

10 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 15.11 ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro –

I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 46.

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Temos que perceber urgentemente que isso é constitutivo e que a esperança consiste na redução da intensidade dos danos que o sistema ine-vitavelmente provocará aos que ele preferencialmente persegue, por se en-quadrarem nos estereótipos criminais12. É preciso abandonar a ilusão de que o saber jurídico-penal deve ser elaborado como se tudo ocorresse na-turalmente da forma programada pela criminalização primária, pois dessa forma foi construída uma elaboração discursiva precária a serviço da sele-tividade, quando ela devia estar voltada para a contenção de seus níveis13. Logo, é equivocado falar em “crise”, considerada como contradição entre o discurso jurídico-penal dominante e a realidade operacional do sistema penal, pois é absolutamente utópico pensar que a realidade possa se apro-ximar da programação estabelecida por ele. Como indica Zaffaroni, “crise” é o momento em que a falsidade do discurso se torna tão evidente que ele desaba, desconcertando o penalismo14. Sob este aspecto, temos que com-preender a “crise” como um momento de oportunidade para que o discurso jurídico-penal seja finalmente confrontado com a realidade, desvelando sua particular aptidão para a persecução de pessoas em situação de vulnerabi-lidade15.

Temos que dar um basta na maximização do controle. Como afirma Christie, vivemos cada vez mais em uma sociedade povoada por mecanis-mos de controle, motivo pelo qual ele considera que não é nem um pouco absurdo traçar um paralelo entre democracias e estados totalitários16. Preci-samos parar de cultuar o progresso e celebrar uma mítica igualdade, como se o esquadrinhamento da realidade em busca da eliminação da diferença garantisse segurança, quando o que garante é a continuidade da catástrofe percebida por Benjamin.

2 O HOLOCAUSTO NOSSO DE CADA DIA: BREVE RELATO DE UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA

Vamos retomar o argumento deixado em aberto na introdução. Mais de vinte anos se passaram desde a publicação da obra de Christie na Argentina. Afinal, estávamos ou não equipados para resistir ao Holocausto que se anunciava nos Estados Unidos, como pensou Zaffaroni? A condição especificamente americana é ou não um requisito para o encarceramento

12 Idem, p. 47.13 Idem, p. 65.14 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 16.15 ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro –

I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 49.16 CHRISTIE, Niels. El control de las drogas como un avance hacia condiciones totalitárias. In: Criminologia

critica y control social: El poder punitivo del estado. Rosario: Juris, 1993. p. 152.

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massivo, para a deflagração de uma guerra contra as drogas e para uma atuação punitiva claramente voltada para a neutralização de minorias?

Temos que reconhecer que infelizmente o tempo se encarregou de demonstrar que Zaffaroni subestimou o poder de disseminação dos discur-sos punitivistas estadunidenses. Os discursos law and order e zero toleran-ce penetraram com toda força, sendo amplamente acolhidos e fazendo do encarceramento seletivo em massa a realidade concreta das práticas puni-tivas brasileiras. Ainda que as causas desse fenômeno possam ser objeto de especulação, se a finalidade do sistema penal e em particular da pena é a produção de sofrimento e a imposição de dor – como apontou Christie –, poucos discordariam da constatação de que no Brasil chegamos ao estado da arte dos suplícios contemporâneos. A questão penitenciária brasileira retrata um inominável cenário de barbárie que se aprofundou de forma cada vez mais aguda nas últimas décadas. Sem dúvida, se existe algo que se aproxima do título de Holocausto penitenciário, certamente é a estrutura punitiva brasileira.

É claro que o sentido da expressão Holocausto no âmbito da pena privativa de liberdade requer delimitação. Christie esclarece que não acre-dita que as prisões contemporâneas irão se tornar cópias exatas dos cam-pos de concentração: mesmo nas piores condições, nos sistemas carcerários modernos a maioria dos presos não será morta intencionalmente. Alguns condenados serão executados, mas a maioria será libertada ou morrerá por suicídio, violência carcerária ou causas naturais17.

No entanto, se considerarmos os níveis de mortalidade do sistema penitenciário brasileiro – seja em função de violência carcerária ou por do-enças como a tuberculose –, ou que a Polícia Militar do Rio de Janeiro e São Paulo mata mais do que países com pena de morte, fica claro que nossas prá-ticas punitivas estão para muito além dos medos expressados por Christie18.

17 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p. 170. O emprego da palavra holocausto no contexto das práticas punitivas contemporâneas pode ser motivo de censura para alguns, uma vez que amplia o sentido de uma expressão que se refere a um conjunto de circunstâncias bastante específicas, que, no entanto, não se restringem a população judaica, uma vez que ciganos, homossexuais e comunistas também foram objeto de persecução, assim como todos que podiam ser tidos como estranhos à comunidade. A expressão é utilizada neste artigo no sentido referido por Nils Christie, que na verdade prefere o termo Gulag, que se refere ao sistema de campos de trabalho forçado para condenados, presos políticos e opositores do regime stalinista, na União Soviética. Como se sabe, Stalin conduziu uma política de extermínio em grande escala. Optamos por manter a expressão holocausto (sem o H maiúsculo), utilizada na tradução argentina. O título original da obra é “Crime Control as Industry. Towards GULAGS, Western Style?”

18 DUARTE, Alessandra; BENEVIDES, Carolina. Polícia mata cinco pessoas por dia no Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, 3 nov. 2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/policia-mata-cinco-pessoas-por-dia-no-brasil-10669947>. Acesso em: 2 fev. 2014; PRADO, Rapahel. PM do Rio e de SP mata mais que países com pena de morte. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 mar. 2013. Disponível em: <http://www.jb.com.br/

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Estamos vivendo o apogeu de um estado de guerra permanente, que orienta toda a atuação do sistema penal em nome de uma imagem bélica que vende a ilusão de segurança, assegurando dessa forma a contínua prosperidade da indústria do controle do delito, que se encontra em permanente expansão.

Por outro lado, se o racismo é um componente que integra um poten-cial Holocausto no âmbito das práticas punitivas, esse requisito parece mais do que preenchido: assim como nos Estados Unidos e na Alemanha, o ra-cismo também está geneticamente impregnado na formação da identidade brasileira. No Brasil, o discurso da igualdade facilmente degenerou em an-seio por igualação do não igual, seja através de assimilação ou, pior ainda, da eliminação do diferente19. Portanto, somos historicamente vocacionados para o Holocausto, o que em alguma medida é confirmado pelo nosso pró-prio sistema penitenciário: o perfil social e étnico da população carcerária brasileira é amplamente conhecido. Nosso sistema penal contemporâneo conforma uma maquinaria que opera com alto nível de seletividade, movi-da fundamentalmente para a destruição de certas minorias étnicas e sociais, embora muitos se iludam com a mítica “democracia racial”20.

Mesmo assim, levando em conta os parâmetros disponíveis vinte anos atrás, não podemos culpar Zaffaroni por não imaginar que a população car-cerária poderia explodir de forma tão impressionante: estamos vivendo a era do grande encarceramento, como referiu Salo de Carvalho21. Nos últimos quinze anos o Brasil prendeu sete vezes mais do que a média mundial, sem que tenha havido um esforço correspondente de ampliação de vagas em um sistema penitenciário que já se encontrava superlotado décadas atrás.

pais/noticias/2012/03/28/pm-do-rio-e-de-sp-mata-mais-que-paises-com-pena-de-morte/>. Acesso em: 2 fev. 2014.

19 Não temos aqui condições de enfrentar a discussão sobre a questão racial no Brasil, que exige uma pesquisa de fôlego, incompatível com as dimensões do presente artigo. De qualquer forma, assinalamos nossa posição, que é inteiramente incompatível com o mito da democracia racial. O racismo faz parte da cultura brasileira, ainda que com algumas peculiaridades que talvez o tornem distinto de qualquer outro, já que a condição social pesa muito para a aceitação em certos círculos de pessoas que em outras circunstâncias seriam discriminadas. O fato é que se o racismo é um requisito para a produção do holocausto, podemos considerá-lo preenchido para efeito da análise aqui proposta. Sobre a questão da formação da identidade brasileira e o ideal de assimilação, ver KHALED JR., Salah H. Horizontes identitários: a construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

20 Para Carvalho, “o estado atual dos cárceres diz da forma como a sociedade brasileira resolveu historicamente suas questões sociais, étnicas, culturais, ou seja, pela via da exclusão, da neutralização, da anulação da alteridade. Diz da violência hiperbólica das instituições, criadas no projeto moderno para trazer felicidade às pessoas (discurso oficial), mas que reproduzem – artificialmente, embora com inserção no real – a barbárie que a civilização tentou anular” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 163).

21 CARVALHO, Salo de. Theories of punishment in the age of mass incarceration: a closer look at the empirical problem silenced by justificationism (the brazilian case). Open Journal of Social Sciences, v. 1, n. 4, september 2013. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/171925819/Carvalho-Theories-of-Punishment-in-the-Age-of-Mass-Incarceration>. Acesso em: 27 jan. 2014.

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Como sintetizou Carvalho, o espetacular incremento no número de presos pode ser explicado por várias razões22. Um de seus elementos centrais é exatamente a deflagração de uma guerra contra as drogas, que reproduz os ideais repressivos estadunidenses denunciados por Christie23.

Os números são absolutamente assombrosos e comprovam a falácia do discurso sobre a impunidade generalizada no Brasil. Estamos prendendo sim. E muito. Como é possível falar genericamente em impunidade quando, nos últimos vinte anos – o que abrange exatamente o lapso temporal desde a publicação do livro de Christie na Argentina –, a população carcerária brasileira cresceu 350%24? Para efeito de comparação, Christie demonstrou espanto pelo fato de os Estados Unidos terem dobrado a sua população carcerária entre 1979 e 1989, feito comparável somente à China, enquanto a União Soviética reduziu pela metade a população carcerária no mesmo período25. Sem dúvida, isso demonstra a extensão do processo de encarce-ramento que ocorreu no Brasil. O país tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo e marcha triunfalmente em direção ao terceiro posto, que é ocupado pela Rússia. O primeiro e segundo lugares pertencem aos Estados Unidos e à China, respectivamente. No entanto, a taxa de ocupação brasileira é muito superior à americana (106%) e russa (91%), atingindo mais de 184% em 201226. A superlotação provoca flagrante violação aos limites estabelecidos normativamente: por lei cada preso tem direito a 6 me-

22 Carvalho explica que “[...] inúmeros fatores contribuíram para o incremento dos índices de encarceramento: (a) criação de novos tipos penais a partir do novo rol de bens jurídicos expressos na Constituição (campo penal); (b) ampliação da quantidade de pena privativa de liberdade em inúmeros e distintos delitos (campo penal); (c) sumarização do procedimento penal, com o alargamento das hipóteses de prisão cautelar (prisão preventiva e temporária) e diminuição das possibilidades de fiança (campo processual penal); (d) criação de modalidade de execução penal antecipada, prescindindo o trânsito em julgado da sentença condenatória (campo processual e da execução penal); (e) enrijecimento da qualidade do cumprimento da pena, com a ampliação dos prazos para progressão e livramento condicional (campo da execução penal); (f) limitação das possibilidades de extinção da punibilidade com a exasperação dos critérios para indulto, graça, anistia e comutação (campo da execução penal); (g) ampliação dos poderes da administração carcerária para definir o comportamento do apenado, cujos reflexos atingem os incidentes de execução penal (v.g., Lei nº 10.792/2003) (campo penitenciário)” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 153 – grifos do autor).

23 CARVALHO, Salo. Theories of punishment in the age of mass incarceration: a closer look at the empirical problem silenced by justificationism (the brazilian case). Open Journal of Social Sciences, v. 1, n. 4, september 2013. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/171925819/Carvalho-Theories-of-Punishment-in-the-Age-of-Mass-Incarceration>. Acesso em: 27 jan. 2014.

24 PITTS, Natasha. Pesquisa revela, em números, realidade carcerária do país. Revista Fórum, São Paulo, 13 nov. 2012. Disponível em: <http://revistaforum.com.br/blog/2012/11/pesquisa-revela-em-numeros-realidade-carceraria-do-pais/>. Acesso em: 2 fev. 2014.

25 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p. 40-41.

26 WASSERMAN, Rogério. Número de presos explode no Brasil e gera superlotação de presídios. BBC Brasil, Londres, 28 dez. 2012. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/12/121226_presos_brasil_aumento_rw.shtml>. Acesso em: 2 fev. 2014.

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tros quadrados de cela, mas na prática acaba tendo apenas 70 centímetros nas prisões mais superlotadas. Apenas Haiti, Filipinas, Venezuela, Quênia, Irã e Paquistão tem uma taxa de ocupação superior à brasileira. Sem falar que, dos 548 mil presos (depositados em 306 mil vagas), 42% (230 mil) estão presos provisoriamente, ou seja, sem condenação definitiva, o que retrata o estado de barbárie do nosso sistema penal27.

Se as estatísticas já chocam, o que dizer da efetiva condição em que são executadas as penas privativas de liberdade? Confrontando a realidade americana com a brasileira, não é possível estabelecer qualquer parâmetro de comparação entre as condições a que são expostas as respectivas popu-lações carcerárias: os níveis de dor intencional submetidos aos apenados no Brasil são infinitamente mais elevados. Parece difícil escapar de uma con-clusão: a indústria de controle do delito assumiu aqui ares de uma indústria de extermínio, o que é facilmente comprovado pela agonia experimentada por quem se encontra abandonado no depósito de gente que é o nosso sis-tema penitenciário.

A recente tragédia ocorrida no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão, não é de modo algum uma exceção, pois repre-senta exatamente a realização última de uma política criminal irresponsável que chancela o extermínio do outro, como se inimigo declarado fosse28. Embora a crueldade das execuções tenha despertado atenção mundial para o drama penitenciário brasileiro, o episódio ocorrido em Pedrinhas não foi exatamente uma exceção. É um retrato perfeito e cristalizado do Holocausto nosso de cada dia. Qualquer argumentação reducionista que tenha como eixo central a redução dos espaços catastróficos ao Maranhão só pode tran-sitar nas trevas da insanidade. Por todos os recantos do país são cometidas violências e atrocidades inimagináveis para instituições que são adminis-tradas pelo Estado, demonstrando que o poder punitivo ainda impera de forma irrestrita, sem que a normatividade voltada para a redução de danos encontre qualquer condição de permeabilidade.

Sem aqui ter qualquer intenção de apologia aos ideais justificacio-nistas, parece indiscutível que o espaço de indeterminação entre direito e realidade encontra na pena privativa de liberdade a sua ferida mais visível, uma vez que tanto a ideologia de ressocialização da lei penal (bem como

27 GOMBATA, Marsílea. Em 15 anos, Brasil prendeu 7 vezes mais que a média. Carta Capital, Rio de Janeiro, 17 jan. 2014. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/populacao-carceraria-brasileira-cresceu-7-vezes-mais-que-a-media-mundial-nos-ultimos-15-anos-5518.html>. Acesso em: 2 fev. 2014.

28 SCOLESE, Eduardo. Presos filmam decapitados em penitenciária no Maranhão; veja vídeo. Folha de São Paulo, São Paulo, 7 jan. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1394160-presos-filmam-decapitados-em-penitenciaria-no-maranhao-veja-video.shtml>. Acesso em: 2 fev. 2014.

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os modestos limites ao poder punitivo que ela estabelece) quanto os direi-tos fundamentais são largamente ignorados em instituições que funcionam como verdadeiros matadouros de gente. Os presídios brasileiros ainda não foram colonizados pelo direito, se é que um dia minimamente serão, pois, ao que tudo indica, nem sequer existe essa intenção por parte das agências executivas29.

Por outro lado, é importante referir que o espaço potestativo de dis-cricionariedade que existe entre a previsão legal e a realidade concreta per-mite a prática de inúmeros abusos, muitas vezes festejados e comemorados por uma população que aplaude a barbárie, sem perceber o que realmen-te está em jogo. Vivemos em um contexto em que o tratamento penal da miséria é cada vez mais aceito como remédio para as mazelas do corpo social, fazendo do sistema penal um mecanismo de gestão da pobreza e de avanço totalitário da indústria de controle do delito. Com isso são possíveis dois efeitos perversos: calabouços brutalmente desumanos são aplaudidos pela população, que simultaneamente se sujeita à ampliação de meios de controle antidemocráticos, acreditando que com isso terá mais segurança. Qualquer medida de intensificação da repressão é comemorada, pois a per-cepção generalizada é de que o sistema é conivente com a criminalidade.

Sem dúvida, trata-se de um cenário que favorece imensamente a prosperidade da indústria do controle do delito. Como qualquer indústria, a indústria de controle do delito visa permanente à expansão, com uma grande vantagem, já que fornece armas para o que é percebido como guerra permanente contra o crime, o que lhe garante contínuo apoio popular na luta contra os inimigos do corpo social30. Com isso, o direito penal é cada vez mais banalizado, transformando-se em um remédio supostamente apto a curar todos os males, enquanto o Estado se esquiva dos investimentos so-ciais necessários. Trata-se de um absurdo, pois, como refere Lopes Jr., “não se edifica uma ordem social apenas com base na repressão”31.

Desse modo, um sistema penal autofágico – que alimenta a si mesmo através da exclusão reiterada de parcela significativa da sociedade – pros-

29 Como refere Carvalho, “a realidade da punição na estrutura jurídica brasileira constitui-se por assumir, sem pudores, a posição de que determinadas pessoas simplesmente não servem, são descartáveis, não merecem qualquer dignidade, são desprezíveis e por isso serão oficialmente abandonadas” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 162-163).

30 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p. 21.

31 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 29.

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pera irrestritamente, legitimado pela guerra santa exercida em nome da se-gurança32. A ilusão alimentada pela crença cega no penalismo acaba pro-vocando o contínuo endurecimento e hipertrofia da legislação penal, com a atribuição de missões que extrapolam qualquer possibilidade de concretiza-ção, mas que contribuem para o encarceramento massivo, aplaudido pelos empresários morais da mídia e pelas marionetes das agências de reprodução ideológica33. O controle penal se expande em espiral, instalando uma lógica de monitoramento constante da vivência humana, sem que as pessoas per-cebam que estão sendo seduzidas pelo que Zaffaroni chamou de crimino-logia midiática. Tudo isso demonstra que os temores de Christie eram mais do que justificados: a proximidade com o totalitarismo é maior do que se supõe34. Trata-se de uma dinâmica repressiva inteiramente equivocada em suas premissas básicas, pois não é com autoritarismo que se alcançará a tão desejada segurança: pelo contrário, são maximizados os níveis de insegu-rança, particularmente para quem está em situação de vulnerabilidade35.

A expansão da lógica do controle é mundial. Não é um fenômeno brasileiro, ainda que aqui tenha características bastante peculiares. Sua disseminação fez, inclusive, com que a violência se tornasse um produto, que é avidamente consumido por uma população sedada por um discurso que produz sujeição simbólica: faz com que o próprio público, que é alvo preferencial da guerra pela segurança, aplauda o contínuo endurecimento do sistema penal, pedindo e apoiando a implantação de medidas como a

32 Lopes Jr. sintetiza a questão: “Primeiro vem a exclusão (econômica, social, etc.), depois o sistema penal seleciona e etiqueta o excluído, fazendo com que ele ingresse no sistema penal. Uma vez cumprida a pena, solta-o, pior do que estava quando entrou. Solto, mas estigmatizado, volta às malhas do sistema, para mantê-lo vivo, pois o sistema penal precisa deste alimento para existir. É um ciclo vicioso, que só aumenta a exclusão social e mantém a impunidade dos não-excluídos (mas não menos delinquentes)” (LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 16).

33 Tais empresários não são recentes e já fazem parte da cultura brasileira pelo menos desde a década de 80. Como observou Nilo Batista, “no Brasil, não temos a pena de morte na legislação, mas ela é aplicada largamente, tolerada e estimulada por discursos que ou desqualificam o acusado (‘ele é bandido’), liberando-o à sanha dos esquadrões da morte a soldo de grupos sociais bem caracterizados, ou exercem diretamente a apologia do extermínio (bandido bom é o morto)” (BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 103).

34 Segundo Zaffaroni, “o que a criminologia midiática oculta cuidadosamente do público é o efeito potencializador do controle e redutor do espaço de liberdade social A necessidade de nos proteger deles justifica todos os controles estatais, primitivos e sofisticados, para prover segurança. Em outras palavras: o nós pede ao Estado que vigie mais a eles, mas também o próprio nós, pois necessitamos ser monitorados para sermos protegidos” (ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 317).

35 Lopes Jr. afirma que, “como consequência desse cenário de risco total, buscamos no Direito Penal a segurança perdida. Queremos segurança em relação a algo que sempre existiu e sempre existirá: violência e insegurança” (LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 54).

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pena de morte e a redução da maioridade penal36. É nesse sentido que a exclusão não é apenas uma palavra, mas uma verdadeira categoria intei-ramente diversa de exploração, por exemplo. Para os excluídos sequer se prevê exploração, mas gestão da pobreza: é contra eles que o sistema penal preferencialmente atua. O explorado ainda está integrado, ainda que sob o signo da dominação, ao sistema capitalista. O excluído está fora e por isso deve ser isolado e neutralizado. Dessa forma, o problema social deve ser “resolvido” com aparato policial. Não chega a ser uma novidade neste país, pois desde a República Velha já vem sendo dito que “a questão social é um caso de polícia”37. Não é por acaso que Zaffaroni atentou para a formidável estrutura de controle que é propiciada pelo espaço deixado em aberto pela criminalização secundária38. Estamos diante de um encarceramento massi-vo da miséria, que desafia abertamente todos que lutam contra a catástrofe que se expande por todos os recantos do país e encontra sua face mais agu-da no Rio Grande do Sul39.

Todas as saídas legais foram tentadas para conter a apoteose do po-der punitivo que representa o Presídio Central de Porto Alegre, restando aos que se insurgem contra a barbárie que lá impera o último recurso legal imaginável: representar contra o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o que foi feito em janeiro de 2013. O Presídio Central é reconhecidamente o exemplo mais pronunciado da condição de degra-dação humana a que são expostos os detentos no Brasil: no final de 2013 havia 4,5 mil homens presos na instituição, cuja capacidade é de cerca de 1,6 mil. O termo superlotação parece tímido para descrever a situação dos presos. Por isso a provocação: Holocausto nosso de cada dia, uma tragédia com a qual todos os governos do Rio Grande do Sul foram criminalmente coniventes nas últimas décadas.

36 Nilo Batista descreveu no início da década de 90 um cenário que permanece atual: “Sempre que ocorre uma onda de violência, ou um crime particularmente cruel, aparecem políticos oportunistas pregando a pena de morte. [...] algumas pessoas de boa-fé acabam acreditando que a pena de morte pode ajudá-las, que a pena de morte pode diminuir os assaltos, os estupros, os homicídios, etc.” (BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 18).

37 Frase proferida por Washington Luís, último presidente da República Velha.38 Para ele, “[...] a criminalização secundária é quase um pretexto para que agências policiais exerçam um

controle configurador positivo da vida social, que em nenhum momento passa pelas agências judiciais ou jurídicas [...] este poder configurados positivo é o verdadeiro poder político do sistema penal” (ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 52 – grifos do autor).

39 Não se trata aqui de relegitimar o sistema penal propondo sua “democratização” com a inclusão massiva de indivíduos em condição social privilegiada, e sim de conter os danos provocados pelo sistema penitenciário a todos os eventualmente criminalizados. Eis aí o grande equívoco de certa esquerda punitivista, que acaba compactuando com discursos inaceitáveis de reversibilidade ideológica dos direitos humanos.

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No final de 2013, a CIDH da Organização dos Estados Americanos (OEA) reconheceu a precariedade das condições do Presídio Central e con-cedeu liminar obrigando o Estado brasileiro a adotar medidas que ao menos amenizem a condição de flagrante violação de direitos humanos que carac-teriza a referida instituição40. Entre elas estão: medidas necessárias para sal-vaguardar a vida e integridade pessoal dos internos; garantia de condições de higiene e de tratamento médico adequado; implementação de medidas para recuperar o controle de segurança em todas as áreas [...] garantindo que os agentes do Estado sejam os encarregados das funções de seguran-ça interna e assegurem que não sejam conferidas funções disciplinares, de controle ou de segurança aos internos; implementação de um plano de con-tingência e disponibilização de extintores de incêndio e outras ferramentas necessárias e, finalmente, ações imediatas para reduzir a lotação41. Obvia-mente, todas elas medidas rigorosamente necessárias, ainda que tardias. Parece impensável que a instituição possa funcionar nas condições em que efetivamente funciona.

No entanto, como tristemente sabemos, não existem mecanismos co-ercitivos para propriamente impor o cumprimento das obrigações impostas, o que faz com que o déficit de efetividade dessas determinações restrinja quase que completamente o seu alcance. Resta a desmoralização do Brasil diante da comunidade internacional, o que certamente não basta para que as reformas necessárias aconteçam. Não que o Presídio Central possa efe-tivamente ser recuperado. Deve ser destruído. As medidas indicadas pela CIDH são apenas paliativos para uma estrutura irremediavelmente compro-metida em todos os sentidos. Ao que tudo indica a catástrofe continuará a se aprofundar, sem qualquer esperança de reversão ou contenção. Até quando perdurará o Holocausto nosso de cada dia?

3 MINIMIZAR A DOR OU JUSTIFICAR A PENA COMO MEIO DE REINTEGRAÇÃO SOCIAL?

Justificar a pena através da prevenção especial positiva soa como pia-da de mau gosto, considerando que nosso sistema penitenciário flerta aber-

40 No mesmo documento, a CIDH diz que, em 2009, quando já havia pedido informações sobre a unidade prisional de Porto Alegre, a Comissão Parlamentar de Pesquisa sobre o Sistema Carcerário teria recomendado que o Presídio Central fosse “desativado, em virtude da evidente falta de estrutura” e que, “conforme critérios de superlotação, insalubridade, arquitetura inadequada, capacidade de ressocialização, assistência médica e maus-tratos, o presídio seria o pior estabelecimento penitenciário do país” (O GLOBO. OEA notifica Estado brasileiro para reduzir violações no Presídio Central de Porto Alegre. O Globo, Rio de Janeiro, 3 jan. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/oea-notifica-estado-brasileiro-para-reduzir-violacoes-no-presi- dio-central-de-porto-alegre-11202528>. Acesso em: 2 fev. 2014).

41 COSTA, Letícia. Resolução de corte internacional solicita que governo adote medidas para resolver problemas no Presídio Central. Zero Hora, Porto Alegre, 2 jan. 2014. Disponível em: <http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/01/resolucao-de-corte-internacional-solicita-que-governo-adote-medidas-para-resolver-problemas-no-presidio-central-4379603.html>. Acesso em: 2 fev. 2014.

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tamente com o holocausto e comemora uma catástrofe contínua, acumu-lando ruína sobre ruína a cada dia que passa. Mas inevitavelmente ela deve ao menos ser mencionada – ainda que dela só restem escombros –, já que está especialmente vinculada ao horizonte normativo brasileiro, uma vez que a LEP estabelece, de forma clara, um ideal ressocializador, no que não se difere de outros países42. A lei espanhola prevê reeducação e reinserção social, a italiana a reintegração social e a lei alemã refere a capacitação do recluso para uma vida sem delitos43.

O que diferencia o Brasil de outros países é a ausência de referência a qualquer teoria da pena no texto constitucional, que apenas sinaliza com mecanismos de contenção de danos, sem designar qualquer propósito jus-tificante à execução da pena privativa de liberdade, o que representa um grande avanço em relação à LEP. Para Carvalho, a ausência de qualquer dis-curso legitimante na Constituição impõe critérios limitativos à interpretação, aplicação e execução das penas, negando castigos cruéis e procurando deli-mitar o “como punir?”. Com isso a discussão é (ou deve ser) deslocada para os meios, deixando de lado a fixação obsessiva com os fins e reconhecendo que o poder punitivo por excelência extravasa os limites da legalidade44.

Claro que a ausência de justificação para a pena na Constituição não impede que o penalismo comprometido com a reprodução ideológi-ca da barbárie continue a professar sua fé nos vetores legitimantes, o que não deixa de ser plenamente condizente com nossa cultura de fetiche pela legislação infraconstitucional. Mas apesar de celebrada por grande parte dos penalistas clássicos e contemporâneos como algo essencial à própria existência da pena, a prevenção especial positiva encontra-se em profunda crise na realidade carcerária contemporânea, seja no contexto brasileiro ou internacional45.

42 Como refere Carvalho, a LEP de 1984, “[...] inspirada no programa político-criminal do movimento de nova defesa social, tematiza o projeto punitivo moldando-o a partir da noção de ressocialização (prevenção especial positiva)” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 259).

43 MUNÕZ CONDE, Francisco; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 179. Como observou Baratta, “derecho penal contemporáneo se autodefine como derecho penal del tratamiento. La legislación más reciente atribuye al tratamiento la finalidad de reeducar y reincorporar al delincuente a la sociedad” (BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 357). Importante referir que Baratta escreveu em outro contexto. De lá para cá algumas coisas mudaram significativamente. O correcionalismo se encontra em franca decadência a partir dos anos oitenta, ainda que habite o imaginário de inúmeras teorias justificadoras da pena e permaneça sedimentado nas legislações penais.

44 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 260.45 Como observou Bitencourt, “a grande ocorrência de suicídios nas prisões é um bom indicador sobre os graves

prejuízos psíquicos que a prisão ocasiona, e autoriza a dúvida fundada sobre a possibilidade de obtenção de algum resultado positivo em termos de efeito ressocializador, especialmente quando se trata de prisão tradicional, cuja característica principal é a segregação total” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 197-198).

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O processo de decadência do correcionalismo deve ser apreciado de forma cuidadosa, uma vez que seu apogeu perdurou durante boa parte do século XX nos Estados Unidos e na Europa, apesar dos seus pressupostos terem sido colocados em questão desde pelo menos a década de 4046. A de-cadência do correcionalismo mudou as regras do jogo: passou a predomi-nar uma lógica de completo abandono, cujo teor catastrófico é nitidamente visível quando transposto para o contexto marginal da América Latina, já que aqui sequer tivemos algo como o welfare state. Os estadunidenses fo-ram os precursores desse deslocamento de sentido, que logo começou a se estender também pela Europa. Como observa Wacquant, referindo-se ao contexto europeu, a criminalização da miséria e o enclausuramento dos marginalizados tomou o lugar da política social47.

Wacquant denuncia que a guerra contra as drogas serviu como pre-texto para a perseguição de componentes da população considerados me-nos úteis e potencialmente mais perigosos, como desempregados, sem-teto, vadios e outros marginais. Para ele, a “[...] superpopulação das prisões tem grande peso no funcionamento dos serviços correcionais e tende a rebaixar a prisão a sua função bruta de ‘depósito’ de indesejáveis”48. Parece óbvio que essa “função bruta” é a função por excelência da prisão hoje em dia no Brasil, que está voltada para a maximização dos níveis de dor intencional. Talvez não possamos sequer falar em retribuição: a inocuização é o proce-dimento rotineiro do Holocausto nosso de cada dia, que faz da realidade americana e europeia um conto de fadas em comparação49.

Claro que no nosso caso nunca sequer houve o apogeu da ideologia correcional que David Garland chamou de previdenciarismo (ou welfarismo)

46 Como observa Carvalho, “as formas de compreensão e de orientação das ações realizadas no sistema penal fomentadas pela gramática do welfarismo penal correcionalista passam, a partir da década de 40, a receber incisivos questionamentos, desde o discurso jurídico-penal que revela a incapacidade de serem preservados direitos na instituição carcerária às perspectivas criminológicas críticas, de viés filosófico e sociológico, que questionam os fundamentos e as reais funções exercidas pelas prisões [...] em perspectiva acadêmica, a densificação da crítica aos fundamentos teóricos que sustentam o correcionalismo corporificado nas instituições totais (cárceres e manicômios) potencializa a criação de projetos alternativos de redução dos danos ocasionados pelas agências do controle social burocratizado” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 147-148).

47 WACQUANT, Loïc. A tentação penal na Europa. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro: Revan, n. 11/02, p. 9, 2002.

48 Idem, p. 10.49 Carvalho aponta que “inegável, pois, que, se nos países centrais a reinvenção da prisão adquire funções

instrumentais na nova lógica do capitalismo contemporâneo pós-Welfare State, o seu revigoramento adquirirá potência em grau superlativo nos países periféricos. Na margem, como é notório, as conquistas do Estado Social foram mero simulacro e, no que tange especificamente à dimensão do penal, os modelos correcionalistas foram implementados apenas formalmente” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 149-150).

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penal, que, por sua vez, guarda relação com o Estado Social, que também não experimentamos. Mas se na Europa já se verifica um processo de endu-recimento das políticas penais, cada vez mais voltadas para a defesa social em detrimento da reinserção, o que dizer do Brasil? Estamos experimentan-do a maximização de níveis de dor que já eram insuportáveis, mesmo para nossa realidade marginal, de modo que o paralelo entre o movimento que a cultura do controle americana experimentou a partir da década de 80 e o que vivenciamos no Brasil atualmente é assustador, pois os efeitos aqui são muito mais profundos50.

Por mais autistas que possam ser os delírios justificacionistas, não é possível crer que alguém em sã consciência ainda ouse dizer que entre o ideal normativo que vincula o sistema penitenciário ao cumprimento de metas de reinserção e a realidade concreta experimentada pelos detentos não existe um abismo incomensurável51. Para Pavarini, “após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lu-gares do mundo”52.

Diante disso, o tão sonhado êxito na ressocialização soa como mero artifício ardiloso de justificação, ou, na melhor das hipóteses, como pro-messa utópica irrealizável. As histórias de “sucesso” daqueles que emergem do sistema penitenciário são histórias de sobrevivência. Não são demons-trações da capacidade da pena para fazer o bem. A prisão não ressociali-za. Ela dessocializa. Ela não integra, mas segrega. Se ela ensina algo, são estratégias de sujeição e sobrevivência na própria prisão53. O que é a prisão

50 Garland refere que os novos arranjos do controle do crime envolvem alguns custos sociais: “A intensificação das divisões sociais e raciais; o reforço dos processos criminogênicos; a alienação de muitos grupos sociais; o descrédito da autoridade legal; a redução da tolerância civil; a tendência ao autoritarismo – estes são os resultados suscetíveis de serem produzidos pela confiança em mecanismos penais e na manutenção da ordem” (GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 429).

51 Como percebeu Baratta, “la cárcel es contraria a todo moderno ideal educativo, porque éste se apoya sobre la individualidad, sobre el respeto del individuo, alimentado por el respeto que el educador tiene de ella” (BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 368).

52 PAVARINI, Massimo. Punir mais só piora crime e agrava insegurança (entrevista). Folha de São Paulo, São Paulo, 31 ago. 2009. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3108200916.htm>. Acesso em: 2 fev. 2014.

53 Para Baratta, “las relaciones sociales y de poder de la subcultura carcelaria tienen una serie de características que las distinguen de la sociedad externa, y que dependen de la particular función del universo carcelario, pero que en su estructura más elemental no son más que la ampliación en forma menos mistificada y más ‘pura’, de las características típicas de la sociedad capitalista. Son relaciones sociales basadas en el egoísmo y en la violencia ilegal, em el interior de las cuales los individuos socialmente más débiles son llevados a desempeñar funciones de sumisión y explotación” (BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 370-371). Como indica Bitencourt, “o recluso adapta-se às formas de vida, uso e costumes impostos pelos próprios internos no estabelecimento penitenciário, porque não tem outra alternativa. Adota, por exemplo, uma nova forma de linguagem, desenvolve hábitos novos no comer, vestir, aceita papel de líder ou papel secundário nos grupos de internos, faz novas amizades etc. Essa aprendizagem

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efetivamente faz é neutralizar seletivamente quem comete crimes como se inimigo fosse, mesmo que isso coloque em questão o Estado Democrático de Direito, o que é comprovado pelos últimos séculos de atividade do po-der punitivo54. Não seria exagero dizer que a prevenção especial positiva está rapidamente se tornando prevenção especial negativa na prática, pelo menos no Holocausto nosso de cada dia: está voltada cada vez mais para a simples inocuização dos detentos, no que se aproxima muito da lógica de segregação e incapacitação dos inimigos, típica da Alemanha nazista.

A suposta vocação da prisão para transformar o anormal em normal, ou seja, para normalizar é rotineiramente desmentida, sem que sequer seja necessário aprofundar a discussão em torno do que, afinal, é esse ser “nor-mal” que seria tão desejável para o bem-estar social. Afinal, o que é – ou poderia ser – ressocializar? Ou mesmo socializar? De que forma o tempo do condenado deve ser utilizado para atingir um padrão de vida aceitável, curando o indivíduo que padece dessa enfermidade que é a propensão ao crime? Será uma concepção ético-religiosa de expiação apta a concretizar o mito burguês da reeducação e reinserção social do condenado, como provocou Baratta55? Como refere Carvalho, é inegável a (i)legitimidade das técnicas de individualização da pena moldadas a partir da ideia de resso-cialização, assim como a inversão ideológica que ocorre com a contrains-trumentalização dos direitos dos condenados56.

Como evitar a reincidência se o “tratamento” prescrito visa à pura e simples neutralização? Como impedir que a prisão dessocialize e estigma-tize, o que ela inevitavelmente faz, mesmo nos programas mais renomados e cercados de garantias57? Como educar para a liberdade em condição de não liberdade? São perguntas que as ideologias (re) não conseguem res-ponder, ou que não respondem de forma minimamente satisfatória, ainda

de uma nova vida é mais ou menos rápida, dependendo do tempo em que estará sujeito à prisão, do tipo de atividade que nela realiza, sua personalidade, suas relações com o mundo exterior etc.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 187).

54 PAVARINI, Massimo. Punir mais só piora crime e agrava insegurança (entrevista). Folha de São Paulo, São Paulo, 31 ago. 2009. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3108200916.htm>. Acesso em: 2 fev. 2014.

55 BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 372-373.56 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 259.57 Como aponta Bitencourt, “será possível evitar a produção de danos físicos, e de certos danos psíquicos, com

prisões que contem com uma adequada planta física, com melhores condições de higiene e com tratamento mais condizente com a dignidade do recluso. No entanto, sempre se produzirão algumas lesões invisíveis, visto que quando se interrompe o ciclo normal de desenvolvimento de uma pessoa se provoca dano irreparável. O isolamento da pessoa, excluindo-a da vida social normal – mesmo que seja internada em uma ‘jaula de ouro’ –, é um dos efeitos mais grave da pena privativa de liberdade, sendo em muitos casos irreversível. É impossível pretender que a pena privativa de liberdade ressocialize por meio da exclusão e do isolamento” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 160).

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mais considerando o quanto o direito penal opera de forma seletiva. Como observou Baratta, o direito penal é o direito desigual por excelência58. Mas, curiosamente, é manejado e vendido como se igualitário fosse. Enfim, são inúmeros os argumentos que demonstram o quanto a prisão é incapaz de promover quaisquer efeitos benéficos para os apenados59. Isso é tão óbvio que nem sequer mereceria qualquer discussão, se não fosse pelo justifica-cionismo de plantão.

Considerando as condições do sistema penitenciário brasileiro, essas críticas adquirem um significado ainda maior. Precisamos romper com a ilusão do correcionalismo projetado pela LEP e reconduzir o problema da pena ao universo constitucional, abrindo mão dos horizontes justificacio-nistas conducentes à celebração da barbárie nas práticas punitivas.

4 A NECESSÁRIA REJEIÇÃO AOS DISCURSOS JUSTIFICANTES DA PENA

Diante do Holocausto nosso de cada dia, é inadmissível que o in-telectual engajado e enojado com as práticas punitivas no Brasil tenha a ousadia de aderir a qualquer teoria da pena. Como demonstrou Zaffaroni, as teorias da pena servem a um propósito político de justificação do po-der punitivo, estranho ao âmbito de um direito penal comprometido com o avanço do Estado Constitucional de Direito. Portanto, como não interessa aos penalistas – ao menos aos que estão comprometidos com a contenção do poder punitivo – legitimar a pena, resta a conclusão de que todas as lei-turas legitimantes do discurso penológico devem ser rechaçadas60. Todas as teorias que respondem positivamente ao “por que punir?” conformam cons-truções narrativas que – mesmo indiretamente – produzem continuamente catástrofes, visto que suas funções latentes garantem o espaço necessário para a prosperidade irrestrita do poder punitivo e afirmação do totalitarismo.

58 BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 362.59 Para Bitencourt, “todos os transtornos psicológicos, também chamados reações carcerárias, ocasionados pela

prisão são inevitáveis. Se a prisão produz tais perturbações, é paradoxal falar em reabilitação do delinquente em um meio tão traumático como o cárcere. Essa limitação é um das causas que evidenciam a falência da prisão tradicional” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 199).

60 Como percebeu Carvalho, o “[...] discurso jurídico, em particular jurídico-penal, em razão de sua tradição metafísica, acaba neutralizando as formas de enfrentamento da situação, pois, invariavelmente, remete a discussão de problemas reais ao plano dos fundamentos da punição, dos critérios de definição das penas, do grau de lesão da conduta ao bem jurídico entre outros temas extremamente caros aos teóricos da pena e do delito” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 162).

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Quem não enxerga isso só pode estar sofrendo de cegueira normativa, que obstaculiza a percepção dos cadáveres produzidos pelo direito penal61.

Diante dessas conclusões, fica claro que qualquer discurso verda-deiramente crítico ao arbítrio do poder punitivo no âmbito da aplicação da pena privativa de liberdade deve rechaçar todos os vetores das teorias legitimantes da pena62. Não é através de um lamento pela não realização ou realização parcial de uma dada teoria a que se professa aderência que avançaremos. É urgente o rompimento com o sonambulismo dogmático que nega a agonia experimentada pelos recolhidos aos calabouços medievais que chamamos de presídios. Temos que lutar pela minimização da dor, aceitando que inevitavelmente a pena produzirá sofrimento, algo do qual podemos ter certeza, diferentemente dos devaneios que ocuparam a mente dos penalistas nos últimos séculos. Como observou Zaffaroni, não é aceitá-vel que o discurso jurídico-penal esteja estruturado em torno de falsos dados sociais e que os penalistas permaneçam rechaçando as críticas ao direito penal como sociológicas, preservando o fetiche normativo63. O direito penal precisa urgentemente dialogar com o mundo, abandonando crenças infun-dadas e comprometendo-se com a única missão que pode cumprir com eficácia empiricamente verificável: a contenção da torrente do poder pu-nitivo.64 Temos que romper com a síndrome do que Zaffaroni referiu como revelação do penalista: será que o teórico penal recebe a visita de alguma entidade misteriosa ou nos sonhos esta o faz chegar a uma revelação acerca do fim, sentido, objeto ou essência do poder punitivo65?

Não é possível que, enquanto a realidade desmente de forma escan-dalosa todas as funções atribuídas à pena, os penalistas permaneçam fazen-do desse tópico objeto de fetiche, continuando a indagar qual a resposta mais apropriada à singela pergunta “por que punir?”, quando o que inte-

61 ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 39.

62 O penalista comprometido com a contenção do poder punitivo deve ter como horizonte de ação o combate sem trégua contra toda e qualquer teoria justificante da pena. Essa rejeição deve abarcar necessariamente todas as respostas positivas ao “por que punir?”, o que inclui todas as variantes clássicas e contemporâneas da questão e, logo, vale também para as construções discursivas de autores contemporâneos como Ferrajoli, Faria Costa, Roxin, Hassemer e Jakobs, que não ultrapassam os limites narrativos do justificacionismo.

63 ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 67.

64 Idem, p. 96.65 ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva,

2013. p. 403.

58 �������������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – ASSUNTO ESPECIAL – DOUTRINA

ressa é limitar os níveis de dor intencional que são impostos aos que são tragados pelo sistema penal66.

Diante dos estratosféricos níveis de dor provocados pelas nossas prá-ticas punitivas, novamente temos que enfatizar que não parece exagerado relacionar a condição atual da questão penitenciária brasileira ao Holo-causto: os níveis de sofrimento atingiram patamares tão elevados que o que estamos vivendo talvez mereça o nome de técnica industrial de extermínio, diante da flagrante disparidade entre pena prevista e castigo vivido. O que impera é a lógica da guerra, mostrando que Tobias Barreto já havia percebi-do há mais de um século atrás o sentido do castigo. O autor enfatizou que o conceito de pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político67. Para ele, quem procura o fundamento jurídico da pena deve também pro-curar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra: a pena – considerada em si mesma – nada tem a ver com a ideia de direito e isso fica provado pelo fato de que ela é muitas vezes aplicada e executada em nome da religião, ou seja, do que há de mais alheio à vida jurídica68.

São argumentos inteiramente condizentes com os que desenvolve-mos até aqui, mas que sem dúvida soam estranhos para quem concebe o direito penal como algo essencialmente normativo. É comum que os pe-nalistas tratem do problema político do pensamento jurídico-penal a par-tir de uma perspectiva de legitimação, atuando no âmbito de agências de reprodução ideológica do discurso sedimentado. Trata-se de uma estrutura de pensamento putrefata e que deve ser posta abaixo sem misericórdia, o que pode ser feito sem grande dificuldade a partir de uma conexão com a teoria agnóstica da pena, proposta por Zaffaroni. Ele define a pena como um exercício de poder. Confessa desconhecer sua função e, logo, abdica de qualquer resposta justificacionista ao “por que punir?”. Com isso Zaffaroni procura legitimar e ampliar o poder jurídico, visando à contenção do poder

66 Como observou Christie, “despues de la muerte, el encarcelamiento es el ejercicio de poder mas severo que el Estado tiene a su disposicion. Todos nosotros tenemos la libertad limitada de alguna manera: forzados a trabajar para subsistir, obligados a subordinamos a nuestros superiores, encerrados en clases sociales o aulas, prisioneros del nucleo familiar . Pero a excepcion de la pena de muerte y la tortura fisica – medidas de uso limitado en la mayoria de lós paises de los que trata este libro –, nada es tan extremo en cuanto a restricciones, degradacion y despliegue de poder como la carcel” (CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p. 33).

67 BARRETO, Tobias. Algumas ideias sobre o chamado fundamento do direito de punir. In: BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. p. 143.

68 Idem, p.144. Obviamente não podemos deixar de referir que o processo penal ainda está repleto de categorias religiosas. A epistemologia dominante continua sendo a delineada por Eymerich no manual dos inquisidores. Sobre o tema, ver KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

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punitivo e reconduzindo a questão da pena ao âmbito político69. Segundo Carvalho, “entendida como realidade política, a pena não encontra susten-tação no direito. Pelo contrário, simboliza a própria negação do jurídico. Pena e guerra se sustentam, portanto, pela distribuição de violência e impo-sição incontrolada de dor”70.

Com a teoria agnóstica da pena temos subsídios para enterrar os mala-barismos narrativos do justificacionismo e especialmente um em particular: o mito da ressocialização. Afinal, será possível cogitar em alguma medida a vocação para ressocializar através da pena privativa de liberdade, quando ela é na verdade um exercício de poder voltado para a dor e capacitado para o extermínio? Para Carvalho, “abandonar quaisquer teorias justificacio-nistas, sobretudo os modelos ressocializadores, é efeito primeiro da adoção da perspectiva agnóstica de redução dos danos penais”71.

Portanto, a realidade desmente, de forma flagrante, o delírio alimen-tado pelo penalismo: a justificação da pena e do suposto direito de punir através de um conjunto de artimanhas discursivas, cujo verdadeiro sentido consiste na legitimação do ilegitimável por definição. Precisamos enterrar esses espantalhos discursivos urgentemente para impedir que o direito penal continue sendo um instrumento a serviço do Holocausto72. Desse modo, a teoria agnóstica da pena pode contribuir decisivamente para a redução de danos, assumindo que a perspectiva de minimização da dor provocada pe-las práticas punitivas deve ser o norteador dos discursos jurídicos. Zaffaroni refere que

se o saber jurídico-penal decidisse ignorar a função do poder punitivo, reco-nhecendo sua irracionalidade e sua existência como mero factum, assumiria diante dele a nobre função de projetar normativamente sua contenção para preservar o estado de direito e prevenir os massacres, e recuperaria a digni-dade que, em boa medida, perdeu ao longo da história, ao justificar os mais horrorosos crimes de Estado.73

69 ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.108-112.

70 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 267.71 Idem, p. 269.72 Como explica Carvalho, “ao assumir a pena como realidade (fenômeno) da política, a minimização dos

poderes arbitrários exsurge como reação igualmente política. O projeto de redução dos danos decorrentes da punitividade atinge todas as fases de sua individualização, no esforço de redefinir critérios de sua cominação, aplicação e execução, a partir da observância dos postulados constitucionais de proporcionalidade, razoabilidade e proibição do excesso” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 269).

73 ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 404.

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Certamente esse é o caminho a seguir, pelo menos para aqueles que estão comprometidos com uma proposta de minimização da dor e redução de danos, que é, afinal, o que podemos atingir em um horizonte pragmáti-co de atuação. Muitos podem sonhar com a extinção do direito penal e a abolição da pena, mas convenhamos que, embora isso possa ser desejável, dificilmente será possível em nosso tempo. Seria inclusive temerário se isso acontecesse agora, pois é bem provável que algo ainda pior tomaria o lugar do sistema penal. O que podemos fazer é abalar as estruturas do pensamen-to e ver o que remanesce, o que se sustenta, o que pode contribuir para fazer com que a realidade concreta deixe de ser o lugar do insuportável, ou, ao menos, fazer com que esse insuportável deixe de ser percebido como supor-tável, o que é imprescindível para que qualquer mudança ocorra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mas e quanto aos próximos vinte anos? Será que o totalitarismo avan-çará ainda mais, com ampliação irrestrita dos níveis de repressão penal? Seria muita ousadia fazer qualquer previsão. Pode ser que daqui a vinte anos o número de presos no Brasil tenha crescido novamente em 350%, sem que exista um aumento sequer remotamente parecido no número de vagas. O argumento do Holocausto ganhará muito mais força, sem dúvida. Mas considerando a condição catastrófica em que vivemos, talvez esse seja até um palpite modesto, motivo pelo qual é melhor nem arriscar. Não seria inteiramente absurdo cogitar que o Brasil irá perseguir o primeiro lugar no ranking de populações carcerárias.

O que sabemos é que o poder efetivamente jurídico dentro do sis-tema penal é muito restrito. Não faz sentido algum que continuemos le-gitimando a barbárie e, com isso, paradoxalmente reduzindo ainda mais o poder discursivo dos juristas. Nossa tarefa imediata consiste em deixar de legitimar a catástrofe e minimizar os níveis de dor intencional: rejeitar os discursos justificacionistas, denunciar o Holocausto nosso de cada dia e lutar pela contenção da indústria do controle do delito. São horizontes práticos, imediatos e nada utópicos. Horizontes com os quais os penalistas minimamente comprometidos com o progresso do Estado Constitucional de Direito podem e devem se engajar. Contra o Holocausto nosso de cada dia, um tsunami antipunitivista. Quem sabe assim deixamos de acumular tantas ruínas? Eu sei de que lado estou. E você, de que lado está?

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Assunto Especial – Doutrina

O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário

Política Não Criminal e Processo Penal: a Intersecção a Partir das Falsas Memórias da Testemunha e Seu Possível Impacto Carcerário1

GUSTAVO NORONhA DE ÁVILADoutor em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Mes-tre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Professor de Direito Processual Penal do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter)/Laureate Interna-tional Universities, Professor de Criminologia da Especialização de Direito Penal e Direito Pro-cessual Penal do UniRitter/IBCCrim, Professor de Criminologia da Especialização em Ciências Penais da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Advogado.

RESUMO: A prova testemunhal é uma das mais utilizadas em âmbito processual. Por outro lado, as entrevistas à testemunha podem formar um quadro sugestionável, que pode redundar em falsas memórias. O artigo pretende discutir as vinculações desta situação processual penal com as políticas criminais contemporâneas. Para tanto, lançaremos mão de um referencial teórico crítico para pen-sarmos em formas efetivas de reduzir a possibilidade de falsas memórias. É necessário discutirmos o próprio catálogo de tipos penais disponíveis, talvez a principal forma de afastarmos possíveis con-taminações a redundarem em privações de liberdade.

PALAVRAS-CHAVE: Falsas memórias; prova testemunhal; política criminal; sugestionabilidade.

SUMÁRIO: Introdução; 1 As falsas memórias como problema do processo penal; 2 Política criminal brasileira: rumo a um milhão de presos?; 3 Possibilidades de pensar uma política não criminal: por onde?; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

As sugestionabilidades e suas possíveis resultantes, as falsas memó-rias, constituem um dos grandes problemas do processo de criminalização

1 O presente trabalho constitui atualização, articulada com a política criminal brasileira contemporânea, das seguintes publicações que convido à leitura: ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013; DORNELLES, Guilherme Augusto; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Processo penal, falsas memórias e entrevista cognitiva: da redução de danos à redução de dor: In: ÁVILA, Gustavo Noronha de (Org.). Fraturas do sistema penal. Porto Alegre: Sulina, 2013. p. 285-314; ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó; PIRES FILHO, Luiz Alberto Brasil Simões. Falsas memórias e processo penal: (re)discutindo o papel da testemunha. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade de Direito de Lisboa, v. 12, p. 7180-7181, 2012; ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó. Presunção da inocência, mídia, velocidade e memória – Breve reflexão transdisciplinar. Revista de Estudos Criminais, v. VII, p. 105-113, 2007.

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brasileiro. Tal situação encontra seu ponto nevrálgico na prova testemunhal. Comumente, tem-se trabalhado com propostas de redução de danos para atenuar possíveis efeitos negativos na liberdade do réu.

Nestas breves linhas, discutiremos as possibilidades de pensarmos para além das medidas reformistas processuais penais, vinculando a ques-tão também às políticas criminais. Até qual ponto uma sociedade punitiva influencia na propulsão de sugestionabilidades? Existe possibilidade de pen-sarmos em políticas não criminais? Quais seriam os efeitos destas para as sugestionabilidades?

São algumas das questões que, longe da pretensão arrogante de esgo-tarmos, pretendemos abordar e problematizar com o nosso leitor.

1 AS FALSAS MEMÓRIAS COMO PROBLEMA DO PROCESSO PENAL

Nos processos que tentam a (re)construção do fato criminoso preté-rito, podem existir artimanhas do cérebro, informações armazenadas como verdadeiras, ou induções dos entrevistadores, de outras pessoas e/ou da mí-dia que, no entanto, não condizem com a realidade. Estas são as chamadas falsas memórias, processo que pode ser agravado quando da utilização de técnicas por repetição, exemplificadamente as empregadas de forma notória no âmbito criminal.

Estas consistem em recordações de situações que, na verdade, nunca ocorreram. A interpretação errada de um acontecimento pode ocasionar a formação de falsas memórias. Embora não apresentem uma experiência direta, as falsas memórias representam a verdade como os indivíduos as lembram2. Podem surgir de duas formas: espontaneamente ou através de uma sugestão externa.

Alfred Binet conduziu os primeiros estudos específicos sobre falsas memórias. Eles versavam sobre as características de sugestionabilidade da memória, a saber, a incorporação e a recordação de informações falsas, se-jam elas de origem interna ou externa, que o indivíduo lembra como sendo verdadeiras3.

2 BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Dissertação de Mestrado em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: PUCRS, 2002. p. 26.

3 BINET, A. La suggestibilitie. Paris: Scheicher, 1900. Apud NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen; STEIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.

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Para ilustrar tal situação interessante, cita-se o experimento realizado por Walter Lippmann, em 1922, no Congresso de Psicologia em Gottingen, feito, portanto, sob o olhar de pessoas treinadas e acostumadas à observação:

De um lugar próximo da sala em que acontecia o congresso, havia uma fes-ta, um baile de máscaras. Repentinamente, uma porta da sala do congresso abre-se abruptamente e um palhaço entra correndo perseguido, loucamente, por um afrodescendente com um revólver na mão. Eles param no meio da sala brigando. O palhaço cai. O afrodescendente pula sobre ele e dispara a arma. Ambos saem rapidamente da sala. Todo o incidente dura cerca de 20 segundos.

O presidente do congresso pede aos presentes que façam um depoimento sobre o fato, uma vez que aquilo certamente seria alvo de inquérito judi-cial e testemunhos seriam necessários. Quarenta depoimentos lhe chegam às mãos. Apenas um tinha menos de 20% de erros em relação aos fatos ocor-ridos. Quatorze tinham de 20 a 40 por cento de erros, doze tinham de 40 a 50 por cento de erros e treze tinham mais de 50 por cento de erros. Em 24 dos reports, 10% dos fatos relatados eram pura invenção. Cerca de ¼ dos tes-temunhos eram falsos. Não é necessário dizer que toda cena fora arranjada à guisa de experimento. Toda ela foi fotografa. Dos falsos reports, 10 pode-riam ser classificados como lendas ou contos, 24 poderiam ser considerados como meio lendários e apenas 6 tinham um valor aproximado a provas.4

Necessário atentar ao fato de o experimento ter contado com partici-pantes treinados à observação, que, quando colocados em situação de rela-tar um evento violento, tendem a trazer informações diversas/equivocadas em relação ao acontecimento.

Chamamos de processo “tudo o que se refere à prova”5 e, etimolo-gicamente, esta palavra evoca um exame ou uma seleção de algo. Os pro-cessos são “máquinas retrospectivas”, logo, baseados em várias hipóteses históricas, propostas pelas partes. É preciso, então, verificá-las. As provas são a maneira pela qual realizaremos essa tarefa6. Para Taruffo7, a noção de prova reside na fundamentação deste juízo.

A dificuldade de se avaliar a prova e a sua vontade de verdade8, espe-cialmente através da testemunha, já eram preocupações de Carnelutti. Diz

4 LIPPMANN, Walter. Public opinion. 50. ed. New Jersey: MacMillan, 1991. p. 82.5 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Bogotá: Themis, t. II, 2000. p. 4.6 Em um sentido ultrajurídico, “seria tudo aquilo que nos convence da existência de algum fato, alguma coisa

ou algum ser, seja do presente, seja do passado” (TOVO, Paulo Cláudio. Estudos de direito processual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, v. 2, 1999. p. 202).

7 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. 3. ed. Madrid: Trotta, 2009. p. 327-328.8 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003. p. 142.

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ele que “as provas são, pois, os objetos mediante os quais o juiz obtém as experiências que lhe servem para julgar”9.

Para além da concepção narrativa, já se percebia a preocupação de que o testemunho constituísse muito mais do que descrever: constituía, sim, uma verdadeira maneira de transmitir uma experiência10. Como forma de transcender a sua objetificação, seria necessário também entender menos o conteúdo em comparação ao que poderia ser trazido ao processo e mais a sua vivência e como esta pode influenciar a sua forma de interpretar o mundo.

