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O que lideranças jovens de favela pensam sobre política
de drogas?
P E S Q U I S A
Janeiro de 2018
M O V I M E N T O S : D R O G A S , J U V E N T U D E E F A V E L A 2
Supervisão geral:
Julita Lemgruber
Coordenação:
Ana Clara Telles
Luna Escorel Arouca
Raull Santiago
Texto:
Ana Clara Telles
Revisão de texto:
Leonarda Musumeci
Supervisão de campo:
Luna Escorel Arouca
Pesquisadores:
Aristênio Gomes
Mayara Donaria
Pamela Souza
Ricardo Fernandes
Sabrina Martina
Realização:
ISBN: 978-85-5969-007-1
#MOVIMENTOS: DROGAS, JUVENTUDE E FAVELA
Somos um grupo de jovens de várias favelas e periferias do Brasil que acredita que uma
nova política de drogas é urgente. Quer saber mais sobre as nossas ações? Acesse:
www.movimentos.org.br
Apoio:
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Sumário
Resumo executivo ....................................................................... 4
1. Drogas, juventude e favela .................................................... 6
Os impactos seletivos da “guerra às drogas” ..................................................6
Drogas, política e segurança pública ................................................................. 7
A mudança já começou... mas para quem? ...................................................8
De onde partimos .......................................................................................................9
2. Pistas para abrir o caminho ................................................ 11
Perfil dos entrevistados ........................................................................................... 11
Impactos da guerra às drogas no dia a dia ...................................................12
Conversar sobre drogas é tabu ...........................................................................17
Desafios e possibilidades: a mudança começa nas favelas ................. 22
Considerações Finais ............................................................... 29
Anexo: questionário ................................................................. 31
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Resumo executivo
A pesquisa aqui apresentada foi pensada como ferramenta para subsidiar a cons-
trução das ações do Movimentos. O Movimentos reúne um grupo de jovens
de várias favelas e periferias do Rio de Janeiro e de Salvador dedicados a mu-
dar as políticas de drogas no Brasil. Desde 2016, o Movimentos começou a trabalhar
na construção de um material que ajudasse a travar esse debate dentro e a partir das
favelas, fortalecendo o protagonismo da juventude nesse tema.
Aplicada pelo próprio grupo entre 30 lideranças jovens de várias favelas do Rio de
Janeiro e da região metropolitana, a pesquisa tinha como objetivo fazer um primeiro
mapeamento do que pensa essa juventude sobre a relação entre drogas, violência, es-
tigma e racismo, e sobre as possibilidades de mudança nas políticas de drogas atuais.
Foi aplicado um questionário com dez perguntas abertas agrupadas em três eixos, cada
um deles correspondente a uma das três questões que guiaram a pesquisa: [1] o que
esses jovens pensam sobre a “guerra às drogas”; [2] como eles conversam sobre esse
tema com amigos e familiares; e [3] que caminhos para a mudança eles veem à frente.
Àqueles que têm ou já tiveram algum tipo de vinculação com instituições religiosas,
foram feitas três perguntas extras sobre a relação entre drogas e espiritualidade.
A pesquisa mostra que essas jovens lideranças são especialmente críticas à lógica da
guerra que guia a condução das políticas de segurança pública nos grandes centros
urbanos do país; que veem uma relação direta entre a “guerra às drogas” e o racismo, o
estigma e a criminalização a que as favelas e periferias brasileiras estão submetidas; e
que entendem ser necessário pensar em novas políticas de drogas que superem velhas
estratégias de repressão e controle. As respostas deixam claro, ainda, as dificuldades de
se discutir o tema das drogas dentro das favelas, sobretudo entre os familiares, devido à
violência e ao sofrimento normalmente associados a essas substâncias.
Por isso mesmo, quando perguntados sobre os desafios de falar sobre drogas dentro
das favelas, os entrevistados citaram, especialmente, a dificuldade de superar o estigma
relacionado às drogas ilegais, associadas à morte e ao encarceramento da juventude; e
a necessidade de fazer circular informações de qualidade sobre o tema, rompendo os
preconceitos existentes. E esses desafios se refletem no que os entrevistados entendem
como as possibilidades de mudança: a importância de fortalecer o debate a partir da
construção de canais sobre drogas pensados por e a partir das favelas. Em outras pala-
vras, faltam informações de qualidade que cheguem à ponta, passadas por lideranças
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(1) A lógica da guerra que permeia as políticas de drogas atuais precisa
estar no centro do debate.
(2) Não é possível falar sobre política de drogas sem discutir desigualdade,
racismo e criminalização da pobreza.
(3) É preciso construir outras formas de falar sobre drogas com as favelas.
(4) O debate sobre política de drogas nas favelas e periferias deve ir além
da discussão sobre descriminalização e legalização.
(5) As religiões e os demais espaços de manifestação da espiritualidade
devem ser incluídos no debate.
(6) A juventude pode e deve ser ator-chave nesse processo.
do próprio território a partir de uma narrativa que os contemplem. Nesse quadro, de
acordo com os entrevistados, os jovens têm papel crucial: a juventude das favelas e
periferias brasileiras é ativa, está conectada a diferentes redes e circula por diferentes
espaços das cidades.
A partir da sistematização das respostas, juntamos algumas pistas para compreender os
desafios e as possibilidades de se falar sobre drogas dentro e a partir das favelas e das
periferias. São elas:
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1. Drogas, juventude e favela
OS IMPACTOS SELETIVOS DA “GUERRA ÀS DROGAS”
No Brasil e no mundo, as políticas militarizadas de combate às drogas ilegais têm ende-
reço certo: as favelas e periferias. Planeta afora, a “guerra às drogas” afeta desproporcio-
nalmente as populações mais pobres, que moram nos espaços urbanos historicamente
negligenciados pelo poder público. Colocados na linha de frente, os moradores desses
territórios ficam expostos a tiroteios frequentes, derivados de disputas territoriais pelo
controle do mercado ilegal de drogas ou de operações militares de “combate ao narco-
tráfico”, e têm seus direitos básicos – à vida, ao ir e vir, às políticas públicas – diariamente
violados.
“A guerra às drogas afeta diretamente o nosso dia a dia. Para nós, significa
escolas fechadas, mudança na rotina, medo de sair de casa, preocupação
extrema com o nosso bem-estar e o da nossa família. Em nome dessa guerra,
o Estado justifica uma série de violações de direitos contra nós, jovens de
favelas e periferias”.
‘Movimentos: drogas, juventude e favela’, 2017.
1 Cerqueira, D., Lima, R. S. D., Bueno, S., Valencia, L. I., Hanashiro, O., Machado, P. H. G., & Lima, A. D. S. (2017). Atlas da violência 2017. Disponível em: goo.gl/ULKn8X.
2 Idem.
3 Idem.
Nesse quadro, a juventude ocupa posição especialmente vulnerável. No Brasil, o país
com o maior número absoluto de homicídios no mundo, a taxa mais alta de mortes
violentas se concentra na faixa dos 21 anos1. Entre 2005 e 2015, a taxa de homicídios
entre jovens de 15 a 29 anos aumentou 17% - isso significa que, nesse mesmo período,
318 mil jovens foram assassinados no país2. Embora não seja possível estimar quantas
dessas mortes estão relacionadas às drogas, sabemos que boa parte delas é provocada
pela violência causada pela “guerra às drogas”.
Só que a “guerra às drogas” não atinge a juventude de forma homogênea: hoje, no Brasil,
os jovens negros têm mais chance de serem assassinados do que os jovens de outras
raças e etnias. De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no país, 71 delas são negras
(pretas ou pardas)3. E, em vez de melhorar, essa situação tem se agravado: na última dé-
cada, a taxa de homicídios da população negra aumentou 18%, enquanto a mesma taxa
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entre as pessoas de outras etnias diminuiu 12%4. Os custos da “guerra às drogas” recaem
desproporcionalmente sobre os jovens negros, a maioria do sexo masculino.
Olhar para o número de homicídios é apenas uma forma de tentar entender o impacto
da “guerra às drogas” na sociedade. Quando consideramos as taxas de encarceramen-
to, o quadro de violência e desigualdade permanece o mesmo. O Brasil tem a terceira
maior população carcerária do mundo, sendo o crime de tráfico de drogas a causa mais
recorrente das prisões. Desde a nova Lei de Drogas 11.343, de 2006, o número de presos
por tráfico aumentou 339%5. Assim como no caso dos homicídios, as pessoas negras
são impactadas em proporção maior do que o restante da população: ainda que os
negros representem pouco mais de 53% da sociedade brasileira, 64% das pessoas presas
no país são negras6.
