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IV ELECTRICIDADE DOS SISTEMAS BIOLÓGICOS Sendo a electricidade um fenómeno extremamente eficiente quer no transporte de informação, quer na sua sincronização, não é de admirar que os sistemas biológicos a utilizem nas mais sofisticadas e delicadas funções do corpo humano. Na verdade, qualquer que seja a situação em que exista transporte iónico, os fenómenos eléctricos marcam uma indelével presença, revelando-se de particular interesse no processamento dos sinais nervosos e na actividade muscular. 10. Aspectos da electricidade do sistema nervoso Neste capítulo serão, pois, abordados os mecanismos associados à electricidade do sistema nervoso nas suas diversas vertentes: criação, manutenção e transporte de informação quer ao nível celular, quer num âmbito mais geral, relacionado com a organização cerebral. 10.1As células gliais Algumas das funções mais interessantes das células (nomeadamente das células cerebrais) estão associadas às propriedades das suas membranas e à forma como elas determinam a diferença de potencial que se estabelece entre o interior e o exterior das células. Quando as concentrações iónicas são diferentes no interior das células relativamente ao exterior, há tendência, como se sabe (ver capítulo 8), para os iões fluírem no sentido das mais altas concentrações para as mais baixas. Porém, ao saírem da célula, os iões, uma vez que são partículas carregadas, provocam diferenças de potencial que se opõem à saída e/ou entrada de mais iões. Há, pois, uma diferença de potencial, a partir da qual deixa de haver fluxo iónico 39 , uma vez que a tendência provocada pelo gradiente de concentrações é, nessa circunstância, totalmente contrabalançada pelo gradiente de potencial que se estabelece. Ora a equação que governa a dependência do potencial eléctrico com as concentrações iónicas no interior e no exterior de uma célula, no estado de equilíbrio, é a equação de Goldman que, para iões monovalentes, toma a forma: o i i o + + ln F RT = J P K P J P K P V J J K K J J K K , equação 47 onde: R - constante dos gases raros (8.3144 J mol -1 K -1 ); T - temperatura (em kelvin); F - constante de Faraday (9.6487 x 10 4 C mol -1 ); K - percorre todos os iões positivos envolvidos no processo; J - percorre todos os iões negativos envolvidos no processo; P n - permeabilidade da membrana ao ião n; n o - concentração do ião n no exterior da célula, no equilíbrio; n i - concentração do ião n no interior da célula, no equilíbrio. 39 Na verdade, o fluxo iónico continua a existir, mas as partículas que entram são totalmente contrabalançadas com as que saem, gerando-se, desta forma, um equilíbrio dinâmico. 51

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IV ELECTRICIDADE DOS SISTEMAS BIOLÓGICOS

Sendo a electricidade um fenómeno extremamente eficiente quer no transportede informação, quer na sua sincronização, não é de admirar que os sistemas biológicosa utilizem nas mais sofisticadas e delicadas funções do corpo humano. Na verdade,qualquer que seja a situação em que exista transporte iónico, os fenómenos eléctricosmarcam uma indelével presença, revelando-se de particular interesse noprocessamento dos sinais nervosos e na actividade muscular.

10. Aspectos da electricidade do sistema nervosoNeste capítulo serão, pois, abordados os mecanismos associados à

electricidade do sistema nervoso nas suas diversas vertentes: criação, manutenção etransporte de informação quer ao nível celular, quer num âmbito mais geral,relacionado com a organização cerebral.

10.1As células gliaisAlgumas das funções mais interessantes das células (nomeadamente das

células cerebrais) estão associadas às propriedades das suas membranas e à formacomo elas determinam a diferença de potencial que se estabelece entre o interior e oexterior das células. Quando as concentrações iónicas são diferentes no interior dascélulas relativamente ao exterior, há tendência, como se sabe (ver capítulo 8), para osiões fluírem no sentido das mais altas concentrações para as mais baixas. Porém, aosaírem da célula, os iões, uma vez que são partículas carregadas, provocam diferençasde potencial que se opõem à saída e/ou entrada de mais iões. Há, pois, uma diferençade potencial, a partir da qual deixa de haver fluxo iónico39, uma vez que a tendênciaprovocada pelo gradiente de concentrações é, nessa circunstância, totalmentecontrabalançada pelo gradiente de potencial que se estabelece. Ora a equação quegoverna a dependência do potencial eléctrico com as concentrações iónicas no interiore no exterior de uma célula, no estado de equilíbrio, é a equação de Goldman que,para iões monovalentes, toma a forma:

oi

io

+

+ ln

FRT =

JPKP

JPKPV

JJ

KK

JJ

KK

, equação 47

onde:R - constante dos gases raros (8.3144 J mol-1 K-1);T - temperatura (em kelvin);F - constante de Faraday (9.6487 x 104 C mol-1);K - percorre todos os iões positivos envolvidos no processo;J - percorre todos os iões negativos envolvidos no processo;Pn - permeabilidade da membrana ao ião n;no - concentração do ião n no exterior da célula, no equilíbrio;ni - concentração do ião n no interior da célula, no equilíbrio.

