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JOGOS NA HORA DA SESTA Por Roma Mahieu Tradução: Eduardo San Martin 1

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JOGOS NA HORA DA SESTAPor Roma Mahieu

Tradução: Eduardo San Martin

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CENA 1

(A ação se desenvolve durante a sesta, num dia de muito sol. Num canto de um parque ou uma

praça. Ao fundo, um muro cinza. No centro, um banco de pedra sem encosto. À esquerda do

banco, uma árvore da qual pedem as cordas de um balanço. O balanço deve estar preso com

altura suficiente para que, quando o ator se balance dê a sensação de estar sobre a platéia.À

direita do banco, na borda do cenário, um quadrado de areia .Luz intensa. As personagens são

interpretadas por adultos que em nenhum momento devem fazer-se crianças, mas manter uma

interpretação adulta e sóbria. A cenografia deve ajustar-se às dimensões destas crianças. Ou

seja, as cosias devem ter um tamanho maior que o comum. Ao abrirem a sala, se escuta o canto

dos pássaros, que é interrompido de tempos em tempos pelo brinquedo de guerra: rrr, ta,

tátátá...Ao subir o pano, a cena está com sol a pique. Dentro do quadrado de areia Diego brinca.

Está ajoelhado e imita com as mãos o vôo dos aviões em combate, o avanço dostanques,

enquanto sua voz imita o barulho das bombas, explosões, ruído de motores, etc...Cada vez que

um avião é abatido, Diego cai, levantando com o impulso de uma chuva de areia que

eventualmente pode cair da platéia. Parece estar em transe).

Diego – (Atirando) Cuidado... há mais inimigos à vista. Se atirem no chão e avance a formação de

tanques para cobrir a retaguarda... (Atirando) Outro avião. Abandonar os tanques. (Atirando) É uma

ordem.

Susana (em off) – Sim, meu general. (Entra em cena Susana).

Diego – Aí vejo um bastardo inimigo. A ele! (Atirando) Ai, estou ferido... Me feriram... Ai... Estou

sangrando... Estou empapando esta terra. De cada gota do meu sangue surgirá um soldado novo

para vingar o Valente Desconhecido. E meus olhos olharão seus olhos e sentiram terror de olhá-los.

Oh, covardes. (Susana ataca Diego, que se defende).

Diego – Não seja chata... não vê que isso machuca?

Susana – Deixa eu brincar contigo?

Diego – Tá bom... mas não cria confusão.

CENA 2

Alonso (em off) – Hei, me empresta o... (Em cena)... capacete. Ah, vai... me empresta.

Andres – Pára de encher.

Alonso – Depois eu te empresto a minha bicicleta...

Andres (cortando Alonso) – Não enche o saco... a minha é maior que a tua e ainda tem

campainha cromada.

Alonso – Ah, vai...

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Andres – Você é muito pesado... bem... vai... (Acomoda o capacete em si mesmo).

Alonso – Mas depois me empresta o capacete.

Andres – Não me desacate soldado... Deitado. De pé. Deitado. De pé.

Alonso – Hei, tô cansado...

Andres – Não responda soldado. De pé. Bom. Então jura, em nome da pátria e da bandeira

nacional, ser um soldado fiel?

Alonso – Sim, eu juro.

Andres – Levanta o braço, imbecil, senão não vale.

Alonso – Sim, eu juro. Me empresta o capacete?

Andres – Como você enche o saco... meta é meta. Por acaso você não sabe que isto se

conquista no campo de batalha? Vai brincar no outro lado.

Alonso – Não quero, pô. E meu pai me disse que se você me mandar embora de novo, ele vem

aqui e te quebra a cara. (Andres atira em Alonso) Meu pai disse que se você me bater de novo, ele

chama a polícia e leva você pro Juizado de Menores.

Andres – Diz pro seu velho, que se eu contar pro meu velho, ele vem aqui e transforma o seu em

mingau. E depois junta com uma colherinha... Olha, o Diego tá aí. Vai chamar ele.

Alonso – Não tenho vontade.

Andres – É um soldado ou não? E se você não gosta, rapa fora. A fila anda...

Alonso – Tá legal. Missão cumprida. O General Andres tá te chamando para uma missão

secreta... Hei, Diego, vem brincar de soldado.

Diego – Você não trouxe a bicicleta?

