Saara Ocidental (Marrocos)/Mauritânia: A fronteira em 2001 ... · estavam praticamente todos os...

5
Saara Ocidental (Marrocos)/Mauritânia: A fronteira em 2001. Um registo histórico de quando esta fronteira era a mais lenta do mundo Quem actualmente se desloca à Mauritânia, encontra no fim da estrada de alcatrão que vem de Dakhla um posto fronteiriço moderno e informatizado. De uniforme composto, os polícias e guardas alfandegários marroquinos procedem às formalidades de saída de Marrocos de forma rápida e eficaz. Mas nem sempre foi assim. Antes de Fevereiro de 2002, a região a sul de Dakhla estava sob controle militar pelo que a circulação rodoviária estava condicionada a uma coluna militar e as formalidades de saída demoravam mais de 48 horas. Este relato descreve a travessia da fronteira entre Marrocos e a Mauritânia, provavelmente a mais lenta do mundo nessa época. Segunda-feira - 31 de Dezembro de 2001 14:00h – Chegada a Dakhla A viagem desde Portugal tinha corrido bem e estávamos dentro da hora prevista de chegada a Dakhla. Pelo estrada, tinham ficado dezenas de postos de controle da polícia, cada um pedindo os passaportes e o preenchimentos de fichas com os dados pessoais, e uma tempestade de areia impressionante entre Guelmin e Tan-Tan. Mesmo com algum atraso tínhamos conseguido chegar segunda-feira à tarde. Nessa altura, a circulação rodoviária a sul de Dakhla decorria apenas duas vezes por semana e em coluna militar, à terça e quinta-feira, pelo que era necessário chegar a Dakhla na véspera, para dar início ao processo de saída de Marrocos. 14:30h – Carimbo dos passaportes na polícia A primeira parte do penoso processo burocrático para sair de Marrocos começou na polícia. Num posto minúsculo situado por trás do mercado central acumulavam-se dezenas de pessoas com o passaporte na mão e de ar entediado pela fastidiosa espera. Estávamos na época alta das viagens aos deserto e a poucos dias da passagem do rally Paris-Dakar, pelo que centenas de franceses e alemães tinham aproveitado para descer até estas paragens. Dado que a passagem para a Mauritânia só era possível duas vezes por semana, juntavam-se naquela tarde em Dakhla cerca de 200 viaturas e umas 350 pessoas. Era de loucos! Centenas de pessoas à porta do posto de polícia aguardavam pacientemente pelo carimbo de saída de Marrocos. 15:30h – Registo na coluna militar Cerca de uma hora depois, deslocámo-nos ao posto militar para nos inscrevermos na coluna militar que partiria em direcção ao forte Guerguerat no dia seguinte. Após esperarmos mais uma hora, os militares ficam-nos com os passaportes e dão-nos um papel com um número de registo na coluna. Falta agora tratar do carro junto da alfândega. Grupo de 30 viaturas agrupado numa paragem em El Argoub

Transcript of Saara Ocidental (Marrocos)/Mauritânia: A fronteira em 2001 ... · estavam praticamente todos os...

Saara Ocidental (Marrocos)/Mauritânia: A fronteira em 2001. Um registo histórico de quando esta