Tudo isso mostra que os impactos da “guerra às drogas” recaem sobre a sociedade de
maneira seletiva e desigual. Embora as drogas sejam ilegais para todos, prendemos e
matamos mais os jovens negros e moradores das favelas e periferias das nossas cidades.
A raiz desse problema está na própria forma como construímos nossas políticas de dro-
gas: apostando na repressão ao varejo do tráfico e na violência contra os pobres como
forma de lidar com o uso dessas substâncias.
DROGAS, POLÍTICA E SEGURANÇA PÚBLICA
A humanidade sempre usou drogas, seja para fins culturais e religiosos, para curar doen-
ças ou para sentir prazer. Somente nos últimos cem anos, decidimos que essas subs-
tâncias deveriam ser proibidas. Desde então, quase todos os países ao redor do mundo
concordaram em combater conjuntamente a produção, o comércio e o consumo das
drogas consideradas ilegais. O objetivo declarado, ainda que impossível de alcançar, era
eliminar todas drogas do planeta.
O Brasil não ficou de fora. Na verdade, fomos um dos primeiros países a proibir o uso
de uma substância psicoativa, a maconha, nos anos 1830. A motivação por trás da proi-
bição, como consta na lei, era evitar que a população negra escravizada fizesse uso da
droga7. Nas décadas seguintes, a restrição ao uso de maconha justificou uma série de
políticas de natureza repressiva contra os negros, que já eram perseguidos por outras
práticas culturais e religiosas, como o candomblé e a capoeira.
À medida que os países decidiam proibir outras substâncias psicoativas, o Brasil trilha-
va esse mesmo caminho. E assim construímos nossa política de drogas: apostando
4 Idem.
5 G1 (2015). Com Lei de Drogas, presos por tráfico passam de 31 mil para 138 mil no país. Disponível em: goo.gl/QaAMUH.
6 Departamento Penitenciário Nacional (2016). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Junho de 2016. Disponível em: goo.gl/TBfwJt.
7 Mott, L. (1986). A maconha na história do Brasil. In: Henman, A., Pessoa JR., O. (Org.). Diamba Sarabamba: coletânea de textos brasileiros sobre a maconha. São Paulo: Editora Ground.
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na repressão e na criminalização como a melhor forma de combater o uso de certas
substâncias.
Só que, depois de décadas de proibição, o consumo de drogas não diminuiu. Mais ainda,
a proibição fez emergir um mercado ilegal poderoso que, operando fora da lei, passou a
usar da violência como principal instrumento para resolver disputas pela venda dessas
substâncias. Com a justificativa de “combater o narcotráfico”, os governos passaram a
investir crescentemente em políticas repressivas, contribuindo para elevar os índices de
violência e as taxas de encarceramento. A ilegalidade do comércio de drogas também
favoreceu a corrupção dos agentes públicos e a degradação das instituições de segu-
rança. Enquanto isso, políticas de educação, prevenção e saúde para abordar o proble-
ma do uso abusivo de drogas legais e ilegais ficaram relegadas a segundo plano.
Nas grandes cidades, a “guerra às drogas” se concentrou nas favelas e periferias, lugares
identificados como “perigosos”. Pouco a pouco, a figura do “traficante”, em geral associa-
da à imagem já estigmatizada da favela, passou a representar o inimigo número um da
sociedade brasileira. E as estratégias para combater o mercado ilegal de drogas ficaram
bem conhecidas por todos: operações policiais frequentes, fazendo uso irrestrito de ar-
mamento pesado, com o objetivo de desmantelar organizações criminosas e apreender
armas e drogas.
Além de pouco contribuírem para reduzir o poder do mercado de drogas ilegais, essas
estratégias trazem graves danos colaterais. Por conta das operações policiais recorren-
tes, muitas delas resultando em confronto direto entre “policiais” e “traficantes”, aulas são
canceladas, moradores ficam com medo de sair de casa, comércios fecham as portas. E,
o que é pior: centenas de vidas, a maioria delas de jovens negros, são perdidas.
A MUDANÇA JÁ COMEÇOU... MAS PARA QUEM?
Depois de décadas de políticas repressivas fracassadas, parte da sociedade já reconhe-
ce que é preciso pensar em uma nova forma de lidar com as drogas ilegais. Políticos,
acadêmicos e ativistas no Brasil e no mundo têm trabalhado para conseguir avanços
nas políticas de drogas e para frear as consequências negativas de décadas de “guerra
às drogas”. Essa forma de lidar com as drogas trouxe mais violência, corrupção e de-
sigualdade do que se poderia imaginar. E, por conta dela, perde-se a potência de uma
geração de jovens – em sua maioria, negros – que, assassinados ou presos, acabam
virando estatística.
Mas, nesse debate, a voz da juventude das favelas continua sendo excluída. Relegada à
posição de coadjuvante, a favela só é chamada a participar, quando muito, para relatar
suas experiências de violência e de dor. Apesar de serem os mais impactados pela “guer-
ra às drogas, raramente seus moradores – sobretudo os jovens – têm sua perspectiva
levada em consideração na construção de soluções e alternativas à “guerra às drogas”.
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Por isso mesmo, a juventude das favelas precisa entrar no debate como protagonista.
Não é possível construir alternativas justas e viáveis às políticas de drogas atuais sem
discutir os impactos da guerra às drogas nas vidas dos moradores de favelas e periferias,
e sem pensar em soluções que os incluam e que lhes deem oportunidades para superar
décadas de políticas fracassadas.
DE ONDE PARTIMOS
O Movimentos nasce justamente da necessidade de pautar o debate sobre mudanças
nas políticas de drogas a partir da perspectiva dos jovens moradores de favelas e pe-
riferias. Em maio de 2016, o projeto reuniu dez jovens de diferentes favelas do Rio de
Janeiro, de São Paulo e de Salvador em uma oficina de três dias sobre política de drogas,
ocasião em que tiveram a oportunidade de debater a violência, o racismo e o estigma
relacionados à “guerra às drogas”. O grupo passou a se encontrar periodicamente nos
meses seguintes e começou a trabalhar na construção de um material que ajudasse
a conduzir esse debate dentro e a partir das favelas, fortalecendo o protagonismo da
juventude nesse tema. Assim nasceu a cartilha sobre drogas do Movimentos, uma
publicação pensada e construída pelo grupo para facilitar a discussão sobre política de
drogas nas favelas.
O TRABALHO DO MOVIMENTOS É GUIADO POR TRÊS PRINCÍPIOS:
(1) Precisamos falar do impacto da guerra às drogas no nosso cotidia-
no. No contexto da guerra às drogas, é a favela que fica com a parte da
“guerra”. Apesar de acreditarmos que a política de drogas é uma ques-
tão de saúde pública, o Estado só lida com esse tema nas favelas a partir
de políticas repressivas e violentas. Precisamos debater nossos proble-
mas e trazer a discussão sobre política de drogas para o nosso círculo
familiar, profissional, de amizades.
(2) Precisamos pensar alternativas à guerra às drogas a partir da pers-
pectiva das favelas e periferias. Não podemos mais ser excluídos desse
debate. A mudança já está em curso. Por isso mesmo, precisamos pen-
sar em uma transformação que nos inclua, em vez de nos excluir.
(3) A juventude tem que ser protagonista desse processo. Estamos mor-
rendo. Estamos perdendo amigos e oportunidades. Queremos viver
livres de estigmas, queremos pertencer à cidade por completo, que-
remos ter acesso a serviços e à cidadania. Por isso, precisamos estar à
frente dessa discussão.
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Como já dito na Introdução, a pesquisa aqui apresentada foi pensada como ferramenta
para subsidiar a construção da cartilha e as demais ações do Movimentos. Aplicada
pelo próprio grupo entre lideranças jovens de várias favelas do Rio de Janeiro e da re-
gião metropolitana, tinha como objetivo fazer um primeiro mapeamento do que pensa
essa juventude sobre a relação entre drogas, violência, estigma e racismo, e sobre as
possibilidades de mudança nas políticas de drogas atuais.
