JARDINS HISTRICOS BRASILEIROS: ARTE, HISTRIA E PATRIMNIO Autor: Cristiane Maria Magalhes Instituio: Doutoranda em Histria IFCH/UNICAMP, Brasil. Bolsista FAPESP. Estgio Doutoral no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Orientadores: Silvana Barbosa Rubino (Brasil) e Carlos Fortuna (Portugal). E-mail: cristmag@gmail.com RESUMO

O texto realiza uma abordagem acerca dos principais jardins cultivados no Brasil ao longo do tempo, suas tipologias e autores. Aborda, ainda, como alguns destes jardins foram patrimonializados pelo rgo de preservao federal, atual IPHAN. Diversas formas de conceber jardins ocorreram no Brasil, com mais constncia a partir da segunda metade do sculo XIX, no caudal das transformaes urbansticas sucedidas em diversas cidades ao redor do mundo. Neste sentido, os jardins se tornaram parte de um projeto urbano maior, evidenciando uma nova relao com o espao pblico e com as formas de estar e se relacionar com a cidade. O artigo faz referncia a dois recortes temporais distintos. A saber, o primeiro foi o da projeo e criao de jardins no territrio brasileiro em tempos histricos, projetos e autores diversificados. O segundo recorte lana luz sobre a escolha de alguns jardins para se tornarem parte do patrimnio nacional, notadamente entre 1938 e a dcada de 1950. Em linhas gerais, o texto sobre a arte e a histria dos jardins no Brasil. Palavras-chave: Jardins Histricos; Patrimnio Cultural; Arte dos Jardins. ABSTRACT The text does an approach on the main gardens cultivated in Brazil over time, their typologies and authors. It also analyzes how some of these gardens were patrimonializated by federal preservation organ. Various form of designing gardens occurred in Brazil, more consistently from the second half of the nineteenth century, as happened in several cities around the world. In this sense, the gardens became part of a larger urban project, revealing a new relationship with public space and the ways of being and relating to the city. The article refers to two distinct time periods. Namely, the first was the projection and creation of gardens in Brazil with diverse authors and projects. The second is on the choice of some gardens to become part of the national heritage, notably between 1938 and 1950. In general, the text is about the art and history of the gardens in Brazil. Keywords: Historic Gardens; Heritage; Art of the Garden.

1. INTRODUO

Jardins so monumentos histricos em constante evoluo, fato que os diferem substancialmente dos bens arquitetnicos e os inserem nas metodologias de interpretao e salvaguarda das paisagens culturais. O jardim uma forma de ordenamento do territrio que acompanha o homem h tempos imemoriais. Para a arquiteta Cristina Castel-Branco, os jardins so uma forma de expresso do entendimento humano da natureza, com investimento na recriao do sonho do microcosmo perfeito. Com o jardim, o homem inventou uma construo a cu aberto, escreveu a arquiteta, composta por elementos inertes e vivos, o espao ideal reinventado (CASTEL-BRANCO, 1994. p. 20). Com dimenses agigantadas, o territrio brasileiro guarda belezas naturais incontestveis. Do litoral de guas mansas e mornas ao serto com vegetao tpica da caatinga, da exuberante floresta amaznica diversidade da Mata Atlntica, dos morros, vales, picos, rios e pampas com flora e fauna surpreendentes os cenrios so mltiplos e encantadores. No pas que recebeu, inclusive, o nome de uma rvore o Pau-Brasil (Caesalpinia echinata), os jardins de embelezamento e de estudos botnicos sero projetados com mais constncia a partir do incio do sculo XIX, com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil (1808). H registros de que diversas formas de conceber jardins ocorreram no Brasil a partir de 1500, notadamente com maior constncia e de forma disseminada a partir da segunda metade do sculo XIX, no caudal das transformaes urbansticas sucedidas em diversas cidades ao redor do mundo. Neste sentido, os jardins se tornaram parte de um projeto urbano maior, evidenciando uma nova relao com o espao pblico e com as formas de estar e se relacionar com a cidade. Os jardins no Brasil seiscentista e setecentista, na maioria das vezes, possuam caractersticas utilitrias, misto de horta, horto, jardim de fruio e pomar nos espaos domsticos, cercados por muros ou gradeados. O que no era incomum para o perodo em Portugal e outros pases europeus. No seu Le thtre dagriculture et mesnage des champs, publicado em 1600, Olivier de Serres (1539-1619) escreveu que os jardins deveriam se constituir de quatro tipologias ou espcies, a saber: Potager (horta), Bouquetier (flores), Mdicinal (medicinal) et Fruitier (pomar). Em Portugal, de acordo com pesquisas da arquiteta Aurora Carapinha, o jardim raramente se assumiu como espao ldico por excelncia, concretizando-se num dilogo constante entre o recreio e a produo (CARAPINHA, 1995. p. 5), conforme observamos para o Brasil no mesmo perodo. Olivier de Serres, no seu tratado, enfatizou ainda a importncia da vista para a composio dos jardins. Das janelas o observador deveria ser capaz de ver toda a extenso do jardim. Alm de utilitrio, o jardim deveria obedecer a certos preceitos estticos para ser visto. Esta concepo altera profundamente as formas de projetar e de relacionar com os jardins principalmente na Europa a partir do sculo XVI (KOSSOVITCH, 2011. p. 38). Os jardins como misto de horta, horto, espao floral e pomar, numa mistura aromtica de razes, perfumes e cores, predominaram por todo o perodo colonial brasileiro, conforme relatos de diversos viajantes que descreveram o pas. Ainda hoje, mais raramente do que no passado, os quintais de casas em algumas cidades no interior do pas mantm os seus jardins privados com estas caractersticas funcionais com uma esttica singular. Entre o final do sculo XVIII e incio do XIX os jardins inserem-se em projetos urbansticos nos traados urbanos para o recreio e encontro da populao citadina, fora do ambiente domstico e privado. deste perodo, tambm, o estabelecimento dos hortos ou jardins botnicos com fins de aclimatao de espcies vegetais. Na segunda metade do sculo XIX e incio do XX, inmeros jardins foram projetados de acordo com as teorias higienistas e sanitaristas vigentes no perodo. Os largos das igrejas transformaram-se em praas ajardinadas, parques urbanos conquistaram espaos privilegiados, praas eram projetadas no entroncamento de avenidas, com o incentivo e a propagao dos tratados mdicos e de engenheiros sanitaristas. Os assuntos urbanos transformaram-se em pautas mdicas de primeira ordem. Dotar as cidades de rvores, parques e jardins fazia parte dos projetos de salubridade e constituam-se em elementos no processo civilizador e de cura do corpo e da alma das populaes citadinas, para alm do embelezamento das cidades.

