João Batista Natali, Prefácio, Robespierre - Discursos ... na Convenção

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    * Doutor pela Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais, em Paris, onde, coma orientao de Roland Barthes, defendeu a tese Une Approche smiologique dudiscours rvolutionnaire (Robespierre). reprter do jornal Folha de S. Paulo.

    Robespierre, um inventor

    Joo Batista Natali*

    A historiografia se alimenta com freqncia de inverdades queela prpria produz. Foi assim que circulou na segunda metadedo sculo XIX a informao de que Maximilien de Robespierre(-) ocupava a terceira colocao entre os personagens

    histricos logo aps Jesus de Nazar e Napoleo I queteriam sido objeto da maior quantidade de ensaios, artigos oupanfletos. O exagero poderia ser contestado com facilidade fa-zendo-se uma consulta Bibliothque de France, a instituiofrancesa mais adequada para apoiar qualquer levantamentoexaustivo de indexao bibliogrfica. Mas no a dimensofantasiosa da quantificao superlativa que est em jogo. O re-

    levante que ela constitui um dos sintomas da controvrsiapstuma em que Robespierre permaneceu e ainda permaneceenvolvido, passados mais de dois sculos de sua erupo, rela-tivamente breve mas muito rica em episdios, na RevoluoFrancesa.

    Em verdade, o anti-robespierrismo tornou-se, no passado,um prspero setor na indstria europia de produo de pre-

    conceitos. O nome de Robespierre passou a concentrar aqui-lo que o pensamento moderado ou conservador sobretudodentro do catolicismo, que tardou a aceitar a prpria idia deRepblica repelia nas ameaas de subverso da ordem p-blica ou nas revoltas francesas de e de . Talvez quasetanto quanto o bonapartismo embora este se baseasse emformas mais amenas e limitadas de exerccio da democracia

    por meio da incorporao do povo aos ncleos de deciso pol-

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    tica , o jacobinismo robespierrista continuou a ser vistocomo uma forma contra-exemplar de exerccio do poder, porconceber a violncia institucional como meio necessrio con-

    quista e preservao das liberdades e dos direitos do cidado,em uma espcie de contradio em termos que os discursos doprprio Robespierre procuraram, com dificuldade, contornar.

    compreensvel que, dcadas aps ter sido guilhotinado,Robespierre se tenha mantido tona como personagem deuma profuso de textos que raramente tomavam o partido desua memria. Com uma freqncia bem maior, citavam-no

    como um delirante, mencionavam sua pretenso de usurpara funo de chefe religioso (calendrio de quatro festas anuaisao Ser Supremo), citavam a excrescncia jurdica da supresso,em junho de , da oitiva de testemunhas em caso de conde-nao morte (bastavam provas morais, encontradas contracerca de . vtimas). A isso juntaram-se panfletos demo-nofbicos, que o apontavam como um possudo e o achin-

    calhavam de maneira demolidora. Era preciso apequen-lomoralmente, situ-lo como uma espcie de espasmo psictico a guilhotina fez provveis . vtimas, uma coisa deloucos! que rompeu, por meio do Terror jacobino, como receiturio igualmente linear e civilizado que poderia terorientado a emergncia de uma nova harmonia institucional,nascida com o final do poder absoluto do rei a partir da convo-

    cao, na Frana de , dos Estados Gerais. Uma percepomenos passional do papel de Robespierre s passaria a existircomo alternativa poltica e acadmica a partir da historiografiade Jules Michelet (-), responsvel pela introduo deuma idia republicana de histria, em que o povo annimo,aquele que o prprio Robespierre mobilizou, agia como foramotriz e impessoal das transformaes, pouco importando o

    radicalismo que elas circunstancialmente continham.Tambm se compreende que a preponderncia de tonali-

    dades pejorativas no retrato pstumo do mais controvertidodirigente da Revoluo Francesa foi instrumentalizada por par-

