Jarra Beethoven e a incrível história de uma imagem-problema

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Marize Malta Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). marize- [email protected] Jarra Beethoven e a incrível história de uma imagem-problema

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Marize MaltaDoutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). [email protected]

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Não estar em um lugar é estar em lugar nenhum e estar em lugar nenhum é não ser nada Ciaran Benson

Uma jarra, muitos problemas1

Em janeiro de 2005, o jornal lusitano Público homenageou o artista Rafael Bordallo Pinheiro, que completava então cem anos de falecimento, com uma breve biografia de seus feitos, quando inevitavelmente foi lem-brado o ‘incidente’ ocorrido com uma de suas obras mais famosas: “José Relvas encomenda-lhe um jarrão para o seu salão de música e Bordalo

resumoA partir de estudos filiados à cultura vi-sual, que lidam com as questões de ima-gem e de lugar, pretendemos revisitar a história de uma jarra confeccionada em Portugal em fins do século XIX, doada ao governo brasileiro e hoje constante no acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro — a jarra Bee-thoven. Por meio da análise crítica dos percursos dessa jarra e perseguindo a historicidade dos sentidos a ela atribuí-dos, pretendemos discutir a relação entre imagem, objeto e espaço no que tange às questões de idolatria e iconoclastia referentes a um único objeto, mostrando a transitoriedade dos sentidos e o papel das instituições e dos discursos de com-petência no balizamento do juízo sobre um objeto (de arte). palavras-chave: jarra Beethoven, imagem-problema, arte decorativa, século XIX.

abstractUsing studies linked to visual culture and dealing with questions of image and place, we intend to revisit the history of a jug made in Portugal at the end of the 19th century, donated to the Brazilian govern-ment, and nowadays part of the permanent collection of the Museu Nacional de Belas Artes in Rio de Janeiro — the Beethoven jug. Through critical analysis of the jour-neys taken by this jug and by pursuing the historicity of the meanings given to it, we intend to discuss the relationship between image, object and space with reference to questions of the idolatry and iconoclasm of a single object, showing the transience of the meanings and the role of institutions and authoritative discourse in determining opinion on a work of art.

abstract: Beehtoven jug; image-problem; decorative arts, 19th century.

Jarra Beethoven e a incrível história de uma imagem-problemaMarize Malta

1 O presente artigo é fruto da reunião e revisão de duas comunicações apresentadas no XXV Simpósio Nacional de História e no 18º encontro da Associação Nacional de Pes-quisadores em Artes Plásticas, ambos realizados em 2009.

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Figura 1. Jarra Beethoven em

seu pedestal na Sala Aloísio

Magalhães no Museu Nacio-

nal de Belas Artes no Rio de

Janeiro.

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concebe a Jarra Beethoven, um monstro de 2,6 metros de altura... que não cabe na sala”2. Diferente do tom panegírico do artigo, a alegação de que o eminente artista português havia criado um monstro maculava a imagem de gênio, a imagem idealizada da bela arte e a imagem de fragilidade e pequenez dos bibelôs. Era um problema.

Contudo, a jarra3, obra de arte decorativa criada em 1895, tornara-se memorável e era impossível falar de Bordalo sem mencioná-la4 e sem renegar sua condição de aberração, de monstro, de Frankenstein, mesmo passados mais de cem anos. Era uma jarra em que “a maldição se abateu cedo”5. A criatura, para usar instigante expressão de W. J. T. Mitchell6, não conseguiu quem a adquirisse, apesar dos elogios da imprensa portuguesa, e perambulou de Caldas da Rainha, a Alpiarça, até Lisboa. Em 1899, tomou o navio e aportou em terras cariocas, mas não houve comprador, mesmo cercada por enaltecimentos locais. Foi rifada, mas não houve sorteado. O criador da obra, pensando na recorrência da dificuldade de seu transporte, preferiu não retornar com ela e a deixou com o dr. João do Rego Barros que a doou para o Estado brasileiro, sendo localizada no salão Pompeano do Palácio do Catete, o edifício sede da Presidência da República brasileira. Anos depois, a criatura foi transferida para o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista e, em 1939, para o Museu Nacional de Belas Artes e lá se encontra até hoje, quase esquecida em um canto modesto, sem o destaque que se pensava ser digna de merecimento7.

Por que então uma obra de vulto, qualificada como uma das maiores peças em faiança até hoje fabricadas, realizada por premiado artista portu-guês, executada em reconhecida fábrica em Caldas da Rainha, mantém-se isolada, em quase ostracismo? Estaria em lugar errado? Sua imagem não seria condizente com uma obra de arte capaz de sublimar? Seria ela um objeto belo ou uma coisa fera? Um monstro ou um bibelô? Peça digna de um olhar histórico e crítico ou fadada a narrativas romanescas? São sobre essas questões que pretendemos nos ocupar nesse artigo.

A jarra Beethoven não encontrou um lugar somente na casa do con-tratante, mas foi repetidamente renegada e desterrada, adquirindo a con-dição de obra sem lugar ou obra errante. A historicidade de seu percurso e dos lugares que ocupou, bem como os variados juízos a ela atribuídos, permitem repensar certos estatutos de verdade sobre as obras de arte, sobre o valor das instituições no balizamento dos discursos de competência e a importância dos lugares ocupados pelos objetos no julgamento da quali-dade de uma obra. Estamos nos referindo não só a lugares de discurso, mas a lugares físicos, espaços onde obras foram localizadas e forneceram determinados contextos espaciais (e ideológicos) para se ver e julgar obras (de todas as categorias). Como peça decorativa, que segundo o ponto de vista oitocentista8, demandava um local determinado para que sua condi-ção decorativa se realizasse, seria imprescindível olhá-la em um contexto espacial, no ambiente em que foi inserida, para que o olhar decorativo sobre ela pudesse ser apreendido. Cada lugar ocupado pela jarra Beetho-ven acrescentou, retirou ou mudou sua função e significado, alterando os juízos sobre ela e sua qualidade quanto a ser boa ou má arte.

