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jan fev 2008 | itaucultural.org.br 7 ITAÚ CULTURAL Cultura imaterial

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Cultura imaterial

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sumário

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Identidade da consciênciaComo um bem cultural vira patrimônio imaterial

Lembrar, jamais!A memória humana e a memória cultural em confronto

Uma política de pontaEm entrevista especial, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, analisa a cultura intangível

A face visível do invisívelA fusão de matéria e não-matéria nas religiões

Tradição, família e itinerânciaAs origens do circo pelas estradas do Brasil No princípio era o verboA cultura oral entra na contemporaneidade com a contação de histórias

Nos quintais do RecôncavoSamba-de-roda faz a festa em janeiro e fevereiro

Área livreArtista visual Nicolás Robbio desenha o modo de fazer violas-de-cocho

Da tradição para a contemporaneidade

Face mais rica da cultura popular, os bens imateriais são na atualidade um dos focos de atenção de governos de todo o mundo. Dentro dessa vertente se enquadram, entre outros, os saberes transmitidos oralmente por mestres a seus descendentes, as festas, os lugares sagrados, os ritmos musicais ancestrais e determinados ofícios. Desde �00�, a questão se tornou mais visível graças à atuação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que já proclamou cerca de uma centena de manifestações como Obras-Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade. Entre estas, duas brasileiras: a arte kusiwa, dos índios Wajãpi, do Amapá, e o samba-de-roda do Recôncavo Baiano.

Signatário das normas do organismo internacional, o Brasil conta com �� bens culturais imateriais patrimonializados e vários outros em processo de certificação. Nas palavras do ministro da Cultura, Gilberto Gil, em entrevista especial, o governo brasileiro vê o patrimônio

imaterial como uma política de Estado, feita por meio da metodologia de certificação coordenada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Esta edição da Continuum Itaú Cultural, excepcionalmente com periodicidade bimestral, procura explorar algumas das opções que esse tema tão pujante pode oferecer, por meio de reportagens sobre a arte de contar histórias, as religiões e os circos

de tradição familiar (os quais aguardam a titulação do Iphan). Outra reportagem vê com

olhos críticos as questões que envolvem o ato de patrimonializar bens culturais. Na Área Livre, o artista visual Nicolás Robbio mostra, em desenhos, o modo de fazer violas-de-

cocho, um dos patrimônios imateriais brasileiros.

A versão virtual da revista vai continuar essa abordagem, com a inclusão de novas matérias no decorrer deste e do próximo mês. Contribua também

com seu texto para a seção Leitor-Autor do site, e dê sua opinião pelo e-mail [email protected].

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Cia de Foto, Guilherme Kujawski, Nicolás Robbio, Patrícia Patrício Agradecimentos Alberto Ikeda, Ana Gita Oliveira, Angela Detânico e Rafael Lain, Angélica Salazar, Carlos Nader, Claudia Vasques, Dominique Gallois, Hermínia Silva, Humberto Braga, Isabella Madeira, Joelma Costa, José Frota, Marcelo Manzatti, Marina Kahn, Milton Hatoum, Nanan Catalão, Thiago Mio Salla, Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes Agradecimento especial ministro Gilberto Gil

capa Feira de Caruaru, em Pernambuco | imagem: Cia de Foto

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.08� (dezembro de �007)

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Identidade da consciênciaCultura imaterial se revela cada vez mais importante para entender a diversidade do Brasil

Por André Seiti

Durante o período imperial, nas lavouras de café e de cana-de-açúcar do Sudeste brasileiro, escravos costumavam realizar uma prática de origem africana, conhecida como jongo, que envolvia dança, música e recitação de versos repletos de metáforas. A linguagem cifrada, chamada de ponto, permitia aos trabalhadores que se comunicassem entre si sem que senhores e capatazes compreendessem o que era dito. Cento e vinte anos depois, a riqueza de metáforas e significados do jongo ainda sobrevive, não porque foi ensinada por meio de livros, registros formais ou ensinamentos sistemáticos, mas, sim, porque o conhecimento foi transmitido na prática, de geração para geração.

Tradição e transmissão de conhecimentos são fatores essenciais para a continuidade das diversas manifestações culturais intangíveis, peças fundamentais para a construção da chamada “consciência nacional” (termo usado pelo escritor Mário de Andrade para designar um conjunto de práticas, representações, técnicas, objetos e lugares que integram o patrimônio cultural de um povo). “Por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais diversas são as fontes nas quais bebemos mais forte a nossa identidade”, afirma Marcelo Manzatti, antropólogo que atualmente trabalha no processo de reconhecimento do samba paulista como patrimônio imaterial. No entanto, preservar uma manifestação cultural não é tarefa das mais simples. Segundo Manzatti, diversos obstáculos relacionados a variáveis socioeconômicas atrapalham a dinâmica de algumas expressões culturais. “Um jongueiro mora na periferia de Guaratinguetá, estado de São Paulo, por exemplo, e sofre as dificuldades de quem vive em sociedades carentes, marginalizadas”, explica. Outro problema em relação à continuidade dessas manifestações intangíveis está ligado aos próprios praticantes. “Hoje, os mais jovens se interessam por coisas com mais apelo na mídia, mais glamour.”

reportagem

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imagens: Jader Rosa | Itaú Cultural

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Outra problemática, de caráter mais subjetivo, está na questão do “preservar”. Sylvia questio-na como preservar bens intangíveis que cada vez mais se inserem em uma socie-dade sujeita a transformações intensas e rápidas. De acordo com ela, tanto governo quanto sociedade devem compreender que bens de origem imaterial não podem ser preservados, no sentido clássico do ter-mo, utilizado com base na noção de tomba-mento dos bens imóveis. “Preservar signifi-caria buscar a permanência, o que sugeriria ‘congelamento’ e imobilismo”, explica. “A preservação de uma pretensa ‘pureza’ dos bens intangíveis é um desejo de impossí-vel realização, uma vez que não podemos ‘conservar’ práticas culturais, isolando-as do contato com o mundo e tentando desco-nectá-las da dinâmica do fazer a história em seu cotidiano.” Em linha semelhante, Jurema complementa: “A tradição é uma reserva de conhecimento, um suporte de inovação. Não devemos congelar a tradição e tratá-la como algo exótico”. Segundo ela, “em tem-pos de processo de globalização, em que as práticas culturais estão cada vez mais homogeneizadas, a tradição, os bens imate-riais se tornam mais relevantes”.

