JAPPE Anselm Terao Os Situacionistas Sido a Ultima Vanguarda

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    Tero os situacionistas sido a

    ltima vanguarda?

    Anselm Jappe

    Hoje em dia est na moda apresentar os situacionistas como a ltima vanguarda

    artstica. Afirmao absurda (a menos que ela se aplique a interesses banais) que

    pretende estabelecer uma ligao entre os situacionistas e outras pretensas vanguardas

    dos anos 1960, tais como o Fluxus ou o Happening. Na verdade estes foram ignorados,

    por vezes desprezados, pelos situacionistas. Outros acreditam poder passar a bandeira

    de vanguarda aos movimentos artsticos atuais ou poder vender, na qualidade de

    novidades sempre interessantes, os elementos singulares da produo situacionista dos

    primeiros anos, como o dtournement, a deriva ou a psicogeografia, agora arrancados

    do seu contexto.

    Por outro lado, caracterizar os situacionistas como a ltima vanguarda contm

    uma verdade involuntria. Sua histria, ou pelo menos a de Guy Debord, levou

    concluso lgica a trajetria histrica das vanguardas. Ela coloca um ponto final emostra ao mesmo tempo a impossibilidade de uma vanguarda na atualidade. Ela faz

    compreender que a vanguarda no uma categoria supra-histrica, eterna, no mais

    que a prpria arte, mas que ela pertence a um determinado momento do

    desenvolvimento da sociedade capitalista.

    Sabe-se que Guy Debord nunca almejou ser um artista no sentido habitual do

    termo e menos ainda um terico da esttica. O que ele visava era a superao da arte e

    sua realizao na vida. Ele a enunciou como programa social e a executou, em larga

    medida, na sua prpria vida. Mesmo a Internacional situacionista e suas aes,

    incluindo Maio de 1968, deviam ser uma espcie de obra de arte. Nesse caso, Debord

    concluiu efetivamente o ciclo das vanguardas iniciado na segunda metade do sculo

    XIX. Se autoliquidar para dissolver-se na vida sempre foi a pretenso das vanguardas.

    J Kant e Hegel afirmaram que a arte tinha por misso operar a mediao entre o

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    sentido e a razo, a forma e o contedo, a natureza e o homem, o indivduo e a

    sociedade. arte foi suposto poder reconciliar esses aspectos e juntar o que estava

    separado. Para Hegel a arte uma alienao do Esprito, destinada a retornar no final

    unidade superior que o prprio Esprito. Certamente os artistas modernos no tiveram

    a inteno de seguir os preceitos desses filsofos ou de outros pensadores. No entanto,

    quando a arte refletia sobre sua prpria funo ela a formulava geralmente como uma

    tentativa de se unir vida e anular a separao das esferas que se acentuava cada vez

    mais no seio da sociedade capitalista. A arte era destinada a representar a subjetividade

    pura, a livre criao e o sujeito dominando seu mundo. Porm, era inevitvel entrar em

    conflito com o que parecia a real negao da subjetividade operada pela lgica da

    produo moderna.

    Esta abordagem rene as formas mais diversas da arte moderna. A aspirao dereconduzir a arte na vida no se acha somente no surrealismo e nas outras correntes que

    se pode chamar de romnticas, mesmo se l elas so mais visveis. Encontramos esse

    desejo igualmente em correntes opostas, entre elas o construtivismo russo, assim como

    em todas as correntes do funcionalismo: em Mondrian, na Bauhaus, etc. Todas essas

    correntes queriam terminar com o estatuto separado da arte, para que ela mudasse a

    realidade da vida capitalista, submissa unicamente ao critrio da rentabilidade

    econmica mesmo que alguns imaginassem essa unio entre arte e vida como uma

    revoluo social inspirada pela poesia, enquanto outros a concebiam como aplicao dos

    princpios artsticos produo em srie de arranha-cus, toalhas de mo e xcaras de

    caf. Disso resta que tais vanguardas tenham como denominador comum a vontade de

    no fazer mais somente arte ou de no mais fazer da arte o todo. Este fato no

    desmentido pelo verdadeiro culto da arte ao qual se abandonavam numerosas de suas

    correntes, s vezes com acento quase religioso. A hipervalorizao da arte decorre do

    fato das vanguardas estarem conscientes da pobreza que reveste a vida real sob o

    capitalismo. Ela visava assim, ao menos inicialmente, atenuar a realidade com a ajudade valores artsticos. Isso uma aspirao tipicamente moderna. Tal objetivo no

    prprio nem da arte das sociedades pr-capitalistas, nem da arte acadmica. Chegar ao

    seu prprio desaparecimento o que resta, portanto, inscrever, como gostam de dizer

    hoje, no cdigo gentico das vanguardas.