Ao ocupar lugares, relacionar-se com pessoas e conviver com elas, os objetos acabam por ganhar vida própria — a vida social das coisas9. Ao receber o dom da vida, a coisa trivial e sua materialidade inerte ganham força de expressão, transformando-se em criatura capaz de sentir, desejar,

2 MALHEIROS, José Vitor. Bor-dalo, o oleiro. Público, Lisboa, 23 de janeiro de 2005. Encon-trado em: Bedeteca de Lisboa. Disponível em < http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=recortes&recortesID=1635 >. Acesso em jun. 2010.3 Agradeço imensamente a Jorge Pereira de Sampaio e à Cristina Horta, grandes espe-cialistas em cerâmica portu-guesa, pelas informações a mim prestadas e pelos documentos enviados a respeito da jarra.4 Além de ser apontado como grande caricaturista, Bordalo é considerado como aquele que revolucionou a cerâmica de Caldas da Rainha e “A famosa ‘Jarra Beethoven’ é uma das suas maiores coroas de glória”. EFEMÉRIDES DA QUINZE-NA, Correio de Niza; jornal de informação e cultura, Nisa, n.5, 6 fev. 1965, p.4.5 COELHO, Alexandra Prado. Os animais gigantes de Bordalo lutam pela vida. Ipsilon, Lisboa, 13 jan. 2009. Disponível em: < http://ipsilon.publico.pt/artes/texto.aspx?id=220600 >. Aces-sado em jun. 2010.6 MITCHELL, W. J. T. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago: The Univer-Chicago: The Univer-sity of Chicago Press, 2005.7 A jarra se encontra na sala Aloísio Magalhães, no fim do corredor que antecede a galeria das moldagens da ala direita, distante da Galeria Nacional do século XIX e do Circuito de Arte Estrangeira, onde são exibidas peças a ela contemporâneas.8 RUSKIN, John. A manufatura moderna e o design. In: ______. A economia política da arte. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 155-186.9 APPADURAI, Arjun. (Org.) A vida social das coisas: as mercado-rias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008.

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almanifestar-se. Quando nos relacionamos com imagens, com imagens de

objetos, elas passam a fazer parte de nosso convívio e recebem certos atribu-tos, geralmente, antes restritos aos homens. As imagens das coisas ganham certa aura e passam a estar capacitadas a falarem ‘por si’ e a contarem histórias sobre nós por meio delas. Passam também a ter vida própria e a reclamarem por uma biografia, ou a biografia cultural das coisas, para usar expressão de Igor Kopytoff10. Suas histórias são também nossas histórias. E a jarra Beethoven tem uma incrível história para contar.

A relação próxima, familiar e íntima com as imagens, muitas vezes en-volvendo questões de amor e ódio que têm ocupado alguns teóricos filiados à cultura visual, é uma de nossas motivações, transportada para os objetos ditos utilitários-decorativos, nos oferecendo outras formas de abordar a relação entre ética e estética, instituições e obra de arte, enaltecimento e silêncio, e outras tantas possíveis, cabíveis na análise de peças artísticas controversas. Algumas linhas de investigação da cultura visual têm se interessado pela relação entre os seres humanos e as imagens (pictures), procurando entender o que as imagens querem de nós e como respondemos a essa demanda11, ou seja, de como o mundo é construído pelas imagens.

Diferente do que se espera de uma obra de arte — ser admirada, dis-putada, enaltecida —, essa jarra de Bordalo Pinheiro mostra outras facetas de imagens que, por provocarem mais incômodos do que satisfações, mais rejeições do que desejos, mais espantos do que contemplações, dificilmente são tratadas como arte ou boa arte e criam tensões ao serem inseridas em lugares que oferecem enquadramentos próprios para as obra de arte ou arte decorativa. Museu, mercado de arte e academia (via história da arte) são exemplos de lugares que oferecem enquadramentos institucionais que balizam formas de olhar as obras e construir sentidos sobre elas12. Por ou-tro lado, um objeto ‘desajustado’ pode provocar questionamentos quanto à autoridade desses lugares de competência, tornando-se uma ameaça e forçando-nos a repensar sobre as premissas que lhe asseguram posição superior de discurso e a questionar certos estatutos de verdade.

Tal qual um enfant terrible, a presença da jarra Beethoven parecia incomodar, ameaçar os bons costumes e anunciar sua inadequação ao mun-do em que vivia. A enorme peça era como uma criatura desajustada, um monstro, um Frankenstein, configurando-se como uma imagem-problema que trazia à tona o sentimento e a experiência de estar completamente deslocada. É como se ela nascesse sem lugar para estar. Dos vários locais por onde passou, a jarra não conseguiu ambientes condizentes com sua natureza e personalidade, transformando-se em uma obra atópica e igual-mente desviada, ou seja, que apresentava um afastamento do bom caminho no qual todas as obras ditas de arte deveriam seguir.

A anatomia da criatura

Como estamos tratando de uma criatura que não goza de destaque na historiografia da arte brasileira, não podemos dispensar sua apresen-tação ao leitor. Vejamos a peça a partir de sua localização atual, no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro13.

Trata-se de uma jarra. Como tal, é peça oca de modo a conter líqui-dos e a receber arranjos florais. Contudo, nela nunca se depositou plantas, muito menos água. Ela é enorme. Sua dimensão vertical, com a figura de

10 KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercan-tilização como processo. In: APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas: as mercado-rias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008, p.89-121.11 Consideramos especialmente os trabalhos de W. J. T. Mitchell e Malcolm Barnard. MITCH-MITCH-ELL, op. cit. BARNARD, Mal-colm. Approaches to understand visual culture. London: Pal-grave, 2001. _____. Art, design and visual culture: an introduc-tion. London: Macmillan Press, 1998.12 Cf. LEPPERT, Richard. Art and the committed eye: the cultural functions of imagery. Oxford: Westview Press, 1996. 13 A sala Aloísio Magalhães corresponde ao antigo salão da Congregação da Escola Nacional de Belas Artes. Lá a jarra divide espaço com uma grande mesa com cadeiras e há bastante espaço ao redor para se tomar distância e conseguir ver todo o objeto.

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coroamento que hoje está ausente, alcançava 2,25m14 (e não 2,60 como dito no texto de José Malheiros e outros15). Hoje, desfalcada desse ornamento, a jarra comporta 1,80m16. Auxiliada pelo pedestal de 1,18m de altura, a jarra atinge quase 3,0m. Seu tamanho dificulta e praticamente impede o que sua forma sugere operar, desvirtuando-se da natureza utilitária. É uma jarra para se olhar. Para observá-la em totalidade, é preciso tomar distância, aquela respeitável distância usada para se olhar uma obra de arte.

Como uma peça tridimensional, olhar a jarra Beethoven implica olhá-la sob diversos ângulos e diferentes distâncias, capazes de abordar múltiplas visualidades: boca aberta e larga, com contornos irregulares, pescoço longo e afunilado, pança curta e protuberante, que se estrangula para a base em forma de tronco de cone em cuja superfície se assentam diversas figuras alegóricas. O corpo da jarra, em esmalte azul profundo, deixa evidente a forma regular e limpa, de gosto clássico, que funciona como fundo da composição, e cujas extremidades (boca e base) parecem estar em momento de transmutação, assumindo os volteios irregulares e assimétricos do gosto rococó.

