JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

download JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

of 116

Transcript of JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    1/116

    1

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    2/116

    2

    Esta exposio sobre a teoria do conhecimento originou-se nas aulas proferidaspelo autor da Universidade de Colnia. Isso explica o esforo, no tanto para a tudo

    oferecer solues completas, mas para apresentar de modo claro e minucioso os sentido

    dos problemas e as diferentes possibilidades de soluo, sem renunciar a um exame

    crtico e a uma tomada de posio. O autor tem a convico de que o sentido ltimo do

    conhecimento filosfico no tanto solucionar enigmas quanto descobrir maravilhas.

    Esta apresentao da teoria do conhecimento distingue-se da maior parte das outras

    sob trs aspectos. Antes de mais nada, porque pe o mtodo fenomenolgico a servio da

    teoria do conhecimento. Alm disso, por conter uma discusso detalhada do problema daintuio, que a maior parte das exposies tangencia. Finalmente, por tratar no apenas da

    teoria geral do conhecimento, mas tambm da especial.

    TEORIA DO CONHECIMENTO

    Johannes Hessen

    Traduo Joo Verglio Gallerani Cuter

    Reviso Tcnica Srgio Srvulo da Cunha

    Martins FontesSo Paulo - 2000

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    3/116

    3

    NDICE

    Prefcio 5

    Introduo 6

    A essncia da filosofia 6

    A posio da teoria do conhecimento no sistema da filosofia 13

    A histria da teoria do conhecimento 15

    PRIMEIRA PARTE

    TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO

    I. Investigao fenomenolgica preliminar: o fenmeno do conhecimento e os problemasnele contidos 17

    A possibilidade do conhecimento 24

    1 -O dogmatismo 24

    2- O ceticismo 25

    3- O subjetivismo e o relativismo 29

    4- O pragmatismo 30

    5- O criticismo 33

    II. A origem do conhecimento 36

    1- O racionalismo 36

    2- O empirismo 41

    3- O intelectualismo 44

    4- O apriorismo 46

    Posicionamento crtico 47

    A essncia do conhecimento 51

    1. Solues pr-metafisicas do problema 51

    a- O objetivismo 51

    b- O subjetivismo 52

    2. Solues metafsicas do problema 54

    a- O realismo 54

    b- O idealismo 59

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    4/116

    4

    c- O fenomenalismo 62

    d- Posicionamento crtico 64

    III. Solues teolgicas do problema 68

    a -A soluo monista-pantesta 68b- A soluo dualista-testa 69

    IV. Os tipos de conhecimento 71

    1- O problema da intuio e sua histria 71

    2- O correto e o incorreto no intuicionismo 79

    3 - O critrio da verdade 84

    a- O conceito de verdade 84

    b- O critrio da verdade 87

    SEGUNDA PARTETEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 92

    1- Sua tarefa 92

    2- A essncia das categorias 93

    3- O sistema das categorias 96

    4- A substancialidade 100

    5- Causalidade 102a- O conceito de causa 102

    b- O princpio de causalidade 103

    Concluso: F e saber 110

    Bibliografia 115

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    5/116

    5

    PREFCIO

    A exposio sobre a teoria do conhecimento que oferecemos originou-se nas aulas

    proferidas pelo autor na Universidade de Colnia. Isso explica a forma elementar daapresentao, bem como o esforo, no tanto para a tudo oferecer solues completas,

    mas para apresentar de modo claro e minucioso o sentido dos problemas e as diferentes

    possibilidades de soluo, sem renunciar a um exame crtico e a uma tomada de posio.

    O autor tem, com N. Hartmann, a convico de que o sentido ltimo do conhecimento

    filosfico no tanto solucionar enigmas mas quanto descobrir maravilhas.

    Esta apresentao da teoria do conhecimento distingue-se da maior parte das outras

    sob trs aspectos. Antes de mais nada, porque pe o mtodo fenomenolgico a servio da

    teoria do conhecimento. Alm disso, por conter uma discusso detalhada do problema daintuio, que a maior parte das exposies tangencia. Finalmente, por tratar no apenas da

    teoria geral do conhecimento, mas tambm da especial. Que esse trabalho possa estimular

    o interesse hoje redivivo pelas questes filosficas!

    Colnia, outubro de 1925.

    Johannes Hessen

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    6/116

    6

    Introduo

    I. A essncia da filosofia

    A teoria do conhecimento uma disciplina filosfica. Para determinar seu lugar no

    conjunto da filosofia, devemos partir de uma definio da essncia da filosofia.

    Como chegar, porm, a essa definio? Que mtodo devemos empregar para

    determinar a essncia da filosofia?

    Primeiramente, poderamos tentar obter uma definio da essncia da filosofia a

    partir do significado da palavra. A palavra "filosofia" provm da lngua grega e significa

    amor sabedoria ou, em outras palavras, aspirao ao saber, ao conhecimento.

    evidente, porm, que esse significado etimolgico da palavra "filosofia"

    excessivamente genrico para que dele derivemos uma definio da essncia. Por isso,

    devemos escolher outro mtodo.

    Para encontrar uma definio exaustiva, poderamos pensar em reunir e comparar

    entre si as diferentes definies da essncia da filosofia que os filsofos deram ao longo

    da histria. Mas por si s esse procedimento tambm no conduz ao nosso objetivo, pois

    as definies da essncia que encontramos na histria da filosofia so to divergentes que

    parece completamente impossvel obter-se, a partir delas, uma definio uniforme.

    Compare-se, por exemplo, a definio que Plato e Aristteles do da filosofia,considerando-a pura e simplesmente como cincia, com a definio dos esticos e

    epicuristas, para quem a filosofia significa, respectivamente, aspirao excelncia e

    felicidade. Ou compare-se a definio de filosofia dada por Wolff; na Idade Moderna,

    como scientia possibilium, quatenus esse possunt com a que berweg nos d em seu

    conhecido Esboo da histria da filosofia, segundo a qual a filosofia "a cincia dos

    princpios". Tais divergncias fazem com que a idia de encontrar uma definio da

    essncia da filosofia por esse caminho parea v. S chegaremos a tal definio se nos

    voltarmos para o prprio fato histrico da filosofia. Esse nos fornece o material com quepodemos obter o conceito da essncia da filosofia. Foi Dilthey, em seu tratado sobre A

    essncia da filosofia, quem empregou esse mtodo pela primeira vez. Na seqncia,

    estaremos acompanhando Dilthey livremente e procurando, ao mesmo tempo, levar seus

    pensamentos mais adiante.

    Aparentemente, porm, esse procedimento deve falhar devido a uma dificuldade de

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    7/116

    7

    princpio: para que possamos falar de um fato histrico da filosofia, j devemos, assim

    parece, possuir um conceito de filosofia. Eu j devo saber o que filosofia caso pretenda

    obter seu conceito a partir dos fatos. Portanto, na determinao da essncia da filosofia,

    tal como queremos lev-la a efeito, parece haver um crculo, e todo o procedimento

    parece falhar devido a essa dificuldade.Mas no assim. Essa dificuldade removida se no partimos de um conceito

    determinado de filosofia, mas da representao geral que qualquer pessoa culta tem dela.

    Como observa Dilthey, "deve-se primeiramente buscar um contedo comum nos

    sistemas em que se forma a representao geral da filosofia".

    E, de fato, tais sistemas existem. Quanto a muitas formas de pensamento,

    duvidoso consider-las como filosofia; mas no caso de numerosos outros sistemas,

    cala-se toda dvida. Desde que se tomaram conhecidos, a humanidade sempre os

    considerou como produtos espirituais filosficos e enxergou neles, desde o primeiromomento, a essncia da filosofia. Tais so os sistemas de Plato e Aristteles, Descartes e

    Leibniz, Kant e Hegel. Quando nos aprofundamos neles, deparamos com certas

    caractersticas essenciais comuns, apesar de todas as diferenas que apresentam.

    Encontramos uma atrao pelo todo, um direcionamento para a totalidade dos objetos.

    Contrariamente atitude do especialista, cuja viso est sempre dirigida a um recorte na

    totalidade dos objetos de conhecimento, temos aqui um ponto de vista universal,

    abrangendo a totalidade das coisas. Esses sistemas, portanto, possuem o carter da

    universalidade. A essa caracterstica essencial comum soma-se outra. A atitude do

    filsofo com relao totalidade dos objetos uma atitude intelectual, uma atitude do

    pensamento. Cabe ao filsofo conhecer, saber. O filsofo um conhecedor por natureza.

    Aparecem, portanto, as seguintes marcas da essncia de toda filosofia: 1. a atitude

    em relao totalidade dos objetos; 2. o carter racional, cognoscitivo dessa atitude.

    Com isso, obtivemos um conceito da essncia da filosofia que ainda , decerto,

    puramente formal. Alcanaremos um enriquecimento do contedo desse conceito

    considerando os diversos sistemas no mais isoladamente, mas em seu contexto histrico.

    Trata-se, portanto, de apreender em suas principais caractersticas a totalidade do

    desenvolvimento histrico da filosofia. A partir desse posto de observao, poderemos

    compreender tambm as definies contraditrias da essncia da filosofia a que h pouco

    nos referimos.

    No sem justia, Scrates chamado de criador da filosofia ocidental. Nele, a

    atitude terica do esprito grego manifesta-se claramente. Todos os seus pensamentos e

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    8/116

    8

    energias esto voltados para a edificao da vida humana sobre a base da reflexo e do

    saber. Ele tenta fazer com que todo agir humano seja um agir consciente, um saber, e

    empenha-se em elevar a vida, com todos os seus contedos, ao nvel da conscincia

    filosfica. Essa tendncia alcanar desenvolvimento pleno em Plato, seu maior

    discpulo. Em Plato, a conscincia filosfica estende-se totalidade do contedo daconscincia humana; dirige-se no apenas aos objetos prticos, aos valores e virtudes,

    como ocorria quase sempre em Scrates, mas tambm ao conhecimento cientfico. Tanto

    o agir do estadista quanto o do poeta ou do cientista tornam-se igualmente objetos da

    reflexo filosfica. Com isso, a filosofia aparece em Scrates e mais ainda em Plato

    como auto-reflexo do esprito a respeito de seus mais altos valores tericos e prticos, os

    valores do verdadeiro, do bom e do belo.

    A filosofia de Aristteles mostra outra fisionomia. Seu esprito est principalmente

    concentrado no conhecimento cientfico e em seu objeto, o ser. No seu ncleo h umacincia universal do ser: a "filosofia primeira" ou, como seria chamada mais tarde, a

    metafsica. Ela nos informa sobre a essncia das coisas, a contingncia e os princpios

    ltimos da realidade. Se a filosofia socrtico-platnica pode ser caracterizada como uma

    viso de si do esprito, devemos dizer que, em Aristteles, a filosofia aparece antes de

    mais nada como viso de mundo.