Alonso – Não me deixam. Vem! Vamos brincar de soldado. Andres tem um capacete novo. Um

de verdade, de guerra. (As crianças brincam de metralhar)

Andres – Cães amarelos. (Andres machuca Alonso)

Alonso – Filho da puta... tomara que você morra... pai... você já vai ver, seu babaca...

Diego – Não começa, ele é menor que você.

Alonso – Você não vai mais andar no carro do meu pai.

Andres – Eu te perdôo a vida, presuntinho... mas não vem pedir pra brincar se você não agüenta

o tranco... filhinho da mamãe... toma, põe o capacete. Eu te empresto. (Andres o acomoda em

Diego).

Alonso – Não vai mais pedir para andar no carro do meu pai?

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Andres (cortando Alonso) – Eu não tô nem aí pro carro do seu pai. Tem um motor que não corre

nada... qualquer dia bate... vai ficar virado aí numa curva... o carro que meu velho vai comprar, sim,

que corre pra caralho.

CENA 3

(Cláudia surge).

Andres – Vai correr a duzentos por hora... assim... e eu também vou guiar. Eu vou ser o corredor.

Vou ser sim. Vou correr mais rápido que todo o mundo. O carro que meu velho comprou pra mim é

vermelho e eu vou correr de capacete e tudo. Dá meu capacete. (Arranca, bruscamente, o capacete

da cabeça de Diego).

Diego – Pára, pô.

Alonso – É mentira.

Andres – É verdade.

Cláudia – Não é verdade.

Andres – Gorda, gordona, sapo inchado. Por que você não arrebenta? (Andres bate na irmã.

Seus doces caem e são comidos pelas outras crianças. Claúdia olha exasperada)

Cláudia – Olha, tão roubando as minhas balas. Tudo culpa sua... vou contar pra mamãe... você

vai ver o que ela vai fazer...

Andres – Olha aqui, Maria Mijona. Se você abrir a boca, é melhor não se deitar de noite, porque

eu juro que arranco os seus olhos com um alfinete. Por Deus. Não me dá a minha parte e tudo bem.

Come sozinha as balas que sobraram.

Cláudia – Tá bom.

Alonso – Me dá uma?

Cláudia – Toma.

Diego – Eu também quero.

Cláudia – Toma você também.

Susana – E pra mim, não tem?

Cláudia – Não.

Susana – Por que?

Cláudia – Porque não querem que eu ande contigo.

Susana – Eu não tô nem aí.

Cláudia – Porque a sua mãe é uma mulher da rua.

Susana – Não se mete com a minha mãe!

Cláudia – E você vai ser igual a ela. (As duas brigam. Andres rende Susana)

Andres – Pede perdão pra minha irmã.

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Cláudia – A minha mãe sabe o que diz. (Susana morde a mão de Andres)

Andres – Esta raivosa. Deixou as marcas dos dentes na minha mão. Olhem, olhem.

Cláudia – Põe mertiolate.

Alonso – O que é uma mulher da rua? (Susana ataca Alonso) Pára... que foi que eu te fiz?

Andres – Não vê que ela tá com raiva? Vamos ter que mandar ela pro canil.

Cláudia – Mulher da rua é uma mulher que tá sempre na rua. Mora na rua. Não faz comida, nem

nada... não prega botão, não faz nada e anda sempre suja como ela... (Susana ataca Cláudia) Ai...

Alonso – Minha mãe sempre sai pra rua e é Maria quem faz tudo.

Andres – Uma vez o meu velho disse pro verdureiro, quando viu a mãe da cadela raivosa

passando: essa aí é mais puta que galinha. É prato meu há muito tempo... Hei, ainda tem maçã na

geladeira?

Cláudia – Vai lá e olha...

CENA 4

Andres – Que calor tá fazendo...

Alonso – Meu pai é um morto de frio... por isso vai pro quarto da Maria e fecha a porta por causa

da corrente de vento... quando corre vento ele sente frio. (As crianças começam a cantar músicas)

Ele sempre fecha a porta com a chave... sempre chaveia, toca o telefone, a campainha e nada...

Cláudia – E por que você não atende, seu burro?

Alonso – Porque a porta do meu quarto também fica fechada à chave. Fica fechada... fechada...

(As crianças voltam a cantar)

Diego – O seu velho deve tá louco...

Alonso – Eu já perguntei por que ele briga com a Maria na cama. Ele puxa os cabelos dela assim,

assim, assim... Eu uma vez disse que ia contar tudo pra minha mãe... ele me disse que se eu

contasse, ele ia embora e nunca mais voltava... e agora fecha a porta à chave... (Cantam) Tem frio.