A jarra nos força a sair da condição estática porque não é possível apreendê-la em um só golpe de vista. Temos que levantar a cabeça e esticar a musculatura do pescoço para focalizar os detalhes acima, sacrificando nossa condição de conforto ou superioridade, que ocorre quando normalmente lidamos com objetos decorativos. Lembramos que os objetos decorativos, em princípio, ficam ao alcance das mãos, nos servem com seu utilitarismo e estão em posição inferior, fazendo com que os olhemos de cima para baixo. No caso da jarra Beethoven, ficamos subjugados à sua estatura e a posição de subserviência se inverte. A jarra nos possui e nos sentimos impotentes frente à sua determinação de ser algo além de um mero objeto, uma mera coisa. O bibelô vira criatura.

14 Conforme ficha de 1976 e ficha de catalogação de 29/10/1984. Também em ANUÁRIO DO MUSEU NACIONAL DE BE-LAS ARTES 1938-1939. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1940. p.13.15 É bastante comum encon-trarmos variadas medidas para a jarra e algumas confusões, como as cometidas por Matilde de Figueiredo que, em 1979, ao escrever sobre a cerâmica de Bordalo, indicava que a jarra Beethoven por não caber na Casa dos Patudos, fora para o Brasil, onde foi leiloada em 1899 por 35 contos. Dizia ainda que a jarra se encontrava no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. FIGUEIREDO, Matilde Pessoa de. Cerâmi-ca do Museu Rafael Bordalo Pinheiro: cronologia, análise, elementos inéditos. Lisboa, revista municipal, Lisboa, ano XL, quarto trimestre de 1979, p.24-31.

Figura 2. Detalhe do pescoço e

boca da Jarra Beethoven.

Figura 3. Detalhe do bojo e da

base da Jarra Beethoven.

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alCom forma complexa e diversidade de minúcias, a jarra convida a

nos aproximarmos e a decifrarmos suas sutilezas. Quando rodeamos a jarra em curta distância para ver detalhes, cada passo permite descortinar imagens próprias. Um medalhão com a efígie de Ludwig van Beethoven e o sobrenome registrado em fita descartam a dúvida sobre o tema que impulsionou a criação da jarra. A águia, a coroar a composição narrativa, informa aos desatentos que se trata de um músico que alcançou reconheci-mento e glória por sua obra. Uma partitura registra as primeiras notas da obra Quarteto, opus 18, nº4, a música que parece inspirar Bordalo a reger o movimento visual e a composição formal em cerâmica.

A música, que não ouvimos, parece envolver cada pedaço da jarra e direcionar a percepção da imagem que, como uma obra sonora, demanda tempo para que cada nota soe, seja apreendida e se possa ouvir e entender toda a melodia. Da mesma forma, a jarra Beethoven demanda tempo para apreciá-la, procurando traduzir em barro a natureza abstrata e sonora da melodia e a sublimação das grandes obras musicais. Na base, há a repre-sentação do tempo que se rende ao som da música de Beethoven, deixando pender sua ampulheta e foice, quase esquecidas. O velho tempo tem a companhia de cupidos musicais que fazem a intermediação entre o tempo absoluto divino e o tempo ritmado, finito e poético da música terrena de Beethoven. Logo nos deparamos com um trio formado por dois rapazes e uma moça inclinados em direção à origem do som. As pequenas figuras deixam claro, por meio de suas feições e expressões corporais17, o prazer de estarem compartilhando daqueles acordes, que vêm de algum lugar não muito longe dali. Próximo daquele trio encontra-se um grupo de figuras masculinas que representa um quarteto de cordas a executar as notas me-lodiosas da Opus 18, número 4. Sobre esse quarteto, projeta-se, soberana, a alegoria da Inspiração, que nos lembra de suas visitas freqüentes à mente criativa de Beethoven.

As faturas crespas e trêmulas das figuras humanas parecem rever-berar o ritmo da melodia. Elas se alternam com as cadências suaves das superfícies lisas e vidradas dos ornamentos. Suavidades e rompantes se intercalam para marcar o ritmo complexo e arrebatador da música de Beethoven. O azul de cobalto liso e profundo, os vidrados leitosos com reflexos iridescentes e a cor terrosa bruta da argila cozida compreendem uma síntese composta por diversidades encontradas na obra do mestre da música.

A cobertura em vidrado lácteo dá acabamento a determinadas figuras, além do velho tempo. Aparecem em atitude vivaz uma dupla de meninas aladas, verdadeiros anjos musicais, que reproduzem no órgão e no canto a melodia mundana de Beethoven que, de tão sublime, merece ser ressoada no mundo celestial. Sob cada uma das meninas há as inscrições Harmonia e Melodia, dirigindo a leitura iconográfica. Bem ao alto da jarra, um atlante e uma cariátide em forma de hermas, apóiam as folhagens de acabamento das bordas irregulares. A figura feminina segura uma enorme concha de onde se debruçam cupidos jubilosos por participarem daquele momento único. Sobre o atlante, pousa a figura grandiosa da Fama com suas asas abertas, que desce dos céus para glorificar o gênio.

Em meio a toda essa fantasia visual, em canto discreto na base da jarra, encontra-se uma cartela com a seguinte inscrição: “Caldas da Rainha – Portugal / Fábrica de Faianças – 1895 / Começada em 9 d’agosto – acca-

16 Conforme ficha de cataloga-ção registro nº 10072. A dimen-são de 1,80m já constava na ficha de 17/04/1991. Arquivo do Museu Nacional de Belas Artes. 17 Vale lembrar a importância dos estudos fisionômicos e das expressões de sentimento na formação acadêmica oito-centista para auxiliarem a dar veracidade às cenas pictóricas, verdadeiras narrativas visuais.

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bada / em 16 de setembro /Rapahel Bordallo Pinheiro.” Assinalava-se sua nacionalidade e naturalidade, conferindo-lhe primeira identidade. A casa onde fora criada também foi demarcada e como se tratava de um fábrica, aquelas informações conferiam autenticidade de obra única, digna de re-ceber, inclusive, o nome do criador. Seu tempo de gestação também se fez declarar, comprovando o desafio vencido de sua execução em período tão curto. Era obra utilitária singular. Além de identidade civil, ela gozava do estatuto de ser obra única, sem possibilidade de reprodução.

Bordalo também pensou no pedestal que carregaria a jarra, de modo a garantir estabilidade necessária e posição ideal para admirá-la. Em madeira escura esculpida, ela é marcada por linhas diagonais e com entalhes on-dulantes de movimento rococó. Funciona como um ensaio de movimento, uma preparação para o espetáculo visual da obra cerâmica. Sua tonalidade escura absorve a luz e fornece um contraponto aos vidrados multicores da faiança, que, inversamente, refletem luz e cintilam brilhos. A base obscura incentiva a enxergarmos claridade, brilhantismo e vivacidade na jarra, a ver nela o predomínio do brilho, o brilho próprio das obras de arte.

