IX ENCONTRO DA ABCP Teoria Política · Ernesto Laclau com a filósofa política Chantal Moufe,...
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IX ENCONTRO DA ABCP
Teoria Política
Elementos para uma teoria política emancipatória: um debate
contemporâneo
Javier Amadeo – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014
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Introdução1
Como afirma Erik Olin Wright, uma ciência social emancipatória, definida num
sentido amplo, deve ter como objetivo gerar um conhecimento relevante para um
projeto coletivo que desafie a opressão social e crie as condições para que os
indivíduos tenham a possibilidade de desenvolver todo o potencial humano.
Necessariamente deve que ser anti-capitalista. Definir este tipo de conhecimento como
ciência social implica reconhecer a importância para esta tarefa de um conhecimento
científico sistemático sobre como funciona o mundo, para a partir da análise concreta
das situações concretas gerar uma práxis transformadora e superadora da ordem
social dominante. Em segundo lugar, defini-la como emancipatória implica identificar
um propósito moral central: a eliminação da exploração e a opressão e a criação de
condições para o desenvolvimento humano. Por último, ressaltar seu caráter social
sugere a crença que a emancipação depende de um processo de transformação do
mundo social e não simplesmente do eu interior. Para alcançar seu objetivo uma
ciência social emancipatória deve reunir uma série de condições fundamentais. Em
primeiro lugar, elaborar um diagnóstico sistemático e uma crítica da realidade social
existente. Em segundo, e a partir desse diagnóstico, construir as alternativas
possíveis. Por último, analisar os possibilidades, obstáculos e dilemas do processo de
transformação social. Em diferentes momentos históricos, cada um destes elementos
pode ter obtido uma importância maior que os outros, no entanto todos eles são
fundamentais para teoria emancipatória compressiva nos termos do sociólogo Erik
Olin Wright (Wright, 2006: 94-7).
O ponto de partida para uma ciência social emancipatória não pode ser
simplesmente evidenciar que existe sofrimento e desigualdade no mundo atual, mas
demonstrar que “a explicação desses males encontra-se nas propriedades específicas
da estrutura social e das instituições existentes, e identificar as formas pelas quais
esta estrutura histórica específica, o capitalismo, produz sistematicamente
desigualdade e opressão” (Wright, 2006: 95). Portanto, a principal tarefa, é a
elaboração de um diagnóstico e crítica do capitalismo. O objetivo fundamental do
projeto intelectual desenvolvido por Karl Marx, em várias de suas obras e
particularmente em O Capital, consistia em descobrir “a lei econômica da sociedade
moderna”, como aparece no prefácio da primeira edição de O Capital. No entanto, o
método dialético utilizado por Marx permanentemente afirma a natureza inerentemente
contraditória do capitalismo. O trabalho intelectual realizado por Marx, segundo o
1 O presente texto é resultado das discussões realizadas no grupo de pesquisa “Crítica e emancipação” da Unifesp.
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sociólogo sueco Goran Therborn (2007), afirma certos elementos progressivos do
capitalismo, e da burguesia, no entanto, ao mesmo tempo,denuncia o caráter
explorador, assim como organiza a resistência contra ele.
Conforme afirma Melo, o diagnóstico exposto em O Capital possui dois
momentos fundamentais em que a relação entre teoria e prática é colocada. O autor,
por um lado, discute a ideia de que as possibilidades emancipatórias devem estar
inscritas na própria dinâmica da sociedade capitalista para que transformação social
não parta de pressupostos utópicos, como aparece nos Grundrisse, nos quais Marx
afirma que o capitalismo não está à altura de suas promessas, pois a noção de
igualdade formal, pressuposto para numa sociedade baseada no intercâmbio de
mercadorias, esconde a contradição entre classes, oposição estabelecida na
desigualdade constitutiva entre aquele que entra nas relações sociais como
proprietário de capital e aquele que possui apenas sua força de trabalho.Por outro
lado, afirma que a crítica da economia política realizada por Marx demonstra que a
própria estrutura do capitalismo produz de forma imanente às condições de sua
superação, o diagnóstico sobre caráter inerentemente contraditório e sobre as crises
periódicas coloca a possibilidade de transformação social mediante a práxis política do
proletariado (Melo, 2012: 4-5).
O conceito de emancipação social problematizado por Marx, por exemplo, no
texto A questão judaica, onde diferencia emancipação política de emancipação
humana e entende a emancipação social como a humana, e também por outros
autores da tradição marxista, foi submetido a um processo de mutação profundo, ao
longo das últimas décadas, como resultado tanto das derrotas sofridas pela esquerda
e pelo movimento operário, como pelo próprio processo de transformação inerente ao
modo de produção capitalista. O conceito de classes, antigamente o conceito mais
importante no discurso da esquerda, parece nos anos recentes ter sido deslocado por
um conjunto de novos conceitos que tentariam dar contra deste processo de
transformação social.
O objetivo do presente trabalho é analisar um conjunto de autores e teorias que
têm contribuído para pensar o tema da emancipação social, e uma série de questões
envolvidas (o problema do sujeito, as demandas de reconhecimento, o lugar do
contingente, e as possibilidade do universal num mundo atravessado pela
fragmentação), desde uma perspectiva marxista contemporânea. De maneira
esquemática, e um pouco reducionista, podemos pensar em algumas correntes de
pensamento que têm realizado contribuições centrais para este debate, reunidas aqui
em dois grupos de autores:
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I) Os debates surgidos a partir da noção de giro hegemônico e que realizam
uma reconceitualização do conceito de hegemonia, particulamentenos
textos de Ernesto Laclau, ChantalMouffe e SlavojZizek.
II) Os autores que afirmam a importância do conceito de classe, a partir de
uma perspectiva não determinista, para pensar a questão da emancipação
social como Daniel Bensaid e Sophie Béroud.