Além da construção de ferramentas para ampliar o debate sobre drogas dentro e a partir
das favelas, o Movimentos também investe no processo de formação da juventude de
favelas e periferias para que sejam capazes de influenciar as políticas de drogas a partir
de suas próprias vivências e perspectivas; e na construção de redes entre grupos, cole-
tivos e iniciativas capitaneadas por jovens de favelas interessados em mudar as políticas
de drogas atuais. Sendo assim, a pesquisa também tem como objetivo servir de apoio
para que cada vez mais jovens se sintam parte da mudança.
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2. Pistas para abrir o caminho
Conversar sobre drogas é tabu em qualquer lugar da cidade. Mas, na favela, esse
assunto ganha conotação ainda mais negativa. Drogas são associadas à violên-
cia, ao descaso do poder público, à falta de oportunidades e ao estigma que a
sociedade impõe às periferias. Falar sobre isso dentro e a partir das favelas é um duplo
desafio.
Partindo da necessidade de entender melhor quais são os entraves e os potenciais ca-
minhos para fazer essa conversa acontecer, o Movimentos planejou uma pesquisa com
jovens lideranças de favelas do Rio de Janeiro com o objetivo de responder a três ques-
tões: [1] o que esses jovens pensam sobre a “guerra às drogas”; [2] como eles conversam
sobre esse tema com amigos e familiares; e [3] que caminhos para a mudança eles
veem à frente. Foram aplicadas 30 entrevistas com lideranças de perfis variados, bus-
cando compreender diferentes localidades da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Cada entrevista consistia em 11 perguntas abertas, abarcadas em três eixos diferentes de
acordo com as questões que guiaram o planejamento da pesquisa; três perguntas extras
sobre a relação entre drogas e espiritualidade foram feitas àqueles que tinham algum
tipo de vínculo com instituições religiosas.
Dado o caráter experimental e o escopo limitado da pesquisa, não era objetivo entrevis-
tar uma amostra que representasse a opinião de todas pessoas que vivem em favelas do
Rio de Janeiro, ou mesmo das lideranças jovens de favelas. A motivação mais imediata
era fazer um primeiro mapeamento do que pensam esses jovens, de forma a auxiliar
a construção da cartilha. Por isso mesmo, os entrevistados apresentam visões menos
conservadoras e uma perspectiva crítica sobre o tema, o que não reflete o posiciona-
mento da maior parte da população brasileira quando o assunto é política de drogas.
Ainda assim, avaliamos que o perfil dos entrevistados aponta para uma possibilidade de
abrangência, uma vez que são ativistas, ou pessoas de referência em suas localidades, e
por isso construtores de narrativas com potencial de expansão. Além disso, são pessoas
que têm uma ampla compreensão dos desafios colocados para aprofundar o tema den-
tro e a partir das favelas, uma vez que estabelecem cotidianamente canais de diálogo
com um grande número de moradores.
PERFIL DOS ENTREVISTADOS
Os entrevistados, na maioria, são homens, têm 20 a 29 anos de idade, são negros e se
declaram sem religião. Foram ouvidos 19 homens (63,3%) e 11 mulheres (36,7%). A idade
média é de 26,6 anos, sendo que a maior parte dos líderes ouvidos estava na faixa de 17
a 29 anos. Apenas quatro tinham idade igual ou superior a 30 anos. Dos 30, 23 se decla-
raram negros ou pardos (76,7%); e sete se declararam brancos (23,3%).
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No que se refere à filiação religiosa, 19 (63,3% do total) declararam não ter religião. Dos
outros 11, quatro se disseram evangélicos; quatro, candomblecistas; uma, kardecista; e
dois se identificaram de forma mais abrangente como cristãos.
Em relação à localidade em que vivem, a maior parte mora em favelas da Zona Norte
(16). Em seguida, estão favelas ou periferias da Zona Oeste (4), Baixada Fluminense (3),
Zona Sul (3), Centro (2) e São Gonçalo (1). A maior parte desses locais estava, na ocasião
da pesquisa, sob o domínio de facções criminosas (25) ou, em menos escala, de milícias
(3). Dois entrevistados declararam morar em localidades que não são dominadas por
nenhum desses grupos.
IMPACTOS DA GUERRA ÀS DROGAS NO DIA A DIA
“As drogas ficam para os ricos e a guerra para os pobres”
Quando provocados a avaliar a forma como o governo lida com as drogas ilícitas, os en-
trevistados foram unânimes: o que se tem aí não está funcionando. Três pontos princi-
pais das falas merecem ser destacadas: (a) a avaliação negativa da “guerra às drogas” nas
favelas cariocas, especialmente das grandes operações policiais que causam prejuízos
incontáveis e deixam centenas mortes na cidade todos os anos; (b) o reconhecimento
de que as políticas de drogas são seletivas e impactam de maneira desigual as diferentes
regiões da cidade; e (c) o entendimento de que as ações governamentais não priorizam
políticas de saúde eficientes para lidar com o uso problemático de drogas.
Entre os entrevistados, há a sensação geral de que a repressão não é uma forma de ver-
dadeiramente lidar com as drogas. Segundo eles, não há esforço por parte dos governos
para se discutir a questão com seriedade ou abordar o “real problema”. Outra versão do
mesmo argumento é de que o governo só trata a questão das drogas ilícitas pela via da
violência, nunca pela via da saúde. Há, nesse caso, preocupação especial, por parte dos
jovens ouvidos, com a ausência de serviços públicos para tratar o uso problemático de
drogas. Essa visão reflete a ausência de políticas públicas na ponta, uma realidade com
a qual os moradores de favelas e periferias das cidades brasileiras estão familiarizados.
Uma das entrevistadas esclarece, “o Estado só está presente [na favela] pela ausência”.
Relaciona-se a isso a ideia de que o Estado só se faz presente nas favelas por meio da
polícia, da violência e da repressão.
“Lidar é uma palavra muito delicada, porque quando a gente está lidando
com alguma coisa, a gente está resolvendo com coerência certo assunto.
Agora, quando a gente impõe um combate, pra mim não é uma forma de
lidar, é uma forma de reprimir, controlar, estabelecer... mas não de lidar”.
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Grande parte dos entrevistados comentou o caráter seletivo e desigual das atuais po-
líticas sobre drogas, desenhadas, segundo alguns, para proteger apenas as partes mais
privilegiadas da cidade. A violência é vista como o único instrumento através do qual
o Estado lida com as drogas, direcionada quase que exclusivamente às periferias e à
população negra e pobre. Ou seja: não apenas a política atual não é para todos e não
alcança a todos, como ela impacta negativamente a favela, que fica com a maior parte
dos prejuízos (materiais e imateriais) causados pela “guerra”.
Associada a isso está a ideia de que o governo combate as drogas no lugar errado. Um
grande número de entrevistados reforçou que não há esforços para combater os crimes
de colarinho branco que sustentam o mercado ilícito internacional, como é o caso da
lavagem de dinheiro, ou para frear o comércio de armas que alimenta o poder bélico
dos grupos armados. Os esforços são direcionados apenas ao varejo de drogas nas fa-
velas, onde estão os “peixes pequenos”. Para uma entrevistada, na raiz desse problema
está o racismo e a criminalização da pobreza, que usa a “guerra às drogas” como justifi-
cativa para exterminar a população negra e pobre das periferias. E acrescenta, “não tem
traficante na favela, tem varejista. O traficante está no governo, na zona sul, fora do país”.
“A favela não é violenta, ela é violentada”
Todos os jovens ouvidos afirmaram que há uma relação entre drogas e violência. Mas a
maioria reconheceu que grande parte da violência é fruto, na verdade, da criminaliza-
ção. Há uma percepção geral, entre os entrevistados, de que a violência está atrelada ao
contexto de ilegalidade em que o mercado de drogas funciona, e não tão diretamente
ao uso de drogas em si. Nesse sentido, argumentam que a proibição incentiva o uso
de armas por parte das organizações criminosas, além de fazer com que o Estado trate
a questão das drogas, prioritariamente, através do combate militarizado. Além disso,
alguns salientaram, mais uma vez, que a relação entre drogas e violência acontece de
forma desigual na cidade: no asfalto, as políticas de combate às drogas não são tão
violentas como nas favelas.