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    tidos, para que, em oposio a ele, ganhassem maior nitidezem significado institucional as mudanas polticas do Termi-dor (data da queda e da execuo do prprio Robespierre), do Brumrio (quando o poder passa a Bonaparte) e, sobretudo,de (ano do Congresso de Viena e da recomposio da or-dem conservadora na Europa, sob hegemonia da Prssia e daustria-Hungria). Esses episdios capitais, cada um ao seumodo, tornaram-se modelares ao garantirem a longevidade domesmo conjunto de leis, em oposio aos sobressaltos ocorri-dos no incio da Primeira Repblica, marcada pela condenao

    e execuo de Lus XVI, a Guerra Civil na Vendia, a mudanado calendrio anual, a desapropriao dos bens da Igreja e adelirante decretao do fim do cristianismo. Essas desordensseriam particularmente reconhecidas durante os anos de Na-poleo III (-), que imps uma nova ordem monrquicaditatorial, em que a prioridade prosperidade coletiva deu lu-gar prioridade prosperidade individual, o que pressupunha

    uma poltica socialmente repressiva que garantisse, na Frana,uma industrializao sem sobressaltos revolucionrios. Eramnecessrias regras estveis, em que o papel do financista e doempreendedor se sobrepusesse ao dos mais pobres (os antigossans-cullotes), que, com Robespierre, haviam sido a base social,pelo menos em Paris, de sustentao do Terror.

    Uma tentativa de inverso desse jogo imaginrio de con-

    trastes, que envolveu negativamente Robespierre e demonizousua importncia, ocorreria dentro da esquerda francesa porvolta de , com a maturidade do movimento operrio socia-lista, que procurou, por meio de uma reinterpretao histrica,construir uma espcie de nova tica da revoluo. Ela passariaa conceber a violncia como um instrumento fundamental pa-ra contornar as barreiras levantadas para a humanidade no tra-

    jeto em direo a novas e inevitveis etapas de seu progresso.Com isso, a execuo do rei em e a prpria guilhotina fo-ram submetidas a novas interpretaes. Pela nova tica, torna-va-se inevitvel regar a revoluo socialista com o sangue do

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    inimigo de classe. De maneira mais ou menos explcita, foio que pensaram a Seo Francesa da Internacional Operria(SFIO) e, bem mais tarde, o Partido Comunista Francs (PCF)

    este ltimo, verdade, montado por vezes na oportunistaanalogia entre o Terror de - e os expurgos realizados pe-lo stalinismo na Rssia. De qualquer modo, para esses setoresda esquerda era preciso contrapor caricatura de Robespierreum retrato de contedo nitidamente positivo, capaz de desta-car a idia de que, no tempo dele e pela primeira vez, a Franafoi vista pelos franceses como uma nao, adquirindo cons-

    cincia de sua diferena e de sua unidade. O Estado tornou-seo esboo de um instrumento da soberania popular, e no maisuma burocracia que despejava o produto dos impostos e davenalidade dos cargos pblicos nas antecmaras de Versalhes.O novo Robespierre, assim delineado, e do qual hoje talvezpouco reste, tornava-se generoso, um patriota capaz de enten-der que o poder poltico tinha suas razes na verdade da natu-

    reza (a lei natural, para ele, era democrtica e republicana),mas tambm no estmago e no corao dos cidados.

    inegvel que cabem muitos Robespierres dentro do nicopersonagem que a histria nos legou. H um Robespierre paci-fista, que recorria guerra como forma repulsiva e necessriapara defender a Revoluo. H tambm o dirigente que apre-goava formas pouco elaboradas ou de rica alegoria sobre a de-

    mocracia parlamentar. Chegou a propor que os legisladoresfossem reunidos no centro de uma espcie de estdio, cerca-do por arquibancadas, a partir das quais o povo representadopoderia fiscalizar a fidelidade do mecanismo de representao.E h um Robespierre que cresceu politicamente quando a Revo-luo Francesa escorreu pelos dedos dos girondinos (partidriosde uma monarquia constitucional), e em seguida pelos dedos

    dos moderados hebertistas, cabendo a Robespierre mobilizar acentena de sees revolucionrias parisienses, espcie de pre-cursoras dos sovietes, para que elas pressionassem a Convenoe desafiassem sua autonomia, forando-a a legislar de forma

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    mais ousada, em desobedincia a composies que implicassemconcesses de direitos, excitando-a para que fosse menos come-dida em suas formas de aplicao da nova ordem jurdica.