Nos autores dos debates surgidos a partir da noção de virada linguística e que
reconceitualizama hegemonia, focaremos no livro publicado pelo teórico político
Ernesto Laclau com a filósofa política ChantalMoufe, Hegemonia e estratégia socialista
assim como Contingency, Hegemony, Universality organizado com a filósofa-política
estadunidense também pós-estruturalista Judith Butler e o filosofo esloveno
SlavojŽižek. Nos autores do segundo grupo apresentaremos do filósofo francês Daniel
Bensaid, a obra Marx Intempestivo e da cientista política francesa e membro de
ATTAC Sophie Béroud, Violence et sabotage dans les grèves en France, que fazem
parte dos Cellatex, Quand l'acide a coulé, publicado sob a direção de Christian Larose.
O giro hegemônico
Os autores do giro hegemônico (Ernesto Laclau, ChantalMouffe e Judith
Butler)2têm destacado que a importância de movimentos sociais está na novidade que
os mesmos apresentam, já que através deles se articularia uma rápida difusão da
conflictualidade social a relações mais e mais numerosas, que seria a característica
das sociedades industriais avançadas. Seria necessário, portanto, conceber estes
movimentos como uma extensão da revolução democrática a toda uma nova série de
relações sociais; e sua novidade seria resultado do questionamento das novas formas
de subordinação.3
Uma das consequênciasdeste processo de reelaboração teórica tem sido que o
conceito de classe, outrora o conceito mais importante no discurso da esquerda,
parece nos anos recentes ter sido deslocado por um conjunto de novos conceitos que
tentam dar conta do processo de transformação social pelo qual tem passado o
capitalismo. Como afirma Therborn, as classes persistem, mas sem uma morada
segura, e sua própria existência tem sido colocada em questão. Sua aparência social 2 Incluiremos nesta seção também algumas ideias e críticas do pensador eslovaco SlavojŽižek, quem protagonizou uma intensa polêmica com os autores desta corrente. Ver Butler, Laclau e Žižek, 2011. 3 Cf. Laclau e Mouffe, 1987.
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tornou-se irreconhecível depois de passar pela crítica da política pura, como na
filosofia política da hegemonia discursiva desenvolvida por Ernesto Laclau e
ChantalMouffe, uma das mais importantes contribuições intelectuais da teoria política
pós-marxista. Nesta nova perspectiva, o conceito de luta de classes tem sido
substituído pelo de antagonismo, um conceito puramente político (Therborn, 2007: 87).
Os autores do giro hegemônico têm procurado fundamentos analíticos para
pensar as possibilidades de uma teoria e de uma prática política radical no mundo
contemporâneo, o que implica necessariamente problematizar a questão da
emancipação social no capitalismo atual. Embora que sumamente polêmicas para a
tradição marxista,as proposições colocadas pelos autores apresentam uma série de
desafios teóricos fundamentais para pensar o problema da emancipação.
Analisaremos, portanto, alguns dos elementos teóricos inovadores presentes na obra
fundante desta perspectiva: Hegemonia e estratégia socialista.4
Um primeiro elemento é o questionamento de determinados pressupostos
fundamentais da tradição marxista.Para Laclau e Mouffe(1987: 2), as novas formas
que adotou o conflito social no mundo contemporâneo colocaram em questão as
referencias políticas e teóricas correspondentes aos discursos clássicos da esquerda e
suas formas características de conceber os sujeitos políticos da mudança e a
estruturação dos espaços políticos.
Como afirmam os autores: “O que está atualmente em crise é toda uma
concepção do socialismo fundada na centralidade ontológica da classe operária, na
afirmação da Revolução como momento fundacional na passagem de um tipo de
sociedade a outra, e na ilusão da possibilidade de uma vontade coletiva perfeitamente
homogênea que tornaria inútil o momento da política. O caráter plural e multifacetado
que apresentam as lutas sociais contemporâneas tem terminado por dissolver o
fundamento último no qual se baseava este imaginário político, habitado por sujeitos
‘universais’ e constituído em torno de uma História concebida em singular: isto é, o
pressuposto de ‘a sociedade’ como uma estrutura inteligível, que pode ser
compreendida e dominada intelectualmente a partir de certas posições de classe e
reconstituída como ordem racional e transparente a partir de um ato fundacional de
caráter político. Em outras palavras, a esquerda está assistindo ao ato final da
dissolução do imaginário jacobino” (Laclau e Mouffe, 1987: 2).
Para chegar a estas conclusões, Laclau e Mouffepartem da construção de uma
genealogia do conceito de hegemonia na sua tentativa de criticar os supostos
deterministas das versões mais tradicionais do marxismo, por exemplo, o marxismo da
4 Retomamos neste ponto o argumento de Critchley e Marchart, 2008.
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Segunda Internacional. A categoria de hegemonia permitiria desmantelar a dicotomia
entre “base” econômica e “superestrutura” política e ideológica, na qual a
“superestrutura” estaria, ainda que em última instancia, determinada pela “base”.5 Para
realizar a crítica da ortodoxia marxista, os autores, recuperaram o pensamento de
Gramsci, no entanto buscando radicalizar o conceito de hegemonia de forma de
superar algumas das ambiguidades também presentes no pensador sardo.
Segundo os autores: “O pensamento de Gramsci parece confrontado com uma
ambiguidade básica em torno ao status da classe operária que o conduz, finalmente, a
uma posição contraditória: por uma parte a centralidade política da classe operária
depende da sua saída fora de si, da transformação da sua própria identidade
articulando à mesma uma pluralidade de lutas e reivindicações democráticas – tem,
portanto, um caráter histórico-contingente -; mas, por outra parte, parece que esse
papel articulador estivesse assignado pela infraestrutura – com o que passaria a ter
um caráter necessário” (Laclau e Mouffe, 1987: 82).
