Jiddu Krishnamurti - O Significado da Meditaç¦o

163
Excertos de Conferências de Krishnamurti Tradução de Amadeu Duarte- 2002 Uma Nova Consciência Necessitamos de uma nova consciência e de uma moralidade completamente diferente a fim de podermos efectuar uma mudança radical na estrutura cultural e social da actualidade. Isso é bastante evidente apesar das facções da Direita da Esquerda e dos revolucionários o não considerarem como importante. Todo o dogma, fórmula e ideologia fazem parte da consciência antiquada e são invenções do pensamento cuja actividade forma a fragmentação - seja a da 1

description

Jiddu Krishnamurti - O Significado da Meditaç¦o

Transcript of Jiddu Krishnamurti - O Significado da Meditaç¦o

O Significado da Meditao

PAGE

Excertos de Conferncias de KrishnamurtiTraduo de Amadeu Duarte- 2002

Uma Nova Conscincia

Necessitamos de uma nova conscincia e de uma moralidade completamente diferente a fim de podermos efectuar uma mudana radical na estrutura cultural e social da actualidade.

Isso bastante evidente apesar das faces da Direita da Esquerda e dos revolucionrios o no considerarem como importante. Todo o dogma, frmula e ideologia fazem parte da conscincia antiquada e so invenes do pensamento cuja actividade forma a fragmentao - seja a da esquerda, da direita ou do centro. Essa actividade conduzir ao inevitvel derramamento de sangue dessa s faces, ou ento ao totalitarismo. Isso o que est a acontecer ao nosso redor. Podemos perceber a necessidade de mudana social, econmica e moral porm a nossa resposta procede sempre dessa conscincia antiquada, em que o pensamento desempenha o papel preponderante. na rea dessa conscincia "velha" que tem origem a confuso, a desordem e infelicidade, em que os seres humanos caram e se no alterarmos isso de um modo profundo, toda a actividade humana - poltica, econmica ou religiosa - s nos conduzir nossa prpria destruio e destruio da Terra. Isso bastante bvio.

Temos de ser uma luz para ns mesmos, porquanto essa luz constitui toda a lei. No existe outra lei alm dessa. Todas as demais so criadas pelo pensamento e, como tal, so fragmentrias e contraditrias.

Mas ser uma luz em si mesmo significa no seguir a luz de nenhuma outra pessoa, por mais racional, lgica, histrica ou convincente essa luz possa ser. E se andarmos mergulhados nas trevas da autoridade, do dogma ou da concluso nesse caso no poderemos ser uma luz para ns mesmos. A moral no pode ser edificada com base no pensamento; ela no o resultado das presses do meio nem pertence ao passado, que forma a tradio.

A moral filha do amor, mas o amor no reside no desejo nem no prazer. O prazer sensorial ou sexual no amor.

A liberdade est em sermos uma luz para ns mesmos. Ento ela deixar de ser uma abstraco, uma coisa arquitectada pelo pensamento. A verdadeira liberdade significa sermos livres da dependncia, livres do apego e do anseio de toda a experincia. Ser livre da estrutura do pensamento equivale a ser uma luz para si prprio, luz essa que possibilitar toda a aco, jamais contraditria. A contradio s existe quando essa luz distinta da aco; quando aquele que age se acha separado da aco. O ideal, o princpio, um movimento estril do pensamento que no pode coexistir com essa luz pois ela a negao disso. Enquanto existir um observador essa luz e esse amor no podero fazer-se presentes.

A estrutura do pensador criada pelo pensamento, que em si jamais novo ou livre. Mas no existe nenhum como, sistema nem pratica. Trata-se somente de percebermos- isso engloba toda a aco.

Tm de ser capazes de perceber, porm, no pelos olhos de outra pessoa. Essa luz, essa lei no vossa nem de mais ningum pois nica. amor.

24 Set. 73

O Milagre da Ateno

No poderemos colocar todas as ideias, teorias e conceitos de lado e investigar por ns mesmos se existir na vida alguma coisa sagrada, que no se fique pela palavra, pela descrio?

A palavra no a coisa- do mesmo modo que a descrio no aquilo que descrito. No poderemos pois descobrir uma verdade duradoura, algo real, que no seja o produto da imaginao nem da iluso, do capricho nem do mito?

Para o podermos descobrir temos de pr completamente de lado toda a espcie de autoridade - especialmente a espiritual - porque qualquer forma de autoridade implica conformismo, obedincia e aceitao de diversos padres.

A mente tem de ser capaz de manter-se s e de ser uma luz para si prpria. Para aquele que pretenda investigar a questo da existncia do eterno e do intemporal- que no mensurvel pelo pensamento- de tal forma que isso possa operar no seu viver dirio, de todo irrelevante seguir o exemplo traado por outros, pertencer a um grupo ou seguir os mtodos de meditao tradicionais ou estabelecidos por uma autoridade qualquer.

Se essa meditao no fizer parte do nosso viver dirio nesse caso dever tratar-se de um escape, completamente intil. Isto implica que temos de permanecer ss. Consolidar essa observao distanciada da conscincia diferente de se isolar. Existe uma enorme diferena entre a solido e a capacidade de permanecer assim s, nessa clareza de percepo; liberto de toda confuso e contaminao oriunda da influncia.

Interessa considerar a vida no seu todo e no somente um segmento ou fragmento dela- tudo aquilo que fazemos e pensamos, aquilo que sentimos e o modo como nos comportamos. E se a considerarmos na sua totalidade provavelmente no podemos pegar num fragmento- que aquilo que representado pelo pensamento- e tentar resolver com ele todos os nossos problemas. O pensamento pode investir-se de autoridade para congregar todos os outros fragmentos todavia esses fragmentos foram todos criados pelo pensamento. Ns fomos condicionados a pensar em termos de progresso e conquista gradual; as pessoas acreditam numa evoluo psicolgica mas ser que existe de facto um "eu" que chegue a ser alguma coisa- psicologicamente- alm do que projectado pelo pensamento? Contudo, para podermos descobrir a existncia de algo que no seja mera projeco do pensamento, e que no seja nem uma iluso nem um mito temos que averiguar se o pensamento poder ser controlado, suspenso, suprimido, de forma que isso proporcione uma mente que fique imvel.

O controle pressupe a existncia daquele que controla e da coisa controlada, no mesmo? Mas quem esse que controla?

No ser ele tambm uma criao do pensamento, um dos seus fragmentos, que assumiu autoridade como controlador? Se conseguirmos objectivar a verdade disso ento perceberemos que aquele que controla a coisa controlada; aquele que experimenta a coisa experimentada e o pensador o pensamento. No mais se trata de duas entidades separadas. Se compreendermos isso no existir mais necessidade de controle. E se no existir mais um controlador- por percebermos ser ele a coisa controlada- que poder ento suceder?

Enquanto subsistir diviso entre o controlador e a coisa controlada dever haver conflito e desperdcio de energia. J se o controlador for a coisa controlada tal desperdcio no ocorrer, e nesse caso toda a energia dissipada pela supresso e pela resistncia - ocasionada pela diviso entre controlador e controlado - sofrer um acrscimo.

Quando no mais existir essa diviso poderemos usufruir de toda essa energia para galgar aquilo que pensvamos dever ser controlado.

Temos que entender com toda a clareza que na meditao no pode haver controle nem disciplina do pensamento porque aquele que disciplina o pensamento um fragmento desse pensamento; aquele que controla o pensamento ainda um fragmento do pensamento. Se pudermos perceber a verdade disso ento possuiremos toda a energia que foi dissipada atravs da comparao, atravs do controle, da supresso, para podermos transcender aquilo que "" no presente.

Estvamos a indagar se a mente no ser capaz de permanecer absolutamente imvel porque aquilo que est quieto possui imensa energia. Na verdade d-se um consumar das nossas energias todas. Poder a mente- que est constantemente irrequieta e a tagarelar- o que representa a aco do pensamento constantemente a voltar-se no tempo, num acto de recordao, a acumular conhecimento, numa constante mudana - permanecer completamente imvel?

J alguma vez procuraram descobrir se o pensamento poder permanecer imvel?

Como havero de descobrir o modo de aquietar o pensamento? Porque, o pensamento tempo e tempo movimento- o tempo mensurvel; vocs utilizam a avaliao e a comparao tanto fsica como psicologicamente, na vida do dia a dia. Mas isso significa medir; comparar significa medir. Mas, no podero viver uma vida diria isenta de comparao? No poderemos parar completamente de comparar, no atravs da meditao mas no nosso viver dirio? Escolhemos quando temos de estabelecer uma diferena entre dois materiais, entre esta ou aquela pea de tecido, quando comparamos dois carros ou parcelas do conhecimento, porm o facto que- psicologicamente, interiormente- ns nos comparamos com os outros. Mas, quando essa comparao chegar a cessar- como acabar por acontecer- no poderemos ento permanecer completamente ss- num todo singular?

Porque isso que est implcito na ausncia de comparao- o que no significa que devamos permanecer num estado vegetativo.

Desse modo no poderemos levar uma vida diria isenta de comparao? Faam-no ainda que por uma s vez e podero descobrir o que isso implica. Porque nesse caso livrar-nos-emos de todo um fardo pesado, e quando nos livramos de uma carga desnecessria passamos a conservar mais energias.

J alguma vez deram ateno a alguma coisa de forma completa? Vocs esto a prestar ateno ao que o orador est a dizer? Ou esto a escutar com a mente comparativa que adquiriu um certo tipo de conhecimento, e est a comparar aquilo que est a ser dito com o que j sabem? No estaro a interpretar o que est a ser dito de acordo com o vosso conhecimento, com as vossas prprias inclinaes e preconceitos? Porque isso no ateno. Mas se prestarem ateno, com todo o vosso corpo, os vossos nervos, os vossos olhos, os vossos ouvidos, a vossa mente- com todo o vosso ser, ento no existir centro nenhum a partir de qual prestam ateno; existir somente ateno. E essa ateno representar um estado de completo silncio.

Tenham a bondade de escutar porque infelizmente mais ningum lhes falar destas coisas; prestem ateno ao que est a ser dito pois o prprio acto de escutar constitui o milagre da ateno. Nessa ateno no existem limites nem obstculos; por conseguinte, essa ateno no toma direco nenhuma. Existe somente ateno e onde essa ateno estiver presente no existir eu nem tu; no existir dualidade, nem observador e observado enquanto coisas distintas. Mas isso no possvel enquanto a mente se mover numa direco especfica.

Ns fomos educados e condicionados a mover-nos em determinadas direces- como daqui para acol- de modo que chegamos a possuir uma ideia, um conceito, uma frmula do que a realidade constitua, uma ideia da existncia de uma beno, uma existncia de algo para l do pensamento e fazemos disso um objectivo, um ideal, uma direco, em direco do que passamos a mover-nos. Mas, quando caminhamos numa direco qualquer no podemos ter espao. Quando nos concentramos, caminhamos ou pensamos numa certa direco deixamos de possuir espao mental. Do mesmo modo que deixamos de possuir quando a mente se encontra apinhada de mltiplas formas de apego e medo, ou se lana na busca do prazer, do desejo de poder e posio. Nesse caso a mente fica sobrelotada e no poder conter espao nenhum. E necessrio possuir espao mental pois onde h ateno no pode haver direco mas to s espao.