Andres – Meu pai é integralista... eu também sou integralista. (Voltam a cantar, menos Susana)

CENA 5

(Entram Sérgio e Carolina. Estão de mãos dadas. Andres, ao vê-los, canta uma marcha nupcial)

Cláudia – Criança não pode ser noivo, criança não pode casar...

Andres – Cala a boca, Maria Mijona. Silêncio. Respeito nesta casa de Deus. Parem!

Diego – Não enche o saco...

Andres – Bestalhão... ajoelhados. E você? O que é que você tá esperando, a carruagem?

Cláudia – Eu não me ajoelho.

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Andres – Então vai embora daqui, Maria Mijona...

Cláudia – Eu só vou quando me der vontade. E você não é ninguém pra mandar em mim... olha

que eu conto tudo pra mãe... seu idiota...

Andres – Você já encheu bastante, sua bolha... Eu parto os seus beiços se você não ajoelhar...

Cláudia – As minhas meias vão sujar e depois quem apanha sou eu...

Andres – E vai apanhar de novo se não me obedecer... Anda! (Andres ajoelha a irmã à força) E

agora cala essa boca... Fica quieta ou eu te arrebento com um ponta-pé. Esse templo é testemunho

da união deste casal feliz. Dá a mão. Agora são marido e mulher. E nada pode separar vocês.

Cláudia – Que a morte separe vocês...

Andres – E nada pode separar vocês. Senhor Sérgio Casan, aceita como esposa a senhorita

Carolina Pinti? Vamos, responde...

Sérgio – Bem...

Alonso – Diz: “Sim, aceito”.

Sérgio – Bem, “sim, aceito”.

Andres – Senhorita Carolina Pinti, aceita como esposo o Senhor Sérgio Casan?

Carolina – Aceito.

Andres – Que Deus abençoe vocês, amém.

Cláudia – Não vale, não vale... faltam as alianças. Se não tem alianças não estão casados.

Andres – Cala a boca.

Cláudia – A minha mãe usa aliança.

Andres – Mas papai não usa... o que é que tem? Façam o sinal da cruz e rezem em silêncio.

Agradecemos a Deus o pão nosso de cada dia. Amém. Agora beija.

Todos – Beija, beija, beija... (Inicia-se um jogo erótico)

CENA 6

(Julinho surge com uma caixa de papelão na mão e entra no jogo erótico)

Cláudia – Animal... bruto... por que não vai pro hospício? Seu tarado... estúpido... idiota... bruto.

(Julinho fica sozinho no chão e se retorce numa masturbação solitária. As crianças ficam observando)

Andres – Ficou raivoso... De repente espuma pela boca...

Alonso – Está morto.

Carolina – É?

Sérgio – Olha, ele se mexeu...

Andres – Devia ir pro circo...

Diego – Mas que sacana... E com esta cara de idiota...

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Susana – Tem bala?

Julinho – Estas são pra depois do almoço, para a noite. Chupo na cama assim minha mãe não

vê... Vou escondê-las bem... bem...

Carolina – Julinho, por que você ficou doente aí no chão?

Susana – Julinho não está doente. (Andres mexe na caixa de papelão de Julinho)

Julinho – Não mexe que é meu... é meu... (Andres pega a caixa e Julinho o segue, até desistir)

Carolina – Está chorando...

Alonso – Não chora, Julinho...

Sérgio – Tá tudo bem...

Andres – Toma aí... Tá aqui! Você tava rindo, ué?! Chorão... viadinho, não tem vergonha?

Julinho – Protejo meu filho, protejo meu sol, protejo um pedaço, do meu coração...

Susana – O que é que tem aí dentro?

Julinho – É meu...

Susana – Deixa eu ver... deixa...

Julinho – Tá legal, mas ele tá dormindo... não faz barulho que ele acorda.

Susana – Um filhotinho... um filhote de pardal... onde você encontrou ele?

Andres – Um pardal, deve ter piolho.

Cláudia – Vai morrer de fome... não tem comida.

Susana – Me dá uma bolachinha... e eu faço umas migalhas molhadas para ele comer.

Cláudia – Não dou nada.

Susana – Me dá um pedacinho só... não vê que ele é tão pequenininho.