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    Os surrealistas foram os artistas que proclamaram de maneira mais consciente

    essa necessidade de autosuperao da arte. Sabe-se, no entanto, que eles aceitaram

    muito rapidamente que sua revolta se tornasse objeto de museu e recasse novamente

    na arte. Os situacionistas, tomando explicitamente a aspirao inicial dos surrealistas,

    tentaram transpor definitivamente o Rubico: eles recusaram o status de artistas e

    procuraram fomentar uma revoluo social que estivesse altura das promessas

    contidas na arte moderna.

    Para motivar a necessidade de ultrapassar a arte, Debord recorreu (ao contrrio

    das teorias vanguardistas anteriores) crtica marxista do fetichismo da mercadoria.

    Como se sabe, Debord chamou de espetculo o estado contemporneo do fetichismo

    da mercadoria. Contra todas as recuperaes ps-modernas e estetizantes desse

    conceito, convm sublinhar que, para Debord, o espetculo uma forma da mercadoria,no sentido de Marx. No espetculo, a mercadoria se apresenta como algo dado e leva o

    espectador a uma permanente contemplao passiva. Trata-se de superar (aufheben no

    sentido hegeliano) a arte porque ela tambm uma forma de espetculo que se

    contempla passivamente. Ela , pois, uma forma de fetichismo. Mas medida que a arte

    se torna um projeto que visa a transformao consciente da vida, ela assume uma

    funo claramente desfetichizante.

    No sculo XX, duas outras estticas importantes de inspirao marxista

    atriburam arte uma funo desfetichizante: a de Theodor W. Adorno e a do ltimo

    Lukcs. Em Adorno, , sobretudo na arte abstrata que aparece tal funo. A arte deve

    abandonar a crena ilusria segundo a qual sob o capitalismo o homem seria ainda um

    sujeito. Mesmo que isso parea paradoxal, graas a uma citao de Bertolt Brecht que

    Adorno conseguiu explicar essa idia:

    O que torna a situao to complicada o fato de que a simples 'rplica da realidade' nosinforma menos do que nunca sobre essa realidade. Uma fotografia das fbricas Krupp ou

    AEG no diz quase nada sobre essas instituies. A realidade autntica se tornou

    funcional. A reificao das relaes humanas, por exemplo, a fbrica, no mais semanifesta.1

    Para Adorno, o fetichismo (a subordinao do indivduo s coisas) constitui um

    fenmeno real. A arte deve exprimir essa dominao exercida pelas foras abstratas, a

    1 Citado em Th. W. Adorno, Lecture de Balzac, in: Notes sur la littrature, trad. S. Muller, Paris,Flammarion, 1984.

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    perda de sentido, a destruio da linguagem. Mas ela deve faz-lo utilizando-se de todos

    os meios artsticos existentes. Somente assim a arte estar altura das foras produtivas

    atuais e poder deixar entrever um outro uso possvel. nisso que reside, segundo

    Adorno, o lado emancipatrio da arte moderna. Este indica a possibilidade de uma

    relao diferente, no repressiva, entre o sujeito e a natureza, e subtrai a obra de arte do

    imperativo categrico da sociedade mercantil segundo o qual todas as coisas devem ser

    teis e participar da troca. De tal modo, a arte moderna, por ser abstrata e

    aparentemente distante da experincia vivida , na verdade, segundo Adorno, sempre

    ligada ao desenvolvimento da realidade.