    Na poca ps-aristotlica, com os esticos e epicuristas, a filosofia toma-se

    novamente auto-reflexo do esprito. Ocorre um estreitamento da concepo

    socrtico-platnica, na medida em que apenas as questes prticas entram no campo

    visual da conscincia filosfica. A filosofia aparece, no dizer de Ccero, como "mestra da

    vida, inventora das leis, instrutora de toda virtude". Em poucas palavras, transforma-se

    em filosofia de vida.

    No comeo da Idade Moderna, a filosofia envereda, novamente pelo caminho da

    concepo aristotlica. Os sistemas de Descartes, Espinosa e Leibniz mostram a mesma

    orientao no sentido do conhecimento objetivo do mundo tal como acontecera com os

    estagiritas. Nesses sistemas, a filosofia aparece expressamente como viso de mundo. Em

    Kant, ao contrrio, o tipo platnico que ir reviver. A filosofia assume novamente o

    carter de auto-reflexo, de viso de si do esprito. Ela aparece, antes de mais nada, como

    teoria do conhecimento, como fundamentao crtica do conhecimento cientfico. No se

    limita, porm, ao domnio terico, mas avana, a partir dele, para uma fundamentao

    crtica dos valores em sua totalidade. Alm da Crtica da razo pura, surgem a Crtica da

    razo prtica, que trata do mbito tico dos valores, e a Crtica do juzo, que toma os

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    9/116

    9

    valores estticos como objeto de uma investigao crtica. Tambm em Kant, portanto, a

    filosofia aparece como auto-reflexo universal do esprito, como reflexo da pessoa culta

    a respeito de todo o seu comportamento valorativo.

    No sculo XIX, o tipo aristotlico de filosofia revive nos sistemas do idealismo

    alemo, particularmente em Schelling e Hegel. A forma unilateral e exaltada sob a qualesse tipo aparece ocasiona um movimento contrrio igualmente unilateral. Ele conduz,

    por um lado, a uma desvalorizao total da filosofia - como a que est presente no

    materialismo e no positivismo - e, por outro lado, a uma renovao do tipo kantiano,

    como a que ocorreu no neokantismo. A unilateralidade dessa renovao est em que so

    eliminados todos os fatores (inconfundivelmente presentes em Kant) relacionados ao

    contedo e viso de mundo, e a filosofia assume um carter puramente formal,

    metodolgico. latente, nesse modo de encarar as coisas, o impulso para um novo

    movimento do pensamento filosfico que, contra o formalismo e o metodologismo dosneokantianos, busca os contedos e uma viso de mundo e representa, assim, uma

    renovao do tipo aristotlico. Estamos ainda em meio a esse movimento. Ele conduziu,

    por um lado, busca de uma metafsica indutiva, como a empreendida por Hartmann,

    Wundt e Driesch e, por outro lado, a uma filosofia da intuio, como a que encontramos

    em Bergson e, sob uma outra forma, na moderna fenomenologia de Husserl e Scheler.

    Este panorama do desenvolvimento do pensamento filosfico em seu conjunto

    conduziu-nos a dois outros elementos do conceito essencial de filosofia. Chamamos um

    dos fatores "viso de si"; ao outro, chamamos "viso de mundo". Como a histria nos

    mostrou, existe entre esses dois elementos uma tenso peculiar. Mal aparece um deles, o

    outro emerge com mais fora; quanto mais um avana, mais o outro retrocede. Toda a

    histria da filosofia aparece, enfim, como um movimento pendular entre esses dois

    pontos. Isso prova, porm, que esses dois elementos pertencem ao conceito essencial.

    No se trata de um ou-isto-ou-aquilo, mas de um tanto-isto-quanto-aquilo.

    A filosofia ambas as coisas: viso de si e viso de mundo.

    Para chegarmos a uma completa definio da essncia, devemos estabelecer agora

    uma ligao entre os dois elementos que acabamos de obter e os dois elementos formais

    anteriormente apresentados. O enfoque da totalidade dos objetos e o carter cognoscitivo

    desse enfoque revelaram-se h pouco como as duas principais caractersticas da filosofia.

    Devido aos dois novos elementos que acabamos de obter, a primeira dessas duas marcas

    experimenta agora uma diferenciao. A totalidade dos objetos pode referir-se tanto ao

    mundo exterior quanto ao mundo interior, tanto ao macrocosmo quanto ao microcosmo.

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    10/116

    10

    Se a conscincia filosfica dirige-se ao macrocosmo, tratamos de filosofia como viso de

    mundo. Se o microcosmo que constitui o objeto do enfoque filosfico, surge o segundo

    tipo de filosofia: a filosofia como viso de si do esprito. Os dois elementos essenciais que

    acabamos de obter ajustam-se, assim, perfeitamente, ao conceito essencial formal

    anteriormente apresentado, na medida em que vm complet-lo e corrigi-lo.Podemos agora determinar a essncia da filosofia dizendo: a filosofia

    auto-reflexo do esprito sobre seu comportamento valorativo terico e prtico e,

    igualmente, aspirao a uma inteligncia das conexes ltimas das coisas, a uma viso

    racional de mundo. Podemos, porm, estabelecer uma ligao mais profunda entre esses

    dois elementos essenciais. Como Plato e Kant nos mostram, existe entre ambos uma

    relao de meio e fim. A auto-reflexo do esprito meio para se atingir uma imagem de

    mundo, uma viso metafsica de mundo. Em concluso, portanto, podemos dizer que a

    filosofia a tentativa do esprito humano de atingir uma viso de mundo, mediante aauto-reflexo sobre suas funes valorativas tericas e prticas.

    Obtivemos essa definio da essncia da filosofia mediante um procedimento

    indutivo. Agora, porm, podemos completar esse procedimento indutivo com um

    dedutivo.

    Este consiste em situar a filosofia no contexto das funes superiores do esprito,

    indicar o lugar que ela ocupa no sistema da cultura como um todo. O conjunto das

    funes culturais lana uma nova luz sobre o conceito essencial de filosofia que

    obtivemos.

    Entre as funes superiores do esprito e da cultura incluem-se a cincia, a arte, a

    religio e a moral. Quando relacionamos a filosofia a essas funes, da moral que ela

    mais parece distanciar-se. A moral diz respeito ao lado prtico da existncia humana, pois

    seu sujeito a vontade. A filosofia, por sua vez, pertence completamente ao lado terico

    do esprito humano. Por isso, ela parece estar nas cercanias da cincia. E, de fato, existe

    uma afinidade entre filosofia e cincia, na medida em que esto baseadas na mesma

    funo do esprito humano - o pensamento. Conforme j assinalamos, porm, ambas

    distinguem-se por seu objeto. Enquanto as cincias particulares tomam por objeto uma

    parte da realidade, a filosofia dirige-se totalidade do real. No obstante, poderamos

    pensar em aplicar o conceito de cincia filosofia.

    Distinguiramos, ento, entre cincia particular e universal, chamando a ltima de

    filosofia. No correto, porm, subordinar a filosofia cincia, tratando-a como se fosse

    um tipo determinado de cincia, pois em virtude de seu objeto a filosofia no se distingue

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    11/116

    11

    da cincia por graus, mas essencialmente. A totalidade do ente mais do que uma soma

    dos diferentes domnios parciais da realidade que constituem o objeto das cincias

    particulares. Frente a esses domnios parciais, a totalidade um objeto novo, de outro

    tipo. Por isso, ela pressupe tambm uma nova funo por parte do sujeito. O

    conhecimento filosfico, dirigido totalidade das coisas, essencialmente distinto doconhecimento das cincias particulares, que vai ao encontro de domnios parciais da

    realidade. Entre filosofia e cincia, portanto, h diferena no apenas sob o aspecto

    objetivo, mas tambm sob o aspecto subjetivo.

    E como se d a relao da filosofia com os dois domnios restantes da cultura, a arte

    e a religio? A resposta deve ser: existe uma profunda afinidade entre esses trs domnios

    culturais. Eles esto ligados por uma amarra comum, que seu objeto. Com efeito, so os

    mesmos enigmas do mundo e da vida que esto colocados diante da poesia, da religio e

    da filosofia. No fundo, as trs querem solucionar esses enigmas, querem fornecer umainterpretao da realidade, uma viso de mundo. O que as diferencia a origem dessa

    viso de mundo. Enquanto a viso filosfica de mundo brota do conhecimento racional, a

    origem da viso religiosa de mundo est na f religiosa. O princpio do qual ela procede e

    que determina seu esprito a vivncia religiosa dos valores, a experincia de Deus.

    Enquanto a viso religiosa de mundo depende decisivamente de fatores subjetivos, a

    viso filosfica de mundo reclama validade universal, demonstrabilidade racional. O que

    d acesso primeira no o conhecimento universalmente vlido, mas a experincia

    pessoal, a vivncia religiosa. Existe, pois uma diferena essencial entre a viso de mundo

    religiosa e a filosfica e, conseqentemente, entre religio e filosofia.

    A filosofia tambm essencialmente distinta da arte. A interpretao do mundo

    feita pelo artista provm to pouco do pensamento puro quanto a concepo de mundo do

    homem religioso. Tambm ela deve sua origem muito mais vivncia e intuio. O

    verdadeiro artista no produz sua obra com o intelecto, mas a partir da totalidade das

    foras espirituais. A essa diferena nas funes subjetivas acresce uma distino no

    aspecto objetivo. O verdadeiro artista no est, como o filsofo, diretamente voltado

    totalidade do ser. Seu esprito dirige-se, antes de mais nada, a um ser e a um acontecer

    concretos. medida que os representa, eleva este ser e este acontecer concretos ao nvel

    do mundo da aparncia, do irreal. O estranho que, nesse acontecer irreal, o sentido do

    acontecer real se manifesta; no acontecer particular apresentam-se o sentido e o valor do

    acontecer do mundo. Assim, na medida em que interpreta um ser ou acontecer particular,

    o verdadeiro artista nos d indiretamente uma interpretao da totalidade do mundo e da

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    12/116

    12

    vida.

    Se tentarmos agora determinar o lugar da filosofia no sistema da cultura, deveremos

    dizer o seguinte. A filosofia tem uma face voltada para a religio e para a arte e outra face

    voltada para a cincia. Com a religio e a arte, tem em comum o olhar dirigido

    totalidade do real; com a cincia, tem em comum o carter terico.No sistema da cultura, portanto, a filosofia tem seu lugar entre a cincia, de um

    lado, e a religio e a arte, de outro. Dentre as ltimas, da religio que a filosofia est

    mais prxima, na medida em que tambm a religio dirige-se totalidade do ser e tenta

    interpretar essa totalidade.

    Com isso, completamos nosso procedimento indutivo com um dedutivo. Inserindo

    a filosofia na totalidade da cultura, relacionando-a a domnios culturais particulares, o

    conceito essencial de filosofia que obtivemos indutivamente foi confirmado e as

    caractersticas particulares foram ressaltadas de modo ainda mais ntido.

