John Locke - Segundo Tratado Sobre o Governo

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CLUBE DO LIVRO LIBERAL JOHN LOCKE SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL 

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  • CLUBE DO LIVRO LIBERAL

    JOHN LOCKE

    SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL

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    SEGUNDO TRATADO DO GOVERNO CIVIL

    John Locke

    Traduo: Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa Publicao: Editora Vozes

    Organizao: Igor Csar F. A. Gomes Distribuio: Clube do Livro Liberal

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 3

    NDICE Introduo .......................................................................................................................................................................... 4

    Notas sobre o Texto ..................................................................................................................................................... 21

    Resumo do Primeiro Tratado do Governo Civil................................................................................................ 22

    CAPTULO I ............................................................................................................................................................................................................. 22

    CAPTULO II: DO PODER PATERNO E REAL ............................................................................................................................................ 23

    CAPTULO III: DO TTULO DE ADO SOBERANIA PELA CRIAO ........................................................................................... 26

    CAPTULO IV: DO TTULO DE ADO SOBERANIA POR ADOO (GN 1,28) ......................................................................... 29

    CAPTULO V: DO TTULO DE AO SOBERANIA PELA SUJEIO DE EVA ............................................................................ 29

    CAPTULO VI: DO TTULO DE ADO SOBERANIA PELA PATERNIDADE ............................................................................... 29

    CAPTULO VII: DA PATERNIDADE E DA PROPRIEDADE ................................................................................................................... 30

    CAPTULO VIII: DA TRANSMISSO DO PODER MONRQUICO SOBERANO DE ADO ......................................................... 31

    CAPTULO IX: DA MONARQUIA COMO HERANA RECEBIDA DE ADO .................................................................................... 31

    CAPTULO X: DO HERDEIRO DO PODER MONRQUICO DE ADO ............................................................................................... 32

    CAPTULO XI: QUEM ESTE HERDEIRO? ................................................................................................................................................. 32

    Segundo Tratado Sobre O Governo Civil ............................................................................................................. 35

    CAPTULO I: ENSAIO SOBRE A ORIGEM, OS LIMITES E OS FINS VERDADEIROS DO GOVERNO CIVIL ........................ 35

    CAPTULO II: DO ESTADO DE NATUREZA ................................................................................................................................................ 36

    CAPTULO III: DO ESTADO DE GUERRA .................................................................................................................................................... 39

    CAPTULO IV: DA ESCRAVIDO..................................................................................................................................................................... 41

    CAPTULO V: DA PROPRIEDADE ................................................................................................................................................................... 42

    CAPTULO VI: DO PODER PATERNO ........................................................................................................................................................... 49

    CAPTULO VII: DA SOCIEDADE POLTICA OU CIVIL ............................................................................................................................ 56

    CAPTULO VIII: DO INCIO DAS SOCIEDADES POLTICAS ................................................................................................................. 61

    CAPTULO IX: DOS FINS DA SOCIEDADE POLTICA E DO GOVERNO ........................................................................................... 69

    CAPTULO X: DAS FORMAS DA COMUNIDADE CIVIL .......................................................................................................................... 70

    CAPTULO XI: DA EXTENSO DO PODER LEGISLATIVO .................................................................................................................... 71

    CAPTULO XII: DOS PODERES LEGISLATIVO, EXECUTIVO E FEDERATIVO DA COMUNIDADE CIVIL ........................... 74

    CAPTULO XIII: DA HIERARQUIA DOS PODERES DA COMUNIDADE CIVIL ............................................................................... 76

    CAPTULO XIV: DA PREROGATIVA .............................................................................................................................................................. 79

    CAPTULO XV: DO PODER PATERNO, POLTICO E DESPTICO CONSIDERADOS EM CONJUNTO ................................. 82

    CAPTULO XVI: DA CONQUISTA .................................................................................................................................................................... 83

    CAPTULO XVII: DA USURPAO .................................................................................................................................................................. 89

    CAPTULO XVIII: DA TIRANIA ........................................................................................................................................................................ 90

    CAPTULO XIX: DA DISSOLUO DO GOVERNO .................................................................................................................................... 93

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    Introduo

    J.W. GOUGH

    O Tratado sobre o governo civil de LOCKE freqentemente descrito como uma defesa da Revoluo de

    1688 e uma justificativa dos princpios dos Whigs que se tornaram dominantes na poltica inglesa durante o sculo seguinte. Em seu prefcio ele declarou explicitamente que esperava instaurar o trono de nosso grande restaurador, nosso atual rei William; apoiar seu ttulo com a concordncia do povo... e justificar diante do mundo o povo da Inglaterra, cujo amor por seus direitos justos e naturais, com sua deciso de preserv-los, salvou a nao, quando esta se encontrava beira da escravido e da runa. No entanto, seria um erro supor que Locke tenha deliberadamente se posicionado para fundamentar os argumentos utilizados pelos polticos Whigs na Conveno, pois em muitos pontos seu raciocnio diferia do deles, seguindo uma linha de pensamento que desenvolveu de maneira independente. Uma exposio concisa da essncia de sua teoria poltica aparece no incio do esboo de Um ensaio sobre a tolerncia, que ele escreveu no incio de 1667, mas no o publicou1. Que toda a investidura de toda a responsabilidade, poder e autoridade do magistrado tenha como nico propsito o de proporcionar o bem-estar, a preservao e a paz dos homens na sociedade que ele est defendendo, e assim apenas isso e deve ser o padro e a medida segundo os quais ele deve estabelecer e ajustar suas leis, o modelo e a estrutura de seu governo. Pois se os homens pudessem viver juntos de modo pacfico e calmo, sem estarem subjugados a certas leis e desenvolvendo-se no interior de uma sociedade poltica, no haveria nenhuma necessidade de magistrados ou de poltica, que s foram criados para defender os homens deste mundo da fraude e da violncia uns dos outros; por conseguinte, o objetivo do governo instalado deveria ser a nica medida de seu procedimento. Em seguida ele rejeita a idia da monarquia absoluta por direito divino ou oriunda de uma concesso de poder outorgado pelo povo, pois no se pode supor que o povo concedesse a um ou mais de seus compatriotas uma autoridade a ser exercida sobre ele por qualquer outro motivo que no o de sua prpria preservao, ou estender os limites de sua jurisdio alm dos limites desta vida. Locke era sem dvida um Whig, tendo passado grande parte de sua vida em um ambiente permeado pelas doutrinas dos Whigs; mas se a publicao de seu Tratado foi inspirado pela Revoluo, fica evidente que ele estruturou os fundamentos de suas convices polticas antes de 1688.

    Nascido em 16322, Locke era filho de um advogado de provncia, que no gostava de acumular riquezas,

    serviu no exrcito do parlamento na Guerra Civil, e deu a seus filhos uma educao puritana. John foi enviado Escola de Westminster, que apoiava a causa do parlamento, e em 1652 passou para a Christ Church, Oxford, ali permanecendo com uma bolsa de estudos aps sua graduao. Seus estudos foram feitos dentro do esprito escolstico convencional que ainda prevalecia em Oxford, e mais tarde queixou-se de ter desperdiado seu tempo; mas suas leituras tambm abrangeram outros campos, incluindo o hebraico e o rabe, e desse modo ele entrou em contato com o professor dessas lnguas, Edward Pococke, a quem muito admirava. Pococke era um franco defensor da realeza, e sua influncia, juntamente com a de outros amigos em Oxford, muitos dos quais apologistas da realeza, pode ter contribudo para afastar Locke das influncias puritanas de sua infncia. O Deo da Christ Church e Vice-Chanceler naquela poca, John Owen, era um telogo independente que defendia a tolerncia; embora Locke simpatizasse com ele nesse aspecto, e tambm tivesse um relacionamento amigvel com Richard Baxter e outros importantes no-conformistas, na teologia ele se encontrava mais vontade com a escola de tendncia libera l representada na Inglaterra pelos platonistas de Cambridge e seus sucessores, os latitudinrios, e na Holanda pelos arminianos. Seu interesse pela filosofia foi despertado por meio dos escritos de Descartes, e atravs da amizade com Robert Boyle ele tambm desenvolveu uma inclinao para as cincias naturais. Como vrios de seus contemporneos, impressionou-se pelo sucesso de seus novos mtodos empricos, e durante algum tempo a cincia, particularmente a medicina, tornou-se seu principal interesse. Foi isso que

    1 Publicado por H.R. Fox Bourne em Life of John Locke , 1876, i. p. 174-194.

    2 Locke nasceu em Wrington, ao norte de Somerset, mas durante sua infncia viveu prximo a Pensford, alguns quilmetros a leste no mesmo condado.

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 5 propiciou a estreita associao entre ele e Lord Ashley, mais tarde Conde de Shaftesbury, um dos episdios mais importantes na carreira de Locke.

    Seu primeiro encontro com Ashley ocorreu em 1666, e houve uma imediata afinidade entre ambos,

    resultando em 1667 no oferecimento e aceitao por parte de Locke do cargo de mdico da famlia Ashley, o que motivou sua transferncia para Londres para morar na casa de Ashley. Logo tornou-se muito mais que conselheiro mdico de Ashley, e era por ele consultado em muitas das atividades polticas em que estava engajado. Em 1672, quando Ashley se tornou Conde de Shaftesbury e presidente da Cmara dos Lordes, Locke foi designado secretrio para as nomeaes eclesisticas, um ano mais tarde tornando-se secretrio do Conselho do Comrcio e da Agricultura, de que Shaftesbury era presidente. Nessa qualidade, Locke foi responsvel pelo esboo das Constituies fundamentais do Estado da Carolina; mas ainda que ele tivesse aprovado a liberdade religiosa que l deveria ser permitida, parece claro que ele no imaginou os singulares dispositivos constitucionais incorporados neste projeto.

    A sade de Locke era frgil e ameaava sucumbir sob a presso do trabalho que seus compromissos

    polticos envolviam. Em 1675 decidiu ir para o exterior, passando os quatro anos subseqentes viajando pela Frana. Em 1679, no auge da crise sobre a Carta de Excluso, ele mais uma vez prestou servios a Shaftesbury por um curto perodo, at que, novamente por problemas de sade, deixou Londres e retornou Christ Church. Permaneceu em Oxford durante os dois anos seguintes, fazendo apenas visitas ocasionais a Londres, mas nesse meio tempo Shaftesbury apoiou o Duque de Monmouth e teve de se asilar na Holanda, onde morreu em janeiro de 1683. Locke no estava implicado nas conspiraes de Shaftesbury, mas suas simpatias polticas e sua amizade com Shaftesbury eram bem conhecidas e, conseqentemente, ficou sob suspeita. Consciente de que sua conduta e suas conversas estavam sendo vigiadas, decidiu que seria prudente seguir seu patro no exlio, e em setembro de 1683 chegou a Rotterdam. O governo encarou isso como um reconhecimento de sua culpa, e em novembro de 1684, por ordem expressa do rei, ele foi privado de sua bolsa de estudos na Christ Church. No ano seguinte, aps a derrota da rebelio de Monmouth, Locke foi acusado de estar envolvido na conspirao, e embora posteriormente tenha-lhe sido perdoado, ele decidiu permanecer na Holanda, e somente em fevereiro de 1689 retornou Inglaterra, no mesmo navio que conduzia a Princesa Mary.