    Para Lukcs, ao contrrio, a arte que se pretende desfetichizante deve ser

    realista, e no abstrata, porque ela tem por tarefa recolocar o homem no centro da

    sociedade, enquanto a aparncia fetichista o faz acreditar que ele j no se encontramais nesse centro. Sua concepo de fetichismo , deste modo, diametralmente oposta a

    de Adorno: o fetichismo, no sentido de Lukcs, atribui falsamente as aes dos

    indivduos e dos grupos sociais s foras impessoais, subtradas do controle e da

    responsabilidade humana. Por conseguinte, a arte, por ser desfetichizante, deve ser

    tambm antropomorfisante. Ela deve mostrar que, sob a superfcie reificada, o ser

    humano que age. Como se sabe, o grande exemplo citado por Lukcs Balzac. A arte

    tem igualmente por misso revelar que a falta de sentido, o isolamento e o absurdo aos

    quais o homem moderno v-se exposto no constituem a realidade mais profunda, mas

    uma aparncia fetichista atrs da qual se escondem os interesses de classe. Os mesmos

    autores que, para Adorno, representam a verdadeira crtica do fetichismo como Beckett

    ou Kafka, mas tambm as pinturas expressionista ou surrealista (em menor medida),

    so, aos olhos de Lukcs, o auge da fetichizao (mesmo tendo mudado de opinio

    quanto obra de Kafka).

    As posies estticas diferentes de Debord, Adorno e Lukcs esto estreitamente

    ligadas s suas diferentes interpretaes do conceito de fetichismo. Em Lukcs, ofetichismo somente uma forma de falsa conscincia, uma falsa representao de

    mundo que preciso substituir por uma viso justa, que ele denomina realista. Para

    Adorno e para Debord, as relaes humanas so realmente falsificadas. O fetichismo

    transformou a natureza da vida social. preciso denunciar o escndalo em lugar de ver

    nele uma simples mistificao.

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    s diferentes interpretaes do fetichismo correspondem avaliaes diferentes do

    perodo do ps-guerra. Segundo Adorno, a interveno do Estado e dos grandes

    monoplios a partir dos anos 30 bloqueou a dinmica interna do capitalismo: as foras

    produtivas no se encontram mais em contradio com as relaes de produo. Para a

    teoria crtica de Adorno, a situao poltica, econmica e social est completamente

    congelada e s resta a arte como nica liberdade e nica esperana. Para os

    situacionistas, o capitalismo do ps-guerra conhece uma evoluo rpida, e o momento

    do fim da sociedade de classes parece aproximar-se, porque o novo proletariado vai

    parar de suportar seu papel de espectador passivo. Ele colocar um fim arte, assim

    como a todas as outras alienaes. Para Lukcs, enfim, a sociedade burguesa representa

    uma etapa importante no desenvolvimento da humanidade, embora esteja em declnio e

    destinada a sucumbir na concorrncia com os pases socialistas.Nenhuma dessas concepes parece justa, porque nenhuma tem em conta a

    dinmica interna que conduz o capitalismo sua crise: essencialmente, a concentrao

    sempre mais aguda entre a forma abstrata (o valor das mercadorias) e o contedo

    concreto. O modo de produo capitalista se baseia na explorao do trabalho vivo e, ao

    mesmo tempo, ele deve fazer todo possvel para reduzir este trabalho vivo utilizando as

    mquinas: no h soluo para uma tal contradio que no deixou de crescer durante

    todo o sculo XX. No entanto, nem para Adorno, nem para Lukcs, nem para Debord, o

    capitalismo est condenado por sua prpria dinmica interna a entrar um dia em uma

    crise profunda. Eles vem no capitalismo um sistema estvel, ao qual s a interveno

    de um sujeito externo poder colocar fim. Esta interveno parece possvel a Lukcs e

    Debord (mesmo que seja de maneira fundamentalmente diferente), enquanto Adorno

    praticamente abandona toda esperana de v-la colocada em marcha. Eis porque a arte

    moderna que Adorno faz o elogio corre o risco de simplesmente reproduzir a vida e de

    embelez-la exatamente isso que os situacionistas reprovavam nas tendncias

    artsticas de seu tempo. Adorno cita sempre Beckett e Kafka como autores exemplares,porque eles denunciam uma situao insuportvel mas hoje esses autores aparecem

    mais como a conscincia infeliz e impotente de uma misria presente. Assim, mesmo a

    arte negativa pode tornar-se um ornamento e um monumento erguido gloria da

    resignao.