O pensamento de Gramsci introduz, para Laclau e Mouffe, a partir de sua
concepção de hegemonia, uma novidade radical se comparado com as diversas
tendências do marxismo clássico da Segunda Internacional. Autores importantes da
Segunda Internacional, como Kautsky por exemplo, partiram nas suas análises da
ideia de que as leis do desenvolvimento capitalista simplificariam os antagonismos
sociais e criariam as condições para uma coincidência objetiva entre os interesses da
classe e sua representação política nos partidos socialistas. A teoria gramsciana da
hegemonia, afirmam os autores, aceitaria a complexidade do social como premissa da
luta política a traves de uma série de deslocamentos que realiza com relação à
“doutrina de classes” leninista e coloca os pressupostos para uma prática democrática
da política compatível com uma pluralidade de sujeitos históricos.6
Um segundo elemento colocado pelo livro é a tese do político como primário e
constitutivo do social, nenhum setor social poderia reclamar uma posição privilegiada
na sociedade.7Como consequência dessa tese a “classe” como sujeito político
perderia seu privilegio ontológico.Como alternativa, Laclau e Mouffe vão a colocar a
questão da existência de umasérie potencialmente interminável de atores sociais que
constroem suas identidades sociais em torno de noções como raça, etnia, género ou
identidade sexual. Como afirmam Critchley e Marchart, vários autores têm chamado a
atençãosobre a importância dos novos movimentos sociais na política contemporânea,
no caso de Hegemonia e estratégia socialista, a análise Laclau e Mouffe tem se
5Cf. Critchley e Marchart, 2008: 17. 6 Cf. Laclau e Mouffe, 1987: 83. 7 Retomamos neste ponto o argumento de Critchley e Marchart, 2008.
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centrado nas consequências desta aparição para o projeto político da esquerda. A
partir desta nova configuração política o que surge como problema é a necessidade de
uma articulação comum, numa perspectiva emancipadora, de todos esses movimentos
sem cair em nenhum tipo de privilegio ontológico(Critchley e Marchart, 2008: 18).
Para Laclau e Mouffe, do ponto de vista teórico, é fundamental avançar na
determinação dos antagonismos sociais tendo como ponto de partida a pluralidade
das diversas posições, em muitos casos estas posições podem ser inclusive
contraditórias entre si, e abandonar a ideia de um agente perfeitamente unificado e
homogêneo como a classe operária. Isso não implica, para os autores, a
incompatibilidade entre classe operária e o socialismo, porém não seria possível
“deduzir logicamente interesses fundamentais no socialismo a partir de determinadas
posições no processo econômico” (Laclau e Mouffe, 1987: 100).
Duas consequências importantes aparecem como resultado da tese do político
como constitutivo do social.A primeira se refere ao vínculo existente entre socialismo e
agentes sociais concretos. Para os autores não existiria relação lógica ou necessária
entre os objetivos socialistas e as posições dos agentes na relações de produção, a
articulação entre ambos seria externa e contingente. Em outras palavras, a articulação
deve ser vista como resultado de uma construção hegemónica.Segundo os autores: “A
era dos ‘sujeitos privilegiados’ – no sentido ontológico, não prático – da luta
anticapitalista tem sido definitivamente superada” (Laclau e Mouffe, 1987: 103). A
segunda se refere à natureza dos “novos” movimentos sociais: seria também
impossível, e logicamente equivocado, afirmar a priori seu caráter progressivo. O
significado político dos movimentos sociais não é intrínseco aos próprios movimentos,
depende fundamentalmente de sua articulação hegemônica com outras lutas e
reivindicações. A articulação política dos diferentes sujeitos sociais deve passar pela
construção do projeto de uma democracia radicalizada, como retomaremos a seguir.8
Um terceiro elemento fundamental de Hegemonia e estratégia socialista foi
aincorporação do “giro discursivo”às análises das ciências sociais.Como
afirmamCritchley e Marchart (2008: 18), quando a identidade deixa de ter seu ponto de
constituição na estrutura social,esta só poderá ser resultado de uma construção
discursiva, ou para utilizar o conceito empregado por Laclau e Mouffe, de uma
“articulação discursiva”.
Laclau e Mouffe definem articulaçãocomo “toda prática que estabelece uma
relação entre elementos, de modo que a identidade destes resulta modificada como
8 Cf. Laclau e Mouffe, 1987: 103-4.
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consequência dessa prática. À totalidade estruturada resultante da prática articulatória
a chamaremos discurso” (Laclau e Mouffe, 1987: 119, ênfase no original).
Esta análise da político do ponto de vista discursivoimplica entender alguns dos
pressupostos básicos implícitos numa teoria do discurso. Em primeiro lugar, o fato de
que todo objeto se constitua como objeto do discurso está desvinculado da questão da
existência de um mundo exterior ao pensamento. O que os autores recusam é a ideia
que os objetos possam se constituir como tais fora de uma condição discursiva de
emergência. Em segundo lugar, Laclau e Mouffe sustentam o caráter material de toda
estrutura discursiva; o contrário implicariam aceitar uma dicotomia clássica, a existente
entre um campo objetivo constituído independentemente de toda intervenção
discursiva e um “discurso” consistente na pura expressão do pensamento9.
Hegemonia e estratégia socialista apresenta elementos importantes para a
análise da política em termos discursivos, neste sentido um dos conceitos que
aparecem como centrais na construção da estrutura do argumento dos autores, junto
com o conceito de hegemonia, será o de antagonismo.10Para Laclau e Mouffe o
antagonismo não é uma relação objetiva e sim uma relação na qual são expostos os
limites de toda objetividade. Se, como afirmam os autores, o social só existe como
uma tentativa parcial para instituir a sociedade – entendida como uma um sistema
objetivo e fechado de diferenças – o antagonismo será a experiência do limite do
social.11O antagonismo, como afirmam Critchley e Marchart (2008: 19-20), expressaria
o processo pelo qual o social, isto é, o campo das diferencias discursivas, é
“homogeneizado numa cadeia de equivalência que opera frente a um exterior
puramente negativo”.
Um quarto elemento estaria referido às consequências políticas desta proposta
teórica.No capítulo final de Hegemonia e estratégia socialista, Ernesto Laclau e
ChantalMouffe defendem a tese de que deve ser colocada em questão a continuidade
entre o imaginário político jacobino12 e o projeto marxista, e vão propor o projeto de
uma democracia radicalizada. Os autores rejeitam a ideia que existam pontos
privilegiados de ruptura e de confluência das lutas num espaço político unificado e
sustentam, contrariamente, a pluralidade e a indeterminação do social como bases a
9 Cf. Laclau e Mouffe, 1987: 123. 10 Cf. Critchley e Marchart, 2008: 19-20. 11 Cf. Laclau e Mouffe, 1987: 145-6. 12 “O importante, em todo caso, é que esta mudança no princípio político da divisão social que o marxismo introduz conserva inalterado um componente essencial do pensamento jacobino: a postulação de um momento fundacional de ruptura, e de um espaço único de constituição do político (Laclau e Mouffe, 1987: 170, ênfase no original).