    2. A posio da teoria do conhecimento no sistema da filosofia

    Com essa definio, surge imediatamente uma diviso da filosofia em suas

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    13/116

    13

    diferentes disciplinas. Como vimos, a filosofia antes de mais nada auto-reflexo do

    esprito sobre seu comportamento valorativo terico e prtico. Enquanto reflexo sobre o

    comportamento terico, sobre aquilo que chamamos de cincia, a filosofia teoria do

    conhecimento cientfico, teoria da cincia. Enquanto reflexo sobre o comportamento

    prtico do esprito, sobre o que chamamos de valor no sentido estrito, a filosofia teoriado valor. A auto-reflexo do esprito, porm, no fim em si, mas meio para atingir uma

    viso de mundo. Assim, em terceiro lugar, a filosofia teoria da viso de mundo. O

    campo da filosofia divide-se, portanto em trs partes: teoria da cincia, teoria do valor e

    teoria da viso de mundo.

    Uma ulterior diviso dessas partes fornece as principais disciplinas da filosofia. A

    teoria da viso de mundo decomposta em metafsica (que, por sua vez, divide-se em

    metafsica da natureza e metafsica do esprito) e em teoria da viso de mundo em sentido

    estrito, que investiga as questes referentes a Deus, liberdade e imortalidade. A teoriado valor divide-se, segundo os diferentes tipos de valor, nas teorias dos valores ticos,

    estticos e religiosos. Obtemos, assim, trs disciplinas: tica, esttica e filosofia da

    religio. A teoria da cincia, finalmente, decomposta em teoria formal e doutrina

    material da cincia. A primeira chamamos de lgica; a ltima, de teoria do conhecimento.

    Assinalamos, assim, o lugar que a teoria do conhecimento ocupa no conjunto da

    filosofia. Segundo o que foi dito, ela uma parte da teoria da cincia. Podemos defini-la

    como teoria material da cincia ou como teoria dos princpios materiais do conhecimento

    humano. Enquanto a lgica investiga os princpios formais do conhecimento, as formas e

    leis gerais do pensamento humano, a teoria do conhecimento dirige-se aos pressupostos

    materiais mais gerais do conhecimento cientfico. Enquanto a primeira prescinde da

    referncia do pensamento aos objetos e considera o pensamento puramente em si, a

    segunda tem os olhos fixos justamente na referncia objetiva do pensamento, na sua

    relao com os objetos. Enquanto a lgica pergunta a respeito da correo formal do

    pensamento, sobre sua concordncia consigo mesmo, com suas prprias formas e leis, a

    teoria do conhecimento pergunta sobre a verdade do pensamento, sobre sua concordncia

    com o objeto. Tambm podemos, por isso, definir a teoria do conhecimento como a teoria

    do pensamento verdadeiro, por oposio lgica, definida como a teoria do pensamento

    correto. Torna-se claro, assim, o significado fundamental da teoria do conhecimento para

    todo o campo da filosofia. com todo o direito que ela ser chamada de philosophia

    fundamentalis, cincia filosfica fundamental.

    Costuma-se dividir a teoria do conhecimento em geral e especial. A primeira

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    14/116

    14

    investiga a relao do pensamento com o objeto em geral. A segunda toma como objeto

    de uma investigao crtica os axiomas e conceitos fundamentais em que se exprime a

    referncia de nosso pensamento aos objetos. Comearemos, naturalmente, com a

    apresentao da teoria geral do conhecimento. Antes, detenhamos brevemente nosso

    olhar sobre a histria da teoria do conhecimento.

    3. A histria da teoria do conhecimento

    Como disciplina filosfica independente, no se pode falar de uma teoria do

    conhecimento nem na Antiguidade nem na Idade Mdia. Certamente, encontraremos

    numerosas reflexes epistemolgicas na filosofia antiga, especialmente em Plato e em

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    15/116

    15

    Aristteles. So, porm, investigaes epistemolgicas que ainda esto completamente

    embutidas em contextos psicolgicos e metafsicos. s na Idade Moderna que a teoria

    do conhecimento aparece como disciplina independente. O filsofo ingls John Locke

    deve ser considerado seu fundador. Sua principal obra, An Essay concerning Human

    Understanding, publicada em 1690, trata de modo sistemtico as questes referentes origem, essncia e certeza do conhecimento humano. No livro Nouveaux essais sur

    I'entendement humain, publicado postumamente em 1765, Leibniz tentou refutar o ponto

    de vista epistemolgico de Locke. Na Inglaterra, Geor-ge Berkeley, em sua obra A

    Treatise concerning the Principles of Human Knowledge (1710), e David Hume, em sua

    obra principal, A Treatise on Human Nature (1739/40) e em outra de menor dimenso, o

    Enquiry concerning Human Understanding (1748), continuaram edificando sobre a base

    dos resultados obtidos por Locke.

    Na filosofia continental, lmmanuel Kant aparece como o verdadeiro fundador dateoria do conhecimento. Em sua principal obra epistemolgica, a Crtica da razo pura

    (1781), tentou fornecer uma fundamentao crtica ao conhecimento das cincias

    naturais. O mtodo que usou foi chamado por ele prprio de "mtodo transcendental".

    Esse mtodo no investiga a gnese psicolgica do conhecimento, mas sua validade

    lgica. No pergunta, maneira do mtodo psicolgico, como surge o conhecimento, mas

    sim como possvel o conhecimento, sobre quais fundamentos, sobre quais pressupostos

    ele repousa. Em virtude desse mtodo, a filosofia de Kant tambm chamada

    abreviadamente de transcendentalismo ou, ainda, de criticismo.

    Em Fichte, o sucessor imediato de Kant, a teoria do conhecimento aparece pela

    primeira vez intitulada "teoria da cincia". Mas j apresenta aquele amlgama de teoria do

    conhecimento e metafsica que ganhar livre curso em Schelling e Hegel e que tambm

    estar inconfundivelmente presente em Schopenhauer e em Hartmann. Em contraposio

    a esses tratamentos metafsicos da teoria do conhecimento, o neokantismo, surgido na

    dcada de 1860, esfora-se por separar nitidamente o questionamento metafsico do

    epistemolgico. No entanto, o problema epistemolgico foi to vigorosamente

    empurrado para o primeiro plano que a filosofia corria o perigo de reduzir-se teoria do

    conhecimento. O neokantismo desenvolveu a teoria kantiana do conhecimento numa

    direo muito bem determinada. A unilateralidade de questionamento que isso provocou

    fez logo surgirem numerosas correntes epistemolgicas contrrias. Vem da estarmos

    hoje ante uma enorme quantidade de direcionamentos epistemolgicos, de que os mais

    importantes sero apresentados a seguir em conexo sistemtica.

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    16/116

    16

    PRIMEIRA PARTE - TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO

    I - INVESTIGAO FENOMENOLGICA PRELIMINAR: O

    fenmeno do conhecimento e os problemas nele contidos

    A teoria do conhecimento, como o nome j diz, uma teoria, isto , uma

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    17/116

    17

    interpretao e uma explicao filosficas do conhecimento humano. Antes, porm, de

    filosofar sobre um objeto, necessrio examin-lo com exatido. Qualquer explicao ou

    interpretao deve ser precedida de uma observao e de uma descrio exatas do objeto.

    Isso vale tambm para o nosso caso. Devemos pois apreender com um olhar

    penetrante e descrever com exatido esse fenmeno peculiar de conscincia quechamamos de conhecimento. Fazemos isso na medida em que tentamos apreender as

    caractersticas essenciais desse fenmeno mediante a auto-reflexo sobre o que

    experimentamos quando falamos em conhecimento. Para diferenci-lo do mtodo

    psicolgico, chamamos esse mtodo de fenomenolgico. O primeiro investiga os

    processos mentais concretos em seu curso regular e em suas relaes com outros

    processos, ao passo que o ltimo procura apreender a essncia geral no fenmeno

    concreto. Em nosso caso, o mtodo no descreve um processo de conhecimento

    determinado, no procura estabelecer o que caracterstico de um determinadoconhecimento, mas aquilo que essencial a todo conhecimento, aquilo em que consiste

    sua estrutura geral.

    Se aplicamos esse mtodo, o fenmeno do conhecimento se nos apresenta, nas suas

    caractersticas fundamentais, do seguinte modo.

    No conhecimento defrontam-se conscincia e objeto, sujeito e objeto. O

    conhecimento aparece como uma relao entre esses dois elementos. Nessa relao,

    sujeito e objeto permanecem eternamente separados. O dualismo do sujeito e do objeto

    pertence essncia do conhecimento.

    Ao mesmo tempo, a relao entre os dois elementos uma relao recproca

    (correlao). O sujeito s sujeito para um objeto e o objeto s objeto para um sujeito.

    Ambos so o que so apenas na medida em que o so um para o outro. Essa

    correlao, porm, no reversvel. Ser sujeito algo completamente diverso de ser

    objeto.

    A funo do sujeito apreender o objeto; a funo do objeto ser apreensvel e ser

    apreendido pelo sujeito.

    Vista a partir do sujeito, essa apreenso aparece como uma sada do sujeito para

    alm de sua esfera prpria, como uma invaso da esfera do objeto e como uma apreenso

    das determinaes do objeto. Com isso, no entanto, o objeto no arrastado para a esfera

    do sujeito, mas permanece transcendente a ele. No no objeto, mas no sujeito que algo

    foi alterado pela funo cognoscitiva. Surge no sujeito uma "figura" que contm as

    determinaes do objeto, uma "imagem" do objeto.

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    18/116

    18

    Visto a partir do objeto, o conhecimento aparece como um alastramento, no sujeito,

    das determinaes do objeto. H uma transcendncia do objeto na esfera do sujeito

    correspondendo transcendncia do sujeito na esfera do objeto. Ambas so apenas

    aspectos diferentes do mesmo ato. Nesse ato, porm, o objeto tem preponderncia sobre o

    sujeito. O objeto o determinante, o sujeito o determinado. por isso que oconhecimento pode ser definido como uma determinao do sujeito pelo objeto.

    No , porm o sujeito que pura e simplesmente determinado, mas apenas a

    imagem, nele, do objeto. A imagem objetiva na medida em que carrega consigo as

    caractersticas do objeto. Diferente do objeto, ela est, de um certo modo, entre o sujeito e

    o objeto. Ela o meio com o qual a conscincia cognoscente apreende seu objeto.

    Dizer que o conhecimento uma determinao do sujeito pelo objeto dizer que o

    sujeito comporta-se receptivamente com respeito ao objeto. Essa receptividade, contudo,

    no significa passividade. Pelo contrrio, pode-se falar de uma atividade e de umaespontaneidade do sujeito no conhecimento. Certamente, a espontaneidade no est

    relacionada ao objeto, mas imagem do objeto, na qual a conscincia pode muito bem ter

    uma participao criadora. Receptividade com respeito ao objeto e espontaneidade com

    respeito imagem do objeto no sujeito podem perfeitamente coexistir.