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    Por outro lado (e contrariamente s esperanas de Debord), a evoluo social

    no ocorreu no sentido de uma superao da arte. O espetculo mostrou que era capaz

    de resistir aos assaltos (como em 1968) e conseguiu em seguida ascender s geraes

    novas que nunca conheceram outra coisa a no ser o prprio espetculo. Durante os

    anos 1950 e 1960 (os anos de agitao situacionista), a arte, seja ela moderna ou

    clssica, parecia uma coisa bem modesta em relao possibilidade de realizar seu

    contedo na vida cotidiana. Mas o espetculo que terminou por triunfar est ainda

    muito aqum do nvel da arte tradicional. Em suas obras tardias, Debord comea a

    apreciar a arte do passado: ele lamenta que no haja mais um Tucdides ou um

    Donatello, lamenta a destruio de pinturas e construes antigas e revela seu gosto pela

    mtrica e pelos autores clssicos. No se deve ver nesse interesse pela grande cultura

    uma simples evoluo pessoal de Debord e menos ainda uma retratao de suasopinies anteriores. Ele apenas se d conta da inutilidade de se prosseguir a destruio

    artstica dos valores herdados.

    O capitalismo uma sociedade sem qualidades, uma sociedade que no pode

    ter uma cultura prpria. Seu fundamento o valor, a simples quantidade de trabalho

    abstrato representada numa mercadoria, sem que se leve em conta sua utilidade ou sua

    beleza. O capitalismo tem por nico objetivo acumular tautologicamente o trabalho

    morto, porque ele estruturalmente indiferente a todo contedo. Da a impossibilidade

    de uma cultura propriamente capitalista. O capitalismo pode somente (e mesmo isso

    apenas em sua fase inicial, fundamentalmente no sculo XIX) dar uma expresso mais

    elaborada aos contedos derivados das sociedades que o antecederam. A modificao de

    todas as condies de vida que ele produziu e a multiplicao dos meios tcnicos

    aumentaram as possibilidades de expresso, mas os contedos a exprimir (a riqueza da

    experincia humana) s poderiam sair do mundo no capitalista. A arte ento conheceu

    um desenvolvimento intenso, tanto que o novo princpio capitalista estava ainda em

    conflito com os resduos das pocas anteriores. A arte do sculo XIX vivia uma tensoentre a tendncia social abstrao e os indivduos que ainda no estavam

    completamente submissos. Logo depois que o capitalismo comeou a coincidir com seu

    conceito, para utilizar uma expresso hegeliana, o significativo desenvolvimento dos

    meios tornou-se tautolgico, um fim em si mesmo, exatamente como a produo do

    valor. O capitalismo realizou o fim da arte, da mesma maneira que ele tinha, em outra

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    ocasio, criado a arte como esfera separada.

    Pode ser uma funo explicitamente crtica da arte ela mesma no ser mais

    necessria hoje. A cada dia ns testemunhamos como a sociedade capitalista entra em

    colapso por si prpria. No presente, o problema das alternativas que colocado: o que

    vir quando o capitalismo entrar em colapso, deixando atrs dele um amontoado de

    runas? Trata-se de salvar uma base para os desenvolvimentos futuros, alm do niilismo

    da sociedade atual, para que o capitalismo no arraste a sociedade inteira para o seu

    tmulo. Ento, v-se a essncia do capitalismo no somente na opresso e na explorao

    econmica, mas tambm no empobrecimento e na destruio scio-cultural,

    demonstrando que o papel da arte moderna parece independente de suas intenes,

    sendo ele nitidamente menos crtico do que se pensa geralmente.

    De fato, o aspecto iconoclasta da arte moderna se revela ambguo. O processo dedecomposio das formas artsticas, comeado pelas vanguardas, acompanhou o triunfo

    do capitalismo sobre os resduos das pocas anteriores. Aquelas vanguardas que se

    queriam revolucionrias acreditavam que a burguesia conservava seu poder no nvel das

    superestruturas, dos comportamentos, dos valores e da vida cotidiana. A arte se

    propunha ento mudar as estruturas e criar novas. Mas assim ela somente puxou para

    baixo o que j rua, como diria Nietzsche. Um homem em ruptura total com o passado e

    com as tradies (que ele ignora), um homem que no segue seu pensamento racional e

    lgico, mas obedece a impulsos inconscientes, indiferente moral e separado dos laos

    sociais, um homem que percebe o mundo como que sob o efeito de uma droga e vagueia

    ao acaso: pode-se compreender que por volta de 1925 uma tal ideia tenha podido

    fascinar aqueles que no suportavam mais a monotonia da vida burguesa. Mas esse

    indivduo que os surrealistas chamavam desejantes tornou-se realidade sob a forma

    do indivduo contemporneo e de uma maneira to cruel quanto irnica. Para se impor

    na sua integridade, a sociedade mercantil capitalista tinha necessidade de um indivduo

    inteiramente novo, e esse homem novo se encontrava ao mesmo tempo no projetodeclarado de numerosas vanguardas artsticas.