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partir dais quais construir um novo imaginário político radicalmente libertário e
infinitamente mais ambicioso nos seus objetivos que os da esquerda clássica.13
Como afirmam os autores, “A problemática teórica que temos apresentado
exclui no só a concentração da conflitualidade social em agentes aprioristicamente
privilegiados, como o seriam as classes sociais, mas também a referência a todo
princípio ou substrato geral de tipo antropológico que, ao mesmo tempo unificaria as
distintas posições do sujeito e assignaria à resistência contra diversas formas de
subordinação um caráter inevitável” (Laclau e Mouffe, 1987: 171).
O problema central que colocam os autores é o seguinte: quais são as
condições discursivas da emergência de uma ação coletiva orientada pela luta contra
as desigualdades e que coloque em questão as relações de subordinação? Para isto
vão estabelecer uma diferencia entre subordinação, opressão e dominação. As
relações de subordinação são aquelas em que um agente está submetido a decisões
de outro. As relações de opressão são, por sua vez, as relações de subordinação que
têm se transformado em marcos de antagonismos. Por último, as relações de
dominação são definidas como o conjunto de relações de subordinação que são
consideradas como ilegítimas a partir de um agente social exterior às mesmas. A
questão, como consequência, seria explicar como a partir das relações de
subordinação se constituem relações de opressão. Sem a existência de um “exterior”
discursivo, a partir do qual o discurso da subordinação possa ser interrompido, não
existiria relação de opressão.14
Para os autores é só no momento no qual o discurso democrático esteja
disponível para articular as diversas formas de resistência que existirão as condições
para a luta contra os diferentes tipos de desigualdade.15 Para poder ser mobilizado era
necessário que o princípio democrático de liberdade e igualdadetivesse se constituído
como nova matriz do imaginário social. “Esta mutação decisiva no imaginário político
das sociedades ocidentais ocorreu faz duzentos anos e pode ser definida nos
seguintes termos: a lógica da equivalência se transforma no instrumento fundamental
de produção do social. É para designar esta mutação que, tomando uma expressão de
Tocqueville, falaremos de ‘revolução democrática’” (Laclau e Mouffe, 1987: 173).
O momento chaveda revolução democrática foi a Revolução Francesa, nesse
momento surge um novo imaginário social, uma nova legitimidade, se
13 Cf. Laclau e Mouffe, 1987: 170. 14 Cf. Laclau e Mouffe, 1987: 172-3. 15 No caso do feminismo, o livro VindicationoftheRightsofWomen(1792), de Mary Wollstonecraft, determinaria o nascimento do feminismo, pelo deslocamento, mediando o uso do discurso democrático, do campo da igualdade política entre cidadãos ao campo da igualdade entre sexos (Laclau e Mouffe, 1987: 173).
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consolidandodesta forma a primeira experiência democrática. Isso constituirá, para
Laclau e Mouffe, a força subversiva profunda do discurso democrático, que
possibilitará deslocar a liberdade e a igualdade para domínios cada vez mais amplos e
servirá de fermento a diversas lutas contra a subordinação.
A rejeição da categoria de sujeito como entidade unitária, por sua vez, coloca a
possibilidade do reconhecimento da especificidade dos antagonismos constituídos a
partir de diferentes posições de sujeito e permitindo pensar no aprofundamento de
uma concepção pluralista e democrática.Para Laclau e Mouffe, “o discurso da
democracia radicalizada não é mais o discurso do universal; não existe mais o lugar
epistemológico a partir do qual se expressavam as classes e os sujeitos universais, e
ele tem sido substituído por uma polifonia de vozes, cada uma das quais constrói sua
própria e irredutível identidade discursiva. Este ponto é decisivo: não há democracia
radicalizada e plural sem uma renúncia ao discurso do universal e ao suposto implícito
no mesmo – a existência de um ponto privilegiado de acesso ‘à verdade’ que seria
acessível tão só para um número limitado de sujeitos. Em termos políticos isto significa
que, assim como não há superfícies privilegiadas a priori para a emergência de
antagonismos, também não há regiões discursivas que o programa de uma
democracia radical deva excluir a priori como possíveis esferas da luta” (Laclau e
Mouffe, 1987: 215-6).
Para os autores, todo projeto de democracia radicalizada deve incluir uma
dimensão socialista, mas recusando a ideia que a abolição das relações de produção
capitalistas elimine necessariamente as outras desigualdades. Como consequência “a
autonomia dos distintos discursos e lutas, a multiplicação dos antagonismos e a
construção de uma pluralidade de espaços” seriam as condições de possibilidade para
um processo de transformação social radical (Laclau e Mouffe, 1987: 216).
Nas publicações posteriores a Hegemonia e estratégia socialista, Laclau e
Mouffe continuaram desenvolvendo, ainda que com ênfases diferentes, os argumentos
colocados nesta obra.16
Contingencia, hegemonia e universalidade é outra obra importante
nadiscussãodos conceitos centrais do giro hegemônico. Como afirmam os autores, o
texto é resultado de uma série de conversações, várias resenhas e diálogos diversos;
no caso de Žižek e Laclau de uma colaboração que tem inicio na publicação de
Hegemonia e estratégia socialista. Fazendo uma análise retrospectiva, os autores
consideram que esse livro representou para o marxismo um giro em direção à teoria
16 Sobre estes desenvolvimentos ver Critchley e Marchart, 2008.
11
pós-estruturalista, um giro que colocou o tema da linguagem como fundamental para a
formulação de um projeto democrático radical.17
Laclau acredita que existeum processode reelaboraçãono marxismo no sentido
de uma mudança que vai da postulação de uma classe universal para uma
universalidade hegemônica que transformaria o político em constitutivo do vínculo
social. Žižek enfatiza a importância de que a análise pós-moderna da linguagem e da
cultura examine a forma global do capitalismo atual e continua expondo o revés
obsceno do poder. Butler, por sua vez, coloca a questão de como os movimentos
sociais rearticulam o problema da hegemonia, considerando o desafio que as políticas
sexuais têm colocado para a teoria da diferença sexual e propõe uma concepção anti-
imperialista da tradução. Tanto Laclau, como Žižek e Butler, estão comprometidos com
formas radicais de democracia, na expressão dos próprios autores, que buscam
compreender “os processos de representação pelos quais procede a articulação
política, o problema de identificação – e seus fracassos necessários – pela qual a
mobilização política acontece” (Butler, Laclau e Žižek, 2011: 11).