A meditao implica a inexistncia de qualquer movimento mental. Isso significa que a mente se deve encontrar completamente imvel, sem se mover em nenhuma direco, no subsistindo desse modo movimento nenhum formado pelo tempo ou pelo pensamento.

Se perceberem a verdade disso e no somente a mera verbalizao da coisa- aquela verdade que no passvel de ser descrita- ento resultar essa mente imvel e silenciosa. E necessrio possuir uma mente assim silenciosa, no propriamente para se poder dormir mais nem para executar melhor as nossas tarefas ou para ganhar mais dinheiro! A vida da maioria das pessoas pobre e vazia. Conquanto elas possam usufruir de muitos conhecimentos a maioria das suas vidas pobre, incompleta, infeliz e contraditria; tudo isso forma essa pobreza. As pessoas desperdiam a sua vida tentando tornar-se interiormente ricas, cultivando vrias formas de virtude e todo esse contra-senso e tolice. No quero dizer que no necessitemos de virtude, porm, a virtude significa ordem, e ns s podemos compreender a ordem quando atendermos nossa prpria desordem. Mas o facto que conduzimos uma forma de vida desordenada- com toda a contradio, confuso, mltiplos desejos peremptrios, dizer uma coisa e fazer outra, seguir ideais, com toda a diviso existente entre ns e o ideal- tudo isso desordem. Mas se tivermos conscincia disso e lhe dermos inteira ateno, dessa ateno poder resultar uma ordem que em si virtude- uma coisa viva e no inventada, tampouco praticada ou desvirtuada.

A meditao, na vida de todos os dias, consiste na transformao da mente e constitui uma revoluo psicolgica de tal forma que podemos viver uma vida sem teorias, sem ideais, e ter compaixo, sentir amor e energia para poder transcender a mesquinhez, a estreiteza e a superficialidade em toda a extenso desse viver.

Quando a mente se acha em silncio- verdadeiramente imvel e no imobilizada por aco do desejo ou da vontade- ento passa a existir todo um movimento completamente diferente que no se circunscreve no tempo.

Vejam bem, no faria sentido estarmos aqui a aprofundar a questo porque tal coisa no passaria de uma referncia verbal, e, por isso mesmo, irreal. Aquilo que realmente importa porm, a arte da meditao.

Um dos sentidos da palavra arte significa colocar cada coisa no seu devido lugar; colocar tudo aquilo que pertinente ao nosso viver dirio no seu devido lugar, de modo que da no resulte nenhuma confuso. Quando o nosso procedimento for imbudo de ordem e correco e formos capazes de manter a mente num estado de perfeita serenidade em meio a todo o nosso viver dirio ento essa mente descobrir por si mesma da existncia ou no desse estado imensurvel. Mas at que sejam capazes de o descobrir- o que constitui a mais elevada forma de santidade, a vida poder tornar-se enfadonha e destituda de sentido.

Por essa razo a meditao correcta algo que se torna absolutamente necessrio, a fim de possibilitar que a mente se revigore, se renove e se torne inocente. Inocncia implica incapacidade de sentir-se magoado. Mas tudo isso est implcito na meditao, que no se acha separada do nosso viver dirio. Necessitamos de meditao mesmo para a compreenso do nosso viver do dia a dia; ou seja, prestar toda a ateno ao que fazemos- quando conversamos com algum, o modo como caminhamos, como pensamos, e aquilo que pensamos- prestar ateno total a isso faz parte do processo da meditao.

A meditao no uma forma de evaso nem algo misterioso, mas dela pode provir um modo de vida santificada, um modo de vida sagrada a partir do que passaremos a tratar tudo como expresso do sagrado.

25 Maro 1975

A Realizao da Generosidade

Porque razo foi o Homem incapaz de mudar? Ele tem mudado um pouco aqui e um pouco acol somente e no final vem reclamar por uma sociedade equitativa. Contudo, carrega no s um anseio de ordem tanto em si mesmo como nas suas relaes (ntimas ou de outro carcter qualquer) como tambm a esperana por algum tipo de paz para o mundo, ao mesmo tempo que se isola a fim de se desenvolver e descobrir algum tipo de beatitude. Se observarmos bem esta tem sido a nossa demanda ao longo da historia, desde as pocas mais remotas. No entanto, quanto mais o homem se torna civilizado mais desordem cria e mais guerras faz surgir. Jamais esta nossa Terra conheceu alguma poca em que no decorresse uma nica guerra, ou em que o homem no matasse o seu semelhante; em que uma religio no dominasse e destrusse as outras ou uma instituio que no procurasse suprimir as outras.

Se por acaso j tomaram conscincia de toda esta luta infindvel, alguma vez se interrogaram da possibilidade de vivermos neste mundo de modo feliz e inteligente, e sem toda essa luta que ocorre tanto no nosso ntimo como exteriormente? No quer isto dizer que devamos debandar nem deixar tudo para integrar uma comunidade qualquer ou tornar-nos monges ou eremitas, mas sim que devemos viver de um modo sensato. Se j o fizeram, e espero que o estejam a fazer presentemente, medida que nos encontramos a pensar juntos, ento deveis exigir uma sociedade melhor. Criar uma sociedade justa constituiu o sonho tanto dos antigos hindus como dos gregos e egpcios da antiguidade. Mas uma sociedade melhor s pode existir quando a humanidade for justa, porque se for justa criar bondade nas suas relaes, de um modo natural, com suas aces e modo de vida.

Mas por "bom" refiro-me igualmente quilo que belo. "Bom" significa tambm aquilo que santificado, aquilo que est relacionado com Deus e os mais elevados princpios. Por isso a palavra "bom" precisa ser bem entendida. Quando possurem um sentimento autentico de bondade ento tudo aquilo que fizerem ser bom, seja nas vossas relaes, nas vossas aces ou na vossa maneira de pensar. Pode-se captar todo o significado dessa palavra de modo instantneo bem como a extraordinria qualidade que possui.

Por favor, ponderem juntamente comigo sobre tudo isto porque se estiverem com vontade de o fazer de um modo determinante isso afectar a vossa conscincia, a maneira como pensam e todo o vosso modo de vida. Por isso prestem um pouco de ateno compreenso dessa palavra. A palavra no a coisa. Eu posso descrever uma montanha da forma mais bela e pint-la, ou compor um poema, todavia, a palavra, a descrio, o poema no so essa realidade descrita. Geralmente, porm, a descrio e a palavra emociona-nos e torna-nos irracionais.

A bondade no o contrrio daquilo que mau; a bondade no possui nenhuma relao com o que feio ou mau, nem com o que carece de beleza. Ela existe por si s. Se disserem que o bem resulta do mau, do mal, do feio, da brutalidade, ento esse bem dever possuir em si esse mesmo mal; portanto o bem no deve possuir relao nenhuma- e na verdade no possui- com aquilo que no comporta bondade.

No existe qualquer possibilidade de o bem existir quando h aceitao de autoridade- seja de que tipo for. A autoridade uma coisa muito complexa. H a autoridade das leis, que o homem reuniu ao longo das eras, h as leis naturais, as leis da experincia a que obedecemos, as leis das nossas reaces mesquinhas que dominam a nossa vida, e por fim as leis das instituies, as leis das crenas organizadas- os dogmas das chamadas religies. Mas aquilo que estou a afirmar que a bondade no tem relao nenhuma com a autoridade.

Examinem muito bem isso. A bondade no busca de conformismo. Bondade no acomodar-nos a uma crena, a um conceito, a uma ideia ou princpio, porquanto tudo isso cria conflitos. A bondade tambm no pode desenvolver-se por intermdio de outra pessoa, seja ela uma figura religiosa ou um dogma, uma crena etc.; s poder florescer no solo da completa ateno, onde no existe nenhum tipo de autoridade. A essncia da bondade est naquela mente que no possui conflitos. A bondade implica a posse de uma enorme responsabilidade- porque no podemos ser justos e permitir que ocorram guerras. Portanto, uma pessoa de boa ndole completamente responsvel por toda a sua vida.

Estvamos a perguntar se ns, que vivemos numa sociedade que sofre todas as presses das instituies, das crenas e da autoridade das pessoas religiosas, poderemos ser justos, porque somente se forem justos, se enquanto seres humanos forem absolutamente justos- de forma absoluta e no parcial- se poder criar uma sociedade diferente. Ser pois possvel vivermos num mundo assim e casar, ter filhos, emprego e no obstante sermos justos? Estamos a usar a palavra com um sentido de uma enorme responsabilidade, cuidado, ateno, diligncia, amor. A palavra bom, justo, contm tudo isso. Ser isso possvel para vs que se interessam e escutam? Se no for possvel ento simplesmente aceitem a sociedade da forma que ela .

Criar uma sociedade que seja diferente, uma sociedade essencialmente boa, no contexto em que venho empregando a palavra, exige enorme capacidade de energia. Exige toda a nossa ateno, ou seja, o emprego das nossas energias. Enquanto seres humanos somos dotados de uma energia imensa; quando queremos fazer alguma coisa simplesmente fazemo-la. Portanto, que ser que impede todo o ser humano de ser completamente justo? Que barreira ou espcie de bloqueio? Porque no somos ns, seres humanos, completamente justos, de forma sensata? Aquele que for bom observador perceber o estado em que o mundo se encontra e perceber igualmente que ele o mundo; que o mundo no diferente dele. Perceber que ele criou o mundo a sociedade e as religies com os seus inmeros dogmas, crenas, rituais, com todas as separaes, distines e faces. Os seres humanos criaram tudo isso. Ser, pois, isso que nos impedir de ser justos? Ou ser porque acreditamos ou nos envolvemos demais com os nossos problemas do sexo, do medo, da ansiedade, da solido, da necessidade de satisfao e de identificao com uma ou outra coisa? Ser isso que impede o ser humano de ser justo?

Se essas coisas constiturem um impedimento, ento no possuiro valor nenhum. Se perceberem que toda a forma de presso- oriunda seja de que direco for, inclusive a vossa prpria crena, os vossos princpios, os vossos ideais- dever constituir um impedimento total ao florescimento dessa qualidade da bondade ento devem afast-lo com toda a naturalidade sem equvocos nem conflitos, porquanto isso uma coisa estpida.

O enorme caos e desordem que prolifera e se espalha por todo o mundo constitui uma verdadeira ameaa vida. Assim, qualquer pessoa honesta que seja boa observadora de si prpria e do mundo ao seu redor dever interrogar-se sobre isso.

Os cientistas, os polticos, os filsofos, os psicanalistas, ou gurus- venham eles de onde vierem, da ndia ou do Tibete, ou no vosso prprio pas- jamais resolvero os problemas humanos. Ningum vir resolv-los. Temos de ser ns a resolve-los porque fomos ns que criamos esses problemas. Porm, infelizmente, no estamos dispostos a enfrentar os nossos problemas a fundo nem a pesquisar a razo porque vivemos to preocupados connosco, com nosso modo de vida egosta nem com o modo como somos.