Na cidade do Rio de Janeiro, sob o Imprio de D. Pedro II, foram construdos e/ou remodelados uma poro considervel de largos, praas e jardins pblicos, o que consequentemente inspirou a projeo destes espaos ajardinados em outras cidades brasileiras, em locais pblicos e privados. De certa forma, uma parte destes jardins do Imprio foi protegida pelo Decreto-Lei 25/1937, quando da instituio do SPHAN (Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional) atual IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional). preciso que se faa uma referncia, ainda que breve, do jardim cultivado por Maurcio de Nassau em Pernambuco, no sculo XVII. A historiadora pernambucana Mariana Franozo realizou extensa pesquisa a respeito da circulao de pessoas, objetos e saberes entre a Amrica Portuguesa e os Pases Baixos durante o sculo XVII e, durante a pesquisa, analisou a coleo de curiosidades do Conde Johan Maurits van Nassau-Siegen (1604-1679), governador do Brasil holands entre 1637 e 1644 durante ocupao de Pernambuco. De acordo com a historiadora, neste perodo Nassau montou uma coleo particular que inclua espcies naturais, artefatos e representaes visuais da natureza, paisagens e dos habitantes da colnia. Sob a perspectiva das colees, Mariana Franozo analisou a constituio deste que considerado o primeiro jardim brasileiro do ponto de vista da cincia e da botnica, conforme os preceitos de colecionismo difundidos nos Pases Baixos ao longo do sculo XVII. Esta vertente distancia a ideia do jardim de Nassau em Recife como constituinte de um projeto paisagstico e o aproxima dos gabinetes de curiosidades europeus do mesmo perodo. Nada restou do jardim de Maurcio de Nassau na atual cidade do Recife. O texto apresenta alguns dos principais jardins brasileiros ao longo do tempo com especial ateno para aqueles que foram salvaguardados pelo IPHAN. Desta forma, nos referimos a dois recortes e concepes bastante distintas. A saber, o primeiro foi o da projeo e criao de jardins no territrio brasileiro em tempos histricos, projetos e autores diversificados. O segundo recorte lana luz sobre a escolha de alguns jardins para se tornarem parte do patrimnio nacional, notadamente entre 1938 e a dcada de 1950. A abordagem se desenvolve no mbito maior das discusses sobre Paisagem Cultural, conforme definies