Para Laclau, o conceito de hegemonia é central para pensar as possibilidades
emancipatórias na sociedade contemporânea. Ele funciona como uma matriz exemplar
da relação entre universalidade e contingência histórica. Para o autor, a categoria de
hegemonia definiria o terreno mesmo no qual uma relação política é constituída, mas
isso implica entender a especificidade da lógica hegemônica18.
Uma primeira dimensão da relação hegemônica: a desigualdade de poder é
constitutiva dela. A partir de uma distribuição desigual de poder, a reivindicação de um
setor social para ocupar o governo dependerá da sua capacidade para apresentar
seus próprios objetivos particulares como aqueles compatíveis com o efetivo
funcionamento da comunidade – operação hegemônica.Uma segunda dimensão: há
hegemonia só se a dicotomia universalidade/particularidade é superada; a
universalidade só existe encarnada em alguma particularidade, porém o inverso
também é verdadeiro, nenhuma particularidade pode devir política sem se converter
no locus de efeitos universalizantes.Uma terceira dimensão: a relação hegemônica
requer a produção de significantes tendencialmente vazios que, ao tempo que mantém
a incomensurabilidade entre o universal e os particulares, permitem a estes últimos
assumir a representação do primeiro.19 A representação, portanto, é constitutiva da
relação hegemônica; em tanto a universalidade da comunidade só é alcançável
através da mediação de uma particularidade, a relação de representação devem
17CF. BUTLER, LACLAU, E Žižek, 2011: 9. 18 Cf. Butler, Laclau e Žižek, 2011. 19 Sobre a questão da representação dentro da lógica hegemônica ver Laclau, 2007.
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constitutiva.Uma quarta dimensão: o espaço no qual a hegemonia se expande é o da
generalização das relações de representação como condição de constituição de uma
ordem social. Isso explicaria, no argumento de Laclau, por que a forma hegemônica da
política tende a se tornar geral no mundo contemporâneo; como o descentramento das
estruturas de poder tenderia a aumentar, qualquer centralidade requereria que seus
agentes estiveram constitutivamente sobredeterminados, isto é que sempre
representassem algo a mais que sua mera identidade particularista.20
Para Laclau, a política implica a criação de fronteiras políticas, porém a criação
desta fronteiras é mais difícil quando não é possível se apoiar em entidades estáveis –
como nas classes sociais do discurso marxista. É necessário, portanto, construir as
mesmas entidades sociais que devem ser emancipadas. A tarefa da emancipação
social passa por criar um discurso universal expansivo a partir da proliferação de
particularismos das últimas décadas. Existe uma dimensão universal nos discursos
que organizam as demandas particulares e as políticas orientadas à resolução de
temáticas particulares, mas é uma universidade implícita e não desenvolvida. A tarefa,
continua o autor, é expandir esses germes de universalidade, de modo de alcançar um
imaginário social inteiro, capaz de disputar o consenso neoliberal hegemônico das
últimas décadas (Butler, Laclau eŽižek, 2011: 305).
Como afirma Žižek, a narrativa de Laclau vai do essencialismo marxista – o
proletariado como único sujeito histórico cuja missão revolucionária está inscrita no
seu próprio ser social – até o reconhecimento “pós-moderno” do vínculo contingente
entre sujeito social e suas tarefas na luta política. Uma vez reconhecida esta
contingência, é necessário aceitar que não existe relação natural ou direta entre a
posição de classe de um agente e suas tarefas na luta política. No entanto, se por uma
parte esta narrativa de esquerda pós-moderna convencional da passagem desde o
marxismo “essencialista” até a irredutível pluralidade de lutas pós-modernas descreve
sem dúvidas um processo histórico real, os defensores destas teses, em geral, omitem
uma tendência à aceitação do capitalismo como única alternativa, e a rejeição de toda
tentativa real de superar o regime capitalista liberal existente.21
Na medida em que a política pós-moderna, continua Žižek, implica “um recuo
teórico do problema da dominação no interior do capitalismo”, é nesse ponto, nessa
suspensão silenciosa da análise da classe, que é possível encontrar um caso
exemplar do mecanismo de deslocamento ideológico: quando o antagonismo de
classe é repudiado, quando seu papel estruturante é suspendido, outros indicadores
de diferença social podem passar a suportar um peso excessivo: de fato colocam todo
20 Cf. Butler, Laclau e Žižek, 2011: 62-5. 21 Cf. Butler, Laclau e Žižek, 2011: 101.
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o peso do sofrimento produzido pelo capitalismo.22 Para Žižek, a política pós-moderna
teve o mérito de repolitizar uma série de lugares antes considerados “apolíticos” ou
“privados”; no entanto esta perspectiva teórica parece não repolitizar o capitalismo,
porque “a mesma noção e forma de ‘o político’ dentro da qual funciona estaria fundada
na despolitização da economia” (Butler, Laclau eŽižek, 2011: 105-6).
A lógica da emancipação social estruturada pelo conflito (Daniel Bensaïd e
Sophie Béroud)
Daniel Bensaïd vai recuperar o pensamento de Marx para pensar a questão da
emancipação social e particularmente vai resgatar a ideia de que o marxismo propõe
uma “lógica da emancipação enraizada no conflito”.Esta lógica da emancipação
colocada por Bensaïd, se articularia a partir de três elementos fundamentais:uma
concepção da história em aberto23;uma concepção de classe como relação social e
uma concepção da política como estratégia.24
Em Marx, o intempestivo, Bensaïdcriticaa concepçãohistórica
deterministapresenteem algumas correntes do marxismo e resgata uma leitura do
pensamento de Marx que permita encontrar neste“uma nova representação da história
e uma organização conceitual do tempo como relação social”. Bensaïd também critica
aqueles que reduzem o pensamento do Marx a uma sociologia empírica das classes,
que buscaria ordenar e classificar as classes sociais, tornando a teoria incapaz de
entender a dinâmica do conflito social.Para o autor, as classes não são objetos ou
categorias de classificação sociológica, elas devem ser entendidas como “a própria
expressão do devir histórico” (Bensaïd, 1999: 13-4).