    A sade de Locke melhorou muito na Holanda, alm de l ter tido tempo para estudar, escrever e fazer

    muitos amigos. A tolerncia era um tema bastante discutido na Holanda nessa poca, sobre o qual Locke j tinha opinio formada, e no inverno de 1685-6 ele escreveu em latim a carta a seu amigo holands, o telogo Limborch, que foi publicada em 1689 com o ttulo Epistola de Tolerantia. No mesmo ano uma verso em ingls foi publicada anonimamente por William Popple, que provavelmente escreveu o famoso prefcio que a precede. Durante este perodo, Locke tambm fez progressos em sua maior obra, o Ensaio sobre o entendimento humano, a que j estava se dedicando h muitos anos. Este foi publicado em 1690, no mesmo ano em que tambm foram publicados os Tratados sobre o governo civil. Assim como a Carta sobre a tolerncia, os Tratados tiveram uma primeira publicao annima, embora a autoria de Locke fosse amplamente conhecida.

    Assim sendo, o perodo da Revoluo e os anos de exlio que o precederam viram Locke no auge de sua

    criatividade e dedicado produo de suas mais clebres obras. Na Holanda, ele encontrou, em sua sede principal, a teologia dos arminianos, que correspondia bem de perto aos seus prprios pontos de vista religiosos, e isso pode ter contribudo para fortalecer sua crena em uma igreja abrangente e tolerante, baseada apenas em doutrinas que a razo aceitaria como essenciais. Embora na Holanda, Locke tambm entrou mais uma vez em contato com a poltica dos Whigs e se preocupou, embora nos primeiros estgios, com os planos para a expedio de Guilherme de Orange. Ao voltar Inglaterra, ele foi muito respeitado, tendo-lhe sido oferecido um cargo de embaixador junto ao Eleitor de Brandenburg. Ele recusou o posto por motivos de sade, mas aceitou do rei uma nomeao como Comissrio de Apelao, em 1696, tornando-se Comissrio do Conselho de Comrcio e Agricultura. Entretanto, suas condies de sade tornaram-se incompatveis com o trabalho envolvido, e ele se recolheu casa de Sir Francis e Lady Masham (filha de Ralph Cudworth, platnico de Cambridge) em Oates, no Essex. A passou seus ltimos anos, at sua morte em 1704. Continuou a estudar e a escrever, produzindo uma edio revista do Ensaio e envolvendo-se em uma controvrsia prolongada para defender sua Carta sobre a tolerncia contra um oponente, Jonas Proast, do Queens College, de Oxford. Escreveu tambm sobre educao e sobre questes econmicas, mas seu principal interesse nos ltimos anos parece ter sido a teologia. Em 1695 publicou uma obra intitulada A racionalidade da cristandade, envolvendo-se em uma controvrsia a

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    respeito da Trindade com Stillingfleet, Bispo de Worcester; sua ltima obra, publicada aps sua morte, era uma parfrase e comentrios sobre epstolas de So Paulo.

    Na teologia, assim como na poltica e na cincia, Locke foi identificado com o movimento racionalista de

    sua poca; mas se nos reportarmos a seus escritos e perguntarmos de onde exatamente ele derivou seus pontos de vista sobre este ou aquele tema, ou que influncia em particular ele sofreu, a resposta no fcil. No geral, suas idias polticas no eram originais, seja em sua estrutura principal ou nos detalhes, e podem ser encontradas semelhanas bvias entre seus argumentos e aqueles de Milton, Algernon Sidney e vrios outros predecessores menos conhecidos. Mas isso no significa que ele tenha derivado suas idias das deles, e de fato ele declarou mais tarde que nunca tinha lido os Discursos sobre o governo de Sidney. Com exceo de algumas passagens de Barclay3 prximo ao final do Segundo tratado, a nica obra que Locke citou extensivamente foi Leis da poltica eclesistica , de Richard Hooker. Hooker foi um expoente da mesma tradio no pensamento religioso e poltico ingls a que se vincularam depois os platnicos de Cambridge e o prprio Locke; mas seria um erro considerar Hooker como a nica ou mesmo a principal fonte das idias de Locke, pois escolhendo-o para suas citaes, Locke pode bem ter sentido que ele estava apelando para uma autoridade altamente respeitada que valeria para seus oponentes anglicanos e Tories*.

    Locke foi por muitos anos um estudioso e fez leituras de maneira muito ampla, como mostram seus

    dirios e cadernos de anotaes. Evidentemente ele seguiu durante um extenso perodo as correntes de pensamento que levaram ao Ensaio sobre o entendimento humano, e a tolerncia foi outro tema sobre o qual ele refletiu longamente. Suas idias polticas bsicas tambm j estavam estruturadas, mas ele provavelmente no elaborou qualquer teoria poltica sistemtica at ir para a Holanda, onde se sentiu impelido a faz-lo pelo curso dos acontecimentos. Sua atitude geral foi determinada pelas vinculaes de sua vida sua educao puritana, suas ligaes com os Whigs e seu exlio. Mas ao contrrio de muitos escritores de sua poca, ele no tentava transmitir suas convices multiplicando as citaes de autoridades: buscava antes demonstrar cada ponto considerando-o racionalmente, sem referncia ao que seus antecessores haviam dito, e com freqncia suas passagens mais felizes so os exemplos mais simples e lcidos com que ele ilustra seu pensamento. Mas embora ele tentasse, e conseguisse, abordar cada ponto de uma forma nova, sem dvida ponderou e absorveu as idias de uma ampla variedade de escritores anteriores. A importncia de seu pensamento no ter sido original ou particularmente radical ou avanado, mas ter resumido e consolidado a obra de toda uma gerao ou mais de pensadores polticos.

    O Primeiro tratado sobre o governo civil uma refutao dos falsos princpios contidos no Patriarcha de

    Sir Robert Filmer. Esta obra, publicada em 1680, mas escrita muitos anos antes, em que o direito divino da monarquia absoluta baseado na descendncia hereditria de Ado e dos patriarcas, em geral rejeitada como sem valor, e tem sido comentado que apenas o ataque de Locke a ela preservou-a do esquecimento. Por outro lado, o Sr. J.W. Allen defendeu4 que Filmer foi um pensador importante e original, sendo equivocado associ-lo apenas com uma teoria patriarcal e injusto record-lo somente atravs de sua caricatura apresentada por Locke; pois em sua Anarquia de uma monarquia limitada e mista (1648), suas Observaes sobre a Poltica de Aristteles (1652) e outras obras, ele teve o mrito, com freqncia atribudo a Hobbes, de claramente perceber a natureza e a necessidade da soberania. Locke conhecia as obras anteriores de Filmer, pois faz aluso a algumas delas no segundo captulo do Primeiro tratado, mas a razo porque escolheu Patriarcha como o objeto de seu ataque bem clara. As outras obras de Filmer provavelmente no eram to conhecidas quando Locke estava escrevendo, enquanto Patriarcha havia sido recentemente publicado e j era um motivo de controvrsia, pois James Tyrrell e Algernon Sidney a contestaram e, por sua vez, provocaram o surgimento de outros panfletos em sua defesa; alm disso, o direito hereditrio divino era a doutrina Tory oficial, e os argumentos a seu favor em Patriarcha se autodestruram.

    O ataque de Locke a Filmer principalmente destrutivo e de pouco interesse intrnseco hoje em dia, e seu

    Primeiro tratado por isso omitido deste volume; mas Locke estava bem consciente de que Hobbes, embora jamais tenha encontrado apoio nos crculos da corte, era o mais srio inimigo que ele teria de combater, e no

    3 William Barclay, jurista escocs, escreveu para defender o direito divino dos reis contra Buchanan e outros oponentes do absolutismo no sculo anterior.

    4 Em Social and Political Ideas of some English Thinkers of the Augustan Age, ed. F.J.C. Hearnshaw, 1928, p. 27s; cf. tambm com S.P. Lamprecht, The Moral and

    Political Philosophy of John Locke, Nova Iorque, 1918, p. 41s.

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 7 Segundo tratado, que contm sua obra construtiva, est claro que ele tinha Hobbes muito em mente, ainda que se abstivesse de mencion-lo nominalmente.

    O Segundo tratado, assim como muitos outros tratados polticos desse perodo, comea com um relato do

    estado de natureza. uma condio em que os homens so livres e iguais, mas no um estado de permissividade em que eles podem pilhar um ao outro. O estado de natureza tem uma lei da natureza para govern-lo, a que todos esto sujeitos; e a razo, que aquela lei, ensina a todo o gnero humano... que, sendo todos iguais e independentes, ningum deve prejudicar o outro em sua vida, sade, liberdade ou posses. Isto porque todos so obra do Criador onipotente e infinitamente sbio... enviados ao mundo por sua ordem e a seu servio5. Um homem que transgride a lei da natureza declara viver sob outra regra que no aquela da razo e da eqidade comum... e assim torna-se perigoso ao gnero humano. Todo homem, por isso, pelo direito que tem de preservar o gnero humano em geral... tem o direito de punir o ofensor e ser o executor da lei da natureza6. Ele tem o poder7 de matar um assassino, tanto para impedir que outros cometam um delito semelhante... quanto para proteger os homens dos ataques de um criminoso que, havendo renunciado razo, regra comum e medida que Deus deu ao gnero humano, atravs da violncia injusta e da carnificina que cometeu sobre outro homem, declarou guerra a todo o gnero humano e por isso pode ser destrudo como um leo ou um tigre, uma daquelas bestas selvagens em cuja companhia o homem no pode viver nem ter segurana8.

