Jean-Christophe Grange - Rios de Púrpura

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jean-Christophe GrangeRios de PrpuraTraduzido do francs por G. Cascais FrancoASALiteratura Para a VirginieGanhmos! Ganhmos!Pierre Nimans, dedos crispados sobre o emissor via l em baixo a multido a descer as rampas de beto do Parque dos Prncipes. Milhares de crnios afogueados, de chapus brancos, de cachecis garridos, formando uma fita sarapintada e delirante. Uma exploso de confetis. Ou uma legio de demnios alucinados. E as trs notas, sem descanso, lentas e lancinantes: Ganhmos!.O polcia, de p sobre o telhado dojardim de infncia que ficava defronte do parque, tinha em panorama as manobras da terceira e quarta brigadas das companhias republicanas de segurana. Os homens de azul escuro corriam sob os seus capacetes negros, protegidos pelos escudos de policarbonato. O mtodo clssico. Duzentos homens de ambos os lados de cada srie de portas, e comandos em barreira, incumbidos de evitar que os adeptos das duas equipas se cruzassem, se abeirassem uns dos outros ou se avistassem sequer...Nessa noite, para o encontro Saragoa-Arsenal, a nica partida do ano em que duas equipas no-francesas se defrontavam em Paris, mais de mil e quatrocentos polcias e gendarmes tinham sido mobilizados. Controlo de identidade, revistas de alto a baixo e enquadramento dos quarenta mil adeptos vindos dos dois pases. O comissrio principal Pierre Nimansera um dos responsveis por tais manobras. Este tipo de operaes no correspondia s suas funes habituais, mas o polcia de cabelo cortado escovinha apreciava exerccios assim. Vigilncia e enfrentamento puros. Sem inqurito nem autos. De certo modo, uma tal gratuitidade repousava-o. E gostava do aspecto militar deste exrcito em marcha.Os adeptos chegavam ao primeiro nvel - podia-se lobrig-los entre as fuselagens betonadas da construo, acima das portas H e G. Ninams consultou o seu relgio. Dentro de quatro minutos estariam c fora, derramando-se na calada. Comeariam ento os riscos de contactos, de atritos, de rupturas. O polcia encheu os pulmes at ao fundo. A noite de Outubro estava carregada de tenses.Dois minutos. Por reflexo, Nimans voltou-se e enxergou ao longe a Porta de Saint-Cloud. Absolutamente deserta. As trs fontes erguiam-se na noite, como ttemes de inquietude. Ao longo da avenida, os carros de CRS apertavam-se em fila indiana. Em frente, alguns homens remexiam os ombros, de capacetes afivelados no cinto e matracas a bater na perna. As brigadas de reserva.O chinfrim aumentou. A multido espraiava-se por entre as grades eriadas de bicos. Nimans no pde reprimir um sorriso. Era disto que ele tinha vindo procura. Houve uma vaga. Clarins rasgaram o alarido. Um fragor fez vibrar o mnimo interstcio do cimento: Ganhmos! Ganhmos!. Nimans carregou no boto do emissor e falou ajoachim, o chefe da companhia leste. - Aqui, Nimans. Esto a sair. Canalizem-nos para os carros, na alameda Murat, para as reas de estacionamento, as bocas do metropolitano.Das alturas, o polcia avaliou a situao: os riscos daquele lado eram mnimos. Os vencedores nessa noite eram os espanhis, e portanto os menos perigosos. Os ingleses estavam a sair pela ala oposta, portas A e K, junto bancada de Bolonha- a tribuna dos animais ferozes. Nimans iria deitar uma olhadela assim que esta operao encarrilasse.De sbito, luz dos candeeiros, por cima da turba voou uma garrafa de vidro. O polcia viu abater-se uma matraca,10fileiras cerradas a recuar, homens a cair. Berrou no emissor: _Joachim, porra! Segure os seus homens!Nimans embrenhou-se na escada de servio e desceu de escantilho os oito andares a p. Quando saiu para a avenida, j duas linhas de CRS acorriam, prontos a subjugar os hooligans, Nimans preciptou-se ao encontro dos homens em armas e agitou os braos em longos acenos circulares. As matracas j estavam a poucos metros do seu rosto quando Joachim irrompeu direita, de capacete enterrado na cabea. Levantou a viseira e desferiu um olhar enfurecido:- Santo Deus, Nimans, doido ou qu? paisana, ainda apanha...O polcia ignorou a interpelao:- Que vem a ser esta merda? Domine os seus homens, Joachim! Caso contrrio, daqui a trs minutos teremos um tumulto.Rotundo, rubicundo, o capito ofegava. O seu bigodinho, modelo princpio do sculo, estremecia ao sabor da sua respirao sacudida. A banda VHF ressoou: A... Apelo a todas as unidades... Apelo a todas as unidades ... A curva de Bolonha... rua do Commandant Guilbaud... Eu ... Temos um problema! . Nimans fitou Joachim como se fosse ele o nico responsvel pelo caos generalizado. Os seus dedos tactearam o emissor:- Aqui, Nimans. Vamos j. - Depois ordenou ao capito, numa voz refreada:- Vou at l. Mande-nos o mximo de homens. E arrume a situao aqui.Sem aguardar a resposta do oficial, o comssrio correu em busca do estagirio que lhe servia de motorista. Atravessou a praa em longas passadas, avistou ao longe os empregados da Cervejaria dos Prncipes, que desciam pressa as portas ondulantes. O ar estava saturado de angstia.Descortinou finalmente o moreno baixote de bluso de cabedal, que andava de um lado para o outro ao p de um chao preto. Nimans bradou, dando uma palmada no capot do automvel.11- Depressa! A curva de Bolonha!Os dois homens subiram no mesmo instante. As rodas fumegaram ao arrancar. O estagirio virou esquerda do estdio a fim de alcanar a porta K o mais depressa possvel, ao longo de um caminho vedado por razes de segurana. Nimans teve uma intuio:- No - murmurou ele -, d a volta. A bulha vai deslocar-se na nossa direco.O automvel fez um rodopio, deslizando sobre as poas dos camies de gua j prontos para as represlias. Em seguida percorreu a avenida do Parque dos Prncipes, ao longo de um corredor estreito formado pelos carros cinzentos da guarda mvel. Os homens de capacete que corriam no mesmo sentido afastaram-se sem lhes lanar um s olhar. Nimans colocara o farol magntico no tejadilho. O estagirio virou esquerda nas imediaes do liceu Claude-Bernard e contornou a praceta, a fim de ladear o terceiro lano do estdio. Acabavam de ultrapassar a bancada de Auteuil.Quando Nimans viu as primeiras nuvens de gs a pairar no ar, soube que fizera bem: o confronto chegaraj praa da Europa.O automvel atravessou o nevoeiro esbranquiado e teve de travar bruscamente diante das primeiras vtimas, que fugiam sem olhar para trs. A batalha desencadeara-se mesmo em frente da tribuna presidencial. Homens de gravata e mulheres cintilantes corriam e tropeavam, com o rosto banhado em lgrimas. Alguns procuravam uma abertura para as ruas; outros, pelo contrrio, subiam de novo os degraus conducentes aos prticos do estdio.Nimans saltou do veculo. No meio da praa, corpos amalgamados desancavam-se sem d nem piedade. Distinguiam-se vagamente as cores berrantes da equipa inglesa e as silhuetas escuras dos CRS. Alguns destes rojavam-se no cho - espcie de lesmas ensanguentadas -, enquanto outros, distncia, hesitavam em utilizar as suas espingardas antimotins por causa dos colegas feridos.12O comissrio guardou os culos e atou um leno em volta do rosto. Dirigiu-se ao CRS mais prximo e arrancou-lhe a matraca, estendendo-lhe no mesmo gesto o seu carto tricolor. O homem ficou estupefacto; o vapor embaciava a viseira translcida do seu capacete.Pierre Nimans correu para o meio da bordoada. Os adeptos do Arsenal agrediam a murro, a golpes de barras e de taces ferrados, enquanto os CRS ripostavam recuando, tentando defender os colegas j levados ao tapete. Havia corpos a gesticular, rostos a amarfanhar-se, mandbulas a percutir o asfalto. Os bastes erguiam-se e abatiam-se, dobrando-se sob a violncia das pancadas.O oficial avanou para a peleja.Serviu-se do punho, da matraca. Agadanhou um tipo gordo e depois assestou-lhe uma srie de directos. Nas costelas, no baixo-ventre, na cara. De repente, amargou um pontap vindo da direita, depois levantou-se aos urros. O seu basto encurvou-se na garganta do agressor. O sangue zumbia-lhe na cabea, um gosto a metal anestesiava-lhe a boca. No pensava em nada, no sentia nada. Estava na guerra e sabia-o.Nisto, reparou numa cena estranha. A cem metros dali, um homem paisana, bastante maltratado, debatia-se agarrado por dois hooligans. Nimans escrutou os veios de sangue no rosto do adepto, os gestos mecnicos dos dois outros, frenticos de dio. Mais um instante e Nimans compreendeu: o ferido e os dois agressores arvoravam nos seus bluses as insgnias dos clubes rivais.Um ajuste de contas.Ainda mal tinha compreendido e j a vtima se livrava dos atacantes, escapando para uma rua transversal - a rua Nungesser et Coli. Os dois espancadores seguiram-lhe as pisadas. Nimans deitou fora a matraca, abriu passagem e foi-lhes no encalo.A perseguio iniciou-se.Nimans corria, de flego cadenciado, ganhando terreno aos dois algozes, que por sua vez se aproximavam da presa, ao longo da rua silenciosa.13Voltaram outra vez direita e atingiram em breve a piscina Molitor, inteiramente murada. Desta feita, os pulhas acabavam de apanhar a sua vtima. Nimans chegou ao p da praa da Porta Molitor sobranceira alameda perifrica e no acreditou no que os seus olhos viam: um dos assaltantes sacava de um machete.Sob as luzes glaucas da artria, Nimans discerniu a lmina que lacerava sem cessar o homem ajoelhado, o qual absorvia os golpes com pequenas convulses. Os agressores soergueram o corpo e atiraram-no por cima da balaustrada.- NO!O polcia rugira e tirara o seu revlver do coldre no mesmo instante. Encostou-se a um automvel, firmou o punho direito na palma esquerda e visou, retendo a respirao. Primeiro tiro. Falhado. O matador armado de machete virou-se, estupefacto. Segundo tiro. Tambm falhado.Nimans retomou a corrida, de revlver contra a coxa, em posio de combate. A clera moa-lhe o corao: sem os culos, falhara o alvo por duas vezes. Atingiu por seu turno a ponte. O homem do machete fugia j para as matas que orlam a alameda perifrica. O seu cmplice permanecia imvel, esgazeado. O oficial da polcia abateu a coronha da arma sobre a garganta do homem e arrastou-o Pelos cabelos at a uma placa de sinalizao. Algemou-o com uma das mos. S nessa altura se debruou sobre a circular.O corpo da vtima esmagara-se contra a calada e vrios carros tinham-lhe passado por cima antes de os choques em cadeia obstrurem completamente o trfego. Veculos em amontoados caticos, chapas destroadas... O engarrafamento lanava agora o seu cntico desvairado de buzinas. luz dos faris, Nimans entreviu um dos condutores, que cambaleava perto do seu veculo levando as mos ao rosto.O comissrio estendeu o olhar para l do perifrico. Avistou o assassino, de braadeira colorida, atravessando a folhagem. Nimans ps-se logo em movimento enquanto metia a arma no coldre.14Atravs das rvores, o assassino deitava-lhe agora breves miradas. o polcia no se escondia: o homem devia saber que o comissrio principal Pierre Nimans ia dar-lhe cabo do canastro. De sbito, o hooligan galgou um talude e sumiu-se. O rudo dos passos que pisavam o saibro indicou a Nimans a sua direco: os jardins de Auteuil.O polcia seguiu-o e viu a noite reflectir-se nos calhaus cinzentos dos jardins. Flanqueando as estufas, distinguiu a silhueta que escalava um muro. Arremeteu e achou-se diante dos courts de tnis de Roland Garros.As portas gradeadas no estavam aferrolhadas: o assassino passava sem custo de court em court. Nimans empurrou uma porta, penetrou no terreno vermelho e saltou uma primeira rede. Cinquenta metros adiante, o homem abrandava j, dando sinais de fadiga. Ainda conseguiu transpor uma rede e subir escadas por entre as bancadas. Atrs dele, Nimans trepava os degraus de modo gil e lesto, s um nadinha arquejante. Encontrava-se j a poucos metros quando, no alto da bancada, a sombra se despenhou no vazio.O fugitivo acabava de alcanar o telhado de uma vivenda. Desapareceu num pice, l na outra extremidade. O comissrio recuou e lanou-se por sua vez. Aterrou sobre a plataforma de brita. Em baixo, relvados, rvores, o silncio.Nem rastro do assassino.O polcia deixou-se cair e rebolou na erva hmida, S havia duas possibilidades: o edifcio principal, donde saltara agora mesmo, e uma vasta dependncia de madeira, ao fundo do jardim. Sacou do seu MR 73 e arrimou-se porta que se erguia na sua frente: no ofereceu qualquer resistncia.O comissrio esboou alguns passos, depois estacou, pasmado. Estava num trio de mrmore, encimado por uma placa de pedra circular, gravada com letras desconhecidas. Um corrimo dourado elevava-se nas trevas dos andares superiores. Tapearias de veludo, vermelho imperial, estiravam-se na sombra, vasos hierticos reluziam... Nimans compreendeu que acabava de penetrar numa embaixada asitica.15De repente, um barulho ecoou l fora. O matador estava no outro edifcio. O polcia atravessou o parque rastejando pelo relvado e atingiu a dependncia feita de ripas de madeira. A porta ainda baloiava. Entrou, sombra dentro da sombra. E a magia diminuiu um furo. Era uma estrebaria, dividida em boxes cinzeladas, ocupadas por cavalinhos de crina aparada em escova.Garupas frementes. Palhas esvoaantes. Pierre Nimans adiantou-se, de arma em punho. Ultrapassou uma box, duas, trs... Um rudo surdo direita. O polcia voltou-se. Apenas um casco que batia. Um rosnido esquerda. Nova meia volta. Demasiado tarde. A lmina desceu. Nimans desviou-se no derradeiro momento. O machete roou-lhe o ombro e cravou-se na garupa de um cavalo. O coice foi fulgurante: a ferradura embateu no rosto do assassino. O polcia aproveitou a superioridade em que ficara e atirou-se ao homem, virando o revlver e utilizando-o como um martelo.Malhou, malhou, depois parou repentinamente, fixando as feies ensanguentadas do hooligan. Salincias de osso assomavam sob as carnes retalhadas. Um globo ocular pendia na ponta de um feixe de fibras. O matador j no bulia, conservando embora na cabea a sua chapeleta com as cores do Arsenal Nimans endireitou a arma e pegou na coronha sanguinolenta com ambas as mos, introduzindo o cano na boca devastada do homem. Moveu o co e fechou os olhos. Estava quase a disparar... quando um rudo estridente surgiu.O seu telemvel tocava dentro do bolso.Trs horas mais tarde, ao longo das ruas demasiado novas e demasiado simtricas do bairro de Nanterre-Prfecture, um pequeno claro brilhava no edifcio daDireco Central da Polciajudiciria do Ministrio do Interior.16uma espcie dejorro de luz, de potncia difusa e concentrada, que cintilava muito baixo, quase ao rs da secretria de Antoine Rheims, sentado na sombra. Diante dele, atrs do halo, erguia-se a alta silhueta de Pierre Nimans. Acabava de resumir, laconicamente, o relatrio que redigira sobre a corrida-perseguio de Bolonha. Rheims inquiriu, cptico:- Como est o homem?- O ingls? Em coma. Fracturas faciais mltiplas. Telefonei agora mesmo para o hospital de Htel Dieu: vo tentar um enxerto de pele no rosto.- E a vtima?- Esmagada debaixo dos carros, no perifrico. Porta Molitor.- Santo Deus. O que aconteceu?- Um ajuste de contas entre hooligans. No meio dos adeptos do Arsenal havia homens do Chelsea. Aproveitando a zaragata, os dois hooligans do machete abateram o seu inimigo.Rheims aquiescia, incrdulo. Aps um silncio, prosseguiu:- E o teu? Tens realmente a certeza de que foi um coice que o ps naquele estado?Nimans no respondeu e voltou-se para a janela. Sob a alvura da lua, discerniam-se os estranhos motivos desenhados * pastel que cobriam as fachadas dos prdios vizinhos: nuvens* arco-ris que planavam por cima das colinas verde escuro do parque de Nanterre. A voz de Rheims tornou a elevar-se:- No te entendo, Pierre. Por que te deixas atrair por histrias deste gnero? Vigilncia de estdio, com franqueza, eu...A voz desfaleceu-lhe. Nimans mantinha-se em silncio. -j no para a tua idade - insistiu Rheims. - Nem da tua alada. O nosso acordo era claro: nada de aco no terreno, nada de actos de violncia...Nimans virou-se e dirigiu-se para o seu superior hierrquico.- Vamos ao que interessa, Antoine. Por que me chamaste aqui, a meio da noite? Quando me telefonaste, no podias17estar ao corrente do que se passou no parque. Ento, de que se trata?A sombra de Rheims no se mexia. Ombros largos, cabelo grisalho encaracolado, faces talhadas a direito num rosto spero. Um fsico de guardio de farol. O comissrio de diviso chefiava h vrios anos o Servio Central para a Represso do Trfico de Seres Humanos - o SCRTSH -, um nome complicado para designar simplesmente uma instncia superior da Brigada de Costumes. Nimans conhecera-o muito antes de ele reinar nesta sinecura administrativa, quando eram ambos chuis de rua, papa-lguas de chuva, rpidos e eficazes. O polcia de cabelo escovinha debruou-se e repetiu:- O que , afinal? Rheims ciciou:- Trata-se de um homicdio.- Em Paris?- No, em Guernon. Uma pequena cidade no lsre, perto de Grenoble. Uma cidade universitria.Nimans puxou de uma cadeira e sentou-se em frente do chefe de diviso.- Sou todo ouvidos.- Encontraram o corpo ontem, ao fim da tarde. Entalado nuns rochedos, acima de um rio que margina o campus. Tudo leva a crer que estamos perante um crime de manaco.- O que sabes a respeito do corpo? uma mulher?- No. Um homem. Um tipo novo. O bibliotecrio da faculdade, ao que parece. O corpo estava nu. Tinha marcas de tortura: cortes, laceraes, queimaduras... Tambm me falaram de estrangulao.Nimans apoiou os cotovelos na secretria. Brincava com um cinzeiro.- Por que me contas tudo isso?- Porque tenciono mandar-te para l.- O qu? Por causa desse homicdio? Mas os gajos do SRI?J de Grenoble vo prender o assassino durante a semana e...18- Pierre, no te armes em parvo. Sabes muito bem que nunca assim to simples. Nunca. Falei com o juiz. Quer um especialista.- Um especialista em qu?- Em Homicdios. E Costumes. Ele suspeita de um mbil sexual. Enfim, uma coisa desse gnero.Nimans esticou o pescoo ao encontro da luz e sentiu o escaldo acre da lmpada de halogneo.- Antoine, no ests a dizer-me tudo.- O juiz Bernard Terpentes. Um velho compincha. Somos os dois dos Pirenus, ele e eu. Anda s aranhas, percebes? E quer resolver o caso o mais depressa possvel. Evitar os boatos, osjornais, todas essas idiotices. Daqui a poucas semanas a reabertura das aulas na universidade: preciso concluir o processo antes dessa data. Acho que no custa compreender.O comissrio principal levantou-se e voltou para ajanela. Esquadrinhou as refulgentes cabeas de alfinete dos candeeiros de iluminao pblica, as copas sombrias do parque. A violncia das ltimas horas ainda lhe palpitava nas tmporas: os golpes de machete, o perifrico, a corrida atravs de Roland Garros. Pensou, pela milsima vez, que a chamada telefnica de Rheims o salvara sem dvida de matar um homem. Pensou nesses incontrolveis acessos de violncia que lhe encegueiravam a conscincia, rasgando o tempo e o espao, a ponto de o levarem a cometer o pior.- Ento? - perguntou Rheims.Nimans virou-se e encostou-se ao alizar dajanela.- Hj quatro anos que no fao esse gnero de investigao. Por que razo me propes ocupar-me do caso?- Preciso de um homem eficaz. E sabes que os servios centrais podem escolher um dos seus homens e envi-lo para qualquer stio em Frana. - As suas largas mos tamborilaram na obscuridade. - Ponho em prtica o meu pequeno poder. O polcia dos culos de aros de metal sorriu.- Fazes o lobo sair do covil?19- Isso mesmo, tiro-o do covil. Para ti, uma lufada de ar fresco. Para mim, um servio que presto a um velho amigo. Pelo menos, entretanto, no surrars ningum...Rheims pegou nas folhas de um fax que brilhavam em cima da sua secretria:- As primeiras ilaes dos gendarmes. Aceitas ou no? Nimans dirigiu-se para a secretria e amarfanhou o papel trmico.- Depois telefono-te. Para ter notcias do hospital de Htel Dicu.O polcia deixou logo a rua dos Trois Fontanot e encaminhou-se para o seu domiclio, na rua La Bruyre, pertencente ga circunscrio. Um vasto apartamento quase vazio, com tacos de madeira encerados de senhora idosa. Tomou um duche, tratou das feridas - superficiais - e olhou-se ao espelho. Feies ossudas, enrugadas. Um corte escovinha, luzidio e cinzento. culos com aros de metal. Nimans sorriu sua prpria imagem. No gostaria nada de se cruzar com umas fuas assim numa rua deserta.Meteu algumas roupas num saco de desporto e, entre camisas e pegas, enfiou uma espingarda de mola Reminglon, calibre 12, bem como caixas de cartuchos e speedloader para o seu Manhutin. Por fim, pegou numa mala de lona espalmada e dobrou l dentro dois fatos completos de Inverno e umas gravatas com arabescos fulvos.No caminho para a porta de Ia Chapelle, parou no McDonalds da alameda de Clichy, aberto toda a noite. Tragou rapidamente dois Royal Cheese, sem tirar os olhos do automvel, estacionado em dupla fila. Trs horas da manh. Sob os nons esbranquiados, alguns fantasmas familiares palmilhavam a sala sebenta. Negros com farpelas demasiado amplas. Prostitutas de compridas tranas jamaicanas. Drogados, sem-abrigo, bbedos. Todos estes seres pertenciam ao seu universo de outrora: a rua. Esse universo que Nimans tivera de trocar por20um trabalho de gabinete, bem pago e respeitvel. Para qualquer outro chui, ter acesso aos servios centrais era uma promoo. Para ele, significara ser colocado na prateleira - uma prateleira dourada, mas que apesar de tudo o mortificara. Contemplou de novo as criaturas crepusculares que o rodeavam, Estas aparies haviam sido as rvores da sua floresta, por onde avanara noutro tempo, na pele do caador.Nimans rodou sem parar, faris no mximo, com desprezo pelos radares e limitaes de velocidade. s oito horas da manh, metia pela sada da auto-estrada em direco a Grenoble. Atravessou Saint-Martin dHres, Saint-Martin dUriage e rumou a Guernon, no sop do Grande Pico de Belledone. Ao longo da estrada em S alternavam as florestas de conferas e as zonas industriais. Imperava aqui uma atmosfera ligeiramente mrbida, como sempre sucede no campo quando a paisagem j no consegue disfarar a sua solido profunda por meio da mera beleza dos seus stios.Cruzou as primeiras placas que indicavam a direco da faculdade. Ao longe, os altos cimos delineavam-se na luz pardacenta da manh entroviscada. No fim de uma curva, enxergou a universidade l ao fundo do vale: grandes edifcios modernos, blocos estriados de beto, rodeados de extensos relvados por todos os lados. Nimans pensou num sanatrio que tivesse a dimenso de uma cidade administrativa.Saiu da estrada nacional e orientou-se para o vale. Discerniu, a oeste, os ribeiros verticais que se misturavam, escoriando os flancos escuros das montanhas com as suas fieiras de prata. Abrandou: arrepiou-se ao perscrutar aquelas guas geladas