“É uma lógica muito perversa, porque eles sabem que esse não é o proble-
ma, os policiais sabem disso. Só que estão ali cumprindo ordens de superio-
res que às vezes a gente nem conhece”.
Um número significativo de entrevistados defendeu, ainda, que a relação entre drogas
e violência é construída pelo próprio Estado e pela sociedade como forma de crimina-
lizar as favelas e seus moradores. Alguns afirmaram que os estereótipos relacionados
ao jovem negro violento, muitas vezes envolvidos no tráfico de drogas e em outras ati-
vidades ilícitas, é fomentado pela mídia e alimenta a agressividade com que as polícias
entram nas periferias. Uma vez mais, eles salientaram a ausência de políticas públicas
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na favela que sejam pautadas por outras lógicas que não a da violência, a do combate
e a do controle.
“O combate [às drogas] é com tanque de guerra, caveirão, fuzil. O comba-
te não é dando nenhum tipo de assistência”.
“Os impactos são vários. As chacinas, a quantidade de mortes na favela
é absurda. É um monte de dinheiro gasto com isso, e isso só traz morte
pra favela. E, pior, né, um monte de gente fica identificado como criminoso.
Parece que não há problemas, aos olhos dos outros, com o que acontece nas
favelas”.
Um número menor de entrevistados abordou a relação entre violência e uso de drogas.
Em geral, a percepção é de que o uso problemático de drogas pode gerar violência em
algum momento, independentemente de a substância consumida ser legal ou ilegal.
Nesses casos, argumentaram, o Estado pouco faz para prover atendimento, e menos
ainda para prevenir que o consumo de drogas se torne um problema. Houve, ainda,
aqueles que afirmaram que o descaso dos governos em relação a políticas públicas para
tratar essa questão é um tipo de violência ainda mais grave do que aquela supostamen-
te derivada do uso de drogas.
“A gente perde a infância, principalmente a infância”
Quando a pergunta foi sobre os impactos das políticas de drogas na vida dos mora-
dores de favelas e periferias, houve dois entendimentos predominantes: [1] de que os
impactos são majoritariamente negativos; e [2] de que a favela é impactada de forma
diferente e desigual em relação às partes mais privilegiadas da cidade.
O efeito mais mencionado pelos entrevistados é a violência. Esta, segundo a maioria,
tem origem, especialmente, na forma truculenta com que o Estado decide agir sobre
as favelas em nome do combate ao tráfico de drogas. Um dos líderes salientou que a
juventude das favelas é especialmente impactada pela violência – seja porque os en-
volvidos com o comércio ilícito de drogas são majoritariamente jovens, seja porque o
estereótipo de criminoso e traficante recai, sobretudo, sobre a juventude negra.
O entendimento sobre violência é amplo: para os entrevistados, inclui a perda de vidas
causada por tiroteios, chacinas e execuções; o aumento da criminalização e do estigma
sobre os moradores; a sistemática violação de direitos básicos; os efeitos psicológicos
da insegurança (especialmente, o medo constante de sofrer algum tipo de violência),
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e, por fim, os impactos na construção e na valorização da própria identidade – sobre-
tudo a identidade negra e favelada, criminalizada pelas mesmas políticas militarizadas
de combate e controle. São, por isso, impactos “incalculáveis”, nas palavras de um dos
jovens ouvidos pela pesquisa.
“A legalização diminui a violência, mas não resolve o problema da favela”
As interpretações sobre a relação entre a proibição das drogas e a violência nas favelas
foram variadas. Em geral, a maioria dos entrevistados apontou uma associação direta
entre o fato de as drogas serem ilegais e o de haver tanta violência envolvida nesse mer-
cado. Para alguns, a proibição gera o tráfico e o mercado ilícito, que nascem, justamen-
te, da ausência de controle e regulação do Estado sobre o comércio dessas substâncias.
Para outros, a proibição é usada como justificativa para criminalizar e exercer controle
sobre uma parcela da população, negra e moradora das favelas e periferias. Um dos
entrevistados insistiu, ainda, que o combate militarizado ao comércio de drogas ilícitas
é estratégia falha, de enxugar gelo, uma vez que “se mata um, mas nasce um monte”.
“Se eu proíbo alguma coisa, eu tenho a desculpa de fazer o que bem en-
tendo com a minha força, o governo ou a polícia. Se eu proíbo de uma ma-
neira em que as coisas não ficam claras, são simplesmente tachadas e joga-
das ao vento, eu posso agir de qualquer maneira. Vir, destruir e fazer esse
monte de coisas que a polícia faz nas favelas”.
Naturalmente, quando perguntados sobre a relação entre proibição e violência, mui-
tos entrevistados se sentiram estimulados a debater as possibilidades de legalização
do mercado de drogas hoje ilegais. Sobre isso, as opiniões foram tão diversas quanto
esclarecedoras. Muitos afirmaram que a legalização do mercado de drogas levaria a
uma diminuição no número de confrontos entre a polícia e os grupos armados, o que
traria benefícios por si só para as favelas. No entanto, parte significativa entende que a
discussão sobre a legalização é muito mais complexa do que é normalmente abordado.
Alguns entrevistados afirmaram que a legalização, por si só, não resolveria os problemas
da violência. Nesse caso, a percepção geral é de que a violência está relacionada a ou-
tros fatores que não apenas a ilicitude do mercado de drogas: o racismo institucional, a
falta de políticas públicas de qualidade, o descaso dos governos em relação aos espaços
periféricos das cidades.
M O V I M E N T O S : D R O G A S , J U V E N T U D E E F A V E L A 16
“Bom, é proibido pra quem? Os playboys usam e nada acontece, né? Só na
favela que acontece repressão. Só usuário que aparenta ser de favela que é
esculachado, revistado, passa por humilhação no meio da rua. De uma for-
ma geral, isso gera perseguição ao povo pobre, de favela e, principalmente,
aos pretos”.
“Eu acho que vai diminuir a violência em alguns espaços, pra quem tem
dinheiro, pra fazer o consumo de droga. Vai ser muito mais fácil você con-
sumir, e você não vai estar colocando sua vida em risco, indo num lugar em
que tem um conflito entre polícia e traficante. Mas pra quem não tem di-
nheiro, seja o traficante, o policial ou o usuário, essas pessoas vão continuar
passando por problemas de violência. Eu não acho que o debate de drogas
e violência é um debate de legalização. É um debate sobre o lugar em que
você mora, é um problema de desigualdade econômica”.
Outros entrevistados afirmaram que o Brasil não está preparado para uma eventual
legalização do mercado de todas as drogas, mas que discutir alternativas às políticas
atuais é, ainda assim, necessário. Além disso, uma parcela insistiu que a legalização não
é capaz de resolver o problema dos jovens que, hoje, ganham seu sustento trabalhando
para o mercado ilegal de drogas. O que fazer com essa juventude, como garantir que
tenham acesso à renda e a direitos básicos mesmo em um cenário de legalização e
regulação total do mercado de drogas, mostrou-se preocupação frequente entre eles.
Por fim, a percepção sobre as desigualdades no tratamento à questão, dependendo do
lugar da cidade em que se está, atravessa grande parte das respostas. Não apenas se
entende que os impactos da guerra às drogas são sentidos de maneira diferente e de-
sigual pelos moradores de favelas e periferias – e, em específico, pela juventude negra
–, como também se avalia que uma eventual legalização do mercado de drogas traria
benefícios apenas para uma parcela da população. Há o receio generalizado de que um
futuro de mudanças, em que a proibição seria substituída por estratégias de regulação
da produção, do comércio e do consumo dessas substâncias, não apenas não beneficie
a população negra e pobre, como traga consigo mais exclusão e marginalização.
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CONVERSAR SOBRE DROGAS É TABU
“Dentro de casa, sou provocador”
Conversar sobre drogas com a família é tabu inquebrantável para boa parte dos en-
trevistados. Muitos comentaram sobre as dificuldades de se falar sobre drogas com os
familiares, em grande parte porque a família se mostra conservadora e religiosa. Nesses
casos, quando se aborda o tema das drogas, é para dizer que é errado ou para aler-
tar sobre riscos e perigos. No entanto, muitos entrevistados também afirmaram que
as conversas dentro da família, ainda que cercadas de preconceitos, são geralmente
associadas a uma prática de orientação e de cuidado, como forma de suprir a ausên-
cia de iniciativas desse tipo em âmbito governamental, especialmente nas famílias que
convivem com casos de uso problemático de drogas legais e ilegais, e que se sentem
desamparadas pelo Estado quando procuram ajuda.