Livros imateriais

Saiba como o Iphan registra os bens intangíveis

O Iphan estabeleceu a divisão dos bens imateriais em quatro livros. Atualmente �� manifestações culturais imateriais já foram registradas e mais de �5 inventários estão em andamento, de acordo com o site da instituição [iphan.gov.br]. Confira o que já foi reconhecido pelo Iphan:

Patrimônio legitimado

Se de um lado existem problemas, de outro surgem iniciativas para solucioná-los. Ainda é recente no Brasil a criação de políticas para proteção e preservação do patrimônio imaterial. A Constituição de �988 foi a primeira a tocar nesse assunto e, somente em �000, por meio de decreto, é que, de fato, se criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, promovido pelo Ministério da Cultura com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Alberto Ikeda, professor de cultura popular da Universidade Estadual Paulista (Unesp), explica de que forma um bem imaterial é reconhecido pelo Estado como patrimônio. “A pessoa ou o órgão proponente deve fazer uma ampla pesquisa, conhecida como inventário, sobre a manifestação ou o saber e encaminhar ao Iphan para ser registrada”, conta. “Após o registro, o governo federal precisa tomar iniciativas para que o bem registrado tenha continuidade, isso se dá através do Plano de Salvaguarda.” Entretanto, Letícia Vianna, antropóloga que coordenou o processo de patrimonialização do jongo, lembra: “para ser considerada patrimônio imaterial, a manifestação precisa ser reconhecida como uma referência para a identidade de um grupo ou comunidade, ter densidade histórica e ser significativa para a diversidade cultural”. Ela ainda ressalta: “é importante levar em conta o interesse das pessoas envolvidas em ter o bem cultural reconhecido pelo Estado”. De acordo com Manzatti, essas pessoas exercem papel fundamental. “Trata-se de patrimônios coletivos; se o coletivo não os legitima, fica difícil dar continuidade.”

Para Jurema Machado, coordenadora de Cultura da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unes-co), “a participação da comunidade na legi-timação dos bens imateriais é condição sine qua non”. Segundo ela, o Estado atua apenas como co-responsável pela preservação, pois esta depende mais dos detentores do saber. “O plano de salvaguarda protege o entorno, criando um ambiente favorável à transmis-são do conhecimento.” Entre os resultados do plano de salvaguarda, é possível citar a

criação de oficinas para que jovens do Recôn-cavo Baiano se apropriem da maestria para confeccionar a viola-de-machete, uma vez que os mestres atuais estão morrendo de velhice. A viola-de-machete é instrumento essencial para a prática do samba-de-roda daquela re-gião. Outro exemplo está relacionado ao ofício das paneleiras do bairro de Goiabeiras, em Vi-tória, Espírito Santo. Para preservar essa prática, o registro do Iphan determinou também a pre-servação do vale do Mulembá, lugar de onde é extraída a matéria-prima para a confecção das panelas de barro para moqueca.

Preservar não é congelar

Não parece haver dúvidas dos benefícios vin-dos com o reconhecimento de manifestações culturais como patrimônio imaterial. Porém, essa espécie de status pode trazer alguns pon-tos negativos devido à alta exposição, como a utilização ou a comercialização indevida do conhecimento tradicional. A arte kusiwa dos índios Wajãpi – que consiste em desenhos corporais de códigos e que foi reconhecida pela Unesco, em �00�, como Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade – começou a ser utilizada para fins comerciais ao estampar camisetas, sem a autorização dos índios. Segundo Manzatti, esse fato se deve, sobretudo, à “cultura de mercado e de espetá-culo, que tende a transformar tudo em merca-doria”. Para Sylvia Costa Couceiro, historiadora e membro do projeto Formas de Expressão da Cultura Imaterial, em Pernambuco, “é impor-tante que os grupos e suas manifestações não sejam simplesmente incorporados à indústria do turismo e do lazer como elementos pitores-cos de uma cultura exótica, sendo absorvidos pelo mercado cultural apenas como entrete-nimento e diversão para os turistas”. Segundo ela, essas pessoas, antes de tudo, devem ser reconhecidas como cidadãos, “no sentido de que suas manifestações sejam respeitadas como parte representativa da identidade desses grupos e integrantes da ampla e diversa trama que compõe a cultura nacional”.

Livro de Registro dos SaberesOfício das Paneleiras de Goiabeiras (ES)Modo de Fazer Viola-de-Cocho Ofício das Baianas de Acarajé

Livro de Registro de CelebraçõesCírio de Nossa Senhora de Nazaré (PA)

Livro de Registros das Formas de ExpressãoKusiwa – Linguagem e Arte Gráfica Wajãpi (AP)Samba-de-Roda do Recôncavo Baiano Jongo do Sudeste Frevo Tambor-de-Crioula do Maranhão Samba do Rio de Janeiro

Livro de Registro dos LugaresCachoeira do Iauaretê (AM)Feira de Caruaru (PE)

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Lembrar, jamais!Se a memória humana é seletiva, por que a memória cultural não pode ser?

artigo

Por Guilherme Kujawski

Proteger a memória e as manifestações culturais de povos é uma das prioridades da Unesco, entidade que tem aprimorado instrumentos legais para salvaguardar patrimônios imateriais. É quase inapropriado argumentar contra uma iniciativa tão honorável, principalmente dentro de sociedades conhecidas por seu orgulho nacional. Evoque-se no presente texto, então, o direito a um pequeno contraditório de opinião. De saída já se verifica o problema de engessar com rigor práticas originadas de ordens culturais orgânicas que, por sua natureza simbólica, são avessas a enredamentos. Antropólogos provenientes de diversas escolas já testemunharam, com alguma tristeza, seus objetos de estudo (leia-se agentes do “pensamento selvagem”) realizarem complexos rituais não por tradição constituída ao longo de gerações, mas por via de filmes registrados pelos próprios pesquisadores. O que era apenas um rastro de significados no tempo se tornou um… roteiro! O mesmo alerta vale para a memória de nossos acarajés e a arte corporal dos índios Wajãpi, do Amapá.