que caam a pique, escondendo-se sob tufos de brenhas para reaparecer logo a seguir, brancas e resplendentes, e depois desaparecer uma vez mais...Decidiu-se por um pequeno rodeio. Bifurcou, rodou sob uma abbada de lrices e abetos salpicados pelo orvalho matinal, e em seguida descobriu uma comprida plancie, orlada de altas escarpas negras.Parou. Saiu do carro e pegou no binculo. Sondou demoradamente a paisagem: perdera de vista o rio. Em breve percebeu21que a torrente, chegada ao cncavo do vale, se esgueirava por detrs da muralha de rochas. Podia mesmo avist-la graas a alguns V de pedras.De sbito notou um outro pormenor e tirou a limpo com o seu binculo. No, no se enganara. Voltou para o automvel e arrancou de chofre a caminho da ravina. Acabava de distinguir, numa das falhas de penedia, o cordo amarelo fluorescente, especfico da gendarmaria nacional:EXPRESSAMENTE INTERDITONimans desceu pela falha de rochedo onde se desenhavam as curvas de uma vereda estreita. Em breve teve de parar, pois o espao j no era suficientemente largo para a viatura. Saiu do carro, passou por baixo do cordo plastificado e alcanou o rio.O curso das guas era aqui travado por uma barragem natural. A torrente, que Nimans esperava encontrar cachoante de espuma, transformava-se num pequeno lago, claro e lenificante. Como um rosto donde toda a clera houvesse inopinadamente desaparecido. Mais longe, direita, recomeava o seu curso e atravessava sem dvida a cidade, que surgia, acinzentada, no leito do vale.Mas estacou de repente. A sua esquerda estava um homem, acocorado acima da gua. Num gesto reflexo, Nimans soergueu a correia de velcro do seu boldri. O movimento fez tilintar ligeiramente as algemas. O homem voltou-se para ele e sorriu logo.- O que faz aqui? - perguntou Nimans brutalmente.O desconhecido sorriu outra vez, sem responder, e levantou-se sacudindo as mos. Era um jovem de rosto franzino e22cabelos louros que faziam lembrar plos de pincel. Bluso de camura e calas justas perna. Retorquiu numa voz clara:- E voc?Esta demonstrao de insolncia desarmou Nimans, que declarou num tom desabrido:- Polcia. No viu o cordo? Espero que apresente uma boa razo para o facto de haver transposto o limite porque...- ric Joisneau, SRPJ de Grenoble. Vim como batedor. Trs outros OPJ devem chegar durante o dia de hoje.Nimansjuntou-se-lhe na margem direita.- Onde esto os plantes? - indagou.- Dei-lhes meia hora. Para o pequeno-almoo. - Encolheu os ombros com displicncia. - Precisava de trabalhar aqui. Queria estar sossegado... comissrio Nimans.O polcia de cabelo grisalho fez semblante de desagrado. O jovem continuou, num tom de evidncia:- Reconheci-o imediatamente. Pierre Nimans. Ex-glria do RAID. Ex-comissrio da BRB. Ex-caador de assassinos e de dealers. Ex-muitas coisas, em suma...- A insolncia agora faz parte do programa dos inspectores?Joisneau inclinou-se, numa postura irnica:- Desculpe, comissrio. Tento apenas dessacralizar a vedeta. Sabe muito bem que uma estrela, o superchui que alimenta os sonhos de todos osjovens inspectores. Est aqui por causa do homicdio?- O que achas?O polcia inclinou-se novamente.- Ser uma honra trabalhar a seu lado.Nimans examinava, a seus ps, a superfcie rutilante das guas lisas, como que vitrificadas pela luz matinal. Uma luminescncia dejade parecia erguer-se dos fundos.- Diz-me o que sabes sobre o caso.Joisneau levantou os olhos para a muralha de rocha.- O corpo estava entalado l no alto.23- L no alto? - repetiu Nimans, observando a penedia onde relevos agressivos lanavam sombras abruptas.- Sim. A quinze metros de altura. O assassino enfiou o corpo numa das falhas do rochedo. Imprimiu-lhe uma posio bizarra.- Que posio?Joisneau flectiu as pernas, subiu os joelhos e cruzou os braos contra o torso.- A do feto.- No banal.- Nada banal nesta histria.- Falaram-me de ferimentos, de queimaduras - volveu Nimans.- Ainda no vi o corpo. Mas parece, de facto, que h muitas marcas de tortura.- A vtima morreu por causa dessas torturas?- No existe a mnima certeza por enquanto. A garganta tambm mostra incises profundas. Sinais de estrangulamento.Nimans voltou-se de novo para o pequeno lago. Viu a sua silhueta - crnio rapado e casaco azul - reflectir-se distintamente.- E aqui? Encontraste alguma coisa?- No. H uma hora que procuro um pormenor, um indcio. Mas no h nada. Na minha opinio, a vtima no foi morta aqui. O assassino s a suspendeu l em cima.- Subiste at falha?- Sim. Nada a assinalar. O assassino trepou sem dvida ao alto das escarpas, pelo outro lado, depois arriou o corpo na ponta de uma corda. Desceu por seu turno, com a ajuda de outra corda, e entalou a vtima. Teve muito trabalho para lhe dar aquela postura teatral. incompreensvel.Nimans olhava outra vez a parede rochosa, eriada de arestas e escavada por asperezas. Do ponto onde se encontrava, no podia avaliar claramente as distncias, mas parecia-lhe que o nicho onde o corpo fora descoberto estava a meia altura24da escarpa, to afastado do solo quanto do alto da falsia. Girou bruscamente sobre si mesmo.- Vamos.- Aonde?- Ao hospital. Quero ver o corpo.O homem estava nu, a descoberto s at aos ombros, pousado de perfil sobre a mesa refulgente, numa posio encolhida, como se receasse que um relmpago o atingisse na cara. ombros metidos para dentro, nuca abaixada, o corpo conservava os dois punhos cerrados sob o queixo, entre os joelhos dobrados. A pele enlividecida, os msculos ressados e a epiderme semeada de chagas davam uma presena, uma realidade quase insustentvel ao cadver. O pescoo mostrava longas laceraes, como se tivessem procurado talhar a garganta. As veias difusas desdobravam-se sob as fontes, como rios na enchente.Nimans ergueu o olhar para os outros homens presentes na morgue. Havia o juiz de instruo Bernard Terpentes, silhueta esguia de bigode curto, o capito Roger Barnes, colossal, oscilando como um cargueiro, que chefiava a brigada de gendarmaria de Guernon, e o capito Ren Vermont, delegado pela seco de investigao da gendarmaria, um homenzinho calvo, de rosto barroso e olhos midos. Joisneau mantinha-se um pouco recuado e exibia um ar de estagirio zeloso.- Conhecem a identidade dele? - perguntou Nimans sem se dirigir especialmente a ningum.Barnes deu um passo em frente, muito militar, e pigarreou.- A vtima chama-se Rmy Caillois, senhor comissrio. Tinha vinte e cinco anos. Exercia a actividade de bibliotecrio-chefe desde h trs anos, na universidade de Guernon. O corpo foi identificado pela esposa, Sophie Caillois, esta manh.- Ela assinalara o desaparecimento?- Ontem, domingo, ao fim da tarde. O marido partira na vspera em passeio pela montanha, at ponta do Muret.25Sozinho, como costumava fazer todos os fins de semana. Por vezes dormia num dos refgios. Por isso que ela no se inquietou. S ontem tarde e...Houve uma espcie de pavor silencioso, um grito branco que ficou represo nas gargantas. O abdmen e o trax da vtima estavam crivados de chagas negruscas, cujas formas e relevos variavam. Cortes nos lbios violceos, queimaduras irisadas, dir-se-ia at que umas nuvens de fuligem. Notavam-se tambm laceraes, menos profundas, que se estiravam em volta dos braos e dos pulsos, como se houvessem amarrado o homem com cabos.- Quem descobriu o corpo?- Uma mulher, aindajovem... - Barnes deitou uma olhadela s suas fichas e prosseguiu: - Fanny Ferreira. professora na universidade.- Como que o descobriu? Barnes pigarreou outra vez:- uma desportista que pratica remo em guas rpidas. Sabe como : descem os rpidos num flutuador, em equipa ou em caiaque. um desporto muito perigoso e...- E ento?- Ela terminou a corrida para l da barragem natural do rio, ao p do rochedo que veda o campus. Ao subir para o parapeito, avistou o corpo alojado nas fragas.- Foi o que ela lhe disse?Barnes deitou um olhar incerto sua roda.- Bem... sim, eu...O comissrio destapou completamente o corpo. Andou em volta da criatura lvida, contorcida, cujo crnio de cabelo muito curto se aguava como uma flecha de pedra.Nimans pegou nas folhas da certido de bito que Barnes lhe estendia. Percorreu as linhas dactilografadas. O documento fora redigido pelo director do hospital em pessoa. O clnico no se pronunciava sobre a hora do bito. Limitava-se a descrever as feridas visveis e conclua por uma morte resultante de estrangulamento. Para saber mais, era indispensvel abrir o corpo e praticar a autpsia.26- Quando vem o legista?- Estamos espera dele a todo o instante.O comissrio aproximou-se da vtima. Debruou-se, observou-lhe as feies. Um rosto nada feio, jovem, de olhos fechados, e sobretudo sem qualquer vestgio de pancada ou sevcias.- Ningum tocou no rosto?- Ningum, comissrio.- Tinha os olhos fechados?Barnes confirmou. Com o polegar e o indicador, Nimans apartou ligeiramente as plpebras da vtima. Passou-se ento o impossvel: uma lgrima, lenta e clara, escorreu do olho direito. O comissrio teve um sobressalto revulsivo: aquele rosto chorava.Nimans pousou o olhar nos outros homens: ningum reparara neste pormenor assombroso. Conservou o sangue-frio e recomeou o gesto, igualmente invisvel para os outros. O que viu provou-lhe que no era louco, mas que esse homicdio constitua sem dvida o homicdio que todo o chui receia ou espera, consoante a personalidade de cada um, ao longo da sua carreira. Endireitou-se e recobriu o corpo com um gesto seco. Murmurou, dirigindo-se aojuiz:- Fale-nos do procedimento de inqurito. Bernard Terpentes empertigou-se:- Meus senhores, compreendereis que este caso pode vir a revelar-se difcil e... inabitual. Por tal motivo, o procurador e eu resolvemos entreg-lo, em simultneo, ao SRPJ de Grenoble e SR da gendarmaria nacional. Tambm chamei o comissrio principal Pierre Nimans, aqui presente, que vem de Paris. Conheceis com certeza o seu nome. O comissrio pertence agora a uma instncia superior da BRP, a Brigada de Represso do Proxenetismo, em Paris. Nada sabemos, por enquanto, das motivaes do homicdio, mas talvez se trate de um crime de motivao sexual. Pelo menos, devemos estar na presena de um manaco. E a experincia do Sr. Nimans ser-nos- muito til. Por isso que vos proponho que o comissrio assuma a direco das operaes...27Barnes anuiu com um breve meneio de cabea. Vermont imitou-o, mas numa verso menos pressurosa. Quanto a Joisneau, respondeu:- Por mim, no h problema. Mas os meus colegas do SRPJ vo chegar e...- Explicar-lhes-ei - atalhou Terpentes. Virou-se para Nimans: - Comissrio, ouvi-lo-emos com a maior ateno. A nfase desta cena incomodava Nimans. Tinha pressa dese ver l fora, em pleno inqurito, e principalmente sozinho.- Capito Barnes - indagou -, de quantos homens dispe?- De oito. No... Desculpe, de nove.- Esto habituados a interrogar testemunhas, a recolher indcios, a organizar controlos de identidade nas estradas?- Bem... No realmente o gnero de coisas que ns...- E o senhor, capito Vermont, quantos homens tem sob as suas ordens?A voz do gendarme estalou como uma salva de honra:- Vinte. Homens experientes. Vo passar a pente fino os terrenos que rodeiam o local da descoberta e...- Muito bem. Sugiro que eles interroguem tambm todas as pessoas que habitam perto das estradas conducentes ao rio, e que visitem as estaes de servio, as gares, as casas vizinhas das paragens de autocarro... Ojovem Caillois, durante os seus passeios, dormia por vezes nos refgios. Procurem-nos e vasculhem-nos. A vtima talvez tenha sido surpreendida num deles. Nimans voltou-se para Barnes.