da UNESCO em suas Guidelines. A saber, para a UNESCO a paisagem mais fcil de identificar a claramente definida, intencionalmente concebida e criada pelo homem, englobando as paisagens de jardins e parques criadas por razes estticas (UNESCO, Guidelines, 2012). As reflexes so parte da pesquisa de Doutoramento em desenvolvimento no Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH), da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas, Brasil) sob a orientao da Prof. Dr. Silvana Barbosa Rubino; e do Estgio Doutoral realizado na Universidade de Coimbra, desde janeiro de 2013, sob a superviso do professor Carlos Fortuna. A pesquisa financiada pela FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo). O recorte da tese so os jardins histricos brasileiros protegidos por instrumento de salvaguarda pelo rgo de preservao federal brasileiro, o IPHAN, entre 1938 e a dcada de 2000. Uma das inquietaes que guia a pesquisa identificar como se constituiu a noo de Jardim Histrico como bem cultural, no Brasil, e como esta tipologia se inseriu nas categorias de Paisagem Cultural, ao longo das dcadas. Compreender a arte dos jardins e a arte de jardinar, no Brasil, tambm uma das questes abordadas pela tese e sobre a qual nos debruamos para redigir este texto. 2. A ARTE DOS JARDINS NO BRASIL: PATRIMNIO, PAISAGEM E MEMRIA

As pesquisas apontam que os primeiros jardins foram salvaguardados no Brasil com critrios semelhantes aos atribudos a bens arquitetnicos e obras de arte, ou seja, com valoraes artsticas (estticas) e histricas. Em muitos casos os jardins foram protegidos com base na materialidade do seu mobilirio. O valor paisagstico dos jardins seria reconhecido somente anos mais tarde, sob a influncia, num primeiro momento, da Conveno da UNESCO, de 1972, e, mais fortemente, em 1981, com a difuso da Carta de Florena a Carta dos Jardins Histricos. Os primeiros jardins salvaguardados isoladamente pelo IPHAN foram:

1. Passeio Pblico do Rio de Janeiro (1783 e 1861). Data da inscrio no livro de tombo: 30/06/1938. 2. O Jardim Botnico do Rio de Janeiro RJ (1808), tombado em 30/05/1938. 3. Jardim e Morro do Valongo, (1906) data do tombamento: 30/06/1938. Rio de Janeiro/RJ. 4. Parque da Quinta da Boa Vista (sc. XIX), data do tombamento: 30/06/1938. Rio de Janeiro/RJ.

5. Jardim do Hospital So Joo de Deus BA (1912). Data do tombamento: 09/07/1940. Cachoeira/BA.

6. Parque Lage (1840), Data da inscrio no livro de tombo: 14/06/1957. Rio de Janeiro/RJ.

No mesmo perodo foram protegidos, ainda, alguns jardins em extenso ao tombamento da edificao.

1. Jardins do Palcio do Catete (final sc. XIX), data do tombamento: 06/04/1938. Rio de Janeiro/RJ. 2. Jardins da Casa de Rui Barbosa (final sc. XIX), tombamento em 11/05/1938. Rio de Janeiro/RJ. 3. Jardins do Palcio Imperial de Petrpolis (sc. XIX), data do tombamento: 15/06/1938.

Petrpolis/RJ.

A seguir ser feita uma breve exposio a respeito de alguns destes jardins salvaguardados no Brasil, com privilgio para tempos histricos, projetos e autores distintos. Em fins do sculo XVIII, entre 1779 e 1783, por ordem do 4 Vice-Rei do Brasil D. Luis de Vasconcelos e Souza (1779-1790), foi construdo o primeiro espao pblico ajardinado com fins de vilegiatura e recreio no Brasil Colnia. O artista Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), conhecido como Mestre Valentim, ficou incumbido do projeto e da elaborao das obras de arte do local (SEGAWA, 1996: 81). Mestre Valentim criou canteiros retilneos e simtricos como era comum em Portugal e na Europa do perodo. A arquiteta Jeanne Trindade escreveu que ali foram cultivados, num primeiro momento, maracujs, jasmins, gramados e flores variadas, alm de diversos tipos de arbustos e rvores (TRINDADE, 2009:48).

Planta do Passeio Pblico no traado original de Mestre

Valentim Nova planta aps remodelao do Passeio Pblico feita por

Auguste Glaziou em 1861.

Um terrao com pavimentao em pedra, elevado a cerca de trs metros de altura oferecia vista para o mar da Baa de Guanabara. Mestre Valentim projetou, ainda, dois obeliscos de granito contendo, cada um, um oval de pedra de lioz com as inscries: Ao amor do Pblico e saudade do Rio. Prximo aos obeliscos erigiu um conjunto escultrico em pedra com duas faces. De um lado, na parte inferior, duas esculturas de jacars de bronze entrelaados. Da boca dos jacars jorrava gua numa bacia de granito atualmente a fonte est desativada. Na mesma pea escultrica, na parte posterior, foi colocada a escultura de um menino com asas que despejava gua em um barril de granito tambm desativado. O conjunto abrigava, ainda, outras esculturas em metal como um coqueiro e aves.

