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Joaquim Cardozo: O Engenheiro da Poesia... – Silva & Luna Revista Diálogos – n.° 18 – setembro / outubro – 2017 459 JOAQUIM CARDOZO: O ENGENHEIRO DA POESIA MODERNISTA PERNAMBUCANA d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n18p459 Nadja Maira Baltazar da Silva 1 UPE Jairo Nogueira Luna 2 UPE Resumo: Este projeto de pesquisa tem por finalidade, demonstrar, a importância de Joaquim Cardozo, o poeta engenheiro da poesia, na literatura pernambucana modernista. Buscaremos mostrar esta importância, por meio de seu trajeto altamente singular e engenhoso por cada uma das fases por que passou do movimento modernista, a partir da análise de poemas pertinentes a esses momentos, nos seus respectivos livros: Poemas, Signo Estrelado, Mundos Paralelos, e Trivium seu último livro publicado em vida. Trazendo nas análises aspectos sintáticos / semânticos, (figuras de linguagens utilizadas), sem esquecer, também de como a poesia moderna cardoziana, se manifestava na forma (tom, ritmo, versificação.). Não deixando de verificar, de forma especial, as relações intertextuais presentes nos seus poemas, aspectos da poesia concreta e visual, e da poesia engajada, vindo a trazer, portanto, a riqueza poética, de Joaquim Cardozo, que “seguiu” seu caminho, de certa forma, após os intuitos da poesia modernista. Procuramos mostrar a vastidão e qualidade da obra do “Engenheiro Poeta”, posto que sendo ele pernambucano e um recifense amante de sua cidade, escreveu sim, sobre a sua linda Recife, porém foi também um poeta inovador, aquele que buscou o universal, instaurando, com isso, uma lírica moderna em nosso estado. A partir de 1 Graduanda em Letras Português / Literatura pela Universidade de Pernambuco(UPE) Campus Garanhuns e bolsista de iniciação cientifica (PIBIC/ CNPq). 2 Pós doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor ajunto da Universidade de Pernambuco(UPE), Campus Garanhuns.

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Revista Diálogos – n.° 18 – setembro / outubro – 2017 459

JOAQUIM CARDOZO: O ENGENHEIRO DA POESIA

MODERNISTA PERNAMBUCANA

d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n18p459

Nadja Maira Baltazar da Silva1 UPE

Jairo Nogueira Luna2 UPE

Resumo: Este projeto de pesquisa tem por finalidade, demonstrar, a

importância de Joaquim Cardozo, o poeta engenheiro da poesia, na

literatura pernambucana modernista. Buscaremos mostrar esta

importância, por meio de seu trajeto altamente singular e engenhoso

por cada uma das fases por que passou do movimento modernista, a

partir da análise de poemas pertinentes a esses momentos, nos seus

respectivos livros: Poemas, Signo Estrelado, Mundos Paralelos, e

Trivium seu último livro publicado em vida. Trazendo nas análises

aspectos sintáticos / semânticos, (figuras de linguagens utilizadas), sem

esquecer, também de como a poesia moderna cardoziana, se

manifestava na forma (tom, ritmo, versificação.). Não deixando de

verificar, de forma especial, as relações intertextuais presentes nos seus

poemas, aspectos da poesia concreta e visual, e da poesia engajada,

vindo a trazer, portanto, a riqueza poética, de Joaquim Cardozo, que

“seguiu” seu caminho, de certa forma, após os intuitos da poesia

modernista. Procuramos mostrar a vastidão e qualidade da obra do

“Engenheiro Poeta”, posto que sendo ele pernambucano e um recifense

amante de sua cidade, escreveu sim, sobre a sua linda Recife, porém foi

também um poeta inovador, aquele que buscou o universal,

instaurando, com isso, uma lírica moderna em nosso estado. A partir de 1 Graduanda em Letras Português / Literatura pela Universidade de

Pernambuco(UPE) Campus Garanhuns e bolsista de iniciação cientifica (PIBIC/

CNPq). 2Pós doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor

ajunto da Universidade de Pernambuco(UPE), Campus Garanhuns.

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tais discussões, as nossas analises terão base nos pressupostos teóricos

de Norões (2008), D’Andrea (1993), Leal (2008), Do Serro (2012) e

Lima (2008).

Palavras-chave: Joaquim Cardozo; poesia modernista; modernismo

brasileiro; vanguardas poéticas; análise de poesia.

Resumen: Este proyecto de investigación tiene por finalidad demostrar

la importancia de Joaquim Cardozo, el poeta ingeniero de la poesía, en

la literatura pernambucana modernista. Buscaremos mostrar esta

importancia a partir de su trayectoria, altamente singular e ingeniosa,

por cada una de las fases del movimiento modernista por las que pasó;

y a través de análisis de poemas pertinentes a esos momentos, en sus

respectivos libros: Poemas, Signo Estrelado, Mundos Paralelos y

Trivium, su último libro publicado en vida. Los análisis traen aspectos

sintácticos y semánticos (figuras de lenguaje utilizadas), sin olvidar

cómo la poesía moderna “cardoziana” se manifestaba en la forma (tono,

ritmo, versificación). Además de verificar, de forma especial, las

relaciones intertextuales presentes en sus poemas, aspectos de la poesía

concreta y visual y de la poesía comprometida, trayendo, por lo tanto,

la riqueza poética de Joaquim Cardozo que "siguió" su camino, de

cierta forma, después de los intuitos de la poesía modernista. Buscamos

mostrar el alcance y la calidad de la obra del "Ingeniero Poeta” que,

como pernambucano y recifense, amante de su ciudad, escribió sí sobre

su hermosa Recife, sin dejar de ser un poeta innovador que buscó lo

universal, instaurando así una lírica moderna en nuestro estado. A partir

de tales discusiones, nuestros análisis se basan en los presupuestos

teóricos de Norões (2008), D'Andrea (1993), Leal (2008), Do Serro

(2012) y Lima (2008).