Mas ns estamos a questionar a possibilidade de vivermos com bondade e toda a sua beleza, a sua pureza. Se no pudermos, ento estaremos aceitando o perigo crescente do caos na nossa vida e na vida das nossas crianas e por a adiante.

Tero vontade de investigar a fundo a questo de nos conhecermos a ns mesmos? Porque ns somos o mundo. Por todo o lado o ser humano sofre, psicolgica e interiormente- seja qual for a cor da sua pele, a sua religio, a sua nacionalidade ou crenas, ele acha-se sujeito a enormes estados de ansiedade e de incrvel solido; o ser humano carrega uma enorme sentimento de desespero, depresso, uma sensao de total falta de sentido para o viver, da forma como vive. As pessoas so psicologicamente similares por todo o mundo; isso um facto real e uma verdade.

Portanto, psicologicamente ns somos o mundo, e o mundo somos ns; quando compreendermos a ns mesmos estaremos a elaborar uma compreenso de toda a estrutura e natureza humana. No se trata de uma simples investigao egosta porque quando compreendemos a ns mesmos tambm nos transcendemos, e penetramos uma nova dimenso.

Mas, que nos far mudar? Impactos de maior intensidade e brutalidade? Mais catstrofes? Formas de governo diferentes? Diferentes tipos de imagem? Diferentes tipos de ideal? J tivemos uma grande variedade deles e no entanto no mudmos. Quanto mais sofisticada for a nossa educao mais "civilizados" nos tornaremos, no sentido de nos afastarmos da natureza; mas isso torna-nos desumanos. Que haveremos ento de fazer?

Como nenhuma dessas coisas exteriores a mim me podero valer- incluindo todos os deuses- ento evidente que s me resta compreender a mim mesmo. Tenho de perceber aquilo que sou e modificar-me completamente. S assim poder surgir essa bondade. S assim poderemos construir uma sociedade que seja justa.

7 Abril 1979

A Clareza da Compreenso

Podamos ficar a falar por tempo infindvel, acrescentando palavras e mais palavras e chegar a vrias concluses mas, se em meio a toda essa confuso verbal prevalecer uma aco clara essa aco valer por dez mil palavras. A maior parte de ns tem medo de agir por nos acharmos confusos, infelizes e vivermos de modo desordenado e em contradio. Mas apesar de toda esta confuso e desta desordem sempre temos a esperana de que surja algum tipo de clareza de entendimento, uma clareza que no proceda de fora e que possa no ser obscurecida; uma clareza que no nos seja dada nem seja induzida e que no possa ser-nos tirada, mas possa ser preservada, por si s, sem qualquer esforo por parte da nossa vontade. Uma clareza de esprito destituda de todo o motivo, uma clareza que no tenha fim e, portanto, que seja destituda de comeo.

A maioria de ns deseja alcanar uma clareza de entendimento assim - se alguma vez chegamos a estar de todo atentos confuso interior. Vamos ver se podemos chegar a essa clareza de modo que a mente e o corao possam encontrar firmeza e serenidade, e sejamos capazes de aniquilar os problemas e os temores. Seria bastante proveitoso percebermos se podemos ser uma luz em ns prprios, uma luz que no seja dependente de ningum, mas que seja inteiramente livre. Podamos explorar essa questo de modo intelectual e analtico, retirando camada aps camada a essa confuso e desordem, ao longo de dias, vrios anos ou talvez durante a vida inteira, e ainda assim possivelmente no a encontrarmos. Podemos seguir o processo de anlise das causas e efeitos mas talvez possamos deixar isso inteiramente de lado e chegar a essa clareza directamente ,sem o fazermos por intermdio da autoridade do intelecto.

Mas para isso requer-se a meditao. A palavra meditao foi bastante deturpada e adulterada; exactamente como aconteceu com a palavra amor, que actualmente se acha maculada. Todavia mantm-se bastante adequada e prenhe de significado. Existe muita beleza, no na prpria palavra mas no significado que lhe subjaze. Vamos ver se conseguimos alcanar, por ns mesmos, um estado da mente que se ache constantemente em meditao. Para estabelecermos os alicerces dessa meditao temos que entender em que consiste a vida; a vida do mesmo modo que a morte. A meditao consiste em compreender a vida e o extraordinrio sentido da morte. No se trata da procura de alguma experincia mstica profunda nem da constante repetio de palavras, por mais antigas e santificadas que sejam porque isso no s deixar a mente aquietada como tambm entorpecida, estupidificada e hipnotizada. Bem que podemos tomar um tranquilizante do mesmo modo, que ser at muito mais fcil, porque a meditao no repetio de palavras, nem auto-hipnose nem observncia de sistemas nem mtodos.

A experincia implica um processo de reconhecimento- ontem passei por determinada experincia que me conferiu prazer ou sofrimento; para vivermos inteiramente essa experincia devemos reconhec-la. Mas o reconhecimento procede de algo que j ocorreu antes, e desse modo a experincia nunca ser nova. A verdade jamais poder ser experimentada; nisso est toda a sua beleza, pois ela sempre nova e no est naquilo que aconteceu ontem. Aquilo que ocorreu ontem, esse incidente ou o que tenha sido, tem que ser completamente esquecido; deve ter sido vivido e terminado ontem. Porque carregar essa experincia na lembrana para ser avaliada em termos de conquista ou a fim de podermos descrever a sua extraordinria grandiosidade ou convencer os outros parece ser uma completa tolice.

Temos que ser bastante prudentes e cautelosos com relao palavra experincia porque s podemos referir-nos a ela quando j tenhamos vivenciado uma dada coisa. Isso significa que tem que existir um centro- na qualidade de pensador ou observador- que retm e guarda a coisa vivenciada. Mas provavelmente no podemos experimentar a verdade. Enquanto existir um centro que recolhe; um eu; um pensador, a verdade no poder residir a. Do mesmo modo quando algum diz ter experimentado o real- no acreditem; no aceitem a sua autoridade.

Ns sempre queremos aceitar algum que nos promete alguma coisa em troca, por no possuirmos essa luz em ns mesmos. Mas ningum lhes poder dar essa luz, nenhum guru, mestre, salvador; ningum! No passado aceitamos imensa autoridade e depusemos a nossa f nos outros mas, ou eles nos exploraram ou fracassaram por completo. Por isso devemos desconfiar e negar toda a autoridade espiritual. Ningum poder dar-vos essa luz que no se apaga.

Seguir outra pessoa imitar. Seguir implica no s a negao da prpria luz, a nossa prpria busca, a nossa integridade e honestidade; no seguir tambm est implicado que o motivo constitua uma recompensa. Mas a verdade no uma recompensa! Se quisermos compreender a verdade temos que pr de lado toda a ideia de recompensa e castigo. A autoridade implica medo, mas disciplinar-se pelo medo de no conseguir alcanar aquilo que esse "explorador" apontou em nome da verdade ou da experincia, negar a prpria clareza de esprito, a prpria honestidade. Se dissermos que temos de meditar, que temos de seguir um determinado caminho, um determinado sistema, evidente que nos estaremos a condicionar a esse sistema ou mtodo. Talvez consigamos obter aquilo que prometido pelo mtodo, contudo, isso no passar de um amontoado de cinzas porque a motivao assente na realizao e no sucesso, tem o medo por base.

Entre ns no existe autoridade nenhuma. O orador no possui qualquer autoridade. Ele no est a tentar convenc-los de nada nem a pedir-lhes que o sigam. Quando seguem a orientao de algum destroem essa pessoa. O discpulo destri o mestre e por sua vez o mestre destri o discpulo. Podem perceber isso atravs da histria ou na vossa prpria vida diria; quando a esposa ou o marido dominam o companheiro, ambos destroem-se mutuamente. Nessas condies no pode existir liberdade, beleza nem amor.

Se no estabelecermos as bases adequadas, com assento na ordem, numa clareza de ideias e intensidade de sentido ento o pensamento deve tornar-se inevitavelmente recndito, enganoso, ilusrio, e por isso mesmo destitudo de valor. O estabelecimento desses alicerces, dessa ordem, constitui o comeo da meditao. A nossa vida, essa vida que levamos desde o momento em que nascemos at que morremos- o casamento, os filhos, o trabalho e as realizaes, tudo isso um campo de batalha no s interior como tambm tem lugar fora de ns, na famlia, no escritrio, no grupo e na comunidade. Essa vida uma luta constante. a isso que ns chamamos viver: dor, receios, ansiedade e uma enorme tristeza que nos acompanha qual uma sombra. A nossa vida isso.

Talvez uma pequena minoria seja capaz de observar essa desordem sem recorrer a desculpas aleatrias para justificar a prpria confuso- apesar dessas causas externas existirem. Talvez uma pequena minoria possa observar e obter conhecimento dessa sua existncia; olh-la no s ao nvel consciente como tambm a um nvel mais profundo, sem aceitar nem negar tal confuso; essa terrvel baguna que existe em ns e no mundo ao nosso redor. H de ser sempre uma pequena minoria a produzir toda a mudana vital.

Muito foi j escrito sobre a mente inconsciente, especialmente no Ocidente. Isso chegou mesmo a assumir um significado extraordinrio. Todavia ela to trivial quanto a mente consciente. Se no, observem por vs mesmos. Se o fizerem percebero que aquilo que chamado de inconsciente constitui um resduo da raa, da cultura, da famlia e dos vossos prprios motivos e apetites. Est tudo a, oculto. Alm disso a mente consciente acha-se ocupada com a rotina da vida diria, com a ida para o escritrio, com o sexo, etc. Dar importncia tanto a uma como a outra parece ser um acto completamente inconsequente. Ambas possuem muito pouco sentido, excepo de que a mente consciente deve possuir um acervo de conhecimentos tcnicos para poder garantir o prprio sustento.

Essa luta constante, travada tanto no nosso ntimo- a um nvel profundo- quanto no superficial, reflecte todo o modo como vivemos. Trata-se de um viver de desordem, confuso, contradio e infelicidade; mas a meditao da mente que se acha presa nessa condio, uma coisa absurda e infantil. Meditar fazer brotar ordem em meio a essa confuso, mas no atravs do esforo porque todo o esforo distorce a mente.

Para ser capaz de perceber a verdade a mente tem que possuir clareza sem nenhuma distoro nem compulso e sem direccionamento nenhum.

Assim, temos que estabelecer correctamente os alicerces, antes de mais. Ou seja, tem de haver virtude. Ordem virtude. Mas esta virtude no tem nada que ver com a moralidade social como ns a entendemos. A sociedade imps-nos uma certa moralidade mas essa sociedade um produto de todo o ser humano. E assim, com essa moral, a sociedade diz-nos que podemos ser gananciosos, diz-nos que podemos matar em nome de Deus, em nome da ptria ou em nome de um ideal; diz-nos que podemos ser competitivos e invejosos- tudo ao abrigo da lei. Mas tal moralidade no possui nada de moral. Devemos negar completamente essa moralidade em ns para podermos alcanar virtude. Nisso reside a beleza da virtude. Porque a virtude no um hbito nem uma coisa que pratiquemos dia aps dia. Isso uma rotina mecnica destituda de significado. Ser detentor de virtude implica conhecimento da prpria desordem, essa desordem que passa pela contradio interior, pela tirania dos vrios desejos de prazer, ambio, ganncia, inveja e medo. Essas so as causas da desordem, tanto dentro como fora de ns. Tomar conscincia disso significa tomar contacto com a desordem. Mas s podemos tomar contacto com a desordem quando no a negarmos, quando no lhe procurarmos desculpas nem culpabilizarmos os outros por ela.