39 Na verdade, o fluxo iónico continua a existir, mas as partículas que entram são totalmentecontrabalançadas com as que saem, gerando-se, desta forma, um equilíbrio dinâmico.

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Em relação às células neurogliais40, por exemplo, verifica-se que apermeabilidade da membrana ao potássio é muito superior à de outro qualquer ião e,portanto, a equação anterior reduz-se à conhecida equação de Nernst, aplicada aopotássio (K+):

V = RT

F ln

K

K

+

o+

i

. equação 48

Substituindo as variáveis pelos seus valores aproximados, ou seja: R = 8.3143 J.K-1.mol-1

T = 310.15 KF = 9.6487 x 104 C.mol-1

K+o = 3 x 10-3 MK+i = 0.09 M

obtém-se: V = -90.9 mV.

Este valor é totalmente comprovado pelas medidas experimentais, queapontam para a existência de um potencial de cerca de -90mV no interior das célulasgliais. Refira-se, ainda a este respeito, que a dependência do potencial com asconcentrações de potássio segue de perto o comportamento sugerido pela equação 48,de modo que se admite que o factor determinante para o aparecimento do potencialdas células gliais é o transporte passivo de iões K+ através de canais selectivos a esteião e presentes na membrana celular.

Estas considerações conduzem-nos ao facto de as células neurogliais secomportarem como reguladoras da concentração de K+ no exterior da célula. Como seobservará adiante, a alteração da concentração de K+ no espaço extracelular é um dosfactores modeladores do funcionamento neuronal, de modo que um desequilíbrio nafunção das células neurogliais ao nível da sua função homeostática relativamente àsconcentrações de K+, pode desencadear um anormal processamento de informação porparte dos neurónios.

10.2As células nervosas ou neuróniosOs neurónios são as células responsáveis por todo o tratamento da informação

envolvida nos processos cerebrais. Tipicamente, um neurónio é constituído por quatroregiões diferenciadas: as dendrites, o corpo celular ou soma, o axónio e os seusterminais pré-sinápticos, correspondendo cada um deles, respectivamente, à entrada,integração, condução e transmissão da informação (ver fig. 38). O corpo celular éconsiderado o centro metabólico e integrador da célula, nele se encontra o núcleo, oretículo endoplasmático e o sistema de Golgi. Às dendrites ou árvore dendrítica fluemnumerosos terminais de outros neurónios, sendo este elemento considerado como a

40 As células neurogliais são, habitualmente, de pequena dimensão e circundam os corpos celulares e osaxónios das células nervosas. A elas se atribuem diversas funções tais como: 1) conferir firmeza aostecidos cerebrais, analogamente ao tecido conjuntivo de outras regiões do corpo, isolando, por vezes,grupos neuronais; 2) remover os detritos resultantes da morte celular; 3) formar a mielina que envolvealguns axónios; 4) remover os neurotransmissores químicos, após estes terem sido libertados pelosneurónios; 5) permitir armazenar K+, de modo a manter estável a concentração extracelular deste ião; 6)conduzir os neurónios para as regiões correctas durante o seu desenvolvimento e guiar o crescimentodos axónios; 7) participar nas funções correspondentes à barreira hemato-encefálica; 8) ter funçõesnutrientes.

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região através da qual, tipicamente, entra a informação. O axónio encontra-se, de umaforma geral, do lado oposto à maioria das dendrites e é responsável pela condução dainformação até outros neurónios ou até aos músculos. Refira-se que alguns axóniossão revestidos por uma camada de mielina (formada por determinadas células gliais as células de Schwann) que é diversas vezes interrompida em regiões a que se dá onome de nós de Ranvier. Esta disposição do envolvimento isolante, permite que ainformação seja mais rapidamente conduzida. Quanto aos terminais do axónio, sãoestes que estabelecem a comunicação entre dois neurónios, através do contacto directoentre as membranas de ambos sinapse eléctrica ou, mais comummente, mediadapor neurotransmissores sinapse química.

Figura 38 - Esquema das diferentes estruturas de um neurónio: as dendrites; o corpo celular como núcleo e o citoplasma; o axónio com a blindagem de mielina e os nós de Ranvier e os terminaissinápticos. (Adapt. Kandel et al, 1995).

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10.3O potencial de repousoA característica mais determinante das células nervosas é a sua excitabilidade,

a qual está intimamente relacionada com as propriedades do seu estado de repouso. Osneurónios encontram-se, no estado de equilíbrio, a cerca de -70mV relativamente aoexterior (note-se que este é um valor médio que depende fortemente do tipo deneurónios que se considere), e quando este valor sofre uma alteração de duas ou trêsdezenas de mV no sentido positivo, este desequilíbrio acentua-se e o neurónio passa aum estado excitado.

O estado de repouso neuronal resulta da interacção de diversos factores: apermeabilidade da membrana aos iões presentes no espaço intra e extracelular, asconcentrações desses iões, o transporte activo através da membrana e a diferença depotencial entre o interior e o exterior da mesma.