    Particularmente significativo dessa viso o culto que os surrealistas, diferentes

    vanguardas literrias e s vezes os prprios situacionistas, devotaram ao Marqus de

    Sade, culto que nos dias atuais tornou-se banal. O repdio de todos os valores morais

    tradicionais to fundamentais como a proibio de matar, foi considerado um ato de

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    libertao permanente para alcanar a realizao de todos os desejos. Na verdade, como

    mostraram Horkheimer e Adorno naDialtica do Esclarecimento, o mundo descrito por

    Sade constitui uma antecipao do sistema industrial e do sujeito moderno da

    concorrncia total, cuja nica regra o direito do mais forte e que est disposto a tudo

    em troca de prazeres mecnicos e repetitivos. O caso do Marqus de Sade mostra

    claramente que a libertao total de um sujeito fetichizado apenas a libertao total do

    sujeito capitalista.

    Como se sabe, a arte e a literatura moderna no esto longe da tarefa que

    tradicionalmente lhes foi atribuda: a de representar ou de imitar a natureza. Ao mesmo

    tempo, as cincias no esto limitadas a imitar a natureza e comearam massivamente a

    reinvent-la. O destacamento do significante em relao ao significado foi

    apresentado como uma libertao, um desenvolvimento do esprito humano. Esteabandono da mmesis constitui sem dvida a origem de tudo o que a arte moderna teve

    de grande. Mas como ignorar que foi em conjunto com um processo durante o qual a

    tcnica e a cincia tornaram a natureza suprflua, que se afirmou o homem como

    criador do seu prprio mundo, um mundo independente da natureza? Como ignorar

    que os fantasmas de todo poder e manipulao so um trao comum da arte moderna e

    da tcnica? Por volta de 1914, o poeta chileno Vicente Huidobro, fundador do

    criacionismo, proclamou que a poesia no queria mais servir natureza, mas criar

    rvores mais belas do que as rvores naturais. Nesta poca, tal programa poderia

    parecer muito potico. Hoje, ele seria visto como uma antecipao da manipulao

    gentica.

    Quase sempre, foi dito que a poesia moderna, e a cultura moderna em geral,

    compreendidas de acordo com a inteno de seus criadores, eram um protesto contra o

    progresso sem alma (interpretao conservadora) ou contra o capitalismo

    (interpretao de esquerda). Nos dois casos, a poesia e a cultura modernas teriam

    representado uma oposio evoluo tecnolgica e econmica. Mas o que no se vmais habitualmente, que a arte moderna apesar de sua atitude contestatria por vezes

    radical, evolui quase sempre no interior da moldura constituda pela sociedade

    mercantil, atuando freqentemente como uma pioneira involuntria. V-se facilmente o

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    paralelo com o marxismo do movimento operrio2. O produtivismo da indstria

    encontra seu prolongamento no produtivismo da poesia. O domnio da forma sobre o

    contedo constitui igualmente o centro da cultura moderna, como na lgica do valor. O

    isomorfismo entre a poesia moderna e a lgica do valor to claro, e sempre se admite

    abertamente. Sobre esse assunto, pode-se citar o estudo do pesquisador alemo Hugo

    Friedrich, Estrutura da lrica moderna3 (1956), porque se Friedrich no mais um

    defensor incondicional da lrica moderna, ele ainda menos hostil a seu respeito. Em

    algumas palavras que ele consagra relao entre a evoluo lrica e a evoluo social,

    se exprime a opinio corrente quanto ao carter contestador da poesia moderna:

    segundo ele, pode-se cair na tentativa mais extrema de salvar pela ditadura do

    imaginrio a liberdade do esprito numa situao histrica onde o racionalismo

    cientfico e os aparelhos do poder de ordem cultural, tcnica e econmica terminampor organizar e coletivizar a liberdade, tirando assim sua natureza prpria (p. 129).