Na elaboração teórica proposta por Marx, afirma Bensaïd, se articulariam três
críticas: a crítica da razão histórica, a crítica da razão econômica e a crítica da
positividade científica. Esta elaboração continuaria tendo um enorme valor heurístico
para entender os problemas contemporâneos: as discussões sobre o fim da história, a
relação da luta de classes com outras formas de conflito e os limites e potencialidades
da emancipação social. Para Bensaïd, o marxismo continua tendo uma extraordinária
vitalidade intelectual, porém desde que seja entendido “não [como] um sistema
doutrinário, mas [como] uma teoria crítica da luta social e da mudança do mundo”
(Bensaïd, 1999: 14).
22 Cf. Torfing, 1999: 36. 23 Retomamos esta ideia de Montenegro e Medeiros, 2012. 24 Retomamos esta ideia de Montenegro e Medeiros, 2012.
14
Um primeiro ponto refere-se à concepção da história.25Bensaïd critica as
interpretações do pensamento de Marx em termos deterministas ou teleológicos e,
como consequência, recusaasimplicações políticas dessas interpretações que
vãodesde o voluntarismo ingênuo até a passividade burocrática. A fórmula
apresentada por Marx do comunismo, nos Manuscritos econômico-filosóficos, como o
“enigma resolvido da história” corresponde a um período intelectual no qual Marx
também define claramente o comunismo como o “movimento real”, afirmação que
coloca o pensamento de Marx distante de qualquer visão determinista da
história.26Para Bensaïd “A chave do mistério residiria portanto no ‘movimento real’ pelo
qual a história é indissociavelmente história que se faz e teoria crítica de seu próprio
desenvolvimento”. É, portanto, necessário – na leitura de Bensaïd – desmoralizar a
história e politizá-la de forma de torná-la aberta a um pensamento estratégico
(Bensaïd, 1999: 24-5).
Na leitura de Karl Popper, que Bensaïd denuncia, Marx seria o fundador da
forma mais radical de historicismo que já existiu; o marxismo seria responsável pela
redução da causalidade histórica à causalidade natural. O historicismo levaria à
tentativa voluntarista de mudar ou acelerar o curso da história ou à passividade e à
acomodação às leis da história. Na visão de Popper, o historicismo, do qual o
marxismo formaria parte, levaria a um relativismo total tornando a elaboração do
conhecimento supérflua.27
Bensaïd recusa esta tentativa de Popper de reduzir o marxismo ao
historicismo;para o pensador francês, Marx estaria distante deste modelo de
previsibilidade histórica:“O Capital não é uma ciência das leis da história, mas a ‘crítica
da economia política’. Ele não quer saber de verificar a coerência de uma História
universal, antes desembaralhar tendências e temporalidade que se contrariam sem se
abolirem. Os textos consagrados a conjunturas históricas particulares (as revoluções
de 1848, a Guerrade Secessão, a Comuna de Paris) respondem ponto por ponto às
interpelações de Popper. Este presente histórico não é um elo no encadeamento
mecânico dos efeitos e das causas, mas uma atualidade repleta de possíveis, onde a
política supera a históriana decifração de tendências que não fazem a lei” (Bensaïd,
1999: 29-30, ênfase nosso).
25 Sobre este ponto ver Montenegro e Medeiros, 2012: 206-7. 26 Bensaïd se refere à conhecida passagem de A ideologia alemã: “O comunismo não é para nós um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual” (Marx e Engels, 2007: 38, ênfase no original). 27 Retomamos a leitura que Bensaïd (1999: 26) realiza de Popper já que nosso interesse está no pensamento do primeiro.
15
Bensaïd criticatambém as incompreensões e caricaturas que alguns autores
têm feito de Marx e a incapacidade de ver o pensamento de Marx na sua verdadeira
complexidade, tomando textos isolados ou ideias fora de contexto. A crítica
fundamental neste ponto é dirigida tanto contra Popper como contra Jon Elster.28Marx
utiliza, segundoBensaïd, uma “teleologia imanente”, que não é entendida pela maioria
dos autores que criticam Marx, e continua: “Quanto à utopia, ela sobrevive à custa de
sutis metamorfoses não como invenção arbitrária do futuro, mas como ‘intenção
orientada para o verdadeiro’. Daqui para frente, nada de cidade futura, nada de mundo
melhor. Mas uma lógica da emancipação enraizada no conflito”(Bensaïd, 1999:34,
ênfase nosso).
Um segundo ponto se refere à concepção relacional que o pensador francês
tem das classes sociais.29Para Bensaïd, as classes sociais e a luta de classes devem
ser analisadas a partir de um conjunto de determinações, não apenas econômicas,
mas também políticas; e por outra parte as classes devem ser entendidas de um ponto
de vista relacional. Como afirma o autor: “A noção de classe, segundo Marx, não é
redutível nem a um atributo de que seriam portadoras as unidades individuais que a
compõem, nem à soma dessas unidades. Ela é algo diferente. Uma totalidade
relacional e não uma simples soma” (Bensaïd, 1999: 147).
Neste ponto novamente Bensaïd critica as leituras simplificadoras e
reducionistas do pensamento de Marx. Uma dessas leituras simplificadora seria a de
Schumpeter, para quem Marx no processo de abstração teórica imobilizaria as classes
sociais, impossibilitando que o processo de desenvolvimento da formação social
tivesse engendrado as complexas diferenciações de sua estrutura e de sua relação
com o Estado.30Para Bensaïd este leitura não consegue compreender a lógica de O
Capital;as consequências da circulação e da reprodução já estão presentes na análise
do valor, que pressupõe a luta de classes e a determinação do tempo de trabalho
socialmente necessário. A teoria das classes, afirma Bensaïd, “não teria como, nessa
ótica, reduzir-se a um jogo estático de definições e classificações. Ela remete a um
sistema de relações estruturado pela luta, cuja complexidade se desenrola plenamente
nos escritos políticos [...]” (Bensaïd, 1999: 145).