Tal como já se referiu em relação às células neurogliais, também o potencialde repouso dos neurónios é regido, em primeira aproximação, pela equação deGoldman (equação 47). Como exemplo ilustrativo pode tomar-se para as diversasconcentrações dos iões envolvidos as encontradas no axónio gigante da lula, as quais,apesar de serem tipicamente 3 ou 4 vezes superiores às encontradas nos neurónios dosmamíferos são, em termos relativos, idênticas às destes. Assim, as concentraçõesiónicas tomam os valores: K+o=20mM; K+i=400mM; Na+o=440mM;Na+i=50mM; Cl-o=560mM; Cl-i=52mM, sendo as permeabilidades relativas:PK+=1; PNa+=0.04; PCl-=0.45. Donde resulta, para o potencial de repouso, àtemperatura de 25oC: V= -60.9mV. Este potencial negativo está relacionado com ofacto de a permeabilidade de membrana para o potássio ser muito maior do que para osódio (numa relação de 25 para 1). Assim, e uma vez que o gradiente deconcentrações do ião K+ é no sentido da saída deste do interior para o exterior, cria-seum potencial negativo que não é compensado com o fluxo de iões Na+ para o interior,visto que a permeabilidade da membrana é, para este ião, muito pequena.

É de referir que o potencial de repouso, que corresponde ao fluxo passivo deiões através de canais de membrana selectivos, sendo, portanto, determinado pelosgradientes de concentração e pela permeabilidade relativa da membrana aos diferentesiões, não é o de equilíbrio para o K+ ou para o Na+ isoladamente, o que implica quecada um destes iões tenda a fluir continuamente por transporte passivo (o K+ de dentropara fora o seu potencial de equilíbrio é de aproximadamente -77mV; o Na+ de forapara dentro o seu potencial de equilíbrio é de aproximadamente 56mV). Quanto aoCl-, tendo um potencial de equilíbrio de cerca de -61mV, não tende a exibir, nestascondições, fluxo efectivo. Quando, no entanto, o potencial de repouso da membranaapresenta valores inferiores/superiores, o ião Cl- tende a sair/entrar na célula levando aum reajuste das suas concentrações. Na realidade, verifica-se que existem fluxosiónicos correspondentes aos iões K+ e Na+ segundo as direcções esperadas, mas quesão compensados, como se mencionará adiante, através de transporte activo isto é,com gasto energético. Quanto ao ião Cl- apenas algumas células nervosas apresentamtransporte activo deste ião e, neste caso, será também, completamentecontrabalançado pelo transporte passivo através de canais membranares.

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Figura 39 - Esquema de alguns canais iónicos existentes numa membrana neuronal: os canais deNa+ e de K+ responsáveis pelo transporte passivo destes iões (refira-se que a permeabilidaderelativa da membrana a estes dois iões é de 0.04 para 1); os canais de Na+ e de K+ dependentes dopotencial e que são responsáveis pela excitabilidade da membrana e a bomba de Na+/K+ quemantém as concentrações destes dois iões. (Adapt. Le Cerveau, 1984).

Um transporte activo extremamente importante ao nível neuronal é o associadoà bomba de sódio/potássio. Esta bomba é uma proteína que, através da hidrólise deuma molécula de adenosina trifosfato (ATP), transporta três iões Na+ para o exteriordo neurónio e dois de K+ para o seu interior, contrariando o seu fluxo passivo (verfigura 39). Esta bomba, para além de manter as concentrações iónicas do Na+ e do K+

nos níveis necessários para manter o potencial de membrana nos valoresanteriormente calculados, aumenta-o em cerca de 10%, devido ao facto de serelectrogénica (isto é, por cada dois iões positivos que entram na célula, saem três iõesdo mesmo sinal, gerando-se, assim, uma diferença de potencial negativa no interiorrelativamente ao exterior).

10.4O potencial de acçãoQuando a célula, habitualmente polarizada com valores de cerca de -70mV,

sofre uma despolarização de duas ou três dezenas de mV, esta é acentuada, através demecanismos de realimentação positiva, atingindo aproximadamente 40mV. Emseguida, tem lugar uma repolarização e, após uma breve hiperpolarização (que podeatingir cerca de -90mV), o seu valor de equilíbrio é retomado (figura 40). A estadescrição corresponde o potencial de acção que dura, tipicamente, cerca de 2ms,podendo variar entre 1 e 10ms e é o responsável pela transmissão de informação aolongo do axónio.

Figura 40 - Esquema do potencial de acção. Quando o potencial da membrana atinge cerca de-55mV abrem-se os canais de Na+ dependentes da tensão, responsáveis pela despolarização. Aofim de algumas décimas de ms são abertos os canais de K+ e fechados os de Na+ de modo arepolarizar a membrana. O fecho tardio dos canais de K+ implica um período final dehiperpolarização. (Adap. Tortora e Grabowski, 1996).