Conjunto escultrico do Passeio Pblico do Rio de Janeiro.

Fotografia: Cristiane Magalhes, 2012. Projeto de Glaziou para os jardins da Quinta da Boa Vista,

executado em parte. Acervo Museu da Cidade.

Em 1861, o Passeio Pblico foi completamente remodelado pelo botnico francs Auguste Franois Marie Glaziou (1833-1906) para atender s novas demandas paisagsticas ao gosto da poca. A reforma transformou o local num parque com caractersticas do jardim ingls ou jardim paisagista. Sucessivos aterros feitos nas proximidades do Passeio Pblico, ao longo do sculo XX, recuou o mar em 500 metros para construo da Avenida Beira Mar e, posteriormente, do Aterro do Flamengo. Com a perda da vista, o Passeio Pblico apequenou-se entre as ruidosas avenidas do centro da cidade do Rio de Janeiro tornando-se local de passagem. Com a pouca frequncia da populao citadina o Passeio Pblico atrai mendigos e viciados, tornando-se lugar pouco seguro. O botnico francs Auguste Marie Glaziou (1828-1906) comumente referenciado como um dos cones do estilo paisagstico do jardim romntico no Brasil, em voga a partir da segunda metade do sculo XIX. Glaziou desembarcou no Rio de Janeiro no dia 19 de janeiro de 1861, vindo de Bordeau no paquete francs Guinne, conforme nota do Correio Mercantil e Instrutivo, Poltico, Universal do RJ, na edio de 20 de janeiro de 1861. E, em seguida, empregou-se na grande remodelao do Passeio Pblico do Rio de Janeiro, em consrcio com o deputado Francisco Jos Fialho (1814-1885) que havia recebido a concesso por dez anos para manuteno do lugar, em primeiro de dezembro de 1860. Glaziou adquiriu prestgio e visibilidade com a reforma do Passeio Pblico e foi contratado para realizar outras obras em locais pblicos e privados da cidade e do Estado do Rio de Janeiro. Em 1869 foi nomeado Diretor de Parques e Jardins da Casa Imperial para realizao da reforma da Quinta da Boa Vista, residncia da famlia Imperial brasileira. Naquele momento o gosto pelo estilo paisagstico do jardim romntico ou jardim ingls vigorava na Frana, em Portugal e chegara ao Brasil, coincidindo com as remodelaes urbanas e embelezamento dos espaos pblicos da capital da Corte. Neste contexto, Glaziou encontrou vasto campo de trabalho. Em 1869 iniciou a reforma paisagstica da Quinta da Boa Vista, embelezou a Avenida do Mangue e ajardinou o Largo do Machado. Em 1877 ajardinou a Praa Dom Pedro II. Em 1880 foi inaugurada uma de suas maiores obras: o Campo da Aclamao, antigo Campo de Santana, atual Praa da Repblica. Glaziou foi tambm responsvel pela construo e reformas de outros jardins, praas e parques pblicos e privados na cidade do Rio de Janeiro e arredores. Ressalta-se que Glaziou no foi o nico botnico e/ou paisagista estrangeiro a atuar no Brasil no sculo XIX para a projeo e reforma de praas, parques e jardins. Guilherme Mazza Dourado, em sua tese de doutoramento, cita nomes como Paul Villon, Jean Binot, Grandjean de Montigny, Pierre Pzrat, entre outros, que atuaram no Brasil e na Amrica Latina (DOURADO, 2008).

Jardim Botnico do Rio de Janeiro. Fotgrafo LEUZINGER,Georges. Data: 1865. Aleia de Palmeira Imperial.

Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil.

Parque do Museu Paulista, tambm conhecido como Museu da Independncia, em So Paulo. Vista dos jardins a partir da

edificao. Fotografia de divulgao do Museu disponvel no site: http://www.mp.usp.br/o-museu/apresentacao. Acesso em maro de

2013.

A Quinta da Boa Vista foi o nome dado ao parque construdo no entorno do antigo Palcio de So Cristvo, residncia de D. Joo VI e, posteriormente, dos Imperadores D. Pedro I e D. Pedro II. Defronte ao Palcio, edificado num monte elevado em relao ao restante do terreno, Glaziou projetou uma extensa Alameda de Sapucaias (Lecythis pisonis) com forma retilnea, abrangendo uma grande extenso at onde a vista do Palcio alcanava.