A intepretação de Marx sobre as classes, continua o autor, recusa que estas
sejam vistas como uma pessoa ou como um sujeito unificado e consciente. Só é
28 “A exemplo da mão invisível de Smith ou da colmeia de Mandeville, a História desempenharia em Marx o papel de grande ordenadora do destino coletivo, condenando os indivíduos a cumprir seu grande desígnio mesmo sem saber. Elster vê nisso o resultado da estreita relação entre uma forte inclinação pela explicação funcional e a filosofia da história” (Bensaïd, 1999: 31). 29 Sobre este ponto ver Galvão, 2011. 30 Retomamos a leitura de Bensaïd, (1999) sobre Schumpeter.
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possível pensar na existência das classes “na relação conflitual com outras classes”.
Alguns autores tentam buscar no pensamento de Marx “uma sociologia”, de acordo
com os critérios disciplinares; no entanto, seria mais adequado procurar no
pensamento de Marx uma sociologia crítica ou uma sociologia negativa. Qualquer
tentativa de assimilar a filosofia da práxis a uma sociologia está condenada ao
reducionismo ou ao fracasso.
Será, portanto, em O Capital, não como texto sociológico, mas como
lógicaexpositiva, que essa discussão deve ser remitida. As classes, afirma Bensaïd, se
revelam “no e pelo movimento do Capital”. Essa revelação aparece claramente no livro
III, com a discussão sobre o processo de produção global, mas também é tratada em
várias oportunidades a partir do processo de produção.31 Do ponto de vista da lógica
da exposição, como sustenta o autor, a apresentação da teoria do valor-trabalho e da
mais-valia “pressupõe a exposição da relação antagônica de exploração, portanto a
abordagem teórica das classes está presente desde o começo das análises no livro
I”(Bensaïd, 1999-153-4).
Para Bensaïd, também não existia em Marx a ideia do proletariado como um
sujeito mítico, o pensador alemão analisaria de maneira aberta e clara em O Capital as
contradições entre a condições reais do proletariado e o enigma de sua emancipação.
O desenvolvimento das forças produtivas e a consolidação da produção capitalista
permitiriam a constituição de uma classe operária cada vez mais numerosa e
organizada, mas a alienação e o fetichismo estão também estruturalmente enraizadas
no processo de produção. As condições de exploração, como afirma Bensaïd, fazem
do trabalhador um ser mutilado a tal ponto que a submissão se perpetua.“Tal é o
mistério insolúvel da emancipação a partir da submissão e da alienação. Ele encontra
sua resposta no confronto político e na luta de classes: somente a luta pode romper
esse círculo vicioso” (Bensaïd, 1999: 155, ênfase nosso).
Um elemento importante na discussão sobre a emancipação social refere-seà
relação entre movimentos sociais e classes, diferentes autores da tradição de
esquerda têm colocados diversas possibilidades de articulação como por exemplo
Laclau e Mouffe, cujos análises discutimos no apartado anterior.
Para Bensaïd e Béroud esta é uma questãointrincada, os movimentos sociais
pareceriam ter tomado o lugar privilegiado antes ocupado pela classe operária, no
entanto uma aproximação mais elaborada poderia sugerir uma articulação complexa
entre as reivindicações dos movimentos sociais e os interesses de classes.
31 Bensaïd enumera algumas destas aparições: no livro I, capítulo da terceira seção sobre a jornada de trabalho; no capítulo sobre “Divisão do trabalho e manufatura˜ da quarta seção e no capítulo sobre a “Lei geral da acumulação capitalista” na sétima seção.
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Seria necessário, como afirma Galvão– autora que recupera na sua análise as
formulações de Bensaïd e Béroud – pensar as possibilidades da uma ação
coletivaemancipatória como resultado da articulação entre conflito de classes e lutas
contra as diversas formas de opressão e pelo reconhecimento. O ponto de partida
seria reconhecer que os conflitos de classes e outras formas de conflito sociais estão
articulados ainda que analiticamente sejam distintas. Para a autora, os movimentos
sociais não constituiriam apenas uma reação a formas diversas de dominação e
opressão, mas também seriam expressão de um conflito contra a própria lógica da
exploração capitalista (Galvão, 2011: 119).Entender a articulação entre ambas as
formas de conflictividade social seria tanto um desafio teórico como um desafio
político. René Mouriax, numa linha argumental similar,afirma,referindo-seem particular
à opressão das mulheres nas sociedades capitalistas,que na sociedade capitalista: “as
mulheres são objeto de uma opressão específica herdada do passado e desde então
articulada aos diversos pertencimentos de classe [...] A diversidade de feminismos
tem, portanto, um fundamento social que se cristaliza em ideologias distintas que,
todavia, têm em comum um objetivo emancipador (Mouriaxapud Galvão, 2011: 119).
Para Béroud, por sua vez, “todo movimento social, em sua especificidade mesma não
pode ser compreendido sem que seja considerada a centralidade da oposição
capital/trabalho no seio das sociedades contemporâneas” (Béroudapud Galvão, 2011:
118).
Outro ponto importante sobre o tema das classes refere-se à questão da
representação política. A teoria revolucionária, na interpretação do pensador
francês,guardaria algum parentesco com a psicanálise:“A representação política não é
uma mera manifestação de uma natureza social. A luta política das classes não é o
reflexo superficial de uma essência. Articulada como uma linguagem, ela opera por
deslocamentos e condensações das contradições sociais. Tem seus sonhos, seus
pesadelos e seus lapsos. No campo específico do político, as relações de classes
adquirem um grau de complexidade irredutível ao antagonismo bipolar que, entretanto,
as determina (Bensaïd, 1999: 164-5).