Cláudia – Não dou nada... Por que você não vai pra casa e pede pra sua mãe? Hein? (Susana

arranca a bolsa de Cláudia e atira as balas e bolachas em todas as direções)

Susana – Toma... Toma... e toma... Espera aí que eu acho uma minhoca pra ti... é bem melhor.

Julinho – Quero uma bala... quero uma bala.

Diego – Gente, vamos procurar minhoca pro pardal.

Carolina – Que pardal?

Diego – O pardal do Julinho...

Sérgio – Ele está escondido dentro da caixinha... (As crianças imitam o vôo das aves e

borboletas. Andres imita a caçada de um pássaro)

Andres – Aí vai ele, ali vai ele... pum... caiu... (Diego e Susana trazem algo em suas mãos)

Sérgio – Ele não tá comendo...

Diego – Deve ser porque ele ainda é muito pequeno...

Carolina – Ele não tem mãe?

Susana – Ele tem é medo.

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Andres – Sofre de diarréia intestinal e vai arrebentar como uma harpa velha. Hei, Julinho. Julinho,

acorda seu besta... por que você não canta pra gente como um artista? Vamos, anda... por acaso

você não canta melhor do que o Roberto Carlos?

Julinho – Sim.

Andres – Não seja bobo... vamos, canta... Julinho, Julinho... (Julinho canta e é aplaudido)

Alonso – Canta outra! Vamos lá, canta mais uma, vai...

Andres – Chega. Pára! Ninguém merece. Parece um disco arranhado... me enche a porra do

saco... Por que você não dança? Vamos, Julinho... dança, dança...

Julinho – Quero brincar do que você tá brincando...

Cláudia – Tarado...

Julinho – Eu quero brincar...

Andres – Olha, aí vem a múmia...

Julinho – Não, a múmia não...

Susana – Pô, não seja chato.

Andres – Por que você tem que se meter aonde não foi chamada? Se me der vontade eu te

amasso os beiços com um soco...

CENA 7

Diego – Aqui chega o Mascarado Vermelho para derrotar a Múmia Invencível... Nenhum mortal

conseguiu vencer seus terríveis e venenosos tentáculos. Múmia malvada... hoje o Mascarado arrisca

a vida pelo bem da humanidade. (Todos lutam, cada qual com seu herói predileto. Susana e Julinho

ficam de fora).

Alonso – Vamos brincar de violência...

Andres – Vamos... (Batalha feroz. Alguns desistem de brincar. Se forma um montículo humano,

Susana pula e cai em cima. Todos terminam exaustos, jogados ao chão).

Cláudia – Você vai ter que se entender com a mamãe quando ela te ver assim...

Andres – Cala a boca, sua anta... Esta menina é uma pateta... sabem o que ela faz de noite na

cama? Faz xixi na cama... essa baita égua...

Cláudia – Mentiroso... seu chato mentiroso... isto é mentira, gente... é mentira.

Andres – Faz xixi e molha todo o colchão. A coroa tem que colocar ele na janela, pra secar...

cheira a podre... agora compraram um plástico... quem sabe não resolve...

CENA 8

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Diego – Uma vez, no interior, na casa do meu avô, um cavalo apodreceu no meio do mato com

as patas enredadas... meu avô que contou. Parece que uma onça meio que o comeu... tinha um fedor

de podre... de longe se sentia o cheiro... tinha sido um bom cavalo... era meio cinza com manchas

brancas no lombo manso. Me deu raiva... comia pãezinhos de açúcar na minha mão... e tinha o

focinho molhado...

Alonso – Você chorou muito?

Diego – Não seja burro... claro que chorei.

Andres – Chorou o netinho do vovô...

Carolina – Meu cachorrinho também morreu... mas ele foi pro céu.

Andres – Olha só, gente... como é idiota... foi o lixeiro que levou seu cachorro, sua pirralha...

Carolina – Mentiroso... ruim... mentiroso... foi pro céu... foi minha avó que me disse.

Andres – A sua avó? Olha... não dê ouvidos a sua avó. As velhas são todas malucas... inventam

cada coisa...

Carolina – Minha avó não inventa nada... ela viu quando ele foi pro céu... ela viu.

Andres – Está bem. Tá bom... tá certo... foi pro céu... escuta... não ouve como ele late?

Carolina – Mentiroso...

Andres – Ah, vamos... quem entende as mulheres?

Sérgio – Meu tio João morreu e nunca mais veio na minha casa...