- Capito, quero que lance pedidos de informaes em toda a regio. Pretendo obter, antes de tudo, a lista dos moinantes, ratoneiros e outros vadios desta regio. Quero que verifique as recentes sadas de priso, num raio de trezentos quilmetros. Os roubos de automveis e os roubos em geral. Quero que interrogue todos os hotis e restaurantes. Envie questionrios por fax. Desejo conhecer o mais pequeno facto singular, a mnima chegada suspeita, o mnimo sinal. Quero tambm a lista das notcias locais de Guernon, desde h vinte28anos e mais, que possam relacionar-se, de perto ou de longe,com o nosso caso.Barnes anotava cada exigncia num canhenho. Nimans dirigiu-se ajoisneau:- Contacte as Informaes Gerais. Pea-lhes a lista das seitas, dos magos e de todos os chalados recenseados na regio.Joisneau aquiesceu. Terpentes tambm aprovava com a cabea, em sinal de assentimento superior, como se lhe tirassem as ideias do bestunto.- j tem aqui o bastante para se ocuparem enquanto esperamos os resultados da autpsia - concluiu Nimans.- intil recomendar-vos que devemos guardar absoluto silncio sobre tudo isto. Nem uma palavra imprensa local. Nem uma palavra seja a quem for.Os homens separaram-se na escadaria do CHRU - o Centro Hospitalar Regional Universitrio -, estugando o passo sob a morrinha matinal. Envoltos na sombra do alto edifcio, que parecia datar pelo menos de h dois sculos, dirigiram-se cada qual para o seu veculo, cabisbaixos, ombros descados, sem uma palavra nem um olhar.A caa comeava.Pierre Nimans e ric Joisneau encaminharam-se logo para a universidade, s portas da cidade. O comissrio Ppediu ao tenente que o esperasse na biblioteca, situada no corpo principal do estabelecimento, enquanto visitava o reitor da faculdade, cujos escritrios abrangiam o ltimo andar do edifcio administrativo, cem metros mais adiante.O polcia penetrou numa vasta construo dos anos 70, j restaurada, de tecto muito alto, onde cada parede ostentava uma cor pastel distinta. No ltimo piso, numa espcie de29antecmara ocupada por uma secretria e o seu pequeno gabinete, Nimans apresentou-se e pediu para ver o Sr. Vincent Luyse.Aguardou alguns minutos e pde contemplar, nas paredes, fotografias de estudantes triunfantes, brandindo taas e medalhas, ao longo de pistas de esqui ou de torrentes tumultuosas.Alguns minutos mais tarde, Pierre Nimans estava de p em frente do reitor. Um homem de cabelo crespo e nariz achatado, mas tez cor de talco. O rosto de Vincent Luyse era uma curiosa mescla de traos negrides e palidez anmica. Na penumbra prenunciadora de trovoada, alguns raios de sol dardejavam, recortando tiras de luz. O reitor convidou o polcia a sentar-se e comeou a friccionar nervosamente os pulsos.- Ento? - perguntou numa voz seca.- Ento o qu?- Descobriram indcios? Nimans estendeu as pernas.- Acabo de chegar, senhor reitor. D-me tempo para me ambientar. Responda antes s minhas perguntas.Luyse inteiriou-se no seu assento. Todo o gabinete era construdo em madeira ocre, entremeada de motivos metlicos que lembravam caules de flores num planeta de ao.-j houve acontecimentos suspeitos na sua faculdade? inquiriu Nimans num tom calmo.- Suspeitos? De modo nenhum.- Nem casos de droga? Roubos? Brigas?- No.- Tambm no h bandos, cls? jovens um bocado excitados?- No percebo aonde quer chegar.- Estou a pensar, por exemplo, nosjogos de desempenho. Sabe o que , essesjogos cheios de cerimnias, de rituais...- No. No temos c disso. Os nossos estudantes caracterizam-se por um esprito claro.Nimans guardou silncio. O reitor analisou o aspecto dele: cabelo escovinha, ombros largos, punho do MR 73 a30despontar do casaco. Luyse passou a mo pelo rosto e depois declarou, como se procurasse convencer-se a si mesmo:- Disseram-me que um excelente polcia.Nimans no acrescentou nada e fixou o reitor. Luyse desviou o olhar e continuou:- S desejo uma coisa, comissrio: que descubra o assassino o mais depressa possvel. A reabertura das aulas no tardae ...- Por ora, nenhum estudante ps os ps no campus?- S alguns internos. Instalam-se l em cima, nas guas-furtadas do edifcio principal. H tambm alguns professores, que preparam a matria para o ano escolar.- Pode dar-me a lista deles?- Mas... - hesitou. - No h problema nenhum...- E Rmy Caillois, como era?- Um bibliotecrio muito discreto. Solitrio.- Os estudantes estimavam-no?- Sim... evidente que sim.- Onde vivia? Em Guernon?- Aqui mesmo, no campus. No ltimo andar do edifcio principal, com a esposa. O andar dos internos.- Rmy Caillois tinha vinte e cinco anos. Nos dias de hoje, um pouco cedo para algum se casar, no acha?- Rmy e Sophie Caillois so antigos alunos da nossa faculdade. Antes disso, conheceram-se, creio eu, no colgio do campus, reservado aos filhos dos nossos professores. So... eram amigos de infncia.Nimans levantou-se abruptamente:- Muito bem, senhor reitor. Agradeo-lhe,O comissrio eclipsou-se logo, fugindo do cheiro a medo que ali reinava.Livros. Por todos os lados, na grande biblioteca da universidade,mltiplas correntezas de livros desdobravam-se sob a luz dos31nons. As estantes, com prateleiras de metal, sustentavam autnticas muralhas de papel, perfeitamente arrumadas. Segmentos de cor escura. Cinzelagens a ouro ou prata. Rtulos nos quais se estampava sempre a sigla da universidade de Guernon. No centro da sala deserta viam-se mesas plastificadas, separadas em pequenos compartimentos envidraados. Ao entrar l dentro, Nimans pensara logo num parlatrio de priso.A atmosfera mostrava-se simultaneamente luminosa e recolhida, espaosa e confinada.- Os melhores professores ensinam nesta universidade explicou ricJoisneau. - A nata do sudeste da Frana. Direito, Economia, Letras, Psicologia, Sociologia, Fsica... E sobretudo Medicina. Todos os craques do Isre ensinam aqui e do consultas no hospital: o CHRU. no fundo, o antigo edifcio da faculdade. As estruturas foram inteiramente renovadas. Metade da regio vem tratar-se aqui, e todos os habitantes das montanhas nasceram nesta maternidade.Nimans escutava-o, de braos cruzados, apoiado numa das mesas de leitura.- Falas como um conhecedor. joisneau pegou num livro, ao acaso.- Estudei nesta faculdade. Tinha comeado o curso de Direito... Queria ser advogado.- E tornaste-te polcia?O tenente fitou Nimans. Os seus olhos brilhavam sob as luzes brancas.- Quando cheguei licenciatura, receei de repente chatear-me. Inscrevi-me ento na escola dos inspectores de Toulouse. Disse com os meus botes que chui era um ofcio de aco, de risco. Um ofcio que me reservaria surpresas...- E ests decepcionado?O tenente reps o livro na estante. O seu sorriso superficial desapareceu.- Ho e no. Menos do que nunca. - Cravou a vista em Nimans. - Aquele corpo... Como se pode fazer uma coisa assim?32Nimans mudou de assunto.- Como era o ambiente da universidade? Nada de particular?- No. Muitos filhotes de burgueses, com a cabea cheia de lugares-comuns sobre a vida, sobre a poca, sobre as ideias que se devia ter... Filhos de camponeses tambm, de operrios. Ainda mais idealistas. E mais agressivos. De qualquer modo, tnhamos todos encontro marcado com o desemprego. Portanto...- No havia histrias bizarras? Grupsculos?- No. Nada. Enfim, talvez. Recordo-me de que existia uma espcie de elite na faculdade. Um microcosmo composto pelos filhos dos professores da prpria universidade. Alguns deles eram hiperdotados. Arrebanhavam todos os anos as melhores classificaes. At mesmo nos domnios desportivos. Os outros ficavam muito abaixo.Nimans lembrou-se dos retratos de campees na antecmara do gabinete de Luyse. Perguntou:- Esses estudantes formam um cl no pleno sentido da palavra? Poderiam coligar-se em volta de um projecto esquisito? Joisneau desatou a rir.- Est a pensar em qu? Num gnero de... conspirao? Foi a vez de Nimans se erguer e caminhar ao longo das estantes.- Um bibliotecrio, numa faculdade, ericontra-se no centro de todos os olhares. um alvo ideal. Imagina um grupo de estudantes, versados em no sei que delrio. Um sacrifcio, um ritual... No momento de escolher a vtima, pensariam, muito naturalmente, em Caillois.- Esquea ento os sobredotados de que lhe falei. Esto demasiado ocupados em ficar frente de toda a gente nos exames para se interessarem por qualquer outra coisa.Nimans insinuou-se entre as paredes de livros, umas pardas, as outras castanho-avermelhadas. Joisneau seguiu-lhe as pisadas.- Um bibliotecrio- volveu ele - tambm aquele que33empresta os livros... O que sabe o que cada um l, o que cada um estuda... Talvez soubesse algo que no devia saber.- No se mata uma pessoa daquela forma por... E que segredo entende que uns simples estudantes possam esconder atrs das suas leituras?Nimans virou-se intempestivamente.- No sei. Desconfio dos intelectuais. -j tem uma ideia? Uma suspeita?- Pelo contrrio. Por enquanto, tudo possvel. Uma zaragata. Uma vingana. Uma trica de intelectuais. Ou de homossexuais. Ou muito simplesmente um malandrim, um manaco, que deu de caras com o Caillois por acaso, na montanha.O comissrio disparou um piparote na enfiada de obras.- Repara: no sou sectrio. Mas vamos comear por aqui. Passar pelo crivo os livros que possam ter uma relao com o homicdio.- Que espcie de relao?Nimans atravessou outra vez o corredor de estantes e desembocou na grande sala. Dirigiu-se para a secretria do bibliotecrio, situada no outro extremo, sobre um estrado, sobranceira s mesas de leitura. Um computador pontificava em cima do tampo, cadernos de espiral estavam guardados nas gavetas. Nimans deu umas pancadinhas no ecra negro.- Deve estar aqui dentro a lista de todos os livros consultados e requisitados todos os dias. Quero que encarregues uns OPJ desta tarefa. Os mais literrios que puderes encontrar, se porventura existe algum. Pede tambm ajuda aos internos. Quero que eles apontem todos os livros que falam do mal, da violncia, da tortura e tambm dos sacrifcios, das imolaes religiosas. Que atentem, por exemplo, nas obras de Etnologia. Quero igualmente que tomem nota dos nomes dos estudantes que consultaram com frequncia este tipo de leitura. E que procurem tambm a tese do Caillois.- E... eu?- Tu interrogas os internos. A ss. Vivem aqui dia e noite, devem conhecer a universidade como as suas mos. Os hbitos,34estado de esprito, os rapazes originais... Quero saber como Caillois era considerado pelos outros. Quero tambm que te informes sobre as passeatas dele na montanha. Procura os seus companheiros de passeio. Descobre quem conhecia os seus priplos. Quem poderia irjuntar-se-lhe l em cima...joisneau lanou um olhar cptico ao comissrio. Nimans acercou-se. Falava agora em voz baixa:- Vou-te dizer o que temos. Temos um homicdio pasmoso, um cadver plido, liso, encolhido, exibindo os sinais de um sofrimento sem limite. Uma coisa que cheira a loucura a mais de cem quilmetros. Por enquanto, o nosso segredo. Dispomos de algumas horas ou um pouco mais, assim o espero, para resolver o caso. Depois, os meios de comunicao social iro imiscuir-se, as presses iniciar-se-o, as paixes desencadear-se-o. Concentra-te. Mergulha no pesadelo. D o que tens de melhor. assim que desvendaremos o rosto do mal.O tenente parecia assustado.- Acredita realmente que, em poucas horas, ns...