fronteira era a mais lenta do mundo

Quem actualmente se desloca à Mauritânia, encontra no fim da estrada de alcatrão que vem de Dakhla um posto fronteiriço moderno e informatizado. De uniforme composto, os polícias e guardas alfandegários marroquinos procedem às formalidades de saída de Marrocos de forma rápida e eficaz. Mas nem sempre foi assim. Antes de Fevereiro de 2002, a região a sul de Dakhla estava sob controle militar pelo que a circulação rodoviária estava condicionada a uma coluna militar e as formalidades de saída demoravam mais de 48 horas. Este relato descreve a travessia da fronteira entre Marrocos e a Mauritânia, provavelmente a mais lenta do mundo nessa época. Segunda-feira - 31 de Dezembro de 2001 14:00h – Chegada a Dakhla A viagem desde Portugal tinha corrido bem e estávamos dentro da hora prevista de chegada a Dakhla. Pelo estrada, tinham ficado dezenas de postos de controle da polícia, cada um pedindo os passaportes e o preenchimentos de fichas com os dados pessoais, e uma tempestade de areia impressionante entre Guelmin e Tan-Tan. Mesmo com algum atraso tínhamos conseguido chegar segunda-feira à tarde. Nessa altura, a circulação rodoviária a sul de Dakhla decorria apenas duas vezes por semana e em coluna militar, à terça e quinta-feira, pelo que era necessário chegar a Dakhla na véspera, para dar início ao processo de saída de Marrocos. 14:30h – Carimbo dos passaportes na polícia A primeira parte do penoso processo burocrático para sair de Marrocos começou na polícia. Num posto minúsculo situado por trás do mercado central acumulavam-se dezenas de pessoas com o passaporte na mão e de ar entediado pela fastidiosa espera. Estávamos na época alta das viagens aos deserto e a poucos dias da passagem do rally Paris-Dakar, pelo que centenas de franceses e alemães tinham aproveitado para descer até estas paragens. Dado que a passagem para a Mauritânia só era possível duas vezes por semana, juntavam-se naquela tarde em Dakhla cerca de 200 viaturas e umas 350 pessoas. Era de loucos! Centenas de pessoas à porta do posto de polícia aguardavam pacientemente pelo carimbo de saída de Marrocos. 15:30h – Registo na coluna militar Cerca de uma hora depois, deslocámo-nos ao posto militar para nos inscrevermos na coluna militar que partiria em direcção ao forte Guerguerat no dia seguinte. Após esperarmos mais uma hora, os militares ficam-nos com os passaportes e dão-nos um papel com um número de registo na coluna. Falta agora tratar do carro junto da alfândega.

Grupo de 30 viaturas agrupado numa paragem em El Argoub

16:30h – Formalidades alfandegárias Sem qualquer exagero estivemos cerca de duas horas na alfândega. Como o sistema não era informatizado nessa época, o tratamento dos formulários recebidos à entrada do país demorava uma eternidade. Centenas de pessoas sentadas no chão, no passeio, nas escadas, debaixo das palmeiras, aguardavam a sua vez. Era exasperante! 18:30h – Descanso Terminadas as formalidades, procurámos telefonar para Portugal, já que não sabíamos quando o poderíamos voltar a fazer. Mas tal foi a surpresa quando constatámos que os telefones públicos em Dakhla não permitiam efectuar chamadas telefónicas para fora de Marrocos. Era obrigatório recorrer ao posto dos correios, o qual se encontrava apinhado de gente, tanto de europeus com o mesmo objectivo que nós como de soldados marroquinos, ansiosos por telefonar ao familiares do norte. Após a inevitável espera, a prestável telefonista pediu-nos que lhe ditássemos o número para o qual pretendíamos ligar, uma vez que era necessário ligar para Casablanca, para que Casablanca ligasse então para Portugal. Imagine-se o espanto dos nossos familiares em Portugal ao receberem de repente uma chamada de Casablanca, de alguém que lhe diz em francês que vai receber uma chamada de Dakhla! Abastecida a viatura, acampámos uns cinco quilómetros a norte da cidade, junto à falésia que dá para a baía de Dakhla. Terça-feira - 1 de Janeiro de 2002 9:00h – Formação da coluna Bem cedo começaram-se a aglomerar junto às portas de Dakhla dezenas de viaturas para seguirem na coluna. Essencialmente a coluna era constituída por três tipos de viaturas: veículos 4x4 de turistas que tal como nós queriam visitar o país, veículos ligeiros para serem vendidos no Senegal ou na própria Mauritânia, sobretudo Peugeot 504 e 505, Mercedes 190D e 300D, e Renault 11 e 18, e ainda veículos comerciais Mercedes e Toyota HJZ79 apinhados de tapetes, cadeiras, móveis, etc., fabricados em Marrocos para serem vendidos na Mauritânia. Até poderíamos ter objectivos de viagem diferentes, mas um factor unia-nos a todos: teríamos que aguardar umas boas três horas, antes que os militares marroquinos finalmente se decidissem partir. 12:00h – Arranque da coluna De coluna militar aquela formação tinha muito pouco. Partiu um jipe marroquino à frente e depois as viaturas civis eram mandadas partir em grupos de 30 carros, mas que cedo dispersavam e cada um seguia como queria. Ao todo, a coluna devia espalhar-se por uns 50 km de alcatrão, apenas com vigilância no início e no fim. Como seguimos num grupo do meio, não sei se haveria um jipe a encerrar a coluna, mas presumo que sim. Nestas condições qualquer um se interrogava sobre o propósito da coluna. Se a circulação em coluna estava prevista para oferecer segurança contra um eventual ataque da Frente Polisário então mais valia contarmos com nós próprios do que com qualquer militar marroquino. Para além disso, a coluna em nada impedir uma eventual entrega de armas ou mantimentos à Polisário, já que qualquer carro poderia “fugir” por uns minutos à coluna e descarregar qualquer coisa longe da estrada. O único controle efectuado pelos marroquinos resultava de terem na sua posse os passaportes de todos os membros da coluna, pelo que ninguém a iria querer abandonar e todos quereriam chegar ao forte para recuperar o passaporte na manhã seguinte. 13:00h – Paragem em El Argoub Após percorrermos os primeiros 75 km parámos em El Argoub para uma curta refeição. Ao capitão marroquino que liderava a coluna apeteceu-lhe tomar algo, pelo que tudo parou nesta aldeia.