    O estado de natureza contrastado com a sociedade civil, da qual difere pela falta de um juiz comum

    com autoridade, mas o estado de natureza no , como em Hobbes, essencialmente um estado de guerra. A caracterstica de um estado de guerra a fora, ou uma inteno declarada de fora sobre a pessoa do outro, em que no h um superior comum na terra a quem apelar por socorro9. Mas Locke no imaginou o estado de natureza como sendo uma espcie de paraso, e de fato a guerra poderia prevalecer nele. Admite a inconvenincia do estado de natureza, em que todo homem tem o poder executivo da lei da natureza em suas prprias mos, e ele est consciente de que a natureza doentia, a paixo e a vingana podem levar o homem longe demais na punio dos outros, e da em diante s advir a confuso e a desordem10. O estabelecimento de um governo, mas no de um governo absoluto, a soluo adequada. Alm disso, o homem no foi destinado a viver sozinho; Deus o colocou sob fortes imposies de necessidade, convenincia e inclinao, para gui-lo para a sociedade, assim como o dotou de compreenso e de linguagem para permanecer e desfrutar dela11. H uma sociedade natural na famlia, mas ela est aqum da sociedade poltica, pois o pater familias no tem poder legislativo de vida e de morte sobre os membros de sua famlia12 e na verdade no tem poderes alm dos que uma me de famlia pode ter tanto quanto ele13. A sociedade poltica s existe onde os homens concordaram em desistir de seus poderes naturais e erigir uma autoridade comum para decidir disputas e punir ofensores. Isso s pode ser realizado por acordo e consentimento. Liberdade no significa que um homem possa fazer exatamente o que lhe agrada, sem considerao a qualquer lei, pois a liberdade natural do homem ser livre de qualquer poder superior na terra, e de no depender do desejo ou da autoridade legislativa do homem, mas ter apenas a lei da natureza para regulament-lo, enquanto sob governo um homem livre quando tem um regulamento determinado para gui-lo, comum a todos daquela sociedade, e criado pelo poder legislativo nela erigido. A essncia da liberdade poltica, na verdade, que um homem no dever estar sujeito vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrria de outro homem14.A lei no incompatvel com a liberdade; ao contrrio, indispensvel a ela, pois o objetivo de uma lei no abolir ou restringir, mas preservar e ampliar a liberdade ...

    5 Pargrafo 6.

    6 Pargrafo 8.

    7 Por poder Locke se refere aqui a poder executivo, como na passagem citada algumas linhas abaixo. No estado da natureza todo homem no somente tem um direito

    natural de punir os ofensores, mas tambm inevitavelmente o instrumento da lei da natureza. 8 Pargrafo 11.

    9 Pargrafo 19.

    10 Pargrafo 13.

    11 Pargrafo 77.

    12 Exceto sobre os escravos, cuja sujeio quando so cativos aprisionados em uma guerra justa Locke justifica pelo direito da natureza. Sua discusso da

    escravido breve e superficial (pargrafos 24, 85) e se tivesse se dedicado mais ao tema certamente teria reconhecido sua incompatibilidade com sua doutrina fundamental da liberdade individual. 13

    Pargrafo 86. 14

    Pargrafo 57.

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    Pois a liberdade deve ser livre de restrio e violncia por parte dos outros, o que no pode existir onde no h lei15.

    Antes de tratar da criao da sociedade civil, Locke dedica dois longos captulos s questes da propriedade e do poder paterno. Neste ltimo ele amplia sua doutrina sobre a igualdade natural e sobre a liberdade dos homens. As crianas ... no nascem neste estado amplo de igualdade, embora nasam para ele. Primeiro as crianas esto sujeitas ao controle e jurisdio paternos, mas apenas por algum tempo; medida que a criana cresce, estes vnculos praticamente desaparecem, dando lugar a um homem com sua prpria disposio livre16. De fato, nascemos livres assim como nascemos racionais; no que tenhamos realmente o exerccio dessas duas prerrogativas: a idade que traz uma delas, traz tambm a outra17. Em outras palavras, a liberda de depende da razo, do poder do julgamento independente, que capacita um homem a orientar sua vida pela lei da natureza.

    Considerando que o propsito do governo salvaguardar os direitos naturais do homem, Locke defende que estes direitos pertencem a ele no estado de natureza, e anseia por provar que entre eles est o direito da propriedade. Ele pressupe que Deus deu a terra e tudo o que ela contm ao gnero humano em comum, mas, prossegue ele, todo homem tem uma propriedade em sua prpria pessoa. A esta ningum tem qualquer direito a no ser ele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mos... so propriedade sua. Por isso, seja o que for que ele tira do estado que a natureza proporcionou e ali deixou, ele misturou a o seu trabalho, acrescentando algo que lhe prprio, e assim o torna sua propriedade18. As ilustraes com que ele sustenta esta doutrina so bons exemplos de seu senso comum claro e racional: um homem que colhe frutos do carvalho ou apanha mas de uma rvore e os come, certamente se apropriou deles. Ningum pode negar que o alimento dele. Pergunto, ento, quando comearam a ser dele? Quando ele os digeriu? quando os comeu? quando os cozinhou? quando os levou para casa? ou quando os colheu? E bvio que se o primeiro ato no os tornasse sua propriedade, nada mais poderia faz-lo. Foi seu trabalho que colocou uma distino entre eles e o comum, e os tornou seus19. O trabalho, ento, cria a propriedade, e o mesmo princpio se aplica terra e aos bens mveis; a terra se torna propriedade de um homem quando ele a cercou e a cultivou. Alm disso, o trabalho estabelece a diferena de valor em tudo: a diferena no valor entre um acre de terra cultivada e um acre em comum e sem qualquer cultivo devida quase inteiramente melhoria realizada pelo trabalho 20.

    Locke utilizou aqui um argumento do qual os economistas socialistas posteriormente extrairiam concluses que o teriam surpreendido21, e ele no desenvolveu plenamente as conseqncias de sua doutrina. O ponto que o preocupava era a existncia de um direito de propriedade no estado da natureza, e h objees bvias a isso. Um homem primitivo poderia ter adquirido possesses ou ocupado a terra da maneira que Locke descreve, mas isso no estabelece um direito de propriedade. Uma discusso completa deste ponto envolveria toda a questo dos direitos naturais, e para isso no h espao aqui, mas mesmo que concluamos que h um sentido em que a expresso direitos naturais pode ser adequadamente usada, difcil defender um direito natural de propriedade como distinto do direito legal. Mas Locke ainda foi alm de um direito natural de propriedade e defendeu um direito natural de herana22. Sobre a questo da propriedade Rousseau mais vlido que Locke, pois distinguiu a propriedade da posse, e reconheceu que um direito de propriedade s pode existir quando defendido e garantido pelas leis e pelo governo do estado, e por isso s pode ser sustentado nas condies impostas pelo estado. O mesmo princpio pode ser aplicado pessoa de um homem, sobre a qual Locke fundamentou seu direito de propriedade; pois a segurana da pessoa de um homem depende tanto da eficcia das leis quanto a segurana de sua terra e de seus bens, e por isso no mais sua, no sentido absoluto, que suas 15

    Pargrafo 22. 16

    Pargrafo 55. 17

    Pargrafo 61. 18

    Pargrafo 27. 19

    Pargrafo 28. 20

    Pargrafo 40. 21

    Levaria muito tempo delinear aqui a evoluo da teoria do valor do trabalho. Pode ser observado, no entanto, que Locke no distinguia entre trabalho capitalista e trabalho assalariado. De incio ele estava pensando em proprietrios trabalhando em sua prpria terra ou bens, no em assalariados; mas evidente por suas observaes sobre o sustento (pargrafo 43) que ele estava consciente de que o trabalho no um fator simples. Ver M. Beer, History of British Socialism, ed. 1929, i. 192. 22

    Pargrafo 190.

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 9 posses. Locke tambm tem sido criticado porque, insistindo em um direito natural de propriedade, ele estava encorajando a ganncia do egosta s custas de seus vizinhos mais pobres, do que foram com freqncia acusados os magnatas Whigs dos sculos XVIII e XIX. Mas deve-se observar que Locke no justifica a propriedade ilimitada. Um homem s podia se apropriar da terra desde que deixasse o suficiente e adequado para os outros, e quanto aos bens mveis, s podia monopoliz-los enquanto pudesse fazer uso deles para qualquer proveito antes que deteriorassem ... Seja o que for que ultrapasse a isso ultrapassa a sua cota e pertence a outros23. verdade que pela acumulao de dinheiro, que no se deteriora, na prtica pode-se escapar a este limite24, e a idia de um direito natural limitado de propriedade contm dificuldades que Locke no parece perceber, ou de qualquer maneira no enfrenta; mas difcil acus-lo justamente de encorajar a apropriao ilimitada. Deve tambm ser lembrado que embora ele tenha declarado que o grande e principal objetivo... dos homens se associarem em sociedades polticas e se colocarem sob a tutela do governo a preservao de sua propriedade25, ele definiu a propriedade do homem como sua vida, liberdade e propriedade em outras palavras, ele prprio e seus direitos naturais como um todo, no apenas sua propriedade em seu sentido habitual26. Mas deve-se admitir que Locke no escapa ao risco que todo o escritor sempre corre quando d a uma palavra um significado incomum, pois com muita freqncia ele usa a palavra propriedade tambm em seu sentido habitual em ingls, e no se deve estranhar se isto que ele em geral entendia27.

    Chegamos agora formao da sociedade poltica. Por natureza, todos os homens so livres, iguais e independentes, e nenhum homem pode estar sujeito ao poder poltico de outro sem seu prprio consentimento. Qualquer nmero de homens pode concordar em se juntar para se constituir em um corpo poltico, sem prejuzo dos outros, pois todos aqueles que no concordarem so meramente deixados de fora na liberdade do estado da natureza28. Mas embora este pacto original seja unnime, cada um dos participantes concorda da em diante em se submeter determinao da maioria. A razo que Locke apresenta para isso curiosamente mecnica e insatisfatria, e sugere que ele no considerou suficientemente as implicaes do princpio da maioria. A fora que faz uma comunidade, observa ele, sempre o consentimento de seus indivduos, e como todo objeto que forma um s corpo deve mover-se numa s direo, necessrio que o corpo se mova na direo para onde a fora maior o conduz, que o consentimento da maioria 29. Por propsitos prticos, sem dvida, a comunidade deve mover-se em uma direo, mas isso pouco compatvel com o princpio do consentimento se a minoria for na verdade simplesmente neutralizada pela fora maior da maioria.

    No pacto original os homens no abrem mo de todos os seus direitos. Eles s renunciam a tanto de sua liberdade natural quanto seja necessrio para a preservao da sociedade; abrem mo do direito que possuam no estado de natureza de julgar e punir individualmente, mas retm o remanescente de seus direitos sob a proteo do governo que concordaram em estabelecer. Certamente no estabelecem (como na teoria de Hobbes) um soberano absoluto e arbitrrio, como se ento os homens, ao renunciarem ao estado de natureza... concordassem que todos eles, com exceo de um, estariam sob as exigncias das leis; mas que este deveria ainda manter toda a liberdade do estado de natureza, aumentado com a fora e tornado desregrado pela impunidade30 .