Andres – Outro! Como é que ele vai vir na sua casa, se ele morreu, se acabou?

Sérgio – Como se acabou? Meu tio tem uma lancha toda azul e tem motor, quando fizer calor ele

vai me levar na lancha e me ensinar a nadar.

Susana – Onde é que tá?

Andres – Quem?

Susana – O tio do Sérgio. Onde é que ele tá?

Andres – Como é que eu vou saber? Ele tá no cemitério...

Cláudia – A minha mãe diz que os bons vão pro céu e os maus pro inferno. No inferno, eles são

fritos numa frigideira e fincados num garfo. O teu tio era muito ruim?

Sérgio – Meu tio é bom. Vai me ensinar a nadar e dirigir a lancha. E um barco, também. É

mentira, ele não foi embora.

Cláudia – Porque ele foi pra selva caçar leões. Ele foi e vai trazer um pra mim. Vai trazer um

macaco também.

Alonso – A Maria me disse que quando alguém morre, vira alma penada... ela disse que a alma

vem de noite e puxa a gente pelos pés.

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Susana – O que é alma?

Alonso – Não sei... uma coisa ruim...

Diego – Alma é gente depois de morta. É igualzinha, só que é transparente e tem buracos nos

olhos... É como um fantasma, só que não é branca.

Susana – Por quê?

Diego – Talvez para andarem tranqüilas pelos campos... quando as corujas cantam, nas noites

sem lua, elas ficam por aí dando voltas e voltas... meu avô disse que é tudo bobagem isto da terra

estar cheia de mortos... ele ficou brabo quando eu falei... bateu o pé no chão, levantou um monte de

pó e calou a boca... eu me caguei... meu avô disse que é ignorância ter medo dos mortos... é com os

vivos que temos que ter cuidados.

Susana – Como é que você sabe que as almas andam por aí dando voltas e voltas?

Diego – A gente escuta elas quando o vento sopra...

Susana – Por quê?

Diego – Não sei... deve ser para brincar. (As crianças imitam as almas e depois vários animais.

Tudo se transforma num atropelar-se mutuamente. A brincadeira acaba com os gritos de Cláudia).

Cláudia – Mal educados... brutos... estúpidos... bestas... tarados... vou contar pra minha mãe.

CENA 9

Sérgio – O pardal comeu a minhoca. Não tem mais minhoca... Dá pra mim Julinho? Julinho... Hei,

vem cá... dá o pardal pra mim, Julinho...

Julinho – Não, é meu.

Andres – Olha que a múmia vem aí...

Carolina – Deixa ele em paz.

Alonso – Maria diz que a alma penada vem me buscar se eu não obedecer ela.

Andres – Tá bom... então não fode a paciência, porra... ela te buscou alguma vez?

Alonso – Não... de noite, eu me tapo com a colcha e ponho a cabeça debaixo do travesseiro. A

Maria é má.

Cláudia – Vamos brincar de estátua?

Andres – Não seja besta... já te disse que é brincadeira de bichinha e tarado.

Cláudia – Por que a gente tem sempre que brincar do que você quer?

Andres – Porque eu sou o capitão. Por isso. Eu mando aqui. Quer uma prova? Soldado, revista

de armas!

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Page 11: Jogos... TEXTO

Alonso – O quê?

Andres – O que pode ser, imbecil? Reviste todo mundo pra ver se eles têm um revólver

escondido. Como naquele filme. Hei, vamos com isso! Assim não... seu tarado... olha e aprende com

o papai aqui... Não encontramos nada... eles devem ter escondido em algum lugar... esses hippies

são todos iguais. Sujos e mentirosos. Vamos ver você, onde escondeu?

Sérgio – Pô, pô... isso dói...

Andres – Covardes... o que vocês querem? Que eu faça cosquinhas? Fala, onde esconderam?

Diego – Pô... estamos brincando, não fica querendo mandar em tudo, ainda mais ele é o menor.

Andres – Ele é cabeludo.

Susana – E o que é que você tem a ver com isso?

Andres – Olha... é melhor você ficar calada ou eu te expulso daqui.

Susana – A mim ninguém expulsa.

Andres – Te expulso se me der vontade...

Susana – A praça é de todos...

Andres – Menos para os vagabundos...

Susana – Eu não sou vagabunda.

Andres – E o que é então? Parece uma lata de lixo ambulante...