Mas, antes de criticarmos a preservação de memórias culturais, urge-nos perguntar: o que é memória? Em termos da neurociência, e mesmo assim sob um ponto de vista bastante simplificador, a memória consiste em um padrão de conexões entre neurônios, o qual circula pelo cérebro na forma de um código de sinais, como um código Morse. Populações neurais especializadas no transporte de informações codificadas têm a missão de reconhecer quais padrões valem à pena ser reforçados – sob diversos critérios de relevância (trauma e prazer são apenas dois deles) – ou extintos. Por sua característica difusa e fluida, metáforas que remetem a repositórios e banco de dados não se aplicam à memória. Aliás, as metáforas que descrevem o próprio cérebro – concomitantemente uma máquina de previsão (dados sensoriais são comparados à luz de experiências anteriores e aplicados em decisões futuras), um dispositivo semiótico (informações externas são vertidas em símbolos que, por sua vez, são transformados em códigos) e uma rede de comunicação – são insuficientes. De qualquer forma, o cérebro é menos uma rede de telefonia comutada do que uma internet, já que diferentes informações – como lembranças de longo e curto prazos – são transmitidas a regiões específicas de uma maneira multidirecional, e não bidirecional, como assume o senso comum. Funcionalidades desse tipo jamais se sustentariam se as informações fossem se acumulando ao longo do tempo. Esquecer, portanto, é fundamental para a saúde e a eficiência do cérebro. E a memória cultural de um determinado povo, ela não depende da saúde da memória de seus indivíduos?

Revelações e ocultações

Mas foi no universo das artes, e não na ciên-cia, que a relação entre memória e esque-cimento foi entendida com mais clareza. As madalenas de Marcel Proust, símbolos do que o escritor francês chamava de “me-mória involuntária”, anteciparam, numa das escritas mais elegantes da literatura, princí-pios sobre o armazenamento da memória enunciados décadas depois pelo psicólogo alemão Hermann Ebbinghaus. Com anos de antecedência, e com certeza não in-tencionalmente, o escritor argentino Jorge Luis Borges diagnosticou a síndrome hiper-timésica no personagem Funes (de “Funes, o Memorioso”, conto do livro Ficções, de �944), que é a incapacidade de o paciente esquecer fatos não relevantes de seu pas-sado remoto, anomalia recentemente clas-sificada por neurocientistas da Universidade da Califórnia. Teoricamente, portanto, a me-mória de um povo e a memória do cérebro têm muitos pontos em comum. Citando

ainda exemplos das artes, não seria um brilho eterno o resultado de mentes

sem lembranças – mentes individu-ais e coletivas?

Há hoje, devido à tendência determinista da tecnologia, o perigo da “externalização” efe-tiva da memória coletiva. Terabytes de ma-terial simbólico são armazenados a cada dia pelo Google, pela Biblioteca do Congresso [loc.gov/index.html] e por iniciativas pesso-ais autobiográficas. Por falar no último, esse tipo de terceirização da memória comprova que, com o advento da sociedade do ex-cesso de informação, já não sobra espaço no disco rígido humano, aquele feito de carne e localizado em uma das pontas da espinha dorsal. Na visão do antropólogo francês Marc Augé, revelações e ocultações são partes integrantes dos mecanismos da memória, o que torna ficcional boa parte de nossas lembranças. Portanto, se a memória é incapacitada quando tudo é arquivado, então se pode dizer que o esquecimento é condição necessária da própria vida e suas narrativas. A amputação da capacidade de esquecimento coloca em risco a manuten-ção da fábrica global de pensamentos.

Guilherme Kujawski é jornalista especiali-zado em arte e tecnologia, escritor de ficção científica e coordenador do Itaulab, labora-tório de mídias interativas do Itaú Cultural. Autor de Piritas Siderais – Romance Cyberbar-roco (Francisco Alves, �994).

imagem: Cia de Foto

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Uma política de ponta entrevista

Por Marco Aurélio Fiochi

Em �977, Gilberto Gil questionou, na canção De Onde Vem o Baião, a origem dos ritmos musicais nordestinos. A resposta, presente em versos como “Debaixo do barro do chão da pista onde se dança/Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino/[...]/Que sobe pelo chão/E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote”, credita a uma dimensão imaterial o impulso criativo que dá vida a uma parte da riqueza musical brasileira. Coincidência ou não, o músico tratou poeticamente um aspecto cultural que, três décadas depois, ganharia espaço cada vez maior em sua gestão como ministro da Cultura. Nesta entrevista, concedida em seu gabinete, em Brasília, Gil demonstra entusiasmo com a cultura intangível: “Essa dimensão é a mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje”. Justiça seja feita, desde que assumiu o ministério, em �00�, a cultura intangível entrou de vez em pauta no Brasil, com as certificações de patrimônio imaterial concedidas pelo Iphan a celebrações, lugares, ritmos musicais e ofícios. Mas, segundo o ministro, esse não é um mérito individual, já que o governo brasileiro é signatário de uma política mundial para esse setor, posta em prática pela Unesco. Lançando o olhar para um futuro que já se apresenta, Gil comenta ainda a interação crescente entre o patrimônio imaterial e a cultura digital.

imagens: Cia de Foto

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Qual é sua visão sobre cultura intangível?

A cultura intangível é a parte mais impor-tante, mais substancial da cultura. É a cultura que se processa pelos modos de comuni-cação. Com o crescimento das populações, especialmente em lugares onde prevalecem os cânones clássicos da cultura eurocêntrica, mas também na periferia do mundo, a cultu-ra intangível se torna mais eloqüente, forte e flagrante. Trata-se da cultura oral, dos sa-beres, dos processos e das trocas simbólicas cotidianas, nas várias formas de linguagem utilizadas pelas pessoas. Essa dimensão é a mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje. Eu diria que bem mais da metade da população mundial tem nessa dimensão cultural sua dimensão principal. Acho que o Brasil se encaixa com perfeição nesse modelo de povos novos, povos que se construíram com base em uma vivência cultural não formalizada.

Um dos objetivos do poder público ao conferir títulos de patrimônio imaterial a determinados bens culturais intangíveis é assegurar sua preservação diante das transformações constantes por que pas-sam a vida e a cultura. Como o senhor vê o aprofundamento do debate sobre a cultura intangível, que via de regra é também o debate sobre a cultura popu-lar, no cenário contemporâneo?

A constituição de um corpo de leis e ins-trumentos regulatórios que possibilitem a preservação dessa cultura por parte do poder público nasce de um cuidado dian-te de ameaças de um processo natural, de construção da vida moderna e pós-moder-na, que é avassalador, que vai obrigando as pessoas a se enquadrar. Mas outro aspecto importante é a necessidade identitária dos indivíduos e dos grupos sociais, seu auto-re-conhecimento, sua autocontemplação. Não basta preservar das ameaças da atualidade, pois não se trata somente do risco de per-

der algo que é seu, mas, sim, da possibi-lidade de perder a si próprio. São duas

questões, dois cuidados contempla-dos pelas iniciativas ligadas ao

patrimônio imaterial.