    Maximilien de Robespierre tinha anos quando passoupraticamente a controlar os rumos da Revoluo Francesa. E ofez por doze meses, at ser deposto em julho de . Seguiu-sea priso, um tiro de um algoz que deformou seu maxilar infe-rior e, no mesmo dia, a guilhotina. Era a concluso de umacarreira rpida e fulgurante. Solteiro, de hbitos bastante sim-ples, o Incorruptvel, como foi chamado, advogava em Arras,

    cidade prxima atual fronteira com a Blgica, quando seelegeu para o Terceiro Estado (deputados que no pertenciamao clero ou nobreza) dos Estados Gerais. Em Paris, instalou-se em um quartinho apertado no andar trreo de um imvelno Faubourg Saint-Honor. Em poucos meses, destacou-se pe-la clareza de suas idias e pelo magnetismo de suas palavras.Conquistou uma vaga no oficioso grupo de lideranas desse

    colegiado parlamentar de franceses hoje relegados ao ano-nimato. Mas como orador no Clube dos Jacobinos que sua li-derana passou a crescer. Aliou-se a Georges Danton, persona-gem brilhante e moralmente ambguo, e ao seu lado conduziuo processo de deposio do rei e a transformao do Comit deSalvao Pblica em Poder Executivo.

    Com Lus XVI guilhotinado, os ingleses do primeiro-minis-

    tro Pitt decidem partir para a ofensiva. Os tronos europeussentem o peso da ameaa. H uma epidemia republicana a sercontida. Em menos de quarenta dias, a Frana entra em guerracom a Inglaterra, a Holanda e a Espanha. A reviravolta blicaenfraquece os grupos moderados e fortalece a intransigncia deRobespierre e seus amigos. Amplia-se a coligao republicanaradical. A Revoluo, argumenta o deputado de Arras, preci-

    sa eliminar seus adversrios para poder sobreviver e garantir anova idia de liberdade que traz consigo. Em nome dessa de-purao dos inimigos de dentro institui-se o Terror, vistohoje como desnecessrio pela historiografia de tradio liberal.

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    Foi, de qualquer modo, um processo incapaz de impor limitesa seus desdobramentos. Sobem ao cadafalso deputados julga-dos de maneira sumria. Os sobreviventes hebertistas, dan-

    tonistas sentem-se ameaados. Antes que sejam os seguintesna longa fila da decapitao, depem Robespierre e o guilhoti-nam, junto com outros integrantes reais ou supostos do partido dos robespierristas. Entre eles, Louis Saint-Just, en-to com anos.

    A riqueza factual do curto perodo em que Robespierre este-ve em evidncia permite que ele seja objeto de uma pluralidade

    quase infinita de enfoques. Pode-se discorrer sobre os efeitosdesorganizadores que o Terror provocou na j quebrada eco-nomia francesa daquele final de sculo XVIII. Ou sobre a amplacoligao externa que a Revoluo Francesa reuniu contra si(Maria Antonieta, a rainha guilhotinada, era irm do impera-dor da ustria). Ou ainda retratar a indignao do clero presoa vnculos de obedincia a Roma, e a postura de resistncia que

    ele incutiu no campesinato, parcela majoritria da populao,ou em setores urbanos das provncias, assustados com os ru-mos adotados pelo novo ncleo de poder, legitimado pelas ca-madas populares parisienses, que pouco ou nada tinham a per-der. possvel, por fim, repassar cada um dos episdios para osquais Robespierre escreveu uma sucesso de brilhantes discur-sos, contextualizando-os luz de uma coreografia de alianas

    semoventes que foram, por sua vez, facilitadas pela rpida su-cesso de fatos e pela vertiginosa velocidade com que se altera-va a configurao do cenrio revolucionrio.