A ordem no algo que estabeleamos mas que passa a existir por meio da negao da desordem. A virtude, que em si mesma ordem, resulta do conhecimento da completa natureza e estrutura da desordem. Isso bastante simples se observarmos o quanto ns somos completamente desordenados e contraditrios, e como odiamos quando pensamos amar.

Tal o princpio da desordem e da dualidade; mas a virtude no o resultado da dualidade (de factores psicolgicos). A virtude uma coisa viva, uma coisa para ser colhida diariamente; no a repetio de uma determinada coisa a que no passado se chamou virtude. Isso um acto mecnico destitudo de valor. Portanto, tem de existir ordem. Isso faz parte da meditao.

Ordem significa beleza, mas a nossa vida possui muito pouca beleza. A beleza no feita pelo homem, nem est no quadro exposto- seja moderno ou antigo; no est no edifcio, nem na escultura, na nuvem que passa, na folha de rvore, na gua. A beleza est onde existir ordem- na mente que se acha livre da confuso, e que se encontra em absoluta ordem. Mas s poder haver ordem quando existir a atitude de completa negao de si mesmo e o "eu" no mais possuir importncia nenhuma. O fim do "eu" faz parte da meditao; isso a nica meditao.

Temos vivido na esfera do pensamento. Temos dado uma importncia tremenda ao pensar mas o pensar uma coisa antiquada; o pensar nunca ser novo pois uma extenso da memria. E se vivermos desse modo, bvio que ter de haver algum tipo de continuidade. Mas ser uma continuidade morta, uma coisa gasta, uma coisa antiquada; s aquilo que termina pode dar lugar a algo novo. Assim, importa bastante compreender o morrer. Morrer para tudo aquilo que conhecido.

J alguma vez o tentaram? Livrar-se do conhecido, das nossas recordaes, ainda que s por alguns dias; livrar-se da sensao de prazer sem qualquer tipo de argumentao ou medo. Morrer para a nossa famlia, para a nossa casa, para o nosso nome, tornar-se completamente annimo. Somente a pessoa que for completamente annima e que se achar num estado de no-violncia poder ser livre da violncia. Por isso morram para cada dia, no como uma ideia mas de verdade. Experimentem isso durante algum tempo.

Coleccionamos tanta coisa, no apenas livros casas e contas bancrias, como tambm interiormente: as recordaes de ofensas, de lisonja, as recordaes das nossas experincias particulares assim como realizaes neurticas que nos proporcionam posio social. Experimentem morrer para tudo isso sem argumento, sem discusso, sem medo nenhum, desistindo apenas de tudo isso. Experimentem-no alguma vez e vero. Faz-lo psicologicamente- sem desistir da vossa esposa ou marido, nem dos vossos filhos nem do vosso lar- porm interiormente- significa no estar apegado a coisa nenhuma. Nisso reside uma grande beleza. E afinal isso amor, no ser? O amor no apego. Quando existe o sentimento de apego existe medo. E o medo torna-se inevitavelmente autoritrio, possessivo, opressivo e dominante.

A meditao est na compreenso da vida; na instaurao da ordem. Ordem virtude, o que, por sua vez, luz. Mas essa luz no pode ser acesa por ningum, por mais experiente, mais inteligente, erudito ou espiritual que esse algum seja. Ningum na terra nem no cu poder acend-la excepto vs mesmos, pela compreenso de vs prprios, por meio da meditao.

Morrer para tudo que est dentro de ns! Porque o amor revigorado e inocente, jovial e cheio de clareza. Se estabelecermos em ns mesmos essa ordem, essa virtude, essa beleza, poderemos passar alm. Isso significa que a mente estabelece uma ordem que no pertence ao pensamento e se torna absolutamente tranquila e silenciosa, de modo natural e sem fora nem disciplina nenhuma. E se vivermos diariamente nesse silncio poderemos desempenhar todo o tipo de aco, luz desse amor.

Se tiverem tido a sorte de chegar at este ponto ento vero que nesse silncio existe um movimento diferente que no pertence ao tempo nem palavra, e tampouco passvel de ser avaliado pelo pensamento, por ser sempre novo. desse algo imensurvel que o homem desde sempre tem andado procura. Mas ns temos de nos chegar a ele, porque ele no nos pode ser dado. Ele no est na palavra nem no smbolo; isso so coisas destrutivas. Mas para que isso surja devemos possuir completa ordem, beleza e amor. Portanto temos que morrer para tudo o que psicologicamente conhecemos de modo que a mente obtenha clareza, e possa ter objectividade, podendo desse modo ver as coisas tal como elas so, tanto exterior como interiormente.

19 Maio 1968

A Investigao da Verdade

Ser que existe alguma coisa na vida que seja sagrada, alguma coisa no inventada pelo pensamento? O homem vem a interrogar-se sobre isso desde tempos imemoriais. Existir alguma coisa para l desta confuso, desta infelicidade composta de trevas e iluses, alguma coisa alm das instituies e reformas? Existir alguma coisa verdadeira que se situe alm do tempo, algo to imenso que o pensamento no consiga alcanar? O homem sempre pesquisou isso mas, aparentemente, s umas quantas pessoas gozaram de liberdade para poder penetrar nesse mundo. Desde a antiguidade que a figura do sacerdote se vem colocando entre aquele que busca e aquilo que ele espera achar, interpretando e destacando-se como "aquele que sabe"- ou pensa que sabe!- enquanto que aquele que procura deixado margem, e segue transviado e perdido.

O pensamento, faa o que fizer, nunca sagrado. um processo to material como ns. No entanto o pensamento dividiu as pessoas em religies e nacionalidades. O pensamento brota do conhecimento mas o conhecimento jamais completo- seja com relao ao que for- e como tal dever ser sempre limitado e separativo. E onde imperar a aco separativa dever existir conflito, seja sob a forma de comunismo e capitalismo, rabes e judeus ou hindus e muulmanos. Todas essas divises tm origem no processo do pensamento, mas onde imperar a diviso dever haver conflito. Isso lei. Nada daquilo que tenhamos criado com base no pensamento sagrado- seja nos livros ou nas igrejas, nos templos ou nas mesquitas; nenhum smbolo sagrado. No se trata de religio mas sim duma forma de pensar e duma reaco superficial ao que denominamos de "sagrado".

Para podermos explorar a questo da verdade devemos reunir todas as nossas energias e ser cuidadosos para no agir de acordo com um padro estabelecido mas, ao invs, observarmos os prprios pensamentos, os nossos sentimentos, os nossos antagonismos e medos e irmos alm, de modo a que a mente possa encontrar completa liberdade. Para podermos explorar o que h de mais sagrado, o inominvel, o intemporal, obviamente que no podemos pertencer a nenhum grupo nem religio, nem podemos sustentar crena nenhuma nem f, porque toda a f e crena postulam a verdade de uma coisa que pode bem no existir. prprio da crena aceitar uma coisa qualquer como verdadeira sem questionarmos o seu objecto atravs de investigao de ns prprios, pelo emprego da toda a nossa energia e vigor. Ns acreditamos porque a crena traz-nos algum tipo de segurana e conforto, mas aquele que busca o mero conforto psicolgico jamais atingir aquilo que se encontra alm do tempo. Portanto temos de fazer uso de toda a liberdade. Ser possvel sermos livres de todos os nossos condicionamentos psicolgicos? O condicionamento biolgico natural mas o psicolgico- o dio, o antagonismo, o orgulho e tudo aquilo que produz confuso- perfaz a prpria natureza do ego, que formado pelo pensamento.

Para o descobrirmos necessitamos de toda a ateno- e no concentrao. Meditar verdadeiramente importante porque se a mente se tornar meramente mecnica, como o pensamento , jamais poder atingir aquilo que total, a suprema ordem e, portanto, a liberdade completa. O universo contm a mais perfeita ordem. S a mente humana se acha em desordem; contudo necessitamos de uma mente extraordinariamente ordenada, uma mente que tenha compreendido a desordem e se veja livre da contradio, da imitao e do conformismo. Uma mente assim poder prestar ateno, e ficar inteiramente atenta para com o que faz e todas as suas atitudes no campo do relacionamento. Mas ateno no quer dizer concentrao. A concentrao um processo restritivo, estreitecedor e limitado, enquanto que a ateno no tem limites. A ateno possui aquela qualidade de silncio- mas no o silncio inventado pelo pensamento nem o silncio que sucede ao barulho, tampouco o silncio entre um pensamento e outro. Tem que ser aquele silncio que no criado pelo desejo, nem pela vontade nem pelo pensamento. Nessa meditao no existe controlador. Em todos os sistemas inventados pelos mais diversos grupos sempre podemos achar presente o esforo, o controle, a disciplina. Porm, disciplina significa aprender- no ajustar-se; aprender, de modo que a nossa mente se torne gradualmente mais subtil. Aprender um movimento constante que no se baseia no conhecimento. A meditao consiste em libertar-se do conhecido, conhecido esse que constitui uma forma de medio. Nessa meditao existe um completo silncio. S nesse silncio, pode fazer-se presente aquilo que inominvel.

16 Maio 1982

A Virtude

O pensamento o movimento entre aquilo que e o modo como achamos que deveria ser. O pensamento a aco do tempo a preencher esse espao. Enquanto subsistir diviso psicolgica entre isto e aquilo, esse movimento representar o tempo, que formado pelo pensamento. Portanto o movimento do pensamento tempo. Mas poder existir esse movimento temporal do pensamento quando observamos unicamente "aquilo que "? Quero dizer, no observao em termos de separao entre o observador e observado mas to s a observao destituda do movimento de tentar passar alm do "que ". muito importante que a mente entenda isso porque o pensamento capaz de modelar as imagens mais espectaculares do que seja sagrado e santificado, como o fizeram todas as religies. Todas as religies se baseiam no pensamento. Todas elas assentam na organizao do pensamento, na crena, no dogma, na prtica de rituais. Assim, a menos que haja completa compreenso do pensamento como sendo um movimento no tempo, provavelmente a mente nunca poder avanar para alm de si mesma.