Palabras-clave: Joaquim Cardozo; Poesía modernista; Modernismo

brasileño; Vanguardias poéticas; Análisis de poesía

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1. Introdução

Nascido no Recife, em 26 de Agosto de 1897, e falecido em

1978, Joaquim Cardozo estudou Engenharia Civil pela antiga

Universidade do Recife, atualmente a UFPE, fez trabalhos como

engenheiro civil junto a Oscar Niemayer na construção do conjunto da

Pampulha e dos palácios de Brasília (a Catedral de Brasília, o Palácio

do Planalto, entre outros), o qual em favor disto é chamado de

Engenheiro da poesia. Logo cedo, revelou seu lado poeta, com uma

força surpreendente, não só por ter ótimo domínio das formas líricas,

porém também pela modernidade de sua escrita. Muito culto,

dominava por volta de doze idiomas, incluindo o chinês, o Russo e o

Sânscrito, por nascer na divisa de dois séculos, o autor teve contato com

as tendências parnasianas e simbolistas, brasileiras; foi contemporâneo

intelectual das vanguardas européias, no século XIX; bem como do

Modernismo brasileiro, ao qual pertenceu de forma irreverente,

conforme (NORÕES, 2008, p. 11): “Joaquim Cardozo foi uma espécie

de homem-universo, um humanista no sentido mais clássico. João

Cabral de Melo Neto declarou, certa vez, que não frequentara curso

superior, mas considerava equivalente a uma faculdade o que aprendera

com Willy Levin e, depois, com Joaquim Cardozo.”

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Em sua juventude, foi diretor de revistas literárias na capital

pernambucana, em especial, a revista O Norte3, embora não tenha

publicado nenhum livro nesta época. Isso ocorreu somente aos seus 50

anos, por ser incentivado por amigos, em especial, João Cabral de Melo

Neto, o qual foi quem compôs e imprimiu, em Barcelona, a edição do

livro denominado: Pequena antologia pernambucana, tirada a cem

exemplares. Essa amizade e admiração era tão forte, podendo ser vista

nas obras do colega e conterrâneo como nenhum outro amigo de João,

por exemplo, nestes versos de João a Joaquim: Escrever de Joaquim

Cardozo/ só pode quem conhece/ aquela luz Velásquez / de onde nasceu

e de que escreve [...] (MELO NETO, 1994, p.375). Neste poema, feito

em homenagem ao amigo, João Cabral de Melo Neto enaltece - o

dizendo que ele é cheio de “luz”, mas que só pode falar da dele e de sua

obra, quem sabe de onde está sua “luz”, ou seja, quem realmente o

conhece, por conseguinte sabe também de suas capacidades, e como diz

no poema: “Sua Luz!”. Joaquim Cardozo não foi somente poeta, mas

também: contista, crítico de arte, dramaturgo. Mas, neste estudo vamos

nos deter neste estudo à apenas a seu caminho poético o qual foi cheio

de autenticidade: “é possível ver alguns pontos de concordância de sua

poesia com o projeto regionalista e o modernista, com os quais Joaquim

Cardozo divide o solo comum da poética e da memória nacional, sem

3 A mais importante revista literária de Pernambuco da década de 20.

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se esquecer, todavia, da sua própria singularidade”. (D’ANDREA,

1993, p.120).

Singularidade decorrente de uma tamanha deliberação temática

guiada pela preocupação humanista com as grandes questões

brasileiras; por meio da temática regional sem desprender – se por

inteiro do sentimento de universalidade. Atribuição que o destaca o

entre os modernistas e traz também a possibilidade de o comparar com

Homero, Virgílio, Artur Rimbaud, William Shakespeare, com o francês

Paul Valéry, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.

Destaque designado principalmente a partir desse plano temático o qual

tem divisão em: urbano e rural “contracenando com o citadino e o

nacionalismo embutido nos versos do poeta pernambucano são também

materiais comuns à disposição dos modernistas: Oswald de Andrade,

Manuel Bandeira e Murilo Mendes.” (SERRO, 2012, p.11).

Desse modo, como bem diz (LAFETÁ, 2004, p. 27), Cardozo

apresenta dialeticamente, ou seja, dialoga e discute dois projetos na

análise que faz do modernismo brasileiro: o primeiro que era estético e

tinha por objetivo, segundo ele, renovar os meios de expressão e romper

com a linguagem tradicional; o segundo era ideológico, e estava ligado

a consciência do país novo. Sendo, assim é notável a posse da

libertação, de forma que, desapegou do pitoresco, se afastando do

localismo excessivo dos regionalistas e da cultura popular ou primitiva

e inicia esta pretensão ideológica mencionada acima, sem deixar de ser

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sensível a seu chão, mesmo em todos os tempos e contextos diversos

que atravessou. Poeta através do qual se deu segundo Alves(1976):

[...] uma nova tendência se delineia no nosso

Modernismo, não tanto para salva-lo do esvaziamento

causado pela exaustão dos temas glosados, mas,

sobretudo, para reestrutura- lo em suas próprias bases:

alude –se à necessidade, que se fazia urgente, de uma

retomada da poesia ás suas vertentes históricas, dotando

–a de motivações mais serias e mais vitais, bem como de

um posicionamento estético mais consentâneo com as

tradições da cultura ocidental. (ALVES, Audálio, 1976,

p, 28)

Assumindo, portanto um caminho perdurante por décadas, nas

quais engenhou por ser único e totalmente flexível pelo fato de ter

passado por todas essas décadas, que trouxeram consigo várias fases do

movimento, assumindo, nas variadas formas de sua escrita poética, o

dilema do sistema literário brasileiro: a inovação. Partindo da

observação de “As Alvarengas” para mais tarde viajar de forma literal

à uma poesia universal, que nos fará ter a “Visão Do Último Trem

Subindo Ao Céu”.

2-Poemas (1947): A Poesia Singela e Regional

Em Poemas(1947), livro que o assegurou na primeira linha

entre os poetas do nosso modernismo, sabendo que desde “1922, ele já

era um dos autores pernambucanos mais representativos, mas sua

poesia não era conhecida fora do Recife. Publicava, eventualmente, em

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revistas do Rio, mas poucos tiveram sensibilidade para perceber a

riqueza de sua língua poética.” (LEAL. Cesar, 2008, p.12). Nesta fase,

Joaquim apresenta uma poesia singela e regional, por que é marcada

pela presença do universo circundante: as alvarengas, as casuarinas, a

Rua da Aurora, o Recife, a Flora nordestina...

As Alvarengas

As Alvarengas!

Ei-las que vão e vem: outras paradas,

Imóveis. O ar silêncio. Azul céu, suavemente.