- Queres trabalhar comigo ou no? - interrompeu Nimans. - Ento, vou explicar-te a minha maneira de ver as coisas. Quando perpetrado um homicdio, devemos considerar cada elemento circundante como um espelho. O corpo da vtima, as pessoas que a conhecem, o lugar do crime... Tudo isto reflecte uma verdade, um aspecto particular do crime, compreendes?Bateu com as pontas dos dedos no ecr do computador.- Este ecr, por exemplo. Quando estiver aceso, tornar-se- o espelho do quotidiano de Rmy Caillois. O espelho da sua actividade diria, dos seus prprios pensamentos. H aqui dentro pormenores, reflexos que podem servir-nos. preciso mergulhar no interior. Passar para o outro lado.Endireitou-se e abriu os braos.- Estamos num palcio dos espelhos, joisneau, um labirinto de reflexos! Sendo assim, olha bem. Olha para tudo. Porque, algures ao longo destes espelhos, num ngulo morto, est o assassino.35Joisneau ficou boquiaberto.- Para um homem de aco, acho-o bastante cerebral... O comissrio deu-lhe uma palmadinha no peito com as costas da mo.- No filosofia, Joisneau. prtica.- E o senhor? Quem... quem vai interrogar?- Eu? Vou interrogar a nossa testemunha, Fanny Ferreira. E tambm Sophie Caillois, a mulher da vtima.Nimans piscou o olho.- S mulherio, Joisneau. A prtica isto mesmo.Sob o cu tristonho, a estrada de asfalto serpenteava atravs do campus e servia cada um dos edifcios acinzentados, de janelas azuis e ferrugentas. Nimans rodava devagar - arranjara uma planta da universidade - e seguia a caminho de um ginsio isolado. Atingiu uma nova construo de beto estriado que parecia mais um bunker do que um edifcio desportivo. Saiu do automvel e respirou fundo. Caa uma chuva fina e mida.Mirou o campus e os prdios que se sucediam, a algumas centenas de metros dali. Os pais dele tambm haviam sido professores, mas em pequenos colgios dos arredores de Lyon. No se recordava de nada, ou quase. Bem cedo, o casulo familiar surgira-lhe como uma fraqueza, uma mentira. Bem cedo, pressentira que devia lutar sozinho e que, por conseguinte, quanto mais depressa melhor. Aos treze anos pedira para fazer a sua frequncia escolar como interno. No tinham ousado recusar este exlio voluntrio, mas ainda se lembrava dos soluos da me, atravs da divisria do seu quarto: era um som dentro da cabea, e ao mesmo tempo uma sensao fsica, algo de hmido, de quente, na sua pele. Abalara numa fugida.36Quatro anos de internato. Quatro anos de solido e de adestramento fsico, paralelamente s aulas. Todas as suas esperanas convergiam ento num nico objectivo, numa nica data. Aos dezassete anos, Pierre Nimans, depois de concluir brilhantemente o liceu, efectuara os seus trs dias de provas de aptido e pedira para integrar a escola de oficiais. Quando o mdico-major lhe anunciara que fora considerado inapto e lhe explicara a razo do veredicto, o jovem Nimans compreendera. As suas angstias eram to manifestas que o haviam trado, at ao mais fundo da sua ambio. Soube que o seu destino seria sempre aquele comprido corredor, sem hiato, atapetado de sangue, com uns ces a uivar nas trevas, l muito ao fim...Outros adolescentes teriam desistido, escutando docilmente o parecer dos psiquiatras. No assim Pierre Nimans. Obstinou-se, retomou as actividades fsicas, redobrou de raiva e de vontade.Ojovem Pierrejamais seria militar. Escolheria ento outro combate: o das ruas, a luta annima contra o mal comum. Ia mergulhar as suas foras, a sua alma, numa guerra sem glria nem bandeira, mas que assumiria at s ltimas consequncias. Tornar-se-ia polcia. Neste propsito, exercitou-se durante longos meses a responder aos testes psquicos. Ingressou em seguida na escola de polcia de Carmes-cluse. Comeou por essa altura a era da violncia: treino de tiro, resultados de excepo. Nimans no cessava de melhorar, de se fortalecer. Passou a ser um polcia sem igual. Tenaz, brutal, manhoso.Integrou a princpio esquadras de bairro, depois tornou-se atirador de elite na brigada que iria transformar-se na Brigada de Investigao e Interveno). Comearam as operaes especiais. Matou o seu primeiro homem. Nesse instante, concluiu um pacto consigo mesmo e encarou uma derradeira vez a sua prpria maldio. No, nunca seria um soldado de orgulho, um oficial valoroso. Mas seria um combatente das cidades, febril, obstinado, que afogaria os seus prprios medos na violncia e na sanha do asfalto.37Nimans respirou fundo o ter da montanha. Pensou na sua me, falecida h tantos anos. Pensou no tempo passado, que adquirira o aspecto de uma ravina transbordante, e nas recordaes, que se tinham gretado e depois apagado, debatendo-se face ao olvido.Bruscamente, distinguiu um pequeno trote, como num sonho. O co era todo msculos, de plo raso luzindo sob o chuvisco. Os seus olhos, duas bolas de laca escura, fixavam o polcia. Aproximava-se, bamboleando a cauda. O oficial imobilizou-se. O co aproximou-se mais, at ficar a alguns passos. O seu focinho hmido fremia. De sbito, ps-se a rosnar. Os olhos brilharam-lhe. Farejara o medo. O medo que exsudava do homem.Nimans estava petrificado.Os seus membros pareciam-lhe fustigados por uma fora ignorada. O sangue fugia-lhe por um sifo invisvel, algures no ventre. O co ladrou, arreganhou as beias. Nimans conhecia o processo. O medo produzia molculas olfactivas que o co cheirava e que desencadeavam nele o receio e a hostilidade. O medo engendrava o medo. O co ladrou, depois raivou surdamente com as fauces e rangeu os dentes. O chui sacou da arma.- Clarisse! Clarisse! Vem c, Clarisse!Nimans saiu do parntese de gelo. Avistou, para alm de um vu vermelho, um homem cinzento com uma camisola de meia manga. Abeirava-se em passo rpido.- doido ou qu? Nimans resmoneou:- Polcia. Desande. Leve o rafeiro consigo. O homem ficou siderado.- Com a breca! No acredito numa coisa destas. Anda, Clarisse. Anda, minha menina...O dono e o seu bicho sumiram-se. Nimans tentou engolir a saliva. Sentiu as asperezas da goela, seca como um forno. Abanou a cabea, guardou o revlver e contornou o edifcio. Ao virar esquerda, esforou-se por reflectir: h quanto tempo no ia ao seu psiquiatra?38Logo na segunda esquina do ginsio, o comissrio lobrigou a mulher.Fanny Ferreira estava de p, junto a um portal aberto, e polia com lixa de papel uma prancha sinttica de cor vermelha. O chui sups tratar-se do flutuador sobre o qual a mulher descia as torrentes.- Bom dia - disse ele inclinando-se. Recobrara calor e segurana.Fanny ergueu o olhar. Devia ter uns escassos vinte anos. A sua pele era mate e os cabelos encaracolados torneavam em finos anis volta das tmporas ou em pesadas cascatas sobre os ombros. O rosto era carregado, aveludado, mas os olhos tinham uma claridade ofuscante, quase indecente.- Sou Pierre Nimans, comissrio da polcia. Investigo o assassnio de Rmy Caillois.- Pierre Nimans? - repetiu, incrdula. - Essa boa! Espantoso!- O qu?Ela apontou, com um meneio de cabea, um pequeno rdio pousado no cho.- Acabam de falar de si no noticirio. Dizem que esta noite prendeu dois assassinos, perto do Parque dos Prncipes. E que fez muito bem. Dizem tambm que desfigurou um deles, e que fez muito mal. Tem o dom da ubiquidade ou qu?- Passei a noite a guiar, simplesmente.- O que veio fazer aqui? Ento os chuis da terra no so suficientes?- Digamos que estou a ttulo de reforo.Fanny retomou o seu trabalho: humedecia a superfcie oblonga da prancha, depois comprimia com ambas as palmas, esfregando a lixa de papel dobrada. O seu corpo parecia socado, slido. Vestia sem elegncia - fato de mergulho, em neopreno, casula de marinheiro, sapatos subidos de couro claro, bem atacados. A luz velada lanava dulores irisados sobre toda a cena.- Parece aguentar bem o choque - prosseguiu Nimans.39- Que choque?- Ora... a descoberta do...- Evito pensar nisso.- E no a incomoda voltar a falar no assunto?- a sua funo, no ?Ela no olhava para o polcia. As suas mos no paravam de subir e descer ao longo do flutuador. Os seus gestos eram secos, enrgicos.- Em que circunstncias descobriu o corpo?- Todos os fins de semana deso os rpidos... - indicou a sua embarcao virada - em cima desta coisa. Acabava de efectuar um dos meus trajectos. Nas imediaes do campus h uma parede de rochas, uma barragem natural que trava o caudal do rio e permite acostar sem dificuldade. Puxava o meu flutuador para cima quando o enxerguei...- Na rocha?- Claro, na rocha.- falso. Estive l. Notei que no havia qualquer recuo. impossvel reparar seja no que for ao longo da parede, a quinze metros de altura...Fanny deitou a folha de lixa no copo, enxugou as mos e acendeu um cigarro. Estes simples gestos suscitaram bruscamente em Nimans um desejo violento.Ajovem expirou uma comprida baforada azulada.- O corpo estava na muralha de rocha. Mas no foi a que o vi.- Onde foi?- Distingui-o nas guas do rio. Graas ao reflexo. Uma mancha branca superfcie do lago.Os traos de Nimans desanuviaram-se. exactamente o que eu pensava. importante para o seu inqurito?No. Mas gosto de clareza em tudo. - Nimans fez uma pausa, depois continuou: - Pratica alpinismo?- Como que sabe?- Nada de especial... O stio. Ainda por cima, acho-a muito... desportiva.40Ela voltou-se e abriu os braos na direco das montanhas que dominavam o vale. Era a primeira vez que sorria.- Eis o meu feudo, comissrio! Do Grande Pico de Belledorme at s Grandes Rousses, conheo de cor todas estas montanhas. Quando no deso os ribeiros, escalo os cimos.- Na sua opinio, era preciso ser-se alpinista para colocar o corpo ao longo da parede rochosa?Fanny ficou outra vez sria - observava a extremidade incandescente do seu cigarro.- No necessariamente; creio que no. Os rochedos quase formam degraus naturais. Em compensao, era preciso ser-se extraordinariamente robusto para transportar semelhante peso sem perder o equilbrio.- Um dos meus inspectores pensa que o assassino deve ter trepado pelo outro lado, onde o declive menos abrupto, arriando depois o corpo na ponta de uma corda.- Isso obrigava a um desvio enorme. - Hesitou, depois continuou: - No fundo, h uma terceira soluo, muito simples, desde que se conhea um pouco das tcnicas de escalada.- Importa-se de me explicar?Fanny Ferreira apagou o cigarro na sola do sapato e atirou-o de um piparote.- Venha comigo - ordenou.Penetraram no interior do ginsio. Na penumbra, Nimans divisou uns tapetes de solo empilhados, as sombras rectilneas de barras paralelas, de perchas, de cordas com ns. Fanny comentou, encaminhando-se para a parede da direita:- a minha toca. Durante o Vero, ningum pe aqui os ps. Posso armazenar o meu arsenal.Acendeu uma lmpada prova de intemprie, suspensa sobre uma espcie de banco de carpinteiro. Sobre a mesa desdobravam-se numerosos instrumentos, peas metlicas com pontas e entalhes diversos que desferiam reflexos argnteos ou apresentavam tonalidades vivas. Fanny acendeu outro cigarro. Nimans perguntou:- O que isto?41- Espetos, mosquetes, tringulos, punhos: material de alpinismo.- E ento?Fanny expirou novamente fumo, mas simulando um soluo repetido.- E ento, senhor comissrio, um assassino que possusse este gnero de apetrechos e soubesse servir-se deles poderia subir o corpo sem custo a partir da margem do rio.Nimans cruzou os braos e encostou-se parede. Fanny manteve o cigarro nos lbios e manipulou os utenslios. Este gesto andino reforou o desejo do polcia. Aquela rapariga agradava-lhe em profundidade.