O criador e o mundo artístico

Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), o autor da obra decorativa, nas-ceu em Lisboa e desenvolveu uma formação artística múltipla, relacionada ao teatro e às belas artes. Atuou como ator e cenógrafo quando jovem e cursou algumas cátedras na Academia de Belas Artes de Lisboa, como Desenho de Arquitetura Civil, Desenho Antigo e Modelo Vivo. Logo, o talento para o desenho se destacou e o colocou a serviço da imprensa. Seu traço se desenvolveu principalmente para o humor e crítica jornalística. Colaborou e criou diversos periódicos, com destaque para O Binóculo, cujas palavras, no estatuto editorial de 1870, não deixavam dúvida sobre as opções de Bordalo: “Quem tiver olhos, que veja, quem não quiser ver, que durma”18. Era um artista que lidava com a expressão visual e um criador de imagens, as quais não pretendiam se estabilizar nos cânones da arte acadêmica, mas trazer outras formas de interpretação do mundo: imagens risíveis, sarcás-ticas, sintéticas, estilizadas.

Entre os anos de 1875 e 1879, Bordalo residiu no Rio de Janeiro, trabalhando na imprensa (O Mosquito, Psit! e O Besouro) e registrou com sua pena uma síntese mordaz e humorística da vida política e social da corte brasileira. Devido ao perfil bonachão e boêmio, somado às críticas aos figurões da corte, o artista angariou demonstrações de amor e ódio. Um de seus inimigos confessos foi Angelo Agostini, com o qual trocava insultos gráficos. De certo que não obteve acolhida simpática das vítimas de seu traço, sofrendo até dois atentados19. A atuação de Bordalo no Brasil, no campo da caricatura, talvez ajude a entender a prioridade de estudos referentes ao trabalho gráfico e o pouco estudo sobre sua obra na área das artes decorativas20. Também podemos pensar que objetos cerâmicos não costumam constar com presença significativa nos livros que tratam de arte, pois são obras sem lugar estável perante a teoria da arte, por vezes consi-deradas de menor importância. Mesmo que diferenças como artes maiores e artes menores já estejam banidas de muitas escritas da história, no Brasil ainda estamos a ler histórias da arte que desconsideram obras muito além da categoria das artes plásticas. As Academias, lugares privilegiados de

18 PINHEIRO, Rafael Bordalo. Estatuto editorial. O Binóculo, Lisboa, n.1, 29/20/2870.19 RAFAEL BORDALO PI-NHEIRO. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais. Dis-ponível em < http://www.itau-cultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm >. Acessado em jun. 2010.20 Na mesma enciclopédia aci-ma citada, no verbete referente a Rafael Bordalo Pinheiro, o Comentário Crítico, atualizado em 25/06/2008, trata eminente-mente de sua obra gráfica. Dos nove parágrafos a ele dedica-dos, apenas um comenta sua incursão na produção cerâmica. As três obras apresentadas para caracterizar seu trabalho são desenhos.

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alonde se escreve a história da arte21, ainda pensam o mundo da arte sem os

objetos decorativos. A distância entre o estudo dos objetos e a história da arte pode nos

indicar um dos fatores que levaram a não glorificação da jarra Beethoven. A jarra parece sofrer de uma retaliação — atitude iconoclasta22 — pelo de-sejo ousado de querer alcançar uma posição de além-coisa, pela vontade de querer ser ‘criatura’, no sentido de provocar a consideração de certa autonomia e história de vida das obras de arte. A jarra Beethoven desejava ser (atributo das criaturas), ser arte, ‘simplesmente’ arte.

A jarra Beethoven, como outras peças utilitárias, ao ser abordada pela Academia, não encontrou ambiente favorável à escrita de sua histo-ricidade ou, quando muito, sentiu-se descolada nesse espaço institucional do artístico e do estético, levando à possibilidade de pensar que uma jarra não é objeto pertinente para ser tratado pela Academia e não tem a chance de ser arte. Longe de querermos planificar as visões da historiografia da arte, bem mais complexas do que aqui pontuamos, a relação acadêmica desenvolvida com os artefatos, de um modo geral, não costumava ser das mais amistosas. A historiografia da arte geralmente deixou para o campo do design ou da cultura material as discussões sobre a vida social das coisas, descomprometendo-se de fazer uma outra história ou uma história da arte para os objetos.

Bordalo Pinheiro acabou sendo conhecido mais por sua obra gráfica, como caricaturista, do que por sua obra cerâmica, apesar de seu domínio técnico e artístico na área da faiança permitir posicioná-lo como grande e destacado artista ceramista. Para muitos pesquisadores portugueses23, Bordalo foi o responsável por dotar de originalidade a faiança lusa e por abrir as portas do mercado estrangeiro para a cerâmica portuguesa. Mes-mo assim, foi a arte do desenho que ganhou repercussão na história da produção artística de Bordalo. De certo que a obra gráfica de Bordalo foi mais numerosa do que a obra cerâmica, e sua atuação na imprensa causou maior impacto sobre seus representados e sobre o público leitor do que aqueles que puderam adquirir suas peças de argila cozida e vidrada. Em Portugal, Bordalo Pinheiro também se sobressaiu em numerosos periódicos. Era artista conhecido, reconhecido e muitas vezes temido por suas críticas gráficas. Como dizia um contemporâneo seu: “Cada caricatura de Rafael valia mais, pelo poder de sugestão, do que um artigo de fundo nosso. O povo simplista nem sempre alcança a idéia do escritor. Não deixa, porém, de compreender a gravura, a imagem, que lhe fere a retina e lhe seduz o olhar”.24

Curiosamente, aqueles que foram alvo do lápis de Bordalo eram jus-tamente os que podiam adquirir suas custosas peças artísticas de faiança, gerando um ruído no processo de proximidade respeitável e confiança entre produtor e consumidor, fundamentais para que o consumo de mercadorias se desenvolva e se sistematize. Rafael Bordalo não alcançou o sucesso fi-nanceiro esperado com sua fábrica, sempre envolta em crises, nem obteve a repercussão imaginada em relação às suas obras mais extravagantes e fantasiosas (a jarra Beethoven foi recusada várias vezes)25. Essa situação pode auxiliar a entender os motivos que levaram o artista a ser premiado mais no estrangeiro do que na terra natal26.