Muitos entrevistados atribuíram a dificuldade de se falar sobre drogas com a família à
relação historicamente construída entre drogas e violência nas favelas. Nesse sentido,
tomando emprestadas as palavras de um entrevistado, não conversar é uma forma “de
proteção, de defesa”. Para muitos deles, a violência gerada pela guerra às drogas contri-
bui, nas favelas, para que as pessoas não queiram falar sobre o assunto, tão associado à
morte e à prisão de amigos, vizinhos e parentes. Sobrevivem, assim como no asfalto, os
estereótipos que relacionam as drogas à figura do “traficante”. Envolver-se com drogas,
portanto, é prática perigosa da qual as famílias procuram proteger seus filhos e filhas.
“Venho de uma família pobre e favelada. Meu avô nasceu na década de 40
e minha vó, em 50. Se hoje já é perigoso ser pobre e favelado, naquela épo-
ca, então... você deveria ficar fora daquilo. Simplesmente isso: não falar, não
tocar e muito menos usar drogas. Você não podia andar nem sem carteira de
trabalho, imagina se fosse pego com um ‘baseadinho’”.
Curiosamente, para outros entrevistados, o tabu que cerca as drogas faz com que re-
conheçam a necessidade de iniciar a discussão dentro do círculo familiar sempre que
há brecha. Os que conversam abertamente com a família sobre o tema fazem-no ge-
ralmente para desnaturalizar convicções conservadoras, desconstruir preconceitos e
criar canais de diálogo sobre as mudanças necessárias, havendo preocupação em ser
didáticos e tolerantes, e em investir em processos de diálogo de longo prazo. Para esses
entrevistados, a forma como normalmente se conduz o debate sobre política de drogas
não é inclusiva e cria muita resistência. Há uma crítica aos termos em torno dos quais
esse debate se dá fora das favelas, concentrando-se em questões como liberdades indi-
viduais e necessidade de descriminalização do consumo, em detrimento da discussão
M O V I M E N T O S : D R O G A S , J U V E N T U D E E F A V E L A 18
fundamental sobre os impactos da guerra às drogas (e também de uma eventual legali-
zação e regulação do mercado) nas favelas e periferias.
“O debate é sempre reduzido à questão do consumo, que não vai gerar lu-
cros para o favelado mais uma vez. Então não adianta nada, porque a gente
continua falando da manutenção de um sistema que nos oprime”.
A maioria dos entrevistados também reconheceu que há diferença significativa na for-
ma como conversam sobre drogas com a família e com amigos. Para muitos deles, essa
é uma questão geracional: “são outros tempos”, disse um deles; “esse é um debate de
geração”, afirmou outro. Em geral, entendem que, entre os amigos, muitos deles tam-
bém envolvidos com ativismo e participação política, há mais abertura para discutir os
efeitos nocivos das atuais políticas sobre drogas. No entanto, salientam que a discussão
toma rumos diferentes dependendo de com quem estão conversando: com os amigos
“playboys”, o debate se concentra na proibição; com os que também moram em favelas,
a conversa gira em torno da violência que sofrem em nome da guerra às drogas.
“Com os amigos, a discussão é mais aberta. A maioria é jovem que usa,
tanto os da favela quanto os de fora. Só que os da favela são revoltados com
as mortes e com a proibição. Já os playboys, só com a proibição”.
“O ‘drogado’ é descontrolado, o traficante é o homem mau e o policial é o herói”
A maioria dos entrevistados afirmou que a família faz uma relação direta entre drogas
e violência. Em geral, essa relação é apresentada de três formas: [1] o efeito das drogas
tornaria as pessoas mais violentas; [2] o uso de drogas induziria as pessoas a cometer
crimes; e [3] as drogas são a causa da violência associada ao tráfico de drogas. Alguns
atribuíram esse fato aos estereótipos e preconceitos largamente difundidos por progra-
mas de televisão ou pela opinião pública em geral, salientando que muitos familiares
compram a “versão oficial”. Haveria influência, também, das experiências cotidianas de
violência, associada diretamente ao tráfico de drogas ou ao uso problemático de drogas
legais e ilegais. Nesses casos, a violência gerada pelas operações militares seria justifica-
da pela necessidade de combater um mal maior. Para um dos entrevistados, a maioria
de seus familiares “não junta uma coisa com a outra”, isto é, não estabelece relação
entre a violência que experimenta no dia a dia e a forma equivocada com que se faz o
combate às drogas ilícitas.
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Em menor proporção, a relação direta entre uso de drogas e violência foi estabelecida
pelos próprios entrevistados. Alguns fizeram diferenciação entre o tipo de substância
consumida – especificamente, entre a maconha, considerada droga mais “leve”, e o
crack, visto como mais perigoso –, enquanto outros comentaram os impactos de expe-
riências pessoais de violência na formação de suas opiniões sobre o tema. Ainda assim,
a grande maioria dos entrevistados voltou a afirmar que a violência é originária, princi-
palmente, da forma como o Estado escolhe combater o tráfico de drogas, sem respeitar
a vida e os direitos dos moradores das favelas.
“É o mesmo pensamento que eu tenho, um acompanha o outro, fui criado
dessa forma. E, como eu perdi alguns amigos na vida por causa de droga, a
gente acaba associando violência com droga. Meus amigos pensam a mes-
ma coisa”.
Em relação aos amigos, as respostas foram diversas e, em muitos casos, contraditórias
com o que já havia sido declarado anteriormente. Como se viu, quando perguntados
sobre o tratamento do tema por familiares e por amigos, os entrevistados apontaram
diferença significativa entre a posição conservadora da família e a atitude questionado-
ra dos amigos. Mas, no tocante à relação entre drogas e violência, essa divergência se
mostrou menos óbvia e marcada. Muitos citaram posicionamentos conservadores por
parte de amigos e colegas, especialmente nas interações pela internet. Outros salien-
taram que não há muita clareza entre amigos e familiares em relação ao tema, o que
dificultaria uma resposta objetiva à questão colocada. Um dos jovens disse, ainda, que
seus amigos do “asfalto” enxergam a legalização e a regulação do mercado das drogas
como uma solução para violência a ele associada, posição que o entrevistado conside-
rou ingênua.
Nesse quadro, algumas vozes dissonantes merecem destaque. Uma das entrevistadas
afirmou reiteradamente que seus familiares e amigos, e os moradores de favelas e pe-
riferias em geral, têm, sim, um olhar crítico sobre a relação entre política de drogas e
violência, porque vivem diariamente seus impactos. Em suas palavras, “o povo sabe da
sua realidade”. Outro entrevistado relatou que seus familiares são abertos à discussão
e críticos à forma como se faz o combate às drogas nas favelas justamente porque ele
se dedica a abordar esse assunto em casa sempre que possível. Em ambos os casos, a
opinião dos entrevistados se distancia do que declararam as outras lideranças ouvidas,
que insistiram que os moradores das favelas têm, no geral, opiniões conservadoras e
pouco críticas sobre o tema.
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“Na favela é vacilo, fim da vida; já no asfalto é normal, é escolha”
A grande maioria dos entrevistados disse encarar o uso de drogas, sejam elas legais ou
ilegais, como algo normal. Em geral, associam os principais problemas normalmente
relacionados às “drogas” à forma como os governos lidam com a questão, através do
combate e do enfrentamento. Ao mesmo tempo, reconhecem que o uso de drogas
é mal visto dentro das favelas, porque é associado à criminalização e à violência. Nas
palavras de um dos entrevistados, o uso de drogas na favela é cercado de “moralismo”.
Um dos entrevistados disse acreditar que há menos consumo de drogas nas favelas em
relação ao restante da cidade, porque os moradores têm outra percepção sobre drogas,
menos associada ao prazer e mais associada ao crime e à miséria.
“Posso dizer que meus familiares mudaram, têm um novo pensamento.
As drogas não são mais vistas como sendo o maior motivo para a violência.