A possibilidade de ocorrência das falsas memórias também pode atuar de forma precaucional, impedindo ao magistrado que imponha con-denações, como corolário dos princípios do in dubio pro reo e estado de inocência.

A qualidade da prova pode estar comprometida também quando da decorrência de lapso temporal exacerbado entre a coleta dos depoimentos policiais e os testemunhos judiciais, favorecendo a produção de memórias falsificadas. Foi o que reconheceu o Desembargador do Tribunal de Justiça gaúcho, Gaspar Marques Batista: “Parte da prova oral colhida em juízo, cin-co anos depois, certamente foi prejudicada pela ação do tempo, que opera o esquecimento dos fatos e até a inclusão de falsas memórias”11.

Sobre a testemunha e a sua memória do evento, os efeitos do tempo são nefastos. O intervalo entre o depoimento em inquérito e a oitiva, como testemunha no processo, pode demorar anos. Assim, “a correspondência entre o que a testemunha viu, a imagem que registrou na consciência e o que vão relatar ao juiz sofrem forte influência do tempo”12.

Enxergar através dos olhos da testemunha: eis um dos desafios co-muns ao juiz durante o processo penal. Apesar desta dificuldade e de to-das as possíveis “impurezas”, advindas deste tipo de prova, não é possível prescindir de sua existência13. Isto porque existem crimes, especialmente os materiais, que dificilmente poderão ser analisados de outra forma que não pela testemunha. O homicídio é um claro exemplo desta situação.

9 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, v. 1, 2004. p. 275.10 Idem, p. 289.11 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Criminal nº 70020430146/RS. Julgamento em:

29.11.2008. Diário de Justiça do Rio Grande do Sul, em 08.11.2007. Acesso em: 15 nov. 2008. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/consulta/exibe_documento<.php?ano=2007&codigo=1382594>. Acesso em: 3 fev. 2014.

12 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 51.13 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, v. 1, 2004. p. 292.

68 �������������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – ASSUNTO ESPECIAL – DOUTRINA

Mas como o juiz poderia utilizar-se desta experiência da testemunha? A resposta, inicialmente, parece-nos bastante complexa. A mera relação causal, base do cartesianismo, será absolutamente insuficiente para contor-nar a questão.

O Direito é herdeiro direto da tradição racionalista, que reduz o co-nhecimento ao mundo binário da validade/invalidade. Desta forma, a ação será procedente/improcedente, uma medida legal/ilegal (constitucional/inconstitucional). Com base na naturalizada igualdade, o Direito preten-samente tenta forjar um mundo para além das impurezas, muito além da verdade, já que o falso só serve de modo a confirmá-la.

Quanto à utopia do “mundo perfeito”, afirma Gauer que “a moderni-dade disciplinou não apenas os homens, mas também, todas as coisas que pudessem estar fora do lugar”14. Todas as impurezas deveriam ser higie-nizadas, e a razão era a forma de filtrar, binariamente, os conhecimentos válidos e inválidos. Sendo assim, “o mundo perfeito, utopia dos iluminis-tas, seria totalmente limpo e idêntico a si mesmo, transparente e livre de contaminações”15.

Ao presenciar o fato, certamente a testemunha o interpreta, de acordo com sua própria vivência, que, na maior parte das vezes, não é a mesma do juiz. Alexandre Morais da Rosa nos traz uma possibilidade interessante: “A melhor maneira de julgarmos um processo crime é imaginar o enredo sem o ato violento ou criminalizado”16. É necessário, portanto, um certo afasta-mento para consegui-lo17.

Aqui deixamos bastante evidente que não se trata apenas de avaliar-mos as atuações do órgão acusatório e da magistratura, mas, necessaria-mente, de todos eles que terão participação ativa na (re)construção do fato passado. Portanto, processos que gerem falsas memórias não dependerão apenas de quem tem a função de acusar e a quem julga, mas também da-queles defensores que, em contraditório, lançarão mão das melhores estra-tégias para evitar distorções.

14 GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno do paradoxo moderno. Civitas, v. 5, n. 2, p. 399-413, 2005. p. 401.

15 Idem, p. 401.16 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Quando se fala de juiz no novo CPP de que juiz se fala? In: COUTINHO,

Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da constituição (análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009 do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 128.

17 Idem, p. 128.

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O sistema de oitiva de testemunhas, adotado na legislação brasileira, a partir da reforma processual de 2008, é semelhante ao cross examination (ou exame direto e cruzado18) norte-americano, já que, em ambos, a acu-sação e a defesa realizam os seus questionamentos diretamente às testemu-nhas. Neste formato, as partes ficam sujeitas ao contrainterrogatório de seu oponente. Porém, existe importante diferença: o processo penal brasileiro não limitou a atuação do juiz, no sentido de somente presidir o ato, mas também permitiu a ele a faculdade de complementar a inquirição acerca dos pontos não esclarecidos19.

O art. 212 do CPP traz algumas limitações às perguntas realizadas. Estas não poderão induzir resposta, nem ter relação com a causa e importar em repetição, sendo o magistrado responsável por fiscalizar a inquirição20. Neste ponto, constatamos importante dificuldade de nosso regramento le-gal: inexistem definições do que seriam perguntas que induzem à resposta.

Como possível forma de atenuação do problema se apontam medidas de redução diante da impossibilidade de outra solução21. Para tanto, são trazidas as seguintes sugestões:

a) a colheita dos depoimentos em um prazo razoável, objetivando a diminuição da influência do tempo (esquecimento) na memória;

b) a adoção de técnicas de interrogatório e da entrevista cognitivas, com o intuito de obter informações quantitativas e qualitativa-mente superiores as das entrevistas tradicionais, altamente su-gestivas;

c) a gravação das entrevistas, permitindo ao julgador de segunda instância o conhecimento do modo como os questionamentos foram elaborados, bem como as reações dos entrevistados;

d) a realização das perguntas pelas partes após o relato livre do entrevistado (vítima ou testemunha), complementando, o magis-trado, ulteriormente, os questionamentos;

18 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis (Coord.). As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 284.

19 DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. Dissertação de Mestrado em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2008. p. 102.

20 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 57.

21 GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Fatores de contaminação da prova testemunhal. In: GIACOMOLLI, Nereu José; MAYA, André Machado (Org.). Processo penal contemporâneo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010. p. 23.

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e) a inutilizabilidade dos relatos (depoimentos) contaminados dire-ta e indiretamente;

f) a formação multidisciplinar dos profissionais encarregados da realização das inquirições, com atualizações constantes;

g) a exploração de outras hipóteses, diversas da acusatória, por parte do entrevistador, fazendo-se uma abordagem de outros as-pectos ofertados pela vítima ou pelas testemunhas, por ocasião dos depoimentos.22

Primeiramente, trabalhar com a ideia do que seria prazo razoável pa-rece bastante movediça. O conteúdo dependerá sempre de um referencial, dificultando de forma determinante a aplicação dos postulados universali-zantes do Direito.

Quanto ao conteúdo das entrevistas, são necessárias algumas obser-vações. As dez falhas mais comuns dos entrevistadores forenses foram lis-tadas a seguir: 1) não explicar o propósito da entrevista; 2) não explicar as regras básicas da sistemática da entrevista; 3) não estabelecer rapport (a empatia com o entrevistado); 4) não solicitar o relato livre; 5) basear-se em perguntas fechadas e não fazer perguntas abertas23; 6) fazer perguntas sugestivas/confirmatórias; 7) não acompanhar o que a testemunha recém disse; 8) não permitir pausas; 9) interromper a testemunha quando ela está falando; e 10) não fazer o fechamento da entrevista24.

O objetivo principal da entrevista cognitiva é obter melhores depoi-mentos, ou seja, ricos em detalhes e com maior quantidade e precisão de informações. Baseia-se nos conhecimentos científicos de duas grandes áreas da psicologia: psicologia social e psicologia cognitiva. No que concerne à psicologia social, integram os conhecimentos das relações humanas, parti-cularmente o modo de se comunicar efetivamente com uma testemunha e, no campo da psicologia cognitiva, somam-se os saberes que os psicólogos adquiriram sobre a maneira como nos lembramos das coisas, ou seja, como a nossa memória funciona25.

Apesar de as técnicas cognitivas serem importantes aliados em países onde as pesquisas sobre testemunho possuem maior tempo de desenvol-

22 Idem, p. 38-39.23 Perguntas abertas permitem que a pessoa que está respondendo dê mais informações (e.g., “o que você viu

quando entrou na loja?”. As fechadas, geralmente, somente trazem duas alternativas possíveis de resposta: “sim” ou “não” (e.g., “era manhã, tarde ou noite quando o crime aconteceu?”) (FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 220).

24 Idem, p. 211.25 Idem, p. 210.

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vimento, inexiste possibilidade de afirmar o afastamento dos protagonis-tas/entrevistadores de concepções punitivistas do sistema e que influen-ciam também a forma de obtenção dessas informações. Esta observação também serve para o caráter multidisciplinar da formação dos atores: de nada adiantará caso inexista comprometimento com garantias fundamentais dentro do processo penal.

Também não se pode ignorar a existência de uma cultura autoritária no tocante às polícias e à dificuldade de implementação das estratégias de inquirição. Prova disso são os resultados tímidos da incorporação de valo-res constitucionais, em que pesem mais de 25 anos de vigência de nossa Constituição Federal.

A gravação das entrevistas nos parece mecanismo bastante interes-sante, de forma a ampliar o debate em segunda instância. Problema fun-damental, no entanto, é identificar a insuficiência do método para as ins-tâncias superiores em função da vigência do paradigma de relação jurídica de ação penal. Aqui, distinguimos fato e direito, como se fosse possível o julgamento relativo a apenas uma dessas circunstâncias. Logo, a eficácia da estratégia também seria limitada.

O relato livre de vítima e testemunhas é fundamental. No entanto, a complementação dos questionamentos por parte do magistrado reve-la flagrante ofensa ao princípio acusatório. Não só: é bastante temerária a hipótese, admitindo-se a possibilidade de perguntas de cunho confirmatório por parte de alguém (ou que deveria ser) visto pelo inquirido como um ter-ceiro imparcial.

Por outro lado, é necessário que nos perguntemos se uma concepção de política criminal conservadora (como a do Direito Penal do inimigo) não pode permitir um sistema mais propício à sugestionabilidade ao longo da oitiva de pessoas (em fase policial e judicial) e que pode se materializar em falsas memórias?

Importante indicativo podemos ter, a partir das pesquisas de Azeve-do em relação à atuação dos promotores públicos no Rio Grande do Sul e dos membros do Ministério Público Federal. Quanto aos primeiros, 54% consideraram que possuíam mais afinidade com a política criminal da “To-lerância Zero” como forma de responder às altas taxas de criminalidade. A concepção garantista apareceu com apenas 8% de adeptos26.

26 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Ministério Público gaúcho: quem são e o que pensam os promotores e procuradores de justiça sobre os desafios da política criminal. Porto Alegre: Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2005.

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No tocante à pesquisa realizada com os membros do Ministério Pú-blico Federal27, 67,6% dos entrevistados consideram a legislação penal e processual penal brasileira branda ou excessivamente branda. Ainda: em relação às concepções de política criminal, 34,7% dos membros estão de acordo com os ditames da “defesa social” e 12,6%, com a “tolerância zero”. Contudo, 13,2% consideram-se adeptos ao garantismo penal e 0,6%, ao abolicionismo penal.

Por certo, estes dados são de grande relevância; todavia, revelam apenas o atuar penal de uma das partes envolvidas no sistema penal. Pro-visoriamente, seria possível pensar que pesquisas neste sentido podem ser importantes não somente para os titulares da ação penal (por excelência), como também para os juízes, advogados (que igualmente podem justificar a sua atuação com base em concepções político-criminais conservadoras) e delegados.

As falsas memórias existem, possuem repercussão crucial (inclusive judicial, como visto) e são de difícil identificação, pois quem relata crê ver-dadeiramente em sua versão. Apesar de existirem métodos/técnicas para tentar atenuar seus efeitos, temos que a grande questão deve ser enfrentada não apenas com a promoção de garantias processuais penais, mas princi-palmente por um debate político criminal sobre a necessidade de existência do processo de criminalização em si. Apenas desta forma talvez poderemos efetivamente impedir erros judiciais traduzidos em insuportáveis privações de liberdade.

2 POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA: RUMO A UM MILHÃO DE PRESOS?

Se os processos de criminalização são os responsáveis primeiros pela exposição a uma falsa memória, cabe discutir o papel da política criminal brasileira neste contexto. Para Delmas-Marty, política criminal significa “o conjunto dos procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respos-tas ao fenômeno criminal”28.

No Brasil, inexiste atualmente estatística de qual seria o número de presos por prova contaminada com falsas memórias. Apesar da dificuldade de comprovar a distorção, poderíamos pensar na utilização da prova técni-ca (DNA) para desmentir a construção processual passada.

27 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Perfil socioprofissional e concepções de política criminal do Ministério Público Federal. Brasília: Ministério Público Federal, 2009. Disponível em: <http://escola.mpu.mp.br/linha-editorial/outras-publicacoes/Perfil_ebook.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2014.

28 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. São Paulo: Manole, 2004. p. 16.

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Esta comparação tem sido feita nos Estados Unidos da América, atra-vés de uma ação denominada Innocence Project. Através de uma ação cha-mada de “exoneração”, é feita a comparação entre o material encontrado na cena do crime (para aqueles ocorridos quando não havia tecnologia dis-ponível) e a da pessoa condenada, não raro a morte.

Atualmente, há 258 casos de exoneração29 nos Estados Unidos, basea- dos no DNA. Em média, a pessoa exonerada passa treze anos na prisão an-tes de ser liberada. Em 70% dos casos, a pessoa exonerada era um membro de um grupo de minoria racial. Os erros de identificação das testemunhas oculares contribuem em mais de 75% para os casos de prisão indevida nos Estados Unidos30.

É possível notar a tendência de uma política criminal expansionista no Brasil. Por mais que o fracasso histórico das prisões tenha sido exaustiva-mente denunciado pelos mais diversos setores da doutrina penal, a vontade de segregação continua.

Novos bens jurídicos, aparecimento de novos riscos, institucionali-zação e sensação social de insegurança, descrédito das instâncias de pro-teção, gestores atípicos da mortal (ecologistas, feministas, consumidores, vizinhos, etc.) e a chamada esquerda punitiva são frequentemente trazidos31 como uma das causas para políticas criminais repressivas.

A seleção do que proteger nem sempre é clara ou segue critérios mi-nimamente científicos32. Exemplo disto é a ausência do homicídio da reda-ção original da legislação de crimes hediondos33.

Editada em 1990, foi uma das grandes responsáveis pelo extraordiná-rio incremento carcerário que tivemos, juntamente à legislação de drogas (11.343/2006). O processo de encarcerização ainda demonstra outras fina-lidades. Ocultas. Nos dizeres de Bauman:

[...] o aumento da prisionização nas sociedades contemporâneas se rela-ciona à incapacidade dos excluídos de participarem do jogo do mercado,

29 Ação semelhante a nossa revisão criminal, ou seja, forma de tentar alterar o resultado de um julgamento já transitado em julgado.

30 INNOCENCE PROJECT. Eyewitness identification reform. Disponível em: <http://www.innocenceproject.org/Content/Eyewitness_Identification_Reform.php>. Acesso em: 12 jul. 2013.

31 SILVA-SÁNCHEZ, Jesús María. A expansão do direito penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 18.

32 SÁNCHEZ-OSTIZ, Pablo. Fundamentos de política criminal. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 24-48.33 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 21;

PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 250.

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aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos e aqueles que recusaram a oportunidade de vencer enquanto participavam do jogo de acordo com as regras oficiais. Bauman salienta que o sistema hoje se resume a separar de modo estrito o “refugo humano” do restante da sociedade, excluí-los e neutralizá-los. Pois o refugo humano precisa ser lacrado em contêineres fe-chados com rigor, e o sistema penal fornece esses contêineres. As prisões que teoricamente funcionavam como mecanismos de correção e ressocialização hoje são concebidas como um mecanismo de exclusão e controle. “O prin-cipal e talvez o único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de lixo qualquer, mas o depósito final, definitivo. Uma vez rejeitado, sempre rejeitado”.34

Vivemos a chamada era do Grande Encarceramento35, época parado-xal por natureza. Se, por um lado, temos presídios invariavelmente lotados e em condições intoleráveis; por outro, existe um sentimento social genera-lizado relativamente às demandas punitivas: penas mais duras e construção de novos estabelecimentos prisionais. A estes movimentos, inspirados por teorias identificadas com ideias de defesa social (notadamente o “direito penal do inimigo” e a law and order), tem se dado o nome de populismo punitivo36. Mesmo que seja considerada superada teoricamente, esta con-cepção político-criminal ainda encontra espaço no senso comum. Portanto, por mais que existam resistências, a permeabilidade da política criminal legislativa acaba fazendo com que tenhamos o movimento como de um pêndulo37.

Este quadro é fomentado pela transição de um chamado “estado de bem-estar social” para um “estado policial”, ou seja: “A passagem do mode-lo de comunidade includente do ‘Estado Social’ para um Estado excludente, ‘penal’, voltado para a ‘justiça criminal’ ou o ‘controle do crime’”38. Dentro do paradigma atual, o sistema penal torna-se “o território sagrado da nova ordem socioeconômica”39.

Isto se agrava em países como o Brasil, nos quais a desigualdade ain-da constitui gravíssimo problema estrutural. Desta forma, as prisões acabam

34 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 107.35 Neste sentido: BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan,

2011. p. 27.36 LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul:

Notadez, n. 25, abr./jun. 2007.37 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Trad. Mariluz Caso. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica,

1988. p. 71 e 95.38 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 86.39 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 100.

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por se constituir em grandes depósitos, onde os excluídos40 socialmente são abrigados.

Produto e ao mesmo tempo combustível da lógica punitivista será a cultura do medo41. Existe um sentimento generalizado de vitimização, re-produzido a partir de um maniqueísmo social, segundo o qual,

os bons se transformam em vítimas indefesas dos maus, incluído, nesta últi-ma categoria os supostos responsáveis pela segurança de todos. Daí as ex-pressões: impunidade, ineficácia das normas e do judiciário. A sociedade sente-se vítima do bandido e do Estado incompetente ou pouco opressor.42

Suspeitas se projetam em privações, especialmente da liberdade. Sin-toma deste contexto é a população prisional brasileira. Hoje, estima-se que tenhamos mais de 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil) presos43. E este número apenas cresce. Ainda que existam medidas político-criminais com fins declaradamente desencarcerizadores, as consequências práticas de sua aplicação são bastante tímidas. Isto porque o subjetivismo44, em certas categorias-chave (como o requisito da “ordem pública” em sede de prisão cautelar), torna facilmente reversíveis os objetivos originais.

O Brasil é o quarto país do mundo em população carcerária. Está atrás de EUA, Rússia e China. Dados trazidos pelo Instituto Avante Brasil45 apontaram o aumento de 508% na população prisional brasileira entre 1990 e 2012, enquanto a população nacional cresceu 31%. Christie consi-dera o número de presos a cada 100.000 habitantes como um importante

40 PASTANA, Débora Regina. Estado punitivo e encarceramento em massa: retratos do Brasil atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 77, p. 316-317, mar./abr. 2009.

41 Utilizamos aqui o medo nos termos trabalhados por Débora Pastana: “Entendemos o medo, neste estudo, como uma forma de exteriorização cultural, principalmente se levarmos em conta as transformações que ele desencadeia. Como vimos no capítulo anterior, há uma mudança no comportamento do indivíduo em casa e na rua, um cuidado maior com os bens (consumo de apólices de seguro, por exemplo), a produção e o consumo dos mais variados produtos de segurança privada (alarmes, vidro blindado e aulas de defesa pessoal, por exemplo), uma desconfiança generalizada entre os indivíduos” (PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCrim, 2003. p. 92). Ver também: Bauman, op. cit., p. 65-66.

42 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCrim, 2003. p. 108-109.

43 Veja-se: KAWAGUTI, Luis. Brasil tem 4ª maior população carcerária do mundo e déficit de 200 mil vagas. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_presos_onu_lk.shtml>. Acesso em: 6 jun. 2012. No mundo, estima-se que tenhamos mais de 10 milhões de pessoas presas: INTERNATIONAL CENTRE FOR PRISION STUDIES. World Prison Population List. Disponível em: <http://www.prisonstudies.org/info/downloads.php?searchtitle=&type=3&month=1&year=2009&lang=0&author=&search=Search>. Acesso em: 12 jun. 2012.

44 Ver especialmente LOPES JÚNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelas diversas: Lei nº 12.403/2011. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

45 INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do sistema penitenciário em 2012. Disponível em: <http://institutoavantebrasil.com.br/levantamento-do-sistema-penitenciario-brasileiro-em-2012/>. Acesso em: 1º fev. 2014.

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dado para medir o nível de punição de determinado país46. No nosso, em 2012, a taxa de presos foi 283 para cada 100.000 habitantes, levando-se em consideração a população de 193.946.886 habitantes estimada pelo IBGE para 2012. Enquanto a população cresceu 1/3, a população carcerária mais que sextuplicou47.

Apesar da expansão estonteante do número de encarcerados, isto não significa maior sensação de segurança. Pelo contrário. O primeiro milhão de presos não está distante. Neste sentido, nunca é demais lembrar Christie: “Nas sociedades modernas, o maior perigo do delito não é o delito em si, mas que a luta contra ele conduza as sociedades ao totalitarismo”48.

3 POSSIBILIDADE DE PENSAR UMA POLÍTICA NÃO CRIMINAL: POR ONDE?

Talvez a única forma efetiva de diminuição de falsas memórias, du-rante os processos de criminalização, seja justamente atingir o catálogo de crimes disponíveis. Daí a necessidade de uma política não criminal. Abor-daremos, neste ponto, propostas existentes para (re)valorização da liberda-de ainda considerando os resquícios importantes de uma sociedade ainda disciplinar49.

As escolhas de política criminal são culturais50, revelam uma área inundada de questões morais profundas, que não podem se resumir a es-pecialistas e mensageiros da verdade. Ainda com Christie: “Deve haver um coro de vozes que introduzam inúmeras preocupações de difícil solução e sobre as quais inexiste unanimidade. Quanto mais se vê o campo como cultural, menos espaço sobra para soluções simplificadas”51.

Existe certo consenso sobre as (im)possibilidades do cárcere. Nos di-zeres de Ferrajoli:

46 Christie, Indústria do controle, p. 40.47 INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do sistema penitenciário em 2012. Disponível em: <http://

institutoavantebrasil.com.br/levantamento-do-sistema-penitenciario-brasileiro-em-2012/>. Acesso em: 1º fev. 2014.

48 CHRISTIE, Nils. La Industria del Control del Delito – La Nueva Forma del Holocausto? Buenos Aires: Editores del Puero, 1993. p. 24.

49 Não se ignora sobre os novos controles planetários, de menor repercussão no sistema penal, porém de grande importância para entender a transmutação da biopolítica em ecopolítica. Neste sentido, imprescindível as seguintes leituras: PASSETTI, Edson. Ecopolítica: procedências e emergência. In: BRANCO, Guilherme Castelo; VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Foucault, filosofia & política. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, v. 1, 2011. p. 127-141, FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008; DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 21, 2004.

50 CHRISTIE, Nils. Uma quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 50.51 Idem, p. 130.

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Muito mais relevante é saber como castigar, ou seja, o tema da desprisio-nalização. Cremos que os tempos tenham amadurecido o suficiente para colocar como centro da discussão a questão do cárcere. Este, sabemos, foi uma invenção moderna, considerada como grande conquista dos ideais hu-manitários da ilustração enquanto alternativa à pena de morte, aos suplícios, penais corporais, à tortura em praça pública e outros horrores do direito penal pré-moderno.

Com a prisão, a pena se voltou aos ideais de igualdade, legalidade pré-de-terminada, sempre suscetíveis à medição e cálculo: privação de um tempo de liberdade, quantificável e graduável a partir da legislação e por juiz, de acordo com a gravidade – em abstrato e concreto – dos crimes a serem cas-tigados.

No entanto, o grau de civilização de um país, advertia Montesquieu, se mede de acordo com a forma como se aplicam as penas. É possível, hoje, darmos um novo salto de civilização: retirar a pena de reclusão do seu papel cen-tral e, se não a abolirmos, ao menos reduzir drasticamente sua duração e transformá-la em sanção excepcional, limitada a ofensas mais graves contra direitos fundamentais (como a vida, a integridade pessoal e similares), as únicas que justificariam a privação da liberdade pessoal, que também é um direito fundamental garantido.

É necessário reconhecer, por outro lado, que o cárcere tem sido sempre, em desacordo com seu modelo teórico e normativo, muito mais do que a privação de um tempo abstrato de liberdade. Inevitavelmente, este mode-lo conservou múltiplos elementos de sofrimento corporal, manifestada nas formas de vida e tratamento e diferenciadas das penas corporais antigas so-mente quando não se considera o tempo, mas que duram durante todo seu cumprimento.52

Como alternativa concreta, Ferrajoli defende a redução do limite má-ximo da pena privativa de liberdade, que deveria ser de 10 anos53. Malaguti defende as seguintes propostas:

– mudança radical na política criminal de drogas, produzindo po-líticas coletivas de controle pela legalidade;

– despenalização de crimes patrimoniais sem violência contra a pessoa, como furto;

52 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. 9. ed. Madrid: Trotta, 2009. p. 203-204.53 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2010.

p. 416-418.

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– abrir os muros das prisões para sua comunicação com o mundo, seus amores, suas famílias, seus amigos, seus cronistas;

– impedir que os familiares de presos sejam punidos além da estig-matização que já sofrem;

– transformar a ideologia do combate em grandes instaurações de mediações horizontais no sentido do desarmamento;

– diminuir em grande proporção o número de policiais, desarman-do-os e transformando-o em agentes coletivos de defesa civil, invertendo o sentido da segurança pública da guerra contra os pobres para o amparo aos efeitos das ruínas da natureza sob o jugo do capital;

– legalização do segundo emprego de policiais e bombeiros;

– ampliação e fortalecimento da Defensoria Pública;

– fim da exposição dos “suspeitos” para a mídia e restrições ao noticiário emocionalizado de casos criminais, que aniquila o di-reito a um julgamento por juízes isentos.54

São políticas concretas e que tem como fim último o cárcere. Talvez possamos transcender à Ferrajoli e pensarmos não apenas no “como?”, ou-trossim no “por quê?”. Esquecemos nosso número vergonhoso de presos, as cifras ocultas exorbitantes para crimes de homicídio, os estonteantes níveis de reincidência e o simbolismo (apenas para os clientes não habituais) do sistema penal.

É necessária atenção para algumas alterações legislativas. Muitas ve-zes reformar significa manter como está. Alterar a superfície, sem que o fundo seja tocado. Transcender à crise presente, já articulando a próxima. Sujeita ao controle. Preferencialmente penal.

Fazer o possível é tão sedutor quanto o populismo punitivo. É a saída. A via de mão única que justifica a ausência de liberdade do outro com a manutenção da própria liberdade. Paradoxo do próprio sistema penal: a dor sofrida, a dor imposta.

Necessário pensar sobre a possibilidade de alterações estruturais, ma-nifestadas em uma desejável política não criminal. Esta seria realizável a partir da leitura das categorias do sistema penal desde a redução de dor.

54 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 115.

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Como? Apenas através de um amplo debate, somente possível após a cons-cientização dos atores político-criminais dos efeitos da cultura punitiva em nosso meio.

Precisamos refletir sobre a real utopia: descriminalização de condutas ou o autofágico e suicida55 sistema penal (oni)presente?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que estejamos ainda sobre os efeitos de recessão econômica, globalmente falando, causados pela crise do mercado imobiliário, especial-mente desde 2007, a indústria do controle do crime segue em franca expan-são. Não só: apresenta-se como lucrativíssimo negócio.

A segurança é a mercadoria da vez. Impulsionada por nossos me-dos e nossa falta de criatividade em respondermos ao desafio de Gustav Radbruch. Esperamos tempo demais. Vidas foram ceifadas, famílias (de víti-mas e ofensores) aniquiladas e o sistema penal segue sua marcha de expan-são em ritmo vertiginosamente acelerado.

Apesar das fraturas do sistema penal, entre elas a fragilidade dos tes-temunhos em função das sugestionabilidades nas entrevistas policiais e fo-renses, permanece em pé. Seus joelhos não possuem condições de sustentar o resto do corpo, no entanto a metafísica (na qual se encontra ancorada grande parte das justificações da pena) faz com que siga espalhando dor e sofrimento. Até quando?

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55 No sentido de Zaffaroni: “Se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que, perigosamente, já produz o injusto jushumanista a que continuamente somos submetidos. Por conseguinte, o sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jushumanista, o que resulta num suicídio” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2011. p. 78).

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Assunto Especial – Doutrina

O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário

A Criminologia Atual em Comparação com a Anterior

hUMBERTO SANT’ANAAdvogado Criminal.

Cresce assustadoramente a função do usuário por culpa da sociedade que vivemos, sendo coniventes com esses jovens entregues ao vício. Estra-nha-se diante de tanta negligência é que, tanto nas prisões como fora, o uso e o tráfico de drogas são existentes, pois não há por parte das autoridades públicas consciência lógica que não seja a busca do material.

Ora, analisando friamente a situação ocorrida no Estado do Mara-nhão, lamentavelmente temos que informar que nós, seres humanos, exer-citamos a nossa educação a pessoas impróprias para tal, motivo pelo qual esses elementos necessitam de tratamento proporcional à sua extravagância à sociedade.

Como inserem grandes veículos de comunicação, e baseados em da-dos da ONU, mostram que, dos 550 mil presos do país, 217 mil estão presos em caráter provisório. Soma-se a isso o fato de que boa parte dos detentos condenados ao regime aberto ou semiaberto cumpre a pena em regime fe-chado, o que contribui para o quadro de superlotação dos presídios.

Porém, o governo, na sua ânsia política, se preocupa em abrir pre-sídios para angariar faturamentos. Não bate de frente com o problema de sua competência, e, ao apostar na ostensiva contenção de setores margina-lizados, o Estado é responsável pela produção de uma crescente população carcerária, o que, inevitavelmente, leva a uma também crescente demanda de criação de novos presídios. E não por mera conveniência, a privatização do cárcere surge como solução atrativa para a construção e prestação dos serviços nas unidades.

As mortes ocorridas no presídio maranhense de Pedrinhas desde o ano passado abalou a opinião pública e foi pauta de inúmeras chamadas midiáticas nas últimas semanas. Embora foca-se na crueldade dos presidiá-

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rios que se pretendeu privilegiar em diversos veículos de comunicação, vale a reflexão mais ampla sobre o sistema penitenciário brasileiro.

Não é de se espantar que se repitam periodicamente massacres e tra-gédias dentro de tais unidades. Passados vinte e um anos do evento conhe-cido por “Massacre do Carandiru”, ocorrido no Estado de São Paulo, onde contabilizou-se a morte de 111 detentos, não resultou melhoria no sistema penitenciário, pelo contrário, agravaram-se. E piorou, pois, na atualida-de, contamos com uma população carcerária de mais de meio milhão de pessoas.

Paradoxalmente ao objetivo da prisão, que é a educação do detento, não temos isso em resultado, pois estima-se que, em média, 60% dos presos primários retornam à prisão, ou seja, a reabilitação proposta não surte o efeito desejado. Leva-se a crer que o Estado não atua de forma eficiente na e que a estrutura de um sistema criminal calcado no encarceramento das massas vem ruindo.

Independentemente da lógica do encarceramento ou suas prováveis consequências: ao contrário, quando estas são escancaradas em episódios como o de Pedrinhas, ecoa o silêncio das autoridades, que se posicionam de maneira superficial em um assunto tão seríssimo. Justificar que o motivo da violência advém da riqueza de seus habitantes culmina em um estorvo de falsidade.

Não sou defensor da pena de morte, porém, desconsiderando os prin-cípios dos recursos humanos, que, em seus gabinetes, apenas criticam e te-cem comentários nocivos às instituições, deveriam eles cuidar e solucionar esse problema nocivo e monstro, pois, por experiência na área, não acredito na recuperação de cidadãos tão maldosos.

Ora, não aceitasse a ideia na prática de males tão ignóbeis, como a pedofilia, estupro ou ato similar, tampouco um assassinato a sangue frio

Faço-me sempre esse questionamento, quando um elemento tão peri-goso que pratica um delito dessa gravidade, ao chegar ao sistema prisional, detém garantias de segurança que, em tese, a sua vítima não teve, pois, no sistema carcerário, corre risco de vida. Pois o sistema prisional implanta uma “justiça” do olho por olho, dente por dente.

Assim, as atrocidades ocorridas no Sistema Penitenciário Maranhense não deveriam causar tanta perplexidade, já era tragédia anunciada. Há evi-dências da falha governamental no trato e controle da situação, sem esque-cer que estamos em ano de Copa do Mundo e eleições políticas.

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Estamos falando do Estado mais pobre da nossa Federação, no qual faltam recursos para investimentos básicos, como educação, saúde e trans-porte. Não demorou tanto, e a falta de investimentos atingiu também o sis-tema penitenciário.

Os presídios maranhenses sofrem com a falta de comando do Estado, assim, o domínio dos presídios recai para duas facções criminais que domi-nam o Estado. Conflito entre elas tem gerado esses atos violentos, virulentos e sanguinários.

O poder das drogas é disputado usuário a usuário, no qual quem ti-ver mais, terá maiores lucros, terá domínio territorial. O traficante que, em alguns casos, se intitula “comerciante da ilicitude”, quer ganhar mercado, assim, tende a eliminar a concorrência com mortes violentas, implantando a filosofia do medo tangenciado. O temor domina a sociedade.

A violência sexual, os assassinatos e as decaptações vislumbram o po-der que um grupo pode exercer sobre o outro por meio da violência. Assim, questiono-me, pois, profissional de longa data na área criminal e frequen-tador do sistema prisional paulista, nunca consegui passar pelo detector de metal com uma moeda. Como será que esses detentos conseguem tantos artefatos para esses atos? E as drogas? E os telefones?

A vida mostrou-me caminho árduo, pois desde os 12 anos de idade trabalho para ajudar no sustento da minha família, não tive oportunidade de estudar na cidade do interior do Estado da Bahia, vim ganhar a vida no Esta-do de São Paulo. Me objetivei, estudei, constitui família, sempre consciente de minha obrigação com a sociedade.

O homem que só dá valor aos bens materiais, perde seu senso social. Jamais fui desonesto, corrupto e não aceito a estupidez mental dos nossos governantes, que só pensam no próximo mandado, esquecendo as princi-pais obrigações do Estado de Direito com seu povo.

Assim, pela omissão dos nossos governantes, a liberdade impera nas manifestações, invasões ou rebeliões, na intersecção e aplicação dos seus direitos garantidos pela Constituição.

Nós não podemos estranhar o conchavo político que acontece por trás de todos esses atos de rebeldia. Assim, nossa atual presidente enca-minhou para o Estado do Maranhão o digníssimo Ministro da Justiça para ajudar na tratativa em coibir a falha da governadora, pois, fosse esta deter-minada, tomaria as providências cabíveis e arcaria com as suas responsabi-lidades como mandatária política.

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Temos que procurar com urgência despertar em nossos governantes, modificar a lei das execuções criminais que tantos benefícios oferecem a mar-ginais indignos de quaisquer benefícios. Vamos extrair sistema prisional, o povo ainda não está preparado, razão pela qual tem que ser modificado, pois o elemento cumpre a pena, e, sendo, posteriormente, beneficiado com regi-me menor, não tendo emprego ou trabalho, imediatamente, volta a delinquir.

A corrida em busca da delinquência é imediata, e isto porque esse elemento sabe que a pena posteriormente obtida não irá trazer consequên-cias futuras, pois, na somatória aplicada, não irá sofrer acréscimo.

Os nossos governantes, na ambição eleitoral, distribuem secretarias para partidos políticos aliados, visando unicamente à manutenção no cargo, angariando votos, porém colocando nesses cargos pessoas sem conheci-mento técnico que consigam dirigir essas administrações, simplesmente por ser um detentor de um curral de votos.

Não entra-se no mérito da governança maranhense, porém, como brasileiro e com setenta anos vivendo nesse País, jamais esqueceria as desa-venças causadas por nossos governantes.

Como prova dessas minhas críticas, ressalvo, sem pedir autorização ao senhor Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, que subme-tendo políticos corruptos, em processo criminal que, após uma condena-ção cujos recursos cessaram em todos os tribunais, sente-se forçadamente a cumprir o que lei manda: prendê-los.

Porém, sua decisão está sendo avacalhada com a falta de respeito ao titular Magistrado máximo do nosso País.

Há muito me envergonha a situação do meu País, que, em momento como este, está sofrendo um desrespeito total de uma luta da qual participei para modificação desse País, pelo movimento das “Diretas Já”, no qual bra-dávamos a plenos pulmões “o povo unido jamais será vencido” em passeata pelas ruas da Cidade de São Paulo.

Parece que, para nós, tudo que existia naquele momento era fantasia do diabo. Queríamos mudanças, mudança tivemos. E daí? Fora corrupções, o que mais alcançamos aqui? O povo continua sem moradia, sem saúde e sem dinheiro, e parte deste está na mão de canalhas.

Orgulho-me de não pertencer a nenhuma classe política, para que eu não carregue para meu túmulo essa nódoa, em detrimento ao desgaste do povo desta Nação.

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Hoje, temos um INSS falido, cogitando-se aumento da idade do tra-balhador para utilização do seu direito. Temos uma Caixa Econômica que angaria do trabalhador fundos para uso na construção de moradias, porém o que vemos são invasões da população em prédios abandonados, buscado também pelo seu direito.

Será esse o nosso cotidiano? Viveremos essa constante das situações de barbárie presenciadas no cotidiano das cadeias? Os setores marginaliza-dos seguem sendo o alvo preferencial de nossa política de segurança pú-blica, têm como pano de fundo a demonização de um perfil idealizado do agente criminoso. Quem encarna a figura do “bandido” pertence à parcela da sociedade que só entra no sistema jurídico enquanto réu, reincidente, criminoso, e não como sujeito de direitos, ou seja, o pobre e favelado.

O nosso sistema penitenciário é falido, incapaz de suportar a grande demanda e de realizar os seus propósitos de ressocialização. São ambientes hostis, selvagens e antros de oportunidades de aperfeiçoamento da estrutu-ra de um criminoso. Muito embora o cenário seja de esgotamento, o que se observa é uma cruzada cada vez maior por mais encarceramento e um injustificável escopo da máxima segundo a qual “bandido bom é bandido morto”.

Parte Geral – Doutrina

Apropriação Indébita Previdenciária: Crime Omissivo Formal de Perigo Concreto

SAULO SARTI Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUC/RS), Faculdade de Direito, Especialista com Pós-Graduação em Direito Processual Civil pela PUC/RS e Academia Brasileira de Processo Civil, Especialista com Pós-Graduação em Direito Penal Empresarial pela PUC/RS, Advogado em Porto Alegre/RS, Brasil.

AMIR JOSÉ FINOCChIARO SARTIPontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUC/RS), Ex-Professor da PUC/RS, Ajuris, ESMP e Esmafe, Ex-Desembargador Federal (TRF4), Ex-Subprocurador-Geral da República, Ex-Procu-rador Regional Eleitoral (TRE/RS), Advogado em Porto Alegre/RS, Brasil.

LUCCA SILVEIRA FINOCChIARO Fundação Escola Superior do Ministério Público, Advogado em Porto Alegre/RS, Brasil.

RESUMO: O presente artigo discute, em síntese, a natureza do crime de apropriação indébita previ-denciária, pois, como se sabe, muitas são as questões tormentosas relacionadas a este tipo penal: (a) crime omissivo ou comissivo? (b) crime material, formal ou de mera conduta? (c) crime de dano ou de perigo? (d) exige dolo especial e, em consequência, é necessário o afamado animmus rem sibi habendi? As considerações doutrinárias e jurisprudenciais do primeiro capítulo estabelecem parâ-metros para a compreensão de cada uma destas indagações, facilitando a solução dos problemas práticos inerentes à temática. Nesse contexto, no segundo capítulo, foi realizado um breve estudo de caso. Ao fim, conclui-se que o crime de apropriação indébita previdenciária constitui – em verdade – crime omissivo formal, exigindo o dolo meramente genérico, sem a necessidade do animmus rem sibi habendi, nem de condição objetiva de punibilidade, mas também se trata de crime de perigo concreto, sendo, pois, viável a demonstração – no caso – da ausência de perigo ao bem tutelado.

PALAVRAS-CHAVE: Apropriação indébito previdenciária; crime omissivo formal; dolo genérico; perigo concreto.

ABSTRACT: This article discusses, in brief, the nature of the crime of misappropriation of pension funds, because, as we know, there are many stormy issues related to this crime: (a) is the criminal act of omission or commission? (b) is it material crime, formal crime or a crime of mere conduit? (c) crime of damage or danger? (d) does it require special intent, been needed, therefore, the famous animmus rem sibi habendi? The doctrinal and jurisprudential considerations of the first chapter have established parameters for understanding each of these questions, turning easier the solution of practical problems of this theme. In this context, in the second chapter, it was realized a short case study. At the end, it was concluded that the crime of misappropriation of pension funds is – in fact – an act of omission and a formal crime, requiring only generic intent, without the need of animmus rem

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sibi habendi, nor objective condition for punishment, but it is also a crime of concrete danger – being possible, then, to demonstrate, in this case, of the absence of danger to the well protected.

KEYWORDS: Misappropriation of pension funds; criminal act of omission; formal crime; generic in-tent; concrete danger.

SUMÁRIO: 1 O artigo 168-A: história, entendimentos e posição predominante; 2 A situação concre-ta; 3 Considerações finais; Referências.

1. O ARTIGO 168-A: HISTÓRIA, ENTENDIMENTOS E POSIÇÃO PREDOMINANTE

O art. 168-A do Código Penal (CP) estabelece que é aplicável a pena de “reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa” para aquele que “deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuin-tes, no prazo e forma legal ou convencional”.

Determina, ainda, que,

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a se-gurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integra-do despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos e à prestação de serviços;

III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valo-res já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.

Segundo a melhor doutrina,

o objeto jurídico protegido é a seguridade social, ou seja, “o conjunto inte-grado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Secundariamente, tutela-se, também, a ordem tributária, pois às contribui-ções sociais – que têm sua natureza tributária discutida – aplicam-se as nor-mas gerais da legislação tributária. (Baltazar Júnior, 2010, p. 23)

De acordo com a jurisprudência dominante, cuida-se de crime omis-sivo próprio e formal1: é omissivo, pois descreve a conduta devida, precedi-

1 Nesse sentido, os seguintes precedentes, entre outros: TRF4, ACr 5000058-15.2010.404.7211, 7ª T., Rel. p/o Ac. Artur César de Souza, DE 08.05.2013; TRF4, ACr 0001052-27.2007.404.7214, 7ª T., Rel. Artur César de Souza, DE 13.05.2013; TRF4, ACr 0017932-91.2006.404.7000, 8ª T., Rel. Luiz Fernando Wowk Penteado, DE 21.03.2013.

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da pelo verbo “deixar de”, e também é formal, já que o “não agir” criminoso independe de um resultado naturalístico para a sua consumação2.

Entretanto, há quem entenda se tratar de crime misto3, uma vez que a configuração do tipo penal pressupõe – primeiramente – uma conduta comissiva, consistente em descontar do pagamento efetuado a segurados no recolhimento das contribuições dos contribuintes ou o desconto e a poste-rior omissão em deixar de repassar os valores à Previdência Social.

O grande debate, porém, centra-se mesmo em saber se estamos dian-te de um crime em que o resultado é necessário para a consumação. A in-quietação é plenamente justificada, pois existem decisões sustentando que, se “um dos dirigentes da empresa se omite em efetuar o recolhimento, mas outro o faz com recursos próprios, não haverá crime”, conforme “corrente doutrinária que entende ser de resultado o delito” (STF, Inq 2537-AgRg, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 10.03.2008)

Com efeito, é de se notar que, no precedente anteriormente citado, não houve a incidência do tipo penal apenas por ter-se evitado o resultado, mesmo que a atitude determinante para tanto (de efetuar o recolhimento) tenha partido de pessoa diversa (outro dirigente) daquela que talvez tivesse até mesmo o dolo direto de não efetuar o recolhimento.

Seja como for, um ponto parece não deixar margem a dúvidas: não se trata de delito mera conduta. Isso porque os crimes qualificados como de mera conduta sequer preveem qualquer resultado para consumação, e, no delito aqui tratado, “sempre que omitido o recolhimento no prazo da lei, haverá um dano efetivo à Seguridade Social pela falta de ingresso daqueles valores. Quer dizer, há um resultado naturalístico, embora não seja este exigido para a configuração do tipo” (STF, Inq 2537-AgRg, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 10.03.2008). Portanto, a discussão principal gira em torno de ser o crime material ou formal.

Aqueles que enxergam crime formal4 pregam igualmente que o dolo exigido no delito de apropriação indébita previdenciária seria meramente genérico – sendo prescindível a existência do animus rem sibi habendi5.

2 Destaca Baltazar Júnior (2010, p. 29) que, “nos crimes omissivos puros, pune-se o simples descumprimento do dever imposto pela norma, independentemente da ocorrência de resultado. Daí qualificarem-se os delitos omissivos puros, em regra, como delitos formais”.

3 Nesse sentido: RHC 24202/RS, 5ª T., Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 17.03.2009, DJe 06.04.2009; HC 121603/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., julgado em 29.04.2009, DJe 25.05.2009.

4 Conforme destaca Baltazar Júnior (2010, p. 29), grande parte da doutrina.5 “É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que, para a configuração do delito

de apropriação indébita previdenciária, não é necessário um fim específico, ou seja, o animus rem sibi

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Há – contudo – forte posicionamento doutrinário no sentido de ser necessária à aferição do animus remsibihabendi. Luiz Flávio Gomes, nessa linha, aponta para a diferença existente entre a mera apropriação em rela-ção ao crime de apropriação indébita previdenciária:

Recorde-se que a simples omissão do emprego da coisa ao fim determina-do não significa automaticamente o delito desapropriação indébita. Isso sig-nifica uma apropriação, sim, mas pode ser ou não ser indébita. Para que se configure a apropriação indébita urge que a omissão seja precedida ou acompanhada (leia-se: iluminada) de circunstâncias que revelem um espe-cial animus remsibihabendi (ânimo de ter a coisa para si embora podendo repassá-la à previdência). (Gomes, 2001, p. 48)

Segue – ainda – afirmando que:

O que justifica a intervenção penal, portanto, não é a simples apropriação daquilo que se devia repassar e não se repassou ao INSS. Até aqui temos apenas um ilícito administrativo. O castigo penal cobra relevância somente quando a apropriação se torna indevida (indébita), isto é, quando é acompa-nhada de alguma fraude ou engano ou má-fé. Quando se trata, enfim, de um não pagamento atribuível a um devedor fraudulento, contumaz, relapso. São todas essas circunstâncias que iluminam a apropriação indébita previdenci-ária, para transformá-la numa apropriação criminosa. Ao juiz, em cada caso concreto, cabe discernir (e bem) o inadimplente do delinqüente! (Gomes, 2001, p. 48)

O mesmo entendimento é compartilhado por Cezar Roberto Bitencourt (2001), segundo o qual, em “tratando-se de apropriação indébi-ta, é indispensável o elemento subjetivo especial do injusto, representado pelo especial fim de apropriar-se dos valores pertencentes à previdência social, isto é, o agente apossa-se com a intenção de não restituí-los”.

Ao que tudo indica, foi esse sentido da já referida – e nem tão recente – decisão do STF, segundo a qual

a apropriação indébita previdenciária não consubstancia crime formal, mas omissivo material – no que indispensável a ocorrência de apropriação de

habendi (cf., por exemplo, HC 84.589, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 10.12.2004), ‘bastando para nesta incidir a vontade livre e consciente de não recolher as importâncias descontadas dos salários dos empregados da empresa pela qual responde o agente’ (HC 78.234, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 21.05.1999). No mesmo sentido: HC 86.478, de minha relatoria, DJ 07.12.2006; RHC 86.072, Rel. Min. Eros Grau, DJ 28.10.2005; HC 84.021, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 14.05.2004; entre outros)” (HC 96092, 1ª T., Relª Min. Cármen Lúcia, julgado em 02.06.2009). Ademais, “a discussão sobre o dolo, questão que envolve reexame de matéria fática controvertida, não pode ser revista na via acanhada do habeas corpus” (STF, HC 86478/AC, Relª Min. Carmen Lúcia, DJ de 07.12.2006).

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valores, com inversão da posse respectiva. (STF, Inq 2537-AgRg, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 10.03.2008, grifo nosso)

Aliás, segundo o Relator, Ministro Marco Aurélio de Mello,

a leitura do art. 168-A do Código Penal revela que se tem como elemento da prática delituosa deixar de repassar contribuições previdenciárias, indis-pensável, portanto, a ocorrência de apropriação dos valores, com inversão da posse respectiva. (STF, Inq 2537-AgRg, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 10.03.2008)

O STJ também passou a trilhar o mesmo caminho, como se vê em acórdão relatado pela eminente Ministra Laurita Vaz, in verbis:

Nos termos do entendimento recente da Suprema Corte, os crimes de so-negação e apropriação indébita previdenciária também são crimes mate-riais, exigindo para sua consumação a ocorrência de resultado naturalístico, consistente em dano para a Previdência. 2. O prévio esgotamento da via administrativa constitui, desse modo, condição de procedibilidade para a ação penal, sem o que não se vislumbra justa causa para a instauração de inquérito policial, já que o suposto crédito fiscal ainda pende de lançamento definitivo, impedindo a configuração do delito e, por conseguinte, o início da contagem do prazo prescricional. [...] (STJ, HC 96348/BA, 5ª T., Relª Min. Laurita Vaz, Data Publ.: 04.08.2008)

Este posicionamento, na verdade, não era inédito, sendo dominante na vigência do art. 95, d, da Lei nº 8.212/1991. Aliás, ao proferir o voto condutor do acórdão que decidiu o Recurso Especial nº 409.457/AL, o emi-nente Ministro Fernando Gonçalves teve oportunidade de advertir expres-samente que

esta Corte tem entendimento no mesmo sentido preconizado pelo julgado impugnado, vale dizer, para a caracterização do crime previsto no art. 95, d, da Lei nº 8.212/1991, é indispensável a verificação do dolo, elemento sub-jetivo consistente na vontade de fraudar a Previdência, apropriando-se dos valores recolhidos. (REsp 409457/AL, 6ª T., Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 05.12.2002, grifo nosso)

Ademais, naquela decisão, trouxe à colação outro precedente no mesmo sentido, relatado pelo eminente Ministro Vicente Leal, in verbis:

Para a caracterização do crime previsto no art. 95, d, da Lei nº 8.212/1991, é indispensável a verificação do dolo, elemento subjetivo consistente na vontade de fraudar a Previdência, apropriando-se dos valores recolhidos. (RHC 11170/SP, 6ª T., Rel. Min. Vicente Leal, julgado em 11.12.2001, grifo nosso)

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Na mesma linha, o col. Tribunal Regional Federal da 5ª Região já decidiu que:

1. A simples omissão em recolher as contribuições previdenciárias deduzidas dos salários dos empregados não caracteriza, por si só, o delito tipificado no art. 95, alínea d, da Lei nº 8.212/1991, combinado com o art. 5º da Lei nº 7.492/1986. 2. Para se considerar típica a ação perpetrada pelos acusados, faz-se mister a demonstração efetiva da manifesta intenção em não efetuar o dito repasse, desviando os recursos de sua destinação legal. 3. No caso em exame, a situação financeira por que passava a empresa deixa evidencia-do que os descontos em tela apenas eram identificados, na realidade fática, como elemento contábil, inexistindo os valores respectivos, já que a dita empresa mal dispunha de recursos para o pagamento da folha de pessoal. 4. Revela-se impertinente pretender adotar, no âmbito penal, a responsabili-dade objetiva, bem como a prisão por dívida, em vilipêndio à própria Cons-tituição Federal, que a admite somente em situações excepcionais explicita-mente consignadas no seu art. 5º, LXVIII. 5. Ausente o elemento subjetivo, qual seja, o dolo, há que se afastar a tipicidade da conduta, impondo-se a ab-solvição dos denunciados. 6. Apelação improvida. (TRF 5ª R., ACr 1606/AL, 2ª T., Rel. Des. Fed. Élio Wanderley de Siqueira Filho (Convocado), Julga-mento: 19.08.1997)

Vale destacar o voto do Relator nesse precedente, in verbis:

Ao contrário do que tem parecido aos leigos, não é o simples fato, objeti-vamente considerado, de não serem recolhidas as contribuições previden-ciárias pertinentes que enseja a responsabilização penal dos dirigentes das empresas. É necessária a consciente conduta de reter da massa salarial o percentual imposto pela lei e, deliberadamente, com a finalidade específi-ca de lesionar a Previdência Social, não efetuar o correspondente repasse à instituição gestora do Sistema Previdenciário. (TRF 5ª R., ACr 1606/AL, 2ª T., Rel. Des. Fed. Élio Wanderley de Siqueira Filho (Convocado), Julgamento: 19.08.1997)

Mesmo assim, a jurisprudência parecia caminhar tranquilamente no entendimento de se tratar de crime omissivo formal até o advento da já ci-tada decisão do Plenário do STF (Inq 2537-AgRg, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 10.03.2008), que expressamente tornou diverso:

[A] apropriação indébita previdenciária consubstancia-se em crime omissivo material e não simplesmente formal [...] [e] estando em curso processo admi-nistrativo mediante o qual questionada a exigibilidade do tributo, afasta-se a persecução criminal e – ante o princípio da não contradição, o princípio da razão-suficiente – a manutenção do inquérito, ainda que sobrestado.

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O debate voltou a ganhar espaço na doutrina, mas não foi suficiente para alterar a jurisprudência já consagrada no sentido de que

o elemento volitivo do delito de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP), classificado como crime omissivo puro, prescinde de resultado material para sua consumação, bastando a simples vontade livre e consciente do réu de deixar de recolher os valores descontados dos empre-gados a título de contribuições previdenciárias e repassar à autarquia pre-videnciária. A sanção é imposta àquele que, após descontar os valores dos empregados, deixa de repassá-los à autarquia previdenciária no prazo legal. (TRF 4ª R., ACr 5000058-15.2010.404.7211, 7ª T., Rel. p/o Ac. Artur César de Souza, DE 08.05.2013, grifo nosso)

O crime de apropriação indébita previdenciária é classificado como crime formal, pois se consuma com o vencimento do prazo para o recolhimen-to das contribuições previdenciárias, independente de resultado naturalís-tico, de forma que não se aplica ao caso concreto a Súmula nº 24 do STF, que prevê que a consumação dos crimes materiais contra a ordem tributá-ria se dá apenas por ocasião do lançamento definitivo do crédito tributário. (TRF 4ª R., ACr 0001052-27.2007.404.7214, 7ª T., Rel. Artur César de Souza, DE 13.05.2013)

O entendimento desta Corte é no sentido de que a apropriação indébita pre-videnciária se perfectibiliza com o simples não recolhimento, sendo crime formal, não necessitando de exaurimento da esfera administrativa para a sua consumação. Configuradas a materialidade e a autoria do crime previsto no art. 168-A do Estatuto Repressivo mediante a demonstração de que o agen-te, à frente do seu empreendimento, deixou de repassar ao INSS os valores relativos à retenção da contribuição previdenciária de seus empregados e contribuintes individuais. (TRF 4ª R., ACr 0003552-62.2008.404.7107, 8ª T., Rel. Luiz Fernando Wowk Penteado, DE 23.04.2013, grifo nosso)

Em se tratando de delitos praticados em âmbito societário, é admissível que a denúncia comporte certo grau de generalidade, sem com isso comprome-ter a sua aptidão e sequer tornar a imputação objetiva. Constituem prova suficiente da materialidade do crime de apropriação indébita previdenciária a Notificação Fiscal de Lançamento de Débito, o discriminativo analítico e sintético de débito e os recibos de pagamento de salários dos empregados, corroborados, ainda, pela confissão do réu em juízo. O dolo para o crime de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias é genérico, exigindo-se apenas a vontade livre e consciente de não recolher à Previdên-cia Social os valores descontados a título de contribuições previdenciárias dos empregados, sendo irrelevante se o agente pretendia deles apropriar-se ou dar-lhes outro destino. (TRF 4ª R., ACr 0001279-34.2008.404.7003, 7ª T., Rel. Márcio Antônio Rocha, DE 15.04.2013, grifo nosso)

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A distinção é relevantíssima, pois, sendo crime formal, o réu será con-denado tão somente por não ter recolhido as contribuições previdenciá-rias, vez que o mero desconto contábil já torna o empregador responsável pelo repasse dos valores à instituição previdenciária, independentemente de qualquer consideração sobre a intenção do agente, dispensando-se maior análise de provas. Nessa senda, não haverá falar de condição objetiva de punibilidade (como ocorre nos delitos materiais tributários).

Adotada a concepção formal do delito, o dolo do agente será mera-mente genérico, bastando a simples omissão em face da obrigação de agir para configurar o tipo. Isto é, a vontade do agente de se apropriar do valor descontado (animus rem sibi habendi) não tem a menor importância.

A consequência será diametralmente oposta se for avaliado que seria “imprescindível a existência do elemento subjetivo do tipo, qual seja, a von-tade de fraudar a previdência, apropriando-se dos valores recolhidos” (REsp 165908/PB, 6ª T., Rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 19.10.2000).

Nessa situação, o dolo exigido deixa de ser genérico, passa a ser es-pecífico e, como decorrência imediatamente reflexa, aumenta a relevância da prova, pois é a partir dela que se constatará se houve a inversão da posse dos valores e se tal inversão é ou não decorrente da vontade peculiar do agente6.

Em síntese, tratando-se de crime formal, o dolo é genérico. De outro lado, sendo crime de resultado, necessariamente o dolo deverá ser específi-co: não basta, nesse caso, descontar a contribuição dos salários dos empre-gados, deixando de recolhê-las ao INSS; é preciso a vontade de fraudar a Previdência Social, apropriando-se o agente dos valores recolhidos7.