Susana – Lata de lixo é a sua avó... seu imbecil. (Os dois brigam. Susana morde).

Andres – Bruxa degenerada... filha de uma puta... eu faço te levar em cana. (Julinho repreende

Andres) E você, que bicho te mordeu?

Julinho – Mau... mau... mau... você é ruim. Não gosto de você.

Andres – E eu com isso? Vai pro hospício, aberração... Vai, antes que eu chame um enfermeiro

pra te meter numa camisa-de-força... ele vai te dar querosene pra beber e depois vai te colocar fogo...

(Andres às gargalhadas) Tarado... dez vezes tarado... olha que a múmia vem aí...

Julinho – Mãe... mãe... mamãe... mãezinha...

Carolina – Deixa ele em paz...

Sérgio – Não vê que ele tá louco da cabeça?

Alonso – Ele tá com medo... Você não vê que ele tem medo?

Andres – E você, mosquito? Por quê é que você tem que se meter? Alguém te convidou, por

acaso? Mete o dedo no cu, seu porra.

CENA 10

Cláudia – Mamãe disse pra eu não brincar com ela.

Andres – Cala a boca...

Cláudia – Quem mal anda, mal termina.

Andres – Quer que eu mude a sua cara de lugar? (Andres faz exercícios militares)

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Alonso – (A Andres) Me empresta o capacete? Só um pouquinho... me empresta...

Sérgio – Meu tio vai me dar um igual. (Alonso e Sérgio abandonam o exercício de Andres, que

continua sozinho a sua ginástica).

Carolina – Vamos brincar de estátua? Vamos brincar de estátua... não seja ruim...

Sérgio – Tá legal... Hei, vamos brincar de estátua?

Alonso – Tá bem... eu sou o primeiro. Diego, vem brincar também... ah, vem...

Diego – Tá...

Cláudia – Eu compro.

Carolina – Eu falei primeiro.

Cláudia – Eu compro. Se não gostou, não brinca.

Carolina – Tá bom, mas eu falei primeiro.

Cláudia – Faça fila. (Andres entra na fila. Alonso começa o jogo)

Alonso – Senhoras e senhores...

Andres – O que é que você pensa que tá fazendo?

Alonso – Eu começo...

Andres – De onde é que você tirou essa? Desce daí, anda...

Alonso – Você disse que não ia brincar...

Andres – Desce ou eu te derrubo com um tiro... Senhoras e senhores. Aqui estamos reunidos

para este extraordinário e fantástico leilão de estátuas. As estátuas mais famosas do mundo...

únicas... formosas... perfeitas... a que tiver o menor defeito será destruída... este é o juramento de

Fadul, o mago do Oriente.

Cláudia – Senhor mago, eu sou uma dama distinta e venho das terras distantes para comprar

estátuas famosas. Mas não vejo nenhuma...

Andres – Oh, amável senhora... por que não vai dar uma voltinha por aí, enquanto eu tiro as

estátuas das caixas?

Cláudia – Como preferir.

Andres – Que os deuses magos me protejam... Schazzannnmmm... Obrigado, oh, poderoso.

Cláudia – Vejo que o senhor já desempacotou as estátuas...

Andres – Sim, amável senhora...

Cláudia – Posso dar uma olhadinha?

Andres – Será um prazer, querida senhora...

Cláudia – Fico com esta.

Andres – Muito bem, minha querida senhora...

Cláudia – Quanto custa?

Andres – Mil reais.

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Cláudia – Tanto? Não é um pouco cara?

Andres – Mas é um exemplar único, querida senhora...

Cláudia – Não pode me fazer um descontinho?

Andres – Por saber que é cliente da casa, faço por quinhentos... que é que se vai fazer...

Cláudia – Quando a entrega?

Andres – Antes do anoitecer.

Cláudia – Está bem... até logo...

Andres – Que passe uma boa tarde, querida senhora... Schazzannnmmm...

CENA 11

(Alonso desequilibra e cai)

Andres – Você pecou. Agora espere o castigo. Réu.

Julinho – Réu.

Andres – Cala a boca ou aparece a múmia... Réu, esta corte decidiu que você deve ser castigado

pelo pecado que cometeu. Aceita a culpa? (Alonso concorda com a cabeça) Você aceita o castigo?

Alonso – Aceito e obedeço.

Andres – Esta corte decidiu que você deve pegar com as mãos o pardal que está nesta caixa e

apertá-lo até ele morrer...