Ns fomos treinados e educados, coagidos a mudar "aquilo que " no que "deveria ser", no ideal, porm isso comporta tempo. Todo o movimento que o pensamento exerce para cobrir o espao entre "o que " e isso que "deveria ser" representa o tempo para o alterar - porm, o observador aquilo que observado, portanto no h nada a mudar; s existe "aquilo que ". Mas o observador no sabe o que fazer com "aquilo que " e desse modo procura todos os mtodos para o alterar, controlar e suprimir. Contudo o observador a coisa observada: o observador "o que ". A raiva, a inveja so tambm o observador; no existe inveja separada do observador porque ambos so o mesmo. Quando no subsistir nenhum movimento de tempo resultante do pensamento para mudar "o que ", quando o pensamento perceber a inexistncia de possibilidade de mudana daquilo "que " , ento isso cessa completamente, porque o observador o observado.

Investiguem isso de modo profundo e comprovaro por vs mesmos. Na verdade bastante simples. Se no simpatizo com algum, a antipatia no distinta de mim nem de vs. A entidade que antipatiza a prpria antipatia; no h separao entre elas. Mas quando o pensamento diz: "necessito superar esta minha antipatia", ento passa a existir um movimento no tempo, criado pelo pensamento, no sentido de superar aquilo que na realidade existe. Portanto, o observador- a entidade- e aquilo a que chamamos "antipatizar" so a mesma coisa. E desse modo passa a existir um estado de completa quietude. No se trata da quietude de quando ficamos estticos, mas da total ausncia de movimentos; consequentemente subsiste um completo silncio. Assim o tempo como movimento, o tempo como resultado da conscincia e do pensamento, chega a um trmino e desse modo a aco torna-se instantnea. Desse modo a mente estabeleceu a base adequada e pode assim ver-se livre da desordem; consequentemente sucede o fluir e a beleza da virtude. Nisso reside a base da relao entre vs e o outro. Nessa relao no existe a actividade de nenhuma imagem; existe somente relacionamento e no uma determinada imagem a ajustar-se a outra. Existe somente "o que " e no a sua mudana. A mudana do "que "- a sua transformao- consiste na aco do pensamento no campo do tempo.

Quando chegamos a esse ponto, as clulas da mente e do crebro tambm se tornam completamente imveis. O crebro, que tem a funo de registrar lembranas, experincias e conhecimento, pode e precisa funcionar no campo do conhecido. Porm agora, essa mente, esse crebro, encontra-se livre da actividade do tempo e do pensamento e permanece completamente quieto. Tudo isto ocorre sem nenhum esforo. Tudo isto deve ter lugar sem nenhum sentido de disciplina nem controle, que pertencem desordem.

Aquilo que estamos a dizer difere completamente do que os gurus e os "mestres", os filsofos zen tm vindo a proclamar, porque no h nenhuma autoridade nisto, e tampouco seguimos a orientao de quem quer que seja, entendem? Se seguirem a orientao traada por outros, no s se estaro a destruir como tambm estaro a destruir aquele que seguem. Uma mente religiosa no possui autoridade completamente nenhuma. Mas possui inteligncia, e faz uso dela. No mundo da aco existe a autoridade do cientista, do doutor e do instrutor que nos ensina a conduzir, mas fora isso no existe outra autoridade nem guru.

Portanto, se conseguiram chegar at aqui ento a mente ter estabelecido ordem nas relaes e ser capaz de compreender toda a complexidade da desordem existente nas nossas vidas. E a partir da compreenso dessa desordem, a partir da conscincia disso- conscincia essa que h de ser destituda de escolha- procede a beleza da virtude que no tem cultivo e que o pensamento no pode produzir. Essa virtude amor e ordem, e se a mente tiver se enraizado nisso com intensidade, ento tornar-se- inamovvel e imutvel. E ento poderemos investigar a natureza de todo o movimento do tempo. Nesse caso, a mente achar-se- completamente quieta. No existir um observador nem ningum para experimentar, e no subsistir nenhum pensador.

H diversos modos de percepo sensorial e extrasensorial: a clarividncia, a cura, e toda a sorte de coisas assim podem ocorrer, mas todas elas so secundrias, pois a mente que se preocupa seriamente com a descoberta da verdade e com o que seja sagrado, jamais se intrometer nessas coisas.

Agora a mente possuir a liberdade para observar. E nesse caso passa a existir aquilo que o homem procurou desde sempre: o inominvel e intemporal. No existe expresso verbal para isso. A imagem criada pelo pensamento deixa totalmente de existir por no mais haver uma entidade para o expressar por palavras. A mente s o poder descobrir- encontrar- quando possuirmos essa estranha coisa chamada amor, que compaixo no s pelo vizinho, como tambm pelos animais, pelas rvores e por tudo mais. Ento a prpria mente torna-se sagrada.

16 Maio 1982

A Consumao Das Nossas Energias

O pensamento limitado pela simples razo de o conhecimento tambm o ser, e assim, qualquer que seja a aco que empreenda, o que quer que ele crie, deve igualmente ser limitado. Temos de possuir clareza mental e pureza do corao a fim de podermos compreender a natureza da mente religiosa. Para descobrirmos isso devemos efectivar a completa negao de todos os rituais e smbolos criados pelo pensamento. Se negarmos isso, e recusarmos aquilo que falso, ento descobriremos o verdadeiro. Se percebermos por ns prprios que todos os sistemas de meditao so criados pelo pensamento, ento neg-los-emos todos. Porquanto eles so concebidos pelo homem. A vida que levamos to ordinria e incerta que chegamos a alcanar a tendncia de procurar um tipo qualquer de satisfao interior profunda ou um pouco de amor, algo que seja estvel, permanente, duradouro. Queremos algo que se apresente imutvel, inaltervel, e pensamos que o conseguiremos se empreendermos determinadas coisas. Essas coisas so inventadas pelo pensamento, mas o pensamento por si mesmo contraditrio e por essa razo, toda a meditao que seja assente numa estrutura concebida pelo pensamento no poder ser meditao, absolutamente. Isso implica a completa recusa de tudo que o homem concebeu psicologicamente. No campo da tecnologia no podemos efectuar essa negao, contudo temos de negar todas as coisas que criamos e escrevemos sobre a busca da verdade. Mas ns camos sempre nessa armadilha por querermos escapar do cansao, da tristeza e das agonias da vida. Desse modo temos de recusar todas essas posturas, todos esses exerccios respiratrios e actividade do pensamento, para que assim possa surgir a questo do pensamento ser ou no capaz de chegar a um trmino. Ou seja, sabermos se o pensamento que se torna tempo, poder deixar de existir. No o tempo externo mas o tempo que est implcito ao vir a ser- quer isso represente tornar-se iluminado, ou no-violento, ou o vir a ser do homem vaidoso na busca de um meio para se tornar humilde. Todo esse padro psicolgico de nos tornarmos algum constitui o tempo. E o tempo tambm pensamento. Portanto poder o pensamento ter fim? No findar atravs de uma disciplina nem duma forma de controle qualquer, pois que entidade ser essa que disciplina?

Sempre subsiste em ns o sentido de dualidade psicolgica: do controlador e da coisa controlada, do observador e da coisa observada, daquele que experimenta e da coisa experimentada, do pensador e do pensamento. Temos sempre presente essa dualidade divisiva, provavelmente decorrente da observao do mundo fsico, porque a existe a dualidade da luz e da sombra, da claridade e da escurido, do homem e da mulher, etc. pois provvel que tenhamos transferido a observao disso para o campo psicolgico. Mas ser que existe um controlador que seja diferente da coisa controlada? Pensem cuidadosamente nisso, por favor.

Na meditao clssica ou comum, os gurus que a propagam interessam-se pela questo do controlador e da coisa controlada, e recomendam o controlo do pensamento a fim de o eliminarmos e reduzirmos a um s. Mas ns estamos interessados em investigar a identidade do controlador. Podemos referir que seja o " eu superior", "a testemunha", "algo que no seja formado pelo pensamento", porm bvio que o controlador constitui parte intrnseca do pensamento. Portanto, o controlador a coisa controlada. O pensamento dividiu-se em controlador e aquilo que procura controlar, todavia isso ainda actividade do pensamento.

Chega a ser um fenmeno bastante estranho que o pensamento invente deuses e depois se ponha a ador-los. Isso idolatria de si mesmo.

Assim, quando compreendemos que todo o movimento do controlador o controlado, ento deixa de existir controle. Trata-se de uma coisa verdadeiramente perigosa de referir a algum que no o compreende, porque no estamos a advogar a falta de controle. Aquilo que estou a dizer que quando se observa que o controlador a coisa controlada, quando se observa que o pensador o pensamento- e se permanece com a verdade disso- com a sua realidade, sem nenhuma interferncia do pensamento, ento podemos passar a deter um tipo de energia completamente diferente.

A meditao consiste na congregao de todas as nossas energias. No da energia criada pelo pensamento atravs de um qualquer tipo de choque, mas a energia de um estado mental em que no subsiste conflito completamente nenhum. A palavra "religio" provavelmente significa reunir ou juntar todas as nossas energias de forma a actuarmos de modo diligente. A mente religiosa age com prontido, ou seja, atenta, observadora e cuidadosa na aco. E essa sua observao comporta afecto e compaixo.

A concentrao uma outra inveno do pensamento. Na escola ordenam-nos que estejamos atentos ao livro. Desse modo aprendemos a concentrar-nos, procurando excluir os outros pensamentos e impedindo-nos de olhar pela janela. Mas na concentrao h resistncia e estreitamento do imenso campo de energia da vida a um determinado nvel. Ao invs, na ateno- que consiste numa forma de conscincia em que no h escolha, uma conscincia indistinta- toda a nossa energia se faz presente. Quando possumos essa ateno no existe um centro a partir do qual ela seja exercida, enquanto que na concentrao sempre existe um centro a partir do qual prestamos ateno.

Devamos tambm falar sobre a importncia do espao. Pelo modo como vivemos neste mundo moderno, em apartamentos construdos uns sobre os outros, o espao fsico tornou-se diminuto. Externamente sofremos com essa falta de espao mas interiormente tambm no possumos espao nenhum porque o nosso crebro est constantemente a tagarelar. Meditar entender ou descobrir um espao que no seja criado pela aco do pensamento, espao que no seja nem "eu" nem "no eu". Esse espao no pode ser inventado nem constituir uma ideia, tem que ser um espao real, ou seja, uma sensao ilimitada de distncia, observao desimpedida e um movimento perptuo isento de barreiras. Isso constitui um espao imenso, destitudo de tempo, porque o tempo nascido do pensamento ficou para trs, devido a que tenhamos compreendido que, enquanto o pensamento ocupar o seu prprio espao, no poderemos possuir essa imensido de espao ilimitado. Quando pretendemos aprender uma tcnica, o saber e o pensamento necessitam de tempo e de espao.

A memria necessria num determinado nvel, porm no necessitamos dela no campo psicolgico. Sempre que possumos ateno que purifica o crebro de toda a acumulao da memria, ento o "eu" que progride e alcana, o "eu" que se acha em conflito chega ao fim, por termos deixado a "nossa casa" em ordem. O crebro possui o seu prprio ritmo, todavia esse ritmo foi distorcido por toda a extravagncia e maus tratos das drogas, da f, das crenas, da bebida e do tabaco. E desse modo perde a sua vitalidade prstina.