6 Caracterizando-se o delito em questão como crime não meramente formal (na linha do precedente citado do eg. STF, Inq 2537-AgRg, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 10.03.2008), imprescindível o especial dolo de agir; é necessário que o agente tenha se apropriado das contribuições indevidamente para utilizar o valor respectivo em benefício próprio ou de sua empresa, deixando de repassá-lo aos cofres previdenciários, o que – indiscutivelmente – causa dano o bem jurídico tutelado.

7 Nesse sentido, já sustentava o saudoso Tribunal Federal de Recursos, em expressivo precedente, declarando que o dolo, no crime de omissão de recolhimento das contribuições previdenciárias, equiparado ao crime de apropriação indébita, caracteriza-se “pela vontade de o agente tornar-se dono de uma coisa, em proveito pessoal ou de terceiro, da qual era possuidor. Se o não recolhimento de contribuições previdenciárias se dera ante dificuldades financeiras dos sócios da empresa, que veio a falir, descaracterizado está o crime de apropriação indébita” (TFR, AC 5578/SP, 3ª T., Rel. Min. Adhemar Raymundo). Nesse paradigma, o Relator afirmava textualmente que o crime em questão “pressupõe dolo específico. Ora, não podiam os apelantes ser responsabilizados por um delito, quando provado que a empresa, da qual eram sócios, por dificuldades financeiras, deixou de recolher contribuições previdenciárias. Registre-se que a falência decretada comprova esse estado de insolvência, diante do qual não puderam os apelantes cumprir a exigência legal. Dou provimento à apelação para absolver os acusados por falta de dolo, ou seja, a vontade de eles se tornarem donos da coisa, da qual tinham a posse” (TFR, AC 5578/SP, 3ª T., Rel. Min. Adhemar Raymundo).

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2 A SITUAÇÃO CONCRETA

Diante do posicionamento do eg. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que considera o crime em tela como omissivo-formal, o caso que passaremos a analisar apresentava desfecho expressivamente prejudicial à defesa.

Os acusados fizeram a opção pelo “novo Refis”8 e incluíram todos os débitos da sua empresa, recebendo, em contrapartida, o “Recibo da De-claração de Inclusão da Totalidade dos Débitos no Parcelamento da Lei nº 11.941/2009”.

Entretanto, como informado pela própria Procuradoria da Fazenda Nacional, o débito referente a uma NFLD – especificamente aquela que deu causa à ação penal – não constava na referida Declaração de Inclusão, pura e simplesmente porque a mesma Procuradoria da Fazenda Nacional já tinha promovido o seu cancelamento, requerendo a extinção da “execução fiscal a ela relativa, processada sob o nº [...]”.

É dizer, a empresa incluiu a totalidade dos seus débitos no programa de parcelamento instituído pela Lei nº 11.941/2009, que estabelece a sus-pensão da pretensão punitiva do Estado “referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Pe-nal” (art. 68), mas não pode inserir a NFLD que deu origem à denúncia na relação das dívidas beneficiadas precisamente porque a questionada NFLD já tinha sido cancelada – por ato da própria exequente.

Nesse contexto, os acusados encontravam-se aprisionados em uma situação extremamente curiosa – para dizer o mínimo. De um lado, não subsistia contra a sua empresa nenhuma dívida ativa, tanto que foi declara-da extinta a “execução fiscal processada sob o nº 079/1.06.0001109-0”. De outra banda – exatamente porque a NFLD já fora cancelada –, não puderam incluí-la no programa de recuperação fiscal, juntamente com todas as de-mais dívidas da empresa, ficando privados, em consequência, dos favores da Lei nº 11.941/2009 em relação ao crime tipificado no art. 168-A do CP.

Ora, se a razão de existir desse tipo penal (CP, art. 168-A) é justamen-te reprimir – pela via da censura criminal – o descumprimento das obriga-ções previdenciárias, no caso em tela, essa finalidade restava totalmente

8 A partir deste ponto, utilizar-se-á o itálico para indicar as expressões diretamente retiradas do caso estudado (AP 2006.71.07.003891-6).

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esvaziada, pois, se pudessem, os recorrentes teriam incluído, sem dúvida, a mencionada NFLD no programa de parcelamento. Mas, insista-se, não puderam – e não podem – fazê-lo porque a tal NFLD foi cancelada a pedido da Procuradoria da Fazenda Nacional.

Assim, se fosse friamente adotado o entendimento firmado no col. TRF 4ª R., os acusados estariam na iminência de serem condenados por um crime formal (que prescinde do resultado naturalístico) relativo a um débito que foi cancelado e que, por isso mesmo, não pode ser incluído no progra-ma de parcelamento.

O paradoxo era odioso: as NFLDs que não foram canceladas estavam com a exigibilidade suspensa e garantiriam uma situação muito mais favorá-vel – sob o aspecto criminal – do que a NFLD que foi cancelada, mas que – pasmem – continuava a produzir efeitos danosos no plano do direito penal.

Data vênia, um ordenamento jurídico razoável não pode conviver com tamanha contradição, muito menos criar esse tipo de armadilha contra o jurisdicionado, porquanto chega às raias do absurdo imaginar que dé-bitos inscritos em dívida ativa estejam imunes à persecução penal – por-que parcelados –, mas débitos já cancelados possam continuar causando consequên cias deletérias na área do direito penal.

Como parece natural, pois beira à lógica vulgar, uma dívida parce-lada não pode conduzir a resultado penal mais vantajoso do que dívida cancelada. Se isso fosse coerente e juridicamente possível, nessa hipótese melhor seria pedir à Fazenda Nacional que “cancelasse o cancelamento” da referida NFLD e até que ressuscitasse a respectiva execução fiscal, pois só assim os acusados poderiam incluir o débito correspondente no “novo Refis”, dessa forma alcançando a suspensão da pretensão punitiva e o tran-camento da ação penal.

De fato,

o sistema atual comporta paradoxos insuperáveis – tendo em vista que o raciocínio lógico leva à seguinte conclusão: um fato que a lei penal pune com sanções bastante severas pode, para a administração, ser mais do que indiferente, absolutamente regular. Estamos diante de uma completa inver-são de valores, já que a Lei Penal, considerada como ultima ratio, está sen-do aplicada para condutas toleradas em outras esferas do direito. (Tórtima, 2000, p. 38)

Nesse contexto, foi determinada a suspensão da “ação penal e [d]o prazo prescricional até o julgamento do procedimento administrati-

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vo, no limite máximo de 1 (um) ano, determinando a baixa na distribui-ção e a remessa dos autos à Vara de origem, com fulcro no art. 93 CPP” (TRF 4ª R., ACr 2006.71.07.003891-6, 7ª T., Rel. Élcio Pinheiro de Castro, DE 10.08.2011), a pretexto de que

mesmo o delito previsto no art. 168-A do Código Penal tendo nature-za omissiva formal, o resultado das diligências administrativas pode-rá afastar a justa causa para a imputação penal ou, minimamente, deter-minar sua suspensão, à vista da adesão ao programa de parcelamento. (TRF 4ª R., ACr 2006.71.07.003891-6, 7ª T., Rel. Élcio Pinheiro de Castro, DE 10.08.2011, grifo nosso)

A questão palpitante – e que motivou a elaboração deste breve artigo – é a seguinte: como é possível considerar ser o crime em debate omissivo formal e mesmo assim ter como relevante o processo administrativo, de modo a suspender o processo criminal até o seu desfecho?

Para chegar a tal conclusão, a decisão não deveria ter reconhecido o crime como sendo de natureza material? Haveria razão técnica que justifi-casse o posicionamento da decisão analisada, mesmo tratando o tipo como omissivo formal? Em síntese: pode o crime em tela ter natureza formal e mesmo assim depender de processo administrativo para a incidência do tipo?

Pensamos que o viés adequado para analisar a questão está relaciona-do com o estado do bem jurídico tutelado após a ação. Em outras palavras, independentemente de ser material ou formal, o crime aqui debatido é puni-do somente com a lesão ao bem jurídico tutelado, ou a sua mera colocação em perigo já seria suficiente para concretizar o tipo?

É conveniente destacar que nem sempre a separação singela entre crimes materiais e crimes formais, de um lado, e crimes de dano e crimes de perigo, de outro – sem o concurso de outras características –, será sufi-ciente para definir a natureza de qualquer crime. Nesta linha, com imensa propriedade, ensina o Mestre português Jorge de Figueiredo Dias (2007, p. 312) que,

estabelecidas nos termos que procuramos fazê-las, as distinções entre crimes de mera actividade e de resultado, de uma parte, e crimes de perigo e de dano, de outra parte, mantêm a sua autonomia conceitual-teleológica, má-xime, por a primeira se referir em princípio ao objecto da acção, a segunda se reportar ao estado do bem jurídico. O que de resto, de um ponto de vis-ta dogmático-prático, se revela por no tema se verificarem quatro possíveis combinações: existem crimes de mera actividade que são crimes de dano,

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p. ex., os crimes de violação sexual ou de violação de domicílio; crimes de resultado que são crimes de dano, p. ex., os crimes de homicídio ou ofensa a integridade física; crimes de mera actividade que são crimes de perigo, p. ex., o de condução em estado de embriagues ou de falsidade de depoi-mento ou de declaração; crimes de resultado, enfim, que são crimes de pe-rigo, p. ex., a generalidade dos crimes de perigo comum ou de exposição e abandono. (grifo nosso)

Analisando o delito em questão a partir de ótica relativa ao estado do bem jurídico, cabe indagar: a apropriação indébita previdenciária é crime de dano ou meramente de perigo9?

Entendemos – salvo melhor juízo – que a melhor explicação para admitir como tecnicamente correta a solução adotada no caso ora estudado seria não somente a de classificar o crime como omissivo formal, mas tam-bém – principalmente – como crime de perigo.

Mas este perigo seria abstrato ou concreto? Conforme Pierpaolo Cruz Bottini (2010, p. 112), “o tipo de perigo abstrato é a técnica utilizada pelo legislador para atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas, in-dependentemente da produção de um resultado externo”. Todavia, já se deve alertar que tanto a doutrina quanto a jurisprudência vêm considerando inconstitucional a tipificação dos crimes de perigo na modalidade abstrata. Como leciona Luiz Flávio Gomes (2007, p. 566),

enfocando-se a norma penal primordialmente como norma de valoração e a ofensividade como requisito imprescindível tanto para o conceito de delito quanto para a intervenção da natureza “penal”, o transcendental na hora de fundamentar o injusto penal consiste na constatação efetiva da lesão ou colocação em perigo concreto do interesse penalmente tutelado pela norma. Em outras palavras, não há crime sem resultado jurídico (lesão ou perigo concreto de lesão). Esse resultado jurídico, ademais, deve ser desaprovado ou desvalioso (ou seja: só há tipicidade penal quando presente o desvalor do resultado jurídico).

9 Conforme já ensinava o saudoso Nelson Hungria (1949, p. 190-192), “não existe crime sem resultado. A toda ação ou omissão penalmente relevante corresponde um eventusdamni ou um eventuspericuli, embora, às vezes, não seja perceptível pelos sentidos (como, por exemplo, a ‘ofensa à honra’, no crime de injúria). É de se enjeitar a distinção entre crimes de resultado (Erfolgsdelikte) e crimes de simples atividade (Reinetatigkeitsdelikte). Todo crime produz um dano (real, efetivo) ou um perigo de dano (relevante possibilidade de dano, dano potencial), isto é, cria uma alteração do mundo externo que afeta à existência ou à segurança do bem ou interesse que a lei protege com a ultima ratio da sanção penal. É inegável que o perigo de dano também representa um resultado, isto é, um evento no mundo objetivo [...] Exposto a perigo, o bem ou interesse jurídico não é substancialmente lesado, mas sofre uma turbação no seu estado de segurança: é colocado, embora transitoriamente, numa situação de precariedade, de incerteza, de instabilidade... o perigo é um trecho da realidade”.

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Os crimes de perigo abstrato apresentam – muitas vezes – tratamento equivalente para fatos efetivamente perigosos e fatos desprovidos de perigo, o que evidentemente acarreta injustiça10.

Ou seja, “enclausurar no texto legal a fixação de patamares de risco de maneira genérica e impedir uma discussão posterior, perante as circuns-tâncias fáticas, dos riscos efetivamente produzidos afasta a aplicação razoá-vel e justa da norma penal” (Bottini, 2010, p. 250).

De fato, deve ficar muito bem ressaltada a diferença entre o “desvalor da ação” e o “desvalor do resultado”, sendo

a primeira ordem de valoração, na doutrina de Welzel, ao considerar a re-levância do desvalor da ação, está que o direito penal serve para afirmar certos valores eleitos pela comunidade, e, valendo-se da repressão penal o legislador, assegura a esses valores uma validez real, revelando um caráter ético-social do direito penal. (Silva, 2003, p. 139).

De outra banda, o desvalor do resultado

significa a produção de um resultado jurídico desvalioso (ou seja: uma lesão desvaliosa ou perigo concreto de lesão desvalioso para o bem jurídico). O resultado jurídico é desvalioso quando: concreto, transcendental, grave ou significativo e intolerável. (Gomes, 2007, p. 566)

O direito penal deve equacionar estes dois vetores, de modo que, de um lado, não configure um mero exercício simbólico de poder e, de outro, também respeite os princípios da fragmentariedade e subsidiariedade.

Diante disso, consideramos perfeitamente adequado compreender o crime em pauta como um autêntico crime de perigo “concreto”, pelo que, “para o aperfeiçoamento do tipo, exige-se a verificação efetiva do perigo, devendo este ser constatado caso a caso”, haja vista que “o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetiva-mente sido posto em perigo” (Dias, 2007, p. 308).

Com a máxima vênia, não parece correto tratar o crime de apropria-ção indébita previdenciária como se fosse de perigo abstrato,

10 Cabe destacar as lições de Júlio Fabbrini Mirabete (2001, p. 147): “Para a realização do crime, há um caminho, um itinerário a percorrer entre a ideia de sua realização e a consumação. Esse caminho, a que se dá o nome de iter criminis, é composto de cogitação, atos preparatórios, atos de execução e consumação. A cogitação não é punida, nem mesmo externado a terceiro, salvo quando constitui ela, de per si, um fato típico. Os atos preparatórios são atos materiais, externos aos agente, que passa da cogitação à ação objetiva. Também não são puníveis, a não ser quando constituem fatos típicos. Dispõe a lei, aliás, que ‘o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado”.

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cujo perigo é ínsito na conduta e presumido, segundo a doutrina majoritária, juris et de jure. Como se viu, os crimes de perigo concreto pressupõem a afir-mação do perigo no caso concreto a posteriori, enquanto os delitos tratados neste capítulo já o têm definido a priori. Consoante leciona José Francisco de Faria Costa, nos crimes de perigo concreto, o perigo constitui elemento do tipo legal, ao passo que nos crimes de perigo abstrato o perigo não é ele-mento do tipo, mas tão só a sua motivação. [...] Deve-se entender, na técnica de tipificação dos crimes de perigo abstrato, a uma necessidade decorrente da natureza das coisas, ou seja, as figuras delituosas assim tipificadas devem atender ao reclamo de tutela baseada na lesividade que a ação encerra, em razão da inerência do perigo que guarda em si. (Silva, 2003, p. 73)

Este entendimento decorre, naturalmente, do fato de ser possível a demonstração de que – no caso concreto – não houve sequer exposição do bem tutelado ao mais remoto perigo, tal como ocorreu no caso trazido à análise (Silva, 2003, p. 73).

E isso parece importantíssimo, até porque concordamos com a afir-mação de que os crimes assim definidos, de perigo abstrato,

não seriam, em realidade, crimes de perigo, mas crimes de mera desobediên-cia. Crimes estes que, ao partir de uma presunção absoluta de perigo, admi-tem em seu amplo âmbito normativo, como não poderia deixar de ser, uma intolerável margem de injustiça: penalizam de forma equivalente tanto fatos efetivamente perigosos quanto fatos completamente desprovidos de perigo. (D’avilla, 2005, p. 103)

Por tais razões, o Supremo Tribunal Federal vem proclamando que a figura dos crimes de perigo abstrato agride tanto o princípio da ofensividade quanto o princípio da ampla defesa, visto que o acusado não teria como demonstrar que a sua conduta não foi, de fato, perigosa11.

Nessa esteira, a jurisprudência vem reiteradamente afirmando que

11 Cotejando essa espécie de crime com o princípio da ofensividade, o Professor Fábio Roberto D’avila esclarece com propriedade que, “a bem da verdade, sequer poderíamos concordar, eis que, como já referíamos, se afirmamos dignidade constitucional ao princípio da ofensividade, compreender o perigo abstrato como perigo presumido juris et de jure seria o mesmo que reconhecer erroneamente a inoperosidade de tal categoria delitiva como categoria de crime constitucionalmente legítima. [...] Acreditamos serem os crimes de perigo abstrato uma categoria delitiva não apenas de grande utilidade político-criminal, como dotada de potencialidade suficiente para preencher um relevante espaço na estrutura dogmática do ilícito-típico. Daí concordamos com Stratenwerth, quando este afirma ser inquestionável a necessidade de combater, ‘com os meios jurídico-penais de novos caracteres’, os perigos decorrentes da atual sociedade tecno-científica, que põe em questão a vida e a saúde humanas. Entretanto isto não pode ser feito sem um ilícito objetivo: ‘Pode-se renunciar ao ‘resultado’ na forma de uma lesão ao bem jurídico ou inclusive ao por-em-perigo concreto, mas não se pode elevar a tentativa inidônea em protótipo do fato punível”. (D’Avilla, 2005, p. 111)

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mesmo os crimes de perigo abstrato, em respeito ao princípio da ofensivida-de norteador do direito penal, não dispensam a existência de um mínimo de perigo concreto, de possível ocorrência, ao bem jurídico tutelado pela nor-ma. 3. Não oferecendo a conduta um risco ao menos possível de lesão a bem jurídico relevante, impositivo o reconhecimento da atipicidade (material) da conduta. (TJMT, AP 92544/09, 2ª C.Crim., Rel. Teomar de Oliveira Correia, DJ 17.03.2010)

O eg. TRF 4ª R. já teve oportunidade de assentar que

os crimes de perigo, quando não houver uma situação perigosa preexistente, como na hipótese do art. 257 do CP, p.e., necessitam que haja prova da sua efetiva ocorrência, não bastando, para tanto, a simples prática do ato previsto em lei. (TRF 4ª R., ACr 1999.04.01.086971-9, 2ª T., Rel. João Pedro Gebran Neto, DJ 17.01.2001)

No mesmo sentido, o col. STJ já definiu que,

apesar de os crimes de perigo abstrato serem punidos independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado, já existem posicio-namentos doutrinário e jurisprudencial de que não se pode criminalizar a conduta desprovida de ofensividade. Sob esse prisma, apesar de o tipo pre-visto no art. 297 do Código Penal ser de perigo abstrato, impõe-se verificar, no caso sub judice, não só o desvalor da ação, sendo imprescindível, tam-bém, que fique demonstrado que as condutas dos recorrentes eram, desde o primeiro momento, capazes de gerar perigo ao bem jurídico-penal tutelado. Dessa forma, ainda que se afirme ter havido a perfeita subsunção do fato ao tipo previsto abstratamente no art. 297 do Código Penal (tipicidade formal), não se vislumbra, no caso em comento, a tipicidade material (desvalor do resultado), mesmo que em potencial. (STJ, REsp 1177612/SP, 6ª T., Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 01.09.2011)

Aqui ganha relevância o art. 93 do CPP – que permite suspender o curso da ação penal até o desfecho de eventual questão prejudicial (proces-so administrativo ou mesmo ação judicial paralela) necessária para com-provação de que o fato supostamente típico sequer expôs o bem jurídico protegido a perigo12.

Isso tudo porque, de fato, há sim casos em que é aconselhável, por prudência e em respeito aos dogmas de direito criminal, suspender o proces-

12 As questões prejudiciais extrapenais devolutivas relativas – previstas no art. 93 do CPP – “são chamadas de devolutivas, pois há possibilidade de devolução ao Juízo Cível da matéria que as constitui para exame prévio. De outra sorte, são consideradas relativas porque, nesse caso, a suspensão do processo criminal não é obrigatória, podendo o juiz optar por suspendê-lo ou não” (Avena, 2009, p. 268).

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so até a resolução de questão prejudicial externa, como (a título de exem-plo) nos casos em que o processo administrativo venha a ser arquivado, restando, assim, obviamente demonstrada à ausência de qualquer perigo no caso concreto.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de profundamente estudado por grandes doutrinadores, nota--se ser quase inexistente a abordagem da questão relativa à natureza do crime de apropriação indébita previdenciária sob o viés do estado do bem jurídico após a ação delituosa.

Enfim, o caso aqui analisado traz uma questão fundamental: como é possível considerar relevante o processo administrativo – de modo a suspen-der o processo criminal – e mesmo assim considerar o crime como omisso formal?

Pode o crime ter natureza de omissivo formal e mesmo assim exigir o “desvalor do resultado” como condição para incidência do tipo no caso em concreto?

Chegou-se à conclusão de que o ângulo apropriado para analisar a questão está intrinsecamente relacionado com o estado do bem jurídico tutelado após a ação. Independentemente de ser material ou formal, a con-sumação do crime depende da lesão ao bem jurídico tutelado, não sendo suficiente um mero perigo abstrato.

Como se vê, nem sempre a separação singela entre crimes materiais e crimes formais, de um lado, e crimes de dano e crimes de perigo, de ou-tro – sem o concurso de outras características –, é suficiente para definir a natureza de qualquer crime.

A partir da ótica relativa ao estado do bem jurídico após a ação, é possível concluir que a decisão judicial analisada andou bem ao levar em consideração o aspecto administrativo, pois, mesmo tratando-se de crime omissivo formal, constitui também crime de perigo concreto, segundo o qual, “para o aperfeiçoamento do tipo, exige-se a verificação efetiva do perigo, devendo este ser constatado caso a caso”, haja vista que “o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido posto em perigo”.

Nessa perspectiva, a decisão analisada admitiu a juntada aos autos da demonstração de que não tinha havido sequer exposição do bem tutelado ao mais remoto perigo, indo ao encontro do que vem o Supremo Tribunal

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Federal, afirmando acerca dos crimes de perigo abstrato, cuja figura que agride tanto o princípio da ofensividade quanto o princípio da ampla defe-sa, visto que o acusado não tem como demonstrar que a sua conduta não foi, de fato, perigosa.

Por isso, o art. 93 do CPP é de vital importância, permitindo suspen-der o curso da ação penal até o desfecho da questão prejudicial necessária para comprovação de que o fato, em tese típico, não ostenta, em determina-dos casos, a menor condição de expor o bem jurídico protegido a qualquer perigo. Nesses casos, é de todo aconselhável, por prudência, e em respeito aos dogmas de direito criminal, a suspensão da ação penal, até o desfecho do processo administrativo.

Assim, conclui-se que a justificativa técnica da decisão aqui trazida para análise só pode ser a seguinte: o crime de apropriação indébita pre-videnciária constitui – sim – crime omissivo formal, exigindo o dolo mera-mente genérico, sem a necessidade do animmus rem sibi habendi, nem de condição objetiva de punibilidade, mas também se trata de crime de perigo concreto, sendo, pois, viável a demonstração – no caso concreto – da au-sência de perigo ao bem tutelado.

REFERÊNCIAS

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Parte Geral – Doutrina

Tipo Penal do Artigo 89 da Lei de Licitações: Novo Entendimento dos Tribunais Superiores

SANDRA SILVEIRA WÜNSCh1

Graduada em Direito pela UniRitter – Campus Porto Alegre/RS e em Secretariado Executivo pela PUCRS (Porto Alegre/RS), Especializada em Gestão Estratégica para Escritórios de Advo-cacia e Departamentos Jurídicos (Unisinos/RS).

RESUMO: Versa o presente estudo sobre a recente mudança de entendimento evidenciada nos Tri-bunais Superiores, no que tange ao elemento subjetivo do tipo penal do art. 89 da Lei de Licitações. Para tanto, o texto é embasado inicialmente na doutrina, ao discorrer a respeito da Lei nº 8.666/1993, da dispensa e da inexigibilidade e do art. 89, e, posteriormente, em julgados do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.

PALAVRAS-CHAVE: Licitações; Lei nº 8.666/1993; dispensa e inexigibilidade.

ABSTRACT: The present study aims to focus on the recent change of understanding evidenced on the Superior Courts, about the subjective element of the penal norm from article 89 of the Bidding Law. Therefore, the text is based initially on the legal literature when writes about the Law number 8.666/1993, of waiver and non- requirement for holding a bid and the article 89, and later in cases decided in Supreme Court and Superior Court.

KEYWORDS: Bids; Law 8.666/1993; waiver and unenforceability.

INTRODUÇÃO

O Estado brasileiro, no âmbito da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, destina um volume significativo de recursos para aqui-sição de bens e serviços necessários ao desenvolvimento das atividades do Poder Público.

Para garantir que os recursos sejam aplicados adequadamente, as compras e os serviços precisam ser realizados de forma a garantir o melhor preço, sem desrespeitar os padrões de isonomia, qualidade e eficiência. As-sim, torna-se essencial a realização de licitações transparentes e econômi-cas, requisitos que se relacionam diretamente com publicidade e concor-rência.

1 http://lattes.cnpq.br/9785013616177384.

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Nessa linha, o Decreto-Lei nº 2.300/1986, vigente até então, é subs-tituído em 21 de junho de 1993 pela Lei nº 8.666. Tendo o art. 126 da lei especial revogado expressamente o Decreto-Lei nº 2.300/1986, além de ou-tras legislações correlatas.

A nova legislação sofreu um incremento considerável, passando de 90 para 126 artigos.

Pode-se dizer que a essência constitucional das licitações e dos con-tratos administrativos está no art 37, inciso XXI, da Constituição Federal2.

Destaca-se que as hipóteses legais de dispensa e inexigibilidade de licitações estão dispostas nos arts. 24 e 25 da Lei de Licitações, respectiva-mente, cuja inobservância acarreta a prática penal prevista no art. 89 desta lei.

Necessário ressaltar que o tipo penal do art. 89 está diretamente rela-cionado aos arts. 24 e 25, não se comunicando com o art. 17, todos da Lei nº 8.666/1993. Tanto o art. 24 como o art. 17 preveem situações de dispen-sa de licitação, sendo que o primeiro elenca hipóteses em que a licitação pode ser dispensável, trabalhando com a discricionariedade, trazendo o le-gislador uma margem de liberdade, enquanto o segundo elenca hipóteses em que a licitação está dispensada, determinando o legislador, sem margem de liberdade, que, em determinados casos, a Administração Pública não fará licitação.

Há divergência na doutrina no que tange à dispensa e à inexigibilida-de de licitação: uma corrente entende que não afrontam os princípios cons-titucionais, pois as hipóteses que afastam o dever de licitar estão revestidas de características que as tornam harmoniosas com tais princípios; entretan-to, outra corrente entende que se criou um meio para burlar uma exigência constitucional, qual seja, a de licitar.

A dispensa depende de uma hipótese fática e só é lícito dispensar a licitação em face de expressa autorização legal, enquanto que a inexigibili-dade pressupõe inviabilidade de competição, por isso o rol de inexigibilida-de jamais se esgotará, já que o caput do art. 25 da Lei de Licitações se refere de forma ampla à inviabilidade de competição, abraçando, assim, hipóteses jurídicas futuras, não previsíveis atualmente.

2 Art. 37, XXI, CF/1988: “Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.

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Além do exposto, cabe ressaltar que a contratação por inexigibilidade só se aplica para a atuação em caso específico; para casos de serviços con-tínuos à licitação, far-se-á imprescindível.

Há a necessidade de se diferenciar a inviabilidade de competição, nos termos supra, que levam à inexigibilidade de licitação, da licitação fra-cassada e da licitação deserta. A licitação fracassada ocorre quando a Admi-nistração Pública percebe que todos os licitantes apresentam documentação errada ou apresentam propostas não condizentes, enquanto que a licitação deserta ocorre pela falta de concorrentes, ausência de participantes3.

Pelo exposto, pode-se resumir a distinção entre dispensa e inexigi-bilidade da seguinte forma: na dispensa vislumbra-se a noção de obriga-toriedade, a existência de fundamento legal para não licitar, enquanto a inexigibilidade está em confronto com a noção de viabilidade.

CRIMES LICITATÓRIOS

A Lei nº 8.666/1993, que dispõe sobre licitações, tem por fim concre-tizar a determinação contida no art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, cujo bem jurídico a ser tutelado é a moralidade administrativa, especial-mente em relação aos princípios da competitividade e da isonomia4.

A Lei de Licitações, amparada em princípios constitucionais, e por meio de seus tipos penais, tem por fim a proteção do patrimônio público contra atos danosos, visando a resguardar o interesse da Administração Pú-blica consubstanciada na lisura do processo licitatório.

Discorre Justen Filho sobre a natureza das penas cominadas pela nova legislação:

Existiria um descompasso entre o espírito da nova legislação e os princípios para os quais se volta o Direito Penal. Tratando-se da chamada “criminali-dade econômica”, a lei poderia ter utilizado mais amplamente sanções de cunho pecuniário ou restritivas de direito e deixar em segundo plano as pe-nas privativas de liberdade.5

Na visão de Justen Filho, trata-se de condutas que apresentam “uma danosidade e um grau de reprobabilidade valorados como de extrema

3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 306.4 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 603.5 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo:

Dialética, 2008. p. 826.

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gravidade”. Dessa forma, “a opção legislativa retratou uma vocação da sociedade”6.

Os delitos tipificados pela Lei nº 8.666/1993 não admitem a moda-lidade culposa, são sempre dolosos, por isso imperiosa a análise da cons-ciência do agente, se atuou conscientemente com o propósito de frustrar a vontade do legislador.

Dispõe o art. 89 da Lei nº 8.666/1993:

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibi-lidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovada-mente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dis-pensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.7

Em abordagem sucinta, Nucci apresenta a seguinte classificação:

Próprio (só pode ser cometido por servidor público); formal (não exige resul-tado naturalístico para a consumação, consistente em efetivo prejuízo para a Administração). [...] de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente); comissivo (os verbos indicam ações), nas formas dis-pensar e inexigir, mas omissivo (consiste em abstenção). [...] instantâneo (a consumação se dá em momento determinado); de perigo abstrato (indepen-dente de qualquer lesão ao bem jurídico tutelado); unissubjetivo (pode ser cometido por um só agente); plurissubsistente (cometido por intermédio de vários atos) ou unissubsistente (cometido num único ato), conforme o meio eleito pelo agente; admite tentativa na forma plurissubsistente.8

Justen Filho apresenta a distinção entre os crimes previstos no caput e no parágrafo único do art. 89:

O crime do caput do art. 89 tem por materialidade a conduta de promover a contratação direta indevidamente. Trata-se de crime cuja configuração pres-supõe a qualidade de funcionário público numa acepção ampla. A conduta criminosa somente pode ser consumada por um sujeito investido da condi-ção de agente estatal e no exercício da competência para deliberar sobre o

6 Idem, p. 827.7 Brasil. Códigos Penal, Processo Penal e Constituição Federal. Legislação Complementar. Saraiva 3 em 1.

7. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.8 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. Coleção leis penais e processuais

comentadas. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2013. p. 468-469.

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aperfeiçoamento de contratação administrativa sem licitação. Já o crime do parágrafo único do art. 89 da Lei nº 8.666 envolve a conduta de um particu-lar, que pode ou não integrar os quadros de uma pessoa administrativa. Mas, se integrar os quadros dessa pessoa, o sujeito não é o titular da competência para deliberar sobre a contratação direta.9

Nucci, ao comentar o art. 89 da Lei nº 8.666/1993, inicia abordando a relação com a Lei de Lavagem de Capitais, uma vez que delitos relativos às licitações e aos contratos administrativos consequentemente permitem a prática do crime de lavagem de dinheiro, o que não é raro de acontecer, pois “quem concretiza negócio fraudulento, normalmente envolvendo altas cifras, com órgãos públicos, busca ocultar a origem ou o destino do montan-te atingido”; da mesma forma, o administrador que participa da ilegalidade com o particular10.

Segundo Freitas, o artigo em pauta é o de maior ocorrência na prática dos crimes licitatórios, merecedor, portanto, de “atenção especial”11.

França entende que,

ao dispensar ou não exigir o processo licitatório fora das hipóteses previstas nesta lei, o agente administrativo incorre nesse crime e fica sujeito às penali-dades cabíveis. De acordo com o parágrafo único, aquele que se beneficiar dessa dispensa também incorrerá na mesma pena.12

A referida situação é excepcionada pelas hipóteses de dispensa e ine-xigibilidade de licitação, previstas nos arts. 24 e 25 da lei em estudo. Entre-tanto, quando a licitação é afastada indevidamente, em descumprimento à disposição legal, ou deixa de observar as formalidades pertinentes, ocorre a incidência do art. 89 da Lei de Licitações.

Bitencourt entende, no que tange ao descumprimento das formalida-des, que:

Curiosamente, nesta hipótese o legislador exageradamente formalista crimi-naliza, o que, de plano, nos parece abusivo, um error in procedendo, o qual

9 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 832.

10 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. Coleção leis penais e processuais comentadas. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2013. p. 463.

11 FREITAS, André Guilherme Tavares de. Crimes na lei de licitações. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 51.

12 FRANÇA, Maria Adelaide de Campos. Comentários à lei de licitações e contratos da administração pública. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 174.

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poderia muito bem ser resolvido no plano puramente administrativo, com as sanções que lhes são próprias.13

Ainda nessa linha discorre o autor:

Outra particularidade que chama a atenção é a gravidade das sanções comi-nadas, para condutas que, no máximo, representariam algum perigo para a Administração Pública, pois não lhes é exigido a produção de qualquer dano ao patrimônio público.14 (grifo meu)

Entretanto, a situação posta por Bitencourt não se evidencia mais nos Tribunais Superiores, perante a recente mudança de entendimento no sen-tido de que não basta o dolo genérico, exigindo-se o dolo específico aliado à demonstração do efetivo prejuízo causado ao Erário.

Com o novo entendimento, a mera ausência da necessária licitação, aliada à consciência do autor quanto à obrigatoriedade de promover a li-citação, não mais poderá constituir crime, pois, para que este se configure, haverá, ainda, a necessidade da efetiva comprovação do prejuízo causado à Administração Pública.

Antes de adentrar na análise dos elementos objetivo e subjetivo do tipo, cabe apresentar o conceito destes na ótica de Lenza:

O tipo objetivo corresponde ao comportamento descrito no preceito primá-rio da norma incriminadora, desconsiderando-se o estado anímico do agen-te, isto é, sem a análise de sua intenção. O tipo subjetivo, de sua parte, cor-responde à atitude psíquica interna que cada tipo objetivo requer.

[...]

É de ver, contudo, que todo tipo de crime doloso possui um elemento subje-tivo implícito: o dolo e, nos crimes culposos, um elemento normativo tácito: a culpa.15

Para Baltazar Jr., nos crimes de licitações o tipo objetivo contempla, no caput, “duas formas comissivas: dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei e uma omissiva: deixar de observar as formalida-des pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”16.

13 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 130.14 Idem, p. 130.15 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

p. 303.16 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 604.

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O tipo subjetivo é o dolo, consubstanciado na ação livre e consciente de fraudar o procedimento licitatório. Sobre o elemento subjetivo específi-co, além do dolo, Baltazar apresenta três correntes:

a) para a primeira, que considero acertada, é suficiente o dolo, sem mais, não se exigindo elemento subjetivo específico;

b) para a segunda, que não encontra respaldo no texto legal, é exi-gido o fim específico de causar dano ao erário ou de beneficiar o particular contratado;

c) variante exige o dolo específico ou elemento subjetivo do tipo apenas para a modalidade do parágrafo único.17

Vale ressaltar que os julgados citados por Baltazar Jr. não ultrapassam o ano de 2010. Outrossim, menciona o autor, ao discorrer sobre o dolo eventual, haver dois entendimentos, que “é admitido” e que “não é admiti-do”, sem destacar a corrente majoritária18.

A seguir o posicionamento de Nucci, Costa Jr. e Bitencourt sobre o elemento subjetivo.

Para Nucci, o elemento subjetivo é o dolo, não reconhecendo a exis-tência de elemento subjetivo específico. O autor cita julgados de 200819 e 201020 para demonstrar que a “simples leitura do caput do art. 89 da Lei nº 8.666/1993 não possibilita qualquer conclusão no sentido de que, para a configuração do tipo penal ali previsto, exige-se qualquer elemento de caráter subjetivo diverso do dolo”; em outras palavras, “o desvalor da ação se esgota no dolo”, não exige ânimo ou finalidade específica, sendo desne-cessária a análise dos motivos que levaram o agente a dispensar ou inexigir a licitação fora das hipóteses legais21.

No que tange à participação, com base nos julgados apresentados por Nucci e já referidos, o elemento subjetivo se configura na consciência de cada concorrente “de que sua ação está dirigida para a ocorrência do resultado que a lei penal visa coibir [...]”22.

17 Idem, p. 606-607.18 Idem, p. 607.19 Recurso Especial nº 991.880/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, Julgado em 28.02.2008, Publicado

28.04.2008.20 Habeas Corpus nº 153.097/DF, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Julgado em 15.04.2010,

Publicado em 10.05.2010.21 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. Coleção leis penais e processuais

comentadas. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2013. p. 464.22 Idem, p. 464.

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Assevera Costa Jr. que o elemento subjetivo:

É a vontade consciente e livre do agente público de dispensar ou de não exi-gir a licitação, ou a vontade de não cumprir o procedimento formal referente à dispensa ou à inexigibilidade, inteirado da ilicitude da omissão.

O dolo é sempre genérico.

Para o extraneus (estranho aos quadros do funcionalismo público), o dolo genérico é representado pela vontade consciente e livre de concorrer para a dispensa, a inexigência ou a não-observância das formalidades pertinentes à dispensa ou a não-exigibilidade. O benefício auferido pelo extraneus, de-corrente da dispensa ou da inexigência, não deverá estar obrigatoriamente na órbita de sua vontade. É uma decorrência fática da conduta, necessária ao aperfeiçoamento do tipo, mas que poderá não ser diretamente abrangida pelo elemento subjetivo.23

Costa Jr., na mesma linha de Baltazar, discorre sobre a possibilidade do dolo eventual, admitindo este nos casos em que “o agente, tendo dúvida quanto à ilegalidade, assume o risco de fazer a dispensa ou de declarar a inexigibilidade ainda que regular”. No caso do parágrafo único, o autor reconhece a exigência do dolo genérico e do específico24.

Ainda nesta temática, ou seja, do elemento subjetivo, Bitencourt faz as seguintes ponderações:

O tipo subjetivo é constituído de um elemento geral – dolo –, que, por vezes, é acompanhado de elementos especiais – intenções e tendências –, que são elementos acidentais, conhecidos como elementos subjetivos especiais do injusto ou do tipo penal. Neste tipo, antecipando, não há previsão da ne-cessidade de qualquer elemento subjetivo especial, como demonstraremos adiante.

[...]

O elemento subjetivo das condutas descritas neste art. 89 da Lei de Licita-ções é o dolo, constituído pela consciência e a vontade de realização das condutas descritas, quais sejam, dispensar ou inexigir licitação fora das hi-póteses legais, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou a inexigibilidade.25

23 COSTA JR., Paulo José da. Direito penal das licitações. Comentários aos artigos 89 a 99 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 17.

24 Idem, p. 18.25 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 159-160.

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Em síntese, para Bitencourt, qualquer das três condutas, dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais, ou deixar de observar as forma-lidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade, deve ser praticada de forma voluntária e consciente pelo sujeito ativo.

Nessa senda, sintetizando, o autor define “dolo é a vontade de rea-lizar o tipo objetivo, orientada pelo conhecimento de suas elementares no caso concreto”, complementando: “Mas a essência do dolo deve estar na vontade, não de violar a lei, mas de realizar a ação e obter o resultado”26.

No entender de Bitencourt, a configuração do dolo exige dois ele-mentos, a consciência e a vontade: “A consciência (previsão ou represen-tação) daquilo que se pretende praticar (dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou a inexigibilidade)” e “vontade, incondicionada, que também deve abranger ação ou omissão (conduta), o resultado e o nexo causal”. Segue o autor: “O dolo, puramente psicológico, completa-se com a vontade e a consciência da ação, do resultado tipificado como injusto e da relação de causalidade, sem qualquer outro elemento constitutivo”27.

Ainda, na visão de Bittencourt, o tipo do art. 89, caput, não exige qualquer elemento subjetivo especial, como determinados crimes, pois nes-se não há “uma finalidade transcendente – um especial fim de agir –, como, por exemplo, para si ou para outrem (art. 157); com o fim de obter (art. 159); em proveito próprio ou alheio (art. 180) etc.”28.

Nesse sentido, o entendimento de Bitencourt é contrário ao de Justen Filho, conforme evidenciado a seguir:

O elemento subjetivo consiste não apenas na intenção maliciosa de deixar de praticar a licitação cabível. Se a vontade consciente e livre de praticar a conduta descrita no tipo fosse suficiente para concretizar o crime, então teria que admitir-se modalidade culposa. Ou seja, quando a conduta descrita no dispositivo fosse concretizada em virtude de negligência, teria de haver a punição. Isso seria banalizar o Direito Penal e produzir criminalização de condutas que não se revestem de reprovabilidade. É imperioso, para a con-cretização do crime, que o agente atue voltado a obter um outro resultado, efetivamente reprovável e grave, além da mera contratação direta.29

26 Idem, p. 160.27 Idem, p. 161-162.28 Idem, p. 164.29 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo:

Dialética, 2008. p. 831.

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Resumindo, Justen Filho entende que a mera intenção de não realizar a licitação em casos em que há previsão expressa sobre tal necessidade não é suficiente para configuração do ato ilícito, sendo necessária a demons-tração de vontade livre e consciente de produzir o resultado danoso ao Erário30.

Referindo-se ao parágrafo único do art. 89, Justen Filho escreve que exige um elemento subjetivo específico e diferenciado; além do dolo, ha-vendo o particular tomado parte na concretização da ilegalidade, deve-se buscar a intenção de se beneficiar da dispensa ou inexigibilidade da lici- tação31.

É enfatizado por Nucci que:

[...] o particular, ao fornecer bens ou serviços à Administração, sem ter to-mado parte na ilegalidade cometida pelo servidor, que agiu por interesses escusos quaisquer, ainda que tenha lucro, não pode ser responsabilizado criminalmente. [...] Assim, no caso o servidor dispensa a licitação, mas o particular não tome parte em qualquer ato ilegal, que lhe diga respeito, ainda que se beneficie da contratação indevida, é incabível a punição.32

Pelo exposto, em relação ao elemento subjetivo do tipo penal em análise, percebe-se que, com exceção de Justen Filho, o entendimento dos demais doutrinadores citados, Baltazar Jr., Nucci, Costa Jr. e Bitencourt, está em descompasso com o novo entendimento vislumbrado pelos Tribunais Superiores, que passou a considerar que o tipo pressupõe, além do dolo genérico, o dolo específico de causar dano ao Erário e a caracterização do efetivo prejuízo, o que é ratificado pelos julgados que seguem.

Entendimento presente no Supremo Tribunal Federal, conforme res-saltado no voto do Ministro Dias Toffoli, em julgamento realizado no dia 29 de março de 2012:

[...]

4. Não restou, igualmente, demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida, por parte dos réus, a superar a necessidade de realização da licita-ção. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimen-

30 Idem, p. 831.31 Idem, p. 832.32 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. Coleção leis penais e processuais

comentadas. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2013. p. 469-470.

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to licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.33 (grifo meu)

Questão presente também nas decisões do Superior Tribunal de Justi-ça. Nos julgados que seguem, a Ministra Laurita Vaz manifesta-se acerca da recente mudança, enfatizando o novo entendimento:

1. A jurisprudência desta Corte Superior passou a considerar indispensável a presença de dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo prejuízo para a configuração do crime do art. 89 da Lei nº 8.666/1993 (leading case: APn 480/MG, Corte Especial, Relª Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. p/o Ac. Min. Cesar Asfor Rocha, DJe de 15.06.2012).34 (grifo meu)

HABEAS CORPUS – PROCESSUAL PENAL – DELITO PREVISTO NO ART. 89 DA LEI Nº 8.666/1993 – AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DOLO ES-PECÍFICO DE FRAUDAR O PROCEDIMENTO LICITATÓRIO E DE EFETIVO DANO AO ERÁRIO – CRIME DO ART. 1º, INCISO II, DO DECRETO-LEI Nº 201/1967 – INÉPCIA DA DENÚNCIA – ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA

1. A controvérsia relativa à caracterização do delito do art. 89 da Lei nº 8.666/1993 tem sido objeto de divergência tanto na doutrina quanto na ju-risprudência, orientando-se este Tribunal Superior, inicialmente, no sentido de que o ilícito em questão constituiria crime de mera conduta, sendo dis-pensável, para a sua configuração, a existência do dolo específico de fraudar o erário ou do efeito prejuízo à Administração Pública. Precedentes.

2. Contudo, em recente julgado, a Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça, ao analisar hipótese semelhante à dos autos, assentou que, para a configuração do delito previsto no art. 89 da Lei de Licitações, é necessário demonstrar o dano causado ao erário, bem assim o dolo específico em pro-duzir o resultado lesivo.35 (grifo meu)

Vale destacar que Baltazar Jr., ao discorrer sobre o elemento subjetivo específico, além do dolo, apresenta três correntes, sendo que, para a segun-da, “é exigido o fim específico de causar dano ao erário ou de beneficiar o particular contratado”, possibilidade que segundo o autor “não encontra respaldo no texto legal”. Enfatiza o autor que considera a primeira hipótese

33 Inquérito nº 3077, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Julgado em 29.03.2012, Publicado em 25.09.2012.34 Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 152.782/SP, 5ª Turma, Relª Min. Laurita Vaz, Julgado

em 07.02.2013, Publicado em 18.02.2013.35 Habeas Corpus nº 190.782/BA, 5ª Turma, Relª Min. Laurita Vaz, Julgado em 11.12.2012, Publicado em

17.12.2012.

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a acertada, na qual a consumação se dá pelo mero ato de dispensa ou ine-xigibilidade, não exigindo o prejuízo para a administração36.

Sobre a consumação, o posicionamento de Baltazar Jr. diverge do entendimento atual evidenciado nos Tribunais Superiores, os quais estão decidindo em conformidade com a segunda hipótese apresentada, ou seja, da necessidade do fim específico de causar dano ao Erário.

Aduz Costa Jr. que:

Perfaz-se o crime de dispensa da licitação no instante em que o agente pú-blico contratar obra ou serviço, adquirir ou locar imóvel sem promover a necessária licitação, fora dos casos previstos em lei, retroanalisados.

Aperfeiçoa-se a modalidade de inexigência de licitação quando o agente pú-blico não promovê-la, fora dos casos enumerados em lei. Tratando-se, como se trata, de delito omissivo, não se configura a tentativa.

[...]

Quanto ao parágrafo único, a infração se consuma com a vantagem da dis-pensa ou da inexigibilidade.37

Em relação ao concorrente particular e parágrafo único do art. 89, Freitas comenta a intenção do legislador, em seu entender, de restringir o alcance da norma no que tange ao concurso de pessoas, “exigindo além da prova da coautoria ou participação, seja ainda demonstrado que o concor-rente auferiu vantagem, benefício consciente em celebrar o contrato com o Poder Público”38.

Justen Filho ressalta uma relação de dependência existente entre a consumação do parágrafo único e do caput do art. 89, versando sobre a im-possibilidade do reconhecimento do crime do parágrafo único sem a con-sumação do crime previsto no caput39.

Em outras palavras, somente pode haver a tipificação da conduta do particu-lar contratado sem licitação (art. 89, parágrafo único) se for reconhecido que um agente estatal cometeu o crime de dispensar ou inexigir indevidamente a licitação (art. 89, caput).40

36 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 607.37 COSTA JR., Paulo José da. Direito penal das licitações. Comentários aos artigos 89 a 99 da Lei nº 8.666, de

21.06.1993. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 16-17.38 FREITAS, André Guilherme Tavares de. Crimes na lei de licitações. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

p. 59-60.39 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo:

Dialética, 2008. p. 833.40 Idem, p. 833.

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Por outro lado, a situação inversa pode ocorrer, já que a configuração do crime do caput não implica, necessariamente, o reconhecimento do cri-me do parágrafo único. Em síntese, “[...] o crime do parágrafo único não é um mero acessório da consumação do crime do caput do art. 89”41.

Com relação às penas, observa França que “as sanções aos crimes li-citatórios restringem-se à multa e à detenção, inexistindo previsão de penas alternativas, sequer para os crimes de menor potencial ofensivo”42.

ANÁLISE DE JULGADOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Inicialmente, dando ênfase às palavras de Greco Filho43 em palestra realizada no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim sobre “As-pectos Criminais da Lei de Licitações”, observa-se a escassez da jurispru-dência na área, sendo um trabalho para garimpeiros, o que é confirmado na prática, principalmente quando a consulta limita-se ao art. 89 da lei em questão.

A presente análise teve por base julgados selecionados dos últimos cinco anos – 2009 a 2013 –, sendo vinte e dois do Superior Tribunal de Justiça e quinze do Supremo Tribunal Federal.

A análise teve por objetivo identificar quando se deu a mudança de entendimento percebida no posicionamento atual dos Tribunais Superiores, uma vez que tal posicionamento não é mencionado pelos doutrinadores, nem nas obras mais recentes, editadas em 2012 e 2013.

JulGAdos do superIor trIbunAl de JustIçA – stJ

Os vinte e dois acórdãos analisados do STJ se distribuem em um agra-vo regimental no agravo de instrumento, duas ações penais, três recursos especiais, quatro agravos regimentais no recurso especial e doze habeas corpus; destes, treze foram julgados pela 5ª Turma e sete pela 6ª Turma, sendo que as duas ações penais foram julgadas pela Corte Especial.

Destaca-se que, recentemente, a Corte Superior de Justiça “passou a considerar indispensável a presença de dolo específico de causar dano ao

41 Idem, p. 833.42 FRANÇA, Maria Adelaide de Campos. Comentários à lei de licitações e contratos da administração pública.

3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 174.43 GRECO FILHO, Vicente; DAHER, Flávio Rodrigues Calil. 18º Seminário Internacional de Ciências Criminais.

Palestra “Aspectos Criminais da Lei de Licitações”. IBCCrim, 28 ago. 2012.

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erário e da caracterização do efetivo prejuízo para a configuração do crime do art. 89 da Lei nº 8.666/1993”, entendimento firmado conforme ementa:

PROCESSUAL PENAL – PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO RECEBIDO COMO AGRAVO REGIMENTAL – LEI DE LICITAÇÕES – CRIME DE DISPEN-SA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES LEGAIS – PRETENSÃO QUE DEMANDA ANÁLISE DO CONJUNTO FÁTICO-PRO-BATÓRIO – IMPOSSIBILIDADE – AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO

[...]

1. A jurisprudência desta Corte Superior passou a considerar indispensável a presença de dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo prejuízo para a configuração do crime do art. 89 da Lei nº 8.666/1993 (leading case: APn 480/MG, Corte Especial, Relª Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. p/o Ac. Min. Cesar Asfor Rocha, Julgado em 29.03.2012, DJe 15.06.2012).

[...]

3. Decisão agravada que se mantém pelos seus próprios fundamentos.

4. Agravo regimental desprovido.44

Esse entendimento, pacificado com precedentes da Corte Especial (Ação Penal nº 480/MG) e do Supremo Tribunal Federal, vai em sentido oposto ao aplicado há anos pelo Superior Tribunal de Justiça, de que o cri-me previsto no art. 89 da Lei de Licitações é de mera conduta, não se exigin-do, portanto, a demonstração do efetivo prejuízo para a sua consumação.

Quando do julgamento da Ação Penal nº 480/MG, não houve unani-midade, sendo o voto da Relatora Maria Thereza de Assis Moura acompa-nhado pela Ministra Nancy Andrighi; os demais Ministros acompanharam o voto do Relator do acórdão, Ministro Cesar Asfor Rocha.

Dessa forma, a simples conduta de realizar a dispensa ou a inexigibi-lidade fora das hipóteses legais, por si só, não será suficiente para a configu-ração do crime tipificado no art. 89 da Lei de Licitações.

Nesse contexto, da lavra do Ministro Og Fernandes, no julgamento do Habeas Corpus nº 171.152 de 2010 colhe-se:

HABEAS CORPUS – DISPENSA DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES LE-GAIS – ART. 89 DA LEI Nº 8.666/1993 – COMPROVAÇÃO DE DOLO ESPE-CÍFICO OU PREJUÍZO À ADMINISTRAÇÃO – DESNECESSIDADE

44 Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 152.782/SP, 5ª Turma, Relª Min. Laurita Vaz, Julgado em 07.02.2013. Publicado em 18.02.2013.

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[...]

Segundo iterativa jurisprudência desta Casa de Justiça, o crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/1993 é de mera conduta, não havendo a exigência, para sua caracterização, da comprovação do dolo específico de fraudar o erário ou de causar prejuízo à Administração. Precedentes.45

Corroborando, e também no intuito de verificar na prática a aplicação do novo entendimento, vale a colação que segue:

HABEAS CORPUS – PROCESSUAL PENAL – DELITO PREVISTO NO ART. 89 DA LEI Nº 8.666/1993 – AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO DE FRAUDAR O PROCEDIMENTO LICITATÓRIO E DE EFETIVO DANO AO ERÁRIO – CRIME DO ART. 1º, INCISO II, DO DE-CRETO-LEI Nº 201/1967 – INÉPCIA DA DENÚNCIA – ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA

[...]

1. A controvérsia relativa à caracterização do delito do art. 89 da Lei nº 8.666/1993 tem sido objeto de divergência tanto na doutrina quanto na ju-risprudência, orientando-se este Tribunal Superior, inicialmente, no sentido de que o ilícito em questão constituiria crime de mera conduta, sendo dis-pensável, para a sua configuração, a existência do dolo específico de fraudar o erário ou do efeito prejuízo à Administração Pública. Precedentes.

2. Contudo, em recente julgado, a Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça, ao analisar hipótese semelhante à dos autos, assentou que, para a configuração do delito previsto no art. 89 da Lei de Licitações, é necessário demonstrar o dano causado ao erário, bem assim o dolo específico em pro-duzir o resultado lesivo. Precedentes.

[...]

5. Ordem de habeas corpus concedida para, reconhecendo a falta de justa causa, trancar a ação penal.46

HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PRE-VISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO – 1. NÃO CABIMENTO – MO-DIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL – RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL – MEDIDA IMPRESCINDÍVEL À SUA OTIMI-ZAÇÃO – EFETIVA PROTEÇÃO AO DIREITO DE IR, VIR E FICAR – 2. ALTE-RAÇÃO JURISPRUDENCIAL POSTERIOR À IMPETRAÇÃO DO PRESENTE

45 Habeas Corpus nº 171.152/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Og Fernandes, Julgado em 21.09.2010, Publicado em 11.10.2010.

46 Habeas Corpus nº 190.782/BA, 5ª Turma, Relª Min. Laurita Vaz, Julgado em 11.12.2012, Publicado em 17.12.2012.

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WRIT – EXAME QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL – 3. PATROCÍNIO DE EVENTO ESPORTIVO – DISPEN-SA DE LICITAÇÃO – ART. 89, CAPUT, DA LEI Nº 8.666/1993 – AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO DE FRAUDAR O PROCEDI-MENTO LICITATÓRIO E DE EFETIVO DANO AO ERÁRIO – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL – 4. ORDEM NÃO CONHECIDA – HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO

[...]

3. Para a caracterização do crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/1993 é imprescindível a comprovação do dolo específico de fraudar a licitação, bem como de efetivo prejuízo ao Erário. Precedentes da Corte Especial e do Supremo Tribunal Federal.

[...]

6. Ordem não conhecida. Habeas corpus concedido de ofício para extinguir a ação penal movida contra o paciente, ante a patente falta de justa causa de prosseguir.47

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO ANTERIORMENTE À PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO QUE REJEITOU OS EMBARGOS – INTEMPESTIVIDADE – NÃO OCORRÊNCIA – EMBARGOS OPOSTOS PELO CORRÉU – DESNECESSIDADE DE RATIFICAÇÃO – SÚ-MULA Nº 418/STJ – AGRAVO PROVIDO PARA ADMITIR O RECURSO ES-PECIAL INTERPOSTO – RECURSOS ESPECIAIS – PENAL – DISPENSA DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES LEGAIS – ABSOLVIÇÃO EM PRIMEIRO GRAU – CONDENAÇÃO EM SEDE DE APELAÇÃO – OMISSÃO NO JULGA-DO QUANTO À NECESSIDADE DE LESÃO AO ERÁRIO PÚBLICO – NÃO OCORRÊNCIA – TESE DEVIDAMENTE ANALISADA EM CONSONÂN-CIA COM ANTERIOR JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE – OFENSA AO ART. 619/CPP – NÃO OCORRÊNCIA – DISPENSA DE LICITAÇÃO – SITUA-ÇÃO EMERGENCIAL OU CALAMITOSA – NÃO CONFIGURAÇÃO – FAL-TA DE TEMPO HÁBIL PARA A CONCLUSÃO DO PROCEDIMENTO – DE-SÍDIA OU MÁ GESTÃO DOS ADMINISTRADORES QUE NÃO JUSTIFICA A DISPENSA DE LICITAÇÃO – DOLO GENÉRICO – CONFIGURAÇÃO – PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA – DOLO ESPECÍFICO DE FRAUDAR O ERÁRIO – VERIFICAÇÃO – INVIABILIDADE – NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA – ABSOLVIÇÃO – AGRAVO PROVIDO, COM PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL IN-TERPOSTO PELOS AGRAVANTES – RECURSO ESPECIAL DE WELLINGTON PARCIALMENTE PROVIDO

47 Habeas Corpus nº 207.494/DF, 5ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellize, Julgado em 09.10.2012, Publicado em 17.10.2012.

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[...]

VII – A jurisprudência da Terceira Seção desta Corte que já foi orientada no sentido do acórdão recorrido, isto é, da desnecessidade de resultado natu-ralístico, como o efetivo prejuízo ao Erário, para a configuração do delito descrito no art. 89 da Lei nº 8.666/1993.

VIII – No entanto, a mais recente jurisprudência da Corte Especial deste Tri-bunal e do Supremo Tribunal Federal encontra-se agora orientada no sentido de que para a configuração do delito em questão é necessário, além do dolo genérico, um especial fim de agir, qual seja, o prejuízo ao Erário.

IX – Caso em que os acusados dispensaram a licitação sob o pretexto de se tratar de situação emergencial ou calamitosa, nos termos do art. 24, IV, da Lei nº 8.666/1993.