    Na medida em que determina o sujeito, o objeto mostra-se independente do sujeito,

    para alm dele, transcendente. Todo conhecimento visa ("intenciona") um objeto

    independente da conscincia cognoscente. Por isso o carter transcendente adequado a

    todos os objetos de conhecimento. Dividimos os objetos em reais e ideais.

    Chamamos de reais ou efetivos todos que nos so dados na experincia externa ou

    interna ou so inferidos a partir dela. Comparados a eles, os objetos ideais aparecem

    como irreais, meramente pensados. Esses objetos ideais so por exemplo, as estruturas da

    matemtica, os nmeros e as figuras geomtricas. O estranho que tambm esses objetos

    ideais possuem um ser em si, uma transcendncia, no sentido epistemolgico. As leis

    numricas, as relaes existentes, por exemplo, entre os lados e ngulos de um tringulo

    tm uma independncia de nosso pensamento subjetivo semelhante dos objetos reais.

    Apesar de sua irrealidade, defrontam-se com nosso pensamento como algo em si mesmo

    determinado e independente.

    Parece existir uma contradio entre a transcendncia do objeto em face do sujeito e

    a correlao constatada h pouco entre sujeito e objeto. Essa contradio, porm, apenas

    aparente. O objeto s no separvel da correlao na medida em que um objeto de

    conhecimento. A correlao entre sujeito e objeto no em si mesma indissolvel; s o

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    19/116

    19

    no interior do conhecimento. Sujeito e objeto no se esgotam em seu ser um para o outro,

    mas tm, alm disso, um ser em si. No objeto, este ser em si consiste naquilo que ainda

    desconhecido. No sujeito, consiste naquilo que ele alm de sujeito que conhece. Alm

    de conhecer, ele tambm est apto a sentir e a querer. Assim, enquanto o objeto cessa de

    ser objeto quando se separa da correlao, o sujeito apenas deixa de ser sujeitocognoscente.

    Assim como a correlao entre sujeito e, objeto s no dissolvel no interior do

    conhecimento, ela tambm s no reversvel enquanto relao de conhecimento.

    Em si mesma, uma reverso perfeitamente possvel. Ela ocorre, de fato, na ao,

    pois nesse caso no o objeto que determina o sujeito, mas o sujeito que determina o

    objeto. No o sujeito que muda, mas o objeto. O sujeito no mais se comporta

    receptivamente, mas espontnea e ativamente, ao passo que o objeto comporta-se

    passivamente.Desse modo, conhecimento e ao apresentam estruturas completamente opostas.

    A essncia do conhecimento est estreitamente ligada ao conceito de verdade. S o

    conhecimento verdadeiro conhecimento efetivo. "Conhecimento no-verdadeiro" no

    propriamente conhecimento, mas erro e engano. Em que consiste, ento, a verdade do

    conhecimento? Segundo o que foi dito, a verdade deve consistir na concordncia da

    "figura" com o objeto. Um conhecimento verdadeiro na medida em que seu contedo

    concorda com o objeto intencionado. Conseqentemente, o conceito de verdade um

    conceito relacional. Ele expressa um relacionamento, a saber, o relacionamento do

    contedo do pensamento, da "figura", com o objeto. O prprio objeto, ao contrrio, no

    pode ser nem verdadeiro nem falso. De certo modo, ele est para alm da verdade e da

    inverdade. Uma representao inadequada, por sua vez, pode ser verdadeira, pois apesar

    de incompleta pode ser correta, se as caractersticas que contm existirem efetivamente

    no objeto.

    O conceito de verdade que obtivemos a partir da considerao fenomenolgica do

    conhecimento pode ser chamado conceito transcendente de verdade, vale dizer, ele tem a

    transcendncia do objeto como pressuposto. esse o conceito de verdade da conscincia

    ingnua e tambm o da conscincia cientfica. Ambos visam, com a verdade, a

    concordncia do contedo do pensamento com o objeto.

    No basta, porm, que um conhecimento seja verdadeiro. Devemos chegar tambm

    certeza de que ele verdadeiro. Surge assim a seguinte questo: em que posso

    reconhecer um conhecimento como verdadeiro? Essa a questo acerca do critrio da

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    20/116

    20

    verdade. Os achados fenomenolgicos nada dizem sobre a existncia de tal critrio.

    Apenas a exigncia desse critrio pertence ao fenmeno do conhecimento, no a

    satisfao dessa exigncia.

    O fenmeno do conhecimento humano fica, assim, esclarecido no que diz respeito a

    suas caractersticas principais. Ficou claro, ao mesmo tempo, que esse fenmeno fazfronteira com trs esferas distintas. Como dissemos, o conhecimento possui trs

    elementos principais: sujeito, "imagem" e objeto. Pelo sujeito, o fenmeno do

    conhecimento confina com a esfera psicolgica; pela "imagem", com a esfera lgica; pelo

    objeto, com a ontolgica. Enquanto processo psicolgico num sujeito, o conhecimento

    objeto da psicologia. V-se de imediato que a psicologia no pode solucionar as questes

    referentes essncia do conhecimento humano. Como nossa investigao

    fenomenolgica mostrou, o conhecimento consiste na apreenso espiritual de um objeto.

    Ora, a psicologia se abstm, em sua investigao dos processos de pensamento, dessareferncia objetual. Como j foi dito, ela dirige sua ateno para a gnese e para o curso

    dos processos psicolgicos. Ela pergunta como o pensamento se d e no se o pensamento

    verdadeiro, isto , se concorda com seu objeto. A pergunta sobre o contedo de verdade

    do conhecimento est fora, portanto, de seu domnio.

    Se, no obstante, ela tentasse responder a essa questo, ocorreria uma rematada

    metbasis eis llo gnos, uma passagem para outra ordem. aqui exatamente que reside o

    erro de base do psicologismo.

    Com seu segundo elemento, o conhecimento ascende esfera lgica. A "imagem"

    do objeto no sujeito uma estrutura lgica e, enquanto tal, objeto da lgica. Mas, tambm

    aqui, imediatamente se v que a lgica no capaz de resolver o problema do

    conhecimento. Ela investiga as estruturas lgicas enquanto tais, sua constituio interna e

    suas relaes mtuas. Ela pergunta sobre a concordncia do pensamento consigo mesmo,

    no sobre sua concordncia com o objeto. O questionamento epistemolgico tambm se

    situa, portanto, fora da esfera lgica. Desconhecer esse fato cair no logicismo.

    Com seu terceiro elemento, o conhecimento humano toca a esfera ontolgica. O

    objeto defronta-se com a conscincia cognoscente enquanto algo que , quer se trate de

    um ser real ou ideal. O ser, porm, objeto da ontologia. Tambm aqui, deve-se

    reconhecer que a ontologia no pode resolver o problema do conhecimento, pois, assim

    como no podemos eliminar o objeto no conhecimento, tambm no podemos eliminar o

    sujeito. Conforme o exame fenomenolgico j mostrou, ambos pertencem ao contedo

    essencial do conhecimento humano. Quando se ignora isso e se encara o problema do

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    21/116

    21

    conhecimento, de forma unilateral, a partir do objeto, o resultado o ponto de vista do

    ontologismo.

    Nem a psicologia, nem a lgica, nem a ontologia so capazes, portanto, de resolver

    o problema do conhecimento, que algo completamente peculiar e independente.

    Se quisermos rotul-lo com um nome especfico, poderemos falar, com N.Hartmann, de um fato gnosiolgico. O que queremos dizer com isso que a referncia

    objetual de nosso pensamento, a relao entre sujeito e objeto, no cabe em nenhuma das

    trs disciplinas mencionadas e funda, portanto, uma nova disciplina, a teoria do

    conhecimento.

    Sendo assim, o exame fenomenolgico tambm conduz ao reconhecimento da

    teoria do conhecimento como uma disciplina filosfica autnoma.

    Poder-se-ia pensar que a tarefa da teoria do conhecimento estaria cumprida, no

    essencial, com a descrio do fenmeno do conhecimento. Mas no assim. A descriodo fenmeno ainda no uma interpretao e uma explicao filosficas. O que

    acabamos de descrever aquilo que a conscincia natural entende por conhecimento.

    Vimos que, segundo a concepo da conscincia natural, o conhecimento uma

    afigurao do objeto e a verdade do conhecimento consiste numa concordncia da

    "imagem" com o objeto. Est fora do alcance do questionamento fenomenolgico, porm,

    perguntar se essa concepo justificada. O mtodo fenomenolgico s pode oferecer

    uma descrio do fenmeno do conhecimento. Com base nessa descrio

    fenomenolgica, deve-se buscar uma explicao e uma interpretao filosficas, uma

    teoria do conhecimento.

    Essa a verdadeira tarefa da teoria do conhecimento.

    Esse fato muitas vezes desconsiderado pelos fenomenlogos. Eles crem poder

    solucionar o problema do conhecimento por meio da mera descrio do fenmeno do

    conhecimento.

    s objees vindas de epistemlogos de diferentes orientaes, reagem apontando

    os dados fenomenolgicos do conhecimento. Mas se esquecem de que fenomenologia do

    conhecimento e teoria do conhecimento so coisas muito distintas. A fenomenologia tem

    a capacidade unicamente de trazer luz a fatualidade da concepo natural, jamais de

    decidir a respeito de seu direito, de sua verdade. Essa questo crtica permanece fora de

    sua esfera de competncia. Esse pensamento tambm pode ser expresso dizendo-se que a

    fenomenologia um mtodo, mas no uma teoria do conhecimento.

    De acordo com o que foi dito, a descrio do fenmeno do conhecimento tem uma

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    22/116

    22

    significao apenas preparatria. Sua tarefa no resolver o problema do conhecimento,

    mas conduzir-nos at o problema. A descrio fenomenolgica pode e deve descobrir e

    trazer nossa conscincia os problemas que se apresentam no fenmeno do

    conhecimento.

    Se nos aprofundarmos ainda uma vez na descrio do fenmeno do conhecimento,veremos sem dificuldade que h, sobretudo cinco problemas principais contidos nos

    achados fenomenolgicos. Vimos que o conhecimento significa uma relao entre sujeito

    e objeto. Por assim dizer, ambos entram em contato um com o outro: o sujeito apreende o

    objeto. A pergunta que imediatamente se faz se essa concepo da conscincia natural

    justificada, se ocorre realmente esse contato entre sujeito e objeto.

    Ser o sujeito realmente capaz de apreender o objeto? Essa a questo sobre a

    possibilidade do conhecimento humano.

    Deparamos com outro problema quando consideramos mais de perto a estrutura dosujeito cognoscente. Essa estrutura dualista. O homem um ser espiritual e sensvel.

    Distinguimos correspondentemente um conhecimento espiritual e um

    conhecimento sensvel. A fonte do primeiro a razo; a do segundo, a experincia.

    Pergunta-se, ento, qual a principal fonte em que a conscincia cognoscente vai buscar

    seus contedos. A fonte e o fundamento do conhecimento humano a razo ou a

    experincia?

    Essa a questo sobre a origem do conhecimento.