21 LEPPERT, op. cit., p.12-14.22 MITCHELL, 2005, op. cit., p.188-196.23 SERRA, João B. Arte e in-dústria na transição para o século XX: a fábrica dos Bor-dalos. Análise social, revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, vol. XXIV, n. 100, p.275-311, 1988; ______. Moldar um país. Jornal das Letras e Artes, Lisboa, n.898, março 2005; ______. Nota (breve) sobre Bordalo, a jarra e Beethoven. Gazeta das Caldas, Caldas da Rainha, jan. 2007. [Suplemento especial dedicado a Bordalo Pinheiro]. CALADO, Rafael Salinas; FERNANDES, Isabel; HORTA, Cristina; RE-BELO, Elsa. A fábrica de faianças das Caldas da Rainha: de Bordalo Pinheiro à actualidade — sua his-tória. Porto: Civilização, 2008.24 MAGALHÃES LIMA, Jaime. Rafael Bordalo Pinheiro, morali-zador político social. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1925, p.4.25 Em 1916 foi fundado o Museu Bordalo Pinheiro, por iniciativa do poeta Cruz Magalhães, admirador e colecionador de sua obra, passando em 1924 para a propriedade da Câmara Municipal de Lisboa. Hoje o museu conta com 1.200 peças de cerâmica, além de milhares de desenhos, gravuras e pintu-ras. Para conhecimento prévio do museu, acesse o site http://www.museubordalopinheiro.pt .26 Bordalo Pinheiro participou da Exposição Universal de Pa-ris de 1889, ganhando medalha de prata como artista e levando a de ouro para sua fábrica de faiança. Nas demais exposições que freqüentou ganhou meda-lha de ouro: Exposição Univer-sal da Antuérpia, Exposição Industrial Portuguesa (enfim o reconhecimento local), Exposi-ção Universal de Saint Louis.

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E o criador deu vida ao barro

As peças cerâmicas de Bordalo Pinheiro foram realizadas na Socie-dade Fabril das Caldas da Rainha27, empresa fundada por ele e seu irmão Feliciano, em 1884, em Caldas da Rainha, cidade localizada no centro-oeste de Portugal, rica em águas terapêuticas e em argila. A região também se destacou pela produção de artefatos de barro. Bordalo estabeleceu diá-logo íntimo com a tradição portuguesa de produção de faiança, uma das expressões artísticas de forte identidade portuguesa e alvo de declarado orgulho luso.

A cerâmica de Caldas28 popularizou-se pela interpretação natura-lística dos motivos decorativos, como atesta o trabalho de Manuel Mafra, retomando as principais características da cerâmica de Bernard Palissy, destacado ceramista francês da Renascença. Seus experimentos com es-malte promoveram enorme realismo aos motivos da flora e da fauna que representava em relevo nos seus pratos e vasos. Quando Bordalo assumiu a direção artística da fábrica de faiança, pareceu suscitar a esperança de elevar a arte portuguesa a uma posição prestigiosa no cenário internacional, como pode sugerir comentário de Ramalho Ortigão, poucos anos depois da abertura da fábrica de Caldas:”Se uma fina e delicada mão de artista chega um dia a tocar nesta massa, a intervir nesta encantadora tradição [...] Portugal —pensava eu— terá iniciado de um momento para o outro um ciclo de arte ornamental tão glorioso como foi o de Lucca Delia Robbia, o de Benevenuto Celini e o de Bernardo Palissy”.29

A produção da fábrica de faianças dos Bordalo começou por explorar o setor de materiais de construção, para em seguida assumir a criação da louça decorativa. Bordalo deu forma tridimensional à sua arte humorística, com a criação de figuras cômicas, e repensou a decoração para moringas, bilhas e cântaros, priorizando a representação da flora e fauna locais. O Zé Povinho, personagem criado graficamente por Bordalo para caricaturar o povo português, obteve inúmeras interpretações em peças de barro, desde pequenas esculturas a canecas que expunham em relevo suas feições. Esse traço debochado de Bordalo, capaz de produzir peças com humor, por ve-zes grotescas, confrontava-se com a expectativa por um traço harmônico, sublime e belo a ser visualizado nas peças decorativas.

Enquanto o excesso, o humor e a surpresa são aceitos e até elogia-dos no caso de personagens caricaturais, o mesmo não ocorre quando o campo focalizado atinge vasos e jarros artísticos. Deles se esperam formas sensíveis capazes de satisfazer expectativas estéticas. De certo modo, as faianças artísticas de Bordalo alcançaram boa receptividade, como se pode depreender nos elogios angariados com a exposição no edifício Comércio de Portugal, em Lisboa, em 1886, e na crítica da exposição realizada no edifício do Ateneu Comercial, na cidade do Porto, em janeiro de 1888: “Um verdadeiro deslumbramento tudo aquilo, em que se admira, a par de um extraordinário trabalho técnico, as mais maravilhosas concepções, a mais delicada fantasia, a mais pitoresca e artística modelação”30.

A partir da década de 1890, Bordalo criou obras mais fantasiosas e de vulto, dentre as quais a jarra Beethoven, avaliada pelo artista como sua obra mais completa. As peças de Bordalo de dimensões avantajadas não obtiveram a mesma receptividade que as demais cerâmicas artísticas. As peças tour de force31 de Bordalo foram sublinhadas mais pela ultrapassagem

27 A respeito da história do empreendimento, veja SERRA, João B. Arte e indústria na transi-ção para o século XX, op.cit. 28 Três são considerados os expoentes das cerâmicas de Caldas: Manuel Cipriano, Ma-nuel Mafra e Rafael Bordalo Pinheiro.29 RAMALHO ORTIGÃO, José Duarte. Louças de Bordalo Pinheiro. O Ocidente, Lisboa, n.260, 11 mar. 1886.30 COMÉRCIO DO PORTO, Porto, 29 jan. 1888.

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alde dificuldades técnicas no seu processo de fabricação, área correlacionada

ao saber científico, do que pelo alcance de um cânone admirável de beleza, categoria tida como própria da arte. As grandes dimensões e os desafios enfrentados na execução ainda somavam-se às formas complexas, bastante detalhadas e repletas de elementos ornamentais diferentes entre si, afinadas com a estética do acúmulo.

Gênese da criatura

Bordalo já alcançara certa fama com seu trabalho cerâmico quando a jarra Beethoven foi encomendada em 1895 por José Relvas, abastado pro-prietário de terras e político. Ele queria uma peça do renomado artista para decorar a sala de música de sua casa, a Quinta dos Patudos, em Alpiarça. Ponderando que o cliente era violinista amador, fã confesso de Beethoven e destacado colecionador de arte, Bordalo provavelmente quis criar um objeto passível de não só embelezar um ambiente residencial, mas de ser digno de integrar a coleção de Relvas32. A peça deveria atuar tal qual uma obra de arte visual. Com esse pressuposto, a jarra deveria estar além da condição utilitária. Deveria sublinhar a condição artística, especificando-se como uma jarra para se olhar e se admirar. Bordalo a fez enorme.