X – A desídia, má gestão, inércia ou a falta de planejamento não se inserem no conceito de situação emergencial ou calamitosa a justificar uma contrata-ção direta por dispensa de licitação.

XI – Caso em que restou verificado que os recorrentes agiram com “vontade livre e conscientemente dirigida a superar a necessidade de realização da licitação”, isto é, o dolo direto consubstanciado na “vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório”, eis que, como conseqüência de sua imprevidência administrati-va, acabaram por dispensar a licitação, diante da falta de tempo hábil para a conclusão do procedimento, ao fundamento de que se tratava de situação emergencial ou calamitosa.

XII – Nos termos do mais recente precedente do Supremo Tribunal Federal, não restou demonstrada, no entanto, a “intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação”, e essa verificação demandaria numa análise do contexto fático e probatório dos autos, o que é inviável em sede de recurso especial, tendo em vista o teor da Súmula nº 7 desta Corte.

XIII – Diante da impossibilidade de se verificar o dolo específico na conduta dos acusados, agora necessário para a configuração do delito, deve ser cassa-do o acórdão condenatório e restabelecida a sentença absolutória.

[...].48

Percebe-se, na jurisprudência citada, que o posicionamento é alinha-do ao novo entendimento, enquanto que, na jurisprudência que segue, a manifestação se dá na linha de crime de mera conduta:

48 Recurso Especial nº 1315077/DF, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, Julgado em 28.08.2012, Publicado em 05.09.2012.

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AGRAVOS REGIMENTAIS NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – RECUR-SO DE LUIZ CARLOS: APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 182 DESTA CORTE – JOSÉ AMÉRICO: ALEGADO ERRO MATERIAL NA CONTAGEM DO PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DO ARESP – NÃO OCORRÊNCIA – PREQUESTIO-NAMENTO DE DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS – IMPOSSIBILIDADE – HELDER RODRIGUES: ALEGADA OFENSA AO ART. 619 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – OMISSÕES NÃO CONFIGURADAS – ARGUIDA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL – ARGUMENTAÇÃO RECURSAL DEFICIENTE – INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 284 DO SUPREMO TRIBU-NAL FEDERAL – AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE OS ARESTOS RECORRIDO E PARADIGMA APTA A CARACTERIZAR O DISSÍDIO PRETO-RIANO – TIPO PREVISTO NO ART. 89 DA LEI Nº 8.666/1993 – DELITO DE MERA CONDUTA – FIXAÇÃO DA PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL – MOTIVAÇÃO SUFICIENTE – AGRAVO REGIMENTAL INTERPOSTO POR LUIZ CARLOS NÃO CONHECIDO E, OS DEMAIS RECURSOS, DESPROVI-DOS

[...]

De acordo com a jurisprudência deste Tribunal Superior, o delito previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/1993 é de mera conduta, no qual não se exige dolo específico de fraudar o erário ou causar efetivo prejuízo à Administração Pública, bastando, para sua configuração, que o agente dispense licitação fora das hipóteses previstas em lei ou deixe de observar as formalidades per-tinentes à dispensa.49

Observa-se, nos acórdãos que seguem, que ambos foram julgados em 22.05.2012; não obstante, o entendimento da Ministra Laurita diverge do entendimento do Ministro Sebastião:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – RECUR-SO DE ANTÔNIO NADIR BIGATI: RAZÕES ENVIADAS VIA FAC-SÍMILE – CONTAGEM DO PRAZO PARA APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS – PRA-ZO CONTÍNUO – INOBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ART. 2º DA LEI Nº 9.800/1999 – INTEMPESTIVIDADE – ATO DA CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO QUE ALTERA O PRAZO RECURSAL – ÔNUS DO AGRAVANTE – RECURSO NÃO CONHECIDO – AGRAVO DE ANTONIO MEDRE MONTREZORO: INCIDÊNCIA DOS VERBETES SUMULARES NºS 7 E 83 DESTA CORTE – RECURSO DESPROVIDO

[...]

49 Agravo Regimental no Recurso Especial nº 92.923/RS, 5ª Turma, Relª Min. Laurita Vaz, Julgado em 02.08.2012, Publicado em 13.08.2012.

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4. A decisão recorrida encontra-se de acordo com a jurisprudência deste Tribunal Superior, que firmou entendimento de que o crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/1993 é de mera conduta, no qual não se exige dolo espe-cífico de fraudar o erário ou causar efetivo prejuízo à Administração Pública, bastando, para sua configuração, que o agente dispense licitação fora das hipóteses previstas em lei ou deixe de observar as formalidades pertinentes à dispensa. Aplicação da Súmula nº 83 desta Corte.50 (grifo nosso)

HABEAS CORPUS – CRIMES DE LICITAÇÃO (ARTS. 89 E 92 DA LEI Nº 8.666/1993) – PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – ATIPICIDADE DAS CONDUTAS – EXCEPCIONALIDADE – (I) ART. 89 DA LEI Nº 8.666/1993 – DOLO ESPECÍFICO DE LESIONAR OS COFRES PÚBLI-COS E EXISTÊNCIA DE DANO AO ERÁRIO – DEMONSTRAÇÃO – AUSÊN-CIA – (II) ART. 92 DA LEI Nº 8.666/1993 – ATIPICIDADE – DEMONSTRA-ÇÃO DO DOLO DIRETO (CONSCIÊNCIA E VONTADE) – INDISPENSÁVEL À CONFIGURAÇÃO DO CRIME – INEXISTÊNCIA

[...]

2. Conforme entendimento recentemente pacificado nesta Corte Superior de Justiça, para a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/1993, devem ficar demonstradas a intenção dos agentes em lesionar os cofres pú-blicos e a existência de dano ao Erário (APn 480/MG, Relator p/o Acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, julgado em 29.03.2012).51 (grifo nosso)

Percebe-se que, no primeiro, a Súmula nº 8352 do Superior Tribunal de Justiça foi invocada indevidamente, pois a orientação deste não se fir-mava mais nesse sentido, com novo entendimento pacificado através do julgamento da APn 480/MG em 29.03.2012.

Tal divergência evidencia o marco do período de transição, já que, dos acórdãos julgados em datas anteriores, apenas um traz o novo entendi-mento; nos demais, o voto dos Ministros segue o entendimento do Ministro Jorge Mussi, com pequenas variações:

HABEAS CORPUS – DISPENSA ILEGAL DE LICITAÇÃO – ART. 89 DA LEI Nº 8.666/1993 – COMPETÊNCIA – OBJETO TUTELADO – INTERESSES, BENS OU SERVIÇOS DA UNIÃO – JUSTIÇA FEDERAL – ART. 109, IV, DA CF – CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO – [...] ATIPICI-DADE DA CONDUTA – AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO – CRIME

50 Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 141.099/PR, 5ª Turma, Relª Min. Laurita Vaz, Julgado em 22.05.2012, Publicado em 05.06.2012.

51 Habeas Corpus nº 202.937/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Julgado em 22.05.2012, Publicado em 17.09.2012.

52 Súmula nº 83 do STJ: “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.

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FORMAL OU DE CONSUMAÇÃO ANTECIPADA QUE NÃO DEMANDA RESULTADO NATURALÍSTICO – EIVA NÃO EVIDENCIADA – ORDEM DE-NEGADA

1. O delito denunciado (art. 89 da Lei nº 8.666/1993) se perfaz com a simples conduta de afastar a regra – realização de procedimento licitatório – fora das hipóteses legais ou sem observar as regras estabelecidas para dispensá-lo ou inexigi-lo, não se demandando, para sua configuração, efetivo prejuízo ao Erário.

2. “O tipo penal descrito no art. 89 da Lei de Licitações busca proteger uma série variada de bens jurídicos além do patrimônio público, tais como a mo-ralidade administrativa, a legalidade, a impessoalidade e, também, o respeito ao direito subjetivo dos licitantes ao procedimento formal previsto em lei” (REsp 1.073.676/MG).

3. O art. 89 da Lei nº 8.666/1993, portanto, cuida de crime de consumação antecipada, cuja natureza afasta o resultado naturalístico para sua configu-ração.

4. Ordem denegada.53

Em suma, dos vinte e dois acórdãos, a questão mais relevante consiste na configuração do ilícito pela mera conduta, ou seja, na desnecessidade de resultado naturalístico, ou da existência do dolo específico, além do genéri-co, demonstrando real dano causado ao Erário ou em produzir o resultado lesivo.

JulGAdos do supreMo trIbunAl FederAl – stF

A composição atual do STF é de dez membros, o Presidente mais nove Ministros, que compõem a 1ª e 2ª Turmas. Com exceção dos julgamentos realizados pelo Tribunal Pleno, que conta com a participação do Presiden-te, Ministro Joaquim Barbosa, configurando a participação de 100% de seus membros, os demais julgamentos realizados pela 1ª e 2ª Turmas contam apenas com a presença dos membros que as compõem, ou seja, de regra, nove dos dez Ministros julgam matéria penal, independentemente do crime.

Das dezesseis ementas selecionadas, constata-se que oito foram jul-gadas pelas Turmas (cinco habeas corpus, um recurso ordinário em habeas corpus, um agravo de instrumento e um agravo em recurso extraordinário) e oito pelo Tribunal Pleno (seis inquéritos policiais e duas ações penais).

53 Habeas Corpus nº 139.946/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, Julgado em 08.11.2011, Publicado em 17.11.2011.

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A questão do dolo simples e a intenção de produzir prejuízo aos co-fres públicos estão presentes na decisão da Ação Penal nº 527, julgada im-procedente:

[...] 2. Não restou demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida a superar a necessidade de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar indepen-dentemente da realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação. 3. O simples fato de aparecer o denunciado, nominalmente, como responsável pelo convênio, sem demonstração de sua ciência de que serviços outros complementares tenham sido contratados sem a devida ob-servância do procedimento licitatório adequado, não conduz automatica-mente à tipificação do ilícito que lhe é imputado, hipótese em que se estaria adentrando no campo da responsabilidade objetiva.54

Ratifica-se o entendimento desta Corte, que, conforme já referido quando da análise dos julgados do STJ, passou a considerar, além do dolo geral de dispensar ou inexigir fora das hipóteses legais, o dolo especí-fico, ou seja, a intenção de causar dano ao Erário e da caracterização do real prejuízo para a configuração do delito previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/1993.

Desta forma, a classificação do crime tipificado no art. 89, caput, passou de crime formal para crime material.

IdentIFIcAção dos JulGAdos selecIonAdos pArA AnálIse

Superior Tribunal de Justiça

Ação Penal: 480/MG e 558/PR;

Agravo Regimental no Agravo: 1354330/MG;

Agravo Regimental no Agravo de Recurso Especial: 152.782/SP, 92.923/RS, 141.099/PR e 1084961/RS;

Habeas Corpus: 190.782/BA, 207.494/DF, 174.787/DF, 204.285/PE, 133.367/SE, 164.172/MA, 202.937/SP, 218.767/PA, 139.946/PR, 84.579/PI, 105.074/SP e 171.152/SP;

Recurso Especial: 1315077/DF, 1244666/RS e 1133875/RO.

54 Ação Penal nº 527, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Julgado em 16.12.2010, Publicado em 04.04.2011.

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Supremo Tribunal Federal

Agravo Regimental no Agravo de Instrumento: 752181;

Ação Penal: 527;

Agravo Regimental na Ação Penal: 493;

Embargos Declaratórios no Recurso Extraordinário: 681329;

Habeas Corpus: 112907, 109093, 104017, 107263 e 103725;

Inquérito: 3077, 3108, 2482, 2527, 3016 e 2677;

Recurso em Habeas Corpus: 113277.

CONCLUSÕES

Resta evidenciada a importância do tema, tendo em vista que o des-vio do dinheiro público afeta todas as esferas da sociedade, o que justifica ser o certame licitatório a regra das contratações da Administração Pública.

Assim, no intuito de evitar afronta aos preceitos constitucionais, a licitação deve mostrar-se desnecessária para que seja dispensada, ou impossível para que seja inexigível, pois, de outra forma, será inconsti-tucional.

Ressalta-se haver uma real preocupação com os princípios constitu-cionais – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência –, em conformidade com o que preceitua o art. 37, inciso XXI, da Consti-tuição Federal.

Pelo presente estudo se concluiu que o novo entendimento adotado nos Tribunais Superiores, inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011, e a partir de março 2012 pelo Superior Tribunal de Justiça, é de exigir, além da intenção do agente de fraudar o Erário, a comprovação do efetivo prejuízo.

O entendimento anterior se dava no sentido de ser irrelevante a exis-tência de prejuízo ao Erário, bastando a realização de um dos verbos nucle-ares do tipo, dispensar ou inexigir, para a sua configuração.

O delito previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/1993 possui como ele-mentar típica, para o Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Fede-ral, a produção de resultado danoso ao Erário; assim, na inexistência deste não há de se falar em perfectibilização de tal ilícito penal, o que parece mais coerente com um Estado Democrático de Direito.

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Por tal mudança, o crime que antes era formal, agora é material, ou seja, a intenção do agente por si só não basta, há a necessidade de um re-sultado danoso para a configuração do delito.

Outrossim, ao analisar a conduta daquele que se beneficia da ilega-lidade cometida pelo intraneus, com a qual tenha concorrido, incriminada pelo parágrafo único do aludido dispositivo, não se verifica mudança no entendimento dos referidos Tribunais.

REFERÊNCIAS

BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Códigos Penal, Processo Penal e Constituição Federal. Legislação Complementar. Saraiva 3 em 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

COSTA JR., Paulo José da. Direito penal das licitações. Comentários aos arti-gos 89 a 99 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993. São Paulo: Saraiva, 1994.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1998.

FRANÇA, Maria Adelaide de Campos. Comentários à lei de licitações e con-tratos da administração pública. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.

FREITAS, André Guilherme Tavares de. Crimes na lei de licitações. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

GRECO FILHO, Vicente; DAHER, Flávio Rodrigues Calil. 18º Seminário Internacional de Ciências Criminais. Palestra “Aspectos Criminais da Lei de Licitações”. IBCCrim, 28 ago. 2012.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administra-tivos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. Coleção leis penais e processuais comentadas. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2013.

Parte Geral – Doutrina

A Droga, a Ignorância, a Hipocrisia e o Direito Penal Medieval

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRAProcurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Es-tado da Bahia, Ex-Assessor Especial da Procuradoria-Geral de Justiça, Ex-Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais, Ex-Procurador da Fazenda Estadual, Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – Unifacs, na Graduação e na Pós-Graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público), Pós-Graduado, Lato Sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Pe-nal), Especialista em Processo pela Universidade Salvador – Unifacs (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos), Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário), Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Professor Convidado dos Cursos de Pós-Graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Autor das obras Curso Temático de Direito Processual Penal e Comentários à Lei Maria da Penha (em coautoria com Issac Guimarães, 2010), A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares (2011), Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo (2013) e A Nova Lei de Organização Criminosa (no prelo), além de coordenador do livro Leituras Complementares de Direito Processual Penal (2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia.

Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre mais fácil e mais cômoda. Com certeza é mais simples para os pais de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que supostamente induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos familiares latentes que, mais provavelmente, motivaram o vício. Como, certa-mente, é mais simples para a sociedade permitir a desapropriação do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salvadora intervenção do sistema penal.1

Em reportagem assinada pelo jornalista Filipe Coutinho, correspon-dente do Jornal Folha de S. Paulo em Brasília, na edição do dia 29 de janeiro de 2014, noticiou-se que um réu foi absolvido (por tráfico!) após um juiz de Brasília considerar a maconha uma droga “recreativa” e que não pode-ria estar na lista de substâncias proibidas, utilizada como referência na Lei de Drogas. Segundo a matéria jornalística, a decisão do Juiz de Direito Dr. Frederico Ernesto Cardoso Maciel, da 4ª Vara de Entorpecentes de Brasília

1 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: LUAM, 1991. p. 67.

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(logo, logo vai ser removido, digo eu), foi tomada em outubro, e o Ministério Público recorreu (óbvio! – afinal de contas, a ele é incumbida a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis – art. 127 da CF/1988). Na sentença, o juiz compara o uso da maconha com o de cigarro e de álcool (o que é um erro gravíssimo, pois o cigarro e o álcool, comprovadamente, são mais lesivos à saúde do homem), para concluir que há uma “cultura atrasada” no Brasil. Escreveu o Magis-trado: “soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar outras substâncias” (aqui, certíssima a sua sentença).

Ele cita vários exemplos que comprovariam o uso da maconha como droga recreativa e medicinal, além do baixo potencial noviço. A sentença exemplifica os casos do Uruguai, da Califórnia e até a posição do Ex-Presi-dente Fernando Henrique Cardoso (faltou citar Bill Clinton, Jimmy Carter e outros ex-chefes de Estado como Colômbia, México e Suíça, que mudaram de ideia sobre o assunto – conferir o documentário Quebrando Tabu, de cuja sinopse lê-se: “Há quarenta anos, os Estados Unidos levaram o mundo a declarar guerra às drogas, numa cruzada por um mundo livre de drogas. Mas os danos causados pelas drogas nas pessoas e na sociedade só cresce-ram. Abusos, informações equivocadas, epidemias, violência e o fortaleci-mento de redes criminosas são os resultados da guerra perdida numa escala global”).

O juiz sentenciante entendeu que não houve justificativa para a in-clusão do THC, substância da maconha, na lista proibida, pois, como essa lista restringe o direito de as pessoas usarem substâncias, essa inclusão de-veria ser justificada. Segundo ele,

a Portaria nº 344/1998, indubitavelmente um ato administrativo que restringe direitos, carece de qualquer motivação por parte do Estado e não justifica os motivos pelos quais incluem a restrição de uso e comércio de várias substân-cias, em especial algumas contidas na lista F, como o THC, o que, de plano, demonstra a ilegalidade do ato administrativo.

A propósito, Vera Malaguti Batista afirma que “as prisões superlotadas e o aumento exponencial das populações carcerárias só atestam o poder

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infinito do mercado e o papel que a política criminal de drogas, capitaneada pelos EUA, desempenha no processo de criminalização global dos pobres” (Difíceis ganhos fáceis. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 11).

Desde a promulgação da nova Lei de Drogas, entendemos que a pos-se de droga (e não somente a maconha) para uso próprio deixou de ser crime e foi, portanto, descriminalizada, em razão do que dispõe o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal. Ocorreu uma abolitio criminis.

Com efeito, os conceitos de crime e contravenção são dados pela Lei de Introdução ao Código Penal, que define crime como sendo

a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de mul-ta; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. (art. 1º do Decreto-Lei nº 3.914/1941)

Como se sabe, há dois critérios utilizados pela doutrina e pelo direito positivo para distinguir o crime da contravenção: critérios substanciais (que, por sua vez, subdividem-se em conceituais, teleológicos e éticos) e formais, como o nosso e o Código Francês.

O Código Penal da Suíça, no art. 9º, disciplina igualmente: “Sont réputées crimes les infractions passibles de la réclusion. Sont réputées délits les infractions passibles de l´emprisonnement comme peine la plus grave”.

Na França, a classificação é tripartida: crimes, delitos e contraven-ções (art. 1º). Evidentemente que mesmo os critérios formais “pressupõem naturalmente atrás deles critérios substanciais de avaliação a que o legisla-dor tenha atendido para efeitos de ameaçar uma certa infracção com esta ou aquela pena”, como anota o Mestre português Eduardo Correia (Direito criminal. Coimbra: Almedina, 1971. p. 214).

Essas definições, por se encontrarem na Lei de Introdução ao Código Penal, evidentemente regem e são válidas para todo o sistema jurídico-pe-nal brasileiro, ou seja, do ponto de vista do nosso direito positivo, quando se quer saber o que seja crime ou contravenção, deve-se ler o disposto no art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal.

Nelson Hungria já se perguntava e ele próprio respondia:

Como se pode, então, identificar o crime ou a contravenção, quando se trate de ilícito penal encontradiço em legislação esparsa, isto é, não contemplado no Código Penal (reservado aos crimes) ou na Lei das Contravenções Pe-

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nais? O critério prático adotado pelo legislador brasileiro é o da “distinctio delictorum ex poena” (segundo o sistema dos Direitos francês e italiano): a reclusão e a detenção são as penas privativas de liberdade correspondentes ao crime, e a prisão simples a correspondente à contravenção, enquanto a pena de multa não é jamais cominada isoladamente ao crime. (Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, t. II, p. 39)

Por sua vez, Tourinho Filho afirma:

Não cremos, data venia, que o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal seja uma lex specialis. Trata-se, no nosso entendimento, de regra elucidativa sobre o critério adotado pelo sistema jurídico brasileiro e que tem sido pre-ferido pelas mais avançadas legislações. (Processo penal. 20. ed. São Paulo: Saraiva, v. 4,, p. 212-213)

Manoel Carlos da Costa Leite também trilha na mesma linha, afir-mando:

No Direito brasileiro, as penas cominadas separam as duas espécies de in-fração. Pena de reclusão ou detenção: crime. Pena de prisão simples ou de multa ou ambas cumulativamente: contravenção. (Manual das contraven-ções penais. São Paulo: Saraiva, 1962. p. 03)

Eis outro ensinamento doutrinário:

Como é sabido, o Brasil adotou o sistema dicotômico de distinção das in-frações penais, ou seja, dividem-se elas em crimes e contravenções penais. No Direito pátrio, o método diferenciador das duas categorias de infrações é o normativo e não o ontológico, valendo dizer, não se questiona a essên-cia da infração ou a quantidade da sanção cominada, mas sim a espécie de punição. (FERRARI, Eduardo Reale; SANTOS, Christiano Jorge. As infrações penais previstas na Lei Pelé. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Cri-minais – IBCCrim, n. 109, dez./2001)

Comentando sobre a teoria do fato jurídico, o Professor Marcos Bernardes de Mello assevera que a

distinção entre crime e contravenção penal, espécies do ilícito criminal, é valorativa, em razão da importância e gravidade do fato delituoso. Os fatos ilícitos de maior relevância são classificados como crimes, reservando-se as contravenções para os casos menos graves. Em decorrência disso, as penas mais enérgicas (reclusão e detenção) são imputadas aos crimes, enquan-to as mais leves (prisão simples e multa) são atribuídas às contravenções. (Teoria do fato jurídico – Plano da existência). 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 222)

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Desgraçadamente, o Supremo Tribunal Federal, no entanto, decidiu contrariamente, entendendo ter havido apenas uma despenalização e não descriminalização:

Quest. Ord. em Recurso Extraordinário nº 430.105-9/RJ, 1ª T., Rel. Min. Se-púlveda Pertence. Voto: [...] O Senhor Ministro Sepúlveda Pertence (Relator): Parte da doutrina tem sustentado que o art. 28 da L. 11.343/2006 aboliu o caráter criminoso da conduta anteriormente incriminada no art. 16 da L. 6.368/1976, consistente em “adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine a dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou re-gulamentar”. Dispõe o art. 28 da L. 11.343/2006, verbis: [...] A controvérsia foi bem exposta em artigo do Professores Luiz Flávio Gomes e Rogério Cunha Sanches (GOMES, Luiz Flávio; SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal: crime, infração penal sui generis ou infração adminis-trativa? Disponível em: www.lfg.com.br. 12 dez. 2006), do qual extrato, verbis: “Continua acesa a polêmica sobre a natureza jurídica do art. 28 da Lei nº 11.343/2006 (nova Lei de Drogas), que prevê tão somente penas alterna-tivas para o agente que tem a posse de drogas para consumo pessoal. A questão debatida é a seguinte: nesse dispositivo teria o legislador contempla-do um crime, uma infração penal sui generis ou uma infração administrativa? A celeuma ainda não chegou a seu final. Os argumentos no sentido de que o art. 28 contempla um crime são, basicamente, os seguintes: a) ele está inse-rido no Capítulo III, do Título III, intitulado ‘Dos crimes e das penas’; b) o art. 28, § 4º, fala em reincidência (nos moldes dos arts. 63 do CP e 7º da LCP e é reincidente aquele que, depois de condenado por crime, pratica nova infração penal); c) o art. 30 da Lei nº 11.343/2006 regulamenta a prescrição da posse de droga para consumo pessoal. Apenas os crimes (e contravenções penais) prescreveriam; d) o art. 28 deve ser processado e julgado nos termos do procedimento sumaríssimo da Lei dos Juizados, próprio para crimes de menor potencial ofensivo; e) cuida-se de crime com astreintes (multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de descumprimento das medidas impostas; f) a CF de 1988 prevê, no seu art. 5º, inciso XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais (esse é o caso do art. 28). Para essa primeira corrente não teria havido descri-minalização, sim, somente uma despenalização moderada. Para nós, ao con-trário, houve descriminalização formal (acabou o caráter criminoso do fato) e, ao mesmo tempo, despenalização (evitou-se a pena de prisão para o usuá-rio de droga). O fato (posse de droga para consumo pessoal) deixou de ser crime (formalmente) porque já não é punido com reclusão ou detenção (art. 1º da LICP). Tampouco é uma infração administrativa (porque as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais). Se não se trata de um crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há cominação de qualquer pena de prisão), se não se pode admitir tampouco

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uma infração administrativa, só resta concluir que estamos diante de infração penal sui generis. Essa é a nossa posição, que se encontra ancorada nos se-guintes argumentos: a) a etiqueta dada ao Capítulo III, do Título III, da Lei nº 11.343/2006 (“Dos crimes e das penas”) não confere, por si só, a natureza de crime (para o art. 28) porque o legislador, sem nenhum apreço ao rigor técnico, já em outras oportunidades chamou (e continua chamando) de cri-me aquilo que, na verdade, é mera infração político-administrativa (Lei nº1.079/1950, v.g., que cuida dos ‘crimes de responsabilidade’, que não são crimes). A interpretação literal, isolada do sistema, acaba sendo sempre redu-cionista e insuficiente; na Lei nº 10.409/2002 o legislador falava em ‘manda-to’ expedido pelo juiz (quando se sabe que é mandado); como se vê, não podemos confiar (sempre) na intelectualidade ou mesmo cientificidade do legislador brasileiro, que seguramente não se destaca pelo rigor técnico; b) a reincidência de que fala o § 4º do art. 28 é claramente a popular ou não técnica e só tem o efeito de aumentar de cinco para dez meses o tempo de cumprimento das medidas contempladas no art. 28; se o mais (contravenção + crime) não gera a reincidência técnica no Brasil, seria paradoxal admiti-la em relação ao menos (infração penal sui generis + crime ou + contravenção); c) hoje é sabido que a prescrição não é mais apanágio dos crimes (e das con-travenções), sendo também aplicável inclusive aos atos infracionais (como tem decidido, copiosamente, o STJ); aliás, também as infrações administrati-vas e até mesmo os ilícitos civis estão sujeitos à prescrição. Conclusão: o instituto da prescrição é válido para todas as infrações (penais e não penais). Ela não é típica só dos delitos; d) a Lei dos Juizados (Lei nº 9.099/1995) cuida das infrações de menor potencial ofensivo que compreendem as contraven-ções penais e todos os delitos punidos até dois anos; o legislador podia e pode adotar em relação a outras infrações (como a do art. 28) o mesmo pro-cedimento dos Juizados; aliás, o Estatuto do Idoso já tinha feito isso; e) o art. 48, § 2º, determina que o usuário seja prioritariamente levado ao juiz (e não ao delegado), dando clara demonstração de que não se trata de ‘crimi-noso’, a exemplo do que já ocorre com os autores de atos infracionais; f) a lei não prevê medida privativa da liberdade para fazer com que o usuário cum-pra as medidas impostas (não há conversão das penas alternativas em reclu-são ou detenção ou mesmo em prisão simples); g) pode-se até ver a admoes-tação e a multa (do § 6º do art. 28) como astreintes (multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de descumprimento das medidas impostas; isso, entretanto, não desnatura a natureza jurídica da infração prevista no art. 28, que é sui generis; h) o fato de a CF de 1988 prever, em seu art. 5º, inciso XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais (esse é o caso do art. 28), não conflita, ao con-trário, reforça nossa tese de que o art. 28 é uma infração penal sui generis exatamente porque conta com penas alternativas distintas das de reclusão, detenção ou prisão simples. A todos os argumentos lembrados cabe ainda agregar um último: conceber o art. 28 como ‘crime’ significa qualificar o

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possuidor de droga para consumo pessoal como ‘criminoso’. Tudo que a nova lei não quer (em relação ao usuário) é precisamente isso. Pensar o con-trário retrataria um grave retrocesso punitivista (ideologicamente incompatí-vel com o novo texto legal). Em conclusão: a infração contemplada no art. 28 da Lei nº 11.343/2006 é penal e sui generis. Ao lado do crime e das contra-venções agora temos que também admitir a existência de uma infração penal sui generis”. II – A tese de que o fato passou a constituir infração penal sui generis implica sérias consequências, que estão longe de se restringirem à esfera puramente acadêmica. De imediato, conclui-se que, se a conduta não é crime nem contravenção, também não constitui ato infracional, quando menor de idade o agente, precisamente porque, segundo o art. 103 do Esta-tuto da Criança e do Adolescente (L. 8.069/1990), considera-se “ato infracio-nal” apenas “a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. De outro lado, como os menores de 18 anos estão sujeitos “às normas da legis-lação especial” (CF/1988, art. 2281; e C. Penal, art. 272 – vale dizer, do Es-tatuto da Criança e do Adolescente (L. 8.069/1990, art. 1043 –, sequer cabe-ria cogitar da aplicação, quanto a eles, da L. 11.343/2006. Pressuposto o acerto da tese, portanto, poderia uma criança – diversamente de um maior de 18 anos –, por exemplo, cultivar pequena quantidade de droga para consu-mo pessoal, sem que isso configurasse infração alguma. Isso para mencionar apenas uma das inúmeras consequências práticas, às quais se aliariam a tor-mentosa tarefa de definir qual seria o regime jurídico da referida infração penal sui generis. III – Estou convencido, contudo, de que a conduta antes descrita no art. 16 da L. 6.368/1976 continua sendo crime sob a lei nova. Afasto, inicialmente, o fundamento de que o art. 1º do DL 3.914/1941 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a L. 11.343/2006 criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou detenção. A norma contida no art. 1º do LICP – que, por cuidar de matéria penal, foi recebida pela Constituição de 1988 como de legislação ordinária4 – se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção. Nada impede, contudo, que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabe-leça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/2006 – pena diversa da “privação ou restrição da liberdade”, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de serem adotadas pela “lei” (CF/1988, art. 5º, XLVI e XLVII). IV – De outro lado, seria presumir o excep-cional se a interpretação da L. 11.343/2006 partisse de um pressuposto desa-preço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado – inadvertida-mente – a incluir as infrações relativas ao usuário em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas” (L. 11.343/2006, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). Leio, no ponto, o trecho do relatório apresentado pelo Depu-tado Paulo Pimenta, Relator do Projeto na Câmara dos Deputados (PL 7.134/2002 – oriundo do Senado), verbis (www.camara.gov.br): “[...] Re-servamos o Título III para tratar exclusivamente das atividades de prevenção

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do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Nele incluímos toda a matéria referente a usuários e dependentes, optando, inclusive, por trazer para este título o crime do usuário, separando--o dos demais delitos previstos na lei, os quais se referem à produção não autorizada e ao tráfico de drogas – Título IV. [...] Com relação ao crime de uso de drogas, a grande virtude da proposta é a eliminação da possibilidade de prisão para o usuário e dependente. Conforme vem sendo cientificamente apontado, a prisão dos usuários e dependentes não traz benefícios à socie-dade, pois, por um lado, os impede de receber a atenção necessária, inclusi-ve com tratamento eficaz, e, por outro, faz com que passem a conviver com agentes de crimes muito mais graves. Ressalvamos que não estamos, de for-ma alguma, descriminalizando a conduta do usuário – o Brasil é, inclusive, signatário de convenções internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplica-das ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal [...]”. Não se trata de tomar a referida passagem como reveladora das reais intenções do legislador, até porque, mesmo que fosse possível desvendá-las – advertia com precisão o saudoso Ministro Carlos Maximiliano –, não se-riam elas aptas a vincular o sentido e alcance da norma posta. Cuida-se, apenas, de não tomar como premissa a existência de mero equívoco na co-locação das condutas num capítulo chamado “Dos Crimes e das Penas” e, a partir daí, analisar se, na Lei, tal como posta, outros elementos reforçam a tese de que o fato continua sendo crime. De minha parte, estou convencido de que, na verdade, o que ocorreu foi uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. O uso, por exemplo, da expressão “reincidência” não parece ter um sentido “popular”, especial-mente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em con-trário na L. 11.343/2006 afastaria a incidência da regra geral do C. Penal (C. Penal, art. 12: “As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incrimina-dos por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”). Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo5, possibilitando até mesmo a proposta de apli-cação imediata de pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/1995 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras dos arts. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343/2006, art. 306. Assim, malgrado os termos da Lei não sejam inequívocos – o que justifica a polêmica instaurada desde a sua edição –, não vejo como reconhecer que os fatos antes disciplinados no art. 16 da L. 6.368/1976 deixaram de ser crimes. O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento – antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibi-lidade material de execução (CF/1988, art. 225, § 3º7; e L. 9.605/1998, arts. 3º; 21/248 – da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal. Esse o quadro, resolvo a questão de ordem no sentido de que a L. 11.343/2006 não impli-

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cou abolitio criminis (C. Penal, art. 107, III). V – De outro lado, à vista do art. 30 da L. 11.343/2006, que fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva, reconheço, desde logo, a extinção da punibilidade dos fatos. Os fatos ocorreram há mais de 2 anos (f. 78v e ss.), que se exauriram sem qualquer causa interruptiva da prescrição. Perdeu objeto, pois, o recurso extra-ordinário que, por isso, julgo prejudicado: é o meu voto. Notas de rodapé [1] CF/1988: “Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. [2] C. Penal: “Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”. [3] L. 8.069/1990: “Art. 104. São penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei”. [4] Quanto se trata de incompatibilidade formal da legislação infraconstitucional com a Constituição superveniente – anota Luis Roberto Barroso (cf. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 83/85) –, o “consenso doutrinário é amplo” no sentido da “subsistência válida da norma que haja sido produzida em adequação com o processo vigente no momento de sua elaboração”. Nesse sentido decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal em pelo menos dois precedentes – relativos ao recebimento como legislação ordinária das normas de conteúdo processual contidas em seu Regimento Interno (cf. AO 32-AgRg, 30.08.1990, Marco Aurélio, DJ 28.09.1990; RE 212.455, EDV-ED-AgRg, 14.11.2002, Marco Aurélio, DJ 11.04.2003) –, não existe no Brasil “o instituto da inconstitucionalidade formal superveniente”. [5] L. 11.343: “Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal. § 1º O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais. § 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente enca-minhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários. § 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de ime-diato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a deten-ção do agente. § 4º Concluídos os procedimentos de que trata o § 2º deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida li-berado. § 5º Para os fins do disposto no art. 76 da Lei nº 9.099, de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena prevista no art. 28 desta Lei, a ser espe-cificada na proposta”. [6] L. 11.343/2006: “Art. 30. Prescrevem em 2 (dois)

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anos a imposição e a execução das penas, observado, no tocante à interrupção do prazo, o disposto nos arts. 107 e seguintes do Código Penal”. [7] CF/1988: “Art. 223. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e admi-nistrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. [8] L. 9.605/1998: “Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas admi-nistrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou con-tratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. [...] Art. 21. As penas aplicáveis isolada, cumulativa ou alternativamente às pessoas jurídicas, de acordo com o disposto no art. 3º, são: I – multa; II – res-tritivas de direitos; III – prestação de serviços à comunidade. Art. 22. As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são: I – suspensão parcial ou total de atividades; II – interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; III – proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações. § 1º A suspensão de atividades será aplicada quando estas não estiverem obedecendo às disposições legais ou regulamentares, relativas à proteção do meio ambiente. § 2º A interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com vio-lação de disposição legal ou regulamentar. § 3º A proibição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações não poderá exceder o prazo de dez anos. Art. 23. A prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em: I – custeio de programas e de projetos ambientais; II – execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III – manutenção de espaços públicos; IV – contribuições a entidades am-bientais ou culturais públicas. Art. 24. A pessoa jurídica constituída ou utili-zada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prá-tica de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional”. Voto – sem revisão – do Ministro Carlos Britto à revisão de apartes dos Senhores Ministros Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator), Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Voto: o Sr. Ministro Carlos Britto – Senhor Presidente, também penso que esse art. 28 da Lei nº 11.343 é claro no sentido da criminalização da conduta, até coerente com a inserção topográfica da matéria. Afinal, o nome do título é: Dos Cri-mes e Das Penas. E esse art. 28 não só descreve o crime, como comina a pena. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator) – Manda esta-belecer o processo dos crimes de menor potencial ofensivo. O Sr. Ministro Carlos Britto – E quanto à distinção entre descriminalização e despenaliza-ção está perfeita, porque Vossa Excelência reduz a despenalização, dá um sentido restrito, apenas para afastar aquelas penas restritivas de liberdade. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator) – É o que se tem usado como forma de redução da pena privativa de liberdade a ultima ratio. Isso é

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que a doutrina tem chamado, impropriamente embora, de despenalização. O Sr. Ministro Carlos Britto – No mais, esse voto de Vossa Excelência é ver-dadeiramente antológico, brilhante, de uma densidade de raciocínio. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski – Realmente a conduta é lesiva. Há um certo componente de lesividade que atinge a sociedade e permite a tipificação como crime. Não é uma conduta que diz respeito só à própria pessoa. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator) – E ainda há esse argu-mento de Direito internacional acentuado pelo Deputado. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski – É o princípio da austeridade e da lesividade. O Sr. Ministro Marco Aurélio – A que o Brasil se obrigou. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator) – Obrigou-se, seria uma ruptura da conven-ção. O Sr. Ministro Carlos Britto – A descriminalização traria um efeito cola-teral maligno, do ponto de vista social: estimularia o consumo e, por conse-quência, o tráfico de drogas. Acompanho, com todo louvor, o voto de Vossa Excelência. Voto do Ministro Marco Aurélio (sem revisão) à revisão de apar-tes do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator). O Sr. Mi-nistro Marco Aurélio – Senhor Presidente, não bastasse o que se contém no art. 16 da própria Lei nº 6.368, temos que o novo diploma legal, a Lei nº 11.343, cogita de pena. Mais do que isso, como ressaltado por Vossa Ex-celência e frisado também pelo Ministro Carlos Ayres Britto, a disciplina da matéria está em um capítulo revelador: Dos Crimes e das Penas. E Vossa Excelência esgotou a matéria, apontando que o que tivemos na espécie foi uma substituição da apenação primitiva da Lei nº 6.358 pelo que se contém no art. 28 do novo diploma legal. Quanto à matéria, deu-se, até mesmo, a revogação explícita da Lei nº 6.368, portanto, a derrogação da Lei nº 6.368. Mas, para mim, suficiente é a premissa segundo a qual não se encontra em diploma algum palavras inócuas, palavras sem o sentido técnico, além do sentido vernacular. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator) – Além de submetido ao processo dos crimes de menor potencial ofensivo. O Sr. Ministro Marco Aurélio – Não bastasse a prestação de serviços à comu-nidade, que também é uma pena utilizada na legislação comum. O Sr. Mi-nistro Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator) – E uma das penas possíveis previstas na Constituição. O Sr. Ministro Marco Aurélio – Subscrevo o voto bem fundamentado proferido por Vossa Excelência e concluo, tal como fez Vossa Excelência, no sentido da incidência da prescrição.

Na esteira desse julgamento, também o Superior Tribunal de Justiça:

A controvérsia acerca da competência para o processamento e julgamento de feito no qual o réu foi denunciado por porte de entorpecente para uso próprio foi dirimida pela entrada em vigor da Lei nº 11.343/2006, que fixa, em seu art. 48, a competência do Juizado Especial Criminal, nos termos dos arts. 60 e seguintes da Lei nº 9.099/1995. II – Recurso provido, nos termos do voto do Relator. (REsp 882502/MG, 5ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 05.02.2007)

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Nada obstante tais decisões, o certo é que em virtude do bem jurídico tutelado é que se mostra “inadmissível a punição da posse de drogas para uso pessoal, seja pela inafetação [sic] do bem jurídico protegido (a saúde pública), seja por sua contrariedade com um ordenamento jurídico garanti-dor da não intervenção do Direito em condutas que não afetem a terceiros”, como explica Maria Lúcia Karam, em sua excelente obra De crimes, penas e fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991. Karam complementa afirmando com absoluta propriedade que a “aquisição ou posse de drogas para uso pessoal, da mesma forma que a autolesão ou a tentativa de suicídio, situa-se na esfe-ra de privacidade de cada um, não podendo o Direito nela intervir” (p. 60 e 128). É o que se chama em direito penal de “paternalismo direto”, ou seja,

a utilização de sanções penais para a criminalização da conduta de uma pes-soa que se autolesiona ou que tenta se auto lesionar. [...] Roxin observa que comportamentos autolesivos devem ser vistos como parte da autodetermina-ção do ser humano e, consequentemente, não são objetos adequados para sanções penais [...]. (HIRSCH, Andrew von. Paternalismo direto: autolesões devem ser punidas penalmente? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 67, 2007)

Salo de Carvalho, com base em Timm de Souza, aduz interessante afirmação:

A incapacidade do humano de estar frente à diversidade e a sua impossibili-dade de realizar acontecimentos trágicos com sujeitos que o desestabilizam talvez possam explicar a necessidade de manutenção da lógica proibicionis-ta com seus perversos efeitos. (A política criminal de drogas no Brasil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 459)

Argumenta-se que o uso de drogas poderia causar “consequências negativas” e “atos de vitimização de outras pessoas”, ou seja, “o uso de dro-gas deveria ser proibido porque leva a outras consequências criminógenas a que se seguem comportamentos classicamente lesivos, como formas graves de furto, lesão corporal, vandalismo, etc.”.

Como contesta Andrew von Hirsch, se essa fosse uma justificativa séria para a criminalização do uso de drogas, seríamos forçados a admitir “a responsabilidade dos consumidores de drogas por decisões intermediárias”. A conduta, então, seria criminalizada

porque provoca outros fatores (que não são controlados pelo agente original) a adotar comportamentos que causam lesões ou perigos. Ao se imputar, em tais situações, a responsabilidade penal ao agente original, ignora-se o prin-cípio da responsabilidade pessoal própria, já que ele não cometeu pessoal-

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mente qualquer injusto e as consequências lesivas são causadas por meio de atos errados de outros. (ob. cit.)

Neste sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu um conde-nado em primeira instância por envolvimento com cocaína por entender que portar e consumir droga não é crime. O autor da polêmica decisão, seguida por três desembargadores da 6ª Câmara, foi o Juiz José Henrique Rodrigues Torres, que considerou inconstitucional o art. 28 da Lei nº 11.343/2006. O julgamento da apelação foi em 31 de março de 2008, e o Ministério Público pode recorrer ao Supremo Tribunal Federal. “A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilida-de jurídico-penal”, diz trecho da decisão, revelada ontem pelo Jornal O Es-tado de S. Paulo. Para o Magistrado, essa criminalização é inconstitucional porque o usuário de drogas ilícitas não coloca terceiros em risco. “Assim, transformar aquele que tem a droga apenas e tão somente para uso próprio em agente causador de perigo à incolumidade pública, como se fosse po-tencial traficante, implica frontal violação do princípio da ofensividade”. Ainda na visão do juiz, as drogas lícitas (como bebidas alcoólicas) também causam dependência física e psíquica, mas, mesmo assim, têm tratamento diferente. Além disso, ninguém pode ter sua intimidade violada, já que o uso de drogas é uma questão pessoal. A discussão ocorreu no julgamento da apelação feita por Ronaldo Lopes, condenado por tráfico de drogas. Lopes foi preso em 17 fevereiro de 2007 com três papelotes de cocaína, com 7,7 gramas.

Vejamos, mais uma vez, a inteligência de Maria Lúcia Karan:

Libertadas dos negativos efeitos da criminalização, as drogas hoje etiqueta-das de ilícitas certamente se mostrarão menos danosas. Libertados do proi-bicionismo, certamente, seremos mais capazes não só de encontrar formas mais saudáveis de usá-las, como também de regulamentar o seu uso. (Proi-bições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 65)

Aliás, na Argentina, dois juízes federais de Buenos Aires absolveram um homem que havia sido processado por ter uma plantação de maconha na varanda de seu apartamento na capital argentina. Na decisão divulgada nesta terça-feira, os juízes Eduardo Farah e Eduardo Freiler consideraram inconstitucional que o réu (cuja identidade não foi revelada) fosse punido por ter seis vasos com a planta Cannabis sativa para uso pessoal, concor-dando com o argumento da defesa de que a plantação não atentava contra a “saúde pública”. Farah e Freiler entenderam, segundo a imprensa argentina, que este cultivo não é crime porque o homem não planejava comercializar

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o produto e atuava no “âmbito de sua privacidade”. Os Magistrados se ba-searam na Constituição argentina para sustentar a defesa de “atos privados” que “não afetam a terceiros”. Em uma decisão anterior, outro Juiz Federal, Sérgio Torres, havia processado o homem e sugerido que ele se submetesse a um tratamento de reabilitação. Esse processo foi baseado em um artigo do Código Penal argentino que proíbe o cultivo de plantas ou armazenamento de sementes para produzir entorpecentes para consumo pessoal – e que prevê penas de um mês a dois anos de prisão. O caso ainda pode agora levado a instâncias superiores, como a Câmara de Cassação Penal ou a Su-prema Corte de Justiça, ou ser concluído, se não houver novas apelações. A decisão da Justiça Federal de Buenos Aires ocorreu três meses depois que o Ministro da Justiça, Aníbal Fernández, defendeu a descriminação do consumo de drogas e a atenção médica aos usuários de substâncias quí-micas, durante uma reunião extraordinária sobre o consumo de drogas e o narcotráfico organizada pelas Nações Unidas (ONU), em Viena, na Áustria (Fonte: Folha On Line).

Posteriormente, no julgamento da Causa nº 9.080, realizado no dia 25 de agosto de 2009 (caso Arriola e outros), a Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina deu provimento ao recurso extraordinário interposto contra decisão condenatória pelo delito de posse de entorpecente para uso pessoal, tipificado no art. 14, § 2º, da Lei nº. 23.737/1989. Na decisão unâ-nime, os Magistrados entenderam que a norma penal era incompatível com o art. 19 da Constituição Argentina: “Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados. Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni privado de lo que ella no prohíbe”. A decisão, no entanto, descriminalizou a posse de droga para uso pessoal apenas para os maiores de 16 anos. Não foi uma decisão que legalizou a conduta, apenas a posse ou o porte de pequena quantidade, para uso pessoal, está fora do âmbito de incidência do direito penal. É bom lembrar que isto já ocorreu em outros países, inclusive do nosso continente, como no México, que, em agosto de 2009, descriminalizou a posse de drogas para uso pessoal até o limite de quinhentos miligramas de cocaína ou de cinco gramas de maconha; no Peru, Costa Rica e Uruguai. Na Colômbia, desde 1974 a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade da lei que punia criminalmente o porte de droga para uso próprio.

Sei que não se conclui um texto acadêmico com citações, mas eu nem sei as regras da ABNT (nem me interessam, nem interessavam a Calmon de Passos). Portanto, aí vão:

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Na verdade a avalanche de pitos, reprimendas e agressões só me estimulam a combatividade. (VELOSO, Caetano. Jornal A Tarde, 13.10.2013, p. B9)

Os idealistas são tratados como cupins nas instituições: todos tentam matá--los, com veneno, mas eles não morrem, ao contrário, se organizam, olham um para a cara do outro e dizem: vamos roer! Um dia o todo poderoso senta na sua cadeira e cai porque a pata da cadeira está roída. (PASSOS, J. J. Calmon de. Congresso de Advogados, Porto Alegre, 1992)

Parte Geral – Jurisprudência

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Superior Tribunal de JustiçaAgRg no Recurso Especial nº 1.380.916 – PR (2013/0134399‑9)Relator: Ministro Moura RibeiroAgravante: Ministério Público Federal Agravado: Kelly Cristina Marinho Umbelino Advogados: Alberto Barradas Marques Filho

Douglas Renato Brzezinski e outro(s)

eMentA

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – PECULATO – ART. 327, § 2º, DO CP – FALTA DE PROVAS QUANTO À OCUPAÇÃO DE CARGO GERENCIAL – REEXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO – SÚMULA Nº 7, STJ – AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO

1. O Eg. Tribunal a quo, ao analisar o acervo fático-probatório dos autos, se posicionou no sentido da exclusão da causa de aumento prevista no art. 312, § 2º, do Código Penal, fazendo incidir o óbice da Súmula nº 7, STJ a desconstituição de tal entendimento.

2. Agravo regimental não provido.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Senhores Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, em negar provimento ao agravo re-gimental.

Os Srs. Ministros Regina Helena Costa, Laurita Vaz, Jorge Mussi e Marco Aurélio Bellizze votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 17 de dezembro de 2013 (data do Julgamento).

Ministro Moura Ribeiro Relator

relAtórIo

O Senhor Ministro Moura Ribeiro: Trata-se de agravo regimental in-terposto pelo Ministério Público Federal contra decisão monocrática da mi-

146 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

nha lavra, que negou seguimento ao recurso especial, em razão da incidên-cia da Súmula nº 7, do STJ.

Busca o agravante a reforma do decisum sustentando, em síntese, que não há necessidade de revolvimento fático-probatório, pois a matéria é estritamente jurídica.

É o sucinto relatório.

eMentA

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – PECULATO – ART. 327, § 2º, DO CP – FALTA DE PROVAS QUANTO À OCUPAÇÃO DE CARGO GERENCIAL – REEXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO – SÚMULA Nº 7, STJ – AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO

1. O Eg. Tribunal a quo, ao analisar o acervo fático-probatório dos autos, se posicionou no sentido da exclusão da causa de aumento prevista no art. 312, § 2º, do Código Penal, fazendo incidir o óbice da Súmula nº 7, STJ a desconstituição de tal entendimento.

2. Agravo regimental não provido.

Voto

O Senhor Ministro Moura Ribeiro (Relator):

Verifico que o Tribunal de origem, ao analisar o acervo fático-proba-tório dos autos, se posicionou no sentido da exclusão da causa de aumento prevista no art. 312, § 2º, do Código Penal, nos seguintes termos (fl. 8620:

Na terceira fase da pena, insurge-se a apelante alegando a inaplicabilidade da causa especial de aumento de pena prevista no art. 327, § 2º do CP e a impossibilidade de sua concessão de oficio pelo magistrado.

A causa de aumento da pena prevista no art. 327, § 2º do CP, deve ser apli-cada a todo aquele que, à época do delito, detinha cargo de confiança. O au-mento da pena decorre da maior reprovabilidade do agente que, no exercí-cio de função pública e nela ocupando cargo que demanda com maior rigor a retidão da sua conduta funcional, em razão da especial responsabilidade e confiança na gestão desempenhada, vale-se de sua posição justamente para a prática de conduta ilícita. Na espécie, tenho que a ré não se valeu de sua função (gerente da Agência da ECT de Corumbataí do Sul/PR) para cometer o delito, já que trabalhava sozinha na agência dos Correios, portanto, atendia

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������147

o público, bem como desempenhava todas as demais rotinas administrativas, porém sem efetivo desenvolvimento de função de comando, organização ou fiscalização de subordinados. Assim, não se pode considerar que a função desempenhada se equiparasse a função de relevo, com especial confiança adicional depositada a agente de empresa pública. Aliás, a sentença bem referiu o fato de que à época dos fatos a agência era unipessoal.

Dessa forma, para se chegar a conclusão diversa da que chegou o Eg. Tribunal a quo, seria inevitável o revolvimento do arcabouço carreado aos autos, procedimento sabidamente inviável na instância especial.

Com efeito, não se mostra plausível nova análise do contexto proba-tório por parte desta Corte Superior, a qual não pode ser considerada uma terceira instância recursal.

No mais, referida vedação encontra respaldo na Súmula nº 7 desta Corte, verbis: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja Recur-so Especial”. Confira-se, nesse sentido, os precedentes, aplicáveis mutatis mutandis:

PROCESSUAL PENAL – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECUR-SO ESPECIAL – FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO – ALEGADA AUSÊNCIA DE PROVAS – PLEITO DE ABSOLVIÇÃO – NECESSIDADE DE REEXAME DO ACERVO PROBATÓRIO – VEDAÇÃO DA SÚMULA Nº 7/STJ – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE – INOCORRÊNCIA – AGRAVO NÃO PROVIDO

1. Conforme ressaltado na decisão objurgada, a pretensão recursal de absol-vição ou de anulação do processo por insuficiência de provas para condena-ção não encontra campo na via eleita, dada a necessidade de revolvimento do material probante, procedimento de análise exclusivo das instâncias or-dinárias e vedado ao Superior Tribunal de Justiça, a teor da Súmula nº 7/STJ.

[...]

3. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 354.869/CE, Rel. Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, Julgado em 03.10.2013, DJe 09.10.2013)

PROCESSUAL PENAL – AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECUR-SO ESPECIAL – FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO – ART. 297 DO CÓDIGO PENAL – NEGATIVA DE SEGUIMENTO A RECURSO ESPE-CIAL – ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE PROVAS PARA A CONDENA-ÇÃO – CONDENAÇÃO – NECESSIDADE DE REEXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO – INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 7 DO STJ – AGRAVO REGI-MENTAL IMPROVIDO

148 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

I – A decisão do Tribunal de origem fundamentou-se, para obstar a subida do Recurso Especial do ora agravante, na impossibilidade de reexame da matéria fático-probatória (Súmula nº 7/STJ).

II – De fato, o acórdão recorrido manteve a sentença condenatória, que se baseou nos depoimentos das testemunhas e, também, na delação do corréu, bem como em outros elementos trazidos aos autos, que formaram um todo harmônico, que levou à condenação. O que o recorrente, ora agravante, não logrou infirmar foi justamente esta totalidade de provas, coligidas pela acusação.

III – A alteração do julgado, para, eventualmente, concluir-se pela absolvição do acusado – como quer o agravante –, em face da suposta inexistência de provas para a condenação, ensejaria, inevitavelmente, a incursão no acervo fático-probatório da causa, o que encontra óbice na Súmula nº 7/STJ.

IV – Agravo Regimental improvido.

(AgRg no AREsp 270.183/MG, Relª Min. Assusete Magalhães, Sexta Turma, Julgado em 04.06.2013, DJe 17.06.2013)

Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.

É como voto.

certIdão de JulGAMento QuIntA turMA

AgRg no REsp 1.380.916/PR Número Registro: 2013/0134399-9

Matéria criminal

Números Origem: 0712006 10745220064047010 200670100010743

Em Mesa Julgado: 17.12.2013

Relator: Exmo. Sr. Ministro Moura Ribeiro

Presidente da Sessão: Exmo. Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze

Subprocurador-Geral da República: Exmo. Sr. Dr. Brasilino Pereira dos Santos

Secretário: Bel. Lauro Rocha Reis

AutuAção

Recorrente: Ministério Público Federal

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������149

Recorrido: Kelly Cristina Marinho Umbelino

Advogados: Douglas Renato Brzezinski e outro(s) Alberto Barradas Marques Filho

Assunto: Direito penal – Crimes praticados por funcionários públicos contra a administração em geral – Peculato

AGrAVo reGIMentAl

Agravante: Ministério Público Federal

Agravado: Kelly Cristina Marinho Umbelino

Advogados: Douglas Renato Brzezinski e outro(s) Alberto Barradas Marques Filho

certIdão

Certifico que a egrégia Quinta Turma, ao apreciar o processo em epí-grafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

“A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental.”

Os Srs. Ministros Regina Helena Costa, Laurita Vaz, Jorge Mussi e Marco Aurélio Bellizze votaram com o Sr. Ministro Relator.

Parte Geral – Jurisprudência

6809

Superior Tribunal de JustiçaAgRg no Agravo em Recurso Especial nº 417.593 – AP (2013/0357934‑9) Relatora: Ministra Regina Helena CostaAgravante: Fernando da Silva Carvalho e Sá Advogado: Maurício Silva Pereira e outro(s)Agravado: Ministério Público do Estado do Amapá

eMentA

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – PENAL – CRIME DE ROUBO – PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO – REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS – IMPOSSIBILIDADE – INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 7/STJ

I – O Tribunal de origem, a partir do exame das provas colhidas, considerou típica e materialmente punível a conduta do Recor- rente, de forma que alterar as conclusões firmadas implicaria rever o conjunto fático-probatório dos autos, pretensão inviável nesta via especial, por esbarrar no óbice da Súmula nº 7/STJ.

II – Agravo Regimental improvido.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quinta Tur-ma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental. Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Jorge Mussi, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília/DF, 17 de dezembro de 2013 (data do Julgamento).

Ministra Regina Helena Costa Relatora

relAtórIo

A Excelentíssima Sra. Ministra Regina Helena Costa (Relatora):

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������151

Trata-se de Agravo Regimental, interposto por Fernando da Silva Carvalho e Sá, contra decisão monocrática (e-STJ fls. 297/300), que negou provimento ao Agravo em Recurso Especial, em razão da incidência da Sú-mula nº 7/STJ.

Sustenta o Agravante, em síntese, que as questões suscitadas no Re-curso Especial obstado são de direito e não de fato, de forma que deve ser afastado referido óbice sumular.

Requer a reconsideração da decisão agravada, para que seja determi-nado o processamento do recurso especial ou, alternativamente, a submis-são do feito ao pronunciamento do Colegiado.

Não verificando razões para retratação do decisum, apresento o re-curso em mesa para pronunciamento da Turma.

É o relatório.

Voto

A Excelentíssima Sra. Ministra Regina Helena Costa (Relatora):

A decisão agravada foi proferida nos seguintes termos (e-STJ, fls. 297/300):

Vistos.

Trata-se de Agravo em Recurso Especial, interposto por Fernando da Silva Carvalho e Sá, contra decisão do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá (e-STJ, fls. 233/236), que não admitiu o recurso especial, por inci-dência da Súmula nº 7/STJ.

Sustenta o Agravante não haver necessidade de revolvimento fático para apreciação da controvérsia.

Nas razões de seu Recurso Especial inadmitido, aponta o Recorrente, viola-ção ao art. 386, incisos IV e V, do Código de Processo Penal, ao fundamento de não existirem provas suficientes para sua condenação. O Ministério Públi-co Federal opinou pelo improvimento do agravo (e-STJ, fls. 291/295).

É o relatório. Decido.

Os requisitos para o conhecimento do Agravo em Recurso Especial foram preenchidos.