    Mas o Maximilien de Robespierre que nos chega agora,nesta edio, o tribuno, o orador, o deputado que assimilouRousseau e os iluministas, o pragmtico que sabe inexistiremreferncias prvias para aquele momento que, com bastante

    propriedade, ele acredita ser profundamente inovador. Erapreciso, ento, produzir essas referncias por meio de palavras,lanando mo de um discurso poltico que criasse e populari-zasse conceitos, que colocasse nos lbios do povo uma nova

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    terminologia da institucionalizao libertria. O deputado deArras no foi, claro, o nico a faz-lo. A Revoluo Francesafoi um viveiro de jornalistas e oradores brilhantes. Honor

    Mirabeau e Jean-Paul Marat tinham maior erudio. Mas cou-be a Robespierre uma interveno retrica mais apropriada expresso do inverossmil, daquilo que se apresentava comoa incandescncia do paradoxo (a guilhotina e os direitos dohomem, por exemplo), em nome de um conjunto frreo deprincpios: a virtude, a cidadania, a liberdade, a legitimidade darepresentao poltica encarregada de manter essa mesma li-

    berdade a qualquer custo. Nesse sentido, e nos diversos mo-mentos de sua brevssima carreira, Robespierre uma espciede agente da metaforizao, dentro do espao de poder, da pa-lavra latente da ptria e dos patriotas que ele, sem dvida, acre-ditava materializar por meio da linguagem. Em suma, renem-se condies que o credenciam ao estatuto de um inventordo discurso poltico.

    No se trata de reiterar o valor estilstico de uma linguagemde incontestvel qualidade, refinada em seu extremo didatis-mo, mesmo sem a dimenso literria de um Beaumarchais oude um Restif de La Bretonne, contemporneos seus. Tambm verdade que os prolficos e elegantes argumentos robespierris-tas obedeciam dinmica a quente do assunto em pauta no co-tidiano da poltica. Os princpios aos quais ele se referia com

    freqncia como a liberdade e a democracia enquanto direi-tos naturais surgem nos sucessivos discursos como panode fundo para contextualizar questes concretas, prementes,que deveriam ser objeto de votao em plenrio ou que diziamrespeito a problemas tticos imediatos. Mais uma vez, seria in-correto compar-lo ao ensasmo dos filsofos ou dos enciclo-pedistas, como Rousseau ou Voltaire, ento j mortos, que ti-

    veram uma influncia predominante, embora sempre indireta,no plano das aes polticas concretas.

    Produzir poltica produzir palavras e, por meio delas, sis-tematizar idias para, em seguida, induzir, convencer. Naque-

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    le perodo em que o discurso avanava por um espao de am-pla virgindade semntica, os revolucionrios orgulhavam-se doque faziam. E o que faziam era historicamente indito. Apesar

    de mltiplas referncias Repblica romana, ao papel hericode Brutus que conspirou contra o liberticida Csar (este um tema que Robespierre aborda com candura) , tratava-se,na construo do embrio universal de uma nova democracia,de dar nome s coisas, delimitar a possibilidade de designaes,propor antinomias, configurar o espao ao mesmo tempo geo-grfico e discursivo em que a Repblica reunia as condies

    para desabrochar. Para Robespierre, a cidadania emergenteno era aquela que se definia apenas por possuir o mesmo con-

    junto de direitos em benefcio de cidados fundamentalmenteiguais perante a lei republicana. Os cidados eram tambm e sobretudo iguais perante a linguagem, capazes de se abas-tecer de princpios na fonte do direito natural, para em seguidadialogarem de acordo com categorias discursivas homogneas

    e que lhes seriam comuns.Dentro dessas categorias, a relao entre o representante

    (o parlamentar) e o representado (o povo) deve ter sua legi-timidade arraigada em um mecanismo de perfeita simetria: imperiosa a compatibilidade profunda entre a verdade revo-lucionria, prpria ao povo patritico, e a linguagem das deci-ses e das leis que, em seu nome, so formalizadas pelos agen-

    tes da representao parlamentar. Os discursos de Robespierreso uma constante tentativa pouco importa o quanto elaseja por vezes ingnua de impedir que surja alguma formade inadequao entre os dois planos. A verdade de um deveser a verdade do outro. O lapso dessa verdade qualificado,com freqncia, de calnia. Mas, insisto, essa verdade no imaterial. discursiva. Existe materialmente, por meio da lin-

    guagem, para produzir efeitos institucionais.Lembremos, por exemplo, na insistncia de Robespierre pa-

    ra que os integrantes da Conveno no se considerem juzesdurante o processo de condenao do rei morte. Pois o julga-