Na tarde sombra o velho cais do Apolo.

O sol das cinco acende um farol no zimbório.

Da assembleia.

As alvarengas!

Madalena. Deus te guie. Flor de zongue.

Negros curvando os dorsos nus

Impelem-nas ligeiras...

[...]

É o Moloch, é o abismo, é a caldeira...

Além, pelo ar distante e sobre as casas,

As chaminés fumegam e o vento alonga

O passo de parafuso

Das hélices de fumo;

E lentas

Vão seguindo, negras, jogando, cansadas;

E seguindo-as também em curvas n’água

propagadas,

A dor da Terra, o clamor das raízes. (CARDOZO.

2008, p. 33)

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Em “As Alvarengas” é possível enxergar a utilização de

recursos da poesia clássica, pois temos no poema o mencionar de nomes

da mitologia grega (recurso muito utilizado no Arcadismo), como do

deus “Apolo”, linha 3, e também recursos intertextuais com os textos

bíblicos, como do novo testamento: “Madalena. Deus te guie...” no

verso 7, e também do Antigo Testamento, em Levítico, na história de

Moisés com o demônio Moloch no verso 17: “É o Moloch, é o abismo,

é a caldeira...” Quanto à utilização da linguagem, no plano sintático,

acontece a exclusão do vínculo do verbo, e por consequência a

formação dos significantes nominais, além da utilização do discurso

imparcial (a exclusão do “eu”) e o uso do verso livre. As imagens que

o poema nos sugere remetem ao encadeamento de signos semelhante

ao que ocorre com um clipe cinematográfico, de forma mais precisa nas

linhas iniciais: “As Alvarengas! / Ei-las que vão e vem...” onde as

opostas conjugações do verbo ir: “vão” e “vem”, conseguem transmitir

ao leitor a imagem de um movimento de ida e vinda, em favor do caráter

semiótico conjugado nessa organização lírica onde as palavras são:

[...] símbolos, em que pese o fato de que numa obra

literária (num poema, por exemplo), uma figura como uma

metáfora é um ícone degenerado, no entanto, estamos por

enquanto nos atendo ao caráter próprio das palavras de

serem símbolos pela arbitrariedade com que representam o

que dizemos que elas significam. (Luna, 2006, p. 28)

Essa ideia sugestão simbólica ocorre também pelo uso

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estratégico /arbitrário, da pontuação, seja da virgula, e principalmente

do ponto final, como na terceira linha: “Imóveis. O ar silencio. Azul

céu...” causando pausas na leitura e essa consequente percepção de

imagem de cinema na mente do leitor, através de uma

convencionalidade semiótica, sabendo que a constituição do signo

poder partir desde “ o hábito natural ou convencional, e sem levar em

consideração os motivos que originariamente orientam sua seleção...”

(PEIRCE: 1977, p. 76, apud. LUNA, 2006, p. 28), na qual Cardozo

busca através dessa segunda vertente esse encadeamento imagético das

expressões nos versos.

Recife de Outubro

Ô cidade noturna!

Velha, triste, fantástica cidade!

Desta humilde trapeira sem flores, sem poesia,

Alongo a vista sobre as águas,

Sobre os telhados.

Luzes das pontes e dos cais

Refletindo em colunas sobre o rio

Dão a impressão de uma catedral imersa,

Imensa, deslumbrante, encantada,

Onde, ao esplendor das noites velhas,

Quando a noite está dormindo,

Quando as ruas estão desertas,

Quando, lento, um luar transviado envolve o casario,

As almas dos herois antigos vão rezar.

[...]

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Toda cidade, eu vejo, está transfigurada:

É um campo desolado, negro, enorme,

Onde rasteja ainda

O último rumor de uma batalha;

E a massa negra dos edifícios,

As torres agudas recortando o azul sombrio,

Cadáveres revoltos, remexidos,

Com os braços mutilados

Erguidos para o céu.

Ô minha triste e materna e noturna cidade

Reflete na minha alma rude e amargurada

O teu fervor católico, o teu destino, o teu heroísmo.

(CARDOZO, 2008, p. 158- 159)

No poema acima é possível observar também, aspectos do

universo circundante de Joaquim Cardozo, embora de maneira mais

particular, pois temos uma descrição comum nestes poemas que

trazem o nome da capital no título: as observações à sua cidade, as quais

sempre tinham um ponto de observação especifico: a ponte Mauricio

de Nassau, onde hoje, há uma estátua do escritor, lugar de inspiração,

do qual podia avistar o Rio Capibaribe, ver as tardes caírem, como os

versos do final da estrofe de “ Recife Outubro”, nos descrevem:

“Alongo a vista sobre as águas, /Sobre os telhados./Luzes das pontes e

dos cais/ Refletindo em colunas sobre o rio”. Antes de ser publicado no

livro Poemas (1947), este poema teve sua primeira publicação na

revista O Norte junto a mais sete títulos "As Alvarengas", (poema

analisado anteriormente), “Velhas Ruas", "Olinda”, "Tarde no Recife",

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"Recife Morto", "Inverno" e “Perdão". Nesta revista, foi também

ilustrador, são suas as ilustrações e o desenho de capa do livro Catimbó

(1927), de Ascenso Ferreira.

Ao retornar a leitura para o começo da sua primeira estrofe,

pode- se perceber, seu tom elegíaco, exprimido logo de início pelo uso

da interjeição em: “Ó minha cidade”, modo introdutório de versos

comum a este tipo poético, o uso dos adjetivos, “velha” e “triste”, veem

para reforçar esta ideia, no fim dessas duas primeiras linhas, há

novamente a utilização da exclamação, vindo a reforçar mais ainda, o

tom de clamor, de angustia do poema. No seguir dos versos, o eu lírico,

diz que em sua cidade não existem mais flores nem poesia, essa

expressão é passada e descrita ao leitor, por meio da repetição do termo

“sem”: “Desta humilde trapeira sem flores, sem poesia...”. Na década

em que “Recife de Outubro” foi escrito: 1930, foi o ano do fim da

Primeira República Brasileira, conhecida popularmente como

“República Velha” ou “República do Café com Leite”: Revolução de

1930, na qual Getúlio Vargas assume o poder em caráter provisório a 3

de novembro deste ano. Esse contexto histórico notadamente,

influenciou nessas primeiras produções de Joaquim Cardozo, visto que

ambas têm todo um notável engajamento literário, tendo em vista a

utopia democrática que defendeu o processo revolucionário desses

movimentos e frustrou – se mesmo depois de instalada a república, esta

consolidada pelo reformismo liberal das oligarquias. Dentro disso, a

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lírica que o engenheiro poeta nos traz, ocorre toda uma alegorização no

intuito de redefinir esses fragmentos históricos, bem explicados por

D´Andrea (1993):