    Somos conduzidos ao problema verdadeiramente central da teoria do conhecimento

    quando fixamos o olhar sobre a relao entre sujeito e objeto. Na descrio

    fenomenolgica caracterizamos essa relao como uma determinao do sujeito pelo

    objeto. Agora, porm, tambm perguntamos se essa concepo da conscincia natural a

    correta.

    Como veremos mais tarde, numerosos e importantes tericos do conhecimento

    definiram a relao num sentido diametralmente oposto. Segundo eles, a situao real

    exatamente inversa: no o objeto que determina o sujeito, mas o sujeito que determina o

    objeto. A conscincia cognoscente no se comporta receptivamente frente a seu objeto,

    mas ativa e espontaneamente. Pergunta-se qual das duas interpretaes do conhecimento

    humano a correta. De forma abreviada, podemos chamar esse problema de questo

    sobre a essncia do conhecimento humano.

    At agora, quando falamos em conhecimento, sempre pensamos apenas numa

    apreenso racional do objeto. O que se pergunta se, alm desse conhecimento racional,

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    23/116

    23

    existe um outro, de outro tipo, um conhecimento que, por oposio ao conhecimento

    racional-discursivo, poderamos chamar de intuitivo. Essa a questo sobre os tipos de

    conhecimento humano.

    Existe ainda um ltimo problema que entrou em nosso campo visual ao trmino da

    descrio fenomenolgica: a questo sobre o critrio da verdade. Se existe conhecimentoverdadeiro, como posso reconhecer sua verdade? Qual o critrio que me diz em cada

    caso se um conhecimento verdadeiro ou no?

    O problema do conhecimento divide-se, assim, em cinco problemas parciais. No

    restante do livro, eles sero discutidos um aps o outro. Mostraremos, em cada caso, as

    principais solues dadas ao problema no curso da histria da filosofia, e assumindo

    ento uma posio crtica, indicaremos a direo na qual ns mesmos buscamos uma

    soluo.

    A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO

    1. O dogmatismo

    Por dogmatismo (do grego dgma, doutrina estabelecida) entendemos a posio

    epistemolgica para a qual o problema do conhecimento no chega a ser levantado. A

    possibilidade e a realidade do contato entre sujeito e objeto so pura e simplesmente

    pressupostas. auto-evidente que o sujeito apreende seu objeto, que a conscincia

    cognoscente apreende aquilo que est diante dela. Esse ponto de vista sustentado por

    uma confiana na razo humana que ainda no foi acometida por nenhuma dvida.

    O fato de que, para o dogmatismo, o conhecimento no chega a ser um problema,

    repousa sobre uma viso errnea da essncia do conhecimento. O contato entre sujeito e

    objeto no pode parecer questionvel se no se v que o conhecimento apresenta-se numa

    relao. o que ocorre com o dogmtico. Ele no v que o conhecimento ,

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    24/116

    24

    essencialmente, uma relao entre sujeito e objeto. Ao contrrio, acredita que os objetos

    de conhecimento nos so dados como tais, e no pela funo mediadora do conhecimento

    (e apenas por ela). Ele desconsidera esta ltima. E isso vale no apenas para o campo da

    percepo, mas tambm para o do pensamento. Segundo a concepo do dogmatismo, os

    objetos da percepo nos seriam dados diretamente, corporeamente, e assim tambm osobjetos do pensamento. Num caso desconsidera-se a percepo por meio da qual

    determinados objetos nos so dados; no outro, desconsidera-se a funo pensante. O

    mesmo ocorre quanto ao conhecimento dos valores. Tambm os valores esto, para o

    dogmtico, pura e simplesmente a. O fato de pressuporem uma conscincia valorativa

    permanece, para ele, to oculto quanto o fato de todos os objetos de conhecimento

    exigirem uma conscincia cognoscente. Aqui como l, ele desconsidera o sujeito e sua

    funo.

    Segundo o que foi dito, pode-se falar de um dogmatismo terico, tico e religioso.A primeira forma de dogmatismo diz respeito ao conhecimento terico; as duas ltimas,

    ao conhecimento dos valores. O dogmatismo tico lida com o conhecimento moral; o

    religioso, com o conhecimento religioso.

    Sendo a atitude do homem ingnuo, o dogmatismo , tanto psicolgica quanto

    historicamente, o primeiro e mais antigo dos pontos de vista. No perodo inicial da

    filosofia grega, ele predominou de modo quase generalizado. As reflexes

    epistemolgicas esto, de modo geral, afastadas do pensamento dos pr-socrticos (os

    filsofos jnios da natureza, os eleatas, Herclito, os pitagricos). Esses pensadores so

    inspirados ainda por uma confiana ingnua na eficincia da razo humana.

    Completamente voltados para os entes, para a natureza, no percebem o conhecimento

    como problema. Isso s ir acontecer com os sofistas. Eles levantam pela primeira vez o

    problema do conhecimento e tornam o dogmatismo, tomado em sentido estrito, para

    sempre impossvel no campo da filosofia. Dos sofistas em diante, encontraremos em

    todos os filsofos, de uma forma ou de outra, reflexes crticas sobre o conhecimento.

    verdade que Kant acreditava que a designao "dogmatismo" deveria ser aplicada aos

    sistemas metafsicos do sculo XVII (Descartes, Leibniz, Wolff). Essa palavra, porm,

    tinha para ele um significado mais estrito, como sua definio de dogmatismo na Critica

    da razo pura nos leva a reconhecer ("Dogmatismo o proceder dogmtico da razo pura,

    sem a crtica de sua prpria capacidade"). Dogmatismo, para ele, fazer metafsica sem

    ter antes examinado a capacidade da razo humana. Neste sentido, os sistemas

    pr-kantianos da filosofia moderna so, de fato, dogmatismos.

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    25/116

    25

    Isso no quer dizer que falte a esses sistemas toda e qualquer reflexo

    epistemolgica e que ainda no tenham percebido o problema do conhecimento em geral.

    Isso acontece em todos eles, como mostram as discusses epistemolgicas em Descartes

    e Leibniz. No se deve falar aqui num dogmatismo geral e axiomtico, mas num

    dogmatismo especial No se trata de um dogmatismo lgico, mas de um dogmatismometafsico.

    2. O ceticismo

    Extrema se tangunt! Os extremos se tocam! Esta sentena tambm vale no campo

    epistemolgico. Muitas vezes, o dogmatismo transforma-se em seu contrrio, o ceticismo

    (de skptesthai, considerar, examinar). Enquanto o dogmtico encara a possibilidade de

    contato entre sujeito e objeto como auto-evidente, o ctico a contesta. Para o ceticismo, osujeito no seria capaz de apreender o objeto. O conhecimento como apreenso efetiva do

    objeto seria, segundo ele, impossvel. Por isso, no podemos fazer juzo algum; ao

    contrrio, devemos nos abster de toda e qualquer formulao de juzos.

    Enquanto o dogmatismo de um certo modo desconsidera o sujeito, o ceticismo no

    enxerga o objeto. Seu olhar est colado de modo to unilateral ao sujeito, funo

    cognoscente, que desconhece por completo a referncia ao objeto. Sua ateno est

    sempre completamente direcionada aos fatores subjetivos do conhecimento humano.

    Ele observa que todo conhecimento condicionado por peculiaridades do sujeito e

    de seus rgos de conhecimento, bem como por circunstncias externas (meio ambiente,

    cultura). Com isso, desaparece de sua vista o objeto, que , no entanto, necessrio para

    que acontea o conhecimento, que significa exatamente uma relao entre um sujeito e

    um objeto.

    Como o dogmatismo, o ceticismo tambm pode estar associado tanto

    possibilidade do conhecimento em geral quanto de um conhecimento determinado. No

    primeiro caso, estamos diante de um ceticismo lgico, tambm chamado ceticismo

    absoluto ou radical. Se referir-se apenas ao conhecimento metafsico, falaremos de

    ceticismo metafsico.

    Com respeito ao campo dos valores, distinguimos o ceticismo tico do ceticismo

    religioso. Para o primeiro, o conhecimento tico impossvel; para o segundo, o

    religioso.

    Finalmente, cabe distinguir ainda o ceticismo metdico do sistemtico. Aquele est

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    26/116

    26

    relacionado a um mtodo; este, a uma posio de princpio. Esses tipos de ceticismo no

    passam de diferentes formas dessa posio de princpio. Mas o ceticismo metdico

    consiste em pr em dvida tudo que aparece como certo e verdadeiro conscincia

    natural, eliminando toda a inverdade e atingindo um conhecimento absolutamente seguro.

    , sobretudo na Antiguidade que o ceticismo pode ser encontrado. Seu fundador Pirro de lis (360-270 a.C.). Segundo ele, no ocorre contato entre sujeito e objeto.

    A apreenso do objeto vedada conscincia cognoscente. No h conhecimento.

    De dois juzos contraditrios, um exatamente to verdadeiro quanto o outro. Isso

    representa uma negao das leis lgicas do pensamento, em especial do princpio de

    contradio. Como no h juzo ou conhecimento verdadeiro, Pirro recomenda a

    suspenso do juzo, a epokh.

    No to radical quanto este ceticismo antigo ou pirrnico o ceticismo mdio ou

    acadmico de Arcesilau (241 a.C.) e Carnades (129 a.C.). Um conhecimento no sentidoestrito, segundo eles, impossvel. Sendo assim, no devo mais dizer que esta ou aquela

    proposio verdadeira, mas sim que parece ser verdadeira, que verossmil.

    Portanto, no h certeza no sentido estrito, mas apenas verossimilhana. Este

    ceticismo mdio distingue-se do antigo exatamente por estabelecer a possibilidade de se

    chegar a uma opinio verossmil.

    O ceticismo mais recente, cujos principais representantes so Enesidemo (sc. I

    a.C.) e Sexto Emprico (sc. II d.C.), envereda novamente pelo caminho do ceticismo

    pirrnico.

    O ceticismo tambm pode ser encontrado na filosofia moderna. O que encontramos

    aqui, porm, um ceticismo mais especfico e no aquele outro, radical e absoluto.

    No filsofo francs Montaigne (1592), deparamos com um ceticismo, sobretudo

    tico; em Hume, com um ceticismo metafsico. Em Bayle tampouco encontraremos um

    ceticismo no sentido de Pirro, mas, no mximo, no sentido do ceticismo mdio. Em

    Descartes, que proclama os direitos da dvida metdica, temos um ceticismo metdico e

    no de princpio.

    palpvel que o ceticismo radical ou absoluto autodestruidor. Ele afirma que o

    conhecimento impossvel. Com isso, porm, ele expressa um conhecimento

    Conseqentemente, trata o conhecimento como sendo, de fato, possvel, mas, ao mesmo

    tempo, afirma que ele impossvel. O ceticismo padece, assim, de autocontradio.