Todavia, não merece prosperar o inconformismo, porquanto o Tribunal de origem, soberano na análise de fatos e provas, consignou estar comprovada

152 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

a autoria e a materialidade delitiva. Confira-se, a propósito, a ementa do acórdão recorrido (e-STJ, fl. 206):

PENAL E PROCESSO PENAL – ROUBO – CO-AUTORIA MORAL OU INTE-LECTUAL – ROBUSTO ACERVO PROBATÓRIO APONTANDO AUTORIA E MATERIALIDADE SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO CRIME

[...]

3) Não merece reforma a sentença que condena calçada na robusta prova da autoria e materialidade do crime de roubo duplamente qualificado pelo emprego de arma e concurso de pessoas, por eles praticado.

Desse modo, alcançar a conclusão a que pretende o Recorrente – de que deve ser absolvido por falta de provas, implica o reexame do conjunto fático--probatório dos autos, o que é inadmissível na via do Recurso Especial, a teor da Súmula nº 7 do Superior Tribunal de Justiça.

Nesse sentido, trago à colação os seguintes julgados:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – HOMI-CÍDIO QUALIFICADO – SENTENÇA DE PRONÚNCIA – PROVA DA MA-TERIALIDADE E DE INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA – REEXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO – SÚMULA Nº 7, STJ – ELEMENTOS PROBATÓRIOS – COLHEITA NA FASE INQUISITORIAL – POSSIBILIDADE – AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO

1. O Eg. Tribunal a quo, com base no acervo fático-probatório, entendeu estarem presentes todos os requisitos para a prolação de uma sentença de pronúncia, porque basta a existência de prova da materialidade e de indícios suficientes da autoria, fazendo incidir o óbice da Súmula nº 7, STJ a descons-tituição de tal entendimento.

2. A jurisprudência desta Corte adota o posicionamento de que a sentença de pronúncia pode estar amparada em elementos probatórios colhidos na fase inquisitorial, por não configurar juízo de certeza.

3. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 281.493/MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, Quinta Turma, Jul-gado em 05.09.2013, DJe 10.09.2013)

HABEAS CORPUS – ARTS. 180, § 1º; 311 (DUAS VEZES); E 288, PARÁ-GRAFO ÚNICO, TODOS DO CÓDIGO PENAL, EM CONCURSO MATE-RIAL – PRESCRIÇÃO EXECUTÓRIA RELATIVA AO CRIME DE QUADRILHA MAJORADO – INOCORRÊNCIA – ART. 110, DO CÓDIGO PENAL – DEFICI-ÊNCIA NA DEFESA – ALEGAÇÃO DESPROVIDA DE DEMONSTRAÇÃO DO CONCRETO PREJUÍZO – ART. 563, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF – FALTA DE INTIMAÇÃO PESSOAL DO RÉU

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������153

QUANTO AO RESULTADO DO RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO PELA DEFESA – DEFENSOR CONSTITUÍDO REGULARMENTE INTIMADO – ATO PRESCINDÍVEL – NULIDADE NÃO VERIFICADA, NO PONTO – ALE-GAÇÃO DE QUE NÃO HÁ ELEMENTOS DE AUTORIA – NECESSIDADE DE ANÁLISE DE PROVAS – VIA INADEQUADA – HABEAS CORPUS PARCIAL-MENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DENEGADO

1. Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, o prazo para a pres-crição executória regula-se pelo total de pena aplicada (art. 110, do Código Penal).

2. Na hipótese, o trânsito em julgado para ambas as partes ocorreu em 23.05.2006 – termo a quo para contagem do prazo prescricional.

Assim, iniciado o cumprimento da pena em 15.03.2011, não resta a preten-são executória fulminada pelo instituto da prescrição.

3. Alegações genéricas de nulidade, desprovidas de demonstração do con-creto prejuízo, não podem dar ensejo à invalidação da ação penal.

É imprescindível a demonstração de prejuízo, pois o art. 563, do Código de Processo Penal, positivou o dogma fundamental da disciplina das nulidades – pas de nullité sans grief.

4. Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal: “[n]o processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.”

5. Esta Corte tem entendido que, em segundo grau de jurisdição, a prerrogati-va da intimação pessoal restringe-se ao Ministério Público e, se for o caso, ao Defensor Público ou Dativo. Na hipótese, porém, quando da realização da sessão de julgamento pelo Tribunal de Justiça, o Paciente havia constituído Patrocinador para a causa, razão pela qual a intimação realizada mediante publicação na imprensa oficial é legal.

6. Compete aos graus de jurisdição ordinária concluir sobre os elementos de autoria e materialidade delitiva, por serem as instâncias soberanas na ava-liação sobre o acervo fático-probatório. Tal análise é imprópria na via do habeas corpus, remédio constitucional de rito célere e cognição sumária.

7. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegado.

(HC 238.100/SC, Relª Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, Julgado em 06.08.2013, DJe 13.08.2013, grifos meus)

Isto posto, nego provimento ao agravo, com fulcro no art. 544, § 4º, II, a, do Código de Processo Civil combinado com o art. 3º do CPP.

Publique-se.

154 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

Intime-se.

Em que pesem os argumentos apresentados pela parte, a decisão agravada não merece reparos, porquanto proferida em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, merecendo ser mantida pelos seus próprios fundamentos.

Isto posto, nego provimento ao Agravo Regimental.

É o voto.

certIdão de JulGAMento QuIntA turMA

AgRg no AREsp 417.593/AP Número Registro: 2013/0357934-9

Matéria criminal

Números Origem: 00072463720108030002 342010 72462010 72463720108030002

Em Mesa Julgado: 17.12.2013

Relatora: Exma. Sra. Ministra Regina Helena Costa

Presidente da Sessão: Exmo. Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze

Subprocurador-Geral da República: Exmo. Sr. Dr. Brasilino Pereira dos Santos

Secretário: Bel. Lauro Rocha Reis

AutuAção

Agravante: Fernando da Silva Carvalho e Sá

Advogado: Maurício Silva Pereira e outro(s)

Agravado: Ministério Público do Estado do Amapá

Corréu: Adailson Correia Campelo

Corréu: Marivaldo Castro das Neves

Assunto: Direito Penal – Crimes contra o patrimônio – Roubo majorado

AGrAVo reGIMentAl

Agravante: Fernando da Silva Carvalho e Sá

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������155

Advogado: Maurício Silva Pereira e outro(s)

Agravado: Ministério Público do Estado do Amapá

certIdão

Certifico que a egrégia Quinta Turma, ao apreciar o processo em epí-grafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

“A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental.”

Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Jorge Mussi, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Parte Geral – Jurisprudência

6810

Superior Tribunal de JustiçaAgRg no Recurso Especial nº 1.405.449 – DF (2013/0207349‑2)Relator: Ministro Moura RibeiroAgravante: Joaquim Ulisses Lima RamalhoAdvogado: Bianca Alvarenga Gonçalves (Assistência Judiciária)Agravado: Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

eMentA

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO PENAL – AGRAVO EM EXECUÇÃO – LIVRAMENTO CONDICIONAL – ART. 83 DO CÓDIGO PENAL – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL – NÃO DEMONSTRAÇÃO, NOS MOLDES LEGAIS – AGRAVO REGI- MENTAL NÃO PROVIDO

1. É entendimento pacífico nesta Corte que o dissídio jurispruden-cial viabilizador do recurso especial, além de indicar o dispositivo legal que entendeu ter recebido interpretação divergente e de tra-zer a transcrição de acórdãos para a comprovação da divergência, é necessário que realize o cotejo analítico entre o aresto recorrido e o paradigma, com a demonstração da identidade das situações fáticas e a interpretação diversa dada ao mesmo dispositivo de legislação infraconstitucional.

2. Da análise do recurso especial interposto, é possível verificar que o recorrente não se desincumbiu desta tarefa, de modo que não foram atendidos os requisitos viabilizadores da insurgência pela alínea c do permissivo constitucional, a teor dos arts. 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.

3. Agravo regimental não provido.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Senhores Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, em negar provimento ao agravo re-gimental.

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������157

Os Srs. Ministros Regina Helena Costa, Laurita Vaz, Jorge Mussi e Marco Aurélio Bellizze votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 17 de dezembro de 2013 (data do Julgamento).

Ministro Moura Ribeiro Relator

relAtórIo

O Senhor Ministro Moura Ribeiro:

Trata-se de agravo regimental interposto por Joaquim Ulisses Lima Ramalho contra decisão monocrática da minha lavra que negou seguimento ao recurso especial, em razão da não demonstração da divergência jurispru-dencial.

Busca o agravante a reforma do decisum sustentando, em síntese, que por várias vezes na peça recursal foram demonstrados os requisitos básicos para a admissibilidade do apelo nobre. Sustenta, nesse sentido, que existe similitude fática entre o acórdão recorrido, proferido pelo TJDFT, e aquele do Mato Grosso do Sul, eleito como paradigma.

É o sucinto relatório.

eMentA

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO PENAL – AGRAVO EM EXECUÇÃO – LIVRAMENTO CONDICIONAL – ART. 83, DO CÓDIGO PENAL – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL – NÃO DEMONSTRAÇÃO, NOS MOLDES LEGAIS – AGRAVO REGI- MENTAL NÃO PROVIDO1. É entendimento pacífico nesta Corte que o dissídio jurispruden-cial viabilizador do recurso especial, além de indicar o dispositivo legal que entendeu ter recebido interpretação divergente e de tra-zer a transcrição de acórdãos para a comprovação da divergência, é necessário que realize o cotejo analítico entre o aresto recorrido e o paradigma, com a demonstração da identidade das situações fáticas e a interpretação diversa dada ao mesmo dispositivo de legislação infraconstitucional.

2. Da análise do recurso especial interposto, é possível verificar que o recorrente não se desincumbiu desta tarefa, de modo que não foram atendidos os requisitos viabilizadores da insurgência

158 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

pela alínea c do permissivo constitucional, a teor dos arts. 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.

3. Agravo regimental não provido.

Voto

O Senhor Ministro Moura Ribeiro (Relator):

No caso, o recorrente foi condenado à pena unificada de 20 (vinte) anos de reclusão pelos crimes de homicídio qualificado e promoção ou fa-cilitação de fuga de preso, tendo sido indeferido seu livramento condicional quando da execução da sanção corporal. O Eg. Tribunal a quo apreciou o recurso de agravo de execução e negou-lhe provimento, por entender ausente o requisito subjetivo do art. 83, III, do Código Penal, em razão do número de fugas no total de 6 (seis).

No apelo nobre, o ora agravante alega divergência jurisprudencial, sustentando que já foi punido pelas faltas graves, não podendo ser consi-derado tal requisito quando do momento do exame para a concessão do benefício requerido.

Neste aspecto, é entendimento pacífico nesta Corte, que o dissídio jurisprudencial viabilizador do recurso especial, além de indicar o disposi-tivo legal que entendeu ter recebido interpretação divergente e de trazer a transcrição de acórdãos para a comprovação da divergência, é necessário que realize o cotejo analítico entre o aresto recorrido e o paradigma, com a demonstração da identidade das situações fáticas e a interpretação diversa dada ao mesmo dispositivo de legislação infraconstitucional.

Da análise do recurso especial interposto, é possível verificar que o recorrente não se desincumbiu desta tarefa, de modo que não foram atendi-dos os requisitos viabilizadores da insurgência pela alínea c do permissivo constitucional, a teor dos arts. 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.

A propósito (grifamos):

PROCESSUAL PENAL – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INS-TRUMENTO – CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA – AUSÊNCIA DO NE-CESSÁRIO COTEJO ANALÍTICO NA COMPROVAÇÃO DA DIVERGÊNCIA – PREQUESTIONAMENTO – SÚMULAS NºS 211/STJ E 356/STF – APLICA-ÇÃO – DESNECESSIDADE DE PROVA PERICIAL – JURISPRUDÊNCIA DO STJ – SÚMULA Nº 83/STJ – AGRAVO NÃO PROVIDO

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������159

1. Conforme asseverado no decisum agravado, é imprescindível o atendi-mento dos requisitos dos arts. 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil e 255, § 1º, a, e § 2º, do RISTJ, para a devida demonstração do ale-gado dissídio jurisprudencial, pois além da transcrição de acórdãos para a comprovação da divergência, é necessário o cotejo analítico entre o aresto recorrido e o paradigma, com a demonstração da identidade das situações fáticas e a interpretação diversa emprestada ao mesmo dispositivo de legisla-ção infraconstitucional.

[...]

4. Agravo regimental não provido.

(AgRg no Ag 1427121/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, Julgado em 20.08.2013, DJe 05.09.2013)

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – CONVERSÃO DE FÉRIAS NÃO GOZADAS EM PE-CÚNIA – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL – NÃO COMPROVADA – MERA TRANSCRIÇÃO DE EMENTAS – VIOLAÇÃO AO ART. 8º DA LEI Nº 1.533/1951 – NÃO OCORRÊNCIA – MATÉRIA CONSTITUCIONAL EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL – ANÁLISE – IMPOSSIBILIDADE – AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO

1. Os julgados apresentados no recurso especial para comprovação do dis-sídio jurisprudencial não observaram os requisitos exigidos nos arts. 541, parágrafo único, do CPC e 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ. Na espécie, só houve transcrição das ementas dos arrestos, sem o necessário cotejo analítico, bem como, não observaram a similitude fática com o caso dos autos.

[...]

4. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no REsp 1176348/MA, Relª Min. Alderita Ramos de Oliveira (De-sembargadora Convocada do TJ/PE), Sexta Turma, Julgado em 20.08.2013, DJe 04.09.2013)

Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.

É como voto.

certIdão de JulGAMento QuIntA turMA

AgRg no REsp 1.405.449/DF Número Registro: 2013/0207349-2

Matéria criminal

160 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

Números Origem: 00168131920128070000 00309314319988080015 168131920128070000 17247 19980110309316 20120020168132 20120020168132AGS 309314319988070015 3357 365003420128 070015 81901373351266

Em Mesa Julgado: 17.12.2013

Relator: Exmo. Sr. Ministro Moura Ribeiro

Presidente da Sessão: Exmo. Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze

Subprocurador-Geral da República: Exmo. Sr. Dr. Brasilino Pereira dos Santos

Secretário: Bel. Lauro Rocha Reis

AutuAção

Recorrente: Joaquim Ulisses Lima Ramalho

Advogado: Bianca Alvarenga Gonçalves (Assistência Judiciária)

Recorrido: Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

Assunto: Direito penal – Crimes contra a vida – Homicídio qualificado

AGrAVo reGIMentAl

Agravante: Joaquim Ulisses Lima Ramalho

Advogado: Bianca Alvarenga Gonçalves (Assistência Judiciária)

Agravado: Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

certIdão

Certifico que a egrégia Quinta Turma, ao apreciar o processo em epí-grafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

“A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental.”

Os Srs. Ministros Regina Helena Costa, Laurita Vaz, Jorge Mussi e Marco Aurélio Bellizze votaram com o Sr. Ministro Relator.

Parte Geral – Jurisprudência

6811

Tribunal Regional Federal da 1ª RegiãoApelação Criminal nº 0000202‑03.2006.4.01.4300/TOProcesso na Origem: 2020320064014300Relator: Juiz Federal Klaus Kuschel (convocado)Apelante: Ministério Público FederalProcurador: Victor Manoel MarizApelado: Ednea Alves de CastroAdvogado: Altamiro de Araujo Lima FoApelado: Vicente Santana SampaioApelado: Silas Alves PereiraApelado: Adagsmar de Araujo MartinsAdvogado: Marcela Juliana FregonesiApelado: Evelyse Fonseca LeiteAdvogado: Fabio Alves dos SantosApelado: Edson Cabral de OliveiraAdvogado: Angelino Madeira

eMentA

PENAL – LEI Nº 8.666/1993 – ARTS. 86 E 90 – FRAUDE NO PROCESSO LICITATÓRIO – IRREGULARIDADES – DOLO NÃO DEMONSTRADO – ABSOLVIÇÃO – SENTENÇA MANTIDA

1. Da análise dos processos licitatórios nº 14.874/1998, 16.667/1998, 13.816/1998 e 4.525/1998 não se verificam ele-mentos suficientes a embasar a condenação dos apelados pelo tipo do art. 90 da Lei de Licitações, uma vez que não foi comprovado pela acusação a presença do elemento subjetivo indispensável à configuração do delito, qual seja, o dolo dos apelados em fraudar tais procedimentos para beneficiar terceiros.

2. Verificando os processos licitatórios celebrados para execução do Convênio nº 7.124/1997 pode-se notar uma série de pequenas irregularidades, mas de seu conjunto não se pode auferir, com a certeza necessária para uma condenação criminal, que os apela-dos que faziam parte da comissão de licitação agiam no sentido de direcionar as licitações para determinadas empresas.

3. Apelação da acusação não provida.

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Acórdão

Decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, à unanimidade, negar provimento ao Apelo da acusação.

Brasília, 04 de dezembro de 2013 (data de Julgamento)

Juiz Federal Klaus Kuschel Relator Convocado

relAtórIo

O Exmo Sr. Juiz Federal Klaus Kuschel (Relator Convocado):

Vistos, etc.

O Ministério Público Federal ofereceu denúncia perante o MM. Juízo da 1ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Tocantins contra Manoel Odnir Rocha pela suposta prática dos delitos capitulados no art. 1º, inciso I, do Decreto-Lei nº 201/1967; Osmar Lucena Neto, Ricardo da Silva Carreira, Edson Cabral de Oliveira, Davison Pereira dos Santos e Evelyse Fonseca Leite pela suposta prática dos delitos capitulados no art. 171, § 3º, do CP e art. 96, I, da Lei nº 8.666/1993; e Ednéa Alves de Castro, Vicente Santana Sampaio, Nubia Waleria Martins Cardoso, Silas Alves Pereira e Adagsmar de Araújo Martins pela suposta prática do crime capitulado no art. 90 da Lei nº 8.666/1993.

Narra, em síntese, a petição inicial (fls. 02/ 18) que:

“[...]

O Município de Palmas, por intermédio do então prefeito Manoel Odir Roch, celebrou, em 01 de dezembro de 1997, o convênio nº 7.124/97 com o Mi-nistério da Educação e Desporto, sob a interveniência do Fundo Nacional de Desenvolvimento Educação – FNDE, objetivando a ‘capacitação de recursos humanos e aquisição de material didático/pedagógico para a adequação de jovens e adultos, beneficiando 284 docentes e 4000 alunos dessa modalida-de de ensino’.

[...]

Ao que consta dos autos, restou comprovada a existência de irregularidades na gestão do referido Convênio, tanto nos procedimentos licitatórios quanto na execução do contrato decorrente de tal licitação, [...].

[...]. (fls. 03/10)

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A denúncia foi recebida em 27.01.2006 (fls. 326/327).

À fl. 683, comunicou esta Corte o trancamento da ação penal em relação ao acusado Osmar Lucena Neto, por força da decisão proferida no HC 2007.01.00.056291-6.

Os autos foram desmembrados em relação aos acusados Manoel Odir Rocha (fls. 764/768) e Edson Cabral de Oliveira (fl. 1162).

Sentenciando o feito (fls. 1165/1182), o MM. Juiz a quo julgou im-procedente a denúncia para absolver os acusados, nos termos do art. 386, VII do CPP.

Inconformado, o Ministério Público Federal interpôs Recurso de Apelação (fls. 1186 e 1190/1213) requerendo que seja reformada a senten-ça para condenar os acusados Ednéa Alves de Castro, Silas Alves Pereira, Vicente Santana Sampaio e Evelyse Fonseca Leite, sustentando, em síntese, que:

– “[...] Os documentos acostados aos autos evidenciam que, nos certames licitatórios acima mencionados, boa parte das empresas participantes eram sempre as mesmas que se alternavam na adjudicação do objeto licitado.” (fl. 1193)

– “Esta constatação, aliada aos demais elementos de prova a seguir descritos, demonstra o conluio existente entre os componentes da Comissão Perma-nente de Licitações – Ednéa, Silas e Vicente –, o Secretário de Educação do Estado do Tocantins, Adagsmar de Araújo Martins e um grupo de empresas para beneficiar os envolvidos em detrimento do interesse público lesado.” (fl. 1194)

– “[...] Várias fraudes foram cometidas, não foram executados os objetos do convênio, embora tenha havido repasse dos recursos respectivos. Sendo assim, estes teriam como única e possível destinação, o próprio bolso dos acusados.” (fls. 1212/1213)

Com contrarrazões dos réus (fls. 1215/1232), subiram os autos a esta Corte onde receberam parecer ministerial (fls. 1236/1239) pelo provimento da apelação do MPF.

É o relatório.

Voto

O Exmo. Sr. Juiz Federal Klaus Kuschel (relator convocado):

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Recorre o Ministério Público Federal da sentença que absolveu os acusados Ednéa Alves de Castro, Silas Alves Pereira, Vicente Santana Sampaio, Evelyse Fonseca Leite.

Inicialmente verifico que, não obstante o MPF em suas razões re-cursais pugne também pela condenação dos acusados Edson Cabral de Oliveira e Adagsmar de Araújo Martins, verifico que na petição recursal de fl. 1186 somente se irresignou o parquet contra a absolvição de Ednéa Alves de Castro, Silas Alves Pereira, Vicente Santana Sampaio e Evelyse Fonseca Leite, motivo pelo qual não há recurso contra aqueles réus.

Dessa forma, conheço do apelo da acusação e passo a analisar as razões recursais do MPF, tão somente em relação aos réus Ednéa Alves de Castro, Silas Alves Pereira, Vicente Santana Sampaio e Evelyse Fonseca Leite.

Vejamos.

Analisando as provas coligidas aos autos, tenho que não merece re-forma a r. sentença recorrida, a qual absolveu os réus nos seguintes termos:

“a análise da materialidade das condutas descritas na denúncia exige a apre-ciação das irregularidades de cada um dos processos licitatórios investiga-dos, de modo a verificar se realmente ocorreram e, em caso positivo, se tais ocorrências implicaram na frustração do caráter competitivo da licitação.

É o que passo a fazer.

II.2.1 – Carta-Convite nº 427/1998 (Processo nº 14.874/1998)

Segundo as alegações finais da acusação, tal processo foi deflagrado para aquisição de materiais de manutenção e desenvolvimento do ensino de 1º grau, havendo sido os convites retirados em 08.06.1998 por Costa e Maciel Ltda., Papelaria do Estudante Ltda., Mac Pel Com. de Móveis e Equip. p/ Es-critório e Pereira e Alfonso Ltda. (fl.29).

As vencedoras deste certame foram Papelaria do Estudante Ltda., Costa e Maciel Ltda. e Mac Pel Com. de Móveis e Equip. p/ Escritório.

A acusação relata que a empresa Mac Pel Com. de Móveis e Equip. p/ Escri-tório, uma das vencedoras do certame e representada por Evelyse Fonseca Leite, apresentou a proposta de preços com data anterior à publicação da respectiva Carta-Convite e certidão com data posterior à abertura das pro-postas.

Ocorre que, embora a Mac Pel tenha consignado no documento de fl. 35 do Processo nº 14.874/1998 (anexo) a data de 16.05.1998, isso por si só não demonstra que sua proposta efetivamente teria sido elaborada nessa data.

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Ora, a própria Carta-Convite, nos campos preenchidos pela Prefeitura, indica como data de emissão o dia 08.06.1998.

É óbvio, portanto, que houve erro da Mac Pel ao datar o documento.

Provavelmente esse erro deve ter resultado da intenção da Mac Pel de vincu-lar a validade da proposta à data de sua abertura, porquanto a mencionada validade era de 30 (trinta) dias e se relacionava a uma licitação cuja abertura ocorreria no dia 16.06.1998.

Em outros termos, a Mac Pel simplesmente pré-datou a Carta-Convite apenas para que o termo final da validade de sua proposta coincidisse com a abertu-ra de todas as propostas, o que, a toda evidência, não denota qualquer fraude ou frustração do procedimento licitatório.

De outra parte, o fato de a Mac Pel ter apresentado certidão negativa do INSS expedida no dia seguinte à abertura das propostas (fl. 36 do Processo nº 14.874/1998) caracteriza mera irregularidade.

Afinal, isso indica apenas uma tolerância – apesar de indevida – da Comissão de Licitação quanto à apresentação do aludido documento em oportunidade posterior.

Entretanto, as demais licitantes poderiam ter impugnado essa tolerância, mas não o fizeram.

Nessas circunstâncias, também não há como responder frustração ou fraude do caráter competitivo do procedimento licitatório em epígrafe.

Por derradeiro, não há prova de que a Mac Pel teria deixado de fornecer as mercadorias licitadas, nem que as teria vendido por preço superior ao de mercado.

Nessa circunstâncias, inexiste prova suficiente para a condenação dos acu-sados pela prática dos crimes lhes imputados relativamente à licitação em epígrafe.

II.2.2. – Carta-Convite nº 445/1998 (Processo nº 16.667/1998)

Segundo as alegações finais da acusação, tal processo foi deflagrado para a aquisição de materiais de expediente, havendo sido os convites retirados em 09.07.1998 por Pereira e Alfonso Ltda., Mac Pel Com. de Móveis e Equi. p/Escritório, Costa e Maciel Ltda. e Morais & Moura Ltda.

Sagraram-se vencedoras as empresas Papelaria do Estudante Ltda. e Costa e Maciel Ltda.

A acusação não apresentou quaisquer alegações de fraudes específicas nesse processo.

A análise da respectiva documentação também não aponta nesse sentido.

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Por tais razões, não se vislumbra a ocorrência de ilícitos penais com respeito ao processo licitatório em epígrafe.

II.2.3. – Carta-Convite nº 408/1998 (Processo nº 13.806/1998)

Segundo as alegações finais da acusação, tal processo foi deflagrado para a aquisição de livros de alfabetização, havendo sido os convites retirados em 28.05.1998 por Rime Artes Gráficas Ltda., Cartográfica Editora do Tocantins Ltda. e Gráfica Editora Primavera Ltda.

Sagraram-se vencedoras as empresas Rime Artes Gráficas Ltda. e Gráfica Amparo Ltda., esta última havendo apresentado proposta mesmo sem retirar convite (fl. 29 do Processo nº 13.806/1998).

Com respeito a este processo licitatório, não foram apontados vícios até a adjudicação do objeto.

No entanto, a acusação esclarece que houve dois pagamentos referente a este processo, nos valores de R$ 10.075,50 e R$ 293,75, efetuados sem che-que nominal ou ordem bancária, o que contrariaria preceitos legais e dissi-mularia o desvio de dinheiro público.

Acrescenta, ainda, que os proprietários da Gráfica Amparo Ltda. seriam pri-mos do prefeito Manoel Odir Rocha e, por todas essas razões, o processo licitatório em questão teria sido fraudado.

Neste ponto, não merecem prosperar as alegações do MPF.

Em primeiro lugar, porque, como visto, não há indícios de fraude ao longo do referido processo licitatório.

Em segundo, porque, se o objetivo da fraude era adjudicar o objeto à Gráfica Amparo Ltda., seria de se esperar que a retirada do respectivo convite tivesse sido forjada também.

Em terceiro, porque o pagamento dos valores atinentes à entrega do objeto por outra via que não o cheque nominal ou a ordem bancária não constitui, por si só, evidência de fraude ao caráter competitivo do certame, especial-mente quando se leva em consideração a ausência de provas de que o objeto não teria sido entregue pela licitante vencedora.

Em quarto, porque não há provas de ligação entre Manoel Odir e os pro-prietários da licitante vencedora e, mesmo que houvesse, tal circunstância sozinha não se prestaria a configurar a fraude.

Em quinto, o próprio MPF requereu a absolvição de Ricardo da Silva Carreira, sob o argumento de que houve meras irregularidades nos pagamen-tos realizados para a execução do objeto (fl. 1018).

Também não se pode olvidar que, à época dos fatos, ainda eram poucas as empresas interessadas em participar de certames em Palmas, dadas as dificul-dades e custos para a entrega do objeto licitado.

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Logo, não há provas suficientes da ocorrência do crime relativamente à lici-tação em comento.

II.2.4. – Carta-Convite nº 162/1998 (Processo nº 4.525/1998)

De acordo com as razões finais do MPF, o referido processo licitatório foi iniciado para aquisição de material de expediente, havendo sido os convi-tes retirados em 29.03.1998 por Meta Com. de Artigos Desportivos Ltda., Costa e Maciel Ltda. (Comercial Santa Clara), DM Comércio e Represen-tação de Artigos de Vidraçaria e Mac Pel Com. de Móveis Máq. e Equip. p/ Escritório.

A licitação foi vencida por DM Comércio e Representação de Artigos de Vidraçaria.

O parquet afirma que a empresa em questão foi constituída unicamente para disputar licitações simuladas, uma vez que seu verdadeiro proprietário era Délio de Oliveira, irmão do chefe de gabinete de Manoel Odir Rocha, que era também amigo pessoal de Ednéa Alves de Castro.

Segundo o representante ministerial, são indícios disso o fato de que a em-presa possuía registrada em seu contrato social uma vasta gama de objetos, o que permitiria sua atuação em inúmeros certames organizados pela Adminis-tração Municipal, mas que seria incompatível com a realidade de qualquer empreendimento.

No entanto, a peça acusatória e as alegações finais do MPF não indicam especificamente qualquer irregularidade ocorrida ao longo do processo lici-tatório em questão e que representaria evidência de fraude ou frustração do caráter competitivo do certame.

Ao contrário, em sede de alegações finais, o MPF reconhece a ausência de provas suficientes para a condenação e requer a absolvição de Davison Pereira dos Santos, que figura como proprietário da empresa DM Comércio e Representação de Artigos de Vidraçaria.

De fato, a partir da análise da documentação pertinente ao Processo nº 4.525/1998 acostada aos autos, não se vislumbram evidências de fraude.

Nessa ordem de idéias, faz-se necessário concluir pela inexistência de pro-vas suficientes a aportar a ocorrência de crime relacionado àquele processo licitatório.

II.3 – CRIMES DE FALSIDADE E PECULATO IMPUTADOS A ADAGSMAR DE ARAÚJO MARTINS (PROCESSO Nº 14.875/1998)

Segundo as alegações finais da acusação, o acusado Adagsmar de Araújo Martins requereu instauração de processo de inexigibilidade de licitação para a contratação de Edson Cabral de Oliveira, a fim de que ministrasse

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cursos de capacitação com professores da rede municipal de ensino a partir de junho de 1998 (fls. 03 e 36 do Processo nº 14.875/1998).

Os cursos seriam de “Multidisciplinaridade” e “Leitura e Produção de Textos”, ao valor de R$ 3.852,00 cada um (fls. 06, 10 e 11 do Processo nº 14.875/1998).

A inexigibilidade foi ratificada (fl. 40 do Processo nº 14.875/1998), em-penhada (fls. 41/42) e há declaração no sentido de que Edson Cabral de Oliveira “prestou a contento desta Secretaria Municipal de Educação os ser-viços como monitor dos cursos constantes do ‘Projeto EJA – Capacitação de Professores de Educação de Jovens e Adultos’ (fl. 43 daquele Processo)”.

Os valores em questão foram efetivamente pagos a Edson, consoante com-provam os documentos de fls. 44/45 do Processo nº 14.875/1998, havendo, inclusive, sido descontados imposto de renda na fonte e ISSQN.

Contudo, segundo o Relatório de Inspeção nº 409/2000, a emissão desses recibos não se seguiu as exigências próprias do convênio, deixando de dis-criminar os serviços ou os materiais de consumo e apoio consumidos durante o curso.

Além disso, o trabalho de auditoria destaca que o empenho se deu com base na declaração de Adagsmar no sentido de que o serviço foi prestado (fl. 26).

Diante dessas provas, resta saber se o serviço foi efetivamente prestado.

Em seu interrogatório (fl. 959), o acusado Adagsmar de Araújo Martins confir-ma que o acusado Edson Cabral de Oliveira recebeu valores em pagamento por haver ministrado cursos de capacitação, mas não se recorda a qual curso se referia o pagamento tratado nos autos (05’40”-05’52”).

O acusado ainda confirma haver solicitado a contratação direta de Edson Cabral de Oliveira, em atendimento a solicitação da coordenação pedagó-gica do Município, tendo em vista a escassez de profissionais capazes de promover a realização de cursos de capacitação, e alega que o profissional tinha competência para ministrar todos os cursos para os quais foi contratado (06’15”-06’54”).

O acusado relata acreditar que Edson Cabral de Oliveira recebeu os valores integrais referentes aos cursos e depois os repassou a cada um dos professo-res que os aplicaram.

Entretanto, para o acusado a questão não assume ares de relevância, uma vez que todos os professores receberam e nenhum reclamou a falta da respectiva verba honorária (07’32”- 08’08”).

O acusado ainda afirma que não sabe se Edson Cabral de Oliveira tinha outra espécie de contrato com a Administração, mas que a prestação de serviços tratada no convênio aludido foi realizada em prol da educação municipal e

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era mais do que necessária, dada a necessidade de treinar os diretores e os servidores da Secretaria da Educação (14’29”-15’30”).

Tal afirmação foi corroborada pela testemunha Clodoaldo Rodrigues de La-cerda, que afirmou que Edson foi contratado para prestar serviços junto à Secretaria de Educação (fls. 845, 15’16”-15’22”).

Por sua vez, o acusado Edson Cabral de Oliveira afirma, em seu interrogató-rio (fl. 959), que apresentou proposta para ministrar um curso de capacitação por meio de uma equipe multidisciplinar e que coube a essa equipe ministrar os cursos “Multidisciplinaridade” e “Leitura e Produção de Textos”, ficando ele próprio encarregado de ministrar o curso “Habilidades Gerenciais para Diretores de Escolas”.

Afirma, ainda, que recebeu única e exclusivamente por este serviço, sendo falsa a acusação sobre haver ele recebido valores por atividades anteriores (04’00”-05’18”).

Esse acusado também relata que o montante total da licitação fora por ele recebido, uma vez que o contrato foi realizado em seu nome, mas que neste montante estavam incluídos todos os demais professores componentes da equipe multidisciplinar.

Aduz que entregou o numerário a Clodoaldo Rodrigues de Lacerda, a quem caberia pagar todos os integrantes da equipe (05’19”-05’59”).

O acusado relata que não houve a contratação individual de cada professor em razão de especialidade de sua contratação e que isso facilitaria o anda-mento do processo.

Além disso, reconhece não ser regular tal procedimento, mas também afirma que não é razão para que se afirme a existência de prejuízo, tendo em vista que todos os serviços foram prestados e os respectivos pagamentos, feitos (06’25”-07’40”).

A testemunha da acusação Clodoaldo Rodrigues de Lacerda (fl. 845) con-firma que, por ordem do Secretário ou da Diretora de Educação (fl. 945) confirma que, por ordem do Secretário ou da Diretora de Educação – não se recordando exatamente quem –, Edson repassou-lhe uma quantia para ser transferida aos prestadores de serviço (06’54”-08’32”), sendo que vários mo-nitores seriam pagos mesmo estando o processo exclusivamente em nome de Edson (15’22”-15’37”).

O depoente também não se recorda quando foi sacado, quanto foi repassan-do aos demais prestadores de serviço e nem se tal valor visava ao pagamento de serviços anteriores (10’23”-11’51”), mas afirma que entendeu o procedi-mento como normal, até para facilitar a distribuição dos honorários entre os professores (09’23”-09’46”).

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Há, portanto, evidências de irregularidades na contratação e no pagamento de Edson e dos demais profissionais que ministraram os aludidos cursos de capacitação.

Entretanto, como se viu do interrogatório dos réus e dos depoimento das testemunhas, o objetivo buscado era apenas a facilitação do andamento do processo de contratação.

A busca desse objetivo, por si só, não revela dolo de apropriação indevida ou desvio de dinheiro público, elemento subjetivo indispensável para a caracte-rização do delito tipificado no art. 312 do Código Penal.

De outro lado, não há qualquer indício de que o serviço contratado não teria sido prestado adequadamente.

Ao contrário, a prova oral não acusou deficiências durante a execução dos cursos, tendo as testemunhas e os interrogados sido categóricos em afirmar que todos os prestadores de serviço foram pagos.

Além disso, os documentos relativos ao Processo nº 14.875/1998 demons-tram que a contratação foi realmente formalizada apenas em nome de Edson, o que aponta no sentido de sua responsabilidade por arregimentar outras pessoas para auxiliá-lo a ministrar os cursos.

Logo, havia um vínculo contratual com o Município que tornava plausível o pagamento a Edson pelos serviços prestados em questão e o subsequente repasse de parte desses valores, diretamente ou por interpostas pessoas, aos demais profissionais que participaram da prestação dos serviços (remune-ração).

Em resumo, a conjuntura demonstrada pelas provas dos autos é a seguinte:

1. não há provas de que os cursos “Multidisciplinaridade” e “Leitura e Produ-ção de Textos” não foram prestados;

2. não há provas de que os valores pagos não foram devidos;

3. não há evidências de que houve desvio “em proveito próprio ou alheio”, nem de que o acusado Adagsmar teria agido com esse propósito (dolo);

4. não há indícios de dolo de Adagsmar em prejudicar o erário ou o direito de outrem.

A esse respeito, a própria testemunha Clodoaldo Rodrigues de Lacerda con-firma que participou da operação de pagamento com o intuito de fazer um favor, visando apenas a facilitação do pagamento aos monitores (fl. 845, 08’14”-09’46”).

Sendo assim, o pagamento retratado às 44/45 do Processo nº 14.875/1998 não caracteriza o delito de peculato, de modo que descabe a condenação de Adagsmar por tal crime.

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Noutro compasso, o documento de fl. 43 do Processo nº 14.875/1998 não contém declaração falsa sobre fato relevante.

Afinal, nela o acusado Adagsmar se limita a atestar que Edson Cabral de Oliveira “prestou a contento... os serviços como monitor dos cursos constan-tes no ‘Projeto EJA – Capacitação para Professores de Educação de Jovens e Adultos’”.

E, como afirmado, os serviços realmente foram prestados, não há evidência de sua inadequação e a pessoa contratada para sua execução era Edson, além de inexistir no ato que materializou sua contratação a proibição de ele, sob sua coordenação, recrutar outras pessoas para auxiliá-lo na execução do serviço.

Enfim, não há prova suficiente para a condenação de Adagsmar pelos crimes de falsidade ideológica e peculato.” (fls. 1171/1181)

Irretocáveis os argumentos acima transcritos, dos quais se valeu o MM. Juiz a quo como fundamento para a improcedência da denúncia.

Com efeito, da análise dos processos licitatórios nº 14.874/1998, 16.667/1998, 13.816/1998 e 4.525/1998 não se verificam elementos su-ficientes a embasar a condenação dos apelados pelo tipo do art. 90 da Lei de Licitações, uma vez que não foi comprovado pela acusação a presença do elemento subjetivo indispensável à configuração do delito, qual seja, o dolo dos apelados em fraudar tais procedimentos para bene-ficiar terceiros.

Na verdade, como muito bem asseverou o MM. Juiz a quo em seu decreto absolutório, verificando os processos licitatórios celebrados a para execução do Convênio nº 7.124/1997 pode-se notar uma série de pequenas irregularidades, mas de seu conjunto não se pode auferir, com a certeza ne-cessária para uma condenação criminal, que os apelados que faziam parte da comissão de licitação agiam no sentido de direcionar as licitações para determinadas empresas.

Em relação à apelada Evelyse, também observo que a pré-datação da proposta bem como a apresentação de certidão negativa em data ex-temporânea na Carta-Convite nº 427/1998, não podem, por si só, embasar eventual decreto condenatório, uma vez que não há nos autos prova no sentido de que a mesma tenha agido com a intenção de fraudar o processo licitatório ou causar prejuízo ao erário.

Por fim, é ainda de se destacar que todos os objetos dos contratos foram efetivamente entregues e que não há nos autos qualquer notícia de que as empresas perdedoras dos processos licitatórios tenham procurado

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impugná-los, o que também corrobora no sentido da inexistência de fraude pré-ajustada pelos acusados nos referidos processos.

Ante o exposto, nego provimento ao Apelo.

Retifique-se a autuação desta apelação criminal excluindo-se Edson Cabral de Oliveira e Adagsmar de Araújo Martins.

É como voto.

Voto reVIsor

O Exmo. Sr. Desembargador Federal Cândido Ribeiro (Revisor):

Como consignado no relatório, trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público Federal contra sentença proferida pelo d. Juiz Federal Marcelo Velasco Nascimento Albernaz, da 1ª Vara da Seção Judiciária de Tocantins, que absolveu Núbia Waléria Martins Cardoso, Ednéa Alves de Castro, Silas Alves Pereira, Vicente Santana Sampaio, Evelyse Fonseca Leite, Adagsmar de Araújo Martins, Ricardo da Silva Carreira e Davison Pereira dos Santos da imputação dos delitos previstos na Lei nº 8.666/1993, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.

Tal qual o Magistrado Relator, entendo que o conjunto probatório carreado aos autos é insuficiente para imposição do decreto condenatório, uma vez que não se desincumbiu a Acusação de comprovar, indene de dúvidas, o dolo específico, além do fato de ter havido a execução dos ob-jetos contratados sem impugnação das empresas perdedoras quanto à lisura do certame, indicando a impossibilidade de ter havido qualquer fraude no procedimento.

Ante o exposto, acompanhando o entendimento do Relator, nego provimento à apelação e mantenho, na íntegra, a sentença.

É como voto.

trIbunAl reGIonAl FederAl dA 1ª reGIão secretArIA JudIcIárIA

68ª Sessão Ordinária do(a) Terceira Turma

Pauta de: Julgado em: 04.12.2013

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Ap 2006.43.00.000202-0/TO

Relator: Exmo. Sr. Juiz Federal Klaus Kuschel (Conv.)

Juiz(a) Convocado(a) conforme Ato nº 1.574 – 22.11.2013

Revisor: Exmo (a). Sr(a). Desembargador Federal Cândido Ribeiro

Presidente da Sessão: Exmo(a). Sr(a). Desembargador Federal Candido Ribeiro

Proc. Reg. da República: Exmo(a). Sr(a). Dr(a). Aldenor Moreira de Sousa

Secretário(a): Cláudia Mônica Ferreira

Apte.: Justiça Pública

Procur.: Victor Manoel Mariz

Apdo.: Ednea Alves de Castro

Adv.: Altamiro de Araujo Lima Fo

Apdo.: Vicente Santana Sampaio

Apdo.: Silas Alves Pereira

Apdo.: Adagsmar de Araujo Martins

Adv.: Marcela Juliana Fregonesi

Apdo.: Evelyse Fonseca Leite

Adv.: Fabio Alves dos Santos

Apdo.: Edson Cabral de Oliveira

Adv.: Angelino Madeira

Nº de Origem: 2020320064014300 Vara: 1ª

Justiça de Origem: Justiça Federal Estado/Com.: TO

sustentAção orAl certIdão

Certifico que a(o) egrégia (o) Terceira Turma, ao apreciar o processo em epígrafe, em Sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, à unanimidade, negou provimento à Apelação, nos termos do voto do Relator.

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Participaram do Julgamento os Exmos. Srs. Desembargador Federal Cândido Ribeiro e Juiz Federal Miguel Ângelo Alvarenga Lopes (convocado para completar, como vogal, o quorum de julgamento em face da ausência justificada da Exma. Sra. Desembargadora Federal Mônica Sifuentes).

Brasília, 4 de dezembro de 2013.

Cláudia Mônica Ferreira Secretário(a)

Parte Geral – Jurisprudência

6812

Tribunal Regional Federal da 2ª RegiãoV – Apelação Criminal nº 11090 2002.51.04.000766‑8Nº CNJ: 0000766‑07.2002.4.02.5104Relator: Desembargador Federal Marcelo Pereira da SilvaApelante: José Carlos GuimarãesAdvogado: Alfredo José de Godói Macedo e outrosApelante: Celso de AlmeidaAdvogado: Alfredo José de Godoi Macedo e outrosApelado: Ministério Público FederalOrigem: Terceira Vara Federal de Volta Redonda (200251040007668)

eMentA

PENAL – APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA – SONEGAÇÃO PREVIDENCIÁRIA – ART. 168-A, § 1º, I, DO CP – PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA RETROATIVA – OCORRÊNCIA – EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

I – Nos termos do §1º do art. 110 do Código Penal, opera-se a prescrição da pretensão punitiva na modalidade retroativa quando entre as datas do recebimento da denúncia e da publicação da sentença condenatória houver transcorrido lapso temporal superior ao prazo prescricional calculado com base na pena aplicada na sentença não objeto de recurso por parte da acusação.

II- Declarada a extinção da punibilidade dos réus, reconhecendo-se a prescrição pela pena aplicada. Prejudicado o exame as demais questões do mérito recursal.

Acórdão

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas: Acordam os membros da 2ª Turma Especializada do Tribunal Regional Fe-deral da 2ª Região, por unanimidade, em conhecer do recurso e lhe dar parcial provimento, para declarar extinta punibilidade dos réus, restando prejudicada a análise das demais questões meritórias, na forma do voto do Relator.

Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2013.

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Marcelo Pereira da Silva Desembargador Federal

relAtórIo

Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Públi-co Federal (fls. 44-54) contra a decisão proferida pelo MM Juízo da 1ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro (fls. 30-43) nos autos do procedimento criminal com denúncia oferecida em desfavor de Antonio Soares de Souza e Ivan Clerton Fernandes França, que, entendendo tratar--se de hipótese de contravenção de jogo de azar, declarou a incompetência da Justiça Federal para conhecer, processar e julgar o feito, declinando da competência em favor de um dos Juízos Criminais competentes no âmbito da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Em apenso aos presentes autos o IPL 095/2009-DELEFAZ/SR/DPF/RJ (Processo nº 2009.51.01.802779-0).

Segundo a denúncia (fls. 02-08), nos dias 24 de março de 2008, 16 de setembro de 2008, 07 de janeiro de 2009 e 22 de janeiro de 2009, policiais civis e militares efetuaram ações operacionais de repressão ao contraban-do e descaminho no estabelecimento comercial Café e Bar Planalto Ltda.ME, do qual os denunciados são sócios e administradores, situado na Rua Voluntários da Pátria, nº 420, loja A, em Botafogo, nesta cidade, onde foram encontradas e apreendidas, respectivamente:

a) em 24.03.2008, 02 (duas) máquinas eletrônicas programáveis – MEPs, com duas placas-mães e dois noteiros, que disponibili-zavam o jogo identificado como “Copa 98 II”;

b) em 16.09.2008, 03 (três) máquinas eletrônicas programáveis – MEPs, com três placas-mães, três noteiros e R$ 22,00 (vinte e dois reais) em seu interior, que disponibilizavam o jogo identifi-cado como “Halloween”;

c) em 07-01-2009, 03 (três) máquinas eletrônicas programáveis – MEPs, com três placas-mães e três noteiros, que disponibi-lizavam o jogo identificado como “Multi Games”; e, por fim, d) em 22-01-2009, 03 (três) máquinas eletrônicas programáveis – MEPs, com três placas-mães, três noteiros e R$ 309,00 (trezen-tos e nove reais) em seu interior.

Aduziu o órgão acusatório que os laudos do Núcleo de Criminalística da Polícia Federal, referentes a máquinas idênticas às que foram apreen-

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didas (Copa 98 II, Halloween e Multi Game) identificaram as inscrições “made in Taiwan” e “made in China” nos componentes eletrônicos (fls. 99-104 do IPL), e que a informação da Associação Brasileira da Indústria Elétri-ca e Eletrônica (ABINEE) dá conta de que processadores e chips de memória para placas-mães e noteiros não são produzidos no território nacional, evi-denciando, portanto, a procedência estrangeira do material apreendido com os denunciados, cuja conduta incorre nas penas do art. 334, § 1º, alíneas c e d do Código Penal, por atuarem de forma livre e consciente ao utilizar em proveito próprio, no exercício de atividade comercial, mercadorias de procedência estrangeira, do qual sabem ser de introdução clandestina no território nacional.

Informou, ainda, a denúncia que, além dessas apreensões, houve outras duas ocorrências nos dias 23.10.2009 e 21.02.2011, quando foram encontradas e apreendidas naquele estabelecimento comercial, respectiva-mente, 03 (três) (fls. 91-93 do apenso I) e 04 (quatro) (fls. 149-152) MEPs, sendo que, em relação à ocorrência do dia 23.10.2009, deixou de oferecer denúncia em virtude da insuficiência das informações a respeito das MEPs, e quanto à do dia 21.02.2011, o primeiro acusado responde à ação penal nº 2011.51.01.801801-0 (fls. 143-152 do IPL).

Às fls. 30-43, decisão que declarou a incompetência da Justiça Fede-ral para conhecer, processar e julgar a pretensão ministerial, e declinou da competência em favor de um dos Juízos Criminais da Justiça Estadual do Rio de Janeiro.

Contra a decisão que declinou da competência, interpôs o Ministério Público Federal recurso em sentido estrito às fls. 44-54, ao qual, inicialmen-te, foi negado seguimento (fls. 57-60), o que foi posteriormente reconsidera-do pelo magistrado nos autos da Carta Testemunhável em apenso (processo nº 2012.51.01.029073-4), cuja decisão foi trasladada para estes autos às fls. 64-68, determinando o seguimento do recurso em sentido estrito e a sua remessa a esta Corte, para julgamento.

Em suas razões recursais (fls. 44-54), o Ministério Público Federal alegou, em síntese, não haver como se confundir o crime de contrabando com a contravenção de jogo de azar, vez que o objeto jurídico de um é a Administração Pública, e o do outro são os bons costumes, nem tampouco poder ser invocado o princípio da especialidade, vez que os componentes eletrônicos de origem estrangeira que entraram ilegalmente em território nacional formam a máquina eletrônica programável, cuja utilização tam-bém é proibida, e na medida em que essa utilização se dá no âmbito de um

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comércio, ainda que informal, não há como afastar o tipo penal de con-trabando, asseverando, por fim, que os tribunais superiores, incluindo esta Corte, firmaram pela competência da Justiça Federal para processamento e julgamento de exploração comercial de MEPs.

Em contrarrazões, as defesas de Antonio Soares de Souza (fls. 115-124) e de Ivan Clerton Fernandes França (fls. 126-133), este último assistido pela Defensoria Pública da União, pugnaram, em síntese, pelo não acolhi-mento da tese ministerial e a manutenção da decisão ora recorrida.

O Ministério Público Federal, em parecer de fls. 74-111 e 138-139, opinou pelo provimento do recurso interposto, com o consequente recebi-mento da denúncia e prosseguimento do feito.

É o relatório. Peço dia para julgamento.

Marcelo Pereira da Silva Desembargador Federal

Voto

Consoante relatado, cuida-se de recurso em sentido estrito interposto contra a decisão proferida pelo MM Juízo da 1ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro nos autos do procedimento criminal com denúncia oferecida em desfavor de Antonio Soares de Souza e Ivan Clerton Fernandes França, que, entendendo tratar-se de hipótese de contravenção de jogo de azar, declarou a incompetência da Justiça Federal para conhe-cer, processar e julgar o feito, declinando da competência em favor de um dos Juízos Criminais competentes no âmbito da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Para tanto, entendeu o Magistrado de Primeiro Grau que a conduta descrita seria enquadrada na contravenção penal de exploração de jogo de azar, prevista no art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941, ou no crime contra a economia popular previsto no art. 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951, argumen-tando, outrossim, que os componentes de internalização proibida no Brasil constituiriam apenas partes da máquinas caça-níqueis apreendidas e que, por isso, a atitude de contrabandeá-los seria apenas conduta-meio para o fim de exploração de jogos de azar ou crime contra a economia popular, aplicando-se o princípio da consunção. Ressaltou que, ainda que assim não o fosse, não seria possível presumir a ciência da procedência estrangeira das mercadorias por parte dos autuados, registrando que a exploração de MEPs em bares não constituiria exercício de atividade comercial.

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O recurso deve ser provido, pois há nos autos diversos elementos indicativos de que os denunciados teriam perpetrado o crime tipificado no art. 334, 1º, alíneas c e d, do Código Penal, em especial, laudo de exame de material e o autos de apreensão acostados aos autos apenso, sendo certo que a jurisprudência deste Tribunal encontra-se consolidada no sentido de considerar como típica a conduta de manter em estabelecimento comercial máquinas caça-níqueis, cujos componentes notoriamente possuem origem estrangeira (placa-mãe, noteiros e fontes), desacompanhados de documen-tação legal.

Por sua vez, o entendimento adotado pelo MM Juízo a quo no senti-do de que a importação/utilização irregular dos componentes de máquinas caçaníqueis nada mais seria do que um ante factum impunível viabilizador da prática de exploração de jogos de azar igualmente não prospera, a uma porque os bens jurídicos tutelados são distintos (Administração Pública e bons costumes, respectivamente), a duas porque o delito de contrabando possui maior potencial ofensivo, não podendo ser absorvido pela citada contravenção penal. Neste exato sentido:

“CARTA TESTEMUNHÁVEL – DECLÍNIO COMPETÊNCIA – ART. 581, II, DO CPP – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – CONTRABANDO – CONFIGU-RAÇÃO – PROVIMENTO – 1. Ante o disposto no inciso II do art. 581 do CPP, não há dúvidas de que a situação em tela é apta a ensejar o manejo do recur-so em sentido estrito, vez que a decisão de declínio de competência é uma das hipóteses de cabimento de sua interposição existentes no rol taxativo do referido dispositivo. 2. O julgamento do recurso em sentido estrito não impe-diria que a Justiça Estadual suscitasse um eventual conflito negativo de com-petência posteriormente, pois o art. 105, I, d, da Constituição Federal, dispõe que o STJ também é competente para julgar os conflitos de competência en-tre tribunal e juízes a ele não vinculados. 3. A jurisprudência deste Tribunal é pacífica no sentido de considerar como típica a conduta de explorar, em estabelecimentos comerciais, para proveito próprio ou alheio, as MEPs, que são notoriamente de origem estrangeira. 4. Incabível na hipótese a aplicação do princípio da consunção. O delito de contrabando possui maior potencial ofensivo que a contravenção penal de jogo de azar, não podendo servir de meio para a sua prática. Resta configurada a possível prática do delito de contrabando e a consequente competência federal para o processamento e julgamento do feito. 5. Carta testemunhável provida. Recurso em sentido estrito provido para fixar a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito originário, devendo o Juízo a quo analisar a admissibilidade da denúncia.

(TRF 2ª R., 2ª T., Carta Testemunhável 52, Relª Desª Fed. Liliane Roriz, DJ 15.10.2012, p. 9/10)”

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Por fim, quanto à invocada inexistência de elemento subjetivo do tipo, cabe registrar que, esta Turma, revendo julgados anteriores, passou a adotar o posicionamento de que, a princípio, não se revela crível que um comerciante experiente receba em seu estabelecimento máquina eletroni-camente programada, desprovida de qualquer documentação fiscal, sem que tenha ciência da clandestinidade de sua origem, não sendo o caso, por-tanto, de se afastar, de plano, o dolo do acusado (ACr 200950010021503, Relª Desª Fed. Liliane Roriz, DJ 29.06.2012, p. 91; ACr 200950010155337, Rel. Des. Fed. Messod Azulay Neto, DJ 10.04.2012, p. 21/22).

A este respeito, recente julgado do Colendo Superior Tribunal de Jus-tiça:

“RECURSO ESPECIAL – PENAL E PROCESSO PENAL – CRIME DE CONTRA-BANDO – INÉPCIA DA DENÚNCIA – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – FALTA DE JUSTA CAUSA NÃO EVIDENCIADA DE PLANO – INEXISTÊNCIA DE DOLO – IMPOSSIBILIDADE DE AFERIÇÃO SEM A ADEQUADA INS-TRUÇÃO CRIMINAL – RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO

1. O trancamento da ação penal é medida de exceção, admissível somente quando emerge dos autos, sem a necessidade de exame valorativo do con-junto fático ou probatório, a existência de fato penalmente atípico, a inexis-tência de qualquer elemento indiciário demonstrativo de autoria do delito ou, ainda, a extinção da punibilidade.

2. A controvérsia sobre a existência do elemento subjetivo do delito não tem o condão de impedir a persecução penal mediante a instauração do devido processo-crime, com a observância dos postulados decorrentes da ampla de-fesa, do contraditório e do devido processo legal.

3. No caso, a inicial acusatória narra fatos que descrevem conduta passível de ser imputada ao Acusado e que se amolda, em tese, ao tipo penal de contra-bando; sendo certo que atende aos requisitos elencados no art. 41 do Código de Processo Penal, o que é suficiente para a deflagração da persecução penal.

4. Mostra-se descabido o afastamento do dolo do agente, de forma apriorísti-ca, sem instrução probatória realizada no bojo da devida ação penal, quando houver controvérsia quanto ao conhecimento, pelo Acusado, da procedên-cia estrangeira das máquinas e de seus componentes, apreendidos em seu estabelecimento comercial.

5. Recurso especial conhecido e desprovido. (STJ, 5ª T., REsp 1200377/RJ, Relª Min. Laurita Vaz, DJ 26.09.2012)

Do exposto, dou provimento ao recurso em sentido estrito, para fixar a competência da Justiça Federal para julgar e processar o feito, nos termos da fundamentação supra.

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Decorrido o prazo recursal, remetam-se os autos ao Juízo de origem.

É como voto.

Marcelo Pereira da Silva Desembargador Federal

Parte Geral – Jurisprudência

6813

Tribunal Regional Federal da 3ª RegiãoHabeas Corpus nº 0027085‑82.2013.4.03.0000/SP2013.03.00.027085‑8/SPRelator: Desembargador Federal José LunardelliImpetrante: Marcilio e Paula Bomfim

Douglas Miguel Bento Maycon Cezar Oliveira Rocha

Paciente: Marcos David Barbosa VieiraAdvogado: MG062111 Marcilio de Paula Bomfim e outroImpetrado: Juízo Federal da 5ª Vara de Santos > 4ª SSJ > SPInvestigado: Marcio de Souza e Silva

Vicente de Paula Vieira Rodrigo Bueno de Campos Moises Maia Nogueira Sergio Teixeira Carvalho Bras Edmilson Clementino da Silva

Nº Orig.: 00079259220134036104 5ª Vr Santos/SP

eMentA

HABEAS CORPUS – ART. 288 DO CÓDIGO PENAL E ART. 18 DA LEI Nº 10.826/2003 – PRISÃO PREVENTIVA – DECISÃO FUNDAMENTADA – PRESENTES OS REQUISITOS AUTO- RIZADORES DA PRISÃO CAUTELAR – ORDEM DENEGADA

1. O paciente foi preso pela suposta prática de formação de qua-drilha e tráfico internacional de armas descrito no art. 18 da Lei nº 10.826/2003.