- Como lhe disse, a muralha rochosa comporta degraus naturais no local. Para uma pessoa conhecedora do alpinismo, ou at habituada ao trekking, seria uma brincadeira de criana subir uma primeira vez, sem o corpo.- Em seguida?Fanny pegou numa roldana verde e fluorescente, constelada de pequenos orifcios.- Em seguida, fixa-se isto na rocha, por cima do nicho.- Na rocha! Como? Com um martelo? Deve ser muito demorado, no?A mulher declarou atravs das volutas do cigarro:- Os seus conhecimentos de alpinismo rondam o zero, comissrio. - Pegou nuns pites roscados que estavam sobre a mesa. - Aqui tem uns spits, espetos para os rochedos. Com um perfurador igual a este - indicava uma espcie de pua, preta e engordurada -, pode cravar vrios spits em qualquer penedo, em poucos segundos. Fixa as suas roldanas e s lhe falta iar o corpo. a tcnica que se utiliza para elevar os sacos em lugares estreitos ou difceis.Nimans fez um trejeito cptico.- No subi at ao alto mas, em meu entender, o nicho muito estreito. No vejo como que o assassino, especado naquela falha, poderia puxar o corpo com a simples fora dos seus braos, sem o mnimo recuo. Ou ento voltamos ao mesmo perfil de suspeito: um colosso.42- Quem lhe falou de o puxar l do alto? Para iar a sua vtima, o alpinista j s tinha uma coisa a fazer: deixar-se descer, do outro lado da roldana, para servir de contrapeso. O corpo subiria sozinho.O polcia compreendeu de sbito a tcnica e sorriu perante a evidncia.- Mas seria necessrio que o assassino fosse mais pesado que o morto, no?- Ou de um peso igual: se nos lanarmos no vazio, o nosso peso aumenta. Depois de iado o corpo, o assassino poderia tornar a subir rapidamente ao longo das asperezas, para entalar a vtima naquela falha teatral.O comissrio olhou de novo para todos os pites, parafusos e argolas espalhados sobre a mesa que fazia lembrar um banco de carpinteiro. Pensou no material de um arrombador, mas um arrombador especial: um que se dedicasse a furar altitudes e gravidades.- Quanto tempo levaria uma tal operao?- Para uma pessoa como eu: menos de dez minutos. Nimans concordou: desenhava-se um perfil de assassino. Os dois interlocutores saram. O sol coava-se atravs das nuvens, enchendo os cumes de uma claridade de cristal. O polcia perguntou:- professora nesta faculdade?- Geologia.- De que cadeiras?- Ensino vrias disciplinas: Taxinomia das Pedras, os Deslocamentos Tectnicos e tambm Glaciologia, a evoluo dos glaciares.- Parece muito nova.- Fiz o doutoramento aos vinte anos. E j era assistente. Sou a mais nova diplomada de Frana. Tenho agora vinte e cinco anos e sou professora titular.Um verdadeiro animal de faculdade. isso mesmo. Um animal de faculdade. Filha e neta de professores emritos, aqui, em Guernon.43- Pertence ento confraria?- Que confraria?- Um dos meus tenentes estudou em Guernon. Explicou-me que a universidade possui uma elite parte, composta pelos filhos dos professores da faculdade...Fanny meneou a cabea num gesto malicioso.- Eu diria antes uma grande famlia. Os filhos de que fala crescem na faculdade, em contacto com o ensino, a cultura. Obtm seguidamente excelentes resultados. No acha natural?- At mesmo nas actividades desportivas?Ela alou as sobrancelhas.- Ah, isso o ar da montanha! Nimans prosseguiu:- Conhecia sem dvida Rmy Caillois. Como era ele? Fanny respondeu sem hesitar:- Solitrio. Metido consigo, inclusive inacessvel. Mas muito brilhante. Culto a ponto de nos causar vertigens. Corria aqui um rumor... Dizia-se que lera todos os livros da biblioteca.-Julga que esse rumor tinha fundamento?- No sei. Mas ele conhecia a biblioteca a fundo. Era o seu antro, o seu refgio, o seu covil.- Tambm era muito novo, no era?- Crescera nessa biblioteca. O pai j desempenhava as funes de bibliotecrio-chefe da faculdade.Nimans esboou uns passos.- No sabia. Os Caillois tambm pertenciam vossa grande famlia?- Claro que no. Pelo contrrio, Rmy era-lhe hostil. Apesar da sua cultura, nunca alcanou os resultados que esperava. Creio... enfim, suponho que nos invejava.- Qual era a especialidade dele?- Filosofia, parece-me. Estava a acabar a tese.- Sobre que assunto?- No fao ideia.O comissrio calou-se. Mirou as montanhas, cada vez mais ensolaradas. Assemelhavam-se a gigantes deslumbrados.44- O pai dele ainda vivo? - perguntou, retomando o fio da meada.- No. Morreu h alguns anos. Um acidente de alpinismo.- Nada de suspeito, dessa vez?- O que est j a magicar? Perdeu a vida numa avalancha. A da Grande Lance dAllemond, em 93. Vejo que um chui chapado.- Temos dois bibliotecrios alpinistas. Um pai e um filho. Ambos falecidos nas montanhas. A coincidncia merece ser frisada, no ?Nada nos diz que Rmy foi morto nas montanhas. verdade. Mas abalou no sbado de manh para um passeio. Deve ter sido surpreendido pelo assassino nas alturas. Talvez o assassino conhecesse o seu itinerrio e...- Rmy no era do gnero de seguir um itinerrio clssico. Nem de o revelar a outros. Era um homem bastante... secreto.Nimans inclinou-se.- Bem, estou-lhe muito grato. Conhece certamente a frmula: se lhe ocorrer um pormenor... pode telefonar-me para aqui.Nimans escreveu os nmeros do seu telemvel e de uma sala que o reitor lhe cedera na universidade - preferia instalar-se na faculdade em vez de ficar na gendarmaria. Murmurou:- At breve.A jovem no ergueu os olhos. O polcia j se ia embora quando ela o interpelou:- Posso fazer-lhe uma pergunta?Fitava-o com as suas pupilas cristalinas. Nimans experimentou uma espcie de mal-estar. Aquelas ris eram demasiado claras. Eram de vidro, de gua viva, cortantes como geada.- Diga l - respondeu ele.- Na telefonia, contaram... enfim, verdade que pertencia equipa que matou Jacques Mesrine?- Era novo. Mas verdade, sim.45- Pensava de mim para comigo... o que que se sente depois?- Depois de qu?- Depois de uma coisa assim.Nimans deu alguns passos na direco da rapariga. Ela recuou instintivamente. Mas ergueu o olhar com valentia, cheia de arrogncia.- Terei sempre muito prazer em conversar consigo, Fanny. Mas nunca me ouvir falar no assunto. Nem do que perdi nesse dia.A interlocutora baixou os olhos. Disse numa voz surda:- Compreendo.- No, no compreende nada. E a sua sorte.Os jorros da gua zoavam-lhe nas costas. Nimans requisitara uns sapatos de marcha na gendarmaria e trepava agora os degraus naturais da parede rochosa, relativamente fceis de escalar. Chegado altura da falha, observou a cavidade estreita onde o corpo havia sido descoberto. Examinou a rocha com ateno, a toda a volta. Com as mos protegidas por luvas de goretex, procurava as eventuais marcas de spits na penedia.Buracos na pedra.O vento carregado de gotas de gua aoitava-lhe o rosto e Nimans gostava desta sensao. Apesar das circunstncias, ao abeirar-se do pequeno lago experimentara uma forte impresso de plenitude. O assassino escolhera talvez aquele stio pela seguinte razo: era um lugar de calma, de serenidade, sem escrias, sem ruptura. Um lugar onde as guas dejade traziam a paz aos espritos de violncia.No encontrava nada. Continuou a busca em torno da cavidade: nenhum vestgio de pites. Pousou umjoelho no rebordo46e tacteou as paredes interiores do nicho. De repente os seus dedos detectaram um orifcio, ntido e preciso, mesmo a meio do tecto da gruta. As palavras de Fanny Ferreira acudiram-lhe brevemente memria. Ela acertara: o assassino, munido de pites e de roldanas, iara o corpo servindo-se sem dvida do seu prprio peso.Mergulhou o brao, tacteou mais e descobriu um total de trs buraquinhos, furados e roscados, com uma profundidade de vinte centmetros, dispostos em tringulo - as trs marcas dos spits que tinham sustentado a roldana. As circunstncias do crime tornavam-se mais precisas. Rmy Caillois fora surpreendido durante o seu giro. O assassino amarrara-o, torturara-o, mutilara-o e matara-o nas elevaes ermas, descendo depois at ao vale com o corpo da vtima. Como? Nimans deitou uma olhadela quinze metros abaixo, onde as guas se cristalizavam num espelho de laca. Por meio da torrente. O assassino sulcara sem dvida o rio a bordo de uma canoa ou de uma embarcao do mesmo gnero.Mas por que se dera a tanto trabalho? Por que no abandonara o cadver no local do crime?Desceu com precauo. Chegado ao sop, tirou as luvas, virou as costas aos rochedos e escrutou desta vez a sombra da falha nas guas perfeitamente lisas. O reflexo era to fixo como um quadro. Invadiu-o uma convico: aquele lugar era um santurio. De calma e de pureza. E o assassino escolhera-o porventura por tal motivo. De qualquer modo, o investigador tinha agora uma certeza.O assassino era um alpinista consumado.O carro de Nimans estava equipado com um transmissor VHF, mas nunca o utilizava. Assim como no utilizava o seu telemvel para as comunicaes confidenciais, pois era ainda menos discreto. H j alguns anos que preferia um pager, um receptor de radiomensagens, cujas marcas e modelos ia variando. Ningum podia captar este gnero de sistema, que s funcionava com a ajuda de um santo-e-senha. Aprendera tal astcia com os dealers parisienses, que haviam percebido sem47demora a extrema discrio da troca de mensagens cifradas. O comissrio dera o nmero e o nome de cdigo a joisneau, Barnes e Vermont. Ao entrar no automvel, tirou o aparelho do bolso e accionou o mostrador. No havia mensagens.Arrancou e voltou universidade.Eram agora onze horas da manh; raras silhuetas atravessavam a esplanada verdejante. Alguns estudantes corriam na pista do estdio, ligeiramente descentrada relativamente ao grupo dos blocos betonados.Meteu por uma estrada transversal e dirigiu-se de novo para o edifcio principal. O imenso bunkerdesdobrava-se por oito andares e seiscentos metros de comprimento. Estacionou o carro e consultou a sua planta. Para alm da biblioteca, esta construo imensa englobava os anfiteatros de Medicina e de Cincias Fsicas. Pelos andares distribuam-se as salas de trabalhos prticos. No ltimo piso situavam-se os quartos dos internos. O guarda do campus anotara a tinta vermelha, com uma caneta de ponta de feltro, o nmero do-apartamento ocupado por Rmy Caillois e a suajovem esposa.Pierre Nimans ultrapassou as portas da biblioteca, contgua entrada principal, e penetrou no trio do edifcio: um espao todo seguido, alumiado por largas aberturas envidraadas. As paredes ostentavam frescos de pintura naive, que brilhavam sob a claridade matinal, e a extremidade do trio perdia-se a vrias centenas de metros dali, numa espcie de pulverulncia mineral. As dimenses do lugar eram algo estalinistas - nada a ver com a atmosfera de mrmore claro e madeira castanha das universidades parisienses. Pelo menos, assim o supunha Nimans: nunca pusera os ps em qualquer faculdade. Nem em Paris, nem algures.Enveredou por uma escada de degraus de granito suspensos, onde cada lano se iniciava em ngulo agudo e era separado ao meio por lminas verticais. Uma fantasia de arquitecto, no mesmo estilo esmagador que o resto. Um em cada dois nons no funcionava e Nimans atravessava zonas de sombra total para ressurgir sob uma luz demasiado forte.48Desembocou por fim num corredor estreito, margeado de pequenas portas. Percorreu a escura passagem - as lmpadas, aqui, tinham-se finado todas - procura do n 34, o apartamento dos Caillois.A porta estava entreaberta.Com dois dedos, empurrou a delgada tbua de contraplacado.Acolheram-no o silncio e a penumbra. Encontrava-se num pequeno vestbulo. Ao fundo, uma nesga luminosa atravessava o estreito corredor. A tnue claridade permitu que estudasse os quadros suspensos das paredes. Eram fotografias a preto e branco, que pareciam datar dos anos 30 ou 40. Atletas olmpicos em pleno esforo rasgavam o cu ou pisavam a terra num hieratismo de orgulho. Os rostos, as silhuetas, as posturas, destilavam uma espcie de perfeio inquietante, uma pureza de esttuas, inumana. Pensou na arquitectura da universidade: tudo isto formava um conjunto coerente, e no forosamente festivo.Sob estes quadros, descortinou um retrato de Rmy Caillois. Desprendeu-o para o observar melhor. A vtima havia sido um belo mancebo sorridente, de cabelo curto e feies crispadas. No olhar brilhava-lhe um lampejo particularmente arguto.