É - notadamente - do conjunto de imagens, alegorias, e,

~enfim, da construção lírica de Joaquim Cardozo que o

problema se impõe e que se tenta redefinir esses

fragmentos históricos, insinuados no texto poético em

formas esgarçadas. A necessidade desses comentários

deriva, pois, das imagens com as quais o poeta

pernambucano recria no aqui e agora o heroísmo do

passado em poemas como "Recife de Outubro", "Recife

Morto”, “Olinda" e "1930", entre outros. (D´Andrea,

1993, p. 96)

Na última estrofe, há toda uma descrição da cidade, modificada

por esses avanços e suas revoluções e guerras, comparando -a com um

campo de guerra desolado, coberto pela escuridão, mas onde ainda

existe um grito, um rumor, como o mesmo afirma, de uma batalha:

“Toda cidade, eu vejo, está transfigurada: / É um campo desolado,

negro, enorme, /Onde rasteja ainda /O último rumor de uma batalha”.

Deixando claro o tom de clamor dessa elegia, diante de todas as

transformações que o Recife e o Brasil conheceram naquela década, o

eu lírico conclui os versos dizendo: “Ô minha triste e materna e noturna

cidade /Reflete na minha alma rude e amargurada/ O teu fervor católico,

o teu destino, o teu heroísmo”. Vindo a fechar, com isso, a reflexão

engajada da qual o seu desenvolvimento temático girou, falando do seu

fervor católico, tendo também certa conformismo com aquela situação,

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já que fala que esse era o destino, e por fim do heroísmo, recifense,

expressão final, reforçada pelo uso repetitivo do pronome possessivo

“teu”, sempre para reforçar, essa relação de poder e posse, para

evidenciar o enaltecimento à sua terra natal.

3.Signo Estrelado (1960): O Estranhamento Moderno

Afastando-se do universo regional assumido em Poemas,

Cardozo inicia em Signo Estrelado a experimentação de novas técnicas,

inclusive a “técnica da fusão”, atribuição de Hugo Friedrich4 para o uso

de palavras originadas dos mais diversos campos de sentido, que resulta

em um novo sistema metafórico, reconhecido de acordo com

(LEAL,2008, p. 14) recurso muito utilizado por Rimbaud.

Características nítidas em “Arquitetura Nascente & Permanente” é

dedicado a Oscar Niemeyer (a quem ele chama de “arquiteto-poeta”),

a Manuel Bandeira, a João Cabral de Melo Neto e a Thiago de Melo

(os chamados por Cardozo como “arquitetos da poesia”).

[...]

E nessa pedra inerte e fria,

Onda de magmas profundos

Filha do fogo e da agonia

De internas forças indormidas,

Que exerceram ação genésica

4 Linguista e pesquisador literário Alemão, que dava atenção à forma e estrutura da

literatura, pelo menos tanto quanto o seu conteúdo; com sua obra A Estrutura da

Lírica Moderna.

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Antes do amor, antes da vida;

Nessa pedra, hirta memória

Inclui, compõe, guarda silêncios

Das mais remotas harmonias;

Perenemente as noites guarda

Dos longínquos primeiros dias.

Atraídos pelo silêncio

E pela paz noturna os homens

Chegaram; por ínvias florestas

Abriram sendas, e passaram,

Das lianas através da renda,

Através das fendas das montanhas.

Mudos de medos e arrepios,

Guiados por bandeiras de vento,

Pelo coro dos rios selvagens...

Vieram de paragens flutuantes,

Andaram passos vacilantes,

Venceram espaços incertos

E inacessíveis, mas chegaram...

Chegaram e reacenderam

A pedra fria. Abriram portas

Cavaram profundas abóbadas,

Romperam pátios, galerias...

[...] (CARDOZO, 2008, p. 221-222).

A construção destes versos recebe subsídio da linguagem

metapoética, dentro dessas expressões originadas tanto do campo da

engenharia como “pedra” quanto daquelas mais comuns à prática lírica

“harmonias”, por exemplo. Perceptível logo na estrofe inicial do

fragmento: “[...] E nessa pedra inerte e fria, /Onda de magmas

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Revista Diálogos – n.° 18 – setembro / outubro – 2017 473

profundos [...] ... [...] Inclui, compõe, guarda silêncios /Das mais

remotas harmonias [...]”, onde por meio do uso do paralelismo, a

repetição da expressão “Nessa”, ocorre uma reflexão de que é “Nessa

pedra” que ocorrem varias das ações sugeridas nos versos (a escrita do

poema), ou seja, é nessa pedra que são escritos o sentimento (os

silêncios) do eu lírico.

Inovações técnicas como essa fazem de Cardozo “um bom

poeta do modernismo. É um dos poucos que conseguiu uma limpeza

clássica ao lado de certa prodigalidade imaginativa. Toda a parte de

‘Arquitetura Nascente e Permanente’ exibe sua ampla vocação de

instrumentalista sábio e fecundo.” (CHAMIE, 1964, p. 24). O

fragmento em análise é pertencente à segunda parte do poema, tendo

como temática a construção, a qual considera de acordo com o aqui

visto, que está pode se voltar também para a elaboração da sua própria

poesia, sem esquecer das atribuições e dedicatórias mencionadas logo

no início desta análise, apontadas para a relação nítida entre a

engenharia civil e poética presente neste poema. Para tal relação tem-

se a metalinguagem como fator imprescindível, de modo que “torna a

linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas sem deixar

de dar espessura ao poema por meio da concretização das coisas, dos

corpos, das sensações, do concreto armado, do ferro.” (SERRO, 2012.

p.65).

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Nesse mesmo livro podemos localizar, no engenho poético de

Cardozo, poemas elegíacos, na parte do livro denominada Elegias, em

“O Canto do Homem Marcado” que introduz em Poemas um lirismo

que aos poucos se afastava da temática regional, introduzindo a busca

de novos recursos:

Canto do Homem Marcado

Sou um homem marcado...