Para Bensaïd é necessário considerar uma série de questões na análise das
classes sociais e das representações políticas.Em primeiro lugar, as relações de
produção, também, devem ser pensadas na sua articulação com o Estado. Como
analisa Marx em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, o interesse da burguesia está
ligado de maneira íntima à máquina governamental. Esse é um vínculoem função do
qual se diferenciam as frações de classe e se elaboram as representações
políticas.Em segundo lugar, deve ser sublinhado que a partir das classes
fundamentais, determinadas pelo antagonismo das relações de produção, existe uma
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série de articulações cruzadas que multiplicam as diferenciações. Isto aparece
claramente em A luta de classes na França e em A Guerra Civil na França, textos nos
quais Marx problematiza a dialética entre relações sociais e representação política.Em
terceiro lugar, se para Marx o proletariado é a classe potencialmente emancipadora,
esse potencial não se realiza de maneira automática. Em OCapital são analisados os
possíveis obstáculos ao desenvolvimento da consciência de classe como resultado da
própria reificação das relações sociais. Aos obstáculos relacionados com as relações
de produção devem se adicionar os efeitos específicos das lutas políticas.Por último, a
relação entre estrutura social e luta política também é mediada pelas relações de
domínio e dependência entre nações no âmbito internacional (Bensaïd, 1999: 164-7).
Como consequência, conclui Bensaïd: “A estrutura social de classe não
determina portantomecanicamente a representação e o conflito político. Se um Estado
ou um partido têm caráter de classe, sua autonomia política relativa abre uma ampla
gama de variações à expressão dessa ‘natureza’. A especificidade irredutível do
político faz da caracterização social do Estado, dos partidos, a fortiori das teorias, um
exercício eminentemente perigoso” (Bensaïd, 1999: 167).
Para Bensaïd (2008), um dos elementos chaves para pensar as
possibilidadesemancipatóriascontemporâneas passa por recuperar o debate político
estratégico na esquerda.32
O começo do século XX foi um período extremamente rico do ponto de vista
dos debates estratégicos sobre a emancipação social: a análise do imperialismo, a
discussão da relação entre partidos e sindicatos e a disputa sobre as estratégias de
poder, protagonizados por as principais figuras do movimento socialista (Bernstein,
Kautsky, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Lenin, entre outros).Estas controvérsias
deveriam ser recuperadas tanto porque elas são centrais para ahistória
contemporânea como também com o objetivo de resgatara cultura comum da
esquerda socialista. Para Bensaïd, estamos frente a uma dupla responsabilidade a:
“transmissão de uma tradição ameaçada de conformismo e de invenção audaciosa de
um futuro incerto” (Bensaïd, 2008: 28-9).
Assim,para recuperar o debate estratégico seria necessário resgatar a política
no sentido forte, a política como decisão, a política como arte estratégica. Para
Bensaïd, “A arte da decisão, do momento propício, da bifurcação aberta para a
esperança é uma arte estratégica do possível. Não o sonho de uma possibilidade
abstrata, em que tudo que não é impossível seria possível, mas a arte de uma
possibilidade determinada pela situação concreta: sendo cada situação singular, o
32 Retomamos neste ponto as sugestões presentes no texto de Montenegro e Medeiros, 2012.
19
momento da decisão é sempre relativo a essa situação, adaptado ao objetivo a ser
atingido. A razão estratégica é a arte de resposta apropriada”(Bensaïd, 2008: 28-9).33
Para o autor, a luta política não seria redutível ao movimento social. Existiria
sim uma reciprocidade e complementariedade entre o momento da política e o
momento do social. A política surgiria no social, nas resistências contra a opressão do
capitalista e na luta por novos direitos políticos e sociais que transformam os oprimidos
em sujeitos de direito. O Estado, como encarnação ilusória do interesse geral,
organizaria o campo específico da política, isto é uma relação de forças característica,
uma linguagem particular do conflito político. Os antagonismos sociais, afirma
Bensaïd, se manifestam num jogo de articulações e condensações. A luta de classes
assume, desta maneira, a forma mediada da luta política.34
A articulação dos elementos anteriormente colocados:uma concepção da
história em aberto, uma concepção de classe como relação social e uma concepção
da política como estratégia definiriam uma lógica emancipatória específica, uma lógica
da emancipação estrutura pelo conflito social.Seria inadequada, portanto,uma análise
das possibilidades emancipatórias a partir de uma visão simplista ou determinista. Na
visão de Bensaïd, as lutas emancipatórias seriam resultado de uma articulação
complexa onde a política teria um papel chave, como afirma o autor: “A dialética da
emancipaçãonão é uma marcha inevitável rumo a um fim garantido: as aspirações e
as expectativas populares e são variadas, contraditórias, frequentemente divididas
entre uma exigência de liberdade e uma demanda de segurança. A função específica
da política consiste em articulá-las e conjugá-las por meio de um futuro histórico cujo
fim continua incerto”(Bensaïd, 2008: 31).
********************
Como colocávamos no início do trabalho este conjunto de autores e teorias têm
contribuído de forma fundamental para pensar a questão da emancipação social e as
diversas questões envolvidas: o problema do sujeito ou dos sujeitos, as demandas de
reconhecimento, a relação entre o particular e o universal, para citar só algumas.
Estas questões precisam ser aprofundadas e outros autores e teorias ser
trazidas para um melhor entendimento das questões em jogo. De todas formas, um
dos elementos centrais que deve ser considerados é a como estas teorias servem
para a reflexão política de caráter estratégica. Independente das incertezas envolvidas
33 Sobre este ponto ver Montenegro e Medeiros, 2012: 210. 34 Cf. Bensaïd, 2008: 31.
20
em qualquer processo político, uma teoria que coloque a questão da emancipação
social deve ter como um dos seus elementos fundantes a problemáticas estratégica,
isto é a possibilidade de optar por um determinado curso de ação sobre a base da
análise dos processos em curso.
De esta maneira uma teoria social emancipatória deve ter como objetivo gerar
um conhecimento relevante para um projeto coletivo que desafie a exploração
capitalista e contribua para o surgimento de uma consciência social orientada para a
transformação social. Para alcançar seu objetivo uma teoria social emancipatória deve
reunir uma série de condições fundamentais. Em primeiro lugar, elaborar um
diagnóstico sistemático e uma crítica da realidade social existente. Em segundo, e a
partir desse diagnóstico, construir as alternativas possíveis com base num
pensamento estratégico. Por último, analisar os possibilidades, obstáculos e dilemas
do processo de transformação social.35
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