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A criação deste potencial deve-se à existência, na membrana neuronal, decanais de Na+ e de K+ dependentes do potencial. Ou seja, os canais abrem quando severifica uma despolarização na membrana. Estes canais aumentam a permeabilidadeda membrana aos referidos iões de modo que, em conformidade com o que foiexposto anteriormente, passa a existir maior fluxo de iões Na+ para dentro da célula ede iões K+ para fora. Quanto à morfologia do sinal, esta é determinada pelas respostastemporais de ambos os tipos de canais. Assim, como os canais de sódio abrem maisrapidamente de que os de K+, o potencial de membrana aumenta abruptamente, devidoà entrada de iões Na+ para o interior do neurónio. Durante essa subida, abrem oscanais de K+ que fluem em sentido contrário e, portanto, se opõem à subida dopotencial. Este facto, conjuntamente com a circunstância de os canais de Na+ tambémse fecharem rapidamente, é o responsável pela repolarização da membrana. Como oscanais de K+ são lentos a fechar, verifica-se a hiperpolarização já mencionada.

O funcionamento dos canais explica ainda, a necessidade de atingir umdeterminado patamar de despolarização para o aparecimento do potencial de acção e aexistência de um período refractário, durante o qual não é possível o surgimento denovo potencial de acção na mesma porção de membrana. Observa-se, pois, que,quando a despolarização não atinge um determinado valor, o potencial de acção não édesencadeado. Esta circunstância verifica-se porque o aumento de permeabilidade aoNa+ suscitado por uma pequena despolarização é totalmente compensado pelos iõesK+ que, mesmo no estado de repouso, tendem a fluir para o exterior do neurónio.Quanto ao período refractário durante o qual não é possível a criação de um novopotencial de acção, existem essencialmente dois factores que o determinam: amanutenção de canais de K+ abertos para além da reposição do potencial de repouso ea existência de um estado de inactivação dos canais de Na+. O primeiro estárelacionado com o facto de, durante o período de hiperpolarização ser necessária umamaior despolarização para alcançar o patamar correspondente ao despoletar dopotencial de acção. O segundo, com a impossibilidade de reactivação dos canais deNa+ nos instantes posteriores ao seu fecho.

Refira-se também que os potenciais de acção se propagam ao longo do axónio,transmitindo a informação de um dos seus extremos para o outro. Esta condução éfeita do seguinte modo: a criação de um potencial de acção numa determinada regiãodo axónio aumenta o potencial de membrana em redor dessa região, ora quando essepotencial atinge o patamar anteriormente referido, novo potencial de acção é criado eassim sucessivamente em relação às regiões adjacentes. Há, porém, uma questão quese deve ressalvar: a unidireccionalidade dessa propagação. De facto, se fosse possívelgerar um potencial de acção a meio de um axónio, este propagar-se-ia em ambos ossentidos. No entanto, os potenciais de acção surgem habitualmente no início doaxónio, uma vez que é ao nível do soma que ocorre a integração da informação queaflui ao neurónio e é aí que se determina o aparecimento ou não do potencial de acção.Assim, verifica-se que este se propaga apenas num sentido, graças ao períodorefractário a que se aludiu anteriormente.

10.5O papel da mielina na propagação dos potenciais de acçãoResta enfatizar o papel da mielina na condução do sinal. As células neurogliais

que envolvem alguns neurónios aumentam drasticamente a resistência eléctrica destes,de modo que, praticamente, só é possível a criação de potenciais de acção nas regiõesonde esta blindagem se interrompe nos nós de Ranvier, distanciados entre si cercade 1 ou 2 mm. Supondo que num desses nós se gerou um potencial de acção, oaumento do potencial de membrana propaga-se através do citoplasma até ao nó de

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Ranvier mais próximo, onde se irá formar novo potencial de acção. Este sistema decondução tem como principal objectivo o aumento da velocidade de propagação dossinais que pode ser, nos casos mais eficazes, cerca de 100 vezes maior. Além darapidez de propagação, este sistema tem como vantagem adicional a possibilidade deaumentar a frequência dos potenciais de acção por períodos de tempo maisprolongados, sem saturar os tecidos, uma vez que as trocas iónicas são muito menores.

10.6As sinapsesAs sinapses são, como já se referiu, as regiões de contacto entre dois

neurónios. Dividem-se em sinapses eléctricas e químicas. As primeiras são poucofrequentes e nelas a célula pré-sináptica está fisicamente ligada à pós-sináptica. O seufuncionamento limita-se ao contacto entre os citoplasmas das duas células através decanais de pequena resistência, de modo que o potencial de acção, ao chegar aoterminal da célula pré-sináptica, se replica na célula pós-sináptica (ver fig. 41). Estassinapses não apresentam características modeladoras tão versáteis como as sinapsesquímicas, no entanto, outras vantagens lhes são inerentes, tais como a ausência deatraso na transmissão do sinal de uma célula para a outra e a facilidade noaparecimento de sincronia num grupo de células onde esta possa, eventualmente, serdesejável.

Figura 41 - Esquema de uma sinapse eléctrica. O contacto entre a célula pré-sináptica e após-sináptica é feito através de canais que permitem uma transmissão rápida do sinal e facilitamuma possível sincronia entre as células. (Adapt. Kandel et al, 1995).