Temos uma boa conversa e acho que é mais como essas drogas estão en-
trando no país e, consequentemente, os vários tipos de violência que vêm
nessa cadeia”.
“Qual é o problema, na real? O problema é o governo não saber lidar com
isso. É algo que tá aí, não vai mudar. O consumo não vai parar com a polícia
entrando, matando preto e favelado, matando usuário. Acho que o uso é
normal, como em qualquer lugar, as pessoas usam drogas. Algumas pessoas
passam do limite e não têm auxílio da família pra sair dessa. Não têm dinhei-
ro. O governo deveria ajudar essas pessoas, é o mínimo, sabe?”.
“Eu vejo pouca gente da favela usando, existe um moralismo de não usar.
Talvez seja porque a pessoa convive com a violência por causa dessa venda,
por causa da proibição. É um tema tabu na favela, apesar de ser bem próxi-
mo, de vermos isso diariamente”.
Já para aqueles que têm problemas familiares ou no círculo social relacionados ao uso
de drogas, o consumo é visto com menos naturalidade. Nesses casos, os entrevistados
reforçaram que o uso de drogas deve ser encarado como problema de saúde pública,
mas salientaram a ausência de serviços públicos para tratar a questão. Resta, então,
aconselhar e “torcer para não acontecer nada de ruim”. Muitos entrevistados também
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comentaram sobre a necessidade de criar espaços francos de discussão sobre drogas
nas favelas – em parte, para quebrar estereótipos através dos quais seus moradores
veem o consumo, mas também para oferecer informações de qualidade sobre o tema,
prevenir e educar. Para uma das entrevistadas, “o problema não está na droga, nem no
uso dessa droga. O problema está na falta de informação”.
“A gente não discute sobre isso, vira tabu, né? Se eu tenho um conhecido
ou um parente meu que tem problema com drogas, a primeira coisa que eu
faço é esconder ele, pra que aquele problema não seja visto. Eu acho que
deveria ser o contrário, nós deveríamos discutir pra ter menos problemas
com as drogas”.
Outro tema recorrente é a desigualdade com que o uso de drogas é encarado dentro
e fora das favelas. Nas palavras de um dos entrevistados, “todos os usuários são iguais,
mas só na favela ele é estigmatizado de forma ruim”. Essa disparidade se reflete na di-
ferença de tratamento que usuários da favela e do asfalto recebem, especialmente da
polícia. Em outras palavras, “a dura que o favelado leva, o ‘playboy’ não leva”. Segundo
os entrevistados, as desigualdades também se manifestam de duas outras formas: [1]
no acesso a informações sobre drogas, pouco disponíveis para os moradores de favelas
em comparação ao restante da cidade; e [2] nas motivações por trás do uso de drogas,
se para obter prazer (no caso dos moradores mais privilegiados da cidade) ou se para
obter refúgio da vida difícil (no caso da população pobre e moradora das periferias). Em
ambos os casos, o uso problemático de drogas é visto como resultado de desigualdades
estruturais que se manifestam no espaço urbano.
“Eu vejo o uso de drogas, no nível geral, como uma fuga da realidade, que
é grossa pra gente. A gente, como preto, favelado... é uma fuga para outros
sentimentos. Sentimentos bons. Se você encarar de uma forma lúcida, é de
enlouquecer”.
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DESAFIOS E POSSIBILIDADES: A MUDANÇA COMEÇA NAS FAVELAS
“A visão do asfalto nunca vai contemplar nossos assuntos”
A maior parte dos entrevistados avaliou que a principal dificuldade de discutir drogas
dentro das favelas é o tabu que rodeia o tema. Fatores citados por eles que contri-
buem para isso incluem a predominância da lógica do combate às drogas nas favelas;
a presença constante da violência, que ofusca outras formas de pensar o assunto; os
estigmas relacionados ao uso do crack; o moralismo pautado por questões religiosas;
os estereótipos e preconceitos propagados pela mídia de massa; e o medo de discutir
abertamente um tema que traz tanto sofrimento. Como desafios, foram mencionadas
a pluralidade e heterogeneidade de opiniões sobre drogas dentro da favela; a falta de
trabalho de base de partidos e organizações progressistas, e a necessidade de discutir o
tema com os jovens envolvidos no mercado ilícito.
Em geral, os entrevistados entenderam que o principal desafio à discussão sobre política
de drogas dentro das favelas é a falta de informação. Isso se dá pela difusão de informa-
ções equivocadas e meias-verdades, propagadas pelas mídias e absorvidas pela opinião
pública de forma geral, mas também porque faltam iniciativas de conscientização sobre
o tema nas favelas. Alguns entrevistados falaram abertamente que debater drogas a par-
tir da “visão do asfalto”, além de ineficiente, é contraproducente – seria preciso ir além
do discurso da legalização, por exemplo, e discutir problemas maiores relacionados à
realidade das favelas.
“Uma coisa que a gente tem que colocar em pauta é que diferença que a
legalização vai fazer na vida de quem tem dinheiro e que diferença vai fazer
na vida do menino que tá na favela”.
Antecipando o que seria a pergunta seguinte, alguns entrevistados abordaram, tam-
bém, possíveis caminhos a seguir. Em comum, todas as opiniões apontaram para a
necessidade de criar novas fontes de informação, para e a partir da favela, que levem
em conta as perspectivas e a realidade dos próprios moradores. Nas palavras de uma
das entrevistadas, “é preciso saber a verdadeira demanda da população de favela”. Nesse
sentido, seria preciso ouvir atentamente o que as favelas pensam sobre isso, para então
construir estratégias de sensibilização que abram para a discussão. Dialogar, em vez de
“catequizar”.
M O V I M E N T O S : D R O G A S , J U V E N T U D E E F A V E L A 23
“As pessoas que moram na favela têm que poder dizer o que vai acontecer”
Quando perguntados sobre qual seria uma boa estratégia para conversar com as pes-
soas sobre política de drogas, a maior parte dos entrevistados sinalizou para a necessi-
dade de se criar espaços e oportunidades de difusão de informação dentro das favelas.
Esse dado está de acordo com o que a maioria dos jovens ouvidos pensa das dificul-
dades de se tratar o tema de drogas nessas áreas: faltam informações de qualidade que
cheguem à ponta, passadas por lideranças do próprio território a partir de uma narrativa
que contemple os moradores. Entre as muitas estratégias citadas, destacam-se o for-
talecimento da comunicação comunitária, “de rua”; a promoção de eventos culturais
abertos sobre o tema a que todos os moradores podem ter acesso, e a capacitação de
ONGs, projetos sociais e organizações comunitárias para que possam ser multiplicado-
ras de informações sobre drogas. Para um dos entrevistados, “isso tem que ser discutido
entre nós mesmos”.
“Uma boa estratégia seria a conversa, mesmo. Porque na favela as pessoas
estão em contato o tempo todo, sempre se falam. Através da conversa, do
boca-a-boca mesmo, seria uma boa estratégia. Procurar as lideranças, in-
clusive religiosas. Procurar, de alguma forma, estar presente”.
“Pra falar da favela tem que ser da favela. Pode ser gente de fora, pesqui-
sador e tal, mas se ele não tiver linguagem da favela, a comunicação não
vai chegar. Eu acredito que comunicação é a solução, é saber chegar, é ser
maker de favela, é saber falar e mandar o papo reto”.
Outra preocupação expressa pelos entrevistados diz respeito a como comunicar com
as favelas. Foi citada a importância de se conversar abertamente, “olho no olho”, de for-
ma próxima e natural, trazendo informações que falem sobre o cotidiano das pessoas.
Alguns entrevistados também ressaltaram a importância de se pensar estratégias de
comunicação que alcancem usuários e vendedores. Entre os temas prioritários a serem
abordados, foram citados (a) informações sobre os efeitos e consequências de cada
droga; (b) pontos negativos das políticas atuais e alternativas possíveis; e (c) serviços
existentes para lidar com o uso de drogas a que a população pode ter acesso. Por fim,
muitos salientaram que, no processo de construir canais de comunicação, uma escuta
atenta é importante. Nas palavras de um dos entrevistados, “acho que a melhor forma
para fazer esse tipo de debate é ouvir, sem menosprezar”.