    O ctico poderia certamente encontrar uma sada. Poderia indicar o juzo "o

    conhecimento impossvel" como duvidoso e dizer: no h nenhum conhecimento, e

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    27/116

    27

    mesmo isto duvidoso. Tambm aqui, porm, h um conhecimento sendo expresso, a

    saber, o conhecimento de que duvidoso que haja conhecimento. Por um lado, portanto, a

    possibilidade do conhecimento ser afirmada pelo ctico e, por outro, ser posta em

    dvida. No fundo, encontramo-nos diante da mesma autocontradio de antes.

    Conforme os cticos antigos j reconheciam, o representante do ceticismo s podecontornar a autocontradio revelada h pouco se suspender o juzo. A rigor, porm, nem

    isso basta. O ctico no pode, na verdade, realizar nenhum ato de pensamento, pois to

    logo o faa estar pressupondo a possibilidade do conhecimento e enredando-se, assim,

    na mesma autocontradio. A aspirao ao conhecimento da verdade , do ponto de vista

    do ceticismo estrito, desprovida de sentido e de valor. Nossa conscincia tica dos

    valores, porm, protesta contra essa concepo. Irrefutvel sob o ponto de vista lgico

    enquanto suspende todo juzo e ato de pensamento - o que, na prtica, certamente

    impossvel - o ceticismo verdadeiramente batido no campo da tica. Ao fim das contas,no rejeitamos o ceticismo porque podemos refut-lo logicamente, mas porque nossa

    conscincia tica dos valores o condena na medida em que considera a aspirao

    verdade como algo dotado de valor.

    Fomos apresentados h pouco a uma forma mitigada de ceticismo segundo a qual

    no h verdade nem certeza, mas apenas verossimilhana. Se assim, no posso mais

    reivindicar a verdade para meus juzos, mas apenas e to-somente a verossimilhana.

    Essa forma, porm, acrescenta s contradies de princpio da posio ctica ainda uma

    outra.

    Com efeito, o conceito de verossimilhana pressupe o de verdade. Verossmil

    aquilo que se aproxima do verdadeiro. Quem sacrifica o conceito de verdade deve

    abandonar tambm o de verossimilhana.

    Por tudo o que foi visto, o ceticismo geral ou absoluto intrinsecamente

    impossvel. No podemos afirmar o mesmo do ceticismo especial. O ceticismo

    metafsico, que nega a possibilidade do conhecimento do supra-sensvel, pode ser falso,

    mas no contm nenhuma contradio interna. O mesmo vale para o ceticismo tico e

    religioso.

    Mas talvez no seja apropriado subordinar esse ponto de vista ao conceito de

    ceticismo. Com efeito, por ceticismo entendemos, antes de mais nada, o ceticismo geral e

    de princpio. Para os outros pontos de vista mencionados, temos outras denominaes. O

    ceticismo metafsico comumente chamado de positivismo. Segundo esse ponto de vista,

    que remonta a A. Comte (1798-1857), devemos nos ater ao que positivamente dado, aos

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    28/116

    28

    fatos imediatos da experincia, mantendo-nos em guarda contra toda e qualquer

    especulao metafsica. No existe saber ou conhecimento filosfico-metafsico, mas

    somente o saber e o conhecimento das cincias particulares. Para o ceticismo religioso,

    empregamos, na maioria das vezes, a designao agnosticismo. Esse ponto de vista,

    estabelecido por Spencer (1820-1903), afirma a incognoscibilidade do absoluto. Omelhor seria conservar a expresso "ceticismo tico". Aqui, porm, estamos diante

    daquilo a que vamos ser apresentados logo mais sob o nome de "relativismo".

    Por mais errado que seja o relativismo, no podemos negar a significao que teve

    para o desenvolvimento espiritual da humanidade e dos indivduos. De certo modo, ele

    um fogo purificador para nosso esprito, purgando-o dos erros e preconceitos e

    impelindo-o a checar constantemente seus juzos. Quem quer que tenha escutado em seu

    ntimo o "sei que nada podemos saber" faustiano, far um trabalho de investigao mais

    cauteloso e precavido. Na histria da filosofia, o ceticismo aparece como antpoda aodogmatismo. Enquanto o dogmatismo enche o pensador e o pesquisador de exagerada

    confiana em face da capacidade da razo humana, o ceticismo mantm desperto o

    sentimento do problema. Crava o aguilho da dvida no peito do filsofo, fazendo que

    este no se aquiete diante das solues j dadas a um problema, mas continue lutando por

    solues novas e mais profundas.

    3. O subjetivismo e o relativismo

    Enquanto o ceticismo ensina que no h verdade alguma, o subjetivismo e o

    relativismo no vo to longe. Para ambos, a verdade certamente existe, mas limitada

    em sua validade. No h verdade alguma universalmente vlida. O subjetivismo, como

    seu nome j indica, restringe a validade da verdade ao sujeito que conhece e que julga.

    Este pode ser tanto o sujeito individual ou indivduo humano quanto o sujeito genrico ou

    o gnero humano. No primeiro caso, temos o subjetivismo individual; no segundo, o

    subjetivismo genrico. De acordo com o primeiro, um juzo vale apenas para o sujeito

    individual que o formula. Quando eu julgo, por exemplo, que 2 X 2 = 4, esse juzo ,

    segundo o subjetivismo, verdadeiro apenas para mim. Para outra pessoa, ele pode ser

    falso. Segundo o subjetivismo genrico, h certamente verdades supra-individuais, mas

    nenhuma que tenha validade geral. Todo juzo tem validade apenas para o gnero

    humano. O juzo 2 X 2 = 4 vale para todo indivduo humano. Que valha tambm para

    seres diferentemente organizados algo, no mnimo, duvidoso. Seja como for, o fato

    que existe a possibilidade de que um juzo verdadeiro para os homens seja falso para seres

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    29/116

    29

    de outro tipo. O subjetivismo genrico idntico, por isso, ao psicologismo ou

    antropologismo.

    O relativismo tem parentesco com o subjetivismo. Tambm para ele, no h

    qualquer validade geral, nenhuma verdade absoluta. Toda verdade relativa, tem

    validade restrita. Mas enquanto o subjetivismo faz o conhecimento humano depender defatores que residem no sujeito cognoscente, o relativismo enfatiza mais a dependncia

    que o conhecimento humano tem de fatores externos. Como fatores externos considera,

    sobretudo a influncia do meio ambiente e do esprito da poca, bem como a pertinncia a

    um determinado crculo cultural e os fatores determinantes nele contidos.

    A exemplo do que ocorria com o ceticismo, tambm podemos encontrar o

    subjetivismo e o relativismo na Antiguidade. Os representantes clssicos do subjetivismo

    so os sofistas. Sua tese fundamental expressa na conhecida proposio de Protgoras

    (sc. V a.C.) "pnton khremton mtron nthropos": o homem a medida de todas ascoisas. Esse princpio do homo mensura, como abreviadamente chamado, muito

    provavelmente era tomado no sentido do subjetivismo individual. O subjetivismo

    genrico que, como j dissemos, idntico ao psicologismo encontra at hoje seus

    representantes. O mesmo vale para o relativismo. Recentemente, Spengler defendeu-o em

    seu livro Decadncia do Ocidente. "S h verdades", diz ele, "em relao a uma

    hominalidade determinada". O mbito de validez da verdade coincide com o mbito

    cultural do qual provm seu defensor. Todas as verdades matemticas, filosficas e das

    cincias naturais valem apenas no mbito cultural a que pertencem. No existe filosofia,

    matemtica ou fsica universalmente vlida, apenas uma filosofia fustica e uma

    apolnea, uma matemtica fustica e uma apolnea, e assim por diante.

    O subjetivismo e o relativismo padecem de contradies semelhantes s do

    ceticismo. Este afirma no haver verdade alguma e, com isso, se contradiz. O

    subjetivismo e o relativismo afirmam que no h nenhuma verdade universalmente

    vlida. Mas h, tambm aqui, uma contradio, pois contra-senso falar de uma verdade

    que no seja universalmente vlida. A validade universal da verdade tem fundamento na

    prpria essncia da verdade. Verdade quer dizer concordncia do juzo com o estado de

    coisas objetivo. Ocorrendo tal concordncia, no faz sentido limit-la a um certo nmero

    de indivduos. Se a concordncia existe, existe para todos. O dilema consiste no seguinte:

    ou o juzo falso e, ento, no vale para ningum, ou verdadeiro e, nesse caso, vlido

    para todos, tem validade universal. Se assim, est se contradizendo quem se apega ao

    conceito de verdade e, ao mesmo tempo, afirma que no h verdade universalmente

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    30/116

    30

    vlida.

    No fundo, subjetivismo e relativismo so ceticismos, pois tambm negam a

    verdade, no diretamente, mas indiretamente, na medida em que contestam sua validade

    universal.

    O subjetivismo se contradiz na medida em que, como questo de fato, reclama paraseu juzo "toda verdade subjetiva" uma validade mais do que subjetiva. Quando o

    subjetivista formula seu juzo, certamente no pensa - "isto vale apenas para mim; para os

    outros, no tem qualquer validade". Se outra pessoa objetasse - "com o mesmo direito

    com que voc diz que toda verdade subjetiva, eu digo que toda verdade tem validade

    universal" -, ele seguramente no estaria de acordo. Mas isso prova que, como questo de

    fato, ele atribui validade universal a seu juzo. E faz isso exatamente por estar convencido

    de que seu juzo acerta no alvo, de que traduz um estado de coisas objetivo. Na prtica,

    portanto, ele pressupe a validade universal da verdade que nega teoricamente.O mesmo vale para o relativismo. Se o relativista formula a tese - "toda verdade

    relativa" -, est convencido de que essa proposio traduz um estado de coisas objetivo e

    de que tambm vale para todo sujeito pensante. Quando Spengler, por exemplo, formula a

    proposio citada acima ("s h verdades em relao a uma hominalidade determinada"),

    quer expressar um estado de coisas objetivo que qualquer homem razovel seria capaz de

    reconhecer. Se algum o contestasse, dizendo - "segundo seus prprios axiomas, isso vale

    apenas para o crculo cultural do Ocidente; ora, eu venho de um crculo cultural

    completamente diverso; obedecendo s coeres impostas por meu pensamento, devo

    contrapor outro juzo ao seu: toda verdade absoluta; segundo seus prprios princpios,

    esse meu juzo to justificado quanto o seu; poupar-me-ei, por isso, qualquer

    considerao futura de seu juzo, uma vez que ele tem validade apenas para homens do

    crculo cultural do Ocidente" - se algum falasse assim, Spengler provavelmente

    protestaria aos brados. E, certamente, a coerncia lgica no estaria do seu lado, mas do

    lado do opositor.

    4. O pragmatismo

    O ceticismo um ponto de vista essencialmente negativo. Significa a negao da

    possibilidade do conhecimento. Com o pragmatismo (do grego prgma, ao) moderno, o

    ceticismo d uma guinada para o positivo. Como o ceticismo, ele tambm abandona o

    conceito de verdade como concordncia entre pensamento e ser. Entretanto, no se detm

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    31/116

    31

    nessa negao, mas pe outro conceito de verdade no lugar do que foi abandonado.