No caso das sinapses químicas, a transmissão de informação é modelada porsubstâncias libertadas pela célula pré-sináptica os neurotransmissores. Omecanismo é o seguinte: os sinais atingem o terminal do axónio, abrem canais de iõescálcio, cuja entrada para o interior da célula desencadeia a libertação deneurotransmissores para o espaço entre os dois neurónios (fenda sináptica); na célulapós-sináptica encontram-se receptores sensíveis a estes neurotransmissores químicos,de modo que, quando detectam a presença destas substâncias, induzem fluxos iónicosque alteram a polarização da membrana (ver fig. 42). Este processo permite umaversatilidade muito grande, uma vez que a modificação da polarização tanto pode serno sentido da despolarização como no da hiperpolarização. Ou seja, dependendo doscanais iónicos que são abertos, assim a chegada de sinais ao neurónio pré-sinápticopode suscitar o aparecimento de potenciais de acção no neurónio pós-sináptico ouinibi-lo. Deste modo, relativamente às sinapses químicas, consideram-se sinapsesexcitatórias ou inibitórias consoante o sentido da polarização que provocam nacélula pós-sináptica.

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Figura 42 - Esquema de uma sinapse química. Quando o potencial de acção chega ao terminalnervoso da célula pré-sináptica desencadeia a entrada de iões Ca++ que vão, por sua vez, motivara libertação de neurotransmissores contidos em vesículas que se fundem à membranapré-sináptica. Os neurotransmissores irão ser reconhecidos por receptores existentes na célulapós-sináptica que irão desencadear processos responsáveis pela alteração do estado depolarização do neurónio pós-sináptico. (Adapt. Beatty, 1995).

Um conceito que emerge da discussão anterior é o de potencial pós-sináptico:dá-se o nome de potencial pós-sináptico à alteração do potencial de membrana,provocada pela actividade da sinapse, a qual pode, como já se referiu, ser excitatóriaou inibitória. A cada potencial de acção que atinge o terminal de um neuróniopré-sináptico pode estar associado um potencial pós-sináptico de, aproximadamente,1 mV o que significa, tendo em consideração o valor do patamar a partir do qual surgeum potencial de acção, que é necessária a soma de vários potenciais para odesencadeamento destes sinais no neurónio pós-sináptico. Na prática verifica-se que,estabelecendo cada neurónio centenas de sinapses (pode chegar a estabelecer, noscasos em que o número de ligações é maior, cerca de 150 000 sinapses, o seucomportamento é determinado pela integração de todas as fontes de informação que aele afluem. Essa integração espacial e temporal é responsável pela duração dospotenciais pós-sinápticos que pode ser na ordem do segundo, até vários minutos.Deste modo, as sinapses excitatórias e inibitórias, ao coexistirem no mesmo neurónio,são responsáveis pelo facto da resposta desse neurónio a diferentes estímulos, ser umaintegração complexa dos diversos impulsos que a ele afluem. Ou seja, um neurónioestimulado por diversas sinapses, pode ou não criar potenciais de acção, dependendodas sinapses inibitórias que, em simultâneo com as excitatórias, se tornem activas.Assim, o aparecimento de potenciais pós-sinápticos excitatórios num neurónio é tãodeterminante na criação de potenciais de acção como o surgimento de potenciaispós-sinápticos inibitórios, uma vez que o efeito destes últimos pode reduzir oucancelar o efeito dos primeiros.

10.7Organização cerebral e actividade eléctricaNas secções anteriores foram abordadas diversas vertentes da actividade

eléctrica das células cerebrais. Falta, porém, realçar alguns aspectos relacionados comfenómenos eléctricos que envolvem populações de neurónios. A electroencefalografia,técnica a que nos referiremos com maior detalhe em capítulos posteriores e queconsiste na medição de potenciais eléctricos ao nível do escalpe, revela-nos que existe

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actividade eléctrica cerebral síncrona. Isto é, verifica-se que existem grupos deneurónios cuja actividade ocorre em simultâneo, de modo que geram ritmossusceptíveis de ser medidos no exterior do crânio. Por este motivo, cedo se especulouno sentido de o cérebro se organizar segundo circuitos neuronais cada um dos quaisresponsável pelo processamento de um determinado tipo de informação. Esta ideiatem sido corroborada por numerosos estudos que apontam para a especificidade dedeterminadas regiões do cérebro. Aceita-se que no lobo occipital se encontram oscórtices visuais, associados ao processamento da visão; nos lobos temporais oscórtices auditivos, no lobo parietal os córtices somato-sensoriais e no lobo frontal oscórtices motor e pré-motor. Refira-se, no entanto, que, se a comunidade científicaassume unanimemente que as tarefas mais simples associadas à percepção dossentidos estão razoavelmente localizadas no cérebro, não é menos verdade que, aonível das actividades com carácter cognitivo mais evidente, muito se tem especulado.De facto, as evidências experimentais apontam para que as tarefas mais complexasrelacionadas com a memória, a aprendizagem ou as emoções, abranjam áreascerebrais muito amplas e deslocalizadas. Estas áreas ou circuitos parecem trabalharseparadamente, numa espécie de processamento em paralelo, onde cada uma seencontra envolvida num aspecto particular da tarefa comum. O que se mantém semresposta é o modo como finalmente toda essa informação é coligida, guardada erecuperada em novas situações.