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    mento, como procedimento penal, a seu ver j ocorreu no mo-mento em que o prprio ru procurou deixar clandestinamen-te a Frana para buscar auxlio atrs das fronteiras inimigas. Os

    representantes do povo devem tirar as conseqncias de umasentena preexistente. Devem ser, portanto, homens de Es-tado. Em princpio, juzes poderiam decidir pela absolvio.Homens de Estado, no. Podemos destacar dois outros exem-plos, desta vez de inverso da conotao pejorativa, o que nodeixa de ser uma maneira ntida de operar discursivamente.Robespierre define o Terror como uma justia sumria, inflex-

    vel. Portanto, como uma emanao da virtude. Em outrosmomentos, refere-se aos sans-culottesna primeira pessoa, iden-tificando-se aos pobretes, aos que se vestem sem o refinamen-to dos mais ricos. Ele inverte a negatividade da conotao que,inicialmente, fora atribuda pelos girondinos.

    Hoje, tais recursos de oratria poderiam ser consideradosirrisrios ou banais. Mas, lendo Robespierre, nos remetemos

    ao perodo de criao de uma prtica discursiva que, em doisoutros parlamentos preexistentes, no assumia a mesma formade conflito constante, no tinha os mesmos grupos antag-nicos de atores sociais: o Parlamento ingls, assumidamenteelitista por causa do voto censitrio para a escolha dos inte-grantes da Cmara dos Comuns (s os filantropos, bem maistarde, passariam a falar em nome dos interesses materiais dos

    sans-culottes britnicos), e o Congresso norte-americano, nas-cido de um consenso democrtico e no de um confronto re-toricamente violento entre faces internas discordantes. Maisuma razo, assim, para bater nas teclas do carter inventivo daRevoluo Francesa e da linguagem utilizada por seu mais en-sandecido e brilhante dirigente.

    Por fim, ler Robespierre deixar-se seduzir. H algo de tre-

    pidante na convico e na temperatura de suas frases. H umincessante patinar entre a seriedade dos enunciados ontolgi-cos e a fina e ldica ironia utilizada contra o adversrio cir-cunstancial. H uma clareza cristalina de raciocnio. Maximi-

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    lien de Robespierre possua uma ligao implicitamente amo-rosa com o idioma que o formou e no qual se exprimiu. Casono estivessem referenciadas em fatos precisos da histria da

    Frana, caso por um desses absurdos se tratasse da produopuramente ficcional de um insano, de um esquizofrnico, mes-mo assim suas falas reuniriam todas as excepcionais qualidadesde texto que se encontram em grandes autores. Convido-os,nas pginas seguintes, a comprov-lo.

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    Cronologia abreviada

    Nasce em Arras, Frana, Maximilien Franois Ma-rie Isidore de Robespierre, em uma famlia da nobreza.

    Depois de estudar com os oratorianos no Liceu Louis-le-Grand, torna-se advogado em sua cidade natal. muito in-fluenciado pela leitura de Rousseau.

    nomeado juiz do Tribunal Episcopal.

    eleito (pelo Terceiro Estado) deputado para os Es-tados Gerais, que se reuniriam em Paris. Defende um progra-ma arrojado: sufrgio universal com eleies diretas, instruogratuita e obrigatria, impostos progressivos.

    O rei Lus XVI instala os Estados Gerais em Ver-salhes, dando posse a deputados da nobreza, do clero e do Terceiro Estado.

    Considerando que representavam % da po-pulao, os deputados do Terceiro Estado declaram-se consti-tudos em Assemblia Nacional.