    Ser que Locke pretendia que sua considerao do pacto original fosse encarado como historicamente

    verdadeiro? Ele est consciente de que no h exemplos a serem encontrados na histria de um grupo de homens, independentes e iguais uns aos outros, que se reuniram e dessa maneira comearam e instituram um governo. Mas argumenta em resposta que o governo em toda parte anterior aos registros, e embora admita

    23

    Pargrafo 31. 24

    Pargrafo 50. 25

    Pargrafo 124. Em outra parte ele diz que o governo no tem outro objetivo a no ser a preservao da propriedade (pargrafo 94). 26

    Pargrafos 87, 123; e cf. C.H. McIlwain, The Growth of Political Theory in the West, 1932, p. 199, n. 1. 27

    A contnua insistncia de Locke sobre a santidade da propriedade o conduz a formular o que ele confessa que parecer uma doutrina estranha, quando declara que um conquistador em uma guerra justa adquire um poder absoluto sobre as vidas daqueles que, colocando-se em estado de guerra, tiveram seus direitos confiscados, mas ele no tem por isso o direito e o ttulo de suas posses (pargrafo 180). A justificativa que ele apresenta que o conquistador no tem o direito de privar de seus bens a esposa e os filhos de seu inimigo derrotado (pargrafo 183). 28

    Pargrafo 95. 29

    Pargrafo 96: Em outra parte (pargrafo 99) ele percebe que os homens poderiam ter expressamente concordado com qualquer nmero maior que a maioria. De fato, muitas estruturas requerem mais que uma simples maioria (por exemplo, uma maioria de dois teros) para decises importantes, mas isso vai mostrar a inadequao de explicao mecnica de Locke do princpio da maioria. 30

    Pargrafo 93.

  • | CLUBE DO LIVRO LIBERAL

    que se olharmos para trs, to longe quanto a histria nos conduzir, para as origens das sociedades polticas, em geral deveremos encontr-las sob o governo e a administrao de um homem, ele sustenta que isso no destri aquilo que eu afirmo, ou seja, que o incio da sociedade poltica depende do consentimento dos indivduos para se reunirem e comporem uma sociedade, na qual, assim incorporados, poderiam desenvolver a forma de governo que considerassem adequada31. Alguns escritores que usaram a teoria do contrato provavelmente nunca pretenderam ser entendidos literalmente; para Hobbes, por exemplo, realmente no foi mais que um artifcio fazer com que uma doutrina intragvel parecesse mais respeitvel, e duvidoso que Rousseau pensasse seu contrato como um fato histrico. Mas no todo sou inclinado a pensar que Locke, como os Whigs de 1688, acreditava no contrato como um acontecimento real, pois ele tenta encontrar alguns exemplos de sua ocorrncia. Mas sua inadequao no lhe parece importar seriamente, e sua concluso de que, afinal, a razo clara em nossa postura de que os homens so naturalmente livres32 sugere que seu interesse primrio no est situado realmente nas origens histricas, mas na justificativa do governo baseado em princpios racionais. Ele argumenta forte objeo sobre se haveria, ou alguma vez houve quaisquer homens em tal estado da natureza, chamando a ateno para o fato de que todos os soberanos e chefes de governos independentes em todo o mundo esto em um estado da natureza: assim, tambm um suo e um ndio das florestas da Amrica esto perfeitamente em estado de natureza um em relao ao outro. Portanto, o estado de natureza existe entre todos os homens que esto em contato um com o outro sem serem sditos de um governo comum, e o ponto sobre o qual ele insiste que os homens em tais circunstncias podem fazer promessas e acordos que os vincularo, pois a verdade e a manuteno da palavra pertencem aos homens enquanto homens e no enquanto membros da sociedade33.

    Uma considerao do estado da natureza foi a abertura habitual de uma longa sucesso de obras de teoria

    poltica, e suas caractersticas variavam, segundo o desejo do autor, desde uma idade de ouro da paz at sordidez e brutalidade da guerra de todos contra todos em Hobbes. Pois esse estado era essencialmente uma abstrao, a qual se chegou imaginando a vida despojada de todas as qualidades que se supe serem devidas sociedade poltica organizada. Para Locke, a caracterstica essencial do estado de natureza era a lei natural. Nisso ele era herdeiro medieval de uma antiga tradio que veio, continuamente modificada durante o processo, dos esticos e dos juristas romanos. Locke herdou esta tradio em parte dos publicistas europeus do sculo XVII, como Grotius e Pufendorf 34, em parte de Hooker, em parte talvez de outros escritores ingleses como Richard Cumberland, que utilizou o conceito da lei da natureza numa rplica a Hobbes. A mesma tradio foi incorporada no ensino dos platnicos de Cambridge, como Whichcote, cujos sermes Locke admirava. Na Idade Mdia, a lei da natureza era comumente identificada com a lei de Deus, e era encarada como uma lei que obriga a todos os homens e a todos os governos, e por isso eram nulos os decretos humanos contrrios a ela. Os pensadores medievais disputavam a questo se ela era correta porque Deus a comandava, ou se Deus a comandava porque ela era correta. Se fosse o ltimo caso, poderia Deus ter comandado tudo o mais, e se no, seria Ele ainda onipotente? Para Locke, a lei da natureza o desejo de Deus para o gnero humano, mas a faculdade da razo do homem, ela em si um dom de Deus, o capacita para perceber sua retido35. Uma das dificuldades de se aplicar a idia de uma lei da natureza prtica poltica que ou ela permanece vaga e geral, ou, tentando-se dar-lhe uma forma concreta, o resultado inevitavelmente dogmtico. Para muitos escritores europeus da escola da lei natural, seu contedo era ainda politicamente real, mas para Locke, assim como para os telogos ingleses aos quais ele seguia, a lei da natureza era em sua essncia mais uma lei moral que uma lei poltica36. Isto, acho eu, realmente o princpio importante sobre o qual ele estava insistindo contra Hobbes. Para Hobbes, a nica lei genuna era o comando de um soberano, e no estado da natureza a fora e a fraude eram as virtudes cardeais. Locke insiste na santidade da obrigao moral e julga a poltica por um padro moral para ele fundamentalmente um padro religioso.

    31

    Pargrafos 100-106. 32

    Pargrafo 104. 33

    Pargrafo 14. Ele deveria ter dito sociedade poltica, pois evidente que o estado da natureza, se nele subsistem os direitos e deveres, em si social, e no um mero vcuo onde os indivduos vagam na solido. 34

    O valor que ele lhes atribui pode ser inferido pela recomendao que faz deles, particularmente Pufendorf, para a educao de um cavalheiro. 35

    Muitos platonistas de Cambridge encaravam a lei da natureza como uma idia inata, e defendiam que a razo poderia desenvolver seu contedo. Locke rejeitou as idias inatas em sua metafsica, e Sir James Stephen (Horae Sabbaticae, 2 srie, 1892, p. 140-156) criticou Locke por t-las adotado de forma inconsistente em sua teoria poltica. Isso no justo para com Locke, pois ele no considerava o conhecimento moral como inato; mas verdade que ele realmente no enfrentou o problema de relacion-lo a sua descrio do conhecimento pela experincia, ou dificuldade de afirmar a existncia de uma lei moral que est de acordo com a razo, e que no repousa apenas na vontade de Deus, embora ao mesmo tempo acredite que a vontade de Deus a fonte final da lei moral. 36

    Cf. pargrafos 135, 136, onde a lei da natureza equiparada vontade de Deus, e declarada como sendo no escrita, e por isso no pode ser encontrada em parte alguma exceto nas mentes dos homens.

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 11

    Mas h objees bvias em estabelecer este princpio em termos de um estado de natureza e um pacto

    original. Se, como ele parece ter acreditado, devem ser tomadas literalmente, sucumbem imediatamente diante da crtica histrica. Mesmo que fossem historicamente verdadeiras, como explicariam a obrigao das geraes posteriores de cidados de obedecerem s leis de um estado em cuja formao eles no consentiram individualmente? Se, por outro lado, elas devem ser encaradas no como fatos histricos mas como hipteses abstratas cuja funo promover uma anlise racional do governo por consenso, falham completamente na explicao da posio do cidado dos dias de hoje, que o ponto crucial de toda a questo.

    Locke procura resolver este problema, mas sua tentativa de resolv-lo est longe de ser satisfatria. Ele

    argumenta que os filhos no se tornam automaticamente sditos dos governos aos quais seus pais devem obedincia, mas quando atingirem a idade podem escolher a que estado iro pertencer; e busca provar isso referindo-se prtica dos governos francs e ingls em casos como o de uma criana de pais ingleses nascida na Frana37. Mas qualquer que possa ter sido a prtica na prpria poca de Locke, o princpio que ele estabelece no seria aceito pelos juristas modernos. Ele ento argumenta que o consentimento que sozinho pode tornar um homem sujeito a um governo no necessita ser um consentimento expresso, mas pode ser dado tacitamente de outras maneiras. Cada um, afirma ele, que tem qualquer posse ou desfruta de qualquer parte dos domnios de um governo, d desse modo seu consentimento tcito, e obrigado a obedecer suas leis, seja esta sua posse de uma terra pertencente a ele e a seus herdeiros para sempre ou um alojamento apenas por uma semana; ou esteja ela apenas passando livremente na estrada. Havendo concedido tanto, ele percebe que no pode logicamente traar uma linha nesse ponto, e declara por fim que um homem d consentimento tcito a um governo simplesmente estando dentro dos limites de seu territrio38. verdade que ele se esfora para atenuar isso sugerindo que um homem no compelido a permanecer sob o domnio de um governo que lhe desagrada, mas tem a liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra sociedade poltica ou entrar em acordo com outros para iniciar uma nova in vacuis locis39. Hoje em dia, entretanto, a possibilidade de fazer isso muito mais restrita que na poca de Locke, e Hume observou que mesmo ento era muito fantasiosa. A verdade que, supondo que cada um que esteja em um pas tacitamente consentiu em seu governo, o consentimento foi to reduzido a ponto de se tornar virtualmente, se no inteiramente, inexistente. A importncia fundamental desta passagem est em sua revelao da inutilidade de se tentar tornar o consentimento individual a base da obrigao poltica40; mas, embora no possamos basear o poder do governo no consentimento individual, no necessitamos por isso chegar ao extremo oposto e permitir aos governos poderes ilimitados de opresso das conscincias dos indivduos. Deve-se admitir, entretanto, que a teoria da sociedade de Locke demasiado artificial para ser uma resposta adequada a este problema.