Em país ocupado

Pelo estrangeiro.

Sou marinheiro

Desembarcado;

Marcho na bruma das madrugadas;

Mas —

Trago das águas

A substância

Da claridade.

DA CLARIDADE!

Sou o indefinido,

O inesperado

Viajante da tarde nua,

Que uma dor augusta comoveu...

Tudo a renuncia,

Tudo

O que eu conservo

[...]

Sou um homem manchado de sombra

No sonho, no sangue, no olhar,

Sou um homem marcado...

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Em país ocupado

Pelo estrangeiro. [...] (CARDOZO, 2008, p.

73).

Nesta elegia, temos a lamentação de um eu lírico que sente

como diz na linha 1: “Um homem marcado”, marcado pelas mudanças

causadas pelo avanço do capitalismo, a revolução industrial, e a

consequente imigração de trabalhadores, para as grandes metrópoles,

em favor do aumento da mão de obra implicado pela inovação, o que

classifica este poema, como um poema engajado, de modo que traz um

engajamento com este contexto histórico e político em quem aquela

obra foi escrita, os avanços sociais, e suas consequências, sentidas na

pele do “homem marcado”, lembrando que o engajamento desse tipo

lírico, se difere de uma simples crítica aos problemas da sociedade.

Nesse contexto, percebe- se isso, quando, observamos a

etimologia do termo engajar que se originou a partir do francês

engager, que significa “dar em garantia”, “empenhar” ou “dar como

caução”, ou seja, há todo um empenho, do poeta em trazer na arte a

realidade da sociedade, como bem diz Sartre (1948): “O escritor

‘engajado’ sabe que a palavra é ação: ele sabe que desvelar é mudar e

que não se pode desvelar a não ser projetando mudar.” (SARTRE,

1948, p 73). Vemos então, o acontecimento de toda uma projeção para

que haja a visibilidade da realidade social trazida no poema. Assim, se

observarmos o contexto, em que esse movimento surgiu na década de

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60 fica mais nítido seu intuito, o qual foi em um momento de

transformações histórico, sociais e políticas, como as vistas em “O

Canto de Um Homem marcado”, a Revolução Industrial, o surgimento

do Capitalismo, eventos que assumem relevância desde esses anos

60,do surgimento, até os atuais, por seus impactos na sociedade, e nas

suas ideologias, sem deixar de expor, 1960 foi o ano exato em que

Joaquim Cardozo produziu Signo Estrelado.

À respeito dos recursos técnico- semânticos utilizados, há

ênfase aos versos que trazem junto a si a frase é título do poema: “Sou

um homem marcado.../Em país ocupado/Pelo estrangeiro.” Através do

paralelismo semântico causado pela repetição destes mesmos versos,

na antepenúltima estrofe da elegia “Sou um homem manchado de

sombra /No sonho, no sangue, no olhar, /Sou um homem

marcado.../Em país ocupado /Pelo estrangeiro.”, bem como o uso da

assonância na troca da palavra: “marcado” por “manchado”, na

primeira linha da referida estrofe. Ao voltar ao início do poema, de

forma especifica à segunda estrofe, é visível a utilização da caixa alta

na segunda vez em que a expressão da claridade aparece no poema,

tendo assim também um recurso de paralelismo: “DA CLARIDADE”,

recursos usados para enfatizar uma crítica, à possível “claridade”, que

esses avanços tecnológicos trouxeram a sociedade naquela época.

O lirismo de Joaquim Cardozo não cabia apenas nas margens

formais do movimento modernista ou nos simples limites de uma

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poesia pernambucana, em outras palavras Cardozo ia além quando

escrevia, fazendo reflexões do fazer poético, neste próprio fazer poético

(metapoesia) como pode ser observado em “Arquitetura Nascente e

Permanente”, bem como toda sua obra carrega dentro de si, vários

poemas com relação, com outros textos (intertextualidade).

Continuando a análise do livro Signo Estrelado, temos no poema “A

Página”, um belo e digno exemplo, de uma reflexão metapoética do

autor:

A Página

Era uma página em branco,

Em branco de papel – papel de brancos modais:

De nuvem, de neve, de lã, de espuma,

Branco de açúcar – plumas de cisnes – branco de cal

Uma linha de escura tinta

Nasceu sobre essa página,

Uma linha de tinta amorosa,

De tinta sincera e banal.

Era uma curva indiscreta? Eram os sinais do

enigma?

Simulação? Efigie? ...

Quem poderia saber, sobre o papel,

Onde estava a malícia da linha

Conduzindo a tinta inocente?

E por que foi evoluindo e se aplicando numa

impressão fiel,

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Num acento se afirmando na alvura, incisa, fatal?

Alvura de pão. Brancura!

Brancura de duro marfim, de velas longínquas.

Sobrevividas do sul! Brancura de leite de sal?

Muitas outras brancuras:

A de dentes rilhados por ódios antigos,

A de ossadas estendidas ao sol,

A dos olhos abertos em desvairados medos,

Todas elas retidas na página, de um modo geral.

Seduzindo a brancura da tinta a linha insistia:

No verbo repetido, na palavra indistinta

Que exprime tudo, que nada exprime,

Que tudo abrange num símbolo total.

[...]

E a tinta cordata, paciente e modesta

Correu entre margens de alvura,

Revestindo de sonho o senso real.

De repente, porém, sucedeu uma grande aspereza,

Uma aridez profunda, morna sucção, vácuo de

tempo...

E um vento soprou: um vento outonal. [...]

Dispersaram-se os brancos, levados, batidos

No vento da voz, no chão do silêncio...

E as letras caíram no branco final. (CARDOZO,

2008, p.91-92)

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Neste poema, Joaquim Cardozo traz um singular exemplo de

obra metapoética, pois logo nos versos introdutórios, é visível a

reflexão poética, dentro da obra poética: “Era uma página em branco, /

Em branco de papel – papel de brancos modais...” (versos um e dois,

primeira estrofe). A página em que estava começando a ser escrito o

poema, esta ainda em branco... Logo mais, na segunda estrofe, Cardozo

começa a descrever o momento em que começa a escrever: “Uma linha

de escura tinta / Nasceu sobre essa página...” Quando a tinta da caneta

começa a tocar aquela folha, agora não mais branca, interrogando- se

na terceira estrofe, sobre essa escrita, essa curva de tinta: “Era uma

curva indiscreta? /Eram os sinais do enigma? / Simulação? Efigie?”