Embora as manifestações da cultura oral e intangível sejam tradicionais e pratica-das desde tempos imemoriais, essa ques-tão só se tornou mais intensa no setor cultural com a Convenção para a Salva-guarda do Patrimônio Cultural Imaterial, realizada pela Unesco em 2003. Como o senhor vê esse despertar relativamente tardio para um aspecto tão relevante de nossa cultura?

A Convenção nasce de uma importância crescente e indiscutível da dimensão do pa-trimônio imaterial. Ela consolida a atenção especial da humanidade para com o patri-mônio imaterial. Por meio dela são criados instrumentos de consideração apropriada, definitiva e mais acentuada dessa dimensão cultural no mundo. A Convenção traz essa discussão a um campo institucional, para o plano da atuação do Estado nesse proces-so todo. Decorre disso o fato de que um dos aspectos fundamentais da Convenção é a autorização das nações para a prática de políticas culturais públicas, adequadas segundo seu entendimento, sua conveni-ência, suas expectativas e expectativas de seus povos. A Convenção coroa um pro-cesso natural de um conjunto de iniciativas mundiais tomadas pela própria sociedade internacional. A politização dessa discussão nasce nos países asiáticos, como a Índia e a China, em que a dimensão demográfica é de extraordinária importância e a diversi-dade cultural é imensa. Nesse continente, os processos orais, simbólicos, imateriais se dão de forma muito mais nítida, dramática do que na Europa ou em países onde preva-leceu, por força da acumulação de riquezas, do colonialismo, uma visão clássica de cul-tura e de patrimônio. Essa visão foi herdada pelos povos que, ao se assumir como no-vos, com suas necessidades especiais e peculiaridades, passam a reivindi-car uma consideração à dimen-são imaterial, intangível do patrimônio.

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Os Pontos de Cultura do programa Cultura Viva, do ministério, poderão abrigar no fu-turo manifestações da cultura intangível?

Muitos deles já abrigam essas manifesta-ções. São Pontos de Cultura ligados a po-pulações indígenas e a remanescentes his-tóricos da interação cultural afro-brasileira. Não só os Pontos de Cultura, mas também outros programas do ministério, outras ver-tentes do programa Cultura Viva já contem-plam as manifestações certificadas como patrimônio. Se não os certificados, aqueles que estão em processo para se certificar. É uma forma de fazer com que essas mani-

festações cumpram seu percurso. Há um primeiro estágio, que é a afirmação da

identidade, e num segundo momen-to sua exposição, difusão para pú-

blicos que não teriam aces-so direto a elas.

Em sua gestão houve um empenho pes-soal em promover o levantamento e a certificação dos bens culturais intangí-veis como patrimônios. O senhor acredi-ta que essa política poderá se tornar uma política de Estado?

Não vejo isso no futuro, é agora! Estamos fa-zendo uma política de Estado ao criar os es-tatutos da certificação. É uma política que se constrói agora e tem vida longa. Ela reflete um desejo e uma ação da Unesco – não por acaso a Organização é dirigida por um dos maiores entusiastas do patrimônio imaterial, o secretário Koïchiro Matsuura. A formação do secretário na esfera institucional da cultu-ra vem do patrimônio imaterial no Japão. Ele veio para a Unesco para representar a grande demanda asiática pelo fortalecimento dessa dimensão. O governo brasileiro, por meio do Iphan, a autoridade cultural patrimonial do país, é signatário dessa política. Vários esta-dos brasileiros, por meio de suas políticas culturais, também assumiram a questão do patrimônio imaterial como política, caso do Ceará, da Paraíba, da Bahia, de Minas Gerais. Alguns programas estaduais, como o do Ce-ará, são anteriores ao programa do Ministério da Cultura. Trata-se, de fato, de uma política do Estado brasileiro.

Para as comunidades, qual é o impacto das ações planejadas pelo ministério para garan-tir a sustentabilidade dos modos de fazer e das celebrações da cultura intangível?

O associativismo é um passo natural para a vi-sibilidade dessas comunidades, para que elas fortaleçam seus vínculos com as manifestações culturais intangíveis. Portanto, esses grupos passaram a se estabelecer como força política, como força empreendedorística, como força de protagonismo social. O associativismo é ba-seado na consolidação da cidadania. A primeira noção do associativismo é a politização, as pes-soas se associam para se tornar corpos políticos. Claro que o ministério não vai fazer cidadania, não vai fazer de ninguém um cidadão, mas ele ajuda na medida do possível, dando ferramen-tas técnicas, materiais e conceituais. A parte conceitual é importante, pois dá às pessoas a visão, a noção sobre identidades e diver-sidades, sobre preservação e conserva-ção, sobre o papel da sociedade e também do governo.

Enfocando aspectos mais contemporâ-neos da questão, gostaria que o senhor falasse a respeito de outra forma de pa-trimônio imaterial, constituído a partir do advento da cultura digital. Como o senhor vê o papel das obras de referência virtuais, a exemplo de enciclopédias, para assegu-rar a preservação da memória cultural?

Esse é um tema novo e importantíssimo. Aca-bo de chegar dos Estados Unidos, onde tive contato com a Internet Archive [archive.org], instituição não-governamental criada por um egresso do mundo dos negócios no Vale do Silício, Califórnia, Estados Unidos. A instituição [fundada em �996 por Brewster Kahle] nasceu exatamente para preservar acervos com a di-gitalização. São arquivos, memórias variadas encontradas fragmentadas no campo digital, produtos que são conseqüência, são frutos da internet, bem como tudo aquilo que ela veio a abrigar do mundo analógico, das linguagens anteriores. Trata-se dos grandes filmes do mun-do inteiro, do patrimônio musical, do teatro, da literatura. A instituição possui �00 bilhões de páginas da internet arquivadas, fora os �00 mil filmes digitalizados. Essa relação entre o patri-mônio imaterial e o mundo digital está cada vez mais próxima, eles estão convergindo, não há como recusar isso.

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A face visível do invisívelComo as dimensões material e imaterial se fundem nas religiões

reportagem

Por Patrícia Patrício

Para as religiões, é tênue, se não inexistente, a fronteira entre os conceitos de material e imaterial. Independentemente do credo, os templos de tijolo, pedra, vidro e arte merecem cuidado não só por sua beleza exterior, arquitetônica, mas também por seus ritos, mitos, festas, modos de viver. Essa é a beleza interior, intangível, imaterial colada na face da matéria.