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Para a maioria dos entrevistados, a juventude tem papel de protagonista nesse proces-
so. Ainda que esse dado não tenha surgido nas entrevistas de forma objetiva, grande
parte dos entrevistados citou a importância de começar o debate pelas escolas. Nesse
caso, a estratégia é competir com a ‘narrativa oficial’ sobre drogas que já é propagada
por essas instituições e que atinge, sobretudo, os jovens. Para um dos entrevistados,
seria preciso sair do espaço da academia, “dos seminários”, e começar a trabalhar na
base, nas escolas, onde, de fato, é possível atingir outro público para além das mesmas
pessoas e das mesmas mídias que tradicionalmente já tratam o tema. Oferecer informa-
ções de qualidade sobre o tema, tirar dúvidas e estabelecer uma conversa franca e sem
tabus são algumas das estratégias mencionadas pelos entrevistados.
“Antes mesmo de achar uma estratégia de se conversar tem que existir
uma autorreflexão. O que a gente quer conversar? Como vamos passar essa
mensagem? E, o mais importante, o que a pessoa pode ensinar à gente e
como o processo de troca de ideias pode se modificar a partir do momento
em que aquela pessoa que a gente não ouviu até hoje der a opinião dela
sobre isso?”.
“Não adianta colocar um cartaz ‘não use drogas’, colocar a imagem da-
quele menino magrinho, todo ferrado. Aí a pessoa fuma, usa, cheira, bebe
e está lá, com o emprego dela, tranquila. Ela tenta se identificar, mas não
consegue e continua usando. Por isso as campanhas também têm que ser de
educação, de troca, que ouça as pessoas, que convoque o povo”.
Por fim, em menor escala, os entrevistados citaram a importância de trabalhar a co-
municação junto a instituições de saúde que atuam nos territórios, de forma a resolver
duas deficiências nessa área que atingem, sobretudo, as favelas: a falta de informação
de qualidade, esvaziada de preconceitos, sobre drogas; e a carência de informações
sobre os serviços de saúde e cuidado disponíveis para os usuários de drogas.
“É o jovem de favela que mais sofre, é o jovem que tá na rua”
A maior parte das lideranças ouvidas pela pesquisa entende que a juventude das favelas
tem um papel crucial nessa discussão. Nas palavras de uma das entrevistadas, “a juven-
tude deve ser protagonista, porque é ela que sofre com essa política de drogas”. Para
muitos entrevistados, os jovens são os principais atingidos pela violência e pelo estigma
gerados pela “guerra às drogas”. Também são eles que estão no front, envolvidos no
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mercado ilegal, e desamparados por serviços públicos deficientes, que não garantem
educação de qualidade nem outras redes de apoio. Nesse sentido, envolver a juventude
nesse tema é garantir que ela tenha acesso à informação e a mais oportunidades.
“Essa guerra às drogas na verdade é uma guerra aos pobres, e os que mais
sofrem são os jovens pretos de favela. Então eles têm que ser os protagonis-
tas dessa discussão e também precisam ser os responsáveis por criar esse
canal de conversa, pra pensar nas estratégias”.
Entre os atributos que tornam a juventude peça-chave no debate sobre drogas, os en-
trevistados citaram a capacidade de mobilização, de “estar na rua, conectada, em vários
grupos”; força e fôlego para levar a discussão para diferentes espaços; maior liberda-
de para tratar sobre temas difíceis, que são tabu para outras gerações; e abertura para
falar sobre mudanças a para abraçar a novidade. Um dos entrevistados destacou que
a juventude das favelas já está em movimento, criando novos espaços de ativismo,
construindo canais inovadores de comunicação para dentro e para fora das favelas, o
que torna ainda mais importante trazê-la para o centro da discussão sobre drogas. Em
geral, as opiniões foram otimistas e em consonância com o que já havia sido afirmado
por eles anteriormente: que a juventude é mais aberta para receber novas informações
e deve ser protagonista na construção de soluções para os problemas que a atingem.
“Os jovens são o futuro, os que vão distribuir conhecimento. E dentro da
favela tem muito esse aspecto, por ser de matriz negra, africana, a gente
tem muito o aspecto da ancestralidade, de passar o conhecimento oralmen-
te ao próximo. Quando a juventude começa a discutir, trazer esse debate
sobre drogas, a gente vai ter uma forma diferente de ver. Uma forma menos
violenta de organização”.
“São anos de revolução pra se conseguir alguma coisa, a gente que é ne-
gra e pobre sabe disso. O papel do jovem é esse, de fomentar e deixar isso
vivo, não deixar as pessoas esquecerem”.
Apenas dois entrevistados fizeram ressalvas importantes em relação a esse posiciona-
mento. Para um deles, é preciso ter cautela ao se jogar todo o peso da mudança na
juventude. Em sua opinião, apesar de potentes, os jovens precisam ser acompanhados e
orientados por gerações mais antigas e que têm mais maturidade política. Para o outro,
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é preciso ter em mente que não existe uma única “juventude de favelas”, mas uma plu-
ralidade de juventudes, com identidades, interesses e posicionamentos diferentes, e que
todas elas precisam ser incluídas no debate.
“Não é uma guerra contra as drogas, é uma guerra contra os pobres”
A última pergunta do questionário geral, aplicado a todos os entrevistados, indagava
sobre o que o termo “guerra às drogas” significava para eles. Em relação a isso, a maio-
ria dos entrevistados afirmou que a “guerra às drogas” é, na verdade, uma guerra aos
pobres, aos negros e aos favelados. Alguns classificaram o termo como “mentiroso” e
“falso”, enquanto outros salientaram que ele não contempla o que realmente acontece
nas favelas. Esse dado mostra que o termo “guerra às drogas” traz consigo limites em sua
aplicação: apesar de os entrevistados associarem a chamada “guerra às drogas” à violên-
cia, ao estigma e ao racismo, eles preferem usar outras expressões, como “genocídio” e
“extermínio”, para dar conta da realidade em que vivem.
“Pra mim, não é uma guerra contra as drogas. É uma guerra contra os
pobres, pretos, contra os favelados. E é uma guerra que usa as drogas como
desculpa para matar as pessoas”.
“Existe uma guerra, eu vejo, eu vivo há mais de 30 anos. Uma guerra de
mais de 30 anos? Como assim? Tem alguma coisa errada, alguém falhou”.
Ainda assim, os entrevistados se mostraram críticos em relação à estratégia de “guerra
às drogas”. Muitos afirmaram que pautar as políticas sobre drogas pela lógica da “guerra”
é estratégia irresponsável, que não apenas não resolve os reais problemas das favelas,
como traz mais violência e sofrimento. Nesse caso, identifica-se como problema a pró-
pria militarização das políticas de drogas, que cria a lógica de “inimigos” a serem com-
batidos, geralmente associados às favelas e demais espaços periféricos das cidades. Por
fim, alguns entrevistados salientaram que há uma desigualdade inerente à estratégia da
“guerra às drogas”: a guerra só acontece nas favelas, que sofrem com tiroteios e mortes
em nome do combate às drogas ilegais e da proteção às outras partes da cidade.
“Guerra às drogas significa que o Estado está combatendo a ponta, não
todo o resto.
Se o Estado tá declarando guerra às drogas, ele tá declarando guerra à pró-
pria comunidade”.
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DROGAS E ESPIRITUALIDADE
Para aqueles entrevistados que têm ou já tiveram algum tipo de vinculo com religiões,
foram feitas perguntas adicionais sobre a relação entre drogas e espiritualidade. No to-
tal, 15 entrevistados responderam a três questões sobre o tema: (a) como a sua religião
trata a questão das drogas; (b) como as religiões lidam com drogas dentro da favela; e
(c) qual deveria ser o papel da religião/espiritualidade nesse tema. As religiões contem-
pladas foram evangélica/protestante, católica, candomblé e kardecismo.
Os entrevistados abordaram tanto os limites quanto os potenciais das diferentes reli-
giões em tratar da questão das drogas. Quando perguntados sobre como as religiões
lidam com o tema, a maior parte reforçou que o entendimento das religiões sobre o
uso de drogas é carregado de preconceitos. Segundo os entrevistados, o uso de drogas
é visto em geral como um problema, um erro ou um “pecado” do qual as pessoas pre-
cisam ser “salvas”. Eles avaliam que esse posicionamento dificulta as possibilidades de
diálogo e afasta aqueles que fazem uso de drogas da espiritualidade.