    Apesar disso, as observaes de Friedrich mostram involuntariamente que a partir de

    Rimbaud e Mallarm (assim como todas as outras tcnicas e procedimentos da arte

    moderna: Friedrich evoca sempre Picasso), a poesia no combateu a lgica da

    mercadoria e da cincia, muito pelo contrrio, na verdade ela as imitou

    antecipadamente. A lei fundamental da poesia moderna reside na decomposio e na

    desarticulao do real para que a criao se faa, com ajuda de elementos desprovidos

    de sentido e das relaes entre eles, a partir das novas construes arbitrrias, que j

    no correspondem mais a nenhuma experincia. Segundo Friedrich, os conceitos chave

    da lrica moderna so: a deformao, a abstrao, a dissonncia, a desumanizao, a

    preferncia pelo inorgnico, a admirao da beleza de cidades sem homens, a imitao

    da matemtica, a imaginao ditatorial, os simples jogos do esprito, a liberdade

    puramente negativa, a desorientao, a tendncia crueldade, a falta de pulses

    humanas, a indiferena. Na poesia moderna, o movimento, o ritmo e a forma tornam-se

    os objetivos em si. O movimento tautolgico do valor, ns acrescentamos, se exprime na

    2 Ao mesmo tempo, no necessrio superestimar este aspecto. A arte moderna exprimiu (muito maisque o movimento operrio da mesma poca) tudo o que era refratrio lgica mercantil, como, porexemplo, a resistncia ao trabalho e subordinao da vida s exigncias da produo. Em certosmomentos, a arte era mesmo a nica possibilidade de formular esta situao de mal-estar.

    3 H. Friedrich,Structure de la posie moderne, Paris, Le Livre de poche, 1999; Previamente Paris, Denol-Gonthier, 1976. (Orig.: Die Struktur der modernen Lyrik. Von Baudelaire bis zur Gegenwart,Hamburg, Rowohlt, 1956).

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    autoreferencialidade da arte: numa poesia cujo contedo apenas ato potico

    propriamente dito (como em Mallarm) e, em geral, nos contedos arbitrrios e

    intercambiveis que querem somente exprimir uma dinmica que, enquanto tal,

    totalmente vazia (o que se produziu por volta de 1910 na pintura rayonista)4. Como a

    mercadoria, a poesia moderna abole todas as diferenas: entre o bonito e o feio, o alto e

    o baixo, o espao e o tempo, o interior e o exterior. O tempo e o espao se destacam da

    experincia e tornam-se completamente abstratos.

    Certamente, essa afinidade entre arte moderna, cincia e indstria foi sempre

    colocada em relevo, muitas vezes pelas prprias tendncias artsticas ( verdade que

    vrias dentre elas no tinham inteno explcita de criticar a sociedade do seu tempo). A

    afirmao segundo a qual a destruio das formas artsticas tradicionais constituiria por

    si s uma crtica da sociedade moderna foi repetida muito mais frequentemente pelareflexo sobre a arte do que pela arte mesma5. Na maioria dos casos a arte queria ir

    com seu tempo e considerava vantajoso utilizar procedimentos prximos daqueles

    utilizados pela cincia. A cincia e a indstria, a tcnica e a vida urbana estabelecida, aos

    olhos dos artistas modernos, eram dados objetivos e socialmente neutros; mesmo

    quando a arte se propunha uma funo crtica ela se limitava inteno de mudar o uso

    social desses dados. Em diversas correntes construtivistas a adoo de mtodos

    cientficos no mais espantosa. Em contrapartida, ela pode surpreender no caso de

    certas correntes romnticas, como o surrealismo, que pretendia buscar o que

    inconsciente e mgico, arcaico e primitivo. Mas os artistas dessas correntes aplicavam

    tambm em suas obras a lei fundamental da arte moderna: isolar e recompor. Estamos

    diante de um trao fundamental que comum a todas as tendncias artsticas

    modernas, o que prova, alm disso, que a caracterizao (ou auto-caracterizao) da arte

    moderna como irracional (tanto faz se ela enunciada como censura ou elogio)

    inapropriada: no essencial, a arte moderna fica inscrita no quadro da razo mercantil e

    4 O Rayonismo um movimento artstico russo criado pelo pintor M. Larionov e sua esposa N.Gonchrova entre 1910-12. reconhecido como uma das primeiras manifestaes da moderna arteabstrata (N.d. T.).