    Quando um grupo de homens concordou em formar uma sociedade poltica, sua primeira tarefa

    estabelecer o poder legislativo, que ser o poder supremo da sociedade poltica e sagrado nas mos em que a comunidade um dia o colocou. Mas, embora seja o poder supremo... no , nem pode ser, absolutamente arbitrrio sobre as vidas e os destinos do povo. Sendo seu propsito proteger os homens no gozo de suas vidas e propriedade, deve ser limitado ao bem pblico da sociedade, e as leis que ele faz devem ser declaradas e aceitas, no arbitrrias e caprichosas, e devem estar em conformidade com a lei da natureza41; a legislatura tambm no pode transferir o poder que lhe foi delegado a quaisquer outras mos42. Outro limite importante para o poder legislativo que ele no pode tomar de nenhum homem parte alguma de sua propriedade sem seu prprio consentimento. Isto se aplica aos impostos, que Locke reconhece como adequados e necessrios; mas aqui mais uma vez, sem justificativa em relao aos seus princpios, ele reduz o consentimento necessrio ao consentimento da maioria, e at ao consentimento dos representantes43. O governo representativo, assim como o princpio da maioria, pode ser defendido em vrios campos, mas no nas bases do consentimento individual.

    37

    Pargrafo 118. 38

    Pargrafo 119. 39

    Pargrafo 121. 40

    Cf. J.P. Plamenatz, Consent, Freedom, and Political Obligation. Oxford, 1938, p. 7. 41

    Pargrafos, 134, 135. 42

    Pargrafo 141. 43

    Pargrafos 138, 140.

  • | CLUBE DO LIVRO LIBERAL

    Locke no utiliza o termo de Hobbes, soberano, e tem sido afirmado44 que, na medida em que ele limita e divide os poderes do governo, seu argumento dirigido contra a verdadeira idia de soberania. Mas claro que embora tenha rejeitado a arbitrariedade do soberano de Hobbes, ele segurou um elemento essencial no conceito de soberania, a supremacia da autoridade que faz as leis. Ele afirma claramente que o legislativo deve ser o poder supremo, e todos os outros poderes em quaisquer membros ou partes da sociedade derivados dele e a ele subordinados45. Como observou o Professor Montague46, Locke no imaginou que o poder legislativo supremo estava limitado por lei positiva. O que ele realmente pretendia era que a soberania estivesse sujeita lei moral. Sua expresso deste princpio foi obscurecida por seu uso de frases associadas idia da natureza e da lei natural, mas na substncia sua teoria no estava muito distante da teoria da soberania proposta por Bentham e elaborada por Austin47.

    Mas embora a legislatura seja suprema, Locke no a tornar absoluta, pois permanece ainda no povo um

    poder supremo para remover ou alterar o legislativo, quando ele considerar o ato legislativo contrrio confiana nele depositada48. Ao mesmo tempo, ele no vai to longe quanto Rousseau, que declarou que a soberania reside inalienavelmente na vontade geral, e no pode ser delegada ou mesmo exercida atravs de representantes. O poder supremo que Locke reserva ao povo no to considerado sob qualquer forma de governo: apenas uma espcie de reserva potencial de poder, a ser exercido em uma emergncia quando o governo que foi estabelecido deixou de usar seu poder para o bem pblico. Outra e ainda mais estranha conseqncia da teoria de Locke que, embora com o decorrer do tempo as grandes cidades prsperas venham a se deteriorar... enquanto outros locais ermos se desenvolvem em pases populosos repletos de riquezas e habitantes, Locke imagina que a legislatura, sendo fixada e limitada, no tem poder para aprovar um projeto de reforma. A nica soluo que ele pode sugerir que o executivo, caindo no princpio salus populi suprema lex49, deve redistribuir o eleitorado na devida proporo, e assim fazendo no pode ser julgado como tendo estabelecido um novo legislativo, mas como tendo restaurado o antigo e verdadeiro. Alm disso, considerando a sua idade quando o escreveu, foi liberal por ter reconhecido a necessidade de uma soluo.

    Isso nos leva questo da separao entre o executivo e o legislativo. Locke considera que pode ser

    muito grande a tentao para a fragilidade humana, pronta para alcanar o poder, pois as mesmas pessoas que tm o poder de fazer as leis tm tambm em suas mos o poder de execut-las; alm disso, o executivo deve estar em existncia contnua, enquanto que no necessrio para o legislativo, e por isso os poderes legislativo e executivo freqentemente vm a se separar. Locke pode, portanto, ser reconhecido como um contribuinte para a famosa doutrina da separao dos poderes, que, embora de modo desorientado, foi amplamente aceita no sculo XVIII como a salvaguarda essencial da liberdade constitucional, e por isso incorporada na constituio americana. Entretanto, deve ser observado que na forma clssica da doutrina, como foi enunciada, por exemplo por Montesquieu, havia trs poderes a serem mantidos separados: legislativo, executivo e judicirio. Locke reconhece um terceiro poder, alm do legislativo e do executivo, mas este, que ele chama de federativo, est ligado guerra e paz, a ligas e alianas, e poltica externa em geral. Embora ele encare este poder federativo como distinto, observa que na prtica ele est em geral nas mos do executivo. Ele no distingue o judicirio, e parece consider-lo parte do executivo50. Evidentemente com a constituio inglesa

    44

    J.N. Figgis, The Divine Right of Kings, Cambridge, 21914, p. 242. 45

    Pargrafo 150. 46

    F.C. Montague, Introduo ao Fragment on Government, de Bentham, Oxford,1891, p. 65. 47

    O princpio da soberania legislativa foi claramente apreendido por Bacon, que observou que ele era ilusrio por um anterior decreto do Parlamento para obrigar ou frustrar um futuro, pois um poder supremo e absoluto no pode concluir a si mesmo (citado por A.V. Dicey, The Law of the Constitution, 8 ed., p. 62, n 1). Mas as implicaes da soberania aparentemente no foram em geral compreendidas durante muitos anos. Vrias frases foram incorporadas ao Ato da Unio com a Esccia (1706) na tentativa de tornar algumas de suas clusulas fundamentais ou inalterveis por decretos subseqentes. Pode tambm ser percebida uma relutncia em admitir a soberania do parlamento nos argumentos utilizados contra o Ato Septenal em 1716 (cf. com os Protestos dos Pares, ed. em C. Grant Robertson, Select Statutes, Cases, and Documents, p. 202, e observar seu uso da idia de curadoria, que provavelmente tomaram de Locke). Como observou Dicey (op. c it., p. 45), a passagem do Ato Septenal para lei foi uma prova da soberania legal do parlamento. Mas mesmo mais tarde, em 1800, foi feita uma tentativa no Ato de Unio com a Irlanda, atravs de fraseologia similar, de perpetuar a unio das igrejas inglesa e irlandesa. A inutilidade disso foi demonstrada pelo Ato de Separao de Gladstone, de 1869; mas, como observou Bacon, as coisas que no oprimem podem satisfazer durante algum tempo. Sobre o desenvolvimento da soberania legislativa do parlamento, ver C.H. Macllwain, The High Court of Parliament (New Haven, Conn., 1910), esp. c. 5. 48

    Pargrafo 149. 49

    Pargrafos 157, 158. 50

    Pargrafos 143-148. Tem sido observado que mesmo em Montesquieu a separao dos poderes no est traada com absoluta clareza, mas que ele tende, como Locke, a misturar o judicirio com o executivo. Cf. com J. Dedieu, Montesquieu et la tradition politique anglaise en France, Paris, 1909, p. 179.

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 13 em mente, ele observa que onde o legislativo no existe permanentemente, e o executivo investido numa nica pessoa que tambm tem parte do legislativo, aquela nica pessoa, em um sentido muito tolervel, pode tambm ser chamada de suprema; no que ele detenha em si todo o poder supremo, que aquele de fazer as leis, mas porque tem em si a execuo suprema a partir da qual todos os magistrados inferiores derivam todos os seus poderes subordinados, ou, pelo menos, a maior parte deles. Ele tambm pode ser chamado de supremo em vista do fato de que as leis no podem ser feitas sem seu consentimento. Mas, insiste Locke, o poder executivo colocado apenas sobre uma pessoa que tem tambm parte do poder legislativo est claramente subordinado a este e lhe deve dar contas, podendo ser perfeitamente mudado e substitudo51. Neste aspecto Locke antecipa Rousseau, cujo prncipe era um mero agente ou escravo da vontade geral soberana52.

    O pacto original de Locke, como se poder perceber, era um contrato social feito entre os homens que

    concordavam em se unir em uma sociedade civil. No era, como o contrato original da Revoluo dos Whigs, um contrato entre o rei e o povo. Diferentemente deles, e tambm de escritores europeus como Pufendorf, Locke no determina o relacionamento entre o povo e seu governo em termos de contrato, mas toma emprestado a idia peculiarmente inglesa de curadoria. Ele no foi mais original nisso que em seu uso de outros elementos em sua teoria poltica, como o estado de natureza, pois ele havia sido usado por muitos escritores anteriores, s vezes como uma alternativa teoria do contrato, s vezes em combinao com ela. Mas ele se adequou admiravelmente ao seu propsito, pois transmitia a noo de que embora sejam dados ao governo alguns poderes, ele era obrigado a us-los no em seu prprio interesse, mas em prol da comunidade. Locke no somente aplica esta noo ao executivo, mas o utiliza tambm para assegurar que a legislatura no dever abusar de seus poderes e violar os direitos do povo. A comunidade, observa ele, coloca o poder legislativo em tais mos enquanto as considere adequadas, confiando que ser governada pelas leis proclamadas.53 apenas um poder fiducirio para agir visando alguns objetivos, e todo o poder conferido com confiana para se atingir um fim, limitado por aquele fim, sempre que o fim for manifestamente negligenciado ou contrariado, a confiana deve necessariamente ser confiscada e o poder devolvido s mos daqueles que o conferiram, que podem coloc-lo outra vez onde acharem melhor para sua segurana e garantia54. As vrias funes do executivo esto expressas em termos semelhantes. Assim, seu poder de convocar e dissolver a assemblia legislativa no concede ao executivo uma superioridade sobre ela, mas uma confiana fiduciria nele colocada para a segurana do povo55. Se ele usasse a fora dos controles para impedir a reunio e a atuao do legislativo ... sem autoridade, e contrariamente confiana nele depositada, ele estaria em um estado de guerra com pessoas, que tm o direito de restabelecer seu legislativo no exerccio de seu poder.56 Quando o executivo tem um lugar na legislatura, como o rei da Inglaterra, ele tem uma confiana dupla nele depositada, e age contra ambos quando comea a estabelecer sua prpria vontade arbitrria como a lei da sociedade57. A referncia histria recente em tudo isso bvia, mas visvel que Locke no apia seu argumento no contrato original dos Whigs entre o rei e o povo.