11. Aspectos da electricidade dos músculos

Tal como o sistema nervoso central, também a actividade muscular depende deuma forma crucial das propriedades eléctricas das células constituintes dos músculos.Os músculos dividem-se em três categorias: os músculos esqueléticos, os lisos e ocardíaco. Os primeiros encontram-se essencialmente ligados aos ossos e a suacontracção, geralmente voluntária, é responsável pelo suporte e movimento doesqueleto. Os lisos são músculos que envolvem diversos órgãos ou estruturas como oestômago, os intestinos ou os vasos sanguíneos e as suas contracções, involuntárias ecoordenadas pelo sistema nervoso autónomo e pelo sistema endócrino, implicam omovimento desses órgãos e estruturas. Quanto ao coração, apresenta características deambos os tipos de músculo (esquelético e liso) e tem a particularidade de contrairespontaneamente.

11.1Os músculos esqueléticosOs músculos esqueléticos são constituídos por células denominadas fibras

musculares que, por sua vez, provêm, em termos de desenvolvimento fetal, de umconjunto de células indiferenciadas e mononucleadas às quais se dá o nome demioblastos (ver figura 43). Estas fibras têm diâmetros entre 10 a 100 m ecomprimentos que podem ir até 20 cm, não apresentando capacidade de reprodução aolongo da vida.

Quando vistas ao microscópio a principal característica das fibras musculares éapresentarem um padrão de estrias que podem ser observadas, em esquema, na figura4441. Estas estrias correspondem à existência de pequenos filamentos com diferentesespessuras organizados em finos cilindros no interior do citoplasma das fibrasmusculares. O arranjo destes filamentos obedece a um padrão que se repete, cuja

41 Esta propriedade é comum ao músculo cardíaco e responsável por estes dois tipos de músculos seremtambém conhecidos por estriados.

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unidade fundamental é o sarcómero. Cada uma destas unidades contém, no centro,um conjunto de filamentos grossos que constituem a chamada banda A e em cada umdos extremos um conjunto de filamentos finos que constituem a banda I. Além disso,os filamentos finos sobrepõem-se, numa certa extensão, com os filamentos grossos epertencem simultaneamente a dois sarcómeros (ver figura 44). À divisão entre doissarcómeros dá-se o nome de linha Z.

Figura 43 - Esquema da constituição dos músculos esqueléticos. (Adapt. A.J. Vander, J.H.Sherman e D.S. Luciano, 1998).

A forma como os músculos contraem está intimamente ligada a estadisposição. Os filamentos grossos são compostos maioritariamente por miosina, umaproteína cuja estrutura evidencia pequenas cabeças móveis que apresentam afinidade àactina, proteína que é a principal constituinte dos filamentos finos. A contracçãomuscular ocorre, pois, quando os filamentos grossos e finos deslizam uns sobre osoutros através de um mecanismo de encaixe entre as proteínas que constituiem cadaum deles. À ligação entre as cabeças da miosina e a actina dá-se o nome de ligaçõescruzadas. De uma forma muito simples, é possível descrever a contracção muscularconsiderando 4 fases fundamentais: 1) As cabeças da miosina ligam-se à actina. 2) Ascabeças da miosina movimentam-se no sentido de aumentar a extensão em que osfilamentos se encontram sobrepostos (ver figura 45). 3) As cabeças da miosinaseparam-se da actina. 4) As cabeças da miosina sofrem um processo de aumento deenergia de modo a que o processo se repita.

Um mecanismo igualmente importante é aquele que impede que haja umacontracção do músculo permanente. Verifica-se que os locais na actina que se ligam àscabeças da miosina, estão, no repouso, inacessíveis. Só com a chegada de iões cálcio,estes locais se tornam acessíveis e, portanto, permitem a ligação com a miosina e aconsequente contracção muscular.

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Figura 44 - Esquema da constituição das miofibrilhas constituintes dos músculos esqueléticos.(Adapt. A.J. Vander, J.H. Sherman e D.S. Luciano, 1998).

Figura 45 - Ilustração de como o movimento das cabeças da miosina é responsável pela alteraçãodas dimensões dos músculos esqueléticos, determinando a sua contracção ou distensão. (Adapt.A.J. Vander, J.H. Sherman e D.S. Luciano, 1998).

É neste ponto que os aspectos eléctricos se tornam importantes nacompreensão da contracção muscular. A membrana das fibras musculares é, tal comoa dos neurónios, capaz de gerar e propagar potenciais de acção. No caso dos músculoso efeito crucial do aparecimento de um potencial de acção é a libertação de iõescálcio42, que vão, por sua vez, induzir a contracção muscular segundo o mecanismoanteriormente descrito. A este respeito, observa-se que, um único potencial de acçãode 1 a 2 ms provoca um estado de contracção muscular que se prolonga tipicamente

42 Neste mecanismo de libertação de cálcio existe uma estrutura constituinte do músculo esquelético o retículo sarcoplasmático que se reveste de particular interesse no armazenamento e libertação dosiões cálcio. No entanto, uma discussão aprofundada sobre o seu papel neste mecanismo encontra-sefora dos objectivos desta disciplina.