2. A custódia cautelar do paciente veio devidamente fundamenta-da em elementos concretos de convicção quanto à materialidade do crime, calcada ainda nos indícios de autoria.

3. Conforme apurado, a quadrilha se presta a traficar armas de uso restrito do território norte-americano para o Brasil. Seu aparato visa, precipuamente, a fornecer armamento ao tráfico no Rio de Janeiro. Foi descoberta com base em percuciente investigação le-vada a cabo pela Polícia Federal. As armas e munições eram acon-dicionadas dentro de containers que aportavam no Porto de San-tos, ocultas no interior de colchões, colocados junto a mudanças

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de famílias que passariam a residir no Brasil. De Santos, as armas eram destinadas a Minas Gerais e, de lá, aos clientes da quadrilha.

4. As supostas condições favoráveis do paciente, bons anteceden-tes, residência fixa e trabalho lícito, não constituem circunstân-cias garantidoras da liberdade provisória, quando demonstrada a presença de outros elementos que justificam a medida constritiva excepcional (RHC 9.888, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 23.10.2000; HC 40.561/MG, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 20.06.2005, p. 314).

5. A nulidade aventada demanda análise aprofundada da prova coligida no procedimento investigatório, a fim de se constatar se uma prova é derivada de outra ou se possui existência indepen-dente, sendo inviável sua constatação na estreita via do habeas corpus.

6. Ausente o fumus boni iuris na pretensão deduzida, ante a exis-tência de indícios idôneos da autoria delitiva e da materialida-de do crime, além da necessidade da medida constritiva ter sido justificada em motivos concretos, a demonstrar o perigo à ordem publica e desaconselhar a concessão de liberdade provisória re-querida.

7. Ordem denegada.

Acórdão

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, denegar a ordem, nos termos do relatório e voto que fi-cam fazendo parte integrante do presente julgado.

São Paulo, 14 de janeiro de 2014.

Sidmar Martins Juiz Federal Convocado

relAtórIo

Excelentíssimo Senhor Juiz Federal Convocado Sidmar Martins:

Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado em fa-vor de Marcos David Barbosa Vieira, contra ato do MM. Juiz Federal da 5ª

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Vara Criminal da Subseção Judiciária de Santos/SP, objetivando a liberdade provisória em autos que apuram a suposta prática dos delitos de forma-ção de quadrilha e tráfico internacional de armas descrito no art. 18 da Lei nº 10.826/2003.

Sustenta o impetrante a ilegalidade da prisão cautelar, em razão da ausência dos requisitos que autorizam a prisão preventiva.

A prisão preventiva foi cumprida em 04.09.2013, tendo sido indicia-do nos autos de Inquérito Policial já findo, pela prática dos delitos mencio-nados, mas até o momento sequer foi denunciado.

Alega que não há qualquer indício de autoria, nada que o ligue à qua-drilha, somente o depoimento testemunhal realizado em prova emprestada realizada em confronto com disposições legais, à qual esteve ausente auto-ridade competente (Delegado de Polícia), nos termos do art. 4º do Código de Processo Penal.

A pretendida liminar foi indeferida (fls. 758/760).

Requisitadas, vieram aos autos informações prestadas pela autoridade impetrada, com a documentação correlata (fls. 762/814).

Às fls. 817/822 os impetrantes requereram a reconsideração da de-cisão que indeferiu a liminar, bem como a juntada dos documentos de fls. 823/934.

Parecer da Procuradoria Regional da República pela denegação da ordem (fls. 936/977).

É o relatório.

Sidmar Martins Juiz Federal Convocado

Voto

Excelentíssimo Senhor Juiz Federal Convocado Sidmar Martins:

A impetração não prospera.

O paciente foi preso em cumprimento a mandado judicial pela prática dos delitos descritos no art. 288 do Código Penal e art. 18 da Lei nº 10.826/2003, sob o argumento fático de que pertenceria a uma quadrilha internacional de tráfico de armas.

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A decretação da prisão preventiva foi lastreada na existência de indí-cios suficientes de autoria e na necessidade de se garantir a ordem pública (fls. 128/132), o que também serviu a embasar a negação ao pedido de revogação da prisão.

Bem fundamentou o MM. Juiz a necessidade da prisão cautelar do paciente, para garantir a ordem publica, ao frisar que (fls. 713/716):

“O Inquérito Policial nº 270/2012 foi instaurado em 02.03.2012, em razão da apreensão de carregamento de fuzis no Porto de Santos/SP, o que foi possível porque a Polícia Federal recebeu informações de um colaborador (informante). A partir de tal fato, empreenderam-se diligências, que culminou com identificação da quadrilha, formada pelos ora investigados, restando também desvendado o modus operandi do grupo. De acordo com o apu-rado, passo a identificar a conduta de cada um dos investigados dentro da organização. Vicente de Paula Vieira, vulgo Paulinho Honorato, é o líder do grupo, e atua financiando a aquisição de fuzis no território americano, juntamente com seu filho, Marcos David Barbosa Vieira, vulgo Lulu. Vicente mantém, em Fort Lauderdale, no estado da Flórida, uma baia alugada desti-nada ao recebimento das armas a serem contrabandeadas ao Brasil. Moises Maia Nogueira e Sérgio Carvalho seriam os responsáveis pela aquisição das armas no território americano, as quais são enviadas ao Brasil acondiciona-das dentro de colchões que estão em vias de serem remetidos com a mudan-ça de brasileiros residentes no exterior. Após o desembaraço aduaneiro, os colchões são abertos e deles retiradas as armas, que são enviadas ao muni-cípio de Engenheiro Caldas/MG, para, a seguir, serem comercializadas com milícias e traficantes do Rio de Janeiro/RJ, através de Márcio de Souza, vulgo Márcio Carioca. Brás Edmilson Clementino da Silva, por sua vez, tendo em vista que é funileiro, atua na construção de fundos falsos de caminhões, utili-zados para acondicionar as armas a serem transportadas de estado de Minhas Gerais para o Rio de Janeiro. Rodrigo Bueno Campos, reside em Governador Valadares/MG, e atua comercializando as armas contrabandeadas de calibre restrito junto a Vicente de Paula Vieira. Sobre indícios de autoria, as condu-tas delitivas vêm satisfatoriamente descritas e individualizadas na representa-ção da Autoridade Policial. Indo adiante, para a caracterização do periculum in mora, o fator determinante não é o tempo, mas sim a situação de perigo revelada pelas condutas do agente supostamente criminoso, a demonstrar ser contumaz na violação do ordenamento jurídico criminal.No caso dos autos, há indícios suficientes de que os investigados, em face de quem se requer seja decretada a prisão, vêm reiteradamente colocando em risco a garantia da ordem pública, pois, traficam armas de uso restrito do território americano para o Brasil, de forma recorrente, haja vista a apreensão ocorrida no Porto de Santos, as apreensões realizadas no Rio de Janeiro, conforme fls. 527/531 dos autos do IPL 270/2012, e ainda, a notícia de que foram ex-pedidos mandados de prisão contra Moises Maya e Sérgio Carvalho pelas au-

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toridades americanas, que também investigam tráfico de armas lá praticado. Outrossim, não se pode olvidar que foram interceptadas diversas conversas em que os investigados mencionaram que estariam preparados para um con-fronto armado, o que denota o alto grau de organização dos envolvidos nos delitos objeto do presente feito.”

A custódia cautelar do paciente veio devidamente fundamentada em elementos concretos de convicção quanto à materialidade do crime, calca-da ainda nos indícios de autoria, o que aflorou dos elementos probatórios colhidos nos autos de investigação.

Consoante se expôs, a prisão se revelou necessária com base em da-dos concretos colhidos no inquérito policial, não se tratando de meras ila-ções amparadas na gravidade do ocorrido.

O Juízo impetrado também ressaltou, ao fundamentar a necessidade da custódia cautelar na necessidade de se resguardar a ordem pública, que a quadrilha armada se mostra preparada para qualquer confronto, como captado através de interceptações telefônicas judicialmente autorizadas:

“Argumentos como ‘não ter antecedentes’ (se bem que os documentos de fls. 95/105 e 183/188 demonstram que ambos possuem persecuções crimi-nais pretéritas) ou ‘possuir família’, assim como ‘terem ocupação lícita’ são laterais diante dos indícios robustos que os ligam ao universo criminoso do tráfico de armas, porque o que sustenta e lastreia o aprisionamento cautelar dos investigados não é a existência de antecedentes, a ausência de famí-lia, ou argumentos congêneres, mas a existência de risco concreto à ordem pública. Isto é: lida-se com grupo articulado, organizado, perigoso – com difusão em outros Estados da Federação, como Rio de Janeiro e Minas Ge-rais, além de braços nos Estados Unidos da América – e capaz de afetar a paz pública e a tranquilidade social. A custódia cautelar não foi um arroubo, mas a medida processualmente adequada e indicada para paralisar a altivez, a ousadia e a mecânica da quadrilha, a demonstrar, por diversos elementos, sua periculosidade social concreta.”

A quadrilha se presta a traficar armas de uso restrito do território norte-americano para o Brasil. Seu aparato visa, precipuamente, a fornecer armamento ao tráfico no Rio de Janeiro. Foi descoberta com base em percu-ciente investigação levada a cabo pela Polícia Federal. As armas e munições eram acondicionadas dentro de containers que aportavam no Porto de San-tos, ocultas no interior de colchões, colocados junto a mudanças de famílias que passariam a residir no Brasil. De Santos, as armas eram destinadas a Minas Gerais e, de lá, aos clientes da quadrilha.

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Esclareça-se, ainda, que as supostas condições favoráveis, como bons antecedentes, residência fixa, não constituem circunstâncias garantidoras da liberdade provisória, quando demonstrada a presença de outros elemen-tos que justificam a medida constritiva excepcional (RHC 9.888, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 23.10.2000; HC 40.561/MG, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 20.06.2005, p. 314).

É alegada nulidade nos autos do inquérito policial ante a utilização de suposta prova emprestada, que não teria sido autorizada pelo juiz com-petente, consistente no depoimento do nacional Moisés Maia Nogueira pe-rante a polícia norte-americana, em cuja colheita são levantadas irregulari-dades, como ausência de Autoridade Policial. Ao argumento de que todas as demais provas seriam derivadas desta, eivada de nulidade, pede-se o relaxamento da prisão do paciente.

A tese demanda análise aprofundada da prova coligida no procedi-mento investigatório, a fim de se constatar se uma prova é derivada de outra ou se possui existência independente, sendo inviável sua constatação na estreita via do habeas corpus.

Ademais, como bem ponderou o douto representante do Parquet Fe-deral:

“Aliás, como dito acima, o que importa, é a confiabilidade da prova e o re-sultado justo do processo, sendo que o acusado poderá contraditar, em juízo, a versão apresentada na fase pré-processual, sendo que, à luz do art. 155 do CPP, por se tratar de prova repetível, essa deve ser reproduzida em juízo, com amplo direito à negação dos termos formulados na denúncia e verificação de seu valor na sentença, sendo que, com o fim do tarifamento da prova, sua avaliação é feita sob o pálio do livre convencimento motivado. Até mesmo a confissão não é tomada em termos absolutos, podendo ser desacreditada com outros elementos de provas constantes dos autos. [...]” (fl. 969)

Assim, entendo ausente o fumus boni iuris na pretensão deduzida, ante a existência de indícios idôneos da autoria delitiva e da materialidade do crime, além da necessidade da medida constritiva ter sido justificada em motivos concretos, a demonstrar o perigo à ordem publica e desaconselhar a concessão de liberdade provisória requerida.

Com tais considerações, denego a ordem.

É o voto.

Sidmar Martins Juiz Federal Convocado

Parte Geral – Jurisprudência

6814

Tribunal Regional Federal da 4ª RegiãoApelação Criminal nº 0001401‑65.2009.404.7115/RSRelator: Des. Fed. Márcio Antonio RochaApelante: Ivone Antunes DornelesAdvogado: Defensoria Pública da UniãoApelado: Ministério Público Federal

eMentA

PENAL – ESTELIONATO CONTRA A PREVIDÊNCIA SOCIAL – ESTADO DE NECESSIDADE – ERRO DE PROIBIÇÃO – NÃO CONFIGURAÇÃO

Dificuldades financeiras não são justificativa para o reconhecimento do estado de necessidade, pois devem ser solucionadas por meio de atividades lícitas, não sendo razoável a opção pelo crime como forma de solvê-las.

Não configura o erro de proibição quando do conjunto probatório extrai-se a conclusão de que o réu era pessoa plenamente capaz de entender a ilicitude dos seus atos.

Acórdão

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Porto Alegre, 28 de janeiro de 2014.

Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior Relator

relAtórIo

Cuida-se de ação penal movida pelo Ministério Público Federal em face de Ivone Antunes Dornelles pela suposta prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal.

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������189

A denúncia, recebida em 01.02.2010 (fl. 179), assim narrou os fatos (fls. 176-177):

“No período compreendido entre 05.12.2006 e 04.05.2007, a denunciada obteve, para si, vantagem ilícita, em detrimento do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), consistente no saque dos valores depositados a títu-lo de benefício de aposentadoria por invalidez (NB 110.694.273-3), cujo titular, Oracil Antunes Dorneles (irmão da denunciada), já havia falecido em 16.11.2006 (cf. Ficha de Internação e Anamnese do Paciente de fl. 14), induzindo em erro a autarquia previdenciária.

Conforme relatado pela Previdência Social, a irregularidade referida foi cons-tatada pela APS de Porto Alegre (RS), ocorrendo o recebimento indevido na competência acima mencionada, causando ao INSS o prejuízo total de R$ 4.693,68 (quatro mil, seiscentos e noventa e três reais, sessenta e oito centavos) (cf. histórico de créditos de fl. 137).

Os saques ocorreram em casa lotérica localizada no município de Três Pas-sos (RS), conforme informou a agência da Caixa Econômica Federal de Via-mão (fl. 159).”

Instruídos os autos, foi proferida sentença, publicada em 27.05.2013 (fl. 368), julgando procedente a denúncia para condenar Ivone Antunes Dorneles nas sanções do art. 171, §3º, do Código Penal, à pena privati-va de liberdade de 01 ano e 04 meses de reclusão, e à pena de multa de 10 dias-multa, sendo o valor do dia-multa fixado em 1/30 do salário míni-mo vigente em janeiro de 2007, devidamente corrigido quando do efetivo pagamento. Foi determinada a substituição da pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos consistentes em prestação de servi-ços à comunidade e prestação pecuniária no valor de 01 salário mínimo (fls. 361-368).

Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação. Em suas razões, ale-gou, em síntese, que não detinha conhecimento sobre a irregularidade dos saques do benefício previdenciário ocorridos após o óbito do beneficiário, tendo agido de boa-fé, a fim de custear o enterro de seu falecido irmão (fls. 374-377).

Foram apresentadas contrarrazões pelo MPF (fls. 379-384).

É o relatório.

À revisão.

190 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

Voto

MÉRITO

A sentença, da lavra do MM. Juiz Federal, Dr. Rafael Lago Salapata, examinou e decidiu com precisão todos os pontos relevantes, devolvidos à apreciação do Tribunal. As questões suscitadas no recurso não têm o con-dão de ilidir os fundamentos da decisão recorrida. Evidenciando-se a des-necessidade da construção de nova fundamentação jurídica, destinada à confirmação da bem lançada sentença, transcrevo e adoto como razões de decidir os seus fundamentos, in verbis (fls. 361-366):

[...]

Materialidade

A materialidade do crime encontra-se sobejamente comprovada pelos se-guintes documentos:

a) ficha de Internação e Anamnese do Paciente, que comprova o óbito do titular do benefício (fl. 14);

b) histórico de créditos (fl. 137);

c) termo de declarações prestadas pela denunciada à Polícia Civil (fls. 117/118).

Os demonstrativos de créditos elaborados pelo INSS demonstram que, mesmo após a morte do segurado Oracil Antunes Dorneles, ocorrida em 16.11.2006, foram efetuados saques dos depósitos vinculados ao benefício de aposentadoria por invalidez do mesmo, precisamente, de janeiro a maio de 2007.

De fato, tais elementos materiais evidenciam que, após o óbito do segurado, foram realizados saques indevidos de valores que, por erro do INSS, continua- vam sendo disponibilizados, mensalmente, em conta corrente mantida na agência da Caixa Econômica Federal, na cidade de Viamão, em nome do fa-lecido. A vantagem indevida causou ao Instituto Previdenciário um prejuízo correspondente a R$ 4.693,68 (quatro mil, seiscentos e noventa e três reais e sessenta e oito centavos), conforme histórico de créditos da fl. 167.

Autoria

A autoria, por sua vez, também restou suficientemente demonstrada, malgra-do negada pela acusada.

Em seu interrogatório em Juízo (fl. 319), a ré declarou não ter feito nenhum saque, nunca tendo ficado de posse do cartão de benefício. Também de-clarou desconhecer quem efetivamente teria efetuado os saques irregulares.

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA ��������������������������������������������������������������������������������������������������������191

Entretanto, em depoimento prestado perante a Delegacia de Polícia Civil de Campo Novo/RS (fl. 117), em 04.09.2008, a ré declarou que se encontrava na posse do cartão de benefício do falecido Oracil Antunes Dorneles, bem como, que “sacou por dois meses após a morte de seu irmão o benefício, pois a declarante não tinha dinheiro para poder pagar o enterro.”

Por sua vez, a testemunha Alessandra Engler Rodrigues, filha da ex-esposa do de cujus Oracil Antunes Dorneles, prestou o seguinte depoimento em Juízo (fls. 296/301):

“[...] Juíza: O Oracil é essa pessoa que você está se referindo, e que fa-leceu?

Testemunha: Sim, ele foi meu padrasto. [...]

Juíza: Alguém estava recebendo esse benefício?

Testemunha: Depois eu não soube mais.

Juíza: A sua mãe nunca recebeu?

Testemunha: Não, dele a minha mãe nunca recebeu nada, porque esse cartão e todas as coisas dele estavam com a Ivone.

Juíza: Na polícia a senhora refere que o benefício estava sendo recebido da Ivone?

Testemunha: Na época, isso faz um tempo já.

Juíza: Quem lhe disse que a Ivone recebia o benefício?

Testemunha: Porque a minha mãe antes de morrer, conversava com ela, ela falou. [...]”

Com base no exposto, em especial, o depoimento junto à Polícia Civil (fl. 117), constata-se que a ré efetivamente detinha a posse do cartão de benefício do de cujus, e efetuou os saques irregulares, objeto da presente demanda.

Ademais, a confissão operada em sede policial veio acompanhada de ele-mentos seguros de convicção, especialmente a justificativa prestada pela ré para os saques indevidos – segundo ela, realizou os saques devido à necessi-dade de pagar as despesas funerárias de Oracil Antunes Dorneles.

De outra parte, não merece prosperar a tese defensiva de que a acusada não detinha conhecimento da irregularidade dos saques. Conforme relatado em seu interrogatório em Juízo, declarou que deixou de proceder às diligências para fins de registro de óbito do beneficiário, por não possuir dinheiro na época. Nessa esteira, detinha conhecimento que o benefício passou a ser irregular após o falecimento do beneficiário, e que só não fora cancelado em razão de a Autarquia Previdenciária não ter tomado conhecimento do óbito.

192 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

Diante do panorama probatório, portanto, deve-se dar credibilidade à versão do Ministério Público Federal, porquanto sustentada em provas concretas trazidas aos autos, de forma clara e coerente. Por seu turno, a ré não apresen-tou prova alguma que afastasse as afirmações do Ministério Público Federal.

Logo, restou demonstrado que a acusada possuía consciência da ilicitude de sua conduta e, não obstante, cometeu livremente o delito, recebendo a vantagem indevida em seu favor.

Portanto, provadas a materialidade e a autoria delitiva, e não havendo causa que exclua o crime ou isente o réu de pena, impõe-se a condenação nas sanções previstas no art. 171, § 3º, do Código Penal.

Em relação à autoria e o dolo da acusada, cumpre destacar o depoimento de José Luiz Dorneles, irmão da acusada, que, em sede policial, confirmou que Ivone estava percebendo o benefício previdenciário de Oracil Antunes Dorneles. Veja-se (fl. 101):

[...] que quando Oracil morreu sua irmã, Ivone Antunes Dorneles, ficou com o Cartão de Benefício de Oracil, e tinha a senha, e parece que recebeu cerca de 02 (dois) ou 03 (três) meses; [...] que achava que sua irmã tinha direito a receber por cerca de três meses para pagar as contas do funeral do irmão [...]

Ademais, anoto que o saque dos valores do benefício percebido por Oracil, realizado não em duas, mas em seis oportunidades, vem a afastar a tese de que a acusada necessitava de dinheiro para custear apenas as despe-sas com o funeral. Por outro lado, friso que dificuldades financeiras não são justificativa para o reconhecimento do estado de necessidade, pois devem ser solucionadas por meio de atividades lícitas, não sendo razoável a opção pelo crime como forma de solvê-las.

De igual forma, não merece guarida a tese de desconhecimento de ilegalidade de sua conduta. A própria ré, quando interrogada em juízo (fl. 366), revelou que deixou de proceder às diligências para fins de registro de óbito do beneficiário, por não possuir dinheiro na época, o que denota a sua capacidade de compreensão da ilicitude de sua conduta.

Portanto, a alegação de desconhecimento da ilicitude do fato, de ter agido de boa-fé, não está amparada em alegação plausível ou em prova que leve a concluir pela sua configuração.

PENA

A defesa da acusada não se insurgiu quanto à dosimetria das penas, e, não havendo motivos para alterá-las de ofício, mantenho a pena privativa de liberdade e a pena de multa como fixadas na sentença, em 1 (um) ano e

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4 (quatro) meses de reclusão, em regime aberto, substituída por duas restri-tivas de direitos, e em 10 (dez) dias-multa, sendo cada dia-multa fixado em 1/30 (um trigésimo) do salário-mínimo vigente em janeiro de 2007.

DISPOSITIVO

Ante o exposto, voto por negar provimento à apelação.

Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior Relator

eXtrAto de AtA dA sessão de 28.01.2014

Apelação Criminal nº 0001401-65.2009.404.7115/RS

Origem: RS 200971150014012

Relator: Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior

Presidente: Des. Federal Sebastião Ogê Muniz

Procurador: Dr. Maurício Gotardo Gerum

Revisor: Juíza Federal Salise Monteiro Sanchotene

Apelante: Ivone Antunes Dorneles

Advogado: Defensoria Pública da União

Apelado: Ministério Público Federal

Certifico que este processo foi incluído na Pauta do dia 28.01.2014, na sequência 17, disponibilizada no DE de 13.01.2014, da qual foi intimado(a) o Ministério Público Federal. Certifico, também, que os autos foram enca-minhados ao revisor em 11.12.2013.

Certifico que o(a) 7ª Turma, ao apreciar os autos do processo em epí-grafe, em sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A turma, por unanimidade, decidiu negar provimento à apelação.

Relator Acórdão: Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior

Votante(s): Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior Juíza Federal Salise Monteiro Sanchotene Des. Federal Sebastião Ogê Muniz

Valéria Menin Berlato Diretora de Secretaria

Parte Geral – Jurisprudência

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Tribunal Regional Federal da 5ª RegiãoImpte.: Rafael da Silva Faria e outroImptdo.: Juízo da 13ª Vara Federal de Pernambuco (Recife) – Priv. Matéria Penal e Competente Exec. PenaisPacte.: Roberta Abissamara GomesOrigem: 13ª Vara Federal de Pernambuco (Privativa em Matéria Penal e Competente p/ Execuções Penais)Relator: Desembargador Federal Fernando Braga – Segunda Turma

eMentA

PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS – TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL – EXCEP- CIONALIDADE – MEDIDA CAUTELAR – PROIBIÇÃO DE AUSENTAR-SE DO PAÍS – RETENÇÃO DE PASSAPORTE – CONSTRANGIMENTO ILEGAL – INEXISTÊNCIA

1. Segundo a pacífica e iterativa jurisprudência do Supremo Tribu-nal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a extinção de ação pe-nal de forma prematura somente se dá em hipóteses excepcionais, quando (a) o fato narrado não configurar crime em tese; (b) ausen-tes indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas; ou (c) por qualquer causa, a punibilidade estiver extinta (STF: HC 115.701/PE, HC 112.957/SP; STJ: RHC 36.706/SP, RHC 28.827/MT)

2. A denúncia narra fato típico, há indícios de que a paciente é co-autora de mais de um delito de descaminho e a punibilidade não se encontra extinta pela prescrição virtual ou antecipada – que não foi albergada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Inteligência da Súmula nº 438 do STJ: É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal.

3. Os impetrantes não trouxeram prova pré-constituída de que o crédito tributário não se aperfeiçoou. A via estreita do habeas cor-pus não é adequada para a avaliação de matéria de prova.

4. A denúncia da ação penal foi recebida em 21.08.2006. A não localização da paciente, que está em local incerto e não sabido e foi citada por edital, é motivação bastante para a decretação de medida cautelar (art. 366 do Código de Processo Penal) que a proíbe de ausentar-se do país, com a retenção do passaporte, tanto

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pela conveniência da instrução criminal como para garantia da aplicação da lei penal. Há informação da Delegacia de Imigração da Polícia Federal de que, desde 2008, a paciente tem ingressado e saído do país.

5. O juízo informou que o passaporte da paciente foi apreendido no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, em 14.09.2013, e que o pedido de reconsideração da decisão será examinado em audiência para proposta de suspensão condicional do processo, em 03.10.2013.

6. Habeas corpus denegado.

Acórdão

Decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, por unanimidade, denegar a ordem, nos termos do voto do Relator, na forma do relatório e notas taquigráficas que passam a integrar o presente julgado.

Recife, 1º de outubro de 2013 (data do julgamento).

Desembargador Federal Fernando Braga Relator

relAtórIo

O Exmo. Desembargador Federal Fernando Braga (Relator): Vicente Ramos Donnici e Rafael da Silva Faria impetraram habeas corpus, com pe-dido de liminar, em favor de Roberta Abissamara Gomes, para trancar a ação penal nº 0017558-09.1998.4.05.8300, em trâmite na 13ª Vara da Se-ção Judiciária de Pernambuco (fls. 2/14). Com a inicial vieram os documen-tos de fls. 15/205.

Na ação penal (fls. 121/123), o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra a paciente, Roberta Carris Staiti e Rogério Benevides Silva, pela prática da conduta tipificada no art. 334, § 1º, c, do Código Penal. Conforme a inicial acusatória, em 2 e em 12 de setembro de 1998, agentes de Polícia Federal apreenderam nas empresas de transporte e armazenagem Transquadro Mudanças e Transporte Ltda. e Estrela Irmão e Cia., mercado-rias estrangeiras, desacompanhadas de documentação legal, pertencentes à paciente e aos outros dois denunciados.

196 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

Os impetrantes fundamentam-se em que: a) faltaria justa causa para a ação penal, por ausência de condição de procedibilidade, pois o débito tributário não foi apurado na instância administrativa fiscal, nos termos da Súmula nº 24 do Supremo Tribunal Federal; b) a punibilidade da paciente estaria extinta, pela ocorrência da prescrição virtual; e, c) a aplicação de medida cautelar (art. 319, IV, do CPP), que proíbe a acusada ausentar-se do território nacional, por conveniência da instrução criminal e para assegu-rar a aplicação da lei penal, com retenção do passaporte, estaria causando constrangimento ilegal à paciente.

A liminar foi indeferida (fls. 208/9).

Nas informações (fls. 213/217), a autoridade impetrada esclareceu que:

a) a denúncia da ação penal nº 0017558-09.1998.4.05.8300 foi recebida em 21.08.2006;

b) a paciente não foi localizada e, citada por edital, não compare-ceu em juízo nem constituiu advogado; em razão disso, o curso do processo e do prazo prescricional foi suspenso;

c) o processo foi desmembrado, recebendo o nº 0020231-18.2011.4.05.8300;

d) em 19.03.2013, foi deferida medida cautelar proibindo a pa-ciente de ausentar-se do Brasil, por conveniência da instrução criminal e para aplicação da lei penal; em 14.09.2013, o pas-saporte da paciente foi retido no aeroporto internacional do Rio de Janeiro, quando tentava embarcar para os Estados Unidos da América (EUA);

e) a ré pediu a reconsideração da decisão, que será examinada na audiência designada para 3/10/2013, ocasião em que será for-mulada proposta de suspensão condicional do processo.

Em parecer (fls. 221/2219), a Procuradoria Regional da República da 5ª Região opinou pela denegação da ordem.

É o relatório.

Voto

O Exmo. Desembargador Federal Fernando Braga (Relator): Não vis-lumbro constrangimento ilegal que possa ser atribuído à Juíza Federal da

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13ª Vara da Seção Judiciária de Pernambuco, na condução da ação penal nº 0020231-18.2011.4.05.8300.

A pacífica e iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite excepcionalmente o trancamento de ação penal, por meio de HC, apenas quando o fato narrado não configurar crime em tese, quando não houver indícios de autoria ou quando a punibilidade estiver extinta (STF: HC 115.701/PE, HC 112.957/SP; STJ: RHC 36.706/SP, RHC 28.827/MT).

Diversamente do que afirmam os impetrantes, a denúncia narra fato típico, há indícios de que a paciente é coautora de delitos de descaminho e a punibilidade não se encontra extinta pela prescrição virtual ou antecipada – que não foi albergada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Esse é o teor da Súmula nº 438 do STJ, segundo a qual: É inadmissível a extinção da pu-nibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal.

Os impetrantes argumentam, com arrimo em entendimento do STJ e na Súmula nº 24 do STF1, que faltaria justa causa para a ação penal, por ausência de condição de procedibilidade, pois o débito tributário pela inter-nação de mercadoria estrangeira não fora constituído.

É verdade que, em recentes decisões, o STJ afirmou que o descami-nho é crime material, equiparável aos demais delitos tributários, e, por isso, a constituição definitiva do crédito tributário é necessária para deflagrar a ação penal (RHC 32.281/RS). Todavia, os impetrantes não trouxeram prova pré-constituída do não exaurimento da via administrativo-fiscal.

A aplicação de medida cautelar (art. 319, IV, do Código de Processo Penal), que proíbe a acusada de ausentar-se do território nacional, por con-veniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal, com retenção do passaporte, não lhe causa constrangimento ilegal.

A não localização da paciente, que está em local incerto e não sabi-do, é motivação bastante para a decretação de medida cautelar diversa da custódia preventiva (art. 366 do Código de Processo Penal), tanto pela con-veniência da instrução criminal como para garantia da aplicação da lei pe-nal. Talvez até mesmo a própria prisão fosse cabível, em situações análogas, e o juízo de primeiro grau optou por medida menos gravosa. Como asseve-rou o magistrado, com esteio em informação da Delegacia de Imigração da

1 Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.

198 ��������������������������������������������������������������������������������������������������� RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – PARTE GERAL – JURISPRUDêNCIA

Polícia Federal (fls. 195/198), desde 2008, a paciente tem ingressado e saído do país a despeito de pesar em seu desfavor a presente ação penal (fl. 200).

Sob outra ótica, tem-se que desde 2006 o andamento do feito em questão resta obstado porque a justiça não logrou contactá-la.

Assim, logo agora que se resolveu adotar alguma medida capaz de “chamar sua atenção”, de modo a fazê-la comparecer e acompanhar o pro-cesso, denotaria demasiado despego à “aplicação da lei penal” e à “instru-ção processual” se se fizesse tudo retomar o seu status quo.

A via estreita do habeas corpus não é adequada para a avaliação de matéria de prova, como pretendem os impetrantes. O aprofundado debate acerca das provas da possível culpabilidade da paciente não pode ser im-plementado por este Tribunal em HC, sob pena de supressão de instância.

Advirto que os registros feitos acima, acerca de provas e indícios, o foram apenas no juízo de delibação incompleto, pois o conjunto probatório do processo-crime deverá ser correta e completamente apreciado pelo juízo natural.

Posto isso, denego a ordem.

É como voto.

Desembargador Federal Fernando Braga Relator

Parte Geral – Ementário de Jurisprudência 6816 – Ação penal – Operação Hygea – sequestro de bens – art. 131, I, CPP – excesso de

prazo – ausência

“Recurso ordinário em mandado de segurança. Operação Hygea. Sequestro de bens. Alegada violação ao prazo previsto no art. 131, inciso I, do Código de Processo Penal. Excesso de prazo não configurado. Complexidade da causa. Denúncia posteriormente oferecida. Even-tual ilegalidade superada. Recurso desprovido. 1. O princípio da razoabilidade impede que, no caso, o prazo previsto no art. 131, inciso I, do Código de Processo Penal incida de forma peremptória, nomeadamente porque as instâncias ordinárias consignaram a extrema comple-xidade do feito, instaurado contra dezenas de investigados para apurar fraudes na execução de obras e contratações feitas por órgãos públicos e diversos Municípios, todos em tese a se beneficiar ilicitamente de recursos da União repassados mediante convênios. 2. A alegação de excesso de prazo na medida constritiva resta superada após o início da ação penal. Pre-cedentes. 3. Recurso desprovido.” (STJ – RMS 36.728 – (2011/0290465-4) – 5ª T. – Relª Min. Laurita Vaz – DJe 25.11.2013)

6817 – Arrependimento posterior – Súmula nº 444 do STJ – incidência

“Recurso especial. Penal. Arrependimento posterior. Art. 16 do CP. Reparação integral do dano. Circunstância objetiva. Comunicabilidade aos demais autores. Pena-base. Personalida-de. Valoração negativa. Processos criminais em curso. Ilegalidade flagrante. Súmula nº 444/STJ. 1. Pela aplicação do art. 30 do Código Penal, uma vez reparado o dano integralmente por um dos autores do delito, a causa de diminuição prevista no art. 16 do mesmo Estatuto estende-se aos demais coautores, por constituir circunstância de natureza objetiva, cabendo ao julgador avaliar a fração de redução que deve ser aplicada, dentro dos parâmetros mínimo e máximo previstos no dispositivo, conforme a atuação de cada agente em relação à reparação efeti-vada. 2. É vedado considerar negativa a personalidade em razão da existência de processos criminais em curso (Súmula nº 444/STJ), razão pela qual houve ilegalidade flagrante na do-simetria da pena. 3. Recurso especial conhecido e improvido. Habeas corpus concedido de ofício, para afastar a valoração negativa da personalidade, ficando a reprimenda do recorrido redimensionada para 2 anos, 2 meses e 20 dias de reclusão e 22 dias-multa, mantidos o regime aberto e a substituição efetivada pelas instâncias ordinárias.” (STJ – REsp 1.187.976 – (2010/0054706-4) – 6ª T. – Rel. Min. Sebastião Reis Júnior – DJe 26.11.2013)

6818 – Casa de prostituição – rufianismo – prisão preventiva – requisitos – impossibilidade

“Recurso ordinário em habeas corpus. Casa de prostituição e rufianismo. Prisão preventiva. Requisitos. Provas da materialidade e indícios suficientes da autoria delitiva. Presença. Nega-tiva de participação. Inviabilidade de exame na via eleita. Pretendida revogação da segrega-ção. Crime cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa. Medidas cautelares alterna-tivas. Adequação e suficiência. Condições pessoais favoráveis. Coação ilegal demonstrada. Recurso provido em menor extensão. 1. Para a decretação da prisão preventiva, não se exige prova concludente da autoria delitiva, reservada à condenação criminal, mas apenas indícios suficientes desta, que, pelo cotejo dos elementos que instruem o mandamus, se fazem pre-sentes. 2. A análise acerca da alegada ausência de provas suficientes quanto à participação do recorrente nos crimes é questão que não pode ser dirimida em sede de recurso ordinário em habeas corpus, por demandar o reexame aprofundado das provas colhidas no curso da instrução criminal, vedado na via sumária eleita. 3. Com a edição e entrada em vigor da Lei nº 12.403/2011, resta clara a natureza excepcional da prisão preventiva, a qual somente deve ser aplicada quando outras medidas cautelares alternativas à segregação provisória se mostrarem ineficazes ou inadequadas. 4. Evidenciado que os fins acautelatórios almejados

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quando da ordenação da preventiva podem ser alcançados com a aplicação de medidas cautelares diversas, presente o constrangimento ilegal apontado na inicial. 5. Observado o binômio proporcionalidade e adequação, devida e suficiente, diante das particularidades do caso concreto, a imposição de medidas cautelares diversas à prisão para garantir a ordem pública, evitando-se a reiteração delitiva, para assegurar a conveniência da instrução criminal e a aplicação da lei penal. 6. Condições pessoais favoráveis, mesmo não sendo garantidoras de eventual direito à soltura, merecem ser devidamente valoradas, quando demonstrada a possibilidade de substituição da prisão por cautelares diversas, proporcionais, adequadas e suficientes ao fim a que se propõem. 7. Recurso provido em menor extensão, para revogar a prisão preventiva do recorrente, mediante a imposição das medidas alternativas previstas no art. 319, incisos I, III, IV, V e VI, do CPP, devendo o Juízo singular estipular quem são as vítimas e a distância mínima que o acusado deverá manter destas, bem como determinar a suspen-são das atividades do estabelecimento comercial denominado ‘Club 16’, localizado na Rua Marques de Caxias, nº 12/16, Centro, Niterói/RJ.” (STJ – RHC 40.423/RJ – (2013/0291035-3) – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe 30.10.2013)

Comentário Editorial SÍNTESEO vertente acórdão trata de recurso ordinário em habeas corpus interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que denegou a ordem que manteve a decisão que decretou a prisão preventiva do recorrente nos autos da ação penal a que responde pela prática dos delitos previstos nos crimes de Casa de Prostituição e Rufianismo.

O recorrente alega ocorrência de constrangimento ilegal sob o argumento de que a fundamentação apresentada pela Corte de origem não seria apta a justificar a manu-tenção de sua constrição antecipada.

Ressaltou, ainda, que nenhuma das testemunhas que se encontrava no estabeleci-mento cita o seu nome como um dos proprietários, destacando que restou denunciado tão somente pelo fato de seus documentos pessoais terem sido encontrados no local.

Argumentou que não teriam sido apontados elementos concretos que demonstras-sem a necessidade da medida para garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Os crimes de Casa de Prostituição e Rufianismo são tipificados no Código Penal, nos arts. 229 e 230, in verbis:

“Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 230. Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

O recorrente alega ser primário, possuir bons antecedentes e residência fixa, predi-cados que lhe permitiriam responder a ação penal em liberdade.

Mencionou, ainda, que inexistem no caso as hipóteses elencadas no art. 312 do CPP a justificar a manutenção da segregação cautelar, não sendo caso de decretação de quaisquer das medidas cautelares previstas no art. 319 do mesmo Estatuto.

Requereu a revogação da preventiva, com a expedição de contramandado de prisão, comprometendo-se, desde logo, a comparecer a todos os atos processuais, sem criar qualquer obstáculo ou embaraço ao regular andamento da persecução penal e regular andamento do feito.

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O art. 312 do Código de Processo Penal prevê:

“A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da or-dem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a apli-cação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.”

Colacionamos julgados sobre decretação da prisão preventiva:“HABEAS CORPUS – ROUBO MAJORADO PELO CONCURSO DE PESSOAS – ALE-GAÇÃO DE FALTA DE JUSTA CAUSA – NÃO OCORRÊNCIA – CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS QUE IMPEDEM A CONCESSÃO DO MANDAMUS – PRESENÇA DE JUSTA CAUSA – DECISÃO DO JUÍZO A QUO FUNDAMENTADA NO ART. 312 DO CPP – Alegação de constrangimento ilegal por falta de fundamentação na decretação da prisão preventiva. Decisão suficientemente fundamentada, embora sucinta, dis-correndo acerca da necessidade dos pressupostos do art. 312 do CPP. Aplicação do princípio da confiança no juiz de 1º grau. Condições pessoais por si só não são suficientes para concessão da liberdade (Súmula nº 08 do TJE/PA). Excesso de prazo. Inocorrência. Instrução penal encerrada. Aplicação da Súmulas nºs 52 do STJ e 01 do TJE-PA. Alegação de inépcia da denúncia. Impossibilidade. Necessi-dade de análise fática, conforme entendimento jurisprudencial. Impossibilidade de tal análise ser feita pela via estreita do habeas corpus. Ordem denegada.” (TJPA, HC 20133032379-6, (128798), Belém, C.Crim.Reun., Relª Desª Vera Araujo de Souza, DJe 28.01.2014)“HABEAS CORPUS – TRÁFICO DE ENTORPECENTES – NEGATIVA DE AUTORIA – MATÉRIA DE CUNHO PROBATÓRIO – NÃO CONHECIMENTO DO WRIT NESTE TOCANTE – Não são cabíveis discussões probatórias em sede de habeas corpus, uma vez que o writ é o instrumento processual destinado a tutelar o direito de locomoção, descabendo o respectivo manejo com vistas ao exame aprofundado ou à discussão e valoração da prova. PRISÃO PREVENTIVA – PRETENDIDA A SUA REVOGAÇÃO – SEGREGAÇÃO JUSTIFICADA NA GARANTIA DA ORDEM PÚBLI-CA, DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL E DE EVENTUAL APLICAÇÃO DA LEI PENAL – QUANTIDADE DE DROGA – ‘BOCA DE FUMO’ – GRAVIDADE CONCRETA DA AÇÃO PERPETRADA – PACIENTE QUE SE ENCONTRA EVADIDA CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE – ORDEM DENEGADA – Inexiste constrangimento ilegal a ser reconhecido, se o Magistrado de primeiro grau, ao decretar a prisão preventiva da paciente, apontou elementos concretos a ensejar a mantença dessa medida segrega-tória, sobretudo para os fins de se garantir a ordem pública, em estrita observância aos requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. Evidenciando-se a gravidade concreta do crime em tese cometido, diante da considerável quantidade e diversidade de entorpecente apreendido 150 g (cento e cinquenta gramas) de cocaína e quase meio quilo de maconha, bem como em razão de haver indícios de que na residência da paciente funcionaria uma ‘boca de fumo’, necessária a man-tença da segregação cautelar, sobretudo diante do fato de a paciente encontrar-se evadida. Não provou a paciente possuir condições subjetivas favoráveis, já que não se juntou certidão de antecedentes criminais, e, mesmo que demonstradas, elas não ensejam a concessão automática da liberdade quando estão presentes os requisitos previstos nos arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal.” (TJMS, HC 1603114-17.2013.8.12.0000, 1ª C.Crim., Relª Desª Maria Isabel de Matos Rocha, DJe 28.01.2014)O Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso para denegar a ordem.

6819 – Contrabando – máquina caça-níquel – contravenção de exploração de jogos de azar – absorção – impossibilidade

“Penal. Recurso em sentido estrito. Contrabando. Máquina caça-níquel. Absorção pela con-travenção de exploração de jogos de azar. Impossibilidade. 1. Materialidade delitiva demons-

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trada pelo auto de apreensão e laudo pericial. 2. Autoria delitiva comprovada pelo conjunto probatório. 3. Princípio da consunção que não se aplica. Os bens jurídicos tutelados são distintos. O objeto jurídico tutelado no crime de contrabando e descaminho definidos no art. 334, caput, do Código Penal é a Administração Pública no que diz respeito ao Erário Público lesado pelo comportamento do agente que, importa ou exporta mercadoria proibida ou deixa de pagar os tributos devidos. A contravenção penal trazida no art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 tem como bem jurídico tutelado os bons costumes. 4. Impossibilidade da ab-sorção do crime de contrabando ou descaminho, que comina em abstrato pena mais grave, por contravenção penal, apenada de forma menos severa. 5. O fato de o acusado utilizar-se do referido maquinário, no exercício de atividade comercial, para a obtenção de lucro pela exploração de jogos de azar consubstancia a prática de duas infrações penais: contravenção de jogo de azar, de competência da Justiça Estadual e crime de descaminho descrito no art. 334, § 1º, alínea c, do Código Penal, de competência da Justiça Federal, nos moldes do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal. 6. Recurso ministerial provido.” (TRF 3ª R. – RSE 0001591-27.2013.4.03.6109/SP – 5ª T. – Rel. Des. Fed. Luiz Stefanini – DJe 25.11.2013)

6820 – Contravenção – jogo de azar – cartas – não configuração

“Juizados especiais criminais. Contravenção. Jogo de azar. Cartas. O jogo de cartas em prin-cípio não pode ser considerado como de azar, eis que depende mais da observação e habili-dade do jogador do que da sorte, a qual influi em pequena parcela. Não esclarecimento pelo órgão acusador sobre qual jogo de cartas eram feitas as apostas. In dubio pro reu. Sentença reformada para absolver o réu.” (TJDFT – Proc. 20100310162909 – (736358) – Rel. p/o Ac. Juiz Leandro Borges de Figueiredo – DJe 25.11.2013 – p. 244)

Comentário Editorial SÍNTESENo acórdão em destaque, configurou-se lícita a prática de jogos de cartas.

Os Juristas Paulo José Iasz de Morais e Felipe Pinheiros Nascimento, sobre o assun-to, assim nos ensinaram:

“Nesse sentido, nos valemos dos preciosos ensinamentos do Professor Ricardo Antonio Andreucci para compreender o avanço – ainda que negativo – realizado pelo legislador:

Crime e contravenção penal são espécies de infração penal. Nesse aspecto, o Brasil adotou a classificação bipartida das infrações penais distinguindo crime de contra-venção penal. Não há regra para a caracterização da infração em crime ou contra-venção. Conforme a vontade do legislador, um fato pode ser definido como crime ou contravenção, de acordo com as aspirações sociais. Contravenção penal é uma espécie de infração penal de menor potencial ofensivo. Não há diferença essencial entre crime e contravenção. Entretanto, o art. 1º do Decreto-Lei nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941 (Lei de Introdução ao Código Penal), estabelece: ‘Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contra-venção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente’. O diploma que rege as contravenções penais é o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941.

Outrossim, o ilustríssimo professor, fazendo referência à obra de Manoel Pedro Pimental, nos esclarece que:

Entretanto, a contravenção penal pode se diferenciar do crime em relação ao perigo de ofensa ou lesão ao bem ou interesse jurídico atingido. Nesse sentido, esclarece

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Manoel Pedro Pimentel (Contravenções penais. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 3) que ‘contra a ofensa ou a lesão ao dos bens e interesses jurídicos do mais alto valor, o legislador coloca duas linhas de defesa: se ocorre o dano ou o perigo próximo ao dano, alinham-se os dispositivos que, no Código Penal, protegem os bens e inte-resses através da incriminação das condutas ofensivas, lesivas, causadoras de dano e de perigo; se o perigo de ofensa ou lesão não é veemente, e se o bem ou interesse ameaçados não são relevantes, alinham-se na Lei das Contravenções Penais os tipos contravencionais de perigo abstrato ou presumido e de perigo concreto. Conclui-se, portanto, que a Lei de Contravenções Penais forma a primeira linha de combate contra o crime, ensejando a inocuização do agente quando ele ainda se encontra no simples estado de perigo. Com sanções de pequena monta, prisão simples ou multa, impostas mediante processo sumaríssimo, alcança-se o principal objetivo que é coartar a conduta perigosa, capaz de ameaçar, no seu desdobramento, o bem ou o interesse tutelados’.”

6821 – Crime ambiental – extração de recurso mineral – concurso formal – não ocorrência

“Processual penal. Penal. Extração de recurso mineral (ouro). Crime contra a ordem econô-mica (art. 2º da Lei nº 8.176/1991) e crimes ambientais (arts. 55 e 56 da Lei nº 9.605/1998). Possibilidade de concurso formal. Arts. 55 e 56 da Lei nº 9.605/1998. Consunção. Não ocor-rência. Princípio da insignificância. Inaplicabilidade. Erro de proibição invencível. Não ocor-rência. Materialidade e autoria comprovadas. Dosimetria. Concurso formal. Reforma. I – O crime do art. 2º da Lei nº 8.176/1991 tutela a ordem econômica e o do art. 55 da Lei nº 9.605/1998 objetiva proteger o meio ambiente, sendo possível, no caso em tela, a ocor-rência de concurso formal, uma vez que a extração irregular de minerais (ouro) atinge mais de um bem jurídico tutelado. Precedentes. II – Não há que se falar em consunção entre os crimes dos arts. 55 e 56 da Lei nº 9.605/1998, uma vez que a guarda de substância nociva tem potencialidade lesiva muito além do crime de extração de recursos minerais sem auto-rização. III – A jurisprudência majoritária entende que nos casos de crimes ambientais não se aplica o princípio da insignificância, dada a indisponibilidade do bem jurídico tutelado. IV – Para a configuração do erro de proibição invencível, o acusado teria que agir sem com-pleta consciência da ilicitude, bem como não há condições de conhecer tal situação, o que não se dá na hipótese. Não há nos autos qualquer justificativa apta a demonstrar a falta de conhecimento da ilicitude. V – Crimes dos arts. 2º, caput, da Lei nº 8.176/1991 e 55 e 56 da Lei nº 9.605/1998 suficientemente comprovados em todos os seus elementos, conforme a ti-pificação prevista nas respectivas leis. VI – Dosimetria da pena reformada para aplicar a regra do concurso formal próprio. V – Apelação parcialmente provida.” (TRF 1ª R. – ACr 0012447-25.2010.4.01.4100/RO – Rel. Des. Fed. Cândido Ribeiro – DJe 24.01.2014)

6822 – Crime ambiental – extração irregular da areia – erro de tipo – absolvição

“Penal e processual penal. Crime ambiental. Extração irregular de areia. Art. 2º da Lei nº 8.176/1991. Erro de tipo. Absolvição. I – O erro ou desconhecimento sobre os elementos constitutivos do tipo legal exclui o dolo, uma vez que significa não o desconhecimento da lei, mas uma falsa ou equivocada representação da realidade. Sua presença caracteriza o chama-do erro de tipo previsto pelo art. 20 do Código Penal. II – Conjunto probatório convergente no sentido de que o acusado não tinha compreensão do caráter criminoso dos fatos. III – Ape-lação desprovida.” (TRF 1ª R. – ACr 0004025-36.2010.4.01.3300 – Rel. Des. Fed. Cândido Ribeiro – DJe 24.01.2014)

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6823 – Crime ambiental – incêndio em mata – princípio da presunção da inocência – apli-cação

“Habeas corpus. Crime ambiental. Art. 41, caput, da Lei nº 9.605/1998 (provocar incêndio em mata ou floresta). Aplicação do princípio da presunção de inocência. Matéria não debatida na origem. Ocorrência de supressão de instância. Exasperação da pena-base e negativa de substituição da sanção corporal por restritiva de direitos. Falta de fundamentação concreta. Impossibilidade. Precedentes. 1. O argumento referente à aplicação do princípio da presun-ção de inocência não é capaz de superar o óbice da ausência de debate na origem, sob pena de indevida supressão de um dos graus de jurisdição. 2. É compreensão já pacificada desta Corte que ao individualizar a pena, o julgador deve examinar com acuidade os elementos que dizem respeito ao fato, obedecidos e sopesados todos os critérios estabelecidos no art. 59 do Código Penal, para aplicar de forma justa e fundamentada a reprimenda que seja necessária e suficiente para reprovação do crime. 3. No caso, o acórdão impugnado não apresentou elementos concretos que justificassem a negativa de substituição da sanção corporal por res-tritiva de direitos e a elevação da pena-base na metade, além de não ter elencado quais os fatos inusitados da conduta do réu que o faziam merecer especial reprovabilidade. 4. Ordem concedida de ofício para anular o acórdão impugnado com relação à dosimetria da pena a fim de que outro seja proferido pelo eg. Tribunal de origem com nova e adequada fundamen-tação no que diz respeito à pena-base e à possibilidade de substituição da sanção corporal por restritiva de direitos.” (STJ – HC 246.681 – (2012/0130816-4) – 5ª T. – Rel. Min. Moura Ribeiro – DJe 26.11.2013)

6824 – Crime contra a relação de consumo – exposição à venda de mercadoria imprópria – prova da materialidade – necessidade – absolvição

“Apelação criminal. Crime contra a relação de consumo. Exposição à venda de mercadoria imprópria para consumo. Prova da materialidade. Exame pericial. Necessidade. A prova da materialidade do delito previsto no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/1990 depende da existência de laudo pericial para comprovar a impropriedade da mercadoria ou da matéria-prima para o consumo humano. V.v. Apelação criminal. Crime contra as relações de consumo. Expor à venda produtos em condições impróprias ao consumo. Autoria e materialidade comprovadas. Laudo pericial. Prescindibilidade. Provas suficientes a ensejar um decreto condenatório. Ne-cessidade. Recurso provido. Incorre na sanção do art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/1990 aquele que expõe à venda mercadorias inadequadas ao consumo humano. Os crimes contra a relação do consumo são de perigo presumido, não havendo necessidade de efetivação de venda de produto impróprio para consumo ou de perigo à saúde do consumidor, sendo irrelevante a produção de exame pericial para tal finalidade.” (TJMG – ACr 1.0431.10.006136-2/001 – 6ª C.Crim. – Rel. Jaubert Carneiro Jaques – DJe 09.01.2014)

Comentário Editorial SÍNTESEO vertente acórdão trata de crime contra as relações de consumo previsto no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/1990, in verbis:

“Art. 7º Constitui crime contra as relações de consumo:

[...]

IX – vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo;

Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.”

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Consta dos autos, que o denunciado foi surpreendido em seu estabelecimento co-mercial, pela fiscalização da Vigilância Sanitária Municipal e Polícia Militar, que constatou que ali estava sendo exposto à venda mercadorias impróprias ao consu-mo, sem a devida documentação.

Com base na falta da existência de laudo pericial para comprovar a impropriedade da mercadoria ou da matéria-prima para o consumo humano, o réu foi absolvido.

Inconformado com a decisão, o órgão Ministerial recorreu, pugnando pela conde-nação do réu pela prática delitiva contida na denúncia, por entender que há provas suficientes a comprovar a autoria e materialidade delitivas por parte do acusado.

A defesa apresentou contrarrazões, pugnando pelo desprovimento do apelo e manu-tenção da sentença a quo.

Vale trazer trecho do voto do Relator:

“‘[...] que ao chegarem no estabelecimento constataram um canhão para fabricação de lingüiça sendo este proibido para funcionar em açougue, também foi apreendido carne comercializada que provem de abate clandestina sendo que a mesma não tinha rotulagem e não foi apresentada nota fiscal da carne, sendo que o proprietário apresentou uma nota fiscal de produtos diferentes.’ (relato de fl. 07)

O relato do policial militar que realizou a diligência juntamente com o agente de fiscalização sanitária corrobora, ainda mais, a prática do ilícito por parte do acusado.

‘[...] que durante operação conjunta entre Ministério Público Estadual, IMA, Vigilân-cia Sanitária e PM, deslocamos até a Rua Rosa de Souza, 230, Centro, e durante a fiscalização no estabelecimento comercial Mercearia Central, foi constatado pela fiscalização que o estabelecimento não dispõe de condições higiênico-sanitária, área física e boas práticas de manipulação necessárias a inocuidade no alimento ma-nipulado conforme legislação vigente; que foi encontrado no estabelecimento um (canhão) para fabricação de lingüiça o qual foi apreendido e ainda que a carne co-mercializada provem de abate clandestino; que a carne apreendida foi levada pelos fiscais para a inutilização da mesma [...]’ (relato do policial condutor Kleber Rogério Leocadio de fl. 06)

Quanto à materialidade delitiva, em que pese o ilustre sentenciante sustentar que os produtos apreendidos não foram submetidos à perícia e, assim sendo, entendeu por bem em absolver o acusado do crime que lhe foi imputado, tenho que, diferentemen-te do entendimento adotado pelo douto Juiz a quo, a meu sentir, a mesma encontra--se robustamente comprovada nos autos, diante do A. P. F. D. de fl. 06/07, boletim de ocorrência de fl. 09/13 e Termo de Inspeção da Vigilância Sanitária de fl. 14.

Neste sentido, tenho que a prova produzida nos autos nos remete a evidência do ilícito perpetrado pelo recorrido, uma vez que as alegações sustentadas pelo apelado não são suficientes a elidir sua responsabilidade pelo fato ocorrido.”