Alonso – O quê?

Diego – Isso é mentira. (As crianças se dispersam).

Andres – Eu sou o juiz e todos vão me obedecer. Eu mando aqui. Pegue o pardal e mate ele.

Alonso – Não.

Andres – Jogo é jogo. Quem não tem coragem que não brinque.

Alonso – Isso não vale.

Andres – Se não me obedecer eu posso contar alguma coisa pro seu coroa.

Alonso – Que é que você vai contar pro meu pai? Eu não brinco mais...

Andres – Eu vou contar que ele se tranca à chave com a Maria no quarto e puxa os cabelos dela.

Alonso – Você não vai contar isso,

Andres – Eu conto o que me der na telha.

Alonso – Eu não quero matar o pardal.

Andres - Faz o que você quiser, mas depois não vem chorar...

Alonso – Não quero...

Andres – Olha que vão te prender... e a alma penada vem te buscar... Você vem aqui... aperta ele

e tá tudo acabado... fica tranqüilo... não seja fresco, anda... é melhor pra você...

Alonso – Matei. (Todos se excitam quando Alonso mete a mão dentro da caixa. Susana ataca. As

crianças se esquivam instintivamente e após Alonso tirar as mãos da caixa, começam a rir)

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Andres – Viu como você é machão? Agora, olha só... Julinho, vem cá! Vem cá, vem que eu quero

mostrar uma coisa pra você. Anda, vem logo. (Julinho olha dentro da caixa, mete o dedo dentro, o

coloca na boca e o chupa. Tem um acesso de riso e grita)

Julinho – Mãe, mãe...

Andres – Mãe...

CENA 12

Carolina – Ainda mexe a patinha...

Andres – Deixa eu ver... Está vivo... se você bancou a marica...

Sérgio – Tá se mexendo de novo... olha gente, tem sangue no bico.

Andres – Abram alas, abram alas... aí vem a ambulância.

Cláudia – Eu sou a enfermeira.

Carolina – E eu, o que sou?

Cláudia – Porra nenhuma.

Andres – Com licença... com licença... aqui está o médico... parece que foi um acidente de

estrada. Teremos que operar. Enfermeira, prepare a sala de operações. (Susana alcança a caixa)

Claúdia – Manda esta aí embora, a enfermeira sou eu.

Susana – Larga.

Claúdia – Larga você.

Susana – Solta ou eu te parta a cara. Puta que pariu. (Levanta um pé e enfia no dentro da caixa)

Andres – Assassina.

Sérgio – Está morto.

Alonso – Ela matou.

Carolina – Por que você pisou em cima dele desse jeito? Você é má...

Cláudia – Porque ela é invejosa. Por isso! Porque ninguém quer brincar com ela, essa imunda.

Alonso – E a alma dela, onde é que tá?

Andres – A alma vem de noite... vem de noite e nunca mais vai deixar ela dormir. (Andres imita o

vôo e o piar de algum ser sinistro. Aproxima-se de Susana e quando se encosta a ela, os dois brigam.

Cláudia prende Susana, que permanece imóvel, enquanto Andres a arrasta, puxando-a pela corrente)

Diego – Deixa ela em paz.

Andres – Aí vem a bruxa. Ela está condenada a morrer no fogo da fogueira. Ajoelha e contempla

a tua maldade. (Susana resiste e tem a sua corrente arrebentada por Andres)

Cláudia – Você que arrebentou, é de ouro...

Andres – Gorda infame... a culpa é sua que tava segurando ela.

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Page 15: Jogos... TEXTO

Cláudia – Eu segurei porque você mandou.

Andres – Isso é mentira. (Andres bate na irmã)

Cláudia – Depois você vai se ver com a mamãe.

Andres – E eu com isso... sua porca podre... toma. (Andres atira a correntinha em Susana, que

permanece imóvel) Alonso, pega.

Susana – Deixa ela aí. (Susana pisoteia a correntinha)

Diego – (Empurrando-a) Hei, é Deus...

Susana – E eu com isso?

Alonso – Você não ama a Deus?

Susana – Não.

Alonso – Não ama Deus...

Carolina – Mas todo mundo ama Deus.

Sérgio – Eu também.

Cláudia – Você é louca? Como é que não vai amar a Deus?

Andres – Porque é uma bruxa assassina, por isso... (Andres escreve “Susana não ama Deus”.