    O rei manda fechar o salo de reunies. Os

    deputados transferem-se para a sala do Jeu de Paume (local derecreio dos cortesos) e fazem o juramento de nunca se sepa-rarem e reunirem-se onde quer que as circunstncias o exigis-sem, at que fosse votada uma Constituio.

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    revelia da vontade do rei, os representantes doTerceiro Estado declaram instaurada uma Assemblia NacionalConstituinte. Lus XVI trama um golpe contra os deputados

    rebelados. Paris acompanha tensa os acontecimentos, cercadapor mil soldados.

    Os parisienses tomam de assalto a fortaleza daBastilha, que servia de priso e depsito de armas, e improvi-sam uma guarda nacional e uma nova administrao para a ci-dade. o incio da Revoluo. Os camponeses tambm come-

    am a se sublevar, atacando castelos e queimando os registrosdos tributos feudais.

    A Assemblia aprova o fim dos privilgios feu-dais e dos dzimos, decretando a igualdade perante os impostos.

    A Assemblia aprova a Declarao dos Direi-tos do Homem e do Cidado, que, entre outras coisas, procla-ma o direito de resistir opresso. Lus XVI recusa-se a sancio-nar as principais decises da Assemblia. Aguarda a chegada detropas mercenrias alems e suas para pr fim ao estado derebelio.

    Nova sublevao em Paris.Um numeroso grupo de populares, mulheres frente, partepara Versalhes, trazendo de l o rei e a rainha, que so manti-

    dos como refns no palcio das Tulherias. A Assemblia Cons-tituinte passa a governar efetivamente o pas. Multiplicam-sesociedades de debates polticos. Entre elas, destaca-se a Socie-dade dos Amigos da Constituio, que se reunia no refeitriodo convento dos Jacobinos. Surge da o nome pelo qual seriamconhecidos os integrantes da ala radical da Revoluo, lidera-dos por Robespierre.

    Inicia-se um ano de intensa atividade legisla-tiva. A Assemblia Constituinte divide o pas em novos de-

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    partamentos, com superfcies aproximadamente iguais, de mo-do a criar uma nova organizao estatal, sepultar os costumesfeudais, assegurar a unidade nacional e estabelecer a uniformi-

    dade administrativa.

    A Assemblia autoriza a venda das propriedadesnacionais em leiles pblicos, dividindo as terras em parcelaspequenas que podiam ser arrematadas e pagas em doze anos.

    A Assemblia abole a nobreza hereditria, comseus ttulos e brases.

    Por decreto da Assemblia, todos os bensda Igreja, sobretudo terras, passam a pertencer nao. Come-a a separao de funes entre Igreja e Estado.

    So abolidas as corporaes e seus privilgios.

    Divulga-se uma notcia extraordinria: Lus XVIfugira do palcio das Tulherias para contra-atacar a Revoluocom apoio do exterior. O rei, porm, reconhecido e detido emVarennes, retornando a Paris sob custdia.

    Grande manifestao na capital contra o rei.Robespierre se destaca como um dos principais chefes da novainsurreio.

    Promulga-se a nova Constituio, que no pro-clamava a Repblica nem institua o sufrgio universal, dei-xando ainda algumas prerrogativas ao poder real.

    Compreendendo que uma interveno estran-

    geira era inevitvel, a nova Assemblia Legislativa antecipa-se aela e consegue do rei uma declarao de guerra ustria e Prssia. Forma-se um ministrio chefiado por girondinos,agrupamento moderado cujos membros mais influentes ha-

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    viam sido eleitos pelo departamento da Gironda. Depois desucessivas derrotas francesas, com as tropas prussianas j emChampagne, a Assemblia proclama que a ptria est em peri-

    go. Acelera-se o processo revolucionrio interno, agora trans-formado em guerra civil. A ao do ex-constituinte jacobinoRobespierre ganha grande destaque.