- Quem o senhor?Nimans voltou a cabea. Uma silhueta feminina, trajando uma gabardina, recortava-se ao fundo do corredor. O comissrio aproximou-se. Mais uma rapariga. Devia andar igualmente pelos vinte e cinco anos, talvez menos. O cabelo, nem curto nem comprido, claro, emoldurava-lhe o rosto esguio e esgalgado, cuja palidez acentuava as olheiras fundas. Os seus traos eram ossudos mas delicados. A beleza desta mulher s aparecia fora de tempo, como que em eco a uma primeira impresso desagradvel.- Sou Pierre Nimans. Comissrio principal.- E entra na minha casa sem tocar?- Desculpe. A porta estava aberta. a esposa de Rmy Caillois?49 laia de resposta, a mulher arrancou o quadro das mos de Nimans e ajustou-o outra vez contra a parede. Despiu em seguida a gabardina, recuando para o compartimento da esquerda. Sub-repticiamente, Nimans entreviu um peito plido e descarnado pela entreabertura de uma blusa desbotada. Arrepiou-se.- Entre - disse a mulher de m vontade.Nimans descobriu uma sala exgua, decorada com esmero e austeridade. Viam-se pinturas modernas suspensas das paredes. Linhas simtricas, cores angustiantes, coisas incompreensveis. O polcia no ligou. Em contrapartida, um pormenor chamou-lhe a ateno: pairava naquele compartimento um intenso cheiro qumico. Um cheiro a cola. Os Caillois tinham recentemente forrado as paredes com um novo papel pintado. Este pormenor apertou-lhe o corao. Pela primeira vez, estremeceu ao lembrar-se do destino aniquilado do casal, das cinzas de felicidade que deviam crepitar no fundo da mgoa daquela mulher. Comeou num tom grave:- Minha senhora, venho de Paris. Fui chamado pelo juiz de instruo para colaborar no inqurito respeitante morte do seu marido. Eu...- Tem alguma pista?O comissrio olhou-a bem e apeteceu-lhe repentinamente partir um objecto, um vidro, fosse o que fosse. Aquela mulher estava transida de mgoa, mas mais ainda de dio contra a polcia.- No dispomos de nada por enquanto - concedeu ele.- Mas estou muito esperanado em que o inqurito...- Faa as suas perguntas.Nimans sentou-se no sof desmontvel, em frente da mulher que acabava de escolher uma cadeirinha, como se quisesse ficar a boa distncia dele. Para no perder o sangue-frio, o comissrio pegou numa almofada e revolveu-a durante uns segundos.- Li o seu testemunho. S pretendo obter algumas informaes suplementares. H muita gente que efectua passeios nesta regio, no assim?50- Acha que h assim tantas distraces em Guernon? Somos todos obrigados a praticar marcha ou alpinismo.- Os outros caminhantes conheciam os itinerrios de Rmy?- No. Ele nunca falava disso. Partia em direces que lhe eram prprias...- Tratava-se de simples passeios ou de estiradas?- Dependia. No sbado, o Rmy abalara a p, para menos de dois mil metros de altitude. No levara material consigo. Nimans fez uma pausa, depois entrou no cerne da questo:- O seu marido tinha inimigos?- No.O tom equvoco desta resposta incitou-o a fazer outra pergunta que o espantou a si mesmo:- Tinha amigos?- Tambm no. Rmy era um homem solitrio.- Que tipo de relaes mantinha com os estudantes, os que frequentavam a biblioteca?- Os seus contactos com eles limitavam-se s fichas de sada dos livros.- Nada de anormal, nos ltimos tempos? A mulher no respondeu. Nimans insistiu:- O seu marido no andava especialmente nervoso, tenso?- No.- Fale-me da morte do pai dele.Sophie Caillois ergueu os olhos. A cor das pupilas era baa, mas o desenho das pestanas e das sobrancelhas era esplndido. Ela encolheu os ombros ao de leve.- Morreu sob uma avalancha, em 93. Ainda no estvamos casados. no possuo elementos precisos a tal propsito. Rmy nunca falava disso. Aonde quer chegar?O polcia guardou silncio e esquadrinhou a pequena sala, com os seus mveis ordenados em linha recta. Conhecia de cor este gnero de lugar. Sabia que no se encontrava aqui sozinho com Sophie Caillois. A memria do morto ainda51pairava, como se a sua alma estivesse a fazer as malas ali ao p, no quarto contguo. Apontou para os quadros nas paredes.- O seu marido no conservava nenhum livro aqui?- Por que razo o faria? Trabalhava todo o dia na biblioteca.- Era l que preparava a tese?A mulher confirmou com um breve aceno de cabea. Nimans no cessava de observar aquele rosto belo e duro. Surpreendia-o cruzar-se em menos de uma hora com duas mulheres to sedutoras.- A tese era sobre qu?- OsJogos Olmpicos.- No um tema muito intelectual.Sophie Caillois adoptou uma expresso de desdm.- A tese incidia sobre as relaes entre a prova e o sagrado. O corpo e o pensamento. Ele estudava o mito do athlon, o homem originrio que assegurava a fecundidade da Terra mediante a sua prpria fora, pelos limites transgredidos do seu corpo.- Desculpe - suspirou Nimans. - Conheo mal as questes filosficas... Isso est relacionado com as fotografias penduradas no corredor?- Sim e no. So imagens extradas de um filme de Leni Riefenstahl, sobre osJogos Olmpicos de 1936, em Berlim.- Trata-se de imagens impressionantes.- Rmy dizia que esses jogos tinham recuperado a coincidncia profunda dos jogos de Olmpia, baseada na unio do corpo e do pensamento, da prova fsica e da expresso filosfica.- Nesse caso especfico, referia-se ideologia nazi, no assim?- O meu marido estava-se nas tintas para a natureza do pensamento expresso. O que o fascinava era esta simples fuso: a ideia e a fora, o esprito e o corpo.Nimans no compreendia patavina daquele gnero de palavreado. A mulher debruou-se e disse subitamente, com toda a violncia:52- Por que razo o mandaram c? Porqu um homem da sua espcie?Ele ignorou a agressividade do comentrio. Por ocasio dos interrogatrios, usava sempre da mesma tcnica, inumana e fria, fundada na intimidao. Era intil a um polcia - sobretudo quando se tinha a fronha dele - lanar mo dos sentimentos ou da psicologia barata. Inquiriu, numa voz autoritria:- Em seu entender, existia alguma razo para algum querer mal ao seu marido?- Est a delirar ou qu? - articulou ela. - No viu o corpo? No percebe que foi um manaco quem matou o meu marido? Que o Rmy se deixou surpreender por um demente? Um tarado que se encarniou contra ele, que o agrediu, torturou e mutilou at ao limite?O polcia respirou fundo. Pensava, a falar verdade, naquele bibliotecrio silencioso, desencarnado, e nessa mulher agressiva.Um casal capaz de gelar o sangue. Indagou:- Como corriam as coisas aqui no lar?- No so contas do seu rosrio.- Por favor, responda.- Sou suspeita?- Sabe muito bem que no. Peo-lhe que me responda. Ajovem lanou-lhe um olhar afiado.- Quer saber quantas vezes fornicvamos por semana? Nimans sentiu a nuca em pele de galinha.- Coopere, minha senhora. Estou a fazer o meu trabalho.- Ponha-se a andar daqui para fora, seu chui imundo! Os dentes dela no eram brancos, e no entanto o contorno dos lbios era deslumbrante, comovedor. Nimans fitou aquela boca, os contornos agudos das mas do rosto, das sobrancelhas, que irradiavam atravs da palidez macilenta das faces. Pouco importavam o brilho da tez, a cor dos olhos, todas essas iluses de luzes e tons. A beleza era uma questo de delineamento. De esboo. De pureza incorruptvel. O polcia no bulia.53- Desande! - berrou a mulher.- Uma ltima pergunta. Rmy viveu sempre na universidade. Quando que fez o servio militar?Sophie Caillois imobilizou-se, desconcertada pela pergunta. Estreitou-se nos seus prprios braos, como se a acometesse brutalmente um frio interior.- No o fez.- Dispensado?Ela anuiu inclinando a cabea.- Por que motivo?Os olhos da mulher pousaram de novo no comissrio.- O que procura?- Por que motivo?- Psiquitricos, creio eu.- Sofria de perturbaes mentais?- Mas em que mundo vive? Toda a gente consegue ficar isenta por razes psiquitricas. No quer dizer nada. Est a fingir, s diz coisas sem sentido, um inapto.Nimans nada acrescentou, mas todo o seu ser devia exprimir uma surda desaprovao. A mulher, de repente, aquilatou o seu corte escovinha, a sua elegncia sucinta, e os lbios dele arquearam-se num esgar de nojo.- Alma do diabo, desaparea! Ele levantou-se e murmurou:- Vou-me embora. Mas quero que saiba uma coisa.- O qu? - desfechou ela.- Quer lhe agrade ou no, so pessoas como eu que apanham os assassinos. So pessoas como eu que podem vingar o seu marido.Durante alguns instantes, as feies da mulher petrificaram-se, depois o seu queixo agitou-se. Desatou a soluar. Nimans virou-lhe as costas.- Hei-de apanh-lo - repetiu.j no vo da porta, deu um murro na parede e proferiu por cima do ombro:- Cus! juro-lhe que apanharei o filho da puta que matou o seu marido.54C fora, uma claridade de mercrio bateu-lhe na face. Manchas negras danavam-lhe sob as plpebras. Vacilou por alguns segundos. Esforou-se por caminhar calmamente at ao automvel, enquanto os halos escuros se transformavam a pouco e pouco em rostos de mulher. Fanny Ferreira, a morena. Sophie Caillois, a loura. Duas mulheres fortes, inteligentes e agressivas. Mulheres como o polcia jamais cingiria sem dvida nos seus braos.Deu um violento pontap num cesto de metal cheio de lixo, adossado a um pilar, depois consultou o seu Pager, como por reflexo.O ecr piscava: o mdico legista terminara nesse momento a autpsia.55O ALVORECER do mesmo dia, a duzentos e cinquenta quilmetros dali, na direco oeste, o tenente da polcia Karim Abduf conclua a leitura de uma tese de Criminologia sobre a utilizao dos sinais genticos nos casos de violao e homicdio. O calhamao de seiscentas pginas mantivera-o acordado praticamente toda a noite. Atentava agora nos algarismos do despertador de quartzo que tocava: 07:00.Karim suspirou, atirou a tese para o outro lado do compartimento e foi para a cozinha preparar ch preto. Regressou sala - era tambm a sua sala de jantar e o seu quarto de dormir - e sondou as trevas atravs do vo envidraado. De testa encostada ao vidro, avaliou as hipteses de efectuar algum dia um inqurito gentico na parvalheira acanhada para onde o tinham transferido. Eram nulas.O jovem argelino observava os candeeiros que ainda retinham as asas fuscas da noite. Um n de amargura apertava-lhe a garganta. Mesmo no auge das suas actividades criminosas, soubera sempre evitar a priso. E eis que aos vinte e nove anos, tornado chui, o fechavam numa priso ainda mais insuportvel: uma pequena cidade de provncia, atascada em tdio, no meio de um leito de penedia. Uma priso sem paredes nem grades. Uma priso psicolgica, que o consumia a fogo lento.59Comeou a devanear. Viu-se a engaiolar assassinos em srie, graas a anlises de ADN