A meditao a noo do completo entendimento da vida no seu todo, a partir do que se origina a aco correcta. A meditao o silncio absoluto da mente; no o silncio relativo nem o silncio que o pensamento projectou e estruturou, mas o silncio da ordem, que tambm significa liberdade. Somente nesse completo silncio, nesse silncio incorrupto assenta a verdade, que existe por todo o sempre. Isso meditao.

5 Fev. 1982

O Eterno,

Infinitamente Sagrado O crebro, que to antigo e extraordinariamente hbil, e que possui um espectro infinito de capacidades, evoluiu com o tempo at chegar a adquirir uma enorme quantidade de conhecimento. Mas, ser possvel que, do jeito como se encontra to fortemente condicionado e exposto ao desgaste ele possa ser rejuvenescido? Poder este nosso crebro livrar-se de todo o sentido de continuidade, de modo a poder comear de novo? Poder esse crebro tornar-se completamente inocente? Emprego a palavra inocente no sentido de ser incapaz de sentir mgoa. Ou seja, um crebro que seja no s incapaz de magoar os outros como tambm incapaz de se deixar magoar.

O nosso crebro- o crebro de todos ns, seres humanos- evoluiu ao longo de tempo sem conta e foi condicionado tanto pelas diferentes culturas como pelas religies assim como tambm pelas presses econmicas e sociais. Esse crebro tem prevalecido por um incontvel perodo de tempo nessa continuidade, at ao presente, e assim pde encontrar sentido de segurana atravs desse longo perodo de durao. por essa razo que aceitamos a tradio, porque pela tradio e pela imitao, pelo conformismo, ns obtemos segurana, do mesmo modo que atravs da iluso. evidente que todos os nossos deuses no passam de uma iluso, criada pelo pensamento. Qualquer crena ou f constitui uma forma de iluso. No h necessidade nenhuma de se ter uma crena ou uma f; no entanto, se possuirmos uma crena, seja em Deus, em Jesus, em Krishna ou o que quiserem, isso dar-nos- a sensao de sermos protegidos e de nos acharmos no seio de Deus; todavia isso no passa de uma iluso.

Mas estvamos a questionar a possibilidade do crebro descobrir um fim para a continuidade do tempo. Essa continuidade, que se acha baseada na continuidade do conhecimento, considerada como um avano, como uma forma de progresso e evoluo, mas eu estou precisamente a contestar isso. Sempre que o crebro procura a continuidade torna-se mecnico. Todo o pensamento um processo mecnico porque se baseia na memria, que- por seu turno- constitui uma resposta do conhecimento. Assim, no existe tal coisa como 'pensamento novo'.

O "eu", o "mim", um processo de continuidade. O "eu" tem sido utilizado por milhares de anos, gerao aps gerao e constitui um processo de continuidade. Mas tudo aquilo que contnuo mecnico, e no contm nada de novo. Perceber isso uma coisa maravilhosa.

Por favor, peo-lhes que escutem em silncio; no concordem comigo mas escutem apenas. Enquanto o crebro registar mgoas e sofrimento, isso dar-lhe- sentido de continuidade. D-nos a ideia de um "eu" que possui um sentido de existncia contnuo. Enquanto o crebro registar, semelhana do computador, h de ser mecnico. Quando somos insultados ou elogiados o crebro regista, como vem fazendo h milhares de anos. Tal o nosso condicionamento; todo um movimento no sentido do progresso. Porm, queremos saber se ser possvel registar somente aquilo que for relevante e nada mais que isso. Porque haveremos de registar uma mgoa? Porque devemos registar quando algum nos insulta ou lisonjeia? Quando registamos isso- quando o crebro faz o registo disso- esse registo impede a observao daquele que nos insultou. Quer dizer, vocs observam a pessoa que acabou de os insultar ou elogiar com uma mente, com um crebro que fez o registo daquilo, de modo que no consideram a pessoa em questo. Mas porque esse registo forma uma continuidade, encontramos segurana nela. O crebro diz: " Como j fui magoado uma vez, o melhor registar isso, conservar a sua lembrana para desse modo evitar ser magoado no futuro". Fisicamente isso pode ser determinante, mas psicologicamente ser? Ns fomos magoados porque a mgoa constitui um acto de nos movermos no tempo da construo da imagem que possumos de ns mesmos, e dessa forma sempre que essa imagem sofre uma alfinetada sentimos mgoa. Enquanto preservarmos uma imagem de ns mesmos sempre poderemos sair magoados. Portanto ser possvel no possuirmos imagem nenhuma e, consequentemente, registo nenhum? Estamos a estabelecer a base para a pesquisa daquilo que constitui a meditao.

Ser possvel no registarmos psicologicamente e registarmos unicamente aquilo que for relevante e necessrio? Quando tivermos estabelecido ordem- quando existir ordem na nossa vida- ento dever resultar liberdade. Mas somente a mente desordenada segue no encalo da liberdade. Quando chegamos a possuir uma ordem total, ento essa mesma ordem representar liberdade.

Para nos aprofundarmos neste assunto, precisamos compreender a natureza da nossa conscincia. Essa conscincia formada pelo seu contedo e no existe separada desse contedo. Esse contedo forma a nossa conscincia. E o contedo a nossa tradio, as nossas ansiedades, o nosso nome, a nossa posio. Isso forma o contedo e molda a nossa conscincia. Poder toda esta conscincia- que inclui o crebro- a mente com todo o seu contedo, ter noo de si prpria, noo da sua durao, e tomar uma parte dessa conscincia (como o apego) para a fazer cessar voluntariamente? Isso significar um rompimento com toda a continuidade. Perguntava se ser possvel registarmos unicamente aquilo que for necessrio e relevante e nada mais alm disso. Entendamos toda a beleza dessa questo e as suas implicaes, a sua intensidade. Eu afirmo que possvel. Eu poderia explicar, porm a explicao no um facto. No se deixem apanhar pelas explicaes, mas procurem chegar ao facto por intermdio delas. Ento as explicaes no mais tero importncia.

O movimento do tempo, o movimento do pensamento, o movimento do passado, modificados no presente, prosseguem e formam uma continuidade. Isso todo o movimento que o crebro regista; de outra forma no seria possvel possuirmos conhecimento. O conhecimento implica continuidade, e, portanto, ao encontrar segurana nessa continuidade o crebro forado a fazer registo. Esse movimento alastrou a todo o campo psicolgico. Mas o conhecimento sempre limitado. No existe conhecimento omnipotente, porm o crebro ao encontrar segurana no movimento do conhecimento, adere a ele, e passa a interpretar todo o incidente de acordo com o passado. E desse modo o passado adquire uma tremenda importncia para o crebro, porque ele prprio esse passado.

Todavia, lgico que o vosso prprio intelecto perceba com muita clareza que, aquilo que sofre continuidade no possui nada de novo, aquele aroma novo; nem a nova terra nem o novo cu. Desse modo o intelecto questiona-se da possibilidade de uma cessao da continuidade que no constitua perigo para o crebro, porque, caso no passemos pelo processo dessa continuidade ento estaremos perdidos. Se pusermos um fim continuidade, o que ser de ns? O crebro mostrou que s pode funcionar com base na segurana, seja ela verdadeira ou falsa, mas a continuidade do processo de registo conferiu-lhe segurana. A ns dizemos para connosco: " Regista somente o que for necessrio e relevante, e nada mais". Mas subitamente o crebro sente-se perdido. Ele funciona com base na busca de segurana e por isso diz: " D-me segurana e eu prosseguirei no encalo dela".

Existe segurana claro, mas no esse tipo de segurana. Consiste ela ao invs, em colocar o conhecimento e o pensamento no seu devido lugar. A prpria ordem no viver s possvel quando o crebro tiver compreendido o modo desordenado em que vive, enquanto que, ao mesmo tempo chama a isso segurana. Quando tomar conscincia do quanto a segurana implica em colocar cada coisa em ordem- ou seja, registar tudo aquilo que for relevante e no o irrelevante- ento o crebro dir: " Eu compreendi a coisa, captei-a, consegui obter um insight sobre todo este movimento da continuidade". E dessa forma obtm um claro de compreenso. Esse insight o resultado da ordem completa que acontece quando o crebro disps cada coisa no seu devido lugar. Ento poderemos ter um insight completo sobre a totalidade do movimento da conscincia, e desse modo o crebro registar somente aquilo que for necessrio e nada alm disso. Mas isso implica que a actividade do crebro sofra uma mudana, do mesmo modo que a prpria estrutura do crebro, porque a viso de uma coisa de modo renovado- como que pela primeira vez- conduz operao de uma nova funo. Quando o crebro vislumbra algo de novo, passa a existir uma funo nova, e passa a nascer um organismo novo. completamente necessrio que a mente e o crebro se tornem jovens, revigorados, joviais, inocentes, juvenis, mas isso s acontecer quando no existir nenhuma forma de registo.

Far o amor parte desta conscincia? O amor poder sofrer continuidade? Dissemos que a conscincia continuidade e tradio. Mas ser que o amor faz parte desse campo ou est totalmente apartado dele? Eu estou simplesmente a expor a questo, a desafiar uma resposta. No parto do pressuposto de que faa ou deixe de fazer. Mas, se fizer parte desse campo da conscincia, no far tambm parte do pensamento? O contedo da nossa conscincia criado pelo pensamento. As crenas, os deuses, a superstio, as tradies, o medo, tudo isso faz parte do pensamento. Mas far o amor parte desse pensamento ou desta conscincia? Ou seja, ser o amor desejo, prazer, sexo? O amor far parte do processo do pensamento? Ser uma recordao?

Enquanto o intelecto for predominante, o amor no poder, possivelmente, existir nem surgir, qual orvalho da madrugada. Mas a nossa civilizao adora o intelecto porque o intelecto possibilitou a criao de teorias sobre Deus, e criou princpios e ideais. Portanto, o amor far parte dessa corrente, dessa conscincia? Poderemos ter amor quando sentimos cime? Poderemos sentir amor quando nos achamos apegados nossa esposa, ao nosso marido, ou filho? Poderemos ter amor quando carregamos a lembrana, a recordao, a imagem da atraco sexual? Poder o amor ter continuidade? Por favor, pensem bem nisso porque ns no temos amor no corao e por isso o mundo se encontra na confuso em que est.

Para alcanarmos esse amor, preciso que a corrente da conscincia sofra um findar: a inveja, o antagonismo, a ambio, o desejo de poder, o desejo de nos tornarmos melhores e sermos pessoas ilustres, a busca de poder- seja o poder de levitar, o de efectuar negcios, o poder que a posio confere, o poder da poltica, da religio ou o poder que exercemos sobre a nossa mulher, marido ou filhos. Onde existir um sentimento de egosmo, no poder existir esse amor. Mas esse processo de registar constitui a essncia do egosmo. O fim da nossa infelicidade ser o incio da compaixo, porm ns usamos a infelicidade como meio para avanarmos e nos tornarmos melhores. Mas , ao invs, pelo findar de uma coisa que poder ocorrer algo de infinitamente novo.