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por cerca de 100 ms. Este facto deve-se a que enquanto a libertação de iões cálcio ébastante rápida, a sua remoção é um processo mais lento e, portanto, o repouso, após acontracção, é mais demorado de atingir.

Falta referir ainda a origem dos potenciais de acção: Os músculos esqueléticosencontram-se ligados a terminais nervosos de neurónios motores. Estes neuróniosestabelecem ligações com as fibras musculares, as junções neuromusculares43, e sãoeles que controlam a actividade dos músculos (ver figura 46).

Figura 46 - Esquema das junções neuromusculares que governam o movimento dos músculos. Naalínea a) encontra-se representado um único neurónio motor, enquanto que na alínea b)encontram-se representados dois neurónios, deixando claro que cada neurónio não controlanecessariamente fibras musculares adjacentes (Adapt. A.J. Vander, J.H. Sherman e D.S.Luciano, 1998).

Os mecanismos de troca de informação ao nível das junções neuromuscularessão muito semelhantes aos que ocorrem nas sinapses químicas: o potencial de acçãoao atingir o terminal do axónio, liberta neurotransmissores que são reconhecidos pelamembrana da fibra muscular que, ao detectá-los, desencadeia a abertura de canais decálcio, iniciando o processo de contracção.

11.2Os músculos lisosConforme se referiu anteriormente, os músculos lisos recobrem a maior parte

dos órgãos e uma parte dos vasos sanguíneos, conferindo-lhes movimentos decontracção e distensão. Distingue-os dos músculos esqueléticos o facto de nãoapresentarem uma estrutura estriada e dos nervos que os controlam provirem dosistema nervoso autónomo, o que torna os seus movimentos involuntários. As fibrasconstituintes do tecido do músculo liso, ao contrário das fibras do músculoesquelético, são células em forma de fuso, com apenas um núcleo e que se

43 Cada neurónio motor estabelece ligação com mais do que uma fibra muscular, mas cada fibramuscular só recebe informação de um único neurónio. Além disso, refira-se que fibras muscularesassociadas ao mesmo neurónio não têm necessariamente que ser adjacentes (ver figura 46).

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reproduzem. No interior destas células encontram-se também filamentos de miosina(filamentos grossos) e de actina (filamentos finos), no entanto, a sua organização nãoé semelhante à encontrada nos músculos esqueléticos. Os filamentos encontram-seigualmente sobrepostos, sendo o mecanismo de contracção semelhante aoanteriormente explicado a propósito dos músculos esqueléticos, mas em vez dosfilamentos se encontrarem paralelos uns aos outros, encontram-se ancorados àmembrana da célula e a certos pontos do citoplasma denominados corpos densos (verfigura 47). Esta geometria faz com que quando os filamentos deslizam uns sobre osoutros as dimensões da célula diminuam e, portanto, o músculo se contraia.

Figura 47 - Esquema das ligações entre os filamentos finos e grossos num músculo liso em duassituações distintas: quando o músculo se encontra relaxado e quando se encontra contraído.(Adapt. A.J. Vander, J.H. Sherman e D.S. Luciano, 1998).

Embora, em detalhe, o mecanismo bioquímico através do qual as cabeças damiosina se ligam à actina seja diferente, a presença do cálcio continua a ser o factorque despoleta a ligação das duas proteínas. É interessante observar que a contracçãodos músculos lisos é dependente da quantidade de cálcio libertada, uma vez que umpotencial de acção induz contracção apenas numa porção das fibras dos músculoslisos44. Além disso, a contracção dos músculos lisos tem uma duração que pode chegara vários segundos, visto que os mecanismos responsáveis pela sua remoção são muitolentos.

Para além do que foi já referido como diferenças entre os músculosesqueléticos e os músculos lisos, há ainda a acrescentar o facto de alguns músculoslisos apresentarem, tal como o coração, a possibilidade de gerarem, espontaneamente,potenciais de acção. Nestes músculos o potencial de membrana, ao invés de se manterconstante, vai continuamente despolarizando. Deste modo, a dado momento, éatingido o limiar de excitação e gerado um potencial de acção. Após a repolarização ociclo repete-se, gerando-se sinais ritmadamente (ver figura 48).

44 Recorde-se que nos músculos esqueléticos apenas um potencial de acção é capaz de induzircontracção em todo o músculo.

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Figura 48 - Representação dos potenciais de acção gerados por células auto-excitáveispertencentes a alguns músculos lisos. (Adapt. A.J. Vander, J.H. Sherman e D.S. Luciano, 1998).