Viaturas alinhadas junto ao forte Guerguerat

14:00h – Arranque da coluna Uma hora depois, reagrupadas as viaturas em grupos de 30, lá partimos novamente. Os 300 km até ao forte fazem-se tranquilamente e sem mais paragens, com a excepção de um controle intermédio a cerca de 100 km do Forte Guerguerat.

Toyota HJZ79 de comerciantes mauritanos que levam tapetes, mesas e cadeiras para vender em

Nouadhibou 18:00h – Chegada ao forte Guerguerat Com o por do sol chegámos ao forte Guerguerat. À nossa frente estavam duas centenas de viaturas estacionadas desordenadamente numa planície de terra compacta. Sobranceiro a este parque de estacionamento improvisado encontrava-se o forte, ocupado pelos militares e protegidos por sacos de areia e guaridas com metralhadoras. Desde o alto vigiavam as nossas acções e garantiam que ninguém se afastava do estacionamento. Aliás ninguém quereria abandonar este parque, já que as dunas em volta do forte e do estacionamento estavam minadas. Assim, ninguém se atrevia a abandonar aquele descampado, mesmo que a necessidade obrigasse a encontrar uma casa de banho discreta. Assim, dada a total ausência de infra-estruturas sanitárias, o forte Guerguerat era naquela época uma imensa lixeira, com um odor fétido a matéria orgânica. Cada um desenrascava-se como podia para montar a tenda ou ir à casa de banho. Quanto a nós, estacionamos as viaturas com um espaço adequado para montar as tendas entre elas, procedemos a uma limpeza sumária do local e lá fizemos como os restantes...