    Aplicar a idia da curadoria poltica era utilizar uma metfora, assim como a teoria do contrato era

    tambm na verdade uma metfora de outro ramo da jurisprudncia. O contrato social como uma teoria poltica est aberto a vrias objees bem conhecidas, mas estas no so to aplicveis idia da confiana, e como foi popularizado por Locke, desempenhou um papel valioso ao levar para casa a lio de que o governo no desfruta de poderes sem os correspondentes deveres e responsabilidades. Isso agora tornou-se um princpio reconhecido e inquestionvel, com o resultado de que em negcios domsticos os direitos do homem no so mais as reclamaes dos indivduos contra um governo arbitrrio, mas as reclamaes garantidas aos homens pelo governo. De alguns anos para c, a idia da curadoria foi considerada moderna e o emprego mais frutfero como

    51

    Pargrafos 151, 152. 52

    Sobre a separao dos poderes em Locke, cf. com a nota de E. Barker em sua traduo de Gierke, Natural Law and the Theory of Society, Cambridge, 1934, ii. 359. Ele observa que, embora Locke distinguisse entre o legislativo e os rgos conjuntos executivo e federativo, ele no determinou o que em geral entendido pela separao dos poderes, o que implica, como ocorre na constituio americana, que nenhum deles superior a qualquer um dos outros. Ao contrrio, Locke estabeleceu expressamente a supremacia do legislativo. 53

    Pargrafo 136. 54

    Pargrafo 149. 55

    Pargrafo 156. 56

    Pargrafo 155. 57

    Pargrafo 222.

  • | CLUBE DO LIVRO LIBERAL

    uma frmula para regulamentar os relacionamentos entre os estados civilizados e suas colnias ou outros povos atrasados58.

    Locke reconhece que ao detentor do poder executivo deve ser permitida alguma arbitrariedade, e este

    poder deve atuar discricionariamente em vista do bem pblico, sem a prescrio da lei, e s vezes at contra ela, o que se chama prerrogativa59. Na Inglaterra, inclui o poder de convocar os parlamentos... assim como determinar a poca, o local e a durao... mas ainda com esta confiana, acrescenta ele, que dever ser usada para o bem da nao medida que assim o requererem as exigncias das pocas e a variedade da ocasio60. Se feita a pergunta Quem julgar quando este poder utilizado corretamente?, ele responde, No pode haver juiz na terra. Se o legislativo ou o executivo, quando detm o poder em suas mos, planejam ou comeam a escravizar ou a destruir o povo, este no tem outro remdio ... seno apelar aos cus61. Assim chegamos famosa justificativa de Locke de um fundamental direito de revoluo. Hobbes defendeu que o afastamento da autoridade soberana destruiria o estado e envolveria um retorno ao caos do estado da natureza: Locke, ao contrrio, distingue entre a dissoluo da sociedade e a dissoluo do governo, e embora admita que esta conquista de fora possa cortar os governos pela raiz e despedaar as sociedades, insiste que um governo pode ser dissolvido internamente, e um novo governo ser estabelecido, sem a destruio do prprio corpo poltico62. Esta a concluso que ele retira de episdios anteriores na histria inglesa e em particular da bem sucedida revoluo de 1688. Ele percebe que aprovando dessa forma a revoluo, pode ser acusado de promover um estmulo a rebelies freqentes. Argumenta que o povo est mais propenso a ser levado rebelio pela tirania e pela opresso, enquanto um governo que sabe que pode ser deposto se abusar de sua autoridade estar menos propenso a agir errado. Alm disso, tais revolues no ocorrem sobre cada pequena m administrao nos negcios pblicos, pois o povo no abandona to facilmente suas antigas formas como alguns esto prontos a sugerir. Ele dificilmente vai ser convencido a corrigir as falhas reconhecidas na estrutura a que est habituado. Na verdade, o conservadorismo natural e a inrcia levaro o povo a suportar grandes erros por parte do governo, muitas leis erradas e inconvenientes, e todo o tipo de deslizes da fragilidade humana ... sem revolta ou queixas63.

    Podemos tambm imaginar por que Locke no encontra lugar para a melhoria do governo atravs de

    emenda constitucional, e precisa defender uma soluo to drstica quanto a revoluo. Sem dvida ele estava em parte preocupado em apoiar a recente revoluo de 1688, afinal de contas tudo o que foi conseguido ento dificilmente seria conseguido por outros meios. Podemos perceber que hoje em dia, em um pas com um sistema de governo representativo, onde as mudanas de ministro podem ser efetuadas atravs de um processo constitucional normal, um direito de revoluo no necessrio como um elemento em nossa teoria poltica. Mas devemos nos lembrar que foi atravs da influncia da idia de curadoria de Locke, ou da teoria do contrato dos Whigs, que veio a ser reconhecido que os governos so organismos responsveis, e no so simplesmente dotados de privilgios para serem utilizados para seu prprio prazer. Hoje isso nos parece um trusmo bvio, mas a aceitao deste princpio64, tanto quanto qualquer outra coisa, que faz a diferena entre nossa atitude em relao poltica e atitude, digamos assim, de um corteso de Lus XV. Alm disso, os acontecimentos recentes tornaram o direito da revoluo mais uma vez uma questo ativa, e na guerra contra a Alemanha percebemos isso. Quem duvida, perguntava Locke, que os cristos gregos... possam legitimamente derrubar a tirania turca sob a qual gemeram tanto tempo, quando tiverem poder para faz-lo?65 Apoiamos os movimentos de resistncia nos pases ocupados da Europa, e no duvidvamos de que teria sido direito do povo alemo se levantar e derrubar o governo nazista; espervamos que eles o fizessem, e teramos recebido com alegria a tentativa que houvesse sido feita. Nossos alvos de guerra e a suposio de que nossa causa era justa implicavam que, de fora e como um ato de guerra, ns nos considerssemos justificados ao estimular tal revoluo. Estvamos

    58

    Para um esboo do desenvolvimento da idia da curadoria como uma teoria poltica, ver J.W. Gough, Political Trusteeship , in Politica, iv, 1939, p. 220-247. 59

    Pargrafo 160. 60

    Pargrafo 167. 61

    Pargrafo 168. 62

    Pargrafo 211. Locke, ao contrrio de Hobbes, pode fazer esta distino porque para ele o governo era estabelecido, no pelo pacto original, mas como uma confiana subseqente. 63

    Pargrafos 223-225. 64

    Evidentemente no de modo algum um princpio novo, e Locke estava apenas ex pondo novamente a doutrina que herdou, juntamente com a lei da natureza, dos pensadores medievais. Mas era necessrio tornar a exp-la no sculo XVII, devido aos ataques feitos da parte do governo desptico. 65

    Pargrafo 192.

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 15 assim reafirmando, nos termos de nossas prprias circunstncias, a atitude defendida no sculo XVII pelos Whigs, de quem herdamos uma imortal tradio poltica. Para os filsofos absolutistas do sculo XIX, que se inspiraram em Hegel, a defesa da revoluo feita por Locke parecia revoltante, pois eles no queriam ouvir falar de qualquer questionamento da autoridade majesttica do estado. Mas, pelo menos neste aspecto, no cabe nossa gerao criticar Locke.

    Um dos primeiros a aplicar os ensinamentos de Locke foi William Molyneux66, que argumentava que as

    relaes da Inglaterra com a Irlanda no passado no constituam uma conquista, e que mesmo que o fossem, a conquista no conferiria Inglaterra os direitos que reclamava sobre a Irlanda. Molyneux correspondeu-se com Locke sobre este assunto e desenvolveu sua causa em linhas extradas diretamente do Segundo tratado. desnecessrio dizer que seu apelo caiu em ouvidos surdos, ainda que, como mais tarde observou Dean Tucker67, ele se destinasse ao benefcio, no da maioria catlica romana irlandesa, mas apenas da minoria protestante. Na Inglaterra, no entanto, a aceitao geral da atitude de Locke em relao ao governo logo se tornou perceptvel. Em alguns lugares ele foi criticado durante algum tempo, tanto por seus Tratados sobre o governo quanto por suas Cartas sobre a tolerncia, como republicano e incrdulo68; mas depois da bem sucedida Revoluo os dois extremos na poltica, republicanos e ultramonarquistas, tenderam a se extinguir. Os Whigs continuaram a insistir no consentimento do povo como a base necessria do governo, e a impugnao do Dr. Sacheverell deu-lhes uma oportunidade de reafirmar e enfatizar seus pontos de vista. Por outro lado, o Act of Settlement, aprovado por uma maioria de Tories em 1701, mostrou que eles tambm estavam desejando limitar a autoridade real e estabelecer condies para a sucesso ao trono. verdade que os Tories ainda estavam longe de aceitar a idia da tolerncia, como se pode ver por seu Ato de Concordncia Ocasional e Ato do Cisma; mas embora em muitos pontos os interesses e as polticas dos Whigs e dos Tories divergissem, na questo constitucional concordavam agora substancialmente69.

    Uma rpida vista das publicaes de Bolingbroke, por exemplo, j mostrar a extenso de seu dbito a Locke. Como este, ele cita Hooker aprovadoramente e fala dos parlamentos como institudos para serem os verdadeiros guardies da liberdade, em concordncia com aquela grande e nobre confiana que o organismo coletivo do povo da Gr-Bretanha deposita no representante70. Ele tambm limita a soberania do parlamento, pois h algo que ele acha que um parlamento no pode fazer: no pode anular a constituio. A legislatura um poder supremo, e pode ser chamado, em um certo sentido, um poder absoluto, mas em nenhum sentido um poder arbitrrio. limitada ao bem pblico da sociedade, e em ltimo recurso, em caso de abuso, o povo tem o direito de resistir ao poder supremo71.