Os jardins da Quinta da Boa Vista foram bastante modificados ao longo do tempo, tanto no traado quanto na vegetao, no mobilirio e na sua rea para construo de ruas e avenidas adjacentes. O antigo Palcio Imperial abriga o Museu Nacional do Rio de Janeiro, desde 1892. Diferentemente dos dois jardins referenciados acima, o Jardim Botnico do Rio de Janeiro se insere num discurso do cultivo e da aclimatao de especiarias e plantas exticas no Brasil, ocorrido no final do sculo XVIII e incio do XIX. De acordo com documento publicado no jornal O Patriota, do Rio de Janeiro, datado de maro de 1813, as primeiras plantas para criao do Jardim da Lagoa de Rodrigo de Freitas, tambm conhecido como Jardim da Fbrica de Plvora, foram trazidas por Luiz dAbreu Vieira e Paiva do Jardim de La Pamplemousse, na Ilha de Frana (atualmente, Ilhas Maurcio) quando este era prisioneiro de guerra, em 1808. Em 1812, Joo Gomes da Silveira, vice-inspetor da Fbrica de Plvora, enviou relao das plantas que tinham sido doadas por Luiz dAbreu e seu estado de cultivo na ocasio. Eram elas: Moscadeiras (Myristica officinalis), Camphoreiras (Laurus camphora), Abacates (Laurus persia), Litchis (Euphoria litchi), Mangueiras, Cravos da ndia (Caryophyllus aromaticus), Caneleiras (Laurus cinnamomum), Toranjeiras (Citrus decumana), Semente de Sag, Saboeira, rvore do po, Areca (Areca oleracea ou Roystonea oleracea) e rvore de carvo (Mimosa speciosa). Das espcies levadas por Luiz dAbreu, a Areca tornou-se smbolo e um dos cartes postais mais divulgados do Jardim Botnico e da cidade do Rio de Janeiro, como um todo. A espcie recebeu, no Brasil, o nome de Palmeira-Imperial (Roystonea oleracea) cultivada a partir de um exemplar plantado por Dom Joo VI. A espcie formou a Aleia das Palmeiras, com cerca de 135 palmeiras ao longo de 740 metros de extenso, inspirando o cultivo desta palmeira por todo o Brasil. Vrias outras Avenidas de Palmeiras Imperiais, ainda hoje, so cultivadas em diversas praas e jardins brasileiros. Nas fazendas, tambm, bastante comum ver a espcie formando uma aleia na entrada principal, a exemplo daquela do Jardim Botnico. O uso de palmeiras bastante vulgar no paisagismo brasileiro. O Jardim Botnico do Rio de Janeiro se manteve, ao longo de sua existncia, como lugar de passeio e de estudos, aclimatao e cultivo de espcies exticas e/ou nacionais. Atualmente, existem ali colees de bromlias, de orqudeas, de plantas medicinais, um cactrio, um jardim sensorial para deficientes visuais, um Jardim Japons e uma estufa com espcies vegetais conhecidas como insetvoras ou carnvoras. Dentro dos seus limites so preservados, entre outros, os seguintes monumentos: a Esttua da deusa Thetis, de Louis Savageau (1862), exposta no lago Frei Leandro; as runas da Casa dos Piles; os muros da antiga Fbrica de Plvora; o Cmoro Frei Leandro ou Casa dos Cedros; o Prtico da Academia de Belas Artes, projetado por Grandjean de Montigny, colocada no Jardim Botnico em 1940, aps a demolio da edificao em 1938; a outrora sede do Engenho de Nossa Senhora da Conceio da Lagoa, construda em 1596; o Chafariz das Musas (1895) confeccionado em ferro fundido; o Solar da Imperatriz; e o Memorial ao Mestre Valentim, onde esto as suas esttuas de Eco e de Narciso e das aves pernaltas. Outro jardim protegido pelo Decreto-Lei 25/1937 foi o Jardim do Valongo. Este jardim insere-se em conceitos bastante distinto dos anteriormente referenciados. Construdo tambm no Rio de Janeiro, em 1906, integrou as reformas urbansticas empreendidas pelo ento Prefeito Pereira Passos. O jardim foi projetado pelo paisagista Lus Rey na encosta do Morro da Conceio, nos moldes do jardim ingls ou romntico tardio. considerado um jardim suspenso, pois est a sete metros acima do nvel da rua, com extenso de 1.530 m2, em um dos acessos ao Morro da Conceio pela Rua Camerino. Este jardim ficou abandonado durante muitas dcadas. Em 2012, o jardim foi reaberto populao completamente remodelado inserido nas obras do Porto Maravilha, que integra a revitalizao da rea do Porto no Rio de Janeiro. A tentativa do restauro foi a de restituir ao jardim suas feies originais. Em contrapartida, o Jardim do Hospital So Joo de Deus localizado na cidade de Cachoeira, na Bahia, no teve igual sorte. De acordo com texto do Dossi de Tombamento do IPHAN, o antigo Hospital de Caridade de Cachoeira foi criado pelo Frei Antnio Machado, de Nossa Senhora de Belm, em 1729. A Ordem de So Joo de Deus, de Lisboa, recebeu-o por doao em 1754, passando Santa Casa da Misericrdia, em 1826. Em 1912, o quintal da igreja foi transformado em um jardim.