    Verdadeiro, segundo essa concepo, significa o mesmo que til, valioso, promotor da

    vida.

    O pragmatismo chega a esse deslocamento valorativo do conceito de verdade

    porque parte de uma determinada concepo da essncia humana. Para ele, o homem ,antes de mais nada, um ser prtico, dotado de vontade, ativo, e no um ser pensante,

    terico. Seu intelecto est totalmente a servio de seu querer e de seu agir. O intelecto no

    foi dado ao homem para investigar e conhecer, mas para que possa orientar-se na

    realidade. dessa determinao prtica de fins que o conhecimento humano retira seu

    sentido e seu valor. A verdade do conhecimento consiste na concordncia do pensamento

    com os objetivos prticos do homem - naquilo, portanto, que provar ser til e benfico

    para sua conduta prtica. Assim, o juzo "a vontade humana livre" verdadeiro porque e

    apenas na medida em que demonstra ser til e benfico para a vida humana,especialmente para a vida em sociedade.

    O filsofo americano William James (t 1910) considerado o verdadeiro fundador

    do pragmatismo. Foi ele quem criou o nome "pragmatismo". Outro destacado

    representante dessa orientao o filsofo ingls Schiller, que cunhou para ela o nome

    "humanismo". O pragmatismo tambm encontrou defensores na Alemanha. Entre eles e

    acima de todos est Friedrich Nietzsche (1900). A partir de sua concepo naturalista e

    voluntarista da essncia humana, ele ensina o seguinte: "A verdade no um valor

    terico, mas uma expresso para a utilidade, para a funo do juzo que conservadora de

    vida e servidora da vontade de poder". Ele expressa esse mesmo pensamento de modo

    ainda mais radical e paradoxal dizendo: "A falsidade de um juzo no constitui objeo a

    esse juzo. A questo em que medida ele promotor da vida, conservador da vida,

    conservador da espcie e at mesmo, talvez, educador da espcie". A Filosofia do como

    se de Hans Vaihinger tambm est no terreno pragmtico. Vaihinger apropria-se da

    concepo de Nietzsche. Tambm para ele, o homem , antes de mais nada, um ser ativo.

    O intelecto no lhe foi dado para que conhea a verdade, mas para que aja. Muitas vezes,

    exatamente por meio de falsas representaes que o intelecto presta servios ao e

    aos objetivos da ao. Nosso entendimento, segundo Vaihinger, trabalha

    predominantemente com suposies sabidamente falsas, com fices. Na medida em que

    demonstram ser teis e favorveis vida, elas aparecem como fices valiosas. A verdade

    , assim, "o erro mais adequado". Finalmente, O. Simmel tambm defendeu o

    pragmatismo em sua Filosofia do dinheiro. Segundo ele, representaes verdadeiras so

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    32/116

    32

    "aquelas que demonstraram ser motivos para aes adequadas e favorveis vida".

    bvio que no correto identificar os conceitos "verdadeiro" e "til". Basta, com

    efeito, examinar um pouco mais de perto o contedo desses conceitos para perceber que

    tm um sentido completamente diferente. A experincia tambm mostra a todo tempo que

    a verdade pode ter efeitos danosos. A esse respeito, a [Primeira] GuerraMundial especialmente instrutiva. De parte aparte, acreditava-se que a verdade

    deveria ser escondida, pois seus efeitos danosos eram temidos.

    As objees aqui levantadas certamente no afetam as posies de Nietzsche e

    Vaihinger. Nenhum dos dois abandona, como foi mostrado, a distino entre

    "verdadeiro" e "til". Eles retm o conceito de verdade no sentido de concordncia entre

    pensamento e ser. Em sua opinio, porm, essa concordncia nunca alcanada por ns.

    No h juzo verdadeiro; ao contrrio, nossa conscincia cognoscente trabalha com

    representaes sabidamente falsas. Esse ponto de vista claramente idntico ao ceticismoe, em funo disso, auto-supressor: fzihinger, com efeito, reivindica verdade para a tese

    de que todo contedo de conhecimento fico. No entanto, os conhecimentos que exps

    na Filosofia do como se pretendem ser mais que fices. Pretendem ser no uma

    "suposio sabidamente falsa", mas a nica teoria correta a respeito do conhecimento

    humano.

    O erro fundamental do pragmatismo consiste em no enxergar a esfera lgica. Ele

    desconhece o valor prprio, a autonomia do pensamento humano. Certamente, por se

    acharem inseridos na totalidade da vida espiritual humana, o pensamento e o

    conhecimento esto em conexo estreita com a vida. O que h de bom e valioso no

    pragmatismo justamente a referncia constante que faz a essa conexo. Essa relao

    estreita entre conhecimento e vida, porm, no nos deve desencaminhar, instigando-nos a

    desconsiderar a autonomia do conhecimento e a fazer dele uma simples funo vital. Isto

    s possvel, conforme mostramos, na medida em que se falsifica o conceito de verdade,

    ou se nega a verdade. Nossa conscincia lgica, porm, protesta contra ambos.

    5. O criticismo

    No fundo, subjetivismo, relativismo e pragmatismo so ceticismos. Como vimos, o

    dogmatismo se contrape a este ltimo. Existe, porm um terceiro ponto de vista que

    poderia superar aquela anttese numa sntese. Esse ponto de vista intermedirio entre o

    dogmatismo e ceticismo chamado de criticismo (de krnein, examinar, pr prova). Ele

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    33/116

    33

    compartilha com o dogmatismo uma confiana axiomtica na razo humana; est

    convencido de que o conhecimento possvel e de que a verdade existe.

    Enquanto, porm, essa confiana induz o dogmatismo a aceitar de modo, por assim

    dizer, inconsciente toda afirmao da razo humana e a no reconhecer nenhum limite

    para a capacidade humana de conhecimento, o criticismo, aproximando-se do ceticismo,junta confiana no conhecimento humano em geral uma desconfiana com relao a

    qualquer conhecimento determinado. Ele pe prova toda afirmao da razo humana e

    nada aceita inconscientemente. Por toda parte pergunta sobre os fundamentos, e reclama

    da razo humana uma prestao de contas. Seu comportamento no nem ctico nem

    dogmtico, mas criticamente inquisidor - um meio termo entre a temeridade dogmtica e

    o desespero ctico. Germes de criticismo existem em todo lugar onde haja reflexes

    epistemolgicas. o que ocorre, na Antiguidade, com Plato e Aristteles e tambm com

    os esticos; na Idade Moderna, com Descartes e Leibniz e, mais ainda, com Locke eHume. O verdadeiro fundador do criticismo, entretanto, Kant, cuja filosofia chamada

    exatamente assim. Kant chegou a esse ponto de vista depois de haver passado tanto pelo

    dogmatismo quanto pelo ceticismo. Ambos os pontos de vista so, segundo ele,

    unilaterais. O primeiro tem "uma confiana cega na capacidade da razo humana"; o

    segundo "a desconfiana adquirida, sem crtica prvia, contra a razo pura". O

    criticismo supera essas duas unilaterais idades. Ele "aquele mtodo da atividade de

    filosofar que investiga tanto a fonte de suas afirmaes e objees quanto os fundamentos

    sobre os quais repousam; um mtodo que nos d a esperana de atingir a certeza".

    Comparado aos outros, esse ponto de vista aparece como o mais maduro. "O primeiro

    passo nos assuntos da razo pura, caracterstico de sua prpria infncia, dogmtico. 0

    segundo passo ctico e testemunha a cautela de um juzo escolado pela experincia.

    Agora, porm, necessrio um terceiro passo, o de um juzo adulto e viril".

    Quanto questo sobre a possibilidade do conhecimento, o criticismo o nico

    ponto de vista correto. Esse juzo no significa, porm, a admisso da filosofia kantiana.

    Devemos distinguir o criticismo enquanto mtodo do criticismo enquanto sistema.

    Em Kant, o criticismo significa ambas as coisas: no apenas um mtodo que G filsofo

    utiliza e ope ao dogmatismo e ao ceticismo, mas tambm o resultado objetivo a que

    chegou com a ajuda desse mtodo. Nessa medida, o criticismo de Kant representa uma

    manifestao particular do criticismo. Quando, pouco acima, chamvamos o criticismo

    de o nico ponto de vista correto, pensvamos no criticismo em geral e no na

    manifestao particular que ele encontrou em Kant. A aceitao do criticismo geral nada

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    34/116

    34

    significa, afinal, seno reconhecer a teoria do conhecimento como disciplina filosfica

    autnoma e fundamental.

    Contra a possibilidade de uma teoria do conhecimento, tem-se objetado que ela

    quer fundamentar o conhecimento ao mesmo tempo que o pressupe, j que ela mesma

    conhecimento. Hegel formulou essa objeo em sua Enciclopdia do seguinte modo: "Ainvestigao do conhecimento no pode ocorrer seno conhecendo; investigar esse assim

    chamado instrumento no significa outra coisa seno conhec-lo. Mas querer conhecer

    antes de conhecer to incongruente quanto a sbia resoluo daquele escolstico -

    aprender a nadar antes de aventurar-se na gua".

    Essa objeo seria pertinente caso a teoria do conhecimento tivesse a pretenso de

    ser totalmente livre de pressupostos, isto , se quisesse provar a possibilidade do

    conhecimento anteriormente a tudo mais. Seria, de fato, uma contradio algum querer

    salvaguardar a possibilidade do conhecimento pela via do conhecimento. No primeiropasso do conhecimento, esse algum j pressuporia aquela possibilidade. Mas a teoria do

    conhecimento no pretende estar livre de pressupostos nesse sentido.

    Muito pelo contrrio, parte do pressuposto de que o conhecimento possvel. A

    partir desse ponto de vista, envereda por um exame crtico dos fundamentos do

    conhecimento humano, de seus pressupostos e condies mais gerais. No h nisso

    qualquer contradio e a teoria do conhecimento 'no sucumbe de modo algum s

    objees de Hegel.

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    35/116

    35

    II - A ORIGEM DO CONHECIMENTO

    Se formulo o juzo "o sol aquece a pedra", eu o fao com base em determinadas

    experincias. Vejo como o sol bate sobre a pedra e, tocando-a, verifico que ela vai ficando

    cada vez mais quente. Em meu juzo, portanto, apoio-me nos dados da viso e do tato, ou,

    em poucas palavras, na experincia.

    Mas meu juzo contm um elemento que no est na experincia. Meu juzo no diz

    simplesmente que o sol bate na pedra e que ela, ento, torna-se quente. Ele afirma que

    entre esses dois processos existe uma conexo interna, causal. A experincia mostra que

    um processo segue-se ao outro. Eu adiciono o pensamento de que um processo ocorre por

    meio do outro, causado pelo outro. Meu juzo "o sol aquece a pedra" exibe, pois, dois

    elementos, um deles proveniente do pensamento. A questo, agora, saber qual dos dois

    decisivo. A conscincia cognoscente apia-se de modo preponderante (ou mesmo

    exclusivo) na experincia ou no pensamento? De qual das duas fontes do conhecimento

    ela extrai seus contedos? Onde localizar a origem do conhecimento?