    Uma sublevao popular instala na Comuna(municipalidade) de Paris a sede de um governo revolucio-nrio, hostil aos girondinos. Robespierre um dos chefes des-

    se governo paralelo revolucionrio. O rei preso na torre doTemplo. Nas seis semanas que se seguem, as energias se con-centram na reorganizao da defesa externa e na identificaodos inimigos internos. O Exrcito prussiano chegara a Verdun,praa forte que dominava Paris. Aqueles que real ou supos-tamente simpatizam com a interveno estrangeira so per-seguidos. As prises se enchem, as execues comeam.

    Apesar de famintas e maltrapilhas, as tro-pas revolucionrias francesas obtm em Valmy seu primeiroxito significativo contra os prussianos. No mesmo dia, tomaposse a Conveno Nacional, eleita por sufrgio universal (maspor reduzido nmero de eleitores, pois os moderados se abs-tm). A Monarquia abolida, decreta-se o ano I da Repblica.Aumenta a disputa entre jacobinos e girondinos. O curso da

    guerra comea a mudar a favor do Exrcito francs.

    O cidado Lus Capeto ningum menosque Lus XVI executado na Place de la Concorde, em Paris,por deciso da Conveno, tomada por pequena margem devotos. Robespierre teve papel de destaque na acusao. Am-

    plia-se a coligao externa contra a Revoluo. Para reforar oExrcito, a Conveno ordenar a requisio de mil ho-mens jovens. Irrompe em seguida uma revolta na Vendia eem regies vizinhas, dirigida por padres catlicos e nobres mo-

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    narquistas. Em Paris, os radicais, cuja base social eram os cha-mados sans-culottes, se fortalecem.

    Grandes agitaes em Paris, coma priso de lderes girondinos.

    Expurgada dos chefes girondinos, a Conven-o vota a Constituio do ano I, radicalmente democrtica.

    A Conveno concede poderes extraordin-rios ao governo, at a paz. O novo Executivo, com plenospoderes, se divide em dois rgos principais: o Comit de Sal-vao Pblica e o Comit de Segurana Geral. Na prtica, oprimeiro deles, de doze membros entre os quais Robespier-re , assume o governo da Frana, com poderes ditatoriais,para salvar o pas da invaso. Para reprimir levantes contra-revolucionrios e punir traidores a servio do estrangeiro,decide-se explicitamente colocar o Terror na ordem do dia.Seguem-se prises em grande escala. O pas mantm cerca deum milho de homens mobilizados no Exrcito. A crise social eeconmica se agrava.

    A rainha Maria Antonieta, viva de Lus XVIe irm do imperador da ustria, executada.

    Robespierre combate as tendncias moderadas e par-ticipa da condenao morte de Hbert e seus seguidores.

    Danton e Desmoulins tambm so executados.

    Inicia-se a fase mais pesada de represso aosinimigos da Revoluo, conhecida como o Grande Terror.Promulga-se uma lei destinada a acelerar os julgamentos pelos

    tribunais revolucionrios, suprimindo a defesa dos presos ea necessidade de audincias para ouvir testemunhas. Nos cin-qenta dias subseqentes so executadas . pessoas. Nafrente de combate, o Exrcito francs obtm vitrias, conse-

  • 7/31/2019 Joo Batista Natali, Prefcio, Robespierre - Discursos ... na Conveno

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    guindo repelir os invasores para alm das fronteiras do pas.Mas, com o aprofundamento do Terror, a base popular dos

    jacobinos diminui. Robespierre, apelidado de Incorruptvel

    por seu modo de vida simples, torna-se o alvo principal dosdescontentes.

    Depois de uma ausncia de seis semanas, Ro-bespierre comparece Conveno para defender-se das acusa-es de ter institudo uma ditadura. Faz seu ltimo discurso,consciente de que ser deposto e executado.

    ( ) Declarado fora da lei pelaConveno, Robespierre preso. O movimento para libert-lo rapidamente sufocado.

    Aos anos, Robespierre guilhotinado jun-to com Saint-Just ( anos) e outros correligionrios. A Con-veno retoma para si os poderes. Na seqncia dos eventos,os girondinos remanescentes retomam seus lugares. Chega ao

    fim o Terror. promulgada uma nova Constituio, chama-da do ano III, que, entre outras medidas, suprime o sufrgiouniversal.