    O Bispo Hoadly, de fama bangoriana, admitia que como a origem patriarcal da monarquia foi examinada h muito tempo atrs pelo Autor dos dois tratados sobre o governo..., a Ele eu devo por Justia remeter o Leitor. Este foi seu nico reconhecimento da obra de Locke, mas todo o seu argumento, embora pretendesse remontar a Hooker, na verdade no era mais que uma reafirmao da posio de Locke72. A referncia um tanto rancorosa de Hoadly a Locke, embora ele fosse um Whig, pode ser uma indicao de que o nome de Locke ainda era mal visto nos crculos clericais no incio do sculo XVIII; mas o Bispo Warburton, escrevendo quando os hanoverianos j reinavam seguramente h vinte anos, no hesitou em adotar abertamente os princpios de Locke73,a ele se referindo como a honra dessa poca e o instrutor do futuro. O Espectador aludia a Locke como uma glria nacional, e embora ele provavelmente fosse mais conhecido e respeitado como o autor do Ensaio sobre o entendimento humano, no pode haver dvida de que no sculo XVIII tambm sua teoria poltica se tornou to geralmente aceita quanto virtualmente incontestada. Suas doutrinas podem ser registradas nas Characteristics

    66

    Em The Case of Irelands being bound by Acts of Parliament in England stated, Du blin, 1698. 67

    . Josiah Tucker (Decano de Gloucester), A Treatise concerning Civil Government, 1781, p. 96s. 68 Cf. alguns exemplos de opinio acadmica em Oxford citados por Ch. Bastide, John Locke, ses thories politiques et leur influence en Angleterre, Paris, 1906, p. 283s. 69

    Ver a interessante comparao entre os pontos de vista dos Whigs e dos Tories aps a Revoluo em H. Hallam, Constitutional History of England, c. xvi. 70

    Bolingbroke, Dissertation on Parties, 1733-34, Carta x. 71

    Ibid., Carta xvii. Bolingbroke tambm seguiu Locke em sua Idea of a Patriot King, 1738, onde rejeitou o direito divino como absurdo e declarou que os reis devem governar para o bem do povo. 72

    B. Hoadly, The Original and Institution of Civil Government discussed, 1710, in Works, ed. J. Hoadly, 1773, ii. 182s. 73

    W. Warburton, The Alliance between Church and State (1736), e The Divine Legation of Moses Demonstrated (1738).

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    do terceiro Conde de Shaftesbury, nos escritos de Swift, Defoe e outros escritores menos famosos, e, de uma forma atenuada por Bolingbroke, na terceira Epstola de Pope, Ensaio sobre o homem.

    No decorrer do sculo, escritores como Hume e Paley atacaram a teoria do contrato, mas as doutrinas

    polticas gerais de Locke continuaram dominantes. Especialmente nos crculos dissidentes, evidente que ele ainda era uma inspirao; Richard Price e Joseph Priestley tinham ambos seus dbitos para com ele, e os compndios polticos adotados nas academias dissidentes eram em grande parte derivados de sua obra. Foi-nos transmitido que Todos pensam que o povo a origem do poder, o fiducirio dos responsveis administrativos, e que o gozo da vida, da liberdade e da propriedade direito de toda a espcie humana74. Com o tempo, naturalmente, Locke comeou a ser substitudo como uma influncia formativa por escolas de pensamento mais recentes. Por um lado, o benthamismo conseguiu espao, e por outro, Burke, embora tenha herdado toda a tradio lockeana, divergia amplamente em muitos aspectos da perspectiva geral de Locke. A fora de Burke como pensador poltico situa-se fundamentalmente nas direes em que Locke foi mais deficiente. Ele possua um sentido quase mstico da continuidade histrica da sociedade, e ainda que em seu Appeal from the New to the Old Whigs ele tenha voltado ao processo de Sacheverell como declarao clssica dos princpios Whigs, implicitamente repudiou muito do individualismo de Locke. No seria necessrio um longo passo para se passar da posio de Burke (e tambm de Rousseau) para a teoria orgnica do estado, que veio a se tornar uma influncia to poderosa no sculo dezenove, e o fato de Burke no ter dado este passo uma indicao da fora permanente da influncia de Locke75. A Revoluo Americana, que evidentemente foi inspirada pelas teorias de Locke, provocou entre seus oponentes na Inglaterra alguma reao contra Locke, o que foi mais tarde reforado pelo amplo alarme despertado pelo curso da Revoluo na Frana. No obstante, apesar de todas as suas imperfeies, a doutrina de Locke permaneceu a base do governo constitucional ingls76, e foi a saudvel e razovel moderao resultante da aceitao de seus princpios que ajudou a assegurar vida poltica inglesa sua imunidade caracterstica contra as vicissitudes e os extremismos que em alguns pases tornaram invivel a democracia parlamentar.

    No foi somente na Inglaterra que os princpios de Locke foram o alicerce do estado democrtico

    moderno. Na Holanda, onde ele era mais conhecido, foi logo aceito e citado como uma autoridade em poltica. Na Frana, suas vises de governo foram antecipadas por Jurieu e sua crena na tolerncia por Bayle, mas as obras de Locke foram traduzidas para o francs e tornaram-se amplamente conhecidas entre os leitores franceses. Tanto Montesquieu quanto Rousseau, de maneiras diferentes, fizeram contribuies bastante originais teoria poltica, mas ambos foram influenciados por Locke, e houve muitos outros pensadores franceses que participaram da disseminao de uma atitude liberal e racional em relao poltica, e pelo menos por insinuao criticaram o ancien rgime. No entanto, difcil julgar precisamente em que dimenso a difuso dessa atitude na Frana pode ser atribuda obra de Locke, ou de outros escritores da mesma escola de pensamento, e ao estudo direto das instituies inglesas, e mais tarde das americanas, em que os princpios de Locke pareciam estar incorporados.

    Em parte alguma a influncia de Locke foi maior que do outro lado do Atlntico. Ele pode no ter sido

    muito lido pelo pblico em geral na Amrica, mas os lderes revolucionrios, Otis e Jefferson, Madison e Samuel Adams, mergulharam em sua obra, bem como nas obras de Harrington, Montesquieu e outros escritores polticos. A Carta de Direitos de Virginia inicia-se como um eco de Locke, e embora de certa forma a Declarao de Independncia tenha sido um produto peculiarmente americano, h pouca dvida de que deva sua principal inspirao muito mais s doutrinas de Locke que aos princpios nativos das colnias da Nova Inglaterra, que eram teocrticos e intolerantes. Jefferson foi de fato acusado de ter copiado a Declarao do Tratado sobre o governo de Locke, e embora tenha negado ter-se remontado a qualquer livro ou panfleto ao redigi-la, no afirmou que suas idias fossem novas. Alm de tudo, seria intil tentar justificar uma revoluo sobre princpios de que ningum ouvira falar antes, e se tudo o que Jefferson fez foi repetir o que no sculo XVIII eram lugares-comuns da

    74

    R. Robinson, Lectures on Conconformity, citado em A. Lincoln, Some Political andSocial Ideas of English Dissent, Cambridge, 1938, p. 17. 75

    Ver A. Cobban, Edmund Burke and the Revolt against the Eighteenth Century, 1929, esp. c. ii, intitulado Burke e a herana de Locke. Um esclarecimento acidental sobre a reputao de Locke apresentado pelo processo de Sir Francis Burdett em 1820, por difamao sediciosa. Burdett, ao se defender, referiu-se a Locke, e o Sr. Justice Best disse aos jurados que se achassem que este papel foi escrito com o mesmo esprito e inteno puros com que foram escritas as obras valiosas e imortais daquele escritor, no era difamao... (C. Grant Robertson, Select Statutes, Cases, and Documents, p. 513). 76

    verdade que a soberania legal do parlamento, que ele havia buscado limitar, na prtica veio a se tornar um fato estabelecido; mas seu estabelecimento sem as qualificaes de Locke foi aceitvel porque os desenvolvimentos constitucionais (por exemplo, a evoluo do ministrio e a ampliao dos direitos de voto) no mais o tornaram necessrio.

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 17 teoria poltica, isso vem demonstrar a importncia que a influncia de Locke tomou. Na verdade, nos Estados Unidos sua influncia permaneceu ativa durante algum tempo depois de ter sido amplamente substituda na Inglaterra, e a freqncia com que continuou a ser citado, como uma contribuio vital s controvrsias polticas, at meados do sculo XIX e mesmo mais tarde, proporciona uma interessante evidncia corroborativa da persistncia na Amrica da perspectiva individualista que particularmente associada a Locke77.

    J foram mencionadas algumas falhas na obra de Locke, e seria fcil apontar outras. Fundamentalmente,

    seu defeito mais srio, que ele compartilha com toda a escola individualista a que pertence, a artificialidade de sua teoria. Ele tem pouco conhecimento de psicologia poltica, enfatiza muito a escolha racional pelos indivduos, e parece no ter conscincia da solidariedade da sociedade, ou da fora de laos como raa ou nacionalidade. Ele concebeu o corpo poltico como uma unio artificial de indivduos para propsitos limitados, e um resultado prtico de seus ensinamentos era uma tendncia a restringir esses propsitos para proteger os direitos de propriedade e os privilgios de uma classe governante. Locke escreve sobre o povo, mas no h razo para se supor que ele teria aprovado o voto democrtico, e talvez ele no tenha considerado suficientemente os interesses da maioria da humanidade desprovida de propriedades78. Pois foi sua situao, sob a presso de um sistema poltico e econmico individualista, que fez com que os homens compreendessem o mais amplamente possvel na poca de Locke, que sua concepo da esfera prpria de governo absolutamente inadequada s necessidades de uma sociedade industrial moderna. Ao mesmo tempo, se sua teoria incompleta e unilateral, a teoria oposta, que prioriza o estado e exalta seu poder s custas do indivduo, igualmente unilateral, e a histria recente tem demonstrado o quanto pode ser perigosa. Tambm no deveramos julgar Locke pelo uso que outros fizeram de seu nome. Tem sido dito que em termos econmicos ele era um mercantilista, e de forma alguma desaprovava o controle governamental do comrcio, e h vrias outras direes em que ele achava que o governo deveria interferir79. Mas quando ele intervm, o faz em prol dos indivduos. Apesar de todos os defeitos que dificilmente eram evitveis na poca em que escreveu, ele lana os fundamentos para o princpio de que o estado existe para o bem da espcie humana, e no a espcie humana para os propsitos do estado.