    5 Autores como Mallarm, Joyce ou Beckett mostraram muito pouco interesse pela praxis social (mesmolevando em conta a defesa dos anarquistas feita por Mallarm). Em autores como Rimbaud ou Picasso,uma atitude convencional de esquerda ou revolucionria no tem relao ntima com os aspectosformais de sua arte. Diferentemente, os dadastas e os surrealistas procuraram criar conscientementeessa relao.

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    quando ela cai no irracional, trata-se geralmente do gnero de irracionalidade que

    constitui o simples reverso da razo mercantil.

    possvel objetar que a arte moderna no se reduzia simplesmente lgica da

    abstrao social nem fechava os olhos diante dela, mas que visava a apropriao das

    novas tcnicas (consideradas sempre, como j afirmamos, desenvolvimentos neutros e

    no elementos estruturalmente negativos) para fazer delas melhor uso. No rejeitar

    abstratamente a modernidade, mas criar uma modernidade melhor; no somente o

    objetivo declarado de certos movimentos artsticos, mas igualmente dos situacionistas:

    (...) no h liberdade artstica possvel antes de nos apoderarmos dos meiosacumulados pelo sculo XX, que so para ns os verdadeiros meios de produo artstica(...) O domnio da natureza pode ser revolucionrio ou tornar-se a arma absoluta dasforas do passado 6.

    Isso se acha tambm na base da esttica de Adorno:

    A arte moderna graas mmesis do que endurecido e alienado. assim, e no pelanegao da realidade muda, que ela se torna eloqente (...) Baudelaire no vituperacontra a reificao, ele no a reproduz tambm, ele protesta contra ela na experincia deseus arqutipos7.

    Mas tais observaes no invalidam em nada as anlises desenvolvidas acima,

    porque existe uma tendncia em subestimar as similitudes independentes da inteno

    subjetivas dos artistas.

    Friedrich sublinha o carter anti-subjetivo da poesia moderna, que passa sempre

    por estranhamente subjetivo. Na verdade, o arbitrrio subjetivo e o despotismo face aos

    contedos (ao material potico) se reverte continuamente numa ausncia total do

    sujeito, absorvido pelo objeto. Mallarm, sobretudo, com suas poesias etreas sobre os

    anjos, os leques e quartos vazios exprime sem nenhuma agressividade aparente a

    pulso niilista, o desejo de aniquilar o mundo, que anima a sociedade mercantil.Este amvel professor do liceu procurou desembaraar-se do mundo objetivo tout court

    6Internationale Situationniste, I/8(1958).7 Th. W. Adorno, Thorie esthtique, trad. M. Jimenez e E. Kaufholz, Paris, Klincksieck, 1995, p. 43.

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    para troc-lo pela linguagem pura.8 Ele v nisso a nica sada frente ao nada ontolgico

    que, em sua viso, representa a verdadeira forma do absoluto. Friedrich faz

    explicitamente do aniquilamento do real uma caracterstica de toda a lrica moderna

    (p. 133). Com Mallarm, as coisas existem somente enquanto destrudas. Ele dizia dele

    mesmo: A destruio fez minha Beatriz, e sua criao mais conhecida foi a pgina

    branca. Em geral, os poetas e artistas modernos proclamaram alegremente seu

    programa de destruio, sempre se opondo mentalidade construtiva do burgus

    execrado. A ausncia do mundo que Lukcs atribuiu com agressividade, mas nunca

    sem razo, arte moderna a conseqncia desse prvio aniquilamento do mundo.

    As grandes utopias sempre participaram na obra destrutiva do capitalismo. A

    idia de poder impor realidade as concepes nascidas da cabea e de fazer tabula

    rasa de toda tradio corresponde, por um lado, lgica do artista moderno que queriaremodelar o mundo de acordo com sua prpria subjetividade pura; por outro lado,

    lgica do valor que reconstri o mundo de acordo com a sua prpria imagem, e lhe

    impe violentamente uma forma sem contedo. Essa remodelao do mundo pode ser

    obra de um aparelho de Estado (o Estado stalinista mais que qualquer outro), mas isso

    tambm pode ser operado, ainda que de modo dissimulado bem como menos visvel,

    pelas foras do mercado. tudo particularmente sensvel no domnio da arquitetura

    racionalista e funcionalista, fceis de criticar. O mesmo vale para a arquitetura

    aparentemente oposta, elaborada por um membro da Internacional situacionista como

    o arquiteto holands Constant. No final das contas, a cidade utpica New Babylon

    projetada por Constant (projeto que, segundo seu autor, devia cobrir o planeta inteiro e

    que foram expostos no Centro Georges-Pompidou em 1989 e mais recentemente em

    Dokumenta 2002 de Kassel) no to diferente da Cite radieuse realizada por Le

    Corbusier, da mquina de habitar como este ltimo chamava com orgulho suas

    construes, em relao s quais a arquitetura situacionista de Constant era considerada

    um contraponto9.