11.3O músculo cardíacoO final da secção anterior é uma boa introdução ao funcionamento do músculo

cardíaco, uma vez que um dos aspectos mais interessantes das células constituintes docoração é a sua capacidade de auto-excitação. O músculo cardíaco, como jáanteriormente se referiu, apresenta características híbridas dos músculos esqueléticose lisos. Se por um lado o músculo cardíaco é estriado, tal como os esqueléticos, poroutro apresenta pontos de contacto que podem ser considerados como análogos aoscorpos densos dos músculos lisos. Os tecidos cardíacos estão electricamente unidos demodo que quando há contracção das paredes das aurículas ou dos ventrículos, estesfuncionam como um todo. Há, no entanto, cerca de 1% de células que não participamnessa contracção, mas que são responsáveis pela condução do sinal controlando,rigorosamente, a sua propagação quer no tempo, quer no espaço (ver figura 49).

Figura 49 - Representação do sistema de condução dos sinais eléctricos ao nível do coração.(Adapt. A.J. Vander, J.H. Sherman e D.S. Luciano, 1998).

Comece-se por compreender esse mecanismo de condução do sinal. O nódulosinoatrial (SA) é o responsável pelo ritmo cardíaco e é ele que gera os potenciais deacção que se vão propagar por todo o coração e que dão origem à contracção cardíaca.Essa propagação ao nível das aurículas não depende do sistema de condução e ocorremuito rapidamente graças ao facto de as células cardíacas se encontrarem muitoligadas, de modo que pode admitir-se que as aurículas se despolarizam essencialmente

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em simultâneo (ver figura 50, a)). A despolarização, após ser propagada ao longo dasaurículas atinge o nódulo atrioventricular (AV), o qual tem a capacidade de atrasar asua propagação de cerca de 0.1 s. Ora este atraso é fulcral para a que a contracção dosventrículos só ocorra quando a contracção das aurículas findou. Note-se que atransferência do sinal entre as aurículas e os ventrículos só é possível graças ao nóduloatrioventricular visto que as paredes das aurículas se encontram electricamenteisoladas das paredes dos ventrículos através de uma camada de tecido conectivoisolante. O sinal é então conduzido através do feixe atrioventricular atingindo a regiãomais posterior do coração. Nesse ponto o sinal continua a ser conduzido através dasfibras de Purkinje que se espraiam por todo o tecido dos ventrículos (ver figura 50 b)).Esta forma de condução implica que a contracção dos ventrículos ocorra de umaforma muito síncrona, e que se inicie na região posterior. Desta forma, a saída dosangue é ainda mais eficiente, uma vez que a aorta se encontra na região anterior dosventrículos.

Figura 50 - Representação da condução do sinal eléctrico durante a excitação auricular eventricular. (Adap. http://www.afh.bio.br/cardio/Cardio2.asp, Outubro, 2004)

Quanto à excitabilidade das células cardíacas, há também alguns aspectosinteressantes a reter. A análise dos potenciais de acção das células cardíacas revela,desde logo, algumas diferenças inequívocas (ver figura 51 a)), relativamente aospotenciais de acção neuronais. Apesar do potencial de repouso ser semelhante aodescrito para os neurónios e ter a mesma origem diferentes permeabilidades aosódio e ao potássio é notório que a despolarização causada pela abertura dos canaisde sódio dependentes da tensão se prolonga no tempo45. Esta observação deve-seessencialmente ao facto de a despolarização das células cardíacas despoletar nãoapenas a abertura de canais de sódio e posterior abertura de canais de potássio, mastambém a abertura de canais de cálcio (ver figura 51 b)). Estes canais de cálcio sãoresponsáveis pela entrada de iões cálcio no interior da célula, prolongando adespolarização da célula. Esta justificação é coadjuvada pelo facto de apermeabilidade ao potássio diminuir no início do potencial de acção e só mais tardeaumentar, repolarizando as células.

No que respeita aos potenciais de acção das células auto-excitáveis a principalcaracterística é a de, como já se observou anteriormente, apresentarem um potencialde repouso que vai sempre aumentando. Este mecanismo é garantido por um tipo decanais de sódio especiais que são activados pela repolarização do sinal anterior.

45 A sua duração é importante uma vez que é ela que determina a intensidade e duração da contracçãocardíaca.

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A propósito da auto-excitabilidade das células cardíacas é de referir que, aocontrário do que seria esperado, o nódulo sinoatrial não é a única região que apresentaauto-excitação. De facto, existem outras regiões do sistema de condução cardíaco afazê-lo, nomeadamente o próprio nódulo atrioventricular. No entanto, a frequência decriação de potenciais de acção é menor nestes outros pontos, de modo que estes sóimpõem o seu ritmo se existir alguma falha nos mecanismos de auto-excitaçãoanteriores. Ou seja, funcionam como recurso em caso de avaria.

Figura 51 - Esquemas de a) um potencial de acção das células cardíacas que não apresentamauto-excitação; b) permeabilidades relativas aos iões sódio, potássio e cálcio apresentadas pelasmembranas das células referidas na alínea a) e c) potencial de acção das células cardíacas autoexcitáveis. (Adapt. A.J. Vander, J.H. Sherman e D.S. Luciano, 1998).

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