Jardim do Valongo fotografado por Augusto Malta, sem data.

Revista Municipal de Engenharia, janeiro/dezembro 1997, p.155.

O Jardim do Valongo aps o restauro, em 2012. Fonte: Blog Porto Maravilha. Disponvel em:

http://blogportomaravilha.com/2012/07/12/de-volta-ao-jardim-suspenso-do-valongo/. Acesso em maro de 2013.

O jardim apresentava canteiros de desenho geomtrico e gradil com colunas coroadas por vasos, pinhas, cachorros e lees de loua. O centro do jardim era marcado por uma fonte de mrmore com trs peixes entrelaados. O mobilirio de loua era proveniente da antiga Fbrica de Santo Antnio do Vale da Piedade, localizada em Vila Nova de Gaia, Portugal. A fonte com os peixes seria proveniente de Lisboa, contudo, no h documentao histrica a este respeito, apenas relatos. O jardim foi descrito no Dossi de Tombamento do IPHAN com traado inspirado nos jardins simtricos franceses. Atualmente, o jardim do Hospital So Joo de Deus encontra-se em total estado de abandono e grande parte do seu mobilirio foi roubado, apesar da proteo legal oferecida pelo IPHAN. Em meados do sculo XX ter destaque, no Brasil, o jardim moderno ou os jardins constitudos ao entorno das edificaes denominadas modernistas. Com a arquitetura moderna surgia, por extenso, uma nova maneira de projetar jardins no Brasil. Juntamente com os arquitetos modernistas, o paisagista brasileiro Roberto Burle Marx (1909-1994) modificaria profundamente as concepes no trato com a vegetao e nas formas de conceber jardins. A que considerada a primeira casa modernista do Brasil foi construda entre 1927 e 1928, pelo arquiteto russo Gregori Warchavchik (18961976), na Rua Santa Cruz, 325, no Bairro de Vila Madalena, em So Paulo. Em 1986 o IPHAN tombou trs casas projetadas por Warchavchik. De acordo com o dossi de tombamento, as trs casas projetadas por Gregori Warchavchik, entre 1927 e 1930, so consideradas como as primeiras obras de arquitetura moderna no Brasil. Utilizando a linguagem cubista nas suas formas, representam as ideias do arquiteto enunciadas no Manifesto pela Arquitetura Moderna publicado na imprensa, em 1925. A casa da Rua Santa Cruz foi a primeira a ser construda, para servir como sua residncia. Os jardins da casa da Rua Santa Cruz foram executados por Mina Klabin Warchavchik casada com o arquiteto em 1927. Este projeto considerado o primeiro a utilizar plantas tropicais em sua execuo, como cactos e mandacaru. A ideia era fazer um recanto tropical. Mina Klabin estudou na Alemanha formando-se concertista, com realizao de concertos de msicas de cmara na Europa. No h referncias a outros projetos paisagsticos realizados por Mina Warchavchik. provvel que Mina Warchavchik tenha se inspirado nas plantas tropicais das estufas do Jardim Botnico de Dahlem (Berlim), o mesmo que surpreendeu Burle Marx em 1928 e o marcou para a projeo de jardins posteriormente. As casas projetadas pelo arquiteto russo em So Paulo tiveram grande repercusso na impressa e nos meios intelectuais da poca. Num artigo escrito no Correio Paulistano, de 08 de julho de 1928, Warchavchik declarou que: O jardim, de carter tropical, em redor da casa, contm toda a riqueza das plantas tpicas brasileiras. Foi minha colaboradora na criao desse jardim, bem como nos ltimos arranjos internos, minha senhora, Mina Kablin Warchavchik (1928, p. 3). Ainda a respeito da casa da Rua Santa Cruz, Warchavchik escreveu que no tivera coragem de construir a casa com cobertura de terrao-jardim, como o teria desejado. Pois na ocasio ainda no existiam na praa os materiais isolantes adequados. Com a divulgao das casas modernistas, o arquiteto Lcio Costa convidou Warchavchik para uma sociedade no Rio de Janeiro. Juntos projetaram a casa de Alfredo Schwartz, em 1932, no bairro de Copacabana. Para a execuo do jardim estes estenderam o convite ao jovem arquiteto Roberto Burle Marx, que faria ento o seu primeiro trabalho como profissional.