    A pergunta sobre a origem do conhecimento humano pode ter tanto um sentido

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    36/116

    36

    lgico quanto psicolgico. No primeiro caso, a questo tem o seguinte teor:

    psicologicamente, como se d o conhecimento no sujeito pensante? No segundo caso: em

    que se baseia a validade do conhecimento? Quais so seus fundamentos lgicos? Na

    maioria das vezes, essas duas questes no tm sido separadas na histria da filosofia. E

    existe, de fato, uma ligao interna entre esses dois questionamentos. A resposta questo da validade pressupe uma perspectiva psicolgica determinada. Quem enxerga

    no pensamento humano, na razo, o nico fundamento do conhecimento, est convencido

    da independncia e especificidade psicolgica do processo de pensamento. Por outro

    lado, quem fundamenta todo conhecimento na experincia negar independncia, mesmo

    sob o aspecto psicolgico, ao pensamento.

    1. O racionalismo

    Chama-se racionalismo (de ratio, razo) o ponto de vista epistemolgico que

    enxerga no pensamento, na razo, a principal fonte do conhecimento humano. Segundo o

    racionalismo, um conhecimento s merece realmente esse nome se for necessrio e tiver

    validade universal. Se minha razo julga que deve ser assim, que no pode ser de outro

    modo e que, por isso, deve ser assim sempre e em toda parte, ento (e s ento), segundo

    o modo de ver do racionalismo, estamos lidando com um conhecimento autntico. Ocorre

    algo assim quando, por exemplo, eu expresso o juzo "o todo maior do que a parte" ou

    "todos os corpos so extensos". Em ambos os casos, percebo que deve ser assim e que a

    razo estaria se contradizendo se quisesse afirmar o contrrio. E porque tem que ser assim

    assim sempre e em toda parte. Esses juzos, portanto, possuem necessidade lgica e

    validade universal.

    Algo completamente diferente ocorre com o juzo "todos os corpos so pesados" ou

    "a gua ferve a 100 graus". Aqui, posso apenas julgar: " assim"; no, porm, "deve ser

    assim". Em si e por si mesmo, perfeitamente pensvel que a gua ferva a uma

    temperatura mais alta ou mais baixa. Do mesmo modo, no h qualquer contradio em

    pensar num corpo que no possui peso, pois o conceito de corpo no contm a nota

    caracterstica do peso. No h qualquer necessidade lgica associada a esses juzos e

    falta-lhes, assim, validade universal. Podemos apenas julgar que, at hoje, at onde

    pudemos constatar, a gua ferve a 100 graus e os corpos so pesados.

    Esses juzos, portanto, s valem dentro de um campo determinado. A razo disso

    que, nesses casos, dependemos da experincia. No ocorre o mesmo com os juzos

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    37/116

    37

    anteriormente citados. Julgo que todos os corpos so extensos na medida em que me

    represento claramente o conceito "corpo" e encontro nele a nota caracterstica "extenso".

    Esse juzo no est baseado, portanto, numa experincia qualquer, mas no pensamento.

    Da resulta que os juzos baseados no pensamento, provindos da razo, possuem

    necessidade lgica e validade universal; os outros, no. Assim, prossegue o racionalista,todo conhecimento genuno depende do pensamento. o pensamento, portanto, a

    verdadeira fonte e fundamento do conhecimento humano.

    bvio que um determinado tipo de conhecimento serviu de modelo

    interpretao racionalista do conhecimento. E no difcil dizer qual seja: o

    conhecimento matemtico. Ele predominantemente dedutivo e conceitual. Na

    geometria, por exemplo, todos os conhecimentos so derivados de conceitos superiores e

    axiomas. Nela, o pensamento impera com completa independncia da experincia, na

    medida em que segue apenas suas prprias leis. Por isso, todos os juzos que formuladistinguem-se pelas notas caractersticas da necessidade lgica e da validade universal.

    Se todo o conhecimento humano for concebido e interpretado segundo esse tipo de

    conhecimento, teremos o racionalismo em sua forma mais imediata. Se considerarmos

    mais de perto a histria do racionalismo, encontraremos a uma explicao importante

    para sua origem. da matemtica, mostra-nos a histria, que vm quase todos os

    representantes do racionalismo.

    Encontramos a forma mais antiga de racionalismo em Plato. Ele est convencido

    de que todo saber genuno distingue-se pelas notas caractersticas da necessidade lgica e

    da validade universal. O mundo da experincia est em permanente mudana e

    modificao. Conseqentemente, incapaz de nos transmitir qualquer saber genuno.

    Juntamente com os eleatas, Plato est profundamente imbudo da idia de que os

    sentidos jamais nos fornecero um conhecimento genuno. O que lhes devemos no

    uma epistme, mas uma dxa: no um saber, mas meramente uma opinio. Se no

    devemos, pois, desesperar da possibilidade do conhecimento, deve haver, alm do mundo

    sensvel, um mundo supra-sensvel do qual nossa conscincia cognoscente retira seus

    contedos. Plato chama esse mundo supra-sensvel de mundo das idias. Esse mundo

    no simplesmente uma ordem lgica, mas tambm uma ordem metafsica, um reino de

    entidades ideais. Ele est em relao, primeiramente, com a realidade emprica.

    As idias so os arqutipos das coisas da experincia. Essas coisas obtm seu

    ser-assim, sua essncia peculiar, por "participao" nas idias. Em segundo lugar, porm,

    o mundo das idias est em relao tambm com a conscincia cognoscente. No apenas

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    38/116

    38

    as coisas, como tambm os conceitos por intermdio dos quais ns as conhecemos, so

    derivados do mundo das idias. Mas como isso possvel? a essa questo que a

    doutrina platnica da reminiscncia vem responder. Ela afirma que todo conhecimento

    rememorao. A alma viu as idias num ser-a pr-terreno e, agora, recorda-se delas por

    ocasio da experincia sensvel. Esta, portanto, em relao ao conhecimento espiritual,no tem significao fundamentadora, mas apenas estimuladora. A parte central desse

    racionalismo a teoria da contemplao das idias. Podemos chamar essa forma de

    racionalismo de racionalismo transcendente. Uma forma um pouco diferente

    encontrada em Plotino e Agostinho. O primeiro coloca o mundo das idias no Esprito

    Pensante, o Nous csmico. As idias j no so um reino de entidades existentes por si,

    mas o auto-desdobramento vivo do Nous. Nosso esprito emanou desse Esprito Pensante

    csmico. Entre ambos existe, portanto, a mais ntima conexo metafsica. Logo, torna-se

    dispensvel a suposio de uma contemplao pr-terrena das idias. O conhecimentosimplesmente ocorre quando o esprito humano recebe as idias do Nous, sua origem

    metafsica. Essa recepo caracterizada por Plotino como uma iluminao. "A parte

    racional de nossa alma sempre preenchida e iluminada a partir do alto".Este pensamento

    acolhido por Agostinho e modificado no sentido cristo. No lugar do Nous, entra o Deus

    pessoal do cristianismo. As idias convertem-se nos pensamentos criativos de Deus.

    Agora, o conhecimento ocorre com o esprito humano sendo iluminado por Deus. As

    verdades e conceitos superiores so irradiados por Deus em nosso esprito.

    Paralelamente, preciso observar que, especialmente em seus escritos de maturidade,

    Agostinho reconhece, ao lado daquele saber baseado na iluminao divina, a existncia

    de um outro campo de conhecimento cuja fonte a experincia. Esse campo certamente

    permanece como uma provncia menor do saber, e tanto antes quanto depois, Agostinho

    pensa que todo saber, no sentido prprio e rigoroso da palavra, provm da razo humana

    ou, melhor dizendo, da iluminao divina. O ncleo desse racionalismo est, portanto, na

    teoria da iluminao divina Parece adequado chamar essa forma de racionalismo

    platnico-agostiniana de racionalismo teolgico.

    Na Idade Moderna, esse racionalismo experimenta uma intensificao, como se

    pode observar em Malebranche, filsofo francs do sculo XVII. Sua tese fundamental

    diz o seguinte: "Nous voyons toutes choses en Dieu". Por "choses", ele entende as coisas

    do mundo exterior. No sculo XIX, o filsofo italiano Gioberti ir retomar essa idia.

    Segundo ele, conhecemos as coisas com uma viso imediata do Absoluto em sua

    atividade criadora. Por partir do ser real absoluto, Gioberti chama seu sis- tema de

  • 8/3/2019 JOHANNES HESSEN - Teoria Do Conhecimento

    39/116

    39

    ontologismo. Desde ento, essa designao tem sido aplicada a Malebranche e a

    doutrinas afins, de modo que hoje se entende por ontologismo, num sentido geral, a

    doutrina da intuio racional do absoluto como fonte nica, ou pelo menos principal, do

    conhecimento humano. Essa concepo tambm representante de um racionalismo

    teolgico. Para distingui-la da forma de racionalismo anteriormente apresentada ecaracteriz-la como uma intensificao dessa forma, podemos cham-la de

    teognosticismo.

    Outra forma do racionalismo ir alcanar, no sculo XVII, uma importncia ainda

    maior. Podemos encontr-la no fundador da filosofia moderna, Descartes, e em Leibniz,

    continuador de sua obra. a doutrina das idias conatas ou inatas (ideae innatae), cujas

    primeiras pegadas j encontramos na ltima fase do estoicismo (Ccero) e que ir

    desempenhar um papel to importante na modernidade. Segundo ela, h em ns um certo

    nmero de conceitos inatos, conceitos que so, na verdade, os mais importantes,fundamentadores do conhecimento. Eles no provm da experincia, mas constituem um

    patrimnio original de nossa razo. Se em Descartes esses conceitos estariam mais ou

    menos prontos em ns, para Leibniz eles existem em ns apenas em germe,

    potencialmente. Segundo ele, as idias inatas existem apenas na medida em que nosso

    esprito nasce com a faculdade de construir determinados conceitos independentemente

    da experincia. O axioma escolstico "nihil est in intellectu, quod prius non fuerit in

    sensu" completado por Leibniz com uma importante adio: "nisi intellectus ipse".

    Podemos chamar essa forma de racionalismo, em contraposio ao teolgico e ao

    transcendente, de racionalismo imanente.

    No sculo XIX, deparamos com uma ltima forma de racionalismo. As formas

    mencionadas at aqui fazem um amlgama de questionamentos lgicos e psicolgicos.

    Segundo elas, tudo que tem validade independentemente da experincia deve tambm

    surgir independentemente da experincia. Ao contrrio delas, a forma de racionalismo de

    que estamos falando distingue nitidamente a questo sobre a origem psicolgica da

    questo sobre a validade lgica