    8 Malevitch escreveu um pouco mais tarde: O que expus no era um quadro vazio, ma s a sensao deausncia do objeto (citado por Johanna W. Stahlmann, Teses sobre o fim do belo, in:Krisis 12 [1992],p. 175). Certamente, artistas como Mallarm ou Malevitch tm um lado mstico que se inscreve numalonga tradio para a qual o mundo apenas um disfarce e um jogo de aparncias. A destruio domundo executada no esprito no pertence, por conseguinte, apenas sociedade mercantil. Contudo, aforma especifica e no religiosa que toma essa idia em certas correntes da arte moderna (os exemplosso numerosos) tpica da sociedade da mercadoria.

    9 Sobre a arquitetura de Constant, ver o dossi naSinal de Menos, n. 5, p. 26-71 (N. d. E.).

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    Hoje em dia a arte no tem mais que ajudar na destruio do mundo operada

    pelo valor. A obra de aniquilamento que devia acabar (e havia necessidade disso) se

    encerrou. Mas o retorno arte clssica do sculo XIX ou do grande realismo pregado

    por Lukcs irrealizvel. A arte moderna e o neoclassicismo so o avesso e o reverso da

    mesma medalha, a exemplo das luzes e do romantismo. necessrio efetivamente

    salvar o homem, como queria Lukcs, mas no lhe atribuindo por decreto um status

    que ele no tem na sociedade fetichista. A perda dos sentidos na sociedade capitalista

    bem real e no somente, como Lukcs pensava, uma questo de perspectiva.

    preciso ento se perguntar se no pode existir uma arte em forma tradicional, mas

    atenta s fraturas e negatividade. Esta foi a caracterstica da literatura barroca que, na

    forma e no contedo, antecipou numerosos traos da arte moderna e afrontou a

    negatividade sem, no entanto, tornar-se cmplice dela. A esse olhar, a obra de WalterBenjamin continua sempre atual.

    Com Debord, o ltimo vanguardista, tornado finalmente um estilista clssico o

    crculo se completa. Em 1955, Debord pediu a destruio de todas as igrejas, sem se dar

    conta de seu valor artstico. 35 anos mais tarde, ele constata que esse programa foi

    realizado pelo progresso da dominao espetacular. Se Debord mudou de idia, isso no

    teve nada a ver com o processo bastante comum pelo qual um revolucionrio ou um

    velho vanguardista se reconcilia com seu inimigo, passando a apreciar o que antes era

    desprezado. Trata-se, ao contrrio, de uma importante tomada de conscincia. A

    natureza da dominao capitalista mudou profundamente na segunda metade do sculo

    XX, no somente no sentido banal de que ela est sempre em constante transformao,

    mas no sentido de que, estando desembaraada definitivamente dos restos pr-

    capitalistas, ela comeou verdadeiramente a coincidir com o seu conceito. Essa vitria

    tambm o incio da verdadeira crise. Em tais condies, um soneto ou um busto de

    Donatello representam talvez a verdadeira arte subversiva isso porque eles noslembram toda a riqueza qualitativa da experincia humana anterior unificao

    quantitativa operada pela mercadoria capitalista, e todas as promessas de emancipao

    e felicidade que nelas estavam implicitamente contidas. A reviravolta de Debord no

    representa o malogro do seu projeto inicial de levar a arte moderna sua concluso. No

    foi a arte moderna que fracassou, mas a prpria sociedade mercantil. No entanto, ela

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    no a nica sociedade possvel.

    [Traduo de Marcos Barreira

    Orig.francs:Les situationnistes ont-ils t la dernire avant-garde?In: Jappe, A. LAvant-

    Garde Inacceptable Rflexions sur Guy Debord. ditions Lignes, 2004. Uma verso alem foipublicada na revistaKrisis 26.]