Segundo Maria Cecília Sanchez Teixeira, professora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e coordenadora do Centro de Estudos do Imaginário, Cultura e Educação da mesma instituição, “enquanto a religiosidade se refere à relação do homem com o sagrado, a religião se institucionaliza por meio de doutrinas e dogmas. Não só a religiosidade, mas outras manifestações mitológicas ou ideológicas têm o poder de ‘moldar’ materialmente um povo, porque são manifestações do imaginário e é através dele que nos reconhecemos como humanos, conhecemos o outro e apreendemos a realidade múltipla do mundo. Costumamos dizer que é o imaginário que organiza o real”.

Nas palavras de Dary Mota, babá [autoridade do candomblé] Giberewá, de Salvador, “o material não existe, porque matéria equivale à energia. A espiritualidade usa a energia da matéria, que pode ser direcionada para o bem ou para o mal, depende do livre-arbítrio humano. Veja a energia atômica, que foi pensada para o bem e acabou em Hiroshima”. Duas faces de uma moeda, eis o que são “imatéria” e “matéria”, como assinala Edgard Carvalho, professor de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). “Precisamos pensar de maneira dialógica e articular as duas faces da moeda, abandonar essa oposição cartesiana consagrada.”

À frente da gestão do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico (Condephaat) entre �989 e �99�, o antropólogo enfrentou muitos questionamentos sobre o processo de tombamento do terreiro Axé Ilê Obá, em São Paulo. “Nós nos perguntávamos o que estávamos tombando. O culto imaterial ou o material das casas de santo, os objetos? Eu dizia: é impossível separar, conta ele.” Essa ligação é indissolúvel, ensina Maria Cecília: “É inerente à própria condição humana, do Homo symbolicus. São os processos de simbolização que permitem aos humanos tomar consciência da condição própria aos seres vivos: seu destino mortal”.

Obra Sem Título [detalhe], �006/�007, de José Frota | imagem: arquivo do artista

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Ecoando, em outra clave, o padre João Batista Libânio Christo, professor de teologia do Instituto Santo Inácio, de Belo Horizonte, explica: “Nenhuma religião perdura sem registro material: pintura, grafia, escultura, música. Isso varia nas religiões; na católica vemos a arte barroca condensada nas obras de Aleijadinho, que mostram o sofrimento na cruz e a alegria dos anjos. Eis a corporeidade do sentimento religioso. A arte religiosa é um dos principais patrimônios imateriais (porque espiritual) e materiais (porque de madeira, barro, pedra, notas musicais)”.

Deus e a ciência

A relação entre Deus e a ciência é outro as-pecto que apresenta dimensões materiais e imateriais. Do ponto de vista do zen-bu-dismo, monja Coen acredita que “desenvol-vemos uma corrida científica e tecnológica muito importante, mas questionamos quem somos nós. Estamos em plenitude, ou o que nos falta? Essa falta leva a uma procura. Será que deixaremos uma herança não-material para nossos descendentes?”.

Carvalho cita pensadores que abordaram a relação entre o divino e a ciência. “Para La-can, ‘Deus é o Sujeito da Ciência’. Já Hegel diz: ‘Deus é a Idéia Absoluta, o Devir do Es-pírito, o Universal Concreto...’ Em contraste, temos Nietzsche: ‘Deus deve morrer e o Ho-mem deve ser superado’.” Maria Cecília lem-bra Gilbert Durand, autor de A Imaginação Simbólica (Edições 70, Portugal, �995), entre outros: “O que leva o homem a se relacio-

nar com um ser superior é seu desejo, ou intuição, de que existe algo além

da matéria. Algo indizível e invisível que a razão simbólica materia-

liza em mitos e ritos”.

Em sintonia com o pensamento da educadora está padre Libânio. “O ser humano é especialmente simbólico. Ao tomar água pode ver, além de H

�O, vida. A gente

não se satisfaz com alimentos, precisa reinventar, com mesa, pratos, talheres... Nos relacionamos com coisas, pessoas e uma figura maior: Deus”, explica. “Para citar Jung, há um grande inconsciente coletivo, um processo profundo de criação de imagens. Não criamos sozinhos: o conhecimento passa pelas moléculas. Mesmo que não siga uma religião, o ser humano nutre um sentimento religioso.”

Em tempos de guerra

No culto multirreligioso celebrado em �7 de dezembro de �007 no Tribunal Regional Eleitoral em São Paulo, o rabino Alexandre Leoni, da Federação Israelita do Estado de São Paulo, festejou o Brasil, um país sem conflitos religiosos. Essa realidade, porém, não é unânime no mundo, com as disputas no Oriente Médio, que envolvem mais o poder que o nome de Deus, apesar de o terem como pretexto. Carvalho relembra o panorama dos últimos �8 anos, entendendo, como Eric Hobsbawm, que o século XX termina com a queda do Muro de Berlim, em �989. “Do fim do século XX para cá, percebemos um aumento das religiosidades. Algumas delas servem como fundamento para a intolerância.”

O professor da PUC/SP se mostra veemen-temente contra os fundamentalismos: “A adoração é imanente, ‘a marca do Homem é o Inacabado’, nas palavras de Edgar Morin. Porém, precisamos diferenciar adoração de fanatismo. Mesmo o conflito Israel-Palestina não deveria existir pelas tradições religiosas desses povos”. Como observa Maria Cecília, “o contato com o divino nunca foi algo pací-fico. Se se pensar nas religiões antigas desde a Suméria, se verá que a religião sempre foi uma forma de ritualizar a violência. As ‘guer-ras santas’ sempre existiram”.

O padre Libânio compreende os conflitos da seguinte forma: “Existe bondade e vio-lência no ser humano. Vejamos o pecado original, que é mal entendido: Adão e Eva percebem a nudez quando encontram a ambigüidade. Caim mata Abel, irmãos que se amam acabam se matando. A religião prega a paz, mas também participa da ambigüidade quando afirma: de-fendo minha religião e mato por ela”.

Num tom apaziguador, o rabino Michel Schlesinger,

substituto de Henry Sobel na Con-gregação Israelita Paulista (CIP), argu-

menta: “Não conheço nenhuma religião que apregoe, em sua essência, a guerra.

O conflito é sempre uma manipulação dos princípios religiosos. Infelizmente, existem fundamentalistas em todos os grupos reli-giosos. Mas a religião deve ser sempre um caminho para a paz”.

A declaração faz coro à de monja Coen. “As religiões são bandeirinhas que se botam na frente. Não se questiona a verdade da Torá, do Talmud ou do Corão.” Segundo a religiosa, quando houve guerras medievais no Japão, questionou-se o budismo por se ausentar (como os católicos no Holocausto). “É preciso ter uma atitude crítica: Gandhi parou guerras na Índia conversando.” Para a monja as pessoas precisam ser mediadoras de conflitos, deixar uma herança de carinho e não de ódio. “Acredito que possamos criar uma cultura de paz.”