Por outro lado, reconhecem que as religiões desempenham importantes funções so-
ciais dentro das favelas, muitas vezes ocupando espaços vazios deixados pelo poder
público, especialmente no que se refere à oferta de tratamento e de cuidado. Também
salientam o papel das igrejas e das demais instituições religiosas como lugares de escu-
ta e de amparo. Segundo os líderes ouvidos, a força das religiões dentro das favelas vem,
ainda, de sua capacidade de mobilização coletiva, especialmente no caso das igrejas
evangélicas e católicas. Nas palavras de uma das entrevistadas, “a igreja é o lugar que
mais dissemina informação dentro da favela”. As igrejas fariam o “trabalho de base” que
organizações políticas não seriam capazes de fazer.
“Às vezes um agente social não consegue abraçar uma pessoa da forma
que a igreja abraça. Na verdade, o trabalho que muitas igrejas, ONGs, cole-
tivos, projetos sociais fazem é o que o governo deveria tá fazendo”.
Sendo assim, a maioria dos entrevistados identifica ser necessário que as religiões de-
senvolvam um outro olhar sobre drogas. Muitos afirmaram que deve ser papel das igre-
jas e dos demais espaços religiosos cuidar, acolher e proteger as pessoas que fazem
uso de drogas, sejam elas legais ou ilegais. Outros salientaram que os ensinamentos
religiosos, de modo geral, já refletem valores como respeito, solidariedade e amor ao
próximo, e que seria preciso mais diálogo e conversa com as instituições religiosas para
que pudessem reconstruir seus entendimentos sobre drogas para além dos preconcei-
tos e dos estigmas usuais. Um dos entrevistados afirmou, explicitamente, que as reli-
giões deveriam desempenhar um papel mais político dentro das favelas, de denúncia
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às violações de direitos cometidas em nome das políticas de segurança. De uma forma
geral, as respostas dos entrevistados deixaram claro que a relação entre drogas e espiri-
tualidade é um tema do qual não se pode – e não se deve – fugir.
“Deveria ser um debate franco, de acolher e conscientizar, mas também
de pressionar o governo pra ter uma outra forma de atuação nas favelas em
relação às políticas de segurança e a à política de guerra às drogas”.
“A igreja precisa identificar aqueles que realmente precisam de ajuda e
tratar com paciência e carinho”.
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Considerações Finais
A presente pesquisa é uma primeira tentativa do Movimentos de mapear o que
as lideranças jovens de favelas do Rio de Janeiro pensam sobre política de dro-
gas. As respostas aqui sistematizadas, tão diversas quanto a trajetória dos jovens
que escolhemos entrevistar, revelam pistas preciosas para compreender os desafios e
as possibilidades de se falar sobre drogas dentro e a partir das favelas e das periferias.
Abaixo, destacam-se algumas delas:
(1) A lógica da guerra que permeia as políticas de drogas atuais precisa
estar no centro do debate.
A quase totalidade dos entrevistados se mostrou contrária à militari-
zação das políticas de segurança pública no país, pautadas pela lógi-
ca da “guerra às drogas”. A crítica se concentra não apenas nos efeitos
colaterais que uma guerra causa – as mortes de “civis”, os transtornos
à rotina, as violações de direitos básicos – mas no próprio imaginário
bélico que ela reforça – em especial, a ideia de que há uma juventu-
de violenta e fortemente armada nas favelas e periferias do Brasil que
precisa ser “combatida”. Debater política de drogas no Brasil é falar, an-
tes de tudo, sobre as escolhas políticas que fazemos diariamente, que
apostam na militarização, na repressão e no controle como principal
estratégia para lidar com as desigualdades da cidade.
(2) Não é possível falar sobre política de drogas sem discutir desigualdade,
racismo e criminalização da pobreza.
As dinâmicas da desigualdade, do racismo e da criminalização da po-
breza nos grandes centros urbanos estão intimamente relacionadas à
forma como escolhemos lidar com as drogas ilegais. Elas são, ao mes-
mo tempo, alicerce e consequência de políticas de drogas militarizadas
e repressivas. Dentro ou fora das favelas, não é mais possível fugir desse
debate. Pensar em alternativas para as políticas de drogas atuais pas-
sa por abordar com seriedade as profundas desigualdades que atuam
como suas engrenagens.
(3) É preciso que as favelas sejam incluídas no debate sobre drogas.
As favelas e periferias foram tradicionalmente excluídas das discussões
sobre política de drogas que aconteciam no restante da cidade. Por
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isso mesmo, os termos construídos para dar conta desse debate não
contemplam a realidade e os problemas que os moradores das favelas
enfrentam cotidianamente. É preciso investir na construção de outros
canais e de outras narrativas, pensados a partir das favelas e periferias,
que façam circular informações de qualidade sobre o tema e que efe-
tivamente sejam capazes de dialogar com as vivências, experiências e
perspectivas de seus moradores.
(4) O debate sobre política de drogas nas favelas e periferias deve ir além
da discussão sobre descriminalização e legalização.
Pensar em alternativas às atuais estratégias repressivas é importante,
mas falar sobre política de drogas a partir do contexto e da realidade
das favelas é incluir na discussão outras questões que normalmente
ficam relegadas a segundo plano. Entre elas, a necessidade de garantir
o acesso a serviços públicos de qualidade para quem faz uso proble-
mático de drogas e a importância de construir políticas públicas para
a juventude dos espaços periféricos das cidades, em especial nas áreas
de educação, cultura e geração de renda.
(5) As religiões e demais espaços de manifestação da espiritualidade de-
vem participar do debate.
Dentro das favelas, as instituições religiosas são espaços importantes
de congregação, de difusão de informação e de construção coletiva
de entendimentos sobre o mundo. E, muitas vezes, também desempe-
nham funções de assistência e acolhimento que poderiam e deveriam
ser desempenhadas pelo poder público. É preciso entender as religiões
como peças importantes na construção de outras perspectivas sobre
drogas, em vez de excluí-las dos debates.
(6) A juventude pode e deve ser ator-chave nesse processo.
A juventude das favelas e periferias brasileiras é ativa, engajada e cir-
cula por diferentes espaços das cidades. Ela também está conectada
a diferentes redes e tem mais acesso à informação do que seus pais e
avós jamais tiveram. Investir em jovens socialmente conscientes que
entendam que uma outra política de drogas é urgente é a melhor es-
tratégia que temos à mão para começar a construir o debate dentro e a
partir das favelas.
É nisso que acredita o Movimentos.
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Anexo: questionário
PERFIL DO ENTREVISTADO
Idade: _______________________________________________
Gênero: _____________________________________________
Raça/etnia: __________________________________________
Religião: _____________________________________________
Bairro ou favela onde mora: ____________________________
PERGUNTAS
I. Sobre a opinião dos(as) entrevistados(as)
1. Qual sua opinião sobre a forma como o governo lida com a questão das drogas?
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2. Você acha que existe uma relação entre as drogas e a violência? (S) Qual?
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3. Quais você acha que são os impactos das políticas de drogas na vida dos moradores
de favelas?
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4. Como você pensa a relação entre a proibição das drogas e a violência nas favelas?
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II. Entre sua família e amigos
5. Você conversa com a sua família sobre drogas? E com seus amigos? (S) De que forma
esse tema é tratado? (N) Por quê?
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6. Como seus familiares pensam a relação entre drogas e violência? E seus amigos?
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7. Como você vê o uso de drogas nas favelas? Você tem alguma experiência de pessoas
próximas que usam drogas (legais ou ilegais)? Como você avalia isto?
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III. Perguntas finais
8. Quais são as principais dificuldades/desafios de tratar o tema dentro das favelas?
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9. Qual seria uma boa estratégia para conversar com as pessoas sobre política de drogas?
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10. Qual você acha que é o papel da juventude das favelas nesse tema?
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11. Você já ouviu o termo “guerra às drogas”? O que isso quer dizer para você?
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IV. Drogas e religião (para aquelas que têm envolvimento com o tema)
12. Como sua religião trata/lida com o tema das drogas? Qual é sua opinião sobre isso?
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13. Como as religiões/igrejas lidam com esse tema dentro das favelas? Qual é sua opi-
nião sobre isso?
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14. Qual você acha que deve ser o papel da religião/espiritualidade nesse tema?
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