e a programas informticos especializados, como nos filmes americanos. Imaginou-se frente de uma equipa de cientistas a estudar a cartografia gentica dos criminosos. custa de pesquisas, de estatsticas, os especialistas isolavam uma espcie de ruptura, de falha, algures na cadeia cromossmica e identificavam essa deficincia como a prpria chave da pulso criminosa. Numa dada poca, j se falara de um duplo cromossoma Y que caracterizaria os assassinos, mas esta pista revelara-se falsa. No sonho de Karim, porem, um novo erro de ortografia era posto em evidncia no agregado das letras do ciclo gentico. E era Karim em pessoa que permitia esta descoberta, merc das suas detenes ininterruptas. De repente, ojovem chui no pde reprimir um frmito.Sabia que, se tal erro existia, ele corria igualmente nas suas veias.Para Karim, a palavra rfo nunca significara coisa alguma. S se podia sentir a perda do que se conhecera, e o magrebino nunca vivera nada que se assemelhasse, de perto ou de longe, a uma vida de famlia. As suas primeiras recordaes consistiam num canto de linleo e uma televiso a preto e branco, no lar da rua Maurice Thorez, em Nanterre. Crescera no corao de um bairro sem misericrdia e sem cor. Havia vivendas ao lado de torres e baldios que se transmutavam gradualmente em quarteires. E recordava-se ainda dos seus jogos de escondidas com os estaleiros, que a pouco e pouco ganhavam terreno aos escalrachos da sua infncia.Era um mido esquecido. Ou encontrado. Tudo dependia do ponto de vista em que nos colocssemos. De qualquer modo, nunca conhecera os pais e nada, na educao que lhe tinham ministrado em seguida, viera alguma vez lembrar-lhe as suas origens. No falava muito bem o rabe, s possuia umas vagas noes do Islo. O adolescente cedo se emancipou dos60seus tutores - os educadores do lar, cuja boa vontade e simplicidade lhe causavam vmitos - e entregara-se cidade.Descobrira ento Nanterre, um territrio sem limites, estriado de amplas avenidas orladas de prdios colossais, de fbricas, de edifcios administrativos, onde circulavam transeuntes inquietos, acabrunhados, vestidos com umas fatiotas desengraadas e habituados aos amanhs que nunca cantavam. Mas a misria s chocava os ricos. E Karim no reparava na pobreza que ensopava tudo naquela cidade, do mais nfimo material s rugas cavadas nos rostos.Guardava, pelo contrrio, recordaes emocionadas da sua adolescncia. O tempo da punkitude, do No Future. Treze anos. Os primeiros amigalhaos. As primeiras namoradas. Paradoxalmente, Karim surpreendeu, na solido e na tormenta da puberdade, razes para amar e partilhar. Depois da sua infncia rf, o perodo do mal-estar adolescente foi para ele como uma segunda oportunidade de encontro, em que pde abrir-se aos outros, ao mundo exterior. Ainda hoje se lembrava dessa poca com uma nitidez de cristal. As longas horas nas cervejarias, acotovelando-se perto dos flippers e galhofando com os compinchas. Os sonhos infinitos, a garganta estrangulada s de pensar nalguma garina entrevista nos degraus do liceu.Mas o subrbio tambm escondia o seu jogo. Abduf soubera sempre que Nanterre era triste e sem retorno. Descobriu que a cidade era igualmente violenta e mortal.Uma sexta-feira noite, um bando surgira na cafetaria da piscina, que tinha ento servio nocturno. Sem uma palavra, esfacelaram o rosto do dono a pontap e a golpes de caneca. Uma velha histria de acesso recusado, de cerveja no paga, no se sabia muito bem. Ningum se mexera. Mas os gritos sufocados do homem, debaixo do balco, haviam-se inscrito em linhas de ressonncia nos nervos de Karim. Nessa noite, explicaram-lhe tudo. Nomes, lugares, rumores. O argelino vislumbrara ento um outro mundo de cuja existncia no suspeitava. Um mundo povoado de seres superviolentos, bairros inacessveis, caves mortferas. Outra vez, pouco antes de um61concerto, na rua da Ancienne Mairie, uma zaragata descamba em massacre. Tinham irrompido novamente cls. Karim vira uns gajos de rosto desfeito a rolar contra o asfalto, uma rapariga com o cabelo empastado de sangue a proteger-se debaixo dos carros.O argelino crescia ej no reconhecia a sua cidade. Erguia-se uma vaga de fundo. Todos falavam com admirao de Victor, um camarons que se injectava sobre os telhados dos prdios. De Marcel, um madrao de cara bexigosa, com um sinal azul tatuado na testa, indiana, condenado vrias vezes por vias de facto contra chuis. De Jamel, de Saffi, que tinham assaltado a Caixa de Aforro mo armada. Por vezes, Karim enxergava estes tipos sada da escola, e a altivez e nobreza deles impressionavam-no. No eram seres vulgares, incultos e grosseiros, mas sujeitos distintos, elegantes, de olhar febril, gestos estudados.Escolheu o seu campo. Comeou por roubar auto-rdios, depois automveis, e alcanou uma efectiva independncia financeira. Conviveu com o negro opimano, os irmos assaltantes, e sobretudo Marcel, um ser errante, assustador, brutal, que se drogava de manh noite, mas que possua tambm um olhar, uma distncia em relao ao subrbio, que fascinava Karim. Marcel, de cabelo curto e oxigenado, usava coletes de pele e ouvia as Rapsdias Hngaras de Liszt. Vivia em casas ocupadas e lia Blaise Cendrars. Chamava a Nanterre o polvo e concebia Karim no o ignorava, toda uma srie de libis e de anlises para explicar a sua futura decadncia, inelutvel. Paradoxalmente, este ser dos bairros perifricos demonstrava a Karim que existia uma outra vida para l do subrbio.O argelino jurou ento a si mesmo alcanar essa vida.Ao mesmo tempo que prosseguia os seus roubos, comeou a marrar cada vez mais no liceu, o que ningum compreendeu. Inscreveu-se no curso de boxe tai, para se proteger dos outros e de si mesmo, pois no era raro ceder a acessos de furor, pasmosos e incontrolveis. De ora avante, o seu destino era uma corda esticada, sobre a qual caminhava em equilbrio.62Em redor, a vasa negra da delinquncia e da droga absorviam tudo. Karim tinha dezassete anos. Sobreveio, de novo, a solido. O silncio sua volta, quando atravessava o trio do centro associativo, ou quando tomava caf na cantina do liceu, perto dos flippers. Ningum ousava chate-lo. Nessa poca, j havia sido seleccionado para os campeonatos de boxe tai. Todos sabiam que Karim Abduf era capaz de lhes quebrar o nariz com um golpe de calcanhar sem tirar as mos do balco de zinco. Tambm se cochichavam outras histrias: arrombamentos, trficos de droga, brigas inauditas...A maior parte destes rumores eram falsos, mas garantiam uma relativa tranquilidade a Karim. O jovem liceal concluiu o curso com boas notas. Teve direito s felicitaes do reitor e compreendeu, cheio de surpresa, que o homem autoritrio tambm tinha medo dele. Inscreveu-se na faculdade, em Direito. Ainda Nanterre. Nessa altura, roubava dois carros por ms. Dispunha de vrios receptadores, que alternava constantemente. Era sem dvida o nico argelino do arrabalde que nunca fora preso, nem sequer inquietado pela bfia. E ainda no tomara uma nica dose de droga, qualquer que ela fosse.Aos vinte e um anos, licenciou-se em Direito. O que fazer agora? Nenhum advogado daria sequer um estgio de mandarete a um jovem argelino com um metro e oitenta e cinco, magro como um pau de virar tripas, de pra, tranas exticas e uma fiada de brincos em cada orelha. Fosse como fosse, Karm iria parar ao desemprego e teria de comear tudo outra vez. Antes morrer. Continuar a roubar carros? Apreciava acima de tudo as horas secretas da noite, o silncio dos Parques de estacionamento, as descargas de adrenalina que o inundavam quando anulava os sistemas de segurana dos BMW. Sabia que jamais poderia renunciar quela existncia oculta, aguda, tecida de riscos e de mistrio. Sabia tambm que, mais cedo ou mais tarde, a sorte acabaria por mudar.Teve ento uma revelao: iria tornar-se chui. Evoluiria no mesmo universo oculto, mas ao abrigo de leis que desprezava, sombra de um pas no qual cuspia com todas as suas foras.63Karim retivera uma lio dos anos de mocidade: no tinha origem, nem ptria, nem famlia. As suas leis eram as suas prprias leis, o seu pas era o seu prprio espao vital.Ao regressar do exrcito, inscreveu-se na escola superior dos inspectores da polcia nacional de Carmes-cIuse, perto de Montereau, e tornou-se interno. Pela primeira vez, deixava o seu feudo de Nanterre. Os resultados foram excepcionais desde o incio. Karim possua aptides intelectuais acima da mdia e, sobretudo, conhecia como ningum o comportamento dos delinquentes, as leis dos bandos da zona podre. Tambm se transformou num atirador de eleio e a sua mestria no combate de mos nuas aprofundou-se. Especializou-se na arte do p, uma quinta-essncia do combate corpo-a-corpo, que agrupava o que existia de mais perigoso no seio das artes marciais e dos desportos de afrontamento de todas as espcies. Nas fileiras dos aprendizes de chuis, detestaram-no instintivamente. Era rabe. Era orgulhoso. Sabia lutar e exprimia-se melhor que a maioria dos seus colegas, que no passavam de falhados indecisos, inscritos nos efectivos da polcia para escapar ao desemprego.Um ano mais tarde, Karim concluiu a sua formao mediante estgios no seio de vrias esquadras parisienses. Sempre os mesmos bairros excntricos, a mesma misria, mas desta vez em Paris. Ojovem estagirio instalou-se num pequeno quarto, no bairro das Abbesses. Confusamente, compreendeu que estava salvo.No entanto, no cortara as pontes com as suas origens. Voltava regularmente a Nanterre e ia sabendo notcias. A derrocada estava em marcha. Tinham encontrado Victor no telhado de um prdio de dezoito andares, encarquilhado como um feitio de marabuto, com uma seringa cravada no escroto. Overdose. Hassan, um calo cabila, louro e imenso, dera um tiro nos miolos com uma espingarda de caa. Os irmos assaltantes estavam encarcerados em Fleury-Mrogis. E Marcel cara definitivamente na herona.Karim via soobrar os seus amigos e assistia, com terror, ao surgimento da derradeira vaga de fundo. A Sida acelerava64agora o processo de destruio. Os hospitais, outrora povoados por operrios gastos e velhos entrevados, enchiam-se agora de garotos condenados, com as gengivas negras, a pele malhada, os rgos rodos. Viu assim desaparecer a maior parte dos seus compinchas. Viu o mal ganhar em pujana, em extenso, e depois aliar-se hepatite C para dizimar as hostes da sua gerao. Karim recuou, com as entranhas repassadas de medo. A sua cidade agonizava.Em junho de 1992, obteve o diploma. Com as felicitaes do *uri - uns paspalhes de cachucho no dedo que s lhe inspiravam piedade e condescendncia. Mas era preciso festejar isto. Comprou champanhe e dirigiu-se s Fontenelles, o bairro de Marcel. Ainda hoje se recordava do mnimo pormenor desse fim de tarde. Batera porta dele. Ningum. Interrogara os midos, em baixo, depois palmilhara os trios dos prdios, os terrenos de futebol, os depsitos de papis velhos... Ningum. Andara assim at noite. Debalde. s vinte e duas horas, fora ao hospital da Casa de Nanterre, servio de Serologia - Marcel era seropositivo h dois anos. Atravessara as tempestades de ter, arrostara os semblantes doentes, interrogara os mdicos. Vira a morte em aco, contemplara os progressos atrozes da infeco.Mas no encontrara Marcel.Cinco dias depois, soube que tinham descoberto o corpo do amigo no fundo de uma cave, com as mos esturradas, o rosto acutilado, as unhas