A procura pelo sagrado | imagem: Cia de Foto

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imagens: Cia de Foto

Tradição, família e itinerânciaO velho circense nos tempos do novo circo

reportagem

Por Thiago Rosenberg

Na quarta-feira, �9 de dezembro, o Circo Zanchettini, comandado pela família quase homônima Zanquettin, chega a Quirinópolis, na região sudoeste do estado de Goiás. São quatro carros, quatro caminhões, três trailers e �� carretas – cinco cheias de carga e animais e seis mobiliadas e equipadas com toda sorte de eletrodomésticos, além de, entre outros, aparelhos de som, televisores, ar-condicionado e computadores, alguns com webcam e acesso à internet. Eles são conduzidos pelos artistas e técnicos circenses que, há dois dias, deixaram para trás o público de Rio Verde, também no interior de Goiás. Até a noite de estréia do espetáculo, na sexta-feira, a família deve ainda certificar-se de que o terreno atende a suas necessidades de iluminação, água e segurança e, logicamente, montar o circo: alinhar os mastros, erguer e derriçar a lona (de �.600 m² e aproximadamente � toneladas), preparar o picadeiro e a marquise, cobrir de feno o solo etc. Um processo árduo que, em conjunto com a intensa itinerância, dizem os Zanquettin, determina se um artista é de fato ou não um circense.

“Para ser um circense”, afirma Erimeide Zanquettin, “é preciso viver o circo em sua plenitude”. Encará-lo como local de moradia e de trabalho da família; transmitir às novas gerações a técnica, a ética e a cultura circenses; levar os espetáculos a diversas – e muitas vezes adversas – regiões, das capitais às mais remotas e inacessíveis cidades. Enfim, agregar os elementos de um estilo de vida essencialmente voltado ao circo dito tradicional, de lona, itinerante, cujos números e técnicas foram transmitidos ao longo de décadas de história – e que deve, em breve, ser patrimonializado pelo Iphan como bem cultural imaterial (o processo de registro encontra-se em andamento).

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Esse nomadismo constitui uma das princi-pais características do cotidiano circense de tradição familiar. E interfere não apenas na vida afetiva dos artistas – as crianças, por exemplo, freqüentam uma escola em cada cidade; isso quando os colégios em questão têm vagas para os novos alunos. A estrada e todos os municípios a ela ligados são o lar dos Zanquettin. Eles mantêm um imóvel em Curitiba, no Paraná, mas este é raramen-te visitado. Não há quase nada na casa – se alguém porventura tentar assaltá-la não en-contrará muito mais do que um aparelho de telefone. Serve basicamente para reunir a correspondência do circo e abrigar algum membro enfermo da família, já que ele esta-rá próximo a bons hospitais.

De geração a geração

Já é quinta-feira, o dia anterior à estréia do espetáculo, e a chuva, ainda que fraca, não cessa desde que o Zanchettini apareceu em Quirinópolis. Mesmo assim, os homens da família – mais três quirinopolinos, que vão receber R$ �,00 por hora de serviço – não interrompem o trabalho braçal de erguer o circo. “Nem engenheiro faz isso como nós”, gaba-se Márcio, referindo-se à precisão com que os artistas colocam o circo de pé, transmitida de geração a geração.

De cidade a cidade

Erimeide é filha de dona Wanda, a matriar-ca do Zanchettini. Encontram-se, em Qui-rinópolis – onde calculam permanecer até os primeiros dias de �008, antes de rumar a Itumbiara –, outros seis dos dez filhos da septuagenária (em ordem de nascimento: Edlamar Maria, Amaury, Solange Maria, Már-cio, Márcia Aparecida e Silvio), alguns deles acompanhados do cônjuge e dos rebentos. Cerca de �0 parentes, entre crianças e adul-tos. Mais os animais – um tigre, dois leões, três cavalos, três pôneis, dois avestruzes e um cão – e, como não?, os agregados;

aqueles que, impressionados com a visi-ta dos artistas à sua cidade, decidiram

acompanhar a itinerância do gru-po – às vezes entrando de

fato para a família.

É o caso de Inara. Natural de Dionísio Cerqueira, em Santa Catarina, ela vivia em Guarujá do Sul, no mesmo estado, quando o Circo Zanchettini por lá passou. Era �99�, e Inara, então com �7 anos, cursava o ensino médio. Acompanhada de duas colegas – Vanusa e Jonara –, foi assistir ao espetáculo e lá conheceu Amaury, ou Palhaço Pequi, que apresentava, entre outros números, o esquete cômico Morrer para Ganhar Dinheiro. Os dois começaram a se encontrar, mas logo o circo rumou para outro município, Descanso. “Se você quiser que eu vou até descanço, me liga: Fone: 4�-�97, é o telefone da vizinha” (sic), escreveu ela em uma carta. “Fiquei sabendo que vocês irão voltar daqui � anos, aí qui ódio todo esse tempo eu não vou aguentar” (sic). Ela entregou a mensagem a um ex-funcionário do circo, Cléber, que ainda estava em Guarujá do Sul, mas ele a perdeu. Passadas aproximadamente três semanas, então, Amaury encontrou a missiva na beira da escada do ônibus da mãe, um Mercedes azul. Ligou para a garota e foi buscá-la em Guarujá do Sul. Inara “fugiu com o circo”, e logo começou a aprender a arte circense. Eduardo, ou Palhaço Cachorrão, o mais velho dos quatro filhos do casal, nasceu no ano seguinte.

(O segundo filho, Victor, hoje com �� anos, não teve a mesma sorte que o pai. Ele conta que, há três anos, quando o circo estava em Coxim, em Mato Grosso, se apaixonou por uma garota chamada Luana – “eu gostava da risada dela” –, mas, uma vez que os artistas voltaram para a estrada, os dois nunca mais se viram. “Se pelo menos ela tivesse Orkut”, lamenta o rapaz.)

O tom orgulhoso com o qual os circenses alu-dem ao aprendizado adquirido ao longo das décadas talvez seja o bastante para compreender – não necessariamente concordar com – sua postura em relação às escolas de circo. “Elas formam artistas, mas não circenses”, diz o caçula de dona Wanda, Silvio – que, ao lado do cavalo Champa, levou o Circo Zan-chettini à primeira posição no concurso O Melhor do Circo, promovido em dezembro pelo programa da Rede Globo Domingão do Faustão. “Os alunos dessas escolas não aprendem a viver como nós, a pegar a es-trada, a desmontar, transportar e montar a lona”, completa.