Vindo a intensificar, mais ainda essa reflexão do fazer poético.

Em “A Página”, o autor menciona muitas vezes a brancura dessa

página, comparando - a com outras brancuras (quarta e quinta estrofe):

“Alvura de pão. Brancura! / Brancura de duro marfim, de velas

longínquas...[...]Muitas outras brancuras:/A de dentes rilhados por

ódios antigos, /A de ossadas estendidas ao sol...” E por fim finaliza esta

estrofe, quando fala no fato de todas essas” brancuras” estarem retidas,

na página, ambas de um modo geral. O poema ganha um tom além: o

concretista, em favor de seus versos seguirem com desenhos, os

contornos da escrita sob a alvura da folha. Fazendo notáveis as fortes

marcas da poesia concreta e visual, pelo seu rompimento com a sintaxe

discursiva, ou seja, aquela obra poética em que o sentido está centrado,

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na ordenação sintático-discursiva dos versos que a compõe (na sua

forma e sentido formal):

A poesia concreta, que acaba de romper as paredes da

experiência de um grupo para se tornar um

acontecimento, uma revolução, funda-se no trabalho

sobre a linguagem poética, é o fruto de pesquisas que,

partindo das conquistas válidas da poesia dita moderna

(Mallarmé, Joyce, Pound, Cummings, Oswald de

Andrade, Drummond, João Cabral de Melo Neto),

rompeu com a sintaxe discursiva, unidirecional, trazendo

em compensação para o campo da expressão poética as

estruturas pluridimensionais, criadas pela relação visual

dos elementos verbais e a exploração de suas cargas

sonoras." (DE CAMPOS, Augusto, 1978, p. 68)

A versificação segue na descrição, da delicada e fascinante

composição poética, mencionada pelo poeta como um revestimento de

sonho: “Correu entre margens de alvura, /Revestindo de sonho o senso

real.” Que faz com que o leitor e possa compreender essa descrição,

com a transcrição das figuras em relação ao momento em que a tinta da

caneta “insistia” em escrever os versos (sexta estrofe), e aquele que

representa o momento da finalização da composição o da última

imagem concreto – visual do poema.

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4.Mundos Paralelos (1970): Da Poesia Decadentista À Poesia

Experimental

Em mundos paralelos Joaquim Cardozo traz como o título do

livro sugere dois Mundos Paralelos, o primeiro a poética do

desencantamento aquela muito presente no movimento simbolista, na

qual ocorre um visão decadente da sociedade e da forma como se fazia

arte, isto desde seus propulsores na França: Charles Baudelaire (uma

das maiores influencias na poesia cardoziana) ao portugueses: Camilo

Pessanha e Antônio Nobre até no Simbolismo brasileiro de Cruz e

Sousa, período o qual segundo Antônio Candido vai de 1880 a 1922

destacando que “se poderia chamar Pós-romântico” (CANDIDO, 967:

133), caracterizado por ser o de uma “literatura de permanência” da

estética do século XIX, em que os traços singulares desta geração de

escritores seriam “o diletantismo, o purismo gramatical, o culto da

forma” (Idem, p. 136).

Partindo depois para a Poesia Experimental de 1956 que

almejava a construção de uma poética que rompesse com tradições

poéticas imediatamente anteriores, vindo a trazer rompimento do

isolamento político e o estimulo a inovação estética em vários países

(DA SILVA, 2005, p.23). No Brasil escritores do início do pós-guerra

como João Cabral de Melo Neto e Afrânio Coutinho “ficaram na linha

de fogo das vanguardas e foram combatidos também pela geração de

1956, momento da poesia experimental.” (SERRO, 2012, p.30). Em

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favor de sua aprofunda a depuração formal, que restaurava a dignidade

e severidade da linguagem e dos temas, policiando a emoção por um

esforço de objetivismo e intelectualismo.

Na fase decadentista os poemas de Joaquim Cardozo pertinentes

são aqueles comuns à sua última fase do Modernismo brasileiro,

poemas em que se percebe, no eu lírico, um profundo sentimento de

desencanto do mundo. Em “Sonetessom” Cardozo traz tal vertente

literária a partir de um pessimismo e desencantamento quanto aos

valores clássicos, visível logo na primeira estrofe, quando afirma que a

nova voz é uma imitação da voz antiga:

Sonetossom

I

Sonetossom é música – sonata –

Suíte da qual desponta o som da giga

Que o Novo a voz imita em voz antiga

E alude a um alaúde em tom de prata.

É canto inverso, divisão, cantata

Que do alto vem, do teto, minha amiga,

Onde a canção das cordas de uma viga,

Uma equação vibrante a mim relata.

Sonetossom é música, retrata,

[...]

II

Sonetossom é cor também... também...

Jalne sutil, rude açafrão, dossel

Que do animal, da planta, a cor contém:

Composição de púrpura e pastel.

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[...]

Sonetossom, também, de cor brasil

Tingido está, de índigo, de anil. . .

Cores que a um povo deu prazer perdido.

Branco de Kaolim; de jenipapo

Preto retinto: mínimo farrapo,

De morta luz, bem sei, constituído.

[...] (CARDOZO, 2008, p. 298).

No poema, há também uma escolha de um vocabulário mais

sofisticado, do que os dos demais poemas até aqui vistos, fazendo nesta

“arte desencantada”, com isto, uma relação de oposição entre “o novo”

e “o velho”, o moderno e o clássico e a quantidade de cores da segunda

parte que ornam em excesso, propositalmente, o poema. Intuito

revelado nos dois últimos tercetos do poema, que nos quais defende a

nacionalidade de sua literatura: “Sonetossom, também, de cor brasil

/Tingido está, de índigo, de anil...”. Acerca dessas implicações da

sociedade Moema D’Andrea nota:

[...] que o poema é aproximadamente dos anos setenta

(ou imediatamente anterior) e o desencanto do poeta não

descarta nem o processo econômico cumulativo, que

vem da Colônia (“Preto retinto: mínimo farrapo”), nem

do contexto especioso das décadas militares, com seu

aparato desenvolvimentista. Por último, note-se também

que toda a gama de cores em que o poema se equilibra,

declina nas estrofes finais, tingindo-se de branco

desbotado, que o “Kaolin” se encarrega de polir

mostrando a ilusão do metal inferior, até atingir “a morta

luz”. (D’ANDREA, 1993, p. 185).