Quarta-feira - 2 de Janeiro de 2002 9:00h – Início da entrega dos passaportes Mal o sol despontou, as várias dezenas de viaturas começaram a alinhar-se sobre o alcatrão com a vã esperança de que o processo de entrega dos passaportes fosse relativamente rápido. Nada de mais errado. Pelas 9:00h da manhã, uns militares marroquinos desceram do forte com dois sacos de plástico tipo-hipermercado cheios de passaportes e despejam-nos sobre o capot de um jipe. Um deles sobe para o capot e começa a ler o nome do proprietário do passaporte, aguardando em seguida que alguém se declare como sendo o titular. Imagine-se um grupo de cerca de 350 pessoas à volta de um jipe onde está empoleirado um militar a gritar “Pierre André qualquer coisa” e depois de um silêncio enorme, ouvir alguém gritar bem do fim da fila “Ce moi”. Estava visto que o processo iria demorar muito tempo! Curiosamente a entrega dos passaportes era feita por grupos de nacionalidades: primeiros os franceses, depois alemães, ingleses, austríacos, suíços, italianos, espanhóis e finalmente “tudo o resto”. Claro que fomos praticamente os últimos do lote dos europeus a receber os passaportes. Mas não adiantava desesperar: à nossa frente estavam praticamente todos os carros da coluna à espera para saírem, estendendo-se ao longo dos seis quilómetros que unem o forte ao último posto militar, mesmo no fim do alcatrão. Nada mais à fazer do que jogar às cartas, ler ou fumar cigarros...

A fila de carros estende-se ao longo entre o forte o último posto militar no fim do alcatrão

13:00h – Saída de Marrocos para a “terra de ninguém” Quatro horas depois saímos finalmente de Marrocos. À nossa frente abrem-se dezenas de pistas arenosas que atravessam uma faixa de seis quilómetros entre Marrocos e a Mauritânia. É a “terra de ninguém”, a qual se encontra minada. Aqui ninguém arrisca sair da pista mesmo que esta fosse muito arenosa. Nós optámos por seguir numa coluna improvisada com mais quatro jipes de turistas. Pelo caminho ajudámos ainda a desatascar uma Ford Transit completamente atulhada em tapetes que tinha ficado presa num baixio arenoso. 13:30h – Formalidades de entrada na Mauritânia Sem dificuldades atingimos o posto fronteiriço da Mauritânia, localizado na época a alguns quilómetros para oeste relativamente à actualidade. Mais uma vez dezenas de viaturas e centenas de pessoas acumulam-se à entrada das modestas instalações mauritanas. Modestas será talvez muito, uma vez que a polícia estava numa cabana de canas, a alfândega numa khaima e o banco debaixo de uma tenda de travessas de metal! Esta tenda era feita por antigas travessas do comboio que liga Nouadhibou a Zouerat, empilhadas paralelamente e formando um abrigo para onde uma pessoa tinha que quase rastejar para entrar. Este processo de carimbar o passaporte, inscrever os detalhes do carro no passaporte, preencher as declarações em como não iríamos vender o carro e da quantidade de divisas com entrávamos no país demorou praticamente toda a tarde. Durante a espera, diversas pessoas que trabalhavam para parques de campismo em Nouadhibou tentavam angariar clientes. Uma vez que como na época não existia a Estação de Serviço do Barbas, 70 km a norte de Guerguerat, era obrigatório ir a Nouadhibou para abastecer de

combustível antes de partir tanto para Nouakchott como para Atar. Assim sendo, optámos pelo Camping Asimex que ficava mesmo às portas da cidade.

Longa se torna a espera...

17:30h – Arranque para Nouadhibou Actualmente, o posto fronteiriço da Mauritânia está ligado a Nouadhibou por alcatrão. Mas tal não acontecia na época. Portanto, lá seguimos novamente numa coluna improvisada pelas viaturas que iam para o camping na cidade. A pista era de pedra, por vezes coberta por areia, e muito degradada pela passagem intensa de veículos. Depois seguiu-se ainda a passagem pelo posto de controlo de “Le Bouchon” mesmo ao chegar a Nouadhibou, mas que foi passado rapidamente dadas as influências do nosso angariador de turistas.

Restos de um Land Rover que pisou uma mina a cerca de 30 metros da pista

19:00h – Entrada em Nouadhibou Finalmente entrámos em Nouadhibou. Tinham passado 53 horas desde que tínhamos chegado a Dakhla e dado início ao processo de passagem da fronteira. Ficou a experiência de termos atravessado provavelmente a fronteira mais lenta do mundo nessa época, mas também a vontade de não a voltar a repetir. Felizmente que o processo é actualmente muito mais simples e rápido!