Ex-diretor de artes cênicas da Fundação Na-cional de Artes (Funarte), Humberto Braga integrou a comissão que criou, em �98�, a Escola Nacional de Circo. Ele conta que os professores originais da instituição eram circenses tradicionais, mas “a escola gerou grupos, ou trupes, de outra natureza” – mui-tos deles representantes do chamado novo circo, que une as linguagens da dança e do teatro à arte circense; caso, por exemplo, da companhia carioca Intrépida Trupe.

“O que os artistas de tradição familiar têm dificuldade em entender”, defende Braga, “é que essa é uma mudança natural da arte. É inclusive uma riqueza da linguagem circense; mostra que ela está viva, já que tudo o que é vivo se transforma.”

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No princípio era o verboDo mito à tecnologia digital, a importância da cultura oral para o ser humano

reportagem

Por Érica Teruel Guerra

Era uma vez... uma grande bola de fogo que, depois de muito tempo queimando, explodiu. Os milhares de pedacinhos resultantes foram para tudo quanto é lado. Foi daí que se originou o Sol, a Lua e até o planeta Terra, onde surgiram plantas e animais. O bicho mais esquisito que apareceu por lá foi o homem. Tinha estranhos costumes, como usar a pele de outras espécies sobre o corpo e pintar formas nas paredes das cavernas. Com o tempo, começou a dar nome às coisas e a contar histórias.

O Big Bang é a versão do homem branco, “civilizado”, para explicar seu surgimento. Para os Aruá, povo indígena de Rondônia, a história é diferente: a humanidade surgiu depois que o demiurgo (criatura intermediária entre a natureza divina e a humana) Paricot começou a namorar um monte de cupim e, copulando com uma cavidade no solo, engravidou a Terra. Passados alguns meses, ele e seus irmãos, Andarob e Antoinká, ouviram um barulho vindo lá debaixo do chão. Era a humanidade querendo sair.

Em comum, a história do homem branco e a do índio têm o desejo de explicar o mundo. “O mito mexe com um sentido profundo da existência, com indagações que são fundamentais”, conta a antropóloga Betty Mindlin, autora de livros como Moqueca de Maridos (Rosa dos Tempos, �997) e Terra Grávida (Rosa dos Tempos, �999), em que está registrado o mito indígena citado. Ilan Brenman, escritor e contador de histórias, completa: “As histórias vieram para responder e para acalmar, para consolar uma angústia, que era saber de onde viemos, qual o sentido da vida, o que é a morte”. É por isso que há aspectos em comum entre contos do mundo inteiro: porque falam da condição humana. Orixás e deuses da mitologia grega têm, por exemplo, características humanas, como vaidade e inveja.

ilustrações: Jader Rosa

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As histórias, contadas e recontadas ao longo dos séculos, estão intimamente ligadas à identidade da comunidade que as criou e que as alimenta. Betty, em seu trabalho com as tribos indígenas, afirma ter ouvido diversas vezes: “‘Enquanto nós soubermos contar essa história, nós somos um povo’”. Sejam as histórias relatadas para a criança no momento que antecede os sonhos, sejam aquelas contadas ao redor de uma árvore, por um pajé, elas transmitem valores e costumes em palavras que formam o indivíduo e a sociedade por ele habitada. Para Luiz Carlos dos Santos, mestre em sociologia e fundador do Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo, a oralidade carrega exemplos de comportamento, que devem ou não ser seguidos por determinada comunidade. “Ela produz e mantém a memória pessoal e coletiva como uma biblioteca dinâmica que sugere formas de organização social.” A palavra no universo contemporâneo

Em uma sociedade na qual reinam as imagens e os estímulos, em que o volume de informa-ção é muito superior ao que o homem pode absorver e o que importa é vender e comprar, qual é o lugar da cultura oral?

Coordenador do Observatório da Diversidade Cultural [observatoriodadiversidade.org.br], José Márcio de Barros afirma que, apesar das diversas mudanças ocorridas no plano comunicacional na contemporaneidade, a oralidade mantém sua importância. “Como

prática cultural de atribuição de significa-dos, de viabilização de encontros e trocas, ela continua a existir tanto em suas carac-terísticas tradicionais (a conversa no bar, o bate-papo, o empenhar a palavra) quanto nas novas práticas (skype, celular).” A edu-cação, para Santos, é um exemplo da vitali-dade da palavra: “Os procedimentos sociais que nos tornam membros de um grupo nos são ensinados por meio das narrativas orais, das máximas, dos conselhos, das lições de moral. O processo educacional familiar ain-da é majoritariamente comandado pela tra-dição oral”.

Brenman, que conta histórias há �7 anos, diz que, quanto mais as imagens dominam os momentos de interação social da atualidade, com mais encanto as pessoas – crianças e adultos – encaram as narrativas. É por isso que o número de contadores aumenta nas cida-des grandes. “O legal é que numa sociedade doida como a nossa as pessoas querem ouvir histórias.” Para Santos, no entanto, esse recente sucesso não significa uma mudança na reação das pessoas às narrativas: “É uma necessidade que vai para além da moda e nos comple-menta como seres racionais e emocionais”.

Barros vê com otimismo a presença da ora-lidade no século XXI e afirma que a melhor forma de preservá-la é não enclausurá-la no passado: “Rappers, repentistas, adolescen-tes na porta de shoppings, idosos jogando dama nas ruas fechadas da cidade, vende-dores ambulantes, artistas de rua, todos eles revelam a atualidade de nossa oralidade”.

Registrar para não perder

Deve a fala virar palavra escrita?

A riqueza inventiva das narrativas, combinada com sua importância para a sustentação de minorias étnicas, conduz a questionamentos relacionados à possibilidade de se registrar esse tipo de manifestação cultural. Mas será mesmo possível registrar a oralidade?

Santos acredita que não, porque é impossí-vel passar para o papel e mesmo para o ví-deo todos os elementos que constituem a experiência oral. “Perdemos o encantamen-to da fala, o fascínio que a oralidade produz”, opina. Apesar de escrever livros com seus contos, Brenman concorda que a expressão oral é bem diferente da escrita, em parte porque a leitura é um ato solitário e a conta-ção é, geralmente, feita em grupo. “Uma coi-sa fundamental é o encontro. Quando você conta histórias, pára o seu tempo para com-partilhar.” Betty, apesar de concordar com a impossibilidade de se registrar concreta-mente a oralidade, alerta sobre o perigo de as narrativas das minorias se perderem: “É muito fácil destruir o que esses povos têm”. Registrar, portanto, seria uma forma de im-pedir que a cultura de massa e os costumes urbanos aniquilem as características tão ri-cas e tão frágeis dessas comunidades. “Você pode passá-las à outra geração que não teve acesso”, argumenta a antropóloga.