Respeitando a tradição artística pictórica e acadêmica do período, Bordalo criou uma jarra narrativa, capaz de exprimir em barro e vidrados a obra do grande músico alemão e o impacto de seus acordes sonoros sobre seres humanos e imaginários, delineados de forma decorativa. Trata-se de uma jarra executada em fins do século XIX, momento áureo na discussão sobre a qualidade da imagem dos objetos-mercadorias e, principalmente, de reorganização no modo de olhar para os objetos que seriam postos dentro das casas33. Os lares oitocentistas se transformaram em foco de atenção estética e buscavam estimular olhares decorativos para seus ambientes. Em todos os grandes centros urbanos, os membros da burguesia em ascensão, ou aqueles que nela se miravam, procuravam, ávidos, por objetos e ma-teriais que sanassem desejos por peças decorativas que condecorassem e embelezassem seus espaços domésticos34. A questão decorativa estava na berlinda35, desafiando certos estatutos da arte, na medida que o lugar do decorativo no sistema artístico e produtivo estava sendo discutido.

Normalmente, o uso do termo artes decorativas, expressão que se manifestou sobretudo no século XIX, refere-se a manifestações artísticas excluídas da categoria de belas artes — música, poesia, arquitetura, pintura e escultura. É justamente o adjetivo decorativo que exclui as artes decora-tivas da categoria das belas artes e que, concomitantemente, lhes confere especificidade artística. A operação de valorizar a potencialidade do ‘visível que agrada’ nos objetos parece ter acarretado a criação da expressão arte decorativa, que teria como primeira intenção dar visibilidade ao artístico do objeto ou, como diria John Ruskin por outro viés, que “toda arte pode ser decorativa”36.

A jarra, ao chegar ao seu pretenso destino, pareceu enorme para uma sala residencial de dimensão pacata. O ambiente parecia encolhido frente àquela peça gigante. Sua presença desequilibrava o lugar. Ela se destacava demais, era demais para aquele ambiente, demais para o que se esperava de uma obra decorativa. Ela não preencheu as expectativas decorativas do freguês. A jarra foi recusada. O cliente receberia duas jarras com decorações

31 As três obras considera-das excepcionais na produ-ção cerâmica de Bordalo são a Talha Manuelina (1892), o Perfumador Árabe (1896) e a jarra Beethoven (1895). As duas primeiras integram hoje o acer-vo de Museu Rafael Bordalo Pinheiro. 32 A coleção de José Relvas é considerada uma das maiores coleções privadas de arte de Portugal. Após sua morte, a casa com toda a coleção, foi transformada em museu. A Casa Museu dos Patudos — Mu-seu de Alpiarça localiza-se na rua José Relvas, no município de Alpiarça, distrito de Santarém, na região do Ribatejo, Portugal.33 A respeito da construção de uma cultura visual porta adentro e de um olhar educado e preparado para ver decoração em casa, veja MALTA, Marize. O olhar decorativo: ambientes domésticos em fins do século XIX no Rio de Janeiro. Niterói, 2009. Tese (Doutorado em História ) — ICHF, UFF, Niterói, 2009.34 FORTY, Adrian. Ob-jects of desire: design and society since 1750. London: Thames and Hudson, 1995. p. 94-120.35 Vários textos que abordam os debates sobre as artes deco-rativas, elaborados em fins do século XVIII, durante o século XIX e nas primeiras décadas do século XX, estão reunidos em uma antologia organizada por Isabelle Frank. FRANK, Isabelle (Ed.). The theory of decorative art: an anthology of european and american writings, 1750-1940. New Haven: Yale University Press, 2000.36 RUSKIN, op.cit., p.158.

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alusivas ao vinho e a promessa de uma jarra igual, de tamanho menor, que foi finalizada em 1903 com apenas 50 centímetros37.

A condição decorativa da jarra Beethoven não foi alcançada naquele endereço, pois ela não conseguira se harmonizar ao ambiente nem tinha auxiliado a ficar mais atraente aos olhos. Pelo contrário. A jarra se mostrava inadequada ao lugar, impedindo um olhar ameno. A tensão por ela provo-cada levou o proprietário, um colecionador de arte, a rejeitá-la, condená-la a objeto indigno de sua coleção (de arte). A jarra Beethoven, diante dessa situação, podia ser exemplo de uma arte ‘ruim’ ou nem ser arte.

Bordalo, com outro ponto de vista, desejou uma peça decorativa de imagem reverberante, que fosse digna de grande admiração. Sua expec-tativa era de que a receptividade da jarra fosse tão exagerada quanto sua plástica, possibilitando atitudes idólatras. A criatura em barro podia en-carnar a potencialidade do gênio português, assumir posição de porta-voz da arte lusa. Contudo, a sublimidade esperada na sua fruição, condição para a peça se tornar ídolo38, foi anulada, quando sua imagem foi taxada de problema. José Relvas não queria aquela imagem naquele lugar, dentro da sua casa e diante dos seus olhos, tornando-se um iconoclasta daquela imagem.

A jarra Beethoven ultrapassava o visível que agrada. Forçava os ob-servadores a movimentarem cabeças e corpos, como os volteios dados ao barro. Ela exigia movimento, ação e concentração para identificar todas as alegorias e motivos ornamentais. A atitude frente a ela não admitia contem-plação, mas promovia tensão. Sendo decorativa, ela reclamava pela condi-ção de ser arte, mas presa a uma forma identificada como decorativa — a jarra. De certo, a jarra gozava da prerrogativa de uma obra de arte — era original e única, não havendo nada igual, nem condições de reproduzi-la.

Desvios de uma criatura

Assim, a jarra Beethoven ficou sem lugar, alcançando o incômodo estado de obra de arte sem teto. Daí começou seu percurso, ou sina para alguns, a fim de conseguir um lugar que a acolhesse e onde pudesse ser/estar arte decorativa. Bordalo, tentando encontrar um asilo digno para a grande obra, procurou expô-la ao público, de modo a conseguir comprador. O jardim de inverno do Teatro D. Amélia39, em Lisboa, foi o espaço onde a jarra pôde ser admirada a partir de 30 de setembro de 1898.

Situar a jarra Beethoven em espaço não residencial era uma tentativa de oferecer experiência visual diversa, proporcionando um território que pudesse modificar os valores atribuídos à jarra, visto que imagens adquirem significados, em parte, de acordo com os lugares em que são exibidas40. Tal qual o mundo teatral, que Rafael bem conhecia41, a jarra assumia uma personagem, uma “criatura” encarnando o papel de obra de arte. Ali, era o centro das atenções, sugerindo ser digna de destaque. Não mais dialo-gava com móveis, tapetes, quadros e espelhos de uma casa determinada. Ao contrário, o público deveria imaginar um lugar adequado à peça e não sua adequação a determinada casa, com decoração preexistente.