Enquanto isso, ela se dirige ao lado oposto em que Julinho está. Alonso põe a correntinha perto dela)

Alonso – Tá aqui.

Andres – Aqui está a correntinha, se você perder ela, foda-se.

CENA 13

Carolina – Uma formiga está caminhando em cima do pardalzinho. Uma formiga grande.

Alonso – Deixa eu ver... Tem duas formigas.

Cláudia – Quando enterraram a minha avó, eu coloquei um vestido rosado que tem a barra toda

rendada.

Andres – Hei, vamos enterrar o pardal. Que idéia genial... que maravilha. Sérgio, tira a sua

camisa e me dá agora.

Sérgio – Não.

Andres – Não seja fresco. É só para brincar, depois te devolvo de novo.

Sérgio – Tá bom.

Andres – Agora eu quero a sua gravata. Pronto. Eu sou o dono do funeral.

Carolina – Posso ser a sua secretária?

Andres – Cala boca, sua burra... Entre.

Cláudia – Meus pêsames.

Andres – Que é que se vai fazer... Deus dá mas também tira.

Cláudia – É assim mesmo... é assim mesmo...

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Page 16: Jogos... TEXTO

Andres – Por favor, sente-se senhora...

Cláudia – Muita gentileza de sua parte, senhor...

Andres – Tomaria um cafezinho?

Claúdia – Depois, se não for incômodo, por favor...

Andres – Entre, por favor...

Alonso – Boa tarde, senhor.

Andres – Hei, vamos...

Alonso – Venho de visita pelo morto, senhor.

Andres – Ah, bem... entre e sente-se, por favor.

Cláudia – Que grande lástima... uma pessoa tão jovem... na flor da idade.

Alonso – Sim.

Cláudia – Se foi como um passarinho... não somos nada.

Andres – E vocês, estão comendo moscas?

Carolina – Oi...

Andres – Entrem todos e sentem com os outros. Bem, vamos lá. Partimos para a última morada

de Deus. Agora, vamos dar o último adeus. Venham passando. Bem, chegou a triste hora de partir.

(Para Susana) Hei, sai daí... (Ela não se move) Se manda. (Susana não se move. Andres a pega por

baixo de seus braços e a arrasta para outro lugar. Ela se deixa arrastar como um peso morto) Hei,

cantem... (Andres começa a cavar um buraco e chama os outros) Hei, ajudem, ou vocês não têm

mãos? (Alonso o ajuda. Andres tenta implicar com Susana, mas ela não se deixa incomodar. Isso o

enfurece) Chega. Vai pra junto do cortejo.

CENA 14

Andres – Queridos irmãos...

Sérgio – Me dá a camisa.

Andres – Não me interrompa.

Sérgio – Você disse que ia devolver. E a camisa é do meu pai.

Andres – Não seja fresco. (Andres devolve a camisa)

Sérgio – Me dá a gravata. (Andres a lança para Sérgio)

Andres – Puta merda... Irmãos, estamos reunidos aqui para acompanhar nosso querido irmão e

amigo até a sua última morada, onde o todo poderoso vai receber ele em seus braços. Foi um valente

soldado e assim morreu. Abaixem a cabeça e rezem. (Susana ataca todos) Hei, rezem. Lutou como

um valente contra os maus, defendendo os cidadãos honestos. Cantemos um hino em honra deste

valente soldado que caiu cumprindo o seu dever. (Todos cantam) Porque viemos da terra e a ela

voltamos. (Susana volta a atacar as crianças, que se defendem. Andres, entretanto, começa a revidar

os ataques. E com um gesto chama os outros) A ela. (O grupo responde e todos começam a atacá-la.

Andres se joga sobre Susana, sentando-se sobre sua cabeça e imobilizando-a. Ela esperneia)

Avancem. Avancem. (As pernas de Susana se movem cada vez menos. Diego se incomoda com a

briga)

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Page 17: Jogos... TEXTO

Diego – Hei... (Em dúvida, ele dá meia volta e sai correndo. Susana não se move. As crianças

param de atacar. Andres está sentado sobre ela)

Carolina – Tô morta de fome... minha mãe tá me chamando...

Sérgio – Eu também tenho que ir.

Andres – (Saindo de cima do corpo de Susana) Pronto. (Alonso, que olhava consternado, sai

correndo. Cláudia retira sua bolsa do meio dos brinquedos esquecidos e sai atrás do irmão. O que

resta é o corpo de Susana).

FIM

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