Devemos possuir espao, no fisicamente mas espao mental, o que significa no andarmos to ocupados. Mas a nossa mente est sempre ocupada: "Como poderei parar de tagarelar?" ou "Eu preciso produzir espao na mente; Preciso ficar em silncio", etc. A dona de casa ocupa-se da cozinha ou dos filhos, o devoto ocupa-se com o seu Deus, o homem vulgar ocupa-se com a sua profisso, com o sexo, com o trabalho, com o objecto da sua ambio, ou ento com a sua posio. A mente est inteiramente ocupada, de modo que no resta espao nenhum.

Devemos estabelecer na nossa vida uma ordem que no tenha nada a ver com a ordem da disciplina nem do controle. Pudemos perceber com toda a inteligncia como a ordem s pode resultar da compreenso da prpria desordem. Muito importa que produzamos ordem na nossa vida e nos nossos relacionamentos, porque a vida relacionamento, movimento, atitude empreendida no campo da relao. Porque se o relacionamento com a nossa esposa, marido, com os filhos ou com os vizinhos no possuir ordem - estejam eles prximos ou afastados- ento esqueam toda a meditao. Se no possuirmos ordem na nossa vida e tentarmos meditar, cairemos na armadilha das iluses. Mas se agirmos com seriedade e possuirmos essa ordem que no temporria mas absoluta, ento essa ordem poder dar lugar ordem csmica porque estar em relao com ela. Essa ordem csmica o pr do sol, o surgimento da lua e a maravilha do cu nocturno com toda a sua beleza. A simples observao superficial do cosmos e do universo atravs do telescpio no constitui um factor de ordem. Mas se a nossa vida possuir ordem, nesse caso possuiremos uma relao extraordinria com o universo.

Todavia se a mente se encontrar a abarrotar no poderemos ter ordem nem espao mental. Como poder ter espao se ela se encontrar cheia de problemas? Para possuirmos espao mental temos de resolver cada problema imediatamente, medida que surge. Isso faz parte da meditao- e no carregar problemas continuamente, dia aps dia. Ser pois possvel no andarmos to constantemente ocupados- o que no denota falta de responsabilidade? Antes pelo contrrio, quando no estamos ocupados podemos dedicar toda a nossa ateno responsabilidade. Somente a mente ocupada pode tornar-se presa da confuso, o que torna a responsabilidade uma coisa repugnante e chega a comportar a possibilidade da culpa. Mas por favor, no me perguntem como podero deixar de andar to ocupados, porque nesse caso passaro a ocupar-se de um sistema, um mtodo ou simples lugares-comuns. Se conseguirem perceber, captar numa percepo directa, o quanto uma mente ocupada pode ser destrutiva, e destituda de toda liberdade e espao, ento desocupar-se-o naturalmente.

E nesse caso poderemos velar pela ateno. Ser que neste momento esto a prestar ateno? Que significa prestar ateno? Se estiverem a prestar ateno de verdade, no haver um centro a partir do qual o faam, e essa ateno no poder sofrer continuidade, como talvez gostariam que acontecesse. A continuidade desateno. Quando prestamos ateno

- quer dizer, quando escutamos, nessa ateno no existe um centro que diz: "Eu estou a aprender, eu estou a escutar, eu estou a perceber". Existe somente o enorme sentido de totalidade, que constitui essa observao

- escutar e aprender- mas nela, no se d nenhum movimento do pensamento. Essa ateno no pode ser sustentada por nenhum acto contnuo. Quando o pensamento declara que deve descobrir a forma de lhe chegar ou alcan-la, esse movimento de a tentar capturar dever constituir uma forma de desateno- falta de ateno. Mas, ter conscincia desse movimento exterior torna-se ateno, ficar atento. Captaram a coisa?

A mente deve possuir amplitude de espao, mas isso s pode acontecer se no houver a tagarelice do pensamento e se resolvermos cada problema medida que for surgindo. S poderemos possuir amplitude de espao mental quando no possuirmos um centro, porque no momento que detivermos um centro, ento ter que haver uma rea circundante, ter de existir um movimento do centro para a periferia. Mas esse espao implica a ausncia desse centro, de modo que resulte absolutamente destitudo de limites. A ateno implica que devemos aplicar toda a nossa energia no escutar, pela observao, mas nisso no existe centro nenhum. Da surgir uma mente que ter compreendido a ordem e se acha livre do medo, uma mente que ter posto fim ao sofrimento, que ter compreendido a natureza do prazer e lhe ter conferido a funo adequada.

E ento colocaremos a questo: Qual ser a natureza da mente que se encontra completamente imersa no silncio- e no como alcanar esse silncio, nem como conseguir ter paz de esprito- estou a referir-me qualidade da mente que est mergulhada num silncio absoluto e intemporal. Qual ser?

Existe silncio entre duas notas musicais, silncio entre dois pensamentos ou entre dois movimentos; existe o silncio que separa duas guerras e o silncio que antecede a discusso seguinte entre marido e mulher. No me estou a referir a essa qualidade de silncio, porque ela temporria e finita. Estou a referir-me a um silncio que no pode ser produzido pelo pensamento e que no cultivvel; que sucede somente quando compreendermos todo o movimento da existncia. Nisso h silncio; no se trata de perguntas e respostas nem desafio ou busca- tudo isso permanece de lado. Esse silncio possui um enorme sentido de espao e beleza, um extraordinrio sentido de energia. Nessa altura poder ocorrer aquilo que eterno e infinitamente sagrado; que no nem produto da civilizao nem do pensamento. Esse todo o movimento da meditao.

14 Jan. 1979

Em que Consiste a Criao

Qual ser a origem de toda a existncia, desde a clula mais diminuta at ao crebro mais complicado? Ser que existiu um comeo e poder haver um fim para tudo isto? Que a criao? Para podermos investigar uma coisa inteiramente desconhecida, algo que no tenha sido pr-concebido- sem nos deixarmos apanhar por nenhuma iluso sentimental nem romntica, temos de o fazer com um crebro que se veja completamente livre de todos os seus condicionamentos, de todas as suas programaes, de todo o gnero de influncias, um crebro, portanto, que seja altamente sensvel, tremendamente activo. Ser isso possvel? Ser possvel possuirmos uma mente, um crebro to extraordinariamente vivo, um crebro que no seja mecnico nem esteja preso a nenhum tipo de rotina? Teremos um crebro que no contenha medo, nem auto-interesse, actividade auto-centrada nenhuma? Porque de outro modo isso significar vivermos constantemente mergulhados na prpria sombra, viver no prprio ambiente tribal limitado, semelhana de um animal atado a uma estaca.

O crebro tem que possuir espao. Mas o espao no somente a distncia entre aqui e acol; o espao implica uma existncia sem centro. Se detivermos um centro e nos afastarmos para a periferia, por mais afastada que essa periferia seja, ainda assim dever ser uma coisa limitada. Portanto o espao h de ser sinal de inexistncia de um centro e uma periferia; da inexistncia de limites. Teremos ns um crebro que no pertena a coisa nenhuma, nem se encontre apegado a nada- seja experincia, concluses, esperanas, ideais- e assim seja completamente livre? Se estivermos sobrecarregados no poderemos avanar o suficiente. E se o crebro for vulgar e ordinrio, auto-centrado, nesse caso no poder possuir esse espao ilimitado. E o espao sinal- vou utilizar a palavra com um cuidado extremo e bastante hesitao- sinal da existncia de um vazio.

Estamos a tentar descobrir se ser possvel viver neste mundo sem medo nenhum, sem conflitos, mas com um tremendo sentido de compaixo, o que exige uma enorme capacidade de inteligncia. No se pode ter compaixo sem inteligncia. Mas essa inteligncia no a actividade do pensamento. Se estivermos apegados a uma ideologia particular, a uma forma particular de tribalismo ou a um conceito religioso qualquer, no poderemos ser compassivos, porque tudo isso restringe. A compaixo s pode surgir- fazer-se presente- quando toda a tristeza tiver terminado, o que significa o fim de todo o movimento auto-centrado.

Portanto o espao sinal da existncia de um vazio, ou coisa nenhuma. E porque no subsiste uma nica coisa que seja, colocada pelo pensamento, esse espao ser detentor de uma energia tremenda. De modo que o crebro deve possuir essa qualidade de total liberdade e espao. Quer dizer, no devemos ser coisa nenhuma. Mas todos ns queremos ser algum: analistas, mdicos, psicoterapeutas. Tudo bem, porm quando nos identificamos com as funes de terapeutas, bilogos, tcnicos, essa mesma identificao delimita-nos a totalidade do crebro.

S quando possumos espao e liberdade podemos investigar sobre o que seja a meditao. Somente quando tivermos estabelecido os alicerces da ordem na nossa vida poderemos perguntar o que a verdadeira meditao. Mas se subsistir medo sob qualquer forma que seja, ou conflito de qualquer tipo, ento no poderemos ter ordem. A nossa morada interior deve encontrar-se num estado de completa ordem, de modo que sobrevenha um enorme sentido de estabilidade, e possamos ser concisos. Essa estabilidade possuir uma fora enorme. Porm, se a nossa morada no se achar em ordem a meditao ter muito pouco significado. Podemos inventar todo o tipo de iluso, iluminao ou disciplina diria que ainda assim isso ser limitado e ilusrio e resultar da nossa desordem. Tudo isto lgico, sensato, racional. No coisa que o orador tenha inventado para ser aceite.

Posso utilizar os termos "ordem destituda de disciplina"? Porque, a menos que tenhamos um sentido de ordem que no seja disciplinado, a meditao tornar-se- muito superficial e desprovida de significado.

O que a ordem? O pensamento no pode criar ordem psicolgica porque o prprio pensamento desordem e est baseado no conhecimento- que por sua vez se baseia na experincia. Todo o conhecimento limitado, do mesmo modo que o pensamento, porm, quando o pensamento procura estabelecer a ordem, s produz desordem.

O pensamento criou a desordem atravs do conflito entre "o que " e "aquilo que devia ser"- a realidade e a teoria. Porm existe somente a realidade e no a teoria. Mas o pensamento encara a realidade desde um ponto de vista limitado, originando assim que essa aco venha a criar inevitvel desordem. Ser que percebem a verdade disto? Ser que a apreendemos como uma lei, ou como uma ideia somente? Suponhamos que sou avarento ou invejoso; isso representar aquilo que sou e no o oposto. Porm, o oposto foi criado pelos seres humanos- pelo pensamento- como meio de entendimento do "que " e tambm como meio para se escapar disso; todavia subsiste somente "o que ". Mas se chegarmos a perceber "o que " sem o seu contrrio, ento essa mesma percepo suscitar ordem.