Desta forma, já decidiu o eg. TJMG:

“APELAÇÃO CRIMINAL – DENÚNCIA NÃO FOI PRECEDIDA DE INQUÉRITO PO-LICIAL – DISPENSABILIDADE – ILEGITIMIDADE DA RÉ – NÃO RECONHECIDA – PRELIMINARES REJEITADAS – CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO – EXPOR À VENDA MERCADORIAS IMPRÓPRIAS AO CONSUMO – MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS – ABSOLVIÇÃO – INADMISSIBILIDADE – CONDENA-ÇÃO MANTIDA – MODALIDADE CULPOSA NÃO RECONHECIDA – DOLO ESPECÍ-FICO CARACTERIZADO – MAJORANTE DO ART. 12 DA LEI Nº 8.137/1990 – MA-NIFESTAMENTE PROCEDENTE – SURSIS – INAPLICABILIDADE – INTELIGÊNCIA DO ART. 77, INCISO III, DO CÓDIGO PENAL – RECURSO IMPROVIDO – O fato de a denúncia não estar fundamentada em inquérito policial, por si só, não tem o condão de caracterizar qualquer ofensa ao princípio do devido processo legal, nem mesmo

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de prejudicar a defesa dos apelantes. De acordo com os arts. 27 e 28 do Código de Processo Penal, nos crimes em que caiba ação pública, o Ministério Público poderá oferecer denúncia independentemente da instauração de inquérito policial, desde que detenha documentos satisfatórios e idôneos para instruir a ação penal. Se os réus são sócios proprietários do estabelecimento comercial, ambos exercem a administração, representação e a gerência dele. Logo, há de se reconhecer o con-curso de agentes, pois ambos os réus agiram com o mesmo propósito ou mesmo um aderindo à conduta do outro. Os agentes tinham em depósito para a venda produtos impróprios para o consumo humano, consistentes em carne suína e leite bovino de procedência clandestina, não inspecionados e desprovidos de documentos sanitário e fiscal, objetivando o lucro indevido. Uma vez reconhecido o dolo específico na conduta dos réus, é inadmissível e até mesmo incompatível reconhecer o elemento subjetivo culpa. Entre os bens essenciais à vida e à saúde, incluem-se os alimentos em primeiro plano. Portanto, se a carne e o leite são gêneros alimentícios necessá-rios ao consumo do homem médio, a causa de aumento prevista no art. 12, inciso III, da Lei nº 8.137/1990 é manifestamente procedente. O art. 77, III, do Código Penal estabelece que a suspensão da pena só será aplicada quando não for indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44, do mesmo diploma legal.” (Apelação Criminal nº 1.0043.04.001560-4/001, Rel. Des. Fernando Starling, 1ª C.Crim., Julgamento em 30.09.2008, publicação da súmula em 14.10.2008)

Neste sentido é a jurisprudência do STJ:

“AGRAVO REGIMENTAL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – DIREITO PENAL – LEI Nº 8.137/1990 – CRIMES CONTRA A RELAÇÃO DE CONSUMO – MERCADORIA IMPRÓPRIA PARA CONSUMO – EXAME PERICIAL – NECESSIDADE – ACÓRDÃO A QUO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL – INCI-DÊNCIA DA SÚMULA Nº 83/STJ – 1. Cinge-se a controvérsia à necessidade, ou não, de realização de perícia cujo laudo ateste condições impróprias ao consumo para configuração do crime previsto no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/1990. 2. Julgados das Turmas que compõem a 3ª Seção deste Superior Tribunal entendem que, para a tipificação da conduta prevista no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/1990, faz-se im-prescindível a realização de perícia a fim de atestar se as mercadorias apreendidas estavam em condições impróprias para o consumo. 3. A configuração do delito tipificado no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/1990 está condicionada a dois aspectos: a) existência de perícia e b) atestado acerca da impropriedade para o consumo. 4. A ausência de uma das condições aludidas – no caso, o laudo pericial afastou a impro-priedade para o consumo – implica a inexistência de materialidade delitiva, conso-ante o acórdão de origem adequadamente concluiu. 5. A tese esposada pelo Tribunal a quo consolidou-se em reiterados julgados da 6ª e da 5ª Turmas deste Superior Tribunal – Súmula nº 83/STJ. 6. O agravo regimental não merece prosperar, por-quanto as razões reunidas na insurgência são incapazes de infirmar o entendimento assentado na decisão agravada. 7. Agravo regimental improvido.” (AgRg no Agravo de Instrumento nº 1.418.565/RJ, (2011/0097972-0), Data da Publicação/Fonte DJe: 01.08.2013)

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO – ART. 7º, IX, DA LEI Nº 8.137/1990 – MERCA-DORIAS SEM PRAZO DE VALIDADE EXPOSTO – TIPICIDADE – LAUDO PERICIAL – IMPRESCINDIBILIDADE – NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA IMPROPRIE-DADE AO CONSUMO – 1. O crime previsto no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/1990 possui como elementar do tipo ‘a impropriedade das mercadorias apreendidas ao consumo humano’. Logo, para fins de comprovação da elementar, é imprescindí-vel a realização de prova pericial apta a comprovar que os produtos encontram-se

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impróprios ao consumo humano, não sendo, pois, suficiente para a caracterização da infração a mera exposição das mercadorias sem o prazo de validade exposto na embalagem. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg--AREsp 333459/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 5ª T., Data do Julgamento: 22.10.2013, Data da Publicação/Fonte DJe 04.11.2013)

“HABEAS CORPUS – PROCESSUAL PENAL – CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO – ART. 7º, INCISO IX, DA LEI Nº 8.137/1990 – INDICIAMENTO FORMAL APÓS O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA – CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO – MERCADORIA IMPRÓPRIA PARA CONSUMO – PERÍCIA – NE-CESSIDADE PARA CONSTATAÇÃO DA NOCIVIDADE DO PRODUTO APREENDIDO – ORDEM CONCEDIDA – 1. É consolidada a jurisprudência desta Corte no sentido de que constitui constrangimento ilegal o indiciamento formal do acusado após rece-bida a inicial acusatória. 2. Para caracterizar o elemento objetivo do crime previsto no art. 7º, inciso IX, da Lei nº 8.137/1990, referente a mercadoria ‘em condições impróprias ao consumo’, faz-se indispensável a demonstração inequívoca da poten-cialidade lesiva ao consumidor final. 3. No caso, evidenciam os autos, mormente a sentença condenatória e o acórdão que a confirmou, que não houve a realização de perícia para atestar a nocividade dos produtos apreendidos. 4. Ordem concedida para anular o indiciamento formal do paciente e trancar a ação penal.” (Habeas Corpus nº 132.257/SP, (2009/0055779-3), Min. Laurita Vaz, Data da Publicação/Fonte DJe 08.09.2011)

“RECURSO ESPECIAL – PENAL E PROCESSUAL CRIMINAL – ABATEDOURO CLAN-DESTINO – ART. 7º, INCISO IX, DA LEI Nº 8.137/1990 E ART. 18, § 6º, INCISO II, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – NECESSIDADE DE LAUDO PERI-CIAL PARA A CONSTATAÇÃO DA IMPROPRIEDADE DA MERCADORIA – RECURSO IMPROVIDO – 1. Para a configuração do delito previsto no art. 7º, inciso IX, da Lei nº 8.137/1990, c/c art. 18, § 6º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor, ne-cessária a comprovação, mediante perícia, de que a mercadoria esteja inadequada ao consumo, não bastando, in casu, a mera presunção de sua impropriedade pelo fato do abate dos bovinos ter sido realizado em abatedouro clandestino. Precedente do Pretório Excelso. 2. Recurso improvido.” (Recurso Especial nº 1.050.908/RS, 2008/0087615-2, Min. Jorge Mussi, Data da Publicação/Fonte DJe 03.08.2009)

6825 – Crime contra o sistema de telecomunicações – rádio clandestina – dosimetria – cir-cunstâncias desfavoráveis

“Penal. Rádio clandestina. Art. 183 da Lei nº 9.472/1997. Materialidade e autoria compro-vadas. Dosimetria. Mínimo legal. Circunstâncias desfavoráveis. Sentença integralmente man-tida. Consoante a jurisprudência dominante, o art. 70 da Lei nº 4.117/1962 seria aplicável para as hipóteses em que, já obtidas a autorização para a exploração de serviços de teleco-municações, o agente desenvolvesse a atividade infringindo as normas estabelecidas na lei e nos regulamentos, enquanto o art. 183 da Lei nº 9.472/1997 seria cabível para os casos em que havia a exploração de tais serviços, sem a devida autorização da autoridade com-petente. O caso em voga enquadra-se perfeitamente ao crime capitulado no art. 183 da Lei nº 9.472/1997, eis que os acusados agiram sem a devida autorização da autoridade competen-te para desenvolver clandestinamente as atividades de telecomunicação. Não há que se falar em reforma na dosimetria das penas aplicadas e da fixação destas no mínimo legal, tendo em vista que o Magistrado de primeiro grau observou, devidamente, os critérios do art. 59 do Có-digo Penal. Sentença integralmente mantida. Apelação conhecida e desprovida.” (TRF 2ª R. – ACr 2008.51.13.000424-5 – 1ª T.Esp. – Rel. Des. Fed. Paulo Espirito Santo – DJe 16.01.2014)

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6826 – Crime contra o sistema financeiro nacional – evasão de divisas – necessidade de prova concreta

“Direito penal. Crime contra o sistema financeiro nacional. Evasão de divisas. ‘Dólar-cabo’ (art. 22 da Lei nº 7.492/1986). Necessidade de prova concreta da autoria. 1. Configura-se o crime de evasão de divisas quando o agente se utiliza da estrutura de uma instituição financei-ra clandestina para realizar operações dólar-cabo. 2. Para a condenação do agente, na ausên-cia de prova direta, se faz necessária a existência de indícios sólidos e convergentes demons-trando a autoria. Absolvição reconhecida.” (TRF 4ª R. – ACr 0032292-85.2007.404.7100/RS – 8ª T. – Rel. Juiz Fed. Leandro Paulsen – DJe 09.01.2014)

6827 – Crime contra os serviços de telecomunicação – dosimetria da pena – legalidade

“Penal. Apelação criminal. Art. 183 da Lei nº 7.492/1997. Serviço de comunicação multimí-dia. Transmissão irregular de sinal de Internet a terceiros via radiofrequência. Caracterização como serviço de telecomunicação suscetível de autorização da Anatel. Subsunção da conduta do denunciado ao disposto art. 183 da Lei nº 7.492/1997. Legalidade na dosimetria da pena. Apelação improvida. 1. Sentença que condenou o réu às penas de 02 (dois) anos e 09 (nove) meses de reclusão e à multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais), pela prática do delito previsto no art. 183 da Lei nº 9.472/1997, pela captação de sinal de Internet via rádio para retransmiti-lo a terceiros como provedor de acesso mediante pagamento, sem a devida autorização e licen-ciamento por parte da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel. 2. Em se tratando de serviço público cuja exploração é atribuída à União, conforme o disposto no art. 21, XI, da CF/1988, a prática de atividade de telecomunicação sem a devida autorização dos órgãos públicos competentes, a conduta do acusado subsume-se, ao menos em tese, para à conduta típica prevista no art. 183 da Lei nº 9.472/1997. 3. Entendimento majoritário do eg. STJ no sentido de que a conduta do recorrido se subsume à conduta típica prevista no art. 183 da Lei nº 9.472/1997, no tocante à transmissão de sinal de Internet, via rádio, de forma clandestina, em especial mediante pagamento. Precedentes. 4. Presença do elemento subjetivo do delito e da plena consciência da ilicitude de sua conduta, ao instalar e manter em funcionamento antenas de sinais para permitir acesso integral à Internet a seus clientes, de forma indevida, criando uma rede externa de nível superior, que necessitaria de autorização da Anatel, por repetidas vezes. 5. Inexistência de exorbitância na fixação da pena em 02 (dois) anos e 09 (nove) meses de reclusão, acrescida da multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) como deter-minado na lei. Impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos por ser o apelante reincidente em crime doloso (roubo). 6. Apelação improvida.” (TRF 5ª R. – ACR 0000223-05.2011.4.05.8402 – (10631/RN) – Rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano – DJe 10.01.2014)

6828 – Crime de apropriação indébita previdenciária – inexigibilidade de conduta diversa – dificuldades financeiras

“Penal e processual penal. Agravo regimental no recurso especial. Crime de apropriação in-débita previdenciária na forma continuada. Inexigibilidade de conduta diversa. Dificuldades financeiras. Excludente de culpabilidade. Não ocorrência. Fixação da pena-base acima do mí-nimo legal. Circunstâncias do crime. Majoração da pena. Viabilidade. Reapreciação do con-junto fático. Impossibilidade. Incidência da Súmula nº 7/STJ. 1. No tocante à caracterização do crime de apropriação indébita, o Tribunal a quo entendeu estar caracterizada a materiali-dade do delito, consubstanciada na prova material dos descontos e do não recolhimento da contribuição previdenciária dos empregados da empresa, bem como a autoria delitiva, em ra-

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zão dos testemunhos e das provas documentais acostadas aos autos. 2. Quanto à configuração de inexigibilidade de conduta diversa, a Corte estadual entendeu que só afasta a condenação a existência de prova robusta acerca da absoluta impossibilidade de efetuar os recolhimentos, não bastando a existência de meras dificuldades, sendo que, nesse caso, a prova técnica, oral e documental, não autoriza o acolhimento de qualquer tese exculpatória do recorrente, tendo em conta que este não trouxe aos autos nenhum elemento de prova corroborasse a sua ale-gação. 3. Modificar tais premissas, necessitaria de revolvimento de matéria fática. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STJ – AgRg-REsp 1.367.353 – (2013/0041373-5) – 5ª T. – Rel. Min. Moura Ribeiro – DJe 25.11.2013)

6829 – Crime de apropriação indébita previdenciária – sonegação de contribuição – parce-lamento da dívida – inocorrência; pretensão da suspensão punitiva do Estado – im-possibilidade

“Penal. Processual penal. Apropriação indébita previdenciária. Sonegação de contribuições previdenciárias. Arts. 168-A e 337-A do CP. Sócios gerentes. Apelação restrita à alegação de parcelamento da dívida tributária. Pedido de suspensão da pretensão punitiva e do prazo prescricional. Indeferimento. Ausência de inclusão em plano de parcelamento da receita fe-deral. Débitos em execução. Apelações improvidas. 1. Apelantes condenados pelos crimes previstos nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, cada um, às penas de 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, esta dividida em 02 (dois) anos e 08 (oito) meses de reclusão, para o crime de apropriação indébita das contribuições previdenciárias, e de 02 (dois) anos e 08 (oito) meses, pela sonegação de contribuições previdenciárias, a ser cumprida inicialmente em regime semiaberto, e de 180 (cento e oitenta) dias multa, correspondendo cada um deles a 1/10 (um décimo) do valor do salário-mínimo vigente à época dos fatos, em face do não recolhimento ao INSS, a tempo e modo, das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados e da ausência de inclusão, nas GFIPs e nas Guias de Recolhimento do FGTS, da remuneração de alguns empregados da empresa CONSCOL, causando ao INSS um prejuízo de R$ 796.790,86 (setecentos e noventa e seis mil, setecentos e noventa reais e oitenta e seis centavos). 2. Apelação que se limita a requerer a suspensão da ação penal, em face da inclusão dos débitos em Programas de Parcelamento da Receita Federal (Refis), cujas parcelas estariam pagas com regularidade. 3. A Secretaria da Receita Previdenciária, em dois Ofícios, datados de 05.05.2010 e 02.07.2013, atestou que os débitos previdenciários da empresa estão em execução fiscal, não estando incluídos em planos de parcelamento, compensados ou pagos, tendo o pedido de inclusão da empresa no REFIS sido indeferido pela falta de paga-mento da primeira parcela. 4. Impossibilidade da suspensão da ação penal e do prazo prescri-cional. Justa causa para a continuidade da ação penal. 5. Apelações improvidas.” (TRF 5ª R. – ACr 7496-CE (2009.81.00.000805-8) – 3ª T. – Rel. Des. Fed. Élio Siqueira – DJ 12.09.2013)

Comentário Editorial SÍNTESEO Código Penal Brasileiro tipifica o crime de apropriação previdenciária no art. 168-A, in verbis:

“Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.” “Art. 337. Subtrair, ou inutilizar, total ou parcialmente, livro oficial, processo ou documento confiado à custódia de funcionário, em razão de ofício, ou de particular em serviço público: Pena – reclusão, de dois a cinco anos, se o fato não constitui crime mais grave.”

O vertente acórdão discute, em grau de recurso, a prática ou não dos crimes previs-tos nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal Brasileiro.

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Consta dos autos que os réus foram condenados, cada um, às penas de 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, dividida em 02 (dois) anos e 08 (oito) meses de reclusão, para o crime de apropriação indébita das contribuições previdenciárias, e de 02 (dois) anos e 08 (oito) meses, pela sonegação de contribuições previdenciá-rias, a ser cumprida inicialmente em regime semiaberto, e de 180 (cento e oitenta) dias multa, correspondendo cada um deles a 1/10 (um décimo) do valor do salário--mínimo vigente à época dos fatos, em razão de terem deixado de recolher para o INSS as contribuições previdenciárias descontadas da totalidade de seus emprega-dos, deixando de incluir alguns deles nas GFIPs e nas Guias de Recolhimento do FGTS, causando prejuízo enorme ao INSS, a quantia de R$ 796.790,86 (setecentos e noventa e seis mil, setecentos e noventa reais e oitenta e seis centavos).

Os apelantes requereram a suspensão da ação penal, em razão dos débitos terem sido incluídos no Programa de Parcelamento da Receita Federal, cujas parcelas fo-ram pagas regularmente.

A d. Procuradoria Regional da República opinou pelo não provimento dos recursos, fundamentando-se na ausência de inclusão da empresa em Plano de Parcelamento, constando dos autos informação da Receita Federal, no sentido de que a adesão da empresa ao Refis foi indeferida por falta de pagamento da primeira parcela.

O Relator ao analisar o referido caso, observou que a Secretaria da Receita Previ-denciária, por meio do Ofício nº 2013.95, de 02.07.2013, alegou que os débitos previdenciários em questão estão em execução fiscal, não estando incluídos em planos de parcelamento, compensados ou pagos.

Vale trazer trecho do voto do Relator:

“Com o advento da Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003, o assunto passou a merecer a seguinte disciplina: ‘Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. § 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.’ Nos dias que correm, o regime de parcelamento enverga aptidão para produzir dois efeitos jurídicos: a) pro- porcionar a suspensão da pretensão estatal e, por conseguinte, da prescrição cri-minal, enquanto o agente beneficiário permanecer no aludido programa (hipótese configurada nos autos); b) acarretar a extinção da punibilidade, uma vez efetiva-do o pagamento integral do débito, antes ou depois do recebimento da denúncia. No caso, a primeira informação da Secretaria da Receita Previdenciária, datada de 05.05.2010, dá conta de que os apelantes ‘tiveram seus pedidos de inclusão em parcelamento instituídos pela Lei nº 11.941/2009 não confirmados por falta de pagamento da 1ª prestação’.”

Pelas razões apontadas, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região negou provimento aos recursos.

6830 – Crime de contrabando – máquinas eletrônicas programadas – exame de corpo de delito – desnecessidade

“Processual penal. Apelação criminal. Contrabando. Máquinas eletrônicas programadas. Art. 334, § 1º, c, do Código Penal. Exame de corpo de delito. Desnecessidade. Delito tran-seunte. Ciência sobre a procedência estrangeira dos componentes. Dolo eventual. Provimento do recurso. I – Em que pese inexistir perícia atestando a procedência estrangeira dos com-

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ponentes das máquinas apreendidas, porque estas foram destruídas, o Relatório da Abinee – Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (fl. 16, do apenso) atesta que não há fabricante nacional de processadores para placa-mãe contidos naquelas, o que signifi-ca dizer que os referidos equipamentos são de origem estrangeira. II – Como os apelantes não trouxeram aos autos documentos que afastem a afirmação da Abinee, resta provada a materialidade do crime em tela. III – Ao anuírem com a instalação das máquinas em seu estabelecimento sem qualquer documentação fiscal e motivados pelo retorno financeiro que lhe proporcionava, os acusados assumiram o risco de suas condutas, pois sabiam, e isso é certo, que incorreria em atividade ilícita, porquanto é notório que a exploração das denomi-nadas máquinas caça-níqueis nunca foi uma prática permitida pelo ordenamento jurídico, seja pelo fato de que o equipamento utiliza componentes de procedência estrangeira, seja por configurar crime contra a economia popular (art. 2º, inciso IX, da Lei nº 1521/51), ou, ainda por caracterizar contravenção de jogo de azar (art. 50 da Lei de Contravenções Penais). IV – Imaginar que os apelantes não tinham o conhecimento acerca da origem estrangeira das máquinas caça-níqueis, no presente caso, afigura-se inadmissível, sobretudo em razão da reiteração da conduta delitiva, já que, conforme afirmado pela Magistrada sentenciante, os apelantes respondem a duas ações penais perante aquele MM. Juízo por fatos semelhantes (Processos nºs 2010.51.01.807566-9 e 2010.51.01.805586-5), sendo certo, de acordo com as informações de fls. 95 e 102, que as duas apreensões que culminaram com as referidas persecutio criminis foram anteriores à que deu ensejo à presente. V – Autoria e materialidade delitivas comprovadas. Condenações que devem ser mantidas. VI – Recurso a que se nega provimento.” (TRF 2ª R. – ACr 2010.51.01.809577-2 – (10761) – 1ª T.Esp. – Rel. Des. Fed. Paulo Espírito Santo – DJe 11.11.2013)

6831 – Crime de contrabando – materialidade e autoria – absolvição – possibilidade

“Direito penal e processual penal. Apelação criminal. Contrabando (art. 334-A do Código Pe-nal). Materialidade delitiva. Provas insuficientes da procedência estrangeira do material apre-endido. I – O crime de contrabando ou descaminho é descrito na alínea c do art. 334, § 1º, do Código Penal como a conduta de ‘manter em depósito e explorar comercialmente mercado-rias de procedência estrangeira, desacompanhadas da documentação legal pertinente, que sa-bia serem produto de importação fraudulenta e introdução clandestina no território nacional’, e também se caracteriza como a ‘aquisição, recebimento ou ocultação, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, de mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos co-nhecidamente falsos’, conforme dispõe a alínea d do mesmo artigo. II – A realização de exame pericial direto sobre máquinas caça-níqueis apreendidas não é indispensável à demonstração da materialidade delitiva, tendo em vista que o crime de contrabando não deixa vestígios (art. 158 do Código de Processo Penal), desde que a procedência estrangeira das mercadorias seja provada por outros meios de prova, já que é da acusação o ônus da prova de todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal imputado. III – Se a prova dos autos restringe-se ao laudo pericial juntado, no qual se verifica ser genérica e inconclusiva a análise dos peri-tos, no tocante à procedência estrangeira do material, a absolvição se impõe, com fulcro no art. 386, VII, do Código de Processo Penal. IV – Recurso ministerial desprovido.” (TRF 2ª R. – ACr 2012.50.01.009207-7 – 2ª T.Esp. – Rel. André Fontes – DJe 16.01.2014)

6832 – Crime de desacato – réu localizado no estrangeiro – prazo prescricional – suspensão

“Penal e processual penal. Recurso em sentido estrito. Crime de desacato. Art. 331 do CP. Réu localizado no estrangeiro. Suspensão do prazo prescricional. Art. 368 do CPP. Prescrição

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da pretensão punitiva. Inocorrência. 1. Para a suspensão do prazo prescricional, prevista no art. 368 do CPP, são necessários tão somente dois requisitos: que o réu esteja no estrangei-ro e em lugar conhecido. 2. Tais requisitos são extraídos do próprio texto normativo e são cumulativos, vale dizer, deverão estar presentes concomitantemente para que o Magistrado determine a expedição de carta rogatória para citação do acusado e, consequentemente, fique suspenso o prazo prescricional. 3. Inocorrência da prescrição da pretensão punitiva estatal em face da subsistência da decisão que determinou a suspensão do prazo prescricional e expedição de carta rogatória para intimação do acusado. 4. Recurso em sentido estrito pro-vido.” (TRF 1ª R. – RSE 0001852-72.2011.4.01.3310/BA – Relª Desª Fed. Monica Sifuentes – DJe 17.01.2014)

6833 – Crime de estelionato – tentativa de saques fraudulentos – falsos atestados médicos – autoria e materialidade – comprovação

“Penal e processual penal. Apelação criminal. Estelionato tentado em detrimento da CEF (CP, art. 171, § 3º). Tentativa de saques fraudulentos de contas vinculadas ao FGTS (apresentação de falsos atestados médicos indicativos de serem trabalhadores portadores da Aids). Autoria e materialidade comprovadas. Dosimetria. Higidez. Manutenção da agravante prevista no art. 62, I, do CP. Atenuante da confissão. Aplicação ao corréu. Precedentes. Circunstâncias judiciais. Valoração. Substituição da pena de reclusão por restritivas de direitos. Ocorrência. Confirmação da sentença condenatória. 1. Instrução criminal que positivou a participação dos acusados nos fatos narrados na denúncia, mormente no que se refere à tentativa de saque de valores depositados em contas vinculadas do FGTS. 2. Modus operandi que consistiu em os apelantes providenciarem vários atestados falsos supostamente comprobatórios de que di-versos trabalhadores da Empresa ‘Urbana’ e, mais precisamente no caso desta ação penal, de que Edilson Virgínio era portador de Aids, o que lhe permitiria sacar o montante depositado em sua conta vinculada do FGTS, com base em tal síndrome, obrigando-se, em contrapartida, ao pagamento de recompensa aos acusados na ordem de 20% do valor levantado, o que não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade dos réus. 3. A despeito de a denúncia relatar que os apelantes cometeram inúmeras fraudes idênticas, com a participação de empregados da Empresa ‘Urbana’, mediante o mesmo modo de agir (mediante apresentação de atestados falsos indicativos de serem trabalhadores portadores de Aids), esta ação penal limitou-se à tentativa de saque fraudulento do FGTS pelo beneficiário Edilson Virgínio. 4. Autoria e ma-terialidade comprovadas. 5. Higidez na dosimetria da pena. Valoração das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal. 6.Desacolhe-se a tese de não caracterização da agravante prevista no art. 62, I, do CP, porquanto restou comprovado que os apelantes eram os mentores do ardil característico do crime de estelionato [‘a agravante prevista no art. 62, I, do Código Penal, que pune mais severamente a conduta do autor intelectual do delito, isto é, o idealizador do plano criminoso, que toma a iniciativa ou coordena a atividade dos demais, está perfeitamente caracterizada, pois ficou comprovado que foram os acusados os mentores e promotores do crime de estelionato, que falsificaram os documentos e os entregaram a Edilson Virgínio, pessoa sem instrução, desinformada, com quase 50 anos, dentre os quais 25 anos como gari, conforme relatado no depoimento da testemunha Flávio José prestado em juízo, tudo com tudo o propósito malicioso de se locupletarem em detrimento do FGTS (instituto da economia popular) – trecho da sentença recorrida fls. 248/249]. 7. Acolhe-se em parte a apelação para aplicar a atenuante da confissão para o apelante Márcio, que confessou, certo que de forma parcial, que aceitou a ajuda solicitada pelo corréu Franklin no sentido de acompanhar/transportar as pessoas que tentaram sacar o FGTS junto à agência da CEF, ciente de que receberia colaboração pelo favor prestado, a despeito de ter negado sua efeti-va participação no crime de estelionato. 8. Não se pode alegar que a confissão do acusado Márcio não poderia ter sido valorada positivamente. A aplicação da atenuante da confissão

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espontânea tem caráter objetivo, não se sujeitando a critérios subjetivos ou fáticos. Preceden-tes do STJ (HC 227149/SP, Relª Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, Julgado em 12.11.2013, DJe 25.11.2013 e HC 196056/SP, Relª Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, Julgado em 27.08.2013, DJe 04.09.2013). 9. Confirmação da diminuição da pena em 1/3, mínimo cominado, em face da tentativa (CP, art. 14, II). 10. Ao aplicar a diminuição da pena no seu patamar mínimo (1/3), o juiz sentenciante sopesou o fato de os réus terem percorrido o iter criminis até a iminência da consumação do crime, que somente não ocorreu pela averiguação diligente dos funcio-nários da CEF, que constataram tratar-se de tentativa de saque de FGTS indevido. 11. Penas que restaram fixadas em: 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime aberto, e 45 dias-multa para o acusado Franklin Mourão e Silva e, aplicando a atenuante da confissão, reduzida para 1 (um) ano e 1 (um) mês de reclusão, em regime aberto, e 45 dias-multa para o acusado Márcio André Machado Ferreira. Para ambos os acusados, as penas de reclusão foram substituídas por restritivas de direitos. 12. Apelação parcialmente provida.” (TRF 5ª R. – ACr 0002128-51.2011.4.05.8400 – (10338/RN) – 4ª T. – Rel. Des. Fed. Rogério Fialho Moreira – DJe 23.01.2014)

6834 – Crime de exploração sexual de vulnerável – Varas da Infância e da Juventude – fixa-ção de competência – possibilidade – ação penal – nulidade – inocorrência

“Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Descabimento. Competência do Supremo Tribunal Federal e deste Superior Tribunal de Justiça. Matéria de direito estrito. Modificação de entendimento do STJ, em consonância com o do STF. Crime de exploração sexual de vulnerável. Art. 218-B, § 2º, inciso I, por várias vezes, na forma do art. 71, caput, do Código Penal. Incompetência do juízo. Inexistência. Fixação por lei estadual da competência das va-ras da infância e juventude para julgamento do feito. Possibilidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Ausência de constrangimento ilegal que permita a concessão da ordem ex officio. Ordem de habeas corpus não conhecida. 1. O Excelso Supremo Tribunal Federal, em recente alteração jurisprudencial, retomou o curso regular do processo penal, ao não mais admitir o habeas corpus substitutivo do recurso ordinário. Precedentes: HC 109.956/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, Julgado em 07.08.2012, DJe de 10.09.2012; HC 104.045/RJ, 1ª Turma, Relª Min. Rosa Weber, Julgado em 28.08.2012, DJe de 05.09.2012. Decisões mo-nocráticas dos Ministros Luiz Fux e Dias Toffoli, respectivamente, nos autos do HC 114.550/AC (DJe de 27.08.2012) e HC 114.924/RJ (DJe de 27.08.2012). 2. Sem embargo, mostra-se precisa a ponderação lançada pelo Ministro Marco Aurélio, no sentido de que, ‘no tocante a habeas já formalizado sob a óptica da substituição do recurso constitucional, não ocorrerá prejuízo para o paciente, ante a possibilidade de vir-se a conceder, se for o caso, a ordem de ofício’. 3. O Supremo Tribunal Federal se posicionou no sentido de que Tribunal de Justiça estadual, ao estabelecer a organização e divisão judiciária, pode atribuir a competência para o julgamento de crimes sexuais contra crianças e adolescentes ao Juízo da Vara da Infância e Juventude, por agregação, ou a qualquer outro juízo que entender adequado. 4. No caso, o Tribunal acriano, autorizado pelo Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Acre, fixou a competência das Varas da Infância e da Juventude da Comarca de Rio Branco, por meio da Resolução nº 134/2009, que atribuiu à 2ª Vara Especializada competência para julgar ‘procedimentos criminais envolvendo criança e adolescente na condição de vítimas de Crimes contra a Dignidade Sexual – Parte Especial do Código Penal, Título VI – e os previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C, 241-D e 244-A, da Lei nº 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente’. 5. Não há, portanto, na hipótese em apreço, análoga ao referido julgado da Suprema Corte, nulidade da ação penal por incompetência absoluta do Juízo da 2ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Rio Branco/Acre. 6. Ordem de habeas corpus não conhecida.” (STJ – HC 266.398 – (2013/0070543-0) – 5ª T. – Relª Min. Laurita Vaz – DJe 25.11.2013)

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6835 – Crime de extorsão – ameaça – bens da vítima – destruição de motocicleta – conduta típica – possibilidade

“Penal e processo penal. Recurso especial. Extorsão. Ameaça. Bens da vítima considerados em sua amplitude. Destruição de motocicleta. Conduta típica. Retorno dos autos à origem. Apreciação da tese absolutória formulada na apelação defensiva. 1. A ameaça – promessa de causar um mal –, enquanto meio de execução do crime de extorsão, deve sempre ser dirigida a uma pessoa (alguém), sujeito passivo do ato de constranger. De tal conclusão, porém, não deriva outra: a de que a ameaça se dirija apenas à integridade física ou moral da vítima, como apontou o Tribunal de origem. 2. É certo que a ameaça há de ser grave, isto é, hábil para intimidar a vítima; todavia, não é possível extrair do tipo nenhuma limitação quanto aos bens jurídicos a que tal meio coativo pode se dirigir. Doutrina. 3. Conforme se afirma na Exposição de Motivos do Código Penal, a extorsão é definida numa fórmula unitária, suficientemente ampla para abranger todos os casos possíveis na prática. 4. Configura o crime de extorsão a exigência de pagamento em troca da entrega de motocicleta furtada, sob a ameaça de destrui-ção do bem. Precedente. 5. No caso, impõe-se o retorno dos autos ao Tribunal de origem, a fim de que aprecie a tese defensiva formulada na apelação, que ficou prejudicada em razão do reconhecimento da atipicidade da conduta, ora afastada. 6. Recurso especial parcialmente provido.” (STJ – REsp 1.207.155/RS – (2010/0162339-7) – 6ª T. – Rel. Min. Sebastião Reis Junior – DJe 26.11.2013)

Comentário Editorial SÍNTESEO vertente acórdão trata de recurso especial interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça local, em acórdão assim ementado:

“Apelação crime. Extorsão. Ligações para a vítima visando à obtenção de dinheiro em troca da entrega de motocicleta furtada, sob pena de destruição do bem. Ameaça que não se amolda à prevista no tipo. Absolvição.”

O art. 158 do Código Penal prevê:

“Art. 158. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.”

Não é qualquer ameaça que configura o crime de extorsão. A ameaça embutida no crime de extorsão tanto pode recair sobre a vítima como também sobre os seus bens. Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

No presente recurso, alega-se, em síntese, negativa de vigência ao art. 158, § 1º, do Código Penal, sob o fundamento de que a grave ameaça inerente ao delito de extorsão pode dizer respeito a bens do patrimônio da vítima, não se limitando à sua integridade física ou de terceiro.

Ocorre que o recorrido foi absolvido na segunda instância. O Tribunal entendeu que a vítima foi ameaçada e optou por pagar e receber o bem, porém, não houve ameaça à sua integridade física ou moral.

Inconformado com a decisão, Ministério Público recorreu ao STJ.

O Relator mencionou em seu voto que a ameaça capaz de caracterizar a extorsão deve ser sempre feita a uma pessoa, e ser grave o suficiente para intimidar a vítima que o criminoso pretende constranger.

Porém, explicou o Relator, isso não significa que a extorsão só seja caracterizada quando a ameaça for dirigida à integridade física ou moral da pessoa.

Vale trazer trecho do voto do Relator:

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“Na jurisprudência, colhe-se precedente no mesmo sentido, em caso similar ao ora tratado, oriundo do Supremo Tribunal Federal:

[...]

Configura o crime de extorsão a exigência de pagamento de certo valor, sob pena de destruição, para devolver-se máquinas subtraídas por terceiro. A gradação da ame-aça é apreciada de forma objetiva, sendo que a exigência da vantagem econômica indevida desloca o crime do art. 147 – o de simples ameaça – para o de extorsão – art. 158 –, ambos do Código Penal.” (HC 77.208, Min. Marco Aurélio, 2ª Turma, DJ 30.10.1998)

Diante do exposto, o Superior Tribunal de Justiça deu parcial provimento ao recurso especial, para reconhecer a tipicidade da conduta e determinar que o Tribunal a quo aprecie a tese defensiva formulada na apelação.

6836 – Crime de furto qualificado – pretensão absolutória – insuficiência de provas – rejeição

“Apelações criminais. Estado de Sergipe e da defesa. Crime de furto qualificado (art. 155, § 4º, IV, do Código Penal). Pretensão absolutória sob o argumento de insuficiência de provas. Rejeitado. Autoria e materialidade demonstradas. Prisão em flagrante. Pleito de aplicação do princípio da insignificância. Não acolhido. Considerável valor econômico do bem furtado. Pleito de reforma da dosimetria. Acolhimento. Pena base excessivamente majorada pelo Ma-gistrado a quo. Análise equivocada de circunstâncias judiciais desfavoráveis. Pena final refor-mada ante a ausência de circunstância judicial e fixada em 02 anos de reclusão em regime inicial aberto. Reclusão e 10 dias-multa. Pena substituída por duas penas restritivas de direito. I – A conclusão a que chegou a respeitável sentença monocrática restou de todo compatível com a prova existente no corpo dos autos. II – Reformada a dosimetria para fixação da pena base no seu patamar mínimo, operada a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito. Recurso parcialmente provido. Decisão unânime apelo do Estado de Ser-gipe. Pedido de redução do valor arbitrado. Inexistência de excesso no quantum estabeleci-do. Sentença mantida. Nomeação de defensor dativo. Condenação do ente estatal às verbas honorárias. Verba devida pelo Estado de Sergipe. Inteligência do art. 22, § 1º, da Lei Federal nº 8.906/94. Apelo improvido. I – Inexistindo ou sendo insuficiente o serviço oficial de as-sistência gratuita aos réus pobres, que respondem a processos-crime em determinado juízo ou comarca, admite-se a nomeação de advogado dativo para servir como defensor. Tendo o profissional nomeado cumprido o seu mister, cabe a Fazenda Pública do Estado respectivo, o pagamento dos honorários devidos; II – O valor arbitrado a título de honorários ao defen-sor dativo, na decisão de piso encontra-se em consonância com o § 4º do art. 20 do CPC, estando ainda de acordo com as determinações estabelecidas pela ordem dos advogados do Brasil, seccional de Sergipe. Apelo improvido. Recursos conhecidos para prover parcialmente o apelo da defesa e improver o apelo interposto pelo Estado de Sergipe. Decisão unânime.” (TJSE – ACr 2013322726 – (19374/2013) – Relª Desª Geni Silveira Schuster – DJe 08.01.2014)

6837 – Crime de homicídio – delito de trânsito – desclassificação – lesão corporal culposa – possibilidade

“Recurso especial. Penal e processual penal. Crime de homicídio tentado. Desclassificação. Possibilidade. Irradiação dos efeitos objetivos da coisa julgada material. Reconhecimento de conduta culposa. Resultado doloso. Impossibilidade. Prescrição da pretensão punitiva do Es-tado. Ocorrência. Extinção da punibilidade do agente. Recurso provido. 1. Na esfera penal, os efeitos da coisa julgada material estão previstos expressamente no art. 110, § 2º, do Código de Processo Penal e atingem a parte dispositiva da sentença, bem como o fato principal,

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independentemente da qualificação jurídica a ele atribuída, irradiando os seus efeitos para dentro e para fora do processo, ficando o órgão julgador vinculado ao que foi decidido. 2. Os efeitos da coisa julgada material têm por objetivo evitar a prolação de decisões conflitantes referentes ao mesmo fato e sujeitos processuais, observando o princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações de direito material. 3. No caso, o agente, mediante uma só ação, deu causa a resultados jurídicos diversos – morte e lesão corporal de vítimas distintas. A despeito da ocorrência de concurso formal de crimes, os fatos tiveram tramitação em dife-rentes procedimentos penais. Em relação ao processo criminal referente ao resultado morte (que não é objeto do presente recurso), o agravante, ao ser submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri por crime de homicídio doloso, teve a sua conduta desclassificada para ho-micídio culposo, tendo a decisão transitada em julgado. Referindo-se esse processo à mesma conduta que se examina no presente feito, é de rigor a extensão dos efeitos daquela decisão transitada em julgado para os autos desta ação penal, reconhecendo-se, assim, tratar-se, no caso, igualmente de conduta culposa, haja vista a prática de apenas um ato pelo agente. 4. Havendo a prática de uma conduta culposa pelo agravante, o resultado naturalístico e inde-sejado somente lhe pode ser imputado a título culposo, situação que impõe a desclassificação do fato para lesão corporal culposa (art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro). 5. A sentença de pronúncia e o acórdão que a confirma continuam a ser marcos interruptivos da prescrição, ainda que procedida a desclassificação da conduta do agente. Súmula nº 191/STJ. 6. Diante da reclassificação do crime e, verificando-se a nova pena abstratamente cominada ao delito – 2 (dois) anos de detenção –, constato o transcurso do lapso prescricional entre a data do acórdão que confirmou a decisão de pronúncia (07.12.2004) – último marco interruptivo dos autos – até a presente data. Recurso especial provido para reclassificar a conduta para o crime previsto no art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro e, nos termos do art. 61 do Código de Processo Penal, declarar extinta a punibilidade do agente pela prescrição da pretensão punitiva do Estado.” (STJ – REsp 1.021.670/SP – (2008/0002866-8) – Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze – DJe 11.12.2013)

Comentário Editorial SÍNTESEO vertente acórdão trata de recurso especial interposto com fulcro no art. 105, III, a e c, da Constituição da República, contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O acórdão recorrido violou os arts. 14, I e II, 18, I e II, 121, caput, todos do Código Penal, 303 do Código de Trânsito Brasileiro e os arts. 410, caput, 609 e 619, todos do Código de Processo Penal, bem como divergiu de julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

A defesa alega que a tentativa é incompatível com o dolo eventual, razão pela qual deve ser desclassificada a conduta do recorrente para lesão corporal culposa.

Aduz que as provas demonstram a inexistência de dolo eventual.

Observa que houve violação ao art. 385 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, uma vez que o Relator e o revisor dos embargos infringentes deveriam ser integrantes da 3ª Câmara Criminal e não da 4ª Câmara, a qual havia procedido ao julgamento do recurso em sentido estrito.

Com isso, pleiteia a desclassificação do crime para lesão corporal culposa.

Após decisão do Tribunal do júri que condenou o réu por crime culposo, não é possível que ele seja condenado, em outro processo, por crime doloso resultante da mesma conduta.

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Vale trazer trecho do voto do Relator:

Se o agente mediante ação ou omissão imprudente, negligente ou imperita – espé-cies de culpa – dá causa a um resultado indesejado, este não poderá ser imputado a título de dolo, mas tão somente a título culposo, pois uma conduta culposa não pode dar causa a resultado doloso, visto que não deriva da intenção do agente e sim da violação de um dever objetivo de cuidado. Ou seja, se o agente não teve a intenção de produzir o resultado, não o quis e nem assumiu o risco de produzi-lo – dolo – mas, por violação a dever jurídico de cuidado – culpa – deu causa a resultado típico, ilícito e culpável, este não lhe pode ser imputado a título doloso, mas apenas culposamente e desde que previsto em lei a punição daquele fato a título culposo, uma vez que, no crime culposo, o resultado danoso é involuntário. Portanto, se prati-cado o fato mediante conduta culposa, o resultado advindo daquela somente poderá ser imputado ao agente a título culposo por uma ligação causal de previsibilidade do evento danoso.

Nesse sentido é a lição de Guilherme de Souza Nucci:

Elementos da culpa.

a) concentração na análise da conduta voluntária do agente, isto é, o mais importan-te na culpa é a análise do comportamento e não do resultado;

b) ausência do dever de cuidado objetivo, significando que o agente deixou de seguir as regras básicas e gerais de atenção e cautela, exigíveis de todos que vivem em sociedade. Essas regras gerais de cuidado derivam da proibição de ações de risco que vão além daquilo que a comunidade juridicamente organizada está disposta a tolerar (cf. Marco Antonio Terragni, El delito culposo, p. 29).

c) resultado danoso involuntário, ou seja, é imprescindível que o evento lesivo jamais tenha sido desejado ou acolhido pelo agente.

d) previsibilidade [...]

e) ausência de previsão [...]

f) tipicidade, vale dizer, o crime culposo precisa estar expressamente previsto no tipo penal. [...]

g) nexo causal, significando que somente a ligação, através da previsibilidade, entre a conduta do agente e o resultado danoso pode constituir o nexo de causalidade no crime culposo, já que o agente não deseja a produção do evento lesivo (NUCCI, G. S. Manual de direito penal: parte geral e parte especial. 6. ed. [s.l.]: Revista dos Tribunais, 2009. p. 231/232).

Como a natureza culposa da conduta do acusado foi decidida pelo Tribunal do júri e isso não pode ser modificado, o Relator afirmou que não é possível a condenação por tentativa de homicídio. Com esse entendimento, a conduta foi desclassificada para lesão corporal culposa.

6838 – Crime de peculato – crime consumado – ausência de ilegalidade – perda do cargo público – fundamentação – necessidade

“Habeas corpus. Tese de tentativa do crime de peculato. Crime consumado. Ausência de ilegalidade. Perda do cargo público. Efeito específico da condenação. Necessidade de fun-damentação. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida. 1. A consumação do crime de peculato-apropriação previsto no art. 312, caput, 1ª parte, do Código Penal, ocorre no momento em que o funcionário público, em virtude do cargo, começa a dispor do dinheiro, valores ou qualquer outro bem móvel apropriado, como se proprietário fosse. 2. No caso, o

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delito de peculato se consumou no momento em que os pacientes, policiais civis, dividiram 293 caixas de cigarros, desacompanhadas de documentação legal, entre duas embarcações, a fim de não entregar para a Polícia Federal a totalidade das mercadorias que apreenderam, em razão do cargo, independente da efetiva obtenção de vantagem indevida. 3. A perda do cargo público prevista no art. 92, inciso I, do Código Penal não constitui efeito automático da condenação, razão pela qual, para a sua imposição, é necessária a devida motivação, a teor do disposto no parágrafo único do mesmo dispositivo, bem como no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal. Precedentes. 4. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida para, mantida a condenação imposta, anular a sentença de primeiro grau e o acórdão do Tribunal tão somente na parte relativa à imposição da perda do cargo público, por falta de fundamenta-ção.” (STJ – HC 185.343 – (2010/0171446-0) – 5ª T. – Relª Min. Laurita Vaz – DJe 26.11.2013)

6839 – Crime de roubo qualificado – concurso formal – pleito de absolvição – impossibilidade

“Apelações criminais. Crime de roubo qualificado em concurso formal (art. 157, § 2º I e II c/c art. 70 do Código Penal). Apelação criminal da defesa e do Ministério Público. Apelação do réu Josivaldo Santan dos Santos. Pleito objetivando a absolvição. Tese insubsistente. Autoria e materialidade devidamente comprovadas. Pleito de reforma da dosimetria. Rejeitado. Pena--base fixada corretamente acima do mínimo legal. Existência de circunstancias judiciais desfa-voráveis. Na segunda fase presença de agravante da reincidência. Na terceira fase. Incidência de mais de uma qualificadora. Majoração no patamar de 1/3. Concurso formal. Aumento pro-porcional ao número de vítimas. Pena final fixada para ambos os réus em 07 (SETE) anos e 08 (OITO) meses e 13(treze) dias de reclusão em regime inicial fechado. Apelo improvido. Deci-são unânime. Apelação criminal. Recurso ministerial. Crime de roubo qualificado. Concurso de pessoas e emprego de arma (art. 157, § 2º, I e II, do CP). Pleito de reforma da dosimetria das penas dos apelados. Rejeitado. Circunstâncias judiciais bem analisadas na sentença. Pena base fixada acima do mínimo em face às circunstâncias judiciais desfavoráveis. Réu reinci-dente. Causa de aumento majorada em 1/3. Majoração da pena em razão do concurso formal. Precedentes do STJ. 1. Presente duas circunstâncias judiciais desfavoráveis ao réu autoriza a fixação da pena base levemente acima do mínimo legal. 2. Dosimetria irretorquível dosada em bem dosada nos termos do art. 59 e 68 do CP na sentença, restando a pena definitiva em 7 anos e 08 meses e 13 dias de reclusão em regime fechado. 3. No que se refere ao aumento das penas pelo concurso formal, sem embargo do silêncio da lei, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram, com base na razoabilidade e na proporcionalidade, a ideia de que o valor do aumento deve ser proporcional ao número de vítimas. Apelo improvido. Decisão unânime. Recursos conhecidos e improvidos.” (TJSE – ACr 2013323327 – (19425/2013) – Relª Desª Geni Silveira Schuster – DJe 08.01.2014)

6840 – Estelionato qualificado – terra desapropriada – dolo não caracterizado

“Penal. Estelionato qualificado. Gleba de terra desapropriada duplamente. Dolo não caracteri-zado. Princípio do in dubio pro reo. 1. Não informando ao Incra a respeito de desapropriação anterior, a suposta omissão do acusado teria configurado o crime de estelionato qualificado (art. 171, § 3º, do CP), pois teria induzido a erro a autarquia, obtendo para si, de forma frau-dulenta, o valor da segunda desapropriação sobre a terra que não mais lhe pertencia. 2. De- monstrado que o acusado não agiu com o dolo de se apropriar de recursos do Incra, pois o de-sencontro de informações decorreu das disfunções do registro imobiliário, não deve subsistir a condenação por estelionato. Não houve a demonstração da vontade livre e consciente de, mediante ardil, fraudar o Incra, impondo-se a absolvição (art. 386, VII, do CPP). Incidência do

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princípio in dubio pro reo. 3. Apelação provida.” (TRF 1ª R. – ACr 2003.39.01.000168-0/PA – Rel. Des. Fed. Olindo Herculano de Menezes – DJe 22.01.2014)

6841 – Estupro de vulnerável – favorecimento da prostituição – prisão preventiva – decisão fundamentada

“Penal. Processual penal. Habeas corpus. Estupro de vulnerável e favorecimento de prostitui-ção ou outra forma de exploração sexual de vulnerável. CP, arts. 217-A e 218-B, § 2º, inciso I, c/c art. 71. Prisão preventiva. Decisão fundamentada. CPP, art. 312. Requisitos pessoais. Garantia. Não configuração. Constrangimento ilegal. Não caracterização. Manutenção da prisão cautelar. Denegação da ordem. Competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento do feito. 1. Afastada a alegação de constrangimento ilegal, em razão de possível incompetência da Justiça Federal. Caracterizada, em princípio, a ofensa ao direito de uma comunidade indígena à preservação de seu patrimônio moral e eventual, decorrente da ati-vidade criminosa. Incidência do art. 109-XI da Constituição Federal. Questão que demanda exame aprofundado de provas. Inviabilidade em sede de habeas corpus. 2. Não caracterizado constrangimento ilegal. Prisão preventiva devidamente fundamentada. Ameaça a testemunha (art. 312 do CPP). 3. Os requisitos pessoais do réu, por si sós, não lhe garantem o direito de liberdade provisória. 4. Ordem denegada.” (TRF 1ª R. – HC 0065389-10.2013.4.01.0000/AM – Rel. Juiz Fed. Conv. Antônio Oswaldo Scarpa – DJe 20.01.2014)

6842 – Execução penal – livramento condicional – gravidade do delito – indeferimento

“Penal e processual penal. Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Utilização do remédio constitucional como sucedâneo de recurso. Não conhecimento do writ. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Execução penal. Livramento condicional. Indeferimento, pelo juízo das execuções, com base na gravidade dos delitos e da longa pena a cumprir. Alegação de falta de fundamentação idônea para o indeferimento do benefício. Habeas corpus originário não conhecido, ante a suposta inadequação da via eleita. Questão de direito, que independe de análise fático-probatória. Habeas corpus não conheci-do. Constrangimento ilegal evidenciado. Retorno dos autos à origem. Existência de ilegalida-de, a ensejar a concessão de habeas corpus, de ofício. I – Dispõe o art. 5º, LXVIII, da Cons-tituição Federal que será concedido habeas corpus ‘sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder’, não cabendo a sua utilização como substituto de recursos ordinários, tam-pouco de recursos extraordinário e especial, nem como sucedâneo da revisão criminal. II – A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar os HCs 109.956/PR (DJe de 11.09.2012) e 104.045/RJ (DJe de 06.09.2012), considerou inadequado o writ, para substituir recurso ordi-nário constitucional, em habeas corpus julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, reafirmando que o remédio constitucional não pode ser utilizado, indistintamente, sob pena de banalizar o seu precípuo objetivo e desordenar a lógica recursal. III – O Superior Tribunal de Justiça também tem reforçado a necessidade de se cumprir as regras do sistema recursal vigente, sob pena de torná-lo inócuo e desnecessário (art. 105, II, a, e III, da CF/1988), considerando o âm-bito restrito do habeas corpus, previsto constitucionalmente, no que diz respeito ao STJ, sem-pre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, nas hipóteses do art. 105, I, c, e II, a, da Carta Magna. IV – Nada impede, contudo, que, na hipótese de habeas corpus substitutivo de recursos especial e ordinário ou de revisão criminal – que não merece conhecimento –, seja concedido habeas corpus, de ofício, em caso de flagrante ilegalidade, abuso de poder ou de-

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cisão teratológica. V – Hipótese em que, formulado pedido de livramento condicional, o Juízo das Execuções, embora admitindo que o paciente cumprira o requisito do art. 83, II, do Códi-go Penal, houve por bem indeferi-lo, diante da gravidade abstrata dos delitos praticados e da longa pena a cumprir. Impetrado habeas corpus, na origem, não foi conhecido o writ, ante a inadequação da via eleita. VI – Inexiste óbice à análise do pedido formulado no habeas corpus originário, ainda que examinando a matéria, de ofício, nos termos do art. 654, § 2º, do CPP, eis que não se faz necessária, na espécie, incursão na seara fático-probatória, na medida em que se cuida de questão de direito, consubstanciada na tese da impetração de que o indeferi-mento do pedido de livramento condicional não se teria dado mediante decisão devidamente fundamentada, com base em dados idôneos e concretos, ou seja, sustenta-se que a gravidade dos delitos praticados e a longa pena a cumprir não ensejam, por si só, a negativa do pedido de livramento condicional, quando cumprido o requisito objetivo do art. 83, II, do Código Penal e apresentado atestado de bom comportamento carcerário. VII – É certo que esta Corte firmou entendimento no sentido do descabimento da via do habeas corpus, como substitutiva de recursos ordinário e especial. Contudo, essa nova sistemática não subtrai, da apreciação do Judiciário, a análise acerca da existência ou não de ilegalidade flagrante, que possa justificar a concessão da ordem, de ofício, nos termos do art. 654, § 2º, do CPP. Precedentes do STJ. VIII – Como o Tribunal de 2º Grau não apreciou o mérito do habeas corpus, não conhecendo do writ, em questão que envolve, diretamente, o direito de locomoção do paciente, e no qual se discute tese de direito, há constrangimento ilegal, a ser reparado, in casu, mediante a con-cessão da ordem, de ofício, a teor do art. 654, § 2º, do CPP. Impossibilidade de o STJ apreciar o mérito da impetração originária, sob pena de supressão de instância. Precedentes. IX – Na forma da jurisprudência, ‘tratando-se de matéria de direito, a despeito da existência de via processual própria, o Tribunal a quo deve proceder ao exame da flagrante ilegalidade aponta-da, se existente ou não. Impetração não conhecida. Ordem de habeas corpus concedida, de ofício, a fim de determinar ao Tribunal a quo que examine o pedido deduzido no mandamus originário, decidindo como entender de direito’ (STJ, HC 264.046/SP, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª Turma, DJe de 23.09.2013). X – Habeas corpus não conhecido. XI – Ordem concedida, de ofício, para determinar, ao Tribunal de 2º Grau, que examine o mérito do habeas corpus originário, decidindo como entender de direito, mormente no que concerne à possibilidade de concessão da ordem, de ofício.” (STJ – HC 213.498 – (2011/0165602-1) – 6ª T. – Relª Min. Assusete Magalhães – DJe 26.11.2013)

6843 – Execução penal – progressão de regime – indeferimento

“Penal e processual. Recurso de agravo. Execução penal. Arts. 213 e 214 do Código Penal. Indeferimento de pedido de progressão para o regime aberto. Autorização para trabalho ex-terno e saídas temporárias. Decisão fundamentada. Recurso não provido. O cumprimento do requisito objetivo e o bom comportamento carcerário, não bastam para a progressão ao regime aberto, em se tratando de sentenciado cujo laudo criminológico apresentou traços negativos de personalidade, com recomendação de acompanhamento psicológico. Tem-se como suficientemente fundamentado o indeferimento do pedido de progressão de regime, ancorado na necessidade de proporcionar ao recorrente as condições para uma reintegra-ção harmônica à sociedade, que é uma das metas da execução penal, revelando que o juiz está atento à situação do preso, promovendo a execução da pena com observância do sis-tema progressivo e adoção das cautelas que a espécie recomenda, inclusive, a continuidade do acompanhamento psicológico.” (TJDFT – Proc. 20130020279086 – (747984) – Rel. Des. Romão C. Oliveira – DJe 14.01.2014)

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6844 – Falsidade ideológica – prescrição – incompetência – nulidades rejeitadas

“Apelação. Falsidade ideológica. Preliminares de prescrição, incompetência e nulidade rejei-tadas. Materialidade e autoria comprovadas. Nos termos do art. 125, § 2º, alínea d, do Código Penal Militar, o marco inicial para a contagem do prazo prescricional, nos crimes de falsida-de, ‘é a data em que o fato se tornou conhecido’. Portanto, à luz do art. 125, inciso VI, e § 1º, do Código Penal Militar, c/c o art. 110, § 2º, do Código Penal Comum, com a redação anterior à Lei nº 12.234, de 5 de maio de 2010, por ser mais benéfica ao apelante, e considerando o trânsito em julgado para o Ministério Público Militar, além da pena aplicada de um ano de reclusão, não se verifica o transcurso do prazo prescricional de quatro anos entre a data em que o fato se tornou conhecido e a do recebimento da denúncia. Tampouco se vislumbra a prescrição entre os demais termos interruptivos elencados no art. 125, § 5º, do referido Có-dex. O foro competente para processar e julgar ilícito penal consubstanciado em falsificação de documento expedido por Junta de Alistamento Militar é a Justiça Militar da União, pois a conduta em exame atingiu, em tese, a ordem administrativa militar. Inteligência do art. 9º, inciso III, alínea a, parte final, do Código Penal Militar. Não se vislumbra qualquer ofensa aos princípios da ampla defesa e do contraditório. O acusado foi devidamente citado e consignou sua impossibilidade de deslocamento à sede da Auditoria Militar por razões financeiras, sendo interrogado por carta precatória, na presença de defensora dativa. O acompanhamento dos depoimentos testemunhais pelo réu deixaria de atender aos seus próprios interesses, na medi-da em que a imposição da referida obrigação lhe acarretaria prejuízos com os quais declarou estar impossibilitado de arcar. A materialidade e a autoria estão sobejamente demonstradas, por meio das fartas provas documentais, da confissão do acusado e das provas orais carreadas aos autos. Preliminares de prescrição, incompetência e nulidade rejeitadas. Apelação despro-vida. Decisão unânime.” (STM – Ap 88-17.2011.7.01.0201 – Rel. Min. William de Oliveira Barros – DJe 18.12.2013)

6845 – Fraude à licitação – apresentação de certidão falsa – Justiça Federal – incompetência

“Processo penal. Apelação criminal. Fraude à licitação. Inserção de informações falsas em contrato social. Ausência de conexão. Incompetência da Justiça Federal para os crimes de falsidade ideológica. Nulidade da sentença. I – O réu foi denunciado por ter apresentado, em 05.12.2006, em nome da Master Petro Serviços Industriais Ltda., por ocasião de licitação realizada na Polícia Rodoviária Federal (Pregão nº 11/2006), duas certidões ideologicamente falsas, bem como teria inserido informações falsas no contrato social da mencionada so-ciedade empresária e posteriores alterações, com o intuito de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. O Juízo a quo declarou extinta a punibilidade do réu ‘no tocan-te à constituição da sociedade Arb. Comércio de Combustíveis, verificada em 30.09.1996’, ao mesmo tempo em que o condenou pela prática dos crimes descritos no art. 93 da Lei nº 8.666/1993 e art. 299 do Código Penal (seis vezes). II – após a prolação da sentença e, ante a ausência de recurso por parte da acusação, o Juízo a quo declarou a extinção da punibilidade pela ocorrência da prescrição retroativa pela pena aplicada relativamente ao crime do art. 93 da Lei nº 8.666/1993, bem como quanto às duas primeiras alterações contratuais da Master Petro, tendo em vista os lapsos temporais entre as datas dos fatos e o recebimento da denún-cia. III – a despeito do Magistrado de primeiro grau ter recebido a denúncia relativamente aos delitos tipificados no art. 299 do CP e, ainda, declarado a extinção da punibilidade pela prescrição quanto a três das alterações contratuais, tais condutas não são da competência da Justiça Federal, tendo em vista que não há nenhum liame entre as mesmas e a fraude ao pre-gão eletrônico realizado pela Polícia Rodoviária Federal ou a qualquer outro fato de interesse