O ideal seria, portanto, que os membros de determinada cultura pudessem continuar praticando seus costumes: “A tradição oral é uma forma própria de expressão, que nós temos de procurar preservar como patrimônio imaterial”, ressalva Betty. Criar um ambiente propício para a transmissão desse conhecimento seria o caminho. “Dar as condições aos pajés e aos narradores de contar de forma tradicional, de ser a narrativa falada, em grupo, ao redor de uma árvore, em torno do fogo, de ser a essência daquele povo”, completa.

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Nos quintais do RecôncavoObra-prima da humanidade, samba-de-roda é arte de senhores, seus filhos, seus netos...

“Eu trabalho o ano inteiroNa estiva de São Paulo

Só pra passar fevereiro em Santo AmaroSó pra passar fevereiro em Santo Amaro”

[Tarasca Guidon, Waly Salomão]

reportagem

Por Marco Aurélio Fiochi

Nos meses de janeiro e fevereiro, o Recôncavo Baiano, faixa de terra em que as águas da Bahia de Todos os Santos avançam dando ao mapa do estado um formato côncavo, é um dos pontos mais efervescentes da cultura popular brasileira. O período de festas é comparável em tamanho e importância ao de São João, há vários anos estabelecido como principal data nordestina. Nas cidades que compõem a região, não só a famosíssima Santo Amaro da Purificação, mas também as irmãs Cachoeira e São Félix (ligadas por uma centenária ponte de madeira e ferro que agüenta firme o vaivém de seus moradores nessas celebrações), São Braz e São Francisco do Conde, as festas religiosas, como a do Senhor de Santo Amaro, em janeiro, e a da Senhora da Purificação, em fevereiro, são motivo para comemorações que se estendem por dias. É samba para todo lado nos quintais das casas coloniais, nos terreiros de candomblé, nas escadarias e praças que circundam igrejas católicas.

Mais do que um ritmo ou coreografia, o samba-de-roda é um ritual comunitário, um acontecimento social que reúne em longas sessões, regadas a fartos banquetes, senhores e senhoras, seus filhos, seus netos. Diferentemente da forma de dançar o samba em outras partes do país, como o samba carioca, marcado por movimentação corporal mais frenética, o samba-de-roda se dança em modo “miudinho”, com o tronco quase imóvel, os movimentos dos membros inferiores e do quadril curtos, enquanto os pés compassadamente vão desenhando círculos em torno da roda de sambistas.

“Dona da casa me dá licença/Me dê seu salão para vadiar”[Dona da Casa, domínio público, adaptação J. Velloso/Paulinho Daflin]

Os instrumentos são de percussão, como atabaque e pandeiro, mas também há as cordas, entre elas a viola portuguesa, ou viola-de-machete. Em algumas variações são usados como instrumento ainda o prato e a faca, tocados com maestria por sambistas como Dona Edith do Prato. Palmas acompanham toda a sessão. A melodia em geral é alegre, e as letras das canções são em parte auto-referentes ao ter como tema principal o samba e o contexto urbano em que se realiza. Louvações a santos e à natureza também povoam um repertório tradicional e em geral adaptado pelos diversos grupos.

O in-ventário do Iphan

para a patrimonialização des-sa expressão artística dá como data

inaugural do samba-de-roda o ano de �860, o que o vincula necessariamente à

etapa final da escravidão no país. Arte de senzala, portanto, ele estava intimamen-te ligado às línguas e aos cultos africanos e também à capoeira. Reza a lenda que, nesses tempos, toda festa de santo invariavelmente terminava em samba. Mas, como outros as-pectos da cultura brasileira, o samba do Re-côncavo sofreu a influência da miscigenação. Um exemplo é o prato e a faca usados como percussão – objetos da cultura burguesa eu-ropéia, eles ganharam outro significado ao cair no samba. A língua portuguesa, com sua poética e melodia da fala, se faz presente nas letras e na dolência do canto.

São inúmeros os grupos que levam o sam-ba-de-roda, alguns deles com ressonância além do traçado da Bahia, como o Samba de Roda Suerdieck, de Cachoeira, que tem à frente dona Dalva Damiana de Freitas, ex-funcionária da fábrica de charutos homôni-ma localizada em São Félix (além das festas, o samba-de-roda costumava ser a compa-nhia de ofícios pesados como o das charu-teiras e dos lavradores da cana-de-açúcar que fizeram a riqueza da região). Outros exemplos são o Samba Chula de São Braz e o Vozes da Purificação, que congregam senhores e senhoras em geral aposenta-dos do serviço público ou da educação, os quais têm no samba atualmente uma de suas principais interações com a cultura.

Compositores como Roberto Mendes, Jota Velloso e Jorge Portugal têm se encarregado de trazer elementos dessa sonoridade tradi-cional para o contexto contemporâneo, além de atuar como produtores musicais de alguns dos grupos citados. Nesse cenário, a cantora Maria Bethânia, desde que iniciou fase in-dependente das exigências de grandes gra-vadoras, abre cada vez mais espaço em seu repertório para os sambas de sua terra.

“Quanto mais a gente ensina/Mais aprende o que ensinou/Ê ah, ê ô/Ê ah, ê ô”[Filosofia Pura, Roberto Mendes/Jorge Portugal]

O título de Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, concedido pela Unesco em �005, veio um ano depois de o samba-de-roda ter se tornado patrimônio ima-terial brasileiro, por meio do Iphan. Nesse meio tempo, boa parte do repertório do Recôncavo foi registrada no CD-catálogo Samba de Roda – Patrimônio da Humanidade. Organizado e produzido por associações de sambadores, o material revela que a preservação dessa arte no cenário contemporâneo passa necessaria-mente pelo associativismo. Em texto do etno-musicólogo Carlos Sandroni para a publicação, é dado o devido crédito ao samba-de-roda como matriz de várias outras modalidades de samba, mais diretamente o carioca.

E foi justamente esse samba pioneiro, até mesmo na hora de se tornar patrimônio, que abriu o caminho para que outras modalida-des do ritmo passassem a ostentar o título, caso do carioca, certificado em �007, e do samba rural paulista, que se prepara para a avaliação do Iphan.

imagem: Cia de Foto

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