Pao de So Cristvo. Atual Museu Nacional do Rio de

Janeiro com o jardim terrao em frente edificao. Fotografia de divulgao do Museu. Disponvel em:

http://www.museunacional.ufrj.br/MuseuNacional/Principal/paco.htm. Acesso em maro de 2013.

Jardim da casa da Rua de Santa Cruz, na Vila Mariana, em SP, de Gregori Warchavchik. In: GUERRA, Ablio. 2002.

Sobre Lcio Costa, Burle Marx declarou em diversas ocasies que o conhecia desde criana. Quando jovem, vivia na mesma rua que Lcio Costa. Ele me conheceu quando eu tinha 14 ou 15 anos e esse fato contribuiu para minha carreira. Ele viu o jardim que eu realizava em minha prpria casa e, como naquele tempo construa a residncia de uma famlia Schwartz, convidou-me a fazer tambm aquele jardim. (MARX, Roberto Burle. Depoimento. In: XAVIER, Alberto (org), 1987, p. 300-304). Burle Marx projetou, ento, um jardim terrao para aquela residncia, como tinha desejado Warchavchik para a residncia da Rua Santa Cruz, em 1928. Depois deste trabalho no Rio de Janeiro, Burle Marx mudou-se para o Recife, em Pernambuco. Foi ali que o paisagista assumiu seu primeiro cargo pblico na Diretoria de Arquitetura e Urbanismo do Governo do Estado, em 1934, como Chefe do Setor de Parques e Jardins. Em Recife, de acordo com a pesquisadora Ana Rita S Carneiro, Burle Marx projetou e/ou interveio em cerca de treze jardins e praas pblicas e um privado, entre 1934 e 1937 (CARNEIRO, 2010:73). A Praa Euclides da Cunha, conhecida tambm como Jardim das Cactceas ou Cactrio da Madalena, difere de tudo que se tinha feito no Brasil em termos de jardins at ento, em funo do elemento vegetal empregado. Concebido por Burle Marx, em 1935, com presena marcante da vegetao da caatinga, o paisagista homenageou Euclides da Cunha e sua obra mais conhecida, Os Sertes, de 1902, com um jardim temtico.

Praa Euclides da Cunha, imagem do GoogleMaps,

22/04/2012. Recife PE

Jardim-terrao do Palcio Gustavo Capanema, visto do 16. andar e do trreo. Fotografias: Cristiane Magalhes, maio de 2012.

O jardim das cactceas foi assentado em blocos de pedras. Em seu projeto foram includas espcies como macambira, xique-xique, mandacaru, cactos e bromlias. Numa das extremidades do jardim fileiras de rvores se encontravam formando um pequeno bosque, com ips, pau-ferro e juazeiros (CARNEIRO, 2009:221).

Aps a temporada em Recife, Burle Marx retornou para o Rio de Janeiro. Entre 1935 e 1945 foi concebida a sede do Ministrio da Educao e Sade Pblica (MESP) em terreno onde existia o antigo Morro do Castelo, desmontado na dcada de 1920. O Projeto para o MESP foi elaborado no decorrer do ano de 1936, por uma equipe integrada pelos arquitetos Oscar Niemeyer, Affonso Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leo e Ernani Vasconcelos, coordenada por Lcio Costa. A equipe contou ainda com a participao do arquiteto Le Corbusier. Novamente, a convite de Lcio Costa, Burle Marx integrou o projeto inovador para conceber jardins dentro da unidade arquitetural. Para o edifcio do MESP, atual Palcio Gustavo Capanema, Burle Marx projetou um terrao-jardim na altura do 2 piso, de onde possvel ver o contemplar e ouvir a cidade, os edifcios, os morros e as ruas numa posio privilegiada de observador da paisagem. um jardim para ser visto do alto. A viso melhor que se tem dele do 16 andar da edificao. No trreo, canteiros sinuosos com vegetao nativa acompanham o ritmo da edificao, num gesto contnuo. Como vemos em seus projetos posteriores, os jardins se relacionaram e integraram arquitetura moderna como numa sinfonia harmnica. A partir desta experincia de criao artstico-paisagstica, inspirado pela pintura abstrata concomitante arquitetura moderna, o seu trao autoral inconfundvel integrou inmeros outros projetos. Burle Marx considerado o maior nome do paisagismo brasileiro do sculo XX. Sua marca encontra-se indelvel na paisagem urbana do Rio de Janeiro, em lugares pblicos e privados, ao lado de outros projetistas da arte dos jardins, como Mestre Valentim e Glaziou. Para concluir esta seo, importante destacar que no Brasil h outros relevantes Jardins Histricos reconhecidos como patrimnio cultural, com variado e interessante projetos paisagsticos. Contudo, foi necessrio realizar uma escolha de determinados jardins e seus paisagistas para esta apresentao. 3. CONCLUSES