Muitos elogios, mas nenhum comprador. Mesmo o senhorio de Bor-dalo, que se mostrou deslumbrado com a peça, não quis levá-la para casa e lhe sugeriu que procurasse vendê-la no Brasil42. A jarra foi novamente recusada. O sonho de Bordalo de ter criado uma obra excepcional, síntese

37 JLAS. João Serra falou sobre a Jarra Beethoven nos 50 anos da Casa dos Patudos. Gazeta das Caldas, Caldas da Rainha, 7 out. 2010. Disponível em: <http://www.gazetacaldas.com>. Aces-sado em jun. 2010.38 MITCHELL, op.cit., p.121.39 Mereceria estudo a empreita-da para transporte da jarra até Lisboa, desde a criação e exe-cução de sua embalagem até os diversos meios de locomoção pelos quais passou até chegar intacta ao teatro D. Amélia, como podemos vislumbrar na entrevista de Bordalo para o jornal O Mundo, Lisboa, 4 nov. 1903. 40 LEPPERT, op. cit., p.12.41 Desde jovem, Bordalo de-monstrou afinidades com o mundo teatral e quando cur-sava o liceu faltava muitas aulas para se dedicar ao teatro, atuando pela primeira vez com 14 anos, o que o incentivou a se inscrever no Curso de Arte Dramática do Conservatório de Lisboa, apesar de não o concluir. No início da carreira, ilustrou o livro Os Teatros de Lisboa, de Júlio César Machado, e criou cenários, programas e caricaturas de peças teatrais, além de o periódico O Binóculo ser especializado no mundo do espetáculo.

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alinconteste da criatividade arrebatadora dos portugueses, parecia desvane-

cer. Nenhum português via aquilo que Bordalo quis fazer ver.Por mais que a jarra fosse cercada de inúmeras críticas de admiração, a

recusa em adquiri-la, seja para o domicílio de um membro da alta sociedade, seja para expor a público em ambiente institucional, sugere a contradição entre juízos e ações. Alguns dos contemporâneos de Bordalo não viam a jarra Beethoven com bons olhos, atribuindo seu tamanho descomunal e sua fantasia decorativa como resultado do capricho do artista Bordalo Pinheiro e da obstinação de gênio que, ao querer criar suas criaturas, teria impedido a fábrica de prosperar43. O amigo escritor Fialho de Almeida admitia que: “As exigências práticas da fábrica, não se ajustando sempre às concepções artísticas do mestre, forçoso alguma vez trabalhar com as sensaborias da gerência que pede louças de venda quotidiana, em vez de bibelotage e sem outro proveito doméstico do que a vista (...)”44.

Até os mais entusiastas da obra de Bordalo não se privaram de recri-miná-la, como o fez Ramalho Ortigão: “A jarra de Bordalo é inteiramente uma bela peça para concurso de cerâmica porque não há dificuldade que nela não se ache resolvida. Como composição decorativa, no ponto de vista absolutamente estético, é obra muito defeituosa, excessiva, complicada, destituída absolutamente das condições fundamentais de uma obra de arte, que são a ponderação, a harmonia e a lógica de conjunto”.45 Ortigão ainda justificava aquela extravagância cerâmica com o fato de ela ter sido feita com a intenção “pouco poética” e “extra-artística” de encantar os tolos, encher de fascinação “os basbaques”46.

Sem comprador para a jarra em Portugal, Bordalo veio ao Brasil pro-curar melhor lugar para sua peça ou o esperado reconhecimento. Quem sabe num país tropical, jovem e exótico, ela não encontraria acolhida triunfal? O artista aqui chegou em fins de maio de 1899, acompanhado com vários objetos cerâmicos, dentre eles a sua obra-prima. Em fins de julho foi inaugurada a exposição das faianças de Bordalo na rua do Ouvidor, nº 73. Mais uma vez a jarra se exibia em local não residencial, mas em outro território. Diferentes olhos a veriam, outros sentidos poderiam lhe ser atribuídos. Se a imprensa lhe rendeu elogios, como se fizera em Portugal, não surtiu efeito sobre o potencial público comprador da jarra. Não apareceu comprador.

A jarra não encontrava lugar para estar e continuava inadequada ao mundo, mesmo aquele mundo dos trópicos, um território exótico que poderia ser compatível com a exuberante criatura. Bordalo teria criado um monstro que “(...) representava o triunfo da ciência e a inadaptabilidade desse progresso em um mundo que o poderia aceitar enquanto experiência, mas o rejeitava enquanto imagem”47. Nenhuma casa brasileira se dignou acolhê-la. A criatura, em vez de dar glória ao criador, virava-se contra ele e tornava-se uma ameaça à reputação de seu talento artístico. Para usar um conhecido jargão popular, Rafael parecia ter criado um ‘elefante branco’: enorme, exótico e deslocado — uma peça sem lugar para estar.

Resolveu sortear a jarra. Uma jogada de marketing buscava convencer a boa sociedade carioca a adquirir uma excepcional obra de arte, gastando um quase nada. Procedeu-se ao sorteio, mas não houve ganhador. Justo o bilhete premiado não havia sido vendido48. A delicada situação foi con-tornada com a idéia de doar a jarra para o governo brasileiro. A jarra foi instalada em um dos salões do Palácio do Catete, sede da presidência da República. Se não era um lugar de arte, o palacete era, por sua situação

42 LEITÃO, Joaquim. O poço que ri. In: Anais das bibliotecas, museus e arquivo histórico mu-nicipal, Lisboa, n.19, p. 18-33. jan.-mar. 1936, p.24.43 Até hoje se produzem peças cerâmicas de Bordalo, a partir dos moldes originais recupera-dos por seu filho na época de seu falecimento. A fábrica não ocupa mais o prédio original, mas fica a ele contíguo e, como uma sina, continua a ser ame-açada de ser definitivamente extinta. As visitas podem ser feitas sob agendamento. Faian-ças Artísticas Bordalo Pinheiro — rua Rafael Bordalo Pinheiro, 53. Apartado 259. Leiria — Caldas da Rainha. Para maiores infor-mações, acesse http://www.bordallopinheiro.pt .44 ALMEIDA, Fialho de. Rafael Bordalo Pinheiro. In: ______. À Esquina. Jornal de Um Vaga-bundo. 7.ed. Lisboa: Livraria Clássica, 1960. [1ª ed., 1915.]45 ORTIGÃO, Ramalho. Cartas a Emília. Lisboa: Lisóptima/Biblioteca Nacional, 1993.46 Idem.47 MALTA, Marize. Corpos es-tranhos: Frankenstein e o objeto eclético. In: VELLOSO, Mônica et al. (org.). Corpo: identidades, memórias e subjetividades. Rio de Janeiro: Mauad, 2009, p.167-180 e p.168.48 LEITÃO, op.cit., p.25.