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No decorrer do livro Joaquim Cardozo chega à percepção

própria e exata da poesia experimental de 56, perceptível, em especial

em “Poemas Sistema” parte de Mundos Paralelos dedicada à João

Cabral de Melo Neto, um dos propulsores dessa técnica poética no

Brasil, como já foi mencionado, e aquele pelo qual Cardozo cultivava

uma amizade distinta. Vemos essa poesia experimentalista de forma

irreverente no poema intitulado: “O Um e a sua Intimidade”. No qual

Joaquim tenta por meio de reflexões metafísicas e constatações físicas

e matemáticas definir o amigo João:

O Um e a sua intimidade

No Um está o ser isolado e

está o Universo.

Não é naquele ser, porém, nem neste Todo

Onde reside a sua intimidade

[...]

A sua intimidade é infinita singularidade

Do só, a infinidade da concreção do ser

É o ser: SER= UM

SER

[...]

Oscila eternamente, entre+1 e -1.

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[...] (CARDOZO, 2007, p. 303-304)

No poema há notável semelhança de recursos estéticos, com os

de “Poema Para Uma Voz e Quatro Microfones” e “Análise dos

tambores do Ruído”, em que através desses recursos de cunho futurista

o engenheiro-poeta busca inovar sua forma de expressão poética, fato

que se deve também a poética experimentalista, esta muitas vezes

fundida com a poesia concreta, como podemos ver em “O Um e a sua

Intimidade”, que através das linhas delineadas na quarta estrofe, bem

como das palavras em caixa alta (além das expressões no interior do

texto iniciadas em letra maiúscula como “ Todo” e “Um” ) o poeta

busca exprimir de forma real a “operação” matemática e metafísica em

busca da intimidade do “Ser” em questão no poema: João Cabral de

Melo Neto.

Com isso é visível que tanto os concretistas quanto os da Poesia

Experimental almejaram a construção de uma poética da ruptura com

tradições poéticas imediatamente anteriores. Onde propunham um anti

- discurso o qual de acordo com Sousa e Ribeiro (2004): “parecia

pretender transgredir, antes de mais, um secular ‘culto dos conteúdos’

e de toda a filosofia de arquétipos que lhe serviu de pano de fundo para

propor uma revolucionária e provocatória poesia ‘de formas’.”

(SOUSA; RIBEIRO, 2004, p. 30.). Poética revolucionária na qual

Cardozo demonstra uma notável afinidade com os números, formulas e

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formas isto devido ao fato, à sua profissão de engenheiro civil, fazendo

o leitor buscar a constatação da definição do “SER”, é certo que de

forma metafísica, mas esta subsidiada pelo raciocínio matemático, em

particular quando afirma que este tem oscilação entre “+1 e -1” na

última estrofe.

5.Trivium (1970): A Intersecção Entre Poesia, Ciência E Mito No

Ápice Modernista Cardoziano

O termo “trivium” que intitula este último livro publicado em

vida de Joaquim Cardozo é uma das três ou quatro expressões máximas

da poesia no Brasil. Essa expressão é atribuída ao ponto de intersecção

de três caminhos na qual se encontram seres ou coisas de uma mesma

linguagem: a linguagem poética, a ciências e a relação mítica, que

encontramos em a” Visão do Último Trem Subindo ao Céu”, e ainda

diz respeito, inclusive “às três artes liberais constituintes da primeira do

ensino universitário na Idade Média: Gramática, Lógica e Retórica”.

(LEAL, 2008, p. 16). Nesse livro o engenheiro poeta alcança o ápice da

poesia moderna experimentado em Mundos Paralelos, como foi

apresentado no capítulo anterior. Dentro disso, no poema há a

possibilidade de verificar uma constituição de uma espécie de

assimilação de linguagem matemática e de conceitos científicos, na

composição dos versos, onde especificamente “o poeta faz uma

aplicação poética da Teoria da Relatividade ao trem, como meio de

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transporte no espaço e no tempo.” (SERRO, 2012, p. 75), além dos

recorrentes símbolos e até operações matemáticas, que podem ser

vistos formalmente ao longo dos versos, que dão ao poema um inovador

teor Futurista semelhante ao de” Um Ser e sua Intimidade”. Vejamos:

Visão do Último Trem Subindo Ao Céu

Visão do último trem subindo ao céu

Tocando um sino de despedidas

– Saindo vai da última estação –

Através da noite vai... da noite iluminada

Pela luz do casario; vai, do povoado,

Passando ao longo dos quintais.

Pelas janelas do trem os passageiros

Espiam os afazerem das pessoas

[...]

Para a Viagem do sono através

do sono

< através

<

da noite

da noite

[...]

O trem noturno passa.

[...]

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II

Pouco e pouco, mais pouco, pouco a pouco

Ao trem se atrela, ao trem ligando o engate, e os

[freios

Ajustando ... ao trem disposto ao longo

[...]

Prontos estão os que vão partir / viajar.

Os que vão – flor – subir / perder -se.

Os que vão – flor –florir, murchar.

Homens, mulheres e meninos

[...]

fez

Já estão nos seus lugares. E a noite se

completa

faz

O tem vai partir, se identificar na fuga.

Passar, Partir? Passar?

Levando o seu jardim ao longo dos jardins

Dos quintais no povoado,

Ao longo das janelas iluminadas do casario

O trem vai partir

Para alcançar, conhecer o mistério do céu.

[...]

X

Pois tudo que é vivido é apenas sabido

E tudo que é sabido é apenas sonhado

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Saber do saber físico

Sonho do sonhar eterno

– Termo da vida – matéria; região dos sonhos

Sonho

Sonho do sonho

Sonho do sonho do sonho

.......................................... (Tudo é sonhado)

[...]

Viver é saber, sentir, sonhar.