O jardim no Brasil adquiriu inmeras feies e recebeu diferentes projetos paisagsticos ao longo de seis sculos. Contudo, muito pouco restou da feio dos jardins antigos. A rea, o traado e a vegetao, mesmo dos jardins salvaguardados como patrimnio, foram bastante alterados por sucessivas reformas urbansticas, pelo abandono, por falta de manuteno e cuidado. A ampliao das cidades com abertura de largas e extensas avenidas e ruas foi fator determinante de modificao e destruio dos espaos ajardinados, principalmente nas Capitais dos Estados. Dos jardins, bosques e pomares das cercas conventuais e/ou mosteiros religiosos existentes no perodo da colonizao portuguesa praticamente nada restou, alm das edificaes principais das antigas ordens religiosas. Com base em levantamento documental, a hiptese da tese de que os primeiros jardins protegidos pelo ento SPHAN (atual IPHAN) estiveram submetidos aos estatutos artsticos (estticos) e histricos, alm da vinculao destes com o autor dos bens para sua eleio, valorao e conservao, assim como aconteceu com os bens arquitetnicos. O valor paisagstico dos jardins foi assimilado para a conservao/restaurao desta tipologia de bem cultural no Brasil a partir da dcada de 1980, com a leitura da Carta de Florena (1981) e, mais intensamente apenas a partir dos anos 2000. A designao de Jardim Histrico aparece pela primeira vez nos documentos do acervo do IPHAN no final da dcada de 1980, com a criao da Coordenadoria de Patrimnio Natural dentro da estrutura da Fundao Nacional Pr-Memria, sob a direo de Carlos Fernando de Moura Delphim que traduz a Carta de Florena e organiza um Projeto para restaurao de alguns Jardins Histricos situados na cidade do Rio de Janeiro. Foram salvaguardados, em grande parte, os jardins e parques pblicos constitudos nos perodos Colonial e Regencial brasileiro, principalmente os do Rio de Janeiro, antiga Capital do Brasil (at 1960). No Brasil, h casos de jardins tombados em conjunto com edificaes e jardins tombados isoladamente. A metodologia da pesquisa baseou-se na anlise dos documentos produzidos pelo IPHAN, entre 1937 e os dias atuais, tais como: Dossis de Tombamentos, Processos de Inventrios, Atas das Reunies do Conselho Consultivo, as edies da Revista do Patrimnio (entre 1937 e 2002), o acervo institucional da Coordenadoria de Patrimnio Natural e as publicaes financiadas e/ou redigidas por tcnicos do IPHAN.

So fontes de pesquisa, tambm, Revistas, Jornais, Almanaks, relatos de viajantes e outras publicaes especializadas veiculadas, principalmente no Rio de Janeiro, durante o sculo XIX e primeiros anos do XX. Os prprios jardins se mostram como documentos a serem lidos, alm de suas plantas e das fotografias antigas. preciso destacar, ainda, que o estgio doutoral em Portugal e o contato com os professores e a bibliografia sobre Arquitetura Paisagista tm influenciado enormemente a nossa forma de compreender e de assimilar os Jardins Histricos. A partir da observao dos jardins salvaguardados referenciados no texto pode-se afirmar que a patrimonializao destes bens no garante a sua conservao. A manuteno dos Jardins Histricos decorre de outros critrios sejam tursticos, de estudos botnicos ou para recreio, fruio e convvio humano. A preservao, manuteno e salvaguarda destes bens decorrem do uso, independente da finalidade. O estudo dos contextos da preservao dos jardins como patrimnio cultural no Brasil explicita muito mais do que as selees e as escolhas feitas por determinados agentes pblicos em determinadas pocas, o que consequentemente indicou o que deveria ser valorado, pesquisado, divulgado e protegido para a posteridade. A preservao e, tambm, o esquecimento dos jardins, parques e praas expe a relao com as culturas urbanas e as maneiras de estar e se relacionar com o espao pblico e com as cidades. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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