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política, um território especial, espaço que não pertencia a ninguém par-ticularmente, mas à nação49.

Aquela obra, tão grandiosa, não fora feita para ser encerrada em uma casa de cidade do interior de Portugal. Merecia estar em cidade capital, em prédio de valor, localizada em contexto que pudesse ser admirada por muitos e não privilégio de poucos. A jarra habitou por vários anos o Salão Pompeano do Palácio do Catete, cuja decoração, como o nome explica, remetia às decorações romanas de Pompéia. A decoração não se compatibi-lizava com a estética da jarra, mas como diria outro jargão popular, “cavalo dado não se olha os dentes”. E ali, a famosa jarra Beethoven foi exposta durante anos, sendo com certa freqüência mencionada na imprensa. Ela ainda impressionava, sensação corroborada pelas palavras de João da Maia em artigo que comentava uma recepção no palácio do Catete por ocasião de comemoração de trinta anos de proclamação da República: “O que ahi mais impressiona é a famosa jarra Beethoven, de Bordallo Pinheiro, uma obra cheia de seducções e curvas suavissimas”50.

49 O Palácio do Catete, ori-ginalmente Palácio de Nova Friburgo, foi construído entre 1858 e 1867 pelo barão de Nova Friburgo. Em 1896, o imóvel foi adquirido pelo Governo Fede-ral para sediar a Presidência da República, que até então se localizava no Palácio Itamaraty. O edifício foi sede do governo republicano até 1960, quando a capital do país foi transfe-rida para Brasília e o palácio transformado em Museu da República.50 MAIA, João da. A elegância no theatro, nos chás e nos salões. Fon-fon, Rio de Janeiro, ano XIII, n.46, 15 nov.1919.

Figura 4. A Jarra Beethoven no

Salão Vermelho ou Pompeano

no Palácio do Catete, sede

da Presidência da República.

Imagem veiculada na edição

especial da revista Renascença,

em comemoração à III Confe-

rência Pan-Americana, sediada

na cidade do Rio de Janeiro,

set. 1906.

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alA grande jarra chegou até a ser apresentada em destaque na edição

especial da revista Renascença, que versou sobre a III Conferência Pan-Ame-ricana, ocorrida em 1906, no Rio de Janeiro51. A referida revista apresentou informações sobre o evento, imagens fotográficas dos salões de palacetes relacionados ao governo federal e salientou algumas obras de arte que deveriam representar o patamar civilizado que o Brasil desejava ostentar aos países vizinhos da América. Em meio a imagens de pinturas de Pedro Américo, Parlagrecco e Belmiro de Almeida, lá estava registrada, em close, a jarra Beethoven no seu domicílio. Naquele momento, naquele lugar, a jarra teria, enfim, alcançado o estatuto de obra de arte. Contudo, aquelas obras de arte, naquele palácio, estavam atuando mais como condecoração da nação do que exclusivamente por seus atributos estéticos.

Anos depois, a jarra foi transferida para o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista e, em 1939, doada ao Museu Nacional de Belas Artes. A exu-berante jarra iria ocupar um espaço reservado às obras de arte e poderia enfim ser fruída no seu esplendor. Parecia estar indo para o lugar certo.

51 RENASCENÇA; revista mensal illustrada de Letras, Sciencias e Artes. Rio de Ja-neiro, ano III, n.31, set. 1906. [Número espacial consagrado à 3ª Conferência Internacional Americana].

Figura 5. A Jarra Beethoven

localizada na Sala da Mulher

Brasileira no Museu Nacional

de Belas Artes. Imagem vei-

culada na revista Ilustração

Brasileira, nov. 1939.

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52 ANUÁRIO DO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES 1938-1938, op. cit., p.7.53 Apud. SCHWALBACH, Edu-ardo. Lareira do passado: memó-rias. Lisboa: [edição do autor], 1944. p.173

A jarra foi colocada na Sala da Mulher Brasileira, destinada a reunir retra-tos de damas brasileiras, pintados por artistas locais e estrangeiros52. Sua condição submissa e inferiorizada (frente ao paradigma das ‘artes maio-res’) e, ao mesmo tempo, ousada e sedutora (frente ao paradigma da ‘arte decorativa’) tornava-a, na referida sala, cúmplice das retratadas, mulheres do passado que, como a jarra, eram identificadas como bibelôs sociais, vistas sendo figuras decorativas e que serviam (como artes utilitárias) às fantasias masculinas.

Nos setenta anos que lá reside, a jarra transitou por salões e saguões do museu e atualmente está na sala Aloísio Magalhães, que não lhe dá des-taque e poucos visitantes sabem de sua existência. Está distante das obras de arte a ela contemporâneas, como se não fosse possível se harmonizar com as pinturas e esculturas exibidas nos salões de exposições permanen-tes. Assim, a jarra de Bordalo, a grande jarra Beethoven, vem ocupando um lugar de arte, mas sem lhe ter sido dada a oportunidade de ser uma arte além da decorativa. Parece que vem apenas decorando os espaços do museu, cumprindo sua sina de arte decorativa. Ao mesmo tempo, sua dimensão exagerada e formas arrebatadoras continuam inadequadas a um sentido puramente decorativo.

A imagem da jarra Beethoven é exemplo emblemático de uma ima-gem-problema. Trata-se de obra incompreendida, que não se adequou, nem se adequa até hoje, a uma ou outra categoria estética e sofre as conseqüên-cias desse desvio, não encontrando um lugar para que seja o que é — uma estranha criatura. Bordalo, diante das opiniões negativas a respeito da sua criatura, reafirmava sua condição de artista, sua originalidade criadora e o intuito de transformar sua criação em obra especial, extraordinária, espetacular. Era um criador inconformado e desabafava:

… não lhe parece que quando se chega à minha idade, quando se tem dado provas de não ser um ignorante, quando se conquista um nome à custa de muito trabalho e de algum fósforo cá dentro, não pode haver dúvida de que o artista conhece as formas clássicas, consagradas e que se lhes foge para criar qualquer coisa arrojada, muito sua, é porque o moveram razões de especial engenho. Não comete um erro, liberta-se de peias e voa à sua vontade. Na minha Jarra a fantasia abandonou as regras estabelecidas para fazer ressaltar alguns grupos, uma figura, motivos orna-mentais. De propósito o fiz, nunca por ignorância, valha-nos Deus! Atacarem por este motivo é triste e tira a vontade de trabalhar.53

Sua jarra tinha letra maiúscula, tinha nome próprio, forte persona-lidade e estava além dos lugares comuns, em todos os sentidos. Era uma obra para além do ‘meramente decorativo’. Era obra superlativa, extraor-dinariamente decorativa, ousadamente artística. Desse modo, que lugar pode ela ocupar?

Artigo recebido e aprovado em junho de 2010.