[...] (CARDOZO, 2008,

p. 138- 165)

Nisso ocorre a possibilidade de observar logo no início

do poema entre as linhas 1 e 137 uma forma de ritual precedente

a entrada no sono, não de maneira explicita, mas a partir de uma

sintaxe encadeada de imagens, através de expressões com

significantes remetentes ao contexto do adormecer, como, noite,

sono sem esquecer metaforizarão de sono na expressão viagem,

notável especialmente na linha vinte e sete: "Para a viagem do

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sono... " através da noite. Acerca desse encadeamento sintático

de imagens Dantas (1985), explica:

Tal como num roteiro de cinema, a narrativa obedece a

uma sintaxe encadeada em função das imagens. Narrativa

sincopada, no ritmo das imagens que se sucedem como

tomadas de um sequência. Tudo é presente no aqui-e-

agora de cada imagem que se liga às outras pelo fio

temático da viagem, que é o passar do trem. (DANTAS,

1985, P.13)

Isto dentro de um contexto onírico que proporciona a continuação

entre o físico e o mítico, por meio do psíquico. Mas um onírico o qual

tem representação em uma contextualização carregada de

epistemologia cientifica, como bem disse Serro (2012). Acerca desse

plano de fundo que o eu lírico utiliza para construir o poema,

(DANTAS, 1985, p.16) defende que esta formação do poema não é

realizada apenas em favor de um conteúdo temático (o sonho), porém

através de uma linguagem-objeto, observando certos aspectos relativos

à Teoria da relatividade de Newton e principalmente àqueles que dizem

respeito à Metapsicologia de Freud, para explicar funções exclusivas

do funcionamento do inconsciente humano.

Linguagem através da qual é representada essa "viagem", onde

o sonho se comunica com o real, enquanto o trem percorre a linha que

é o verso, e no seu caminho muitas vezes o verso se quebra, se

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desconstrói, pela falta correspondência cronológica do sonhar, mas que

se reconstrói através dessa linguagem-objeto, mantendo um sentido e

uma direção. Por conseguir por meio dessa forma de comunicação um

equilíbrio entre relação inconsciente do sono com a noção consciente

de tempo, quando determina cronologicamente seu percurso desde o

momento da partida do trem ao céu: “– Saindo vai da última estação –

/Através da noite vai... da noite iluminada", a sua chegada à região dos

mortos na linha 473, até pouso na região dos sonhos: "Pois tudo que é

vivido é apenas sabido /E tudo que é sabido é apenas sonhado" (linha

756). Tendo em vista, que esses processos do sistema Inc. encontram -

se fora do tempo e necessitam relacionar- se com o real, "isto é, não

aparecem ordenados cronologicamente, não sofrem modificação

alguma pelo transcurso do tempo e carecem de toda uma relação com

ele. " 5

Nessa narrativa desenvolvida em torno da "viagem" do trem, que

já traz consigo conotações mitificadas. O trem obedece, em todo o seu

rigor, aos postulados científicos de Einstein, durante o seu caminho nas

geodésicas, de modo que o espaço euclidiano6 não tem mais

5 Sigmund. Freud. Metapsicologia. (Rio. Delta, s. d. ), p.469.

6 Precisamente um espaço vetorial real de dimensão finita munido de um produto

interno.

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consideração, isto sem “quase referir- se à Teoria da Relatividade, ele

a expõe com o reconhecimento do mais completo astrofísico". (LEAL,

2008, p.20). Cardozo no seu consciente papel de poeta tem o saber de

que o trem, como objeto material, jamais iria conseguir alcançar a

velocidade da luz, mas traz uma função fabuladora nos versos através

da linguagem-objeto nesse contexto onírico, no qual tempo e espaço

não são realidades divergentes. Relação espaço - temporal sempre

correspondente à imagem do trem, o trem - tempo, tempo - trem,

provocando um descarrilamento de usa imagem, como explica Lima

(2008):

[...] a imagem do trem-tempo, do tempo-trem, ao

provocar o descarrilamento da imagem do trem moderno

no espaço, provoca também uma possibilidade de

interferir no museu de cabeças da história como um

desejo, um rumor vigoroso, uma graça, um gesto ao

désouvrement entre peso e leveza, sem marcas e para

cumprir a desterritorialização. (LIMA, 2008, p.223)

Por fim, na chegada à região dos sonhos Cardozo reflete: " Viver

é saber, sentir, sonhar." (Linha 597), onde com base na linguagem -

objeto adotado ao longo do poema, na qual a partir dessa

metapsicologia freudiana, busca uma forma de relação entre os

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processos do sistema Inc. neste caso o "sonhar" os com os processos do

sistema Cc. o "saber", sem abrir mão do sensacionismo moderno de

Pessoa e Almada - Negreiros, o " sentir" o qual é encadeado no verso

como um meio de equilíbrio entre o consciente e o inconsciente

psíquico. Esta ênfase dada ao sentir aproxima " A Visão de o Último

Trem Subindo ao Céu” à "Passagem das Horas" de Álvaro de Campos,

dínamo do sensacionismo moderno e do Futurismo em Fernando

Pessoa: " Estiver, sentir, viver, for."(PESSOA, 2003, p.14). Além de

sua larga extensão semelhante ao do poeta português. O que contribuiu

para o teor moderno- futurista do poema de Cardozo, que alcança sua

mais aguçada expressão, que "parte" como um trem rumo a uma

literatura universal na poética pernambucana morder na, seja pela

precisão ao fazer - se essa tríade entre poesia, ciência e mito, ou, pelo

total desprendimento do universo temático regional do seu estado.

6. Conclusão

Joaquim Cardozo como engenheiro civil e mais tarde escritor,

foi poeta construtor um engenho poético único, na produção

modernista. Desde uma lírica calcada em temas regionais e ainda pressa

à valores estéticos clássicos, porém sem esquecer de engajar-se na

realidade de sua sociedade, vindo a expressar logo de início uma escrita

compromissada ou engaje. Nesse sentido, adentrando de forma

perspicaz no ideal de renovação proposto pelo movimento moderno,

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com elementos formais e temáticos novos, bem como pela utilização

de recurso da poesia concreta e visual, da metapoesia, do Futurismo e

do sensacionismo de Fernando Pessoa, além dos meios científicos

empregados na fase final de seu construto lírico, que remetem a uma

escrita de caráter universal e amadurecida em totalidade em

comparação com seus escritos iniciais.

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