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da União Federal, de suas autarquias ou fundações, inexistindo qualquer elemento hábil a en-sejar a incidência de regra de conexão ou continência prevista no Código de Processo Penal no caso em concreto. IV – reconhecida, de ofício, a incompetência da Justiça Federal para a Ação Penal nº 2007.50.01.001938-0, relativamente à conduta relacionada à inserção de in-formações falsas nas alterações contratuais da Master Petro Serviços Industriais Ltda. Sentença de fls. 398/433 e decisão de fls. 445/448, declaradas nulas, bem como todos os atos proces- suais praticados relativamente ao delito do art. 299, do CP, até o recebimento da denúncia por este crime (inclusive) à fl. 14. Determinação de desmembramento do feito relativamente aos crimes do art. 299 do CP para encaminhamento para a Justiça Estadual. Prejudicada a análise da apelação do réu Claudio Ribeiro Barros.” (TRF 2ª R. – ACr 0001938-26.2007.4.02.5001/ES – 2ª T.Esp. – Rel. Des. Fed. Marcelo Pereira da Silva – DEJF 25.10.2013 – p. 11)

6846 – Furto – atipicidade material – princípio da insignificância – inviabilidade

“Agravo regimental no recurso especial. Penal. Furto. Atipicidade material da conduta. Prin-cípio da insignificância. Inviabilidade. Reincidência específica. I – Ainda que reduzido o valor da coisa subtraída ou pequena a lesão jurídica ocasionada pelo furto, a reincidência específica é prognóstico de risco social, recaindo sobre a conduta do acusado elevado grau de reprovabilidade, o que impede a aplicação do princípio da insignificância. II – Agravo regimental improvido.” (STJ – AgRg-REsp 1.387.168 – (2013/0187304-5) – 5ª T. – Relª Min. Regina Helena Costa – DJe 28.11.2013)

6847 – Habeas corpus – indeferimento – realização de perícia – caráter substitutivo de re-curso – descabimento

“Agravo regimental in habeas corpus. Violência contra inferior. Juízo de retratação. Decisão mantida. Irresignação da defesa. Produção de prova pericial. Caráter substitutivo de recurso. Não cabimento da via eleita. O preceito primário do crime previsto no art. 175 do CPM, que tem como rubrica marginal a conduta típica de praticar ‘violência contra inferior’, não exige resultado material ou vestígios. O remédio constitucional não é cabível para atacar decisão judicial que indeferiu pedido de realização de perícia em instrumento de crime (‘vara de madeira’). Impropriedade do remédio heróico ante o evidente caráter substitutivo de recurso. Inocorrência de qualquer ilegalidade ou abuso de poder na liberdade de locomoção. Agravo regimental interposto pela Defensoria Pública da União com o fito de desconstituir decisão mo-nocrática que negou seguimento a habeas corpus impetrado contra indeferimento de pedido de exame pericial indeferido pelo Colegiado a quo. Juízo de retratação. Irretratabilidade. Agra-vo regimental não acolhido por decisão unânime.” (STM – AgRg 214-47.2013.7.00.0000/AM – Rel. Min. José Américo dos Santos – DJe 09.01.2014)

6848 – Homicídio culposo – acidente de trânsito – omissão de socorro – compensação de culpa

“Apelação da defesa. Acidente de trânsito. Homicídio culposo. Inobservância dos cuidados devidos e omissão de socorro. Compensação de culpa. Impossibilidade. Presentes as provas conclusivas da responsabilidade do condutor do veículo em acidente do qual resultou víti-ma fatal, justifica-se a condenação em conformidade com o art. 206 do CPM. Mantém-se a condenação em homicídio culposo, agravada pelo § 1º do art. 206 do CPM, quando carac-terizadas a imprudência e a negligência do motorista, que não tomou os devidos cuidados para evitar a consumação do delito, bem como por evadir-se do local do acidente sem prestar

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socorro à vítima. A alegação de comportamento culposo da vítima não elide a responsabi-lidade penal do condutor, pois o direito penal pátrio não admite a compensação de culpa. Desprovido o apelo da defesa para manter a sentença hostilizada. Decisão unânime.” (STM – Ap 161-14.2010.7.01.0301 – Rel. Min. Olympio Pereira da Silva Junior – DJe 09.01.2014)

6849 – Homicídio culposo – omissão de socorro – cuidados devidos – inobservância

“Apelação da defesa. Acidente de trânsito. Homicídio culposo. Inobservância dos cui-dados devidos e omissão de socorro. Compensação de culpa. Impossibilidade. Presentes as provas conclusivas da responsabilidade do condutor do veículo em acidente do qual resultou vítima fatal, justifica-se a condenação em conformidade com o art. 206 do CPM. Mantém-se a condenação em homicídio culposo, agravada pelo § 1º do art. 206 do CPM, quando caracterizadas a imprudência e a negligência do motorista, que não tomou os de-vidos cuidados para evitar a consumação do delito, bem como por evadir-se do local do acidente sem prestar socorro à vítima. A alegação de comportamento culposo da vítima não elide a responsabilidade penal do condutor, pois o direito penal pátrio não admite a compensação de culpa. Desprovido o apelo da defesa para manter a sentença hostilizada. Decisão unânime.” (STM – Ap 161-14.2010.7.01.0301 – Rel. Min. Olympio Pereira da Silva Junior – DJe 09.01.2014)

6850 – Homicídio qualificado – forma tentada – extinção da punibilidade – insuficiência de provas

“Recurso em sentido estrito. Homicídios qualificados na forma tentada (art. 121, § 2º, IV, c/c art. 14, II, do Código Penal). Segundo recorrente. Comprovação de seu óbito. Extinção da punibilidade. Art. 107, I, do CP. Recurso prejudicado. Primeiro recorrente. Sentença de pro-núncia. Existência de indícios suficientes de autoria e comprovação da materialidade delitiva. Art. 413 do CPP. Alegação de legítima defesa (art. 25 do CP). Insuficiência de provas da ex-cludente de ilicitude. Descabimento da absolvição sumária. Impossibilidade da aplicação do art. 415, inciso IV, do CPP. Desclassificação para o delito de lesões corporais (art. 129 do CP). Ausência de convicção plena da ocorrência de crime diverso daqueles previstos no art. 74, § 1º, do CPP. Exclusão das qualificadoras. Impossibilidade de avaliação subjetiva da prova sob pena de usurpação da competência do Tribunal de júri. Precedentes jurisprudenciais. Pro-núncia mantida. Recurso conhecido e improvido.” (TJSE – RSE 2013304408 – (19385/2013) – Rel. Des. Edson Ulisses de Melo – DJe 08.01.2014)

6851 – Homicídio qualificado – lesão corporal – desclassificação – necessidade

“Recurso ordinário em habeas corpus. Homicídio qualificado. Pretendida desclassificação para lesão corporal seguida de morte e reconhecimento do estado de necessidade. Questões a serem sopesadas pelo Tribunal do júri. Impossibilidade de análise na via estreita do writ. 1. As teses defensivas consistentes na alegada classificação equivocada do delito, uma vez que defende-se que a conduta do agente cingiu-se à prática de lesão corporal seguida de morte e foi executada em estado de necessidade, são questões a serem discutidas e sopesadas no momento processual oportuno e pelo órgão judicial competente, qual seja, o Tribunal do Júri, e não na via restrita do recurso ordinário em habeas corpus. Segregação cautelar. Ex-cesso de prazo. Eventual delonga superada com a prolação da sentença provisional. Súmula nº 21 deste STJ. 1. Pronunciado o acusado, resta superada eventual delonga em sua prisão decorrente de alegado excesso de prazo na finalização da primeira etapa do processo afe-

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to ao Júri (Súmula nº 21 deste STJ). Prisão preventiva. Manutenção em sede de pronúncia. Custódia antecipada baseada em argumentos abstratos. Menção genérica aos pressupostos insertos no art. 312 do CPP. Ausência de fundamentação concreta da ordem constritiva à luz do art. 312 do CPP. Condições pessoais. Favorabilidade. Medidas cautelares alternativas. Necessidade, adequação e suficiência. Coação em parte evidenciada. Recurso parcialmente provido. 1. Há constrangimento ilegal quando a preventiva encontra-se fundada em argu-mentos abstratos, dissociada de qualquer elemento concreto e individualizado que indicasse a indispensabilidade da prisão cautelar à luz do art. 312 do CPP. 2. A preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar e quando realmente mostre-se necessária e adequada às circunstâncias em que cometido o delito e às condições pessoais do agente. Exegese do art. 282, § 6º, do CPP. 3. Caso concreto em que se mostra necessária, devida e suficiente a imposição de medidas cautelares alternativas, dadas as circunstâncias em que cometido o delito e às condições pessoais do agente, primário, sem antecedentes criminais, com residência fixa e profissão definida. 4. Condições pessoais favo-ráveis, mesmo não sendo garantidoras de eventual direito à soltura, merecem ser devidamente valoradas, quando demonstrada possibilidade de substituição da prisão por cautelares diver-sas, proporcionais, adequadas e suficientes ao fim a que se propõem. 5. Recurso ordinário parcialmente provido para revogar a prisão preventiva do recorrente, mediante a imposição das medidas alternativas previstas no art. 319, I, II, IV e V, do Código de Processo Penal.” (STJ – Rec-HC 39.139 – (2013/0206306-6) – 5ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe 27.11.2013)

6852 – Interrogatório – videoconferência – carta precatória – réus com domicílio distante do juízo da culpa – dificuldades financeiras – demonstração

“Penal e processual penal. Habeas corpus. Interrogatório mediante videoconferência ou carta precatória. Réus com domicílio distante do juízo da culpa. Dificuldades financeiras para o deslocamento. Excepcionalidade não demonstrada. Prejuízo à instrução criminal. Denega-ção da ordem. 1. O interrogatório do acusado é ato processual que deve ser realizado, em regra, presencialmente, perante o juízo onde a ação penal tem trâmite, sendo admissível, em situações excepcionais, devidamente justificadas, a sua realização através do sistema de videoconferência ou carta precatória. 2. Caso em que, nada obstante os pacientes residam em local distante do juízo da culpa, em outro Estado da Federação, a alegada hipossuficiência de recursos para o seu deslocamento não veio demonstrada com quaisquer elementos, restando enfraquecida a alegação diante da constatação, de um lado, de que a empresa titularizada pelos pacientes, no ramo de importação e exportação, tinha atuação, ao menos até fevereiro de 2009, no Município-Sede da Subseção Judiciária onde a persecução criminal está em pro-cessamento, sendo que foi nessa condição de empresários de comércio exterior que foram de-nunciados, e, de outro, que o capital social da pessoa jurídica, equivalente a R$ 6.500.000,00 (seis milhões e quinhentos mil reais), estava distribuído, à época dos fatos, à razão de metade das cotas para cada um. 3. Ademais, o pleito de realização do interrogatório junto ao domi-cílio dos pacientes veio formulado poucos dias antes da data aprazada pela autoridade dita coatora, embora as defesas já tivessem ciência, há muito tempo, de todo o encadeamento de atos processuais determinado pelo Magistrado, sendo incabível o remanejo da audiência sem que disso resultasse prejuízo à instrução criminal, em se tratando de feito com tramitação pro-cessual complexa, a qual vem se arrastando há mais de três anos, ausente qualquer inércia do aparato estatal. 4. Ordem denegada.” (TRF 4ª R. – HC 0006086-81.2013.404.0000/SC – 8ª T. – Rel. Des. Fed. Victor Luiz dos Santos Laus – DJe 14.01.2014)

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6853 – Pena – sentença transitada em julgado – alteração – impossibilidade – habeas corpus – via inábil

“Habeas corpus. Pena pecuniária. Número de salários-mínimos. Valor vigente na data dos fatos. Sentença transitada em julgado. Impossibilidade de alteração pela via do habeas corpus. I – Uma vez fixada a pena pecuniária em número de salários-mínimos, deve ser considerado seu valor na data do fato e não aquele vigente na data do pagamento, aplicando-se para sua atualização, quando da execução, os índices de correção monetária vigentes, por analogia ao § 2º do art. 49 do CP, eis que não é razoável supor que a condenação fixada por ocasião da sentença condenatória, não seja atualizada até sua efetiva execução; II – Hipótese em que a questão foi objeto de sentença condenatória transitada em julgado, sendo inadequada a via do habeas corpus para discutir eventual óbice intransponível ao cumprimento da sentença, se não há indícios de desproporcionalidade que ponha em risco a sobrevivência do apenado; III – Ordem denegada.” (TRF 2ª R. – HC 2013.02.01.013852-5 – 2ª T.Esp. – Rel. Des. Fed. Messod Azulay Neto – DJe 27.11.2013)

6854 – Princípio da insignificância – moeda falsa – inaplicabilidade – materialidade e auto-ria comprovadas – sentença mantida

“Penal. Processo penal. Apelação. Moeda falsa. Princípio da insignificância. Inaplicabilida-de. Materialidade e autoria comprovadas. Sentença mantida. Apelação desprovida. 1. Não se apresenta juridicamente possível a aplicação do princípio da insignificância em casos de moeda falsa, tendo em vista que, em resumo, o bem jurídico tutelado não é o prejuízo sofrido pelo particular, mas sim a fé pública, consubstanciada ela na credibilidade da moeda e na segurança de sua circulação. Aplicação de precedentes jurisprudenciais do egrégio Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal Regional Federal. 2. Da análise dos autos, verifica-se que a materialidade e a autoria do delito pelo qual o acusado, ora apelante, foi condenado em primeiro grau de jurisdição restaram comprovadas nos autos, na forma em que vislumbrou a v. sentença apelada (fls. 126/133), particularmente às fls. 128/130. Presentes, assim, no caso em comento, a materialidade e a autoria do delito pelo qual foi condenado em primeiro grau de jurisdição o acusado, ora apelante, não há que se cogitar na ausência, ou insuficiência, de provas a embasar a prolação de uma sentença penal condenatória. 3. Sentença mantida. Apelação desprovida.” (TRF 1ª R. – ACr 0008850-11.2001.4.01.3600 – Rel. Des. Fed. I’talo Fioravanti Sabo Mendes – DJe 22.01.2014)

Comentário Editorial SÍNTESEO vertente acórdão trata de recurso de apelação interposto em face da sentença que condenou o apelante à pena de 3 (três) anos de reclusão, em regime aberto, e 10 (dez) dias-multa, pela prática do crime tipificado no art. 289, § 1º, do Código Penal. A pena privativa de liberdade foi substituída nos termos previstos no art. 44 do Código Penal.

O crime de introdução de moeda falsa na circulação assim está definido no art. 289, § 1º, do CP:

“Art. 289. Falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro:

Pena – reclusão, de três a doze anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, por contra própria ou alheia, importa ou exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda ou introduz na circulação moeda falsa.”

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A materialidade do delito restou comprovada através do auto de apreensão de fl. 14 e laudo pericial que constatou não serem verdadeiras as cédulas de R$ 50,00 (cin-quenta reais) apreendidas.

Para que uma conduta seja considerada criminosa, pelo menos, em um primeiro momento, é necessário que se faça, além do juízo de tipicidade formal, a adequação do fato ao tipo descrito em lei e também o juízo da tipicidade material.

Deve ser verificada a ocorrência do pressuposto básico da incidência da lei penal, ou seja, a lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade.

É assim que se consagra o princípio da insignificância ou bagatela, segundo o qual, para que uma conduta seja considerada criminosa, pelo menos em um primeiro momento, é preciso que se faça, além do juízo de tipicidade formal (a adequação do fato ao tipo descrito em lei), também o juízo de tipicidade material, isto é, a verifica-ção da ocorrência do pressuposto básico da incidência da lei penal, ou seja, a lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade.

Este princípio, enunciado pioneiramente por Klaus Roxin na Alemanha, ganhou rápi-da aceitação em solo brasileiro, sendo aceito de forma majoritária por nossa doutrina e jurisprudência.

O Relator ressaltou que a existência de maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso não impede a aplicação do princípio da insignificância. Esse en-tendimento é consolidado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Presentes, assim, no caso em comento, data venia, a materialidade e a autoria do delito pelo qual foi condenado em primeiro grau de jurisdição o acusado, ora ape-lante, não há que se cogitar na ausência, ou insuficiência, de provas a embasar a prolação de uma sentença penal condenatória.

6855 – Revisão criminal – pena privativa de liberdade – condenação – perda do posto e patente – descabimento

“Petição. Defesa. Condenação à pena privativa de liberdade superior a dois anos. Trânsito em julgado. Representação para declaração de indignidade/incompatibilidade para com o oficialato formulada pela Procuradoria-Geral da Justiça Militar. Julgamento pelo Plenário do Superior Tribunal Militar. Indignidade declarada. Perda do posto e da patente. Revisão crimi-nal. Decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Anulação ab initio do pro-cesso que resultou na condenação à pena privativa de liberdade. Ausência de recurso cabível pelo decurso do tempo. Preliminar de não conhecimento suscitada pela PGJM. Acolhimento. Concessão de habeas corpus de ofício. Nulidade da representação. Ausência de pressupos-to objetivo. A revisão criminal destina-se à correção de erros judiciários com influência no ius libertatis decorrente de condenação criminal transitada em julgado, portanto refere-se a ações penais. Como consequência, consoante a jurisprudência desta Corte Castrense, a revisão criminal não é instrumento processual hábil para desconstituir acórdão proferido em representação para declaração de indignidade/incompatibilidade para com o oficialato, ainda que o citado processo tenha natureza jurisdicional. O direito de petição, constitucionalmente assegurado e previsto no art. 156 do Regimento Interno do Superior Tribunal Militar, não al-cança postulação de natureza jurisdicional, razão pela qual não se conhece da petição para reapreciar matéria debatida em representação para declaração de indignidade/incompatibi-lidade para com o oficialato. A anulação ab initio, em sede de revisão criminal, do processo que resultou na condenação à pena privativa de liberdade superior a dois anos retira do oficial a legitimidade para figurar no polo passivo da representação para declaração de indignidade/

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incompatibilidade para com o oficialato, o que importa nulidade do processo por ausência de condição específica de procedibilidade. Brasília/DF, 21 de janeiro de 2014. Mozart Arruda Cavalcanti Secretário Judiciário.” (STM – PET 82-24.2012.7.00.0000 – Rel. Min. Cleonilson Nicácio Silva – DJe 22.01.2014)

6856 – Sonegação fiscal – sequestro de bens – extinção da punibilidade – prescrição retroa-tiva – princípio da identidade física – ausência de prejuízo

“Processual penal. Sequestro de bens. Sonegação fiscal (art. 1º, I, da Lei nº 8.137/1990). Ex-tinção da punibilidade. Prescrição retroativa. Decreto-Lei nº 3.240/1941. Princípio da identi-dade física. Ausência de prejuízo. Direito de propriedade. Não violação pelo sequestro. Não demonstração da licitude dos bens. 1. A regra da identidade física do juiz, prevista no art. 399, § 2º, do Código de Processo Penal, introduzida no Processo Penal após o advento da Lei nº 11.719/2008, de 20 de junho de 2008, comporta interpretação restrita, tornando-se impres-cindível, para o reconhecimento de nulidade, a demonstração de efetivo prejuízo ao exercício da ampla defesa. 2. A constrição do patrimônio não ofende o direito à propriedade, posto que a medida excepcional, nos termos dos arts. 126 e 132 do CPP e 3º e 4º do Decreto-Lei nº 3.240/1941, atende aos seus pressupostos legais: presença de indícios suficientes da res-ponsabilidade penal do acusado e a indicação dos bens a serem objeto da medida. 3. No caso, não se trata de mero juízo de verossimilhança de tais pressupostos. Não persiste dúvida algu-ma da existência de prova da materialidade e da autoria, ainda que bastasse apenas indício, do crime contra a ordem tributária praticado pelo apelante. Reportando-me aos fundamentos do voto na ACR7244-PE, tenho que a sonegação tributária revela-se em lastro probatório sóli-do, consistente de provas autônomas contundentes, a exemplo dos livros contábeis e escritu-rários apresentados pela contadoria da empresa Auto Posto Olympus Ltda., no procedimento administrativo-fiscal, e os depoimentos colhidos na instrução criminal. 4. O apelante não se desvencilhou do ônus da prova, em demonstrar a licitude dos bens objeto da constrição, ainda mais quando se constata haver possível relação destes com fatos delituosos. 5. Preliminares re-jeitadas. 6. Apelação não provida.” (TRF 5ª R. – ACR 2008.83.00.013545-7 – (6858/PE) – 2ª T. – Rel. Des. Fed. Fernando Braga – DJe 27.11.2013)

6857 – Tráfico de drogas – prisão em flagrante – conversão em preventiva – decisão funda-mentada – presença dos requisitos

“Habeas corpus. Tráfico de drogas e associação para o fim de tráfico de drogas. Condutas tipificadas nos arts. 33 e 35 da Lei nº 11.343/2006. Prisão em flagrante convertida em preven-tiva. Teses defensivas. Ausência dos requisitos que autorizam a prisão cautelar, previstos no art. 312 do CPP. Condições pessoais favoráveis. As teses defensivas não podem ser acolhi-das. Decisão fundamentada. Presença dos requisitos dos arts. 312 e 313 do CPP. Prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Necessidade de garantir a ordem pú-blica. Constrangimento ilegal não evidenciado. Manutenção da custódia cautelar. Ordem denegada. Estando a decisão que converteu a prisão em flagrante em prisão preventiva de-vidamente fundamentada nas hipóteses dos arts. 312 e 313 do CPP, não há que se falar em constrangimento ilegal pela manutenção da prisão cautelar. Inexiste constrangimento ilegal quando as circunstâncias fáticas relacionadas ao crime demonstram a gravidade da conduta e a periculosidade do agente, motivos suficientes para justificar a manutenção da prisão para a garantia da ordem pública, sobretudo quando se trata de crime de tráfico de drogas. A prisão preventiva é admissível, também, pela aplicação do art. 313, I, do CPP, pois o crime em tela é doloso e punido com pena privativa de liberdade máxima superior a 04 (quatro)

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anos e, além disto, se encontram presentes os pressupostos do art. 312 do mesmo Diploma Legal. A prisão cautelar deve ser decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, volte a delinquir, garantir a ordem pública se faz necessário, a fim de se manter a ordem na sociedade que é abalada pela prática do delito em tese. A existência de condições favoráveis como primariedade, residência fixa e ocupação lícita comprovada, por si só, não autorizam a desconstituição da custódia cautelar, quando presentes outros elementos que a justifique. Or-dem denegada.” (TJMS – HC 4011373-96.2013.8.12.0000 – 1ª C.Crim. – Rel. Des. Francisco Gerardo de Sousa – DJe 10.01.2014)

6858 – Violência doméstica – lesão corporal – palavra da vítima – absolvição – impossibili-dade

“Penal. Violência doméstica. Lesão corporal. Palavra da vítima. Amparo nas demais provas. Absolvição. Impossibilidade. Erro na execução. Concurso formal de crimes. I – A palavra da vítima merece especial valor, ainda mais quando corroborada pelo laudo de corpo de delito e demais elementos probatórios. II – Quando o agente, por erro na execução, atinge uma terceira pessoa, além daquela que visava, responde pelos crimes em concurso formal. III – Recurso improvido.” (TJDFT – Pen 20130310116139 – (747605) – Relª Desª Sandra de Santis – DJe 14.01.2014)

Seção Especial – Em Poucas Palavras

Crime Cometido contra Agência dos Correios: Competência Federal ou Estadual?

DANILO ANDREATOProfessor adjunto das Faculdades Santa Cruz, Professor do Curso Ordem Mais e do Curso Aprovação, Mestre em Direito (PUC/PR), Especialista em Direito Criminal (UniCuritiba), Asses-sor jurídico da Procuradoria da República no Paraná (Ministério Público Federal)

O inciso IV do art. 109 da Constituição de 1988 estabelece que são de competência da Justiça Federal os crimes cometidos em prejuízo de bens, serviços ou interesse de empresa pública da União. Por isso, delitos contra agências da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) serão julgados pela Justiça Federal, certo? Na verdade, nem sempre. Em dadas situações, caberá ao juiz de Direito (juiz estadual) conhecer do caso; em outras, ao juiz federal.

Imagine que, no interior de uma unidade da ECT, alguém se valha de violência contra o funcionário postal para que este entregue todo o dinheiro que está no caixa. Cuida-se de roubo (art. 157 da CP). Para saber se o caso tramitará na Justiça Federal ou Estadual, é preciso antes averiguar qual a natureza econômica dessa agência para em seguida identificar o bem jurí-dico violado ou ameaçado de lesão e, assim, saber quem é o sujeito passivo eventual, isto é, o titular do bem jurídico que na situação concreta é direta-mente tutelado pela lei penal.

Incidirá o art. 109, IV, da CF quando se tratar de crime contra agência própria dos Correios. Entretanto, será de competência estadual se o delito tiver sido praticado contra agência franqueada dos Correios e houver oca-sionado efetivo prejuízo unicamente a bens jurídicos privados porque, ha-vendo exploração mediante contrato de franquia, o patrimônio do particular (franqueado) é que terá sofrido o desfalque. Situações como essas já foram objeto de exame pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça. O preceden-te mais antigo talvez seja o Conflito de Competência nº 20.387/SP, relatado pelo Ministro Vicente Leal, levado a julgamento em 24.06.1998.

Do final dos anos 1990 aos nossos dias, houve vários casos apre-ciados por aquela Corte. Entre eles está o Conflito de Competência nº 116.386/RN, Rel. Min. Gilson Dipp, J. 25.05.2011, no qual o STJ decidiu que “compete à Justiça Estadual o processo e julgamento de possível roubo

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de bens de agência franqueada da Empresa Brasileira de Correios e Telé-grafos, tendo em vista que, nos termos do respectivo contrato de franquia, a franqueada responsabiliza-se por eventuais perdas, danos, roubos, furtos ou destruição de bens cedidos pela franqueadora, não se configurando, portan-to, real prejuízo à empresa pública”. No caso analisado, não se demonstrou prática do delito contra bens jurídicos dos Correios, ou seja, não se constatou prejuízo a bem, serviço ou interesse da empresa pública federal. Também não se verificou conexão entre crimes de competência federal e estadual, a justificar o deslocamento para a Justiça Federal com fundamento na Súmula nº 122 do STJ, segundo a qual “compete à Justiça Federal o processo e julga-mento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal.

Se não for própria nem franqueada, mas agência comunitária dos Correios, qual será o foro competente: federal ou estadual?

Esse tema também já foi discutido no STJ. O caso versava sobre roubo contra agência comunitária constituída mediante convênio entre a ECT e o Município de São João Batista/SC. Inicialmente, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia contra pessoa que, mediante violência e grave ameaça exercida com emprego de arma de fogo, subtraiu R$ 4.500,00 da agência dos Correios daquela cidade do leste catarinense.

O juiz de Direito local recebeu a ação penal, e o processo trami-tou até a audiência de instrução, momento em que o Magistrado deu-se por absolutamente incompetente e remeteu os autos para a Justiça Federal. Chegando o feito à Vara Federal de Brusque/SC, subseção judiciária à qual pertence o Município de São João Batista/SC, o juiz federal entendeu não ter ocorrido lesão a bens, serviços ou interesses da ECT, pelo que suscitou conflito negativo de competência, com base no art. 105, I, d, da CF e nos arts. 114, I, e 115, III, do CPP.

CF:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I – processar e julgar, originariamente:

[...]

d) os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o dispos-to no art. 102, I, o, bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos;

CPP:

Art. 114. Haverá conflito de jurisdição:

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I – quando duas ou mais autoridades judiciárias se considerarem competen-tes, ou incompetentes, para conhecer do mesmo fato criminoso;

II – quando entre elas surgir controvérsia sobre unidade de juízo, junção ou separação de processos.

Art. 115. O conflito poderá ser suscitado:

I – pela parte interessada;

II – pelos órgãos do Ministério Público junto a qualquer dos juízos em dis-sídio;

III – por qualquer dos juízes ou tribunais em causa. (grifos nossos)

Existem traços característicos da agência comunitária dos Correios que não permitem equipará-la à franqueada. Ao analisar em 08.08.2012 o Conflito de Competência nº 122.596/SC, o Relator Ministro Sebastião Reis Junior pontuou que, de acordo com a Portaria nº 384/2001, do Ministério das Comunicações, a agência comunitária dos Correios (ou Agência de Cor-reios Comunitária – AGC) consiste em

unidade de atendimento terceirizada operada, mediante convênio celebrado na forma da legislação e da regulamentação federal específica sobre a maté-ria, por pessoa jurídica de direito público ou privado, desde que caracteriza-do o interesse recíproco, destinada a viabilizar, no mínimo, a prestação de serviços postais básicos, nos termos da legislação em vigor, em localidades rurais ou urbanas, quando a exploração de serviços postais não se mostrar economicamente viável para a ECT e houver predominância do interesse social.

É comum a lição dos administrativistas marcando as diferenças entre “convênio” e “contrato”, apesar de em ambos existir “vínculo jurídico fun-dado na manifestação de vontade dos participantes”. Explica o tema José dos Santos Carvalho Filho:

No contrato, os interesses são opostos e diversos; no convênio, são paralelos e comuns. Nesse tipo de negócio jurídico, o elemento fundamental é a coo-peração, e não o lucro, que é o almejado pelas partes no contrato. De fato, num contrato de obra, o interesse da Administração é a realização da obra, e o do particular, o recebimento do preço. Num convênio de assistência a menores, porém, esse objetivo tanto é do interesse da Administração como também do particular. Por isso, pode-se dizer que as vontades não se com-põem [melhor seria dizer “não se contrapõem”], mas se adicionam.1

1 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 224.

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Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que, na condição de instituto da teoria geral do Direito, o contrato engloba duas espécies básicas: uma, em que ocorre composição entre as partes direcionada ao atendimento de interesses contrapostos e que “são satisfeitos pela ação recíproca delas”; e outra, em que, “inversamente, as partes se compõem pela comunidade de interesses, pela finalidade comum que as impulsiona”2. Estes consistem em contratos que dão origem às associações, às sociedades. Os da primeira modalidade, diz o autor, compreendem todos os outros contratos.

A Lei de Contratos Administrativos cogita esta última espécie. Já os con-vênios e consórcios correspondem a contratos do segundo tipo – ou seja, daqueles em que as partes têm interesses e finalidades comuns. Assim, con-vênios e consórcios diferem da generalidade dos contratos administrativos porque, ao contrário destes, não há interesses contrapostos das partes, mas interesses coincidentes3.

Em tintas mais singulares, Luciano Elias Reis define o que denomina “convênios administrativos em sentido amplo” como

atos administrativos unilaterais complexos introdutores de normas jurídicas infralegais individuais, concretas, obrigatórias para os sujeitos de uma rela-ção jurídica obrigacional, sendo que necessariamente no mínimo um dos sujeitos deve ser integrante da Administração Pública.4

Tais notas distintivas fizeram com que o Relator Ministro Sebastião Reis Junior compreendesse existirem fortes semelhanças entre a agência própria e a agência comunitária dos Correios, na qual, conforme disse, esta-ria nítido o interesse público ou social no funcionamento do serviço postal de unidades dessa natureza cujo propósito suplanta o viés econômico. O voto condutor amparou-se também em outro argumento: a constituição da agência comunitária por meio de convênio, fato que demonstra a presença de interesse recíproco dos convenentes na atividade desenvolvida, de modo a evidenciar, justamente por isso, interesse dos Correios, empresa pública federal.

Nesse cenário do Conflito de Competência nº 122.596/SC, a 3ª Seção do STJ declarou competente o Juízo Federal de Brusque/SC. A decisão foi unânime.

2 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 679-680.

3 Idem, p. 680.4 REIS, Luciano Elias. Convênio administrativo: instrumento jurídico eficiente para o fomento e desenvolvimento

do Estado. Curitiba: Juruá, 2013. p. 57.

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De acordo com o STJ, estas duas conclusões são inexoráveis: (i) se o crime for cometido contra agência própria dos Correios, a competência é fe-deral; (ii) se praticado em detrimento de agência comunitária, a persecução penal se dará na justiça federal. Ainda há um terceiro ângulo para se olhar o tema, conforme o “Tribunal da Cidadania”: (iii) se se tratar de crime contra agência franqueada dos Correios, a justiça estadual é a competente. Esse é, hoje, o quadro jurisprudencial no STJ sobre a matéria, porém é preciso exa-minar um pouco mais o entendimento mencionado no item (iii).

Apesar do atual posicionamento desse Tribunal Superior no sentido de que compete à Justiça Estadual processar e julgar crime cometido contra agência franqueada dos Correios, ainda assim é possível visualizar situação em que esse crime poderá ser julgado no âmbito federal. Não insiro aqui nenhum novo ingrediente fático ensejador da aplicação da Súmula nº 122 do STJ nem ventilo hipótese de foro por prerrogativa de função do autor do delito. Nada disso. Linhas atrás antecipei sutilmente esse ponto.

O Superior Tribunal de Justiça tem se pronunciado pela competência estadual nos crimes contra as unidades postais franqueadas ao argumento de que, “nos termos do respectivo contrato de franquia, a franqueada responsa-biliza-se por eventuais perdas, danos, roubos, furtos ou destruição de bens cedidos pela franqueadora, não se configurando real prejuízo à empresa pública” (STJ, CC 40.561/MT, 3ª S., Rel. Min. Gilson Dipp, J. 11.02.2004). Aqui reside o “x” da questão. Se na ausência de real prejuízo aos Correios a competência é da Justiça Estadual, então se deve concluir que, mesmo que o delito tenha sido praticado contra uma agência franqueada, será compe-tente a Justiça Federal quando houver prejuízo concreto à ECT.

Entre as obrigações do franqueado figura o dever de “ressarcir à ECT, na prestação de contas posterior ao fato, os valores decorrentes de roubo, furto, dano ou destruição de equipamentos, materiais, fórmulas de franque-amento, produtos e outros bens da ECT, inclusive nos casos fortuitos e de força maior” (cláusula 5.23) e “reembolsar os valores pagos pela ECT, a título de indenização a terceiros, decorrentes de: [...] b) roubo, furto, dano, destruição, perda ou espoliação de objetos ou valores, antes da sua entrega à ECT, inclusive nos casos fortuitos e de força maior” (cláusula 5.25), con-forme se vê no seu contrato de franquia.

Suponha-se que, devido à dimensão do delito patrimonial sofrido, o franqueado, desprovido de bens móveis/imóveis para garantir o débito e completamente descapitalizado, não tenha condições financeiras para ressarcir a empresa pública, que suportará o prejuízo. Nesse horizonte, o

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ajuizamento de ação civil contra o particular para recomposição patrimo-nial será inútil. Cuida-se de hipótese em que há nítida lesão ao patrimônio dos Correios. Na presença de significativo dano em detrimento da empresa pública federal, a competência é da Justiça Federal.

Portanto, também caberá à Justiça Federal julgar a questão quan-do, em decorrência do evento criminoso, eventuais prejuízos sofridos pela agência franqueada não tiverem sido assumidos pelo particular, mas sim suportados pela empresa pública federal. Se os Correios arcarem com o prejuízo, deverá a causa tramitar em foro federal por força do inciso IV do art. 109 da Constituição.

Clipping Jurídico

Preso de alta periculosidade é mantido em Regime Disciplinar DiferenciadoEm decisão unânime, a 3ª Turma do TRF da 1ª Região determinou a manuten-ção de réu preso no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), por apresentar mau comportamento e alto potencial de criminalidade. O colegiado chegou à decisão ao julgar recurso interposto pelo réu, por meio da Defensoria Pública da União (DPU), contra decisão da 3ª Vara Federal de Rondônia, que deter-minou a sua inclusão no RDD pelo prazo de 270 dias, após o que deverá ser colocado no regime comum da penitenciária Federal de Porto Velho/RO. A medida foi determinada em resposta à representação formulada em 27.11.2012 pelo diretor da Penitenciária Federal de Porto Velho/RO. No entanto, a DPU alega que o RDD tem sua constitucionalidade questionada, pois viola a Consti-tuição Federal (CF) quanto à dignidade da pessoa humana e quanto aos direitos individuais e coletivos previstos no art. 5º da CF, ao infringir a proibição da submissão à tortura, tratamento desumano ou degradante, a proibição de penas cruéis e o respeito à integridade física e moral. Alega, ainda, que não há prova cabal de ocorrência das hipóteses nas quais o preso é submetido ao RDD, esta-belecidos pela Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/1984). A Desembargadora Federal Mônica Sifuentes, relatora do processo, destaca que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmou o entendimento de que o regime diferenciado, além da hipótese da falta grave que ocasiona subversão da ordem ou da disciplina internas, também se aplica aos presos provisórios e condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabe-lecimento penal ou da sociedade. “Não verifico, portanto, a alegada inconstitu-cionalidade do dispositivo, tampouco a violação dos artigos constitucionais. Ao contrário do alegado pela defesa, o tratamento dispensado ao detento no RDD não é desumano, uma vez que a medida foi analisada pela autoridade judicial, com previsão legal de duração (270 dias), além de assegurar ao preso os direi-tos de receber visitas semanais e de saída para banho de sol diário”, afirmou a magistrada. Ficha extensa – o réu foi incluído no Sistema Penitenciário Federal (SPF), na Penitenciária Federal de Campo Grande/MS, em novembro de 2010, em razão de seu comportamento violento no Complexo Penitenciário de Pedri-nhas/MA, inclusive com participação em evento que teve como consequência a morte de 18 pessoas e que deixou um agente penitenciário gravemente ferido. Em março de 2012 o presidiário foi transferido para a Penitenciária Federal em Porto Velho/RO onde tem um histórico de atos de indisciplina que resul-taram no seu isolamento preventivo em três ocasiões. Por fim, em novembro de 2012, em isolamento preventivo, ameaçou de morte o chefe da Divisão de Segurança da Penitenciária Federal de Porto Velho. Além disso, o Ministé-rio Público Federal (MPF) acrescenta que, ainda no sistema penitenciário do Maranhão, participou de fugas coletivas e de desentendimentos sérios com outros detentos, inclusive com homicídio consumado, tudo em razão de seu envolvi-mento com o grupo denominado “Anjos da Morte”. Diante do histórico do réu, Mônica Sifuentes afirmou que a alegação da DPU de que não há prova cabal de ocorrência das hipóteses nas quais o preso é submetido ao RDD não merece

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prosperar, pois a situação descrita se adéqua exatamente à previsão do art. 52 da Lei de Execuções Penais. A norma prevê que a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado. “O RDD é medida extrema, destinada exatamente aos presos de elevado potencial de criminalidade. A de-cisão agravada obedeceu ao determinado pelo art. 59 da Lei nº 7.210/1984, pois, de acordo com os autos, trata-se de preso de alta periculosidade, o qual, mesmo em ambiente carcerário de segurança máxima, comete indisciplinas e até delitos que trazem o risco para o estabelecimento penal, o meio social, a segurança e a ordem pública”, concluiu a desembargadora. Nº do Processo: 86166120134014100. (Conteúdo extraído do site do Tribunal Regional Federal da 1ª Região)

Réu é absolvido pelo crime de bagatelaA 3ª Turma do TRF da 1ª Região deu provimento à apelação da Defensoria Pú-blica contra a sentença da 2ª Vara da Subseção Judiciária de Juiz de Fora/MG, que condenou um homem por furto qualificado contra a União, após o réu ter escalado grade para roubar fios elétricos da Universidade Federal da cidade. O crime ocorreu em abril de 2013. O acusado foi rendido durante o roubo e pego com três rolos de fios elétricos flexíveis. O preço total das peças roubadas é de R$ 204,80. O juiz de primeira instância julgou procedente a condenação por furto qualificado, de acordo com o art. 155, § 4º, II. A Defensoria Públi-ca apelou ao TRF1, alegando que houve, por parte do acusado, “atipicidade da conduta, sob a justificativa de crime de bagatela. Considera equivocada a análise do Juiz no particular, por adotar critérios subjetivos (antecedentes cri-minais e valor do objeto furtado próximo a 30% do salário mínimo) no intuito de inviabilizar o benefício. [...] Adiante, caso seja superada essa tese, volta--se pela desclassificação da conduta para furto simples”. No TRF1, a relatora, Desembargadora Federal Mônica Sifuentes, avaliou dois pontos para aplicar o princípio da insignificância: o valor do objeto e os antecedentes do acusado: “[...] nem houve prejuízo material, pois a fiação foi apreendida no instante em que o réu foi imobilizado pelos vigilantes. Mas ainda que houvesse, ante o valor reduzido da res furtiva, a solução não passaria da seara cível”. Sobre os antece-dentes, a magistrada ressaltou que “não é a extensa ficha criminal do réu o ele-mento decisivo para afastamento da tese de atipicidade material. Como se verá adiante, contudo, nem mesmo a reincidência específica constituiu obstáculo ao reconhecimento da bagatela em crime semelhante, pelo STF”. A respeito do princípio da insignificância ou irrelevância, a relatora citou jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. “A configuração da conduta como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva, não podendo ser considerados aspectos subjetivos relacionados, pois, à pessoa do recorrente” (RE 536486/RS, Relª Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, unânime, DJe-177 de 19.09.2008). A magis-trada ponderou que “a medida necessária seria a desclassificação para furto

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simples, atestando a menor gravidade da conduta, caso a presente ação fosse levada adiante”, já que “o réu, a despeito de ser viciado em crack, não teve a menor dificuldade em saltar a mencionada grade. Aliás, a julgar pelo tipo de construção no local, somente uma criança ou uma pessoa idosa ou com dificul-dades motoras deixaria de transpô-la”. Desta forma, Mônica Sifuentes concluiu dizendo: “É absolutamente atípica do ponto de vista material a conduta perpe-trada pelo acusado. Em um país de mazelas inconfessáveis, de lesão incessante e milionária ao Erário, beira a desumanidade a condenação de um indivíduo doente por tão ínfimo motivo”. A decisão da 3ª Turma foi unânime de acordo com o voto da relatora. Nº do Processo: 0003645-57.2013.4.01.3801. (Con-teúdo extraído do site do Tribunal Regional Federal da 1ª Região)

Adolescente infrator pode ter direito de ser ouvido na presença de advogadoO adolescente apreendido após alguma infração pode ser obrigatoriamen-te acompanhado por um advogado ou defensor durante sua oitiva por re-presentante do Ministério Público. A medida está prevista no Projeto de Lei nº 5.876/2013, da Deputada Luiza Erundina (PSB-SP). Hoje, de acordo com Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8.069/1990), o representan-te do Ministério Público pode ouvir o adolescente apreendido sem a presença de um advogado. “Entretanto, essa fase do procedimento é de suma impor-tância, pois a partir da oitiva do adolescente, o representante do Ministério Público, como titular da ação, irá decidir se oferecerá ou não representação contra aquele adolescente”, argumentou a deputada. “Por se tratar de uma fase procedimental deve, necessariamente, respeitar o princípio do contraditório e da ampla defesa. Além do mais, o adolescente deve ser considerado como um ser em desenvolvimento, em sua condição peculiar, necessitando da assistência de um defensor”, acrescentou Erundina. De acordo com o projeto, o adoles-cente deve ser acompanhado por um advogado constituído, por um defensor nomeado previamente pelo juiz da infância e da juventude ou pelo juiz que exerça essa função, se for o caso. Tramitação A proposta, que tramita de forma conclusiva, será analisada pelas comissões de Seguridade Social e Família; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. (Conteúdo extraído do site da Câmara dos Deputados Federais)

Configuração de crime de apropriação indébita previdenciária não exige dolo específicoNão há necessidade da comprovação do dolo específico no crime de apropria-ção indébita previdenciária. A decisão é da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar embargos em que uma denunciada pelo Ministério Públi-co Federal (MPF), no Estado de Sergipe, pedia a aplicação de efeitos infringentes a um recurso em que se discutia a necessidade do dolo para configuração do crime. Conforme decisão da Turma, a conduta descrita no art. 168-A do Código Penal está centrada no verbo “deixar de repassar”, sendo desnecessária, para a consumação do delito, a comprovação do fim específico de se apropriar de

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valores destinados à Previdência Social. A denunciada argumentava que, para a caracterização do crime, era necessária a intenção de se apropriar de valores da Previdência. O recurso foi julgado em agosto de 2012 sob a relatoria do Ministro Gilson Dipp, e os embargos tiveram solução no final do ano passado sob a relatoria da Ministra Regina Helena Costa. O objetivo da denunciada era manter decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), que entendeu haver a necessidade da comprovação do dolo. Para o órgão, o crime de apro-priação indébita não se exaure com o mero deixar de pagar, exigindo dolo es-pecífico. O TRF5, por maioria, entendeu que o MPF não conseguiu demonstrar na denúncia os elementos essenciais à configuração do tipo penal. A rotineira fiscalização, limitada ao exame das folhas de salários, não seria suficiente para atestar o propósito do não recolhimento. O Ministro Gilson Dipp, ao analisar o recurso, entendeu que o STJ já tem entendimento pacificado no sentido de que a conduta descrita no tipo do art. 168-A do Código Penal é centrada no verbo “deixar de passar”. O crime se consuma com o simples não recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados no prazo legal. A relatora dos embargos, Ministra Regina Helena, entendeu que a fundamentação adotada na decisão do Ministro Dipp é suficiente para respaldar a conclusão adotada. O processo deve retornar ao tribunal de origem para julgamento da apelação, pois não compete ao STJ realizar juízo de condenação para o caso, pois poderia haver supressão de instância. “A partir da tese jurídica decidida no recurso especial, qual seja, a da conduta descrita no art. 168-A do Código Penal, não impõe a demonstração do dolo específico, compete ao tribunal de origem o julgamento, a fim de verificar, sob tal prisma, o acerto da sentença”, afirmou a ministra. (Nº do Processo: REsp 1266880). (Conteúdo extraído do site do Superior Tribunal de Justiça)

Fechamento da Edição: 06�02�2014

Índice Alfabético e Remissivo

Índice por Assunto Especial

DOUTRINA

Assunto

O SiStema PriSiOnal e O imPactO carceráriO

•A Criminologia Atual em Comparação com a Anterior (Humberto Sant’Ana) .............................83

•A Indelegabilidade da Execução da Pena e a Inconstitucionalidade da Terceirização Prisio-nal no Brasil (Jacinto Teles Coutinho) .................21

•A Nudez do Rei: o Estado Punitivista e a Ne-cessidade Abolicionista (Vera Maria Guilherme) ...........................................................................12

•Maranhão e Seus Presídios (o Brasil em Minia-tura) (Luiz Flávio Gomes) ......................................9

•Os Níveis de Dor Intencional e o Holocausto Nosso de Cada Dia: Renúncia aos Discursos de Justificação da Pena e ao Mito da Ressocia-lização (Salah H. Khaled Jr.) ...............................38

•Política Não Criminal e Processo Penal: a In-tersecção a Partir das Falsas Memórias da Tes-temunha e Seu Possível Impacto Carcerário(Gustavo Noronha de Ávila) ...............................64

Autor

GuStavO nOrOnha De ávila

•Política Não Criminal e Processo Penal: a In-tersecção a Partir das Falsas Memórias da Tes-temunha e Seu Possível Impacto Carcerário........64

humbertO Sant’ana

•A Criminologia Atual em Comparação com aAnterior ..............................................................83

JacintO teleS cOutinhO

•A Indelegabilidade da Execução da Pena e a Inconstitucionalidade da Terceirização Prisio-nal no Brasil .......................................................21

luiz FláviO GOmeS

•Maranhão e Seus Presídios (o Brasil em Minia-tura) ......................................................................9

Salah h. KhaleD Jr.

•Os Níveis de Dor Intencional e o Holocausto Nosso de Cada Dia: Renúncia aos Discursos de Justificação da Pena e ao Mito da Ressocia-lização ................................................................38

vera maria Guilherme

•A Nudez do Rei: o Estado Punitivista e a Ne-cessidade Abolicionista ......................................12

EM POUCAS PALAVRAS

Assunto

crime cOntra aGência DOS cOrreiOS

•O Crime Cometido contra Agência dos Cor-reios: Competência Federal ou Estadual? (DaniloAndreato) ..........................................................229

Autor

DanilO anDreatO

•O Crime Cometido contra Agência dos Cor-reios: Competência Federal ou Estadual? .........229

Índice Geral

DOUTRINA

Assunto

crime De aPrOPriaçãO inDébita

•Apropriação Indébita Previdenciária: Crime Omissivo Formal de Perigo Concreto (Saulo Sarti, Amir José Finocchiaro Sarti e Lucca SilveiraFinocchiaro) .......................................................88

DireitO Penal

•A Droga, a Ignorância, a Hipocrisia e o Direito Penal Medieval (Rômulo de Andrade Moreira) .........................................................................130

lei De licitaçõeS

•Tipo Penal do Artigo 89 da Lei de Licitações: Novo Entendimento dos Tribunais Superiores (Sandra Silveira Wünsch) ..................................107

Autor

amir JOSé FinOcchiarO Sarti

•Apropriação Indébita Previdenciária: Crime Omissivo Formal de Perigo Concreto ..................88

lucca Silveira FinOcchiarO

•Apropriação Indébita Previdenciária: Crime Omissivo Formal de Perigo Concreto ..................88

rômulO De anDraDe mOreira

•A Droga, a Ignorância, a Hipocrisia e o DireitoPenal Medieval .................................................130

SanDra Silveira WünSch

•Tipo Penal do Artigo 89 da Lei de Licitações: Novo Entendimento dos Tribunais Superiores ..........107

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SaulO Sarti

•Apropriação Indébita Previdenciária: Crime Omissivo Formal de Perigo Concreto ..................88

ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA

aPrOPriaçãO inDébita PreviDenciária

•Penal – Apropriação indébita previdenciá-ria – Sonegação previdenciária – Art. 168-A, § 1º, I, do CP – Prescrição da pretensão puni-tiva retroativa – Ocorrência – Extinção da pu-nibilidade (TRF 2ª R.) ............................. 6812, 175

crime De rOubO

•Agravo regimental no agravo em recurso es-pecial – Penal – Crime de roubo – Pretendida absolvição – Reexame fático-probatório dos autos – Impossibilidade – Incidência da Súmulanº 7/STJ (STJ) .......................................... 6809, 150

eSteliOnatO cOntra a PreviDência SOcial

•Penal – Estelionato contra a previdência social – Estado de necessidade – Erro de proibição –Não configuração (TRF 4ª R.) ................. 6814, 188

execuçãO Penal

•Agravo regimental no recurso especial – Execu-ção penal – Agravo em execução – Livramento condicional – Art. 83 do Código Penal – Diver-gência jurisprudencial – Não demonstração, nos moldes legais – Agravo regimental não pro-vido (STJ) ............................................... 6810, 157

FrauDe licitatória

•Penal – Lei nº 8.666/1993 – Arts. 86 e 90 – Fraude no processo licitatório – Irregularidades – Dolo não demonstrado – Absolvição – Sen-tença mantida (TRF 1ª R.) ...................... 6811, 161

meDiDa cautelar

•Processual penal – Habeas corpus – Trancamen-to de ação penal – Excepcionalidade – Medi-da cautelar – Proibição de ausentar-se do País – Retenção de passaporte – Constrangimentoilegal – Inexistência (TRF 5ª R.) .............. 6815, 194

PeculatO

•Agravo regimental no recurso especial – Pecula-to – Art. 327, § 2º, do CP – Falta de provas quan-to à ocupação de cargo gerencial – Reexame do acervo fático-probatório – Súmula nº 7, STJ– Agravo regimental não provido (STJ) ... 6808, 146

PriSãO Preventiva

•Habeas corpus – Art. 288 do Código Penal e art. 18 da Lei nº 10.826/2003 – Prisão pre-ventiva – Decisão fundamentada – Presentes

os requisitos autorizadores da prisão cautelar –Ordem denegada (TRF 3ª R.) ................. 6813, 182

EMENTÁRIO

Assunto

açãO Penal

•Ação penal – Operação Hygea – sequestro de bens – art. 131, I, CPP – excesso de prazo– ausência ............................................. 6816, 199

arrePenDimentO POSteriOr

•Arrependimento posterior – Súmula nº 444 doSTJ – incidência ..................................... 6817, 199

caSa De PrOStituiçãO

•Casa de prostituição – rufianismo – prisão pre-ventiva – requisitos – impossibilidade .... 6818, 199

cOntrabanDO

•Contrabando – máquina caça-níquel – contra-venção de exploração de jogos de azar – absor-ção – impossibilidade ............................ 6819, 201

cOntravençãO

•Contravenção – jogo de azar – cartas – nãoconfiguração .......................................... 6820, 202

crime ambiental

•Crime ambiental – extração de recurso mineral– concurso formal – não ocorrência ...... 6821, 203

•Crime ambiental – extração irregular da areia – erro de tipo – absolvição ....................... 6822, 203

•Crime ambiental – incêndio em mata – prin-cípio da presunção da inocência – aplicação .............................................................. 6823, 204

crime cOntra a relaçãO De cOnSumO

•Crime contra a relação de consumo – exposi-ção à venda de mercadoria imprópria – prova da materialidade – necessidade – absolvição .............................................................. 6824, 204

crime cOntra O SiStema De telecOmunicaçõeS

•Crime contra o sistema de telecomunicações – rádio clandestina – dosimetria – circunstânciasdesfavoráveis ......................................... 6825, 207

crime cOntra O SiStema FinanceirO naciOnal

•Crime contra o sistema financeiro nacional – evasão de divisas – necessidade de prova con-creta ...................................................... 6826, 208

crime cOntra OS ServiçOS De telecOmunicaçãO

•Crime contra os serviços de telecomunicação – dosimetria da pena – legalidade ............ 6827, 208

RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – ÍNDICE ALFABÉTICO E REMISSIvO ���������������������������������������������������������������������������������������������������������241

crime De aPrOPriaçãO inDébita

•Crime de apropriação indébita previdenciá-ria – inexigibilidade de conduta diversa – difi-culdades financeiras .............................. 6828, 208

•Crime de apropriação indébita previdenciária – sonegação de contribuição – parcelamento da dívida – inocorrência; pretensão da suspensãopunitiva do Estado – impossibilidade ..... 6829, 209

crime De cOntrabanDO

•Crime de contrabando – máquinas eletrôni-cas programadas – exame de corpo de delito– desnecessidade ................................... 6830, 210

•Crime de contrabando – materialidade e autoria – absolvição – possibilidade .................. 6831, 211

crime De DeSacatO

•Crime de desacato – réu localizado no estran-geiro – prazo prescricional – suspensão ... 6832, 211

crime De eSteliOnatO

•Crime de estelionato – tentativa de saques frau-dulentos – falsos atestados médicos – autoria e materialidade – comprovação ................ 6833, 212

crime De exPlOraçãO Sexual

•Crime de exploração sexual de vulnerável – Va-ras da Infância e da Juventude – fixação de com-petência – possibilidade – ação penal – nulida-de – inocorrência ................................... 6834, 213

crime De extOrSãO

•Crime de extorsão – ameaça – bens da vítima – destruição de motocicleta – conduta típica –possibilidade ......................................... 6835, 214

crime De FurtO qualiFicaDO

•Crime de furto qualificado – pretensão absolu-tória – insuficiência de provas – rejeição . 6836, 215

crime De hOmicíDiO

•Crime de homicídio – delito de trânsito – des-classificação – lesão corporal culposa – possi-bilidade ................................................. 6837, 215

crime De PeculatO

•Crime de peculato – crime consumado – ausên-cia de ilegalidade – perda do cargo público – fundamentação – necessidade ............... 6838, 217

crime De rOubO qualiFicaDO

•Crime de roubo qualificado – concurso for-mal – pleito de absolvição – impossibilidade .............................................................. 6839, 218

eSteliOnatO qualiFicaDO

•Estelionato qualificado – terra desapropriada – dolo não caracterizado .......................... 6840, 218

eStuPrO De vulnerável

•Estupro de vulnerável – favorecimento da pros-tituição – prisão preventiva – decisão funda-mentada ................................................ 6841, 219

execuçãO Penal

•Execução penal – livramento condicional – gra-vidade do delito – indeferimento ........... 6842, 219

•Execução penal – progressão de regime – inde-ferimento ............................................... 6843, 220

FalSiDaDe iDeOlóGica

•Falsidade ideológica – prescrição – incompe-tência – nulidades rejeitadas .................. 6844, 221

FrauDe à licitaçãO

•Fraude à licitação – apresentação de certidãofalsa – Justiça Federal – incompetência .. 6845, 221

FurtO

•Furto – atipicidade material – princípio da insig-nificância – inviabilidade ....................... 6846, 222

Habeas corpus

•Habeas corpus – indeferimento – realização de perícia – caráter substitutivo de recurso –descabimento ........................................ 6847, 222

hOmicíDiO culPOSO

•Homicídio culposo – acidente de trânsito – omissão de socorro – compensação de culpa .............................................................. 6848, 222

•Homicídio culposo – omissão de socorro – cui-dados devidos – inobservância .............. 6849, 223

hOmicíDiO qualiFicaDO

•Homicídio qualificado – forma tentada – ex-tinção da punibilidade – insuficiência e provas .............................................................. 6850, 223

•Homicídio qualificado – lesão corporal – des-classificação – necessidade .................... 6851, 223

interrOGatóriO

• Interrogatório – videoconferência – carta pre-catória – réus com domicílio distante do juízo da culpa – dificuldades financeiras – demons-tração .................................................... 6852, 224

Pena

•Pena – sentença transitada em julgado – alte-ração – impossibilidade – habeas corpus – viainábil ..................................................... 6853, 225

PrincíPiO Da inSiGniFicância

•Princípio da insignificância – moeda falsa – ina-plicabilidade – materialidade e autoria compro-vadas – sentença mantida ...................... 6854, 225

242 �����������������������������������������������������������������������������������������������������RDP Nº 84 – Fev-Mar/2014 – ÍNDICE ALFABÉTICO E REMISSIvO

reviSãO criminal

•Revisão criminal – pena privativa de liberda-de – condenação – perda do posto e patente –descabimento ........................................ 6855, 226

SOneGaçãO FiScal

•Sonegação fiscal – sequestro de bens – extinção da punibilidade – prescrição retroativa – prin-cípio da identidade física – ausência de pre-juízo ...................................................... 6856, 227

tráFicO De DrOGaS

•Tráfico de drogas – prisão em flagrante – con-versão em preventiva – decisão fundamentada –presença dos requisitos .......................... 6857, 227

viOlência DOméStica

•Violência doméstica – lesão corporal – pala-vra da vítima – absolvição – impossibilidade .............................................................. 6858, 228

CLIPPING JURÍDICO

•Preso de alta periculosidade é mantido em Re-gime Disciplinar Diferenciado ..........................235

•Réu é absolvido pelo crime de bagatela........... 236

•Adolescente infrator pode ter direito de ser ou-vido na presença de advogado .........................237

•Configuração de crime de apropriação indé-bita previdenciária não exige dolo específico ...237