A nossa morada deve possuir ordem mas essa ordem no pode ser produzida pelo pensamento. O pensamento pode criar a sua prpria disciplina: fazer isto e no aquilo; ser tradicionalista ou deixar de o ser, etc. O pensamento o auxiliar atravs do qual esperamos poder produzir ordem, porm, o pensamento por si mesmo limitado, e como tal est destinado a criar somente desordem. Se eu repetir continuamente que sou ingls, francs, hindu ou budista, isso provocar uma forma de tribalismo bastante limitada e poder ser causa de enorme devastao no mundo. Mas ns no penetramos at s suas razes, a fim de acabar com esse tribalismo; ao invs, procuramos criar melhores formas de guerra. A ordem s poder surgir quando o pensamento- o qual necessrio em determinadas reas- no tiver qualquer funo no campo psicolgico. Quando o pensamento se tornar ausente o mundo ficar em ordem.

necessrio que tenhamos um crebro absolutamente tranquilo e sereno. O crebro possui o seu prprio ritmo, mas acha-se ininterruptamente activo a tagarelar em torno das questes e pensamentos interminveis, passando de associao em associao ou de um estado a outro, constantemente ocupado. Geralmente no temos conscincia disso mas se chegarmos a ter conscincia desse movimento sem escolha nenhuma, essa mesma ateno por fim tagarelice. Por favor tentem faz-lo, e vero como tudo isso simples.

O crebro deve ter liberdade, espao e silncio psicolgico. Vocs e eu estamos a conversar juntos. E por termos de utilizar uma linguagem empregamos o pensamento. Mas para podermos comunicar em silncio... para isso temos de ter liberdade com relao a toda a palavra. De forma que desse modo, o crebro ficar completamente em silncio, e possuir o seu prprio ritmo.

Ento em que consiste a criao? Qual ter sido o comeo de tudo isto? Estamos a investigar a origem de toda a vida e no s da nossa vida; da vida de todas as coisas viventes: das baleias nas profundezas dos oceanos, dos golfinhos, dos peixes minsculos, das clulas diminutas e de toda a vasta natureza, bem como da beleza do tigre. Desde a clula mais diminuta at ao mais complexo ser humano- com todas as suas invenes, com todas as suas iluses, as suas supersties, as suas brigas, as suas guerras, arrogncia, vulgaridade, as suas tremendas aspiraes e depresses abismais- qual ser a origem de tudo isso?

A meditao chegar ao entendimento disso. No se trata de ns chegarmos a esse estado; mas ser que nesse silncio, nessa quietude, nessa tranquilidade absoluta, poder haver lugar a qualquer comeo? Alm disso, se houver um comeo ter de existir um fim. Tudo aquilo que tiver uma causa tambm dever sofrer um trmino. Onde quer que haja uma causa ter de haver um fim. Isso faz parte da lei natural. Portanto, existir mesmo uma causao para a criao do homem, para a criao de todo o modo de vida? Ter tudo isso tido um comeo? Como haveremos de o descobrir?

O que a criao? No me refiro criao do pintor nem do poeta, tampouco do homem que esculpe o mrmore; isso tudo produto de uma manifestao. Haver alguma coisa que no seja mera forma de manifestao? Haver alguma coisa que, por no ser simples manifestao, no possua comeo nem fim? Aquilo que manifesto possui um comeo, do mesmo modo que um fim. Ns somos o produto de uma manifestao; mas no de uma coisa divina ou de outra natureza qualquer; somos o resultado de milhares de anos de chamada 'evoluo', crescimento, desenvolvimento, e como tal tambm ns chegamos a um fim. Aquilo que manifesto pode sempre ser destrudo, porm aquilo que no manifesto, no possui tempo.

Estamos a investigar se existe algo para l de todo o tempo. Essa foi sempre a preocupao tanto de filsofos como de cientistas e religiosos- a de descobrir aquilo que est para alm de toda a medida do homem, alm do tempo. Porque, se pudermos descobri-lo, e chegar a perceb-lo, isso representar a imortalidade. Porque isso est para alm da morte. E o homem tem vivido em busca disso por diversos modos, pelos mais variados recantos do mundo, por intermdio de diferentes credos, porque se o descobrir ou chegar a perceber, ento a vida no conter comeo nem fim, e situar-se- alm de toda a esperana. Ser uma coisa imensa.

Agora, para voltarmos de novo terra... Podem perceber como jamais consideramos esta vida- a nossa prpria vida- como um movimento tremendo carregado de toda uma intensidade prpria, uma coisa vastssima. Reduzimos a nossa vida a uma coisa ordinria e mesquinha. Mas a vida a coisa mais sagrada que existe! Matar algum ou sentir dio, ser violento para com algum, a coisa mais horrorosa que pode ocorrer.

Jamais olhamos o mundo num todo, devido a que nos encontremos to irremediavelmente fragmentados, to terrivelmente limitados, e amesquinhados. Nunca possumos um sentimento da totalidade, em que todas as coisas do mar, da terra, do cu e do universo formam parte intrnseca de ns. No pela imaginao, porque podemos entrar numa espcie de fantasia e imaginar que somos o universo, e acabar por ficar mais ou menos chalados. Mas para rompermos esse interesse mesquinho e auto-centrado no precisamos de nada disso; a partir desse sentimento, podemos mover-nos indefinidamente.

E a meditao isso, e no sentarmo-nos de pernas cruzadas, ou de cabea para baixo, a fazer o pino, ou seja o que for, mas ter esse sentimento de totalidade e unidade com a vida. Todavia isso s pode sobrevir quando sentirmos amor e compaixo.

Uma das nossas dificuldades reside no facto de termos associado o amor com o prazer, o sexo; para a maioria de ns o amor parece tambm significar cime, ansiedade, possessividade, apego. A isso chamamos ns amor. Mas o apego poder ser amor? Ser o amor desejo? Ser o amor o oposto do dio? Se for o oposto do dio ento no ser amor certamente. Todo o oposto contm o seu prprio contrrio. Quando tentamos tornar-nos corajosos, essa coragem brota do medo. O amor no pode conter um oposto, nem pode subsistir onde existir cime, ambio ou agressividade.

Mas quando a qualidade desse amor se fizer presente, a surgir a compaixo. Onde existir essa compaixo existir tambm inteligncia- porm no ser a inteligncia do auto-interesse, a inteligncia do pensamento, a inteligncia de um conhecimento imenso, porque a compaixo no tem nada a ver com o conhecimento.

E s com a compaixo poder existir essa inteligncia que poder dar ao homem segurana, estabilidade e um sentido de fora enorme.

3 Set 83

Viver Sem o

Esforo Procedente da Vontade A meditao no uma coisa que possamos fazer. A meditao o acto de nos movermos sobre toda a questo do nosso viver: sobre o modo como vivemos, como nos comportamos; se possumos temor, ansiedade ou tristeza; se estamos constantemente em busca de prazer, e se criamos imagens com relao a ns prprios e aos outros. Isso faz tudo parte da nossa vida, e na compreenso desse viver, na compreenso das vrias questes envolvidas- bem como em sermos altamente capazes de nos libertar delas, reside o propsito de toda a investigao da meditao.

Ns precisamos criar ordem na nossa casa. E essa casa o nosso "Eu". Mas essa ordem s poder ser estabelecida quando compreendermos inteiramente no que consiste a desordem; no de acordo com um padro; s poder ser estabelecida pela compreenso da razo de ser da nossa confuso, do porqu de nos encontrarmos em contradio; da razo do conflito constante entre os opostos, etc. O simples colocar as coisas no seu respectivo lugar constitui o comeo da meditao. Mas se no o fizermos- efectiva e no teoricamente- em cada momento do nosso viver dirio- ento a meditao torna-se uma outra forma de iluso ou de orao, uma outra forma de esperana por qualquer coisa.

Que movimento esse da meditao? Devemos compreender a importncia dos sentidos. A maior parte de ns age ou reage basicamente de acordo com impulsos, exigncias e insistncias dos nossos sentidos. Mas esses sentidos no actuam num todo; os nossos sentidos na sua globalidade jamais operam de modo holstico. Quando se observarem a si mesmos e atenderem aos prprios sentidos, percebero como um ou outro se torna dominante, e como- durante o dia- ora um ora outro exerce uma maior prevalncia; de modo que isso resulta sempre num certo desequilbrio com os demais sentidos.

Ora, isso que estamos a acabar de perceber faz parte da meditao. Ser pois possvel que os sentidos funcionem num todo? Poderemos observar o movimento do mar, olhar as suas guas brilhantes, essas guas em eterno desassossego e faz-lo plenamente, com todos os sentidos? Ou observar, olhar a rvore, a pessoa que passa, o voo do pssaro, aquele regato de agua, o sol poente, ou o surgimento da lua, com todos os nossos sentidos completamente despertos? Se o fizerem, descobriro, por si prprios e no atravs de mim, a inexistncia de qualquer centro a partir do qual os sentidos funcionem.

Mas, faro tal coisa, medida que estamos a conversar?

Olhem a vossa namorada, o vosso marido, esposa ou aquela rvore, com todos os vossos sentidos completamente activos. Isso no ter qualquer limitao. Seno, procurem faz-lo e descubram por vs prprios se assim no . A maioria das pessoas funciona num certo segmento dos sentidos, e nunca se movem nem chegam a viver com os seus sentidos completamente despertos, desabrochados. Conferir aos sentidos a sua funo adequada no significa reprimi-los nem controla-los, nem fugir-lhes. importante que entendamos isso porque, se quisermos investigar a questo da meditao em profundidade, sem possuirmos uma percepo dos prprios sentidos, isso pode dar lugar a diferentes tipos de neurose, a diversas formas de iluso, e levar-nos a procurar ter domnio sobre as nossas emoes. Mas, se os sentidos desabrocharem completamente e se tornarem despertos, ento o corpo aquietar-se- por completo. J se aperceberam disso ? A maioria das pessoas fora-se a sentar-se quietas e procuram impedir todo o irrequietismo, sem se mover; mas se os sentidos operarem de forma saudvel e de modo vital e normal, ento o corpo ser capaz de relaxar e de se tornar suficientemente quieto. Procurem faz-lo medida que vamos conversando.

Ser possvel vivermos a nossa vida- diria e no de forma ocasional- sem nenhum tipo de controle? O que no quer dizer que faamos uso de uma actividade permissiva qualquer- ou faamos o que quisermos- nem tampouco rejeitemos as tradies. Por favor, pensem com toda a seriedade se haver possibilidade de viverem a vida sem nenhuma forma de controle, porque enquanto subsistir algum tipo de controle existir aco da vontade. Mas que a vontade? "Eu hei de fazer isso". No ser a vontade a essncia do desejo? Por favor, percebam bem a questo, sem a rejeitar nem aceitar; investiguem-na. Estava a perguntar sobre a possibilidade de vivermos a vida de uma forma que no comporte nem sombra de controle, de um modo que no contenha nem sombra de desejo. O desejo e o pensamento com as suas imagens nascem da sensao, do contacto e da percepo.

Ser possvel viver sem a aco da vontade? A maioria de ns vivemos um vida de restries, controle, supresso e fuga, e quando dizemos que devemos controlar-nos, controlar a nossa raiva, o nosso cime, preguia ou indolncia- quem esse controlador? Ser ele distinto daquilo que controla? Ou sero ambos o mesmo? O controlador a coisa controlada. O controlador a essncia do desejo a tentar controlar as prprias actividades, pensamentos e desejos. E percebendo tudo isso, ser que no poderemos viver uma vida sem promiscuidade, que no se centre simplesmente naquilo que queremos fazer, mas uma vida sem