    O que comumente encarado como importante em Locke sua participao na determinao do

    princpio do governo por consentimento. Esta uma expresso venervel, mas, em minha opinio, uma expresso infeliz. J vimos que, como o prprio Locke a utilizou, ela em si contraditria e falha. Os idealistas do sculo XIX tentaram preservar a idia do consentimento atravs de sua teoria de que as aes do governo esto de acordo com o desejo real individual; mas, por mais engenhosa que seja essa teoria, seu efeito no chega a ser um aperfeioamento em relao a Locke. Hoje em dia, o princpio do consentimento em geral aplicado s formas de governo representativas ou parlamentares, mas no fornece a explicao real, seja para seu funcionamento, seja para suas vantagens. O que me parece o valor persistente de Locke (embora ele no o estabelea desta forma), sua insistncia sobre a responsabilidade pelo bem-estar da comunidade. Este princpio agora comumente admitido, e elaboramos o mecanismo poltico pelo qual a responsabilidade se torna efetiva isto, mais que o consentimento, o ponto real das eleies e da representao. A discusso agora passou para os meios atravs dos quais o estado pode melhor promover o bem-estar, e sobre isso ainda h lugar para desacordo; mas atualmente, mesmo a opinio mais conservadora espera muito mais controle do estado do que os Whigs consideravam necessrio na poca de Locke. Quanto ao objetivo do estado, o bem-estar da espcie humana o bem pblico, como ele coloca a posio de Locke foi fundamentalmente correta. Neste aspecto ele antecipou os partidrios do utilitarismo; e se eliminarmos as falcias que se originam de sua abordagem contratual da poltica, o que permanece uma teoria essencialmente utilitarista.

    * * *

    77

    Ver um interessante artigo de Merle Curti, The Great Mr. Locke, Americas Philosopher, in Huntington Library Bulletin, n. 11 (abril de 1937), p. 107-151. 78

    Em justia a Locke, no entanto, deveria ser lembrado que ele defendeu uma regra para os ricos e os pobres, para o favorito na corte e o campons na terra (pargrafo 142). 79

    Para um exemplo interessante, ver alguns excertos do dirio de Locke, sob o ttulo de Atlantis (datados de 1679), publicados em Ch. Bastide, John Locke, ses thories politiques et leur influence en Angleterre, Paris, 1906, Appendix I, onde Locke props vrios regulamentos para controlar a vadiagem, a idade do casamento e as habitaes dos pobres. Uma atitude similar aparece no Relatrio Sobre a Assistncia e o Emprego do Pobre, por ele esboado em 1697 em seu cargo como um dos Comissrios do Conselho do Comrcio. Um crtico desagradvel poderia, claro, replicar que Locke devia ter considerado as classes trabalhadoras incapazes da autodeterminao racional que ele reivindicava para os abastados.

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    A defesa que Locke fez da tolerncia apoiou-se nos mesmos princpios bsicos sobre os quais ele erigiu sua teoria poltica, e o tema ocupou sua mente por muitos anos, antes dele escrever a carta a seu amigo holands Limborch. J em 1660 ele escrevera, mas no publicara, um curto tratado sobre a questo Se o magistrado civil pode legalmente impor e determinar o uso de temas neutros em referncia ao culto religioso?80 No prefcio ele comenta que durante toda a sua vida at ento ele havia vivido numa tempestade, e, acolhendo as perspectivas de uma calma que se avizinhava, sentiu-se obrigado a exortar o homem a obedecer ao governo que trouxe a bno de um clima tranqilo para um pas que irrefletidamente havia mergulhado na confuso. Por isso, ele no estava inclinado a encarar com simpatia as reivindicaes extremas de liberdade geral. A liberdade no deveria ser uma liberdade para os homens ambiciosos deitarem abaixo constituies bem estruturadas, a fim de que das runas eles possam construir fortunas para si prprios; no uma liberdade para serem cristos e assim no serem sditos. Mas em 1660 ele estava tendendo a apoiar o governo da Restaurao, sete anos depois, quando comps o esboo de seu indito Ensaio sobre a tolerncia, chegou ao ponto de vista que manteve com firmeza da em diante.

    Seu principal argumento para a tolerncia um corolrio de sua teoria da natureza da sociedade civil. A

    sociedade poltica existe para propsitos limitados: uma sociedade de homens constituda apenas para a busca, preservao e progresso de seus prprios interesses civis, o que ele considera vida, liberdade, sade e lazer do corpo; e a posse de coisas externas, como dinheiro, terras, casas, moblia etc. Aos magistrados civis dado poder para executar as leis que promovem esses interesses, mas a salvao das almas no diz respeito a eles. Na verdade isso no pode ocorrer, pois a verdadeira religio consiste na persuaso interior da mente, enquanto o poder do magistrado consiste apenas na fora externa. Locke ento define a igreja como uma sociedade livre e voluntria a que os homens se filiam por vontade prpria ningum nasce membro de qualquer igreja para a venerao pblica de Deus da maneira que eles julguem aceitvel e eficaz para a salvao de suas almas. Uma igreja, portanto, semelhante a um estado ao ser formado voluntariamente para propsitos especficos81, e como qualquer outra sociedade deve ter suas prprias leis para regulamentar seus assuntos; mas as leis eclesisticas devem estar confinadas a sua esfera prpria, que exclui qualquer coisa relacionada posse de bens civis e mundanos, ou o uso da fora em qualquer situao. Uma igreja pode manter sua prpria disciplina interna expulsando qualquer membro que continue obstinadamente a ofender suas leis, mas tal excomunho no deve envolver qualquer privao dos direitos civis. O fato do magistrado civil poder se tornar membro de uma igreja no afeta sua condio de sociedade voluntria ou de algum modo lhe acrescenta poderes. Uma igreja, por isso, no tem um poder prprio para perseguir, nem pode solicitar ao magistrado que persiga em seu favor. Mesmo que fosse certo que uma determinada igreja possusse toda a verdade sobre a religio, isso no lhe conferiria qualquer direito de destruir as igrejas que discordam dela, e como na verdade no pode existir tal certeza, a intolerncia ainda menos justificvel. Alm de tudo, a perseguio no pode garantir mais que uma conformidade externa, visto que a f em si, e a sinceridade interna, so coisas que buscam a aceitao de Deus.

    Em toda igreja, prossegue Locke, deve ser feita uma distino entre a forma exterior e os ritos de

    venerao, e a doutrina e os artigos de f. O magistrado no tem poder para impor pela lei uma forma particular de culto em qualquer igreja, seja a sua prpria ou outra qualquer. Isso no quer dizer que o magistrado no tenha poder sobre questes neutras; ao contrrio, em tais coisas, e talvez apenas em tais coisas, que o magistrado pode intervir; mas sua interveno limitada ao bem pblico. Alm disso, as coisas neutras em sua prpria natureza, quando so levadas at igreja e ao culto a Deus, so tiradas do mbito da jurisdio do magistrado. As questes neutras tambm no podem por qualquer autoridade humana tornar-se parte do culto a Deus. Como o magistrado no pode impor pela lei o uso de nenhum rito ou cerimnia, tambm no pode proibir o uso de ritos ou cerimnias cuja prtica est estabelecida em qualquer igreja. Todavia aqui Locke admite uma exceo: o magistrado pode proibir ritos (sacrifcio de bebs, por exemplo) que no so legais no curso ordinrio da vida.

    Os artigos da f podem ser divididos em especulativos e prticos. As opinies especulativas e as questes

    a elas pertinentes supem que elas devem ser acreditadas, esto inerentemente alm do alcance da lei da terra;

    80

    Este foi publicado por Lord King em sua Life of John Locke, 21830, i. 13s. 81

    Em um artigo no publicado, datado de 1673-4 e intitulado Sobre a diferena entre os poderes civil e eclesistico, Locke organizou um elaborado paralelo entre a sociedade civil ou o estado e a sociedade religiosa ou a igreja, cada uma atuando em sua prpria esfera. Est publicado em Lord King, Life of John Locke, 2 ed., ii. 108s.

  • Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 19 mas uma boa vida, que tambm faz parte da religio e da autntica piedade, diz respeito tambm ao governo civil. H um risco, portanto, que em questes de moral o magistrado e uma conscincia humana possam entrar em conflito. No Tratado sobre o governo civil Locke pouco enfrentou esta questo, mas embora aqui ele o discuta em maior amplitude, jamais chega a uma soluo verdadeira. Ele acredita que, se o governo e a conscincia individual tiverem o cuidado de se manter dentro de suas esferas prprias, o conflito ser evitado, e se o governo for corretamente administrado, raramente ocorrer que o magistrado concorde com alguma coisa que parea ilegal conscincia de uma pessoa em particular. No caso de ocorrer tal conflito, Locke simplesmente recomenda a obedincia passiva, ou seja, um homem deve se abster da ao que julgar ilegal, e ... sofrer a punio que no lhe ilegal suportar. Em ltimo caso, se o magistrado acreditar que tem o direito de fazer cumprir certas leis, e que elas se destinam ao bem pblico, e seus sditos acreditarem o contrrio, somente Deus pode julgar entre eles.

    Finalmente, Locke menciona algumas excees a sua regra geral de tolerncia. O magistrado no deve

    tolerar opinies contrrias sociedade humana ou quelas regras morais que so necessrias preservao da sociedade civil; mas acha que exemplos deste tipo em qualquer igreja sero raros. O magistrado tambm no deve tolerar aqueles que pregam que no se deve confiar nos hereges ou que reis excomungados tenham suas coroas confiscadas; mais uma vez, a igreja no deve ser tolerada se seus membros se dedicarem proteo e ao servio de outro prncipe. O exemplo que Locke apresenta o dos maometanos, mas evidente que ele estava na verdade pensando nos catlicos romanos. Finalmente, no deve haver tolerncia para com aqueles que negam a existncia de Deus, porque as promessas, os acordos e os juramentos que so as garantias da sociedade humana, no podem ser mantidos com um ateu. Podemos achar que estas excees so manchas que prejudicam a liberalidade da atitude de Locke, mas no so inconsistentes com seu ponto de vista bsico, pois em todo caso em que o estado intervm, ele no o faz por desaprov-lo em bases religiosas, mas porque sua interferncia requerida para a segurana poltica.

    Em sua atitude em relao tolerncia, assim como em sua teoria poltica, Locke no foi um inovador,

    mas estava estabelecendo bases racionais para uma causa que j era quase vencedora. A tolerncia foi defendida por alguns independentes e outros sectrios durante muitos anos, e foi amplamente apoiada no exrcito de Cromwell; e ainda que o ambiente eclesistico na Restaurao tenha sido rigidamente anglicano, e as tentativas de indulgncia de Carlos II tenham sido frustradas, os dissidentes sobreviveram, e entre os prprios anglicanos comeou a se difundir uma atitude mais racionalista, se no mais ctica, atravs da influncia da escola latitudinria. Mas para que se pudesse agir se fazia necessrio um apelo ao interesse e tambm razo: a prosperidade do holands, por exemplo, foi atribuda a sua liberdade religiosa e presena entre eles de tantos refugiados da perseguio. Na poca da Revoluo, apesar do medo de Roma e da Frana, que foi intensificado pela revogao de Lus XIV do Edito de Nantes e pelos acontecimentos do reinado de James II, a ocasio era propcia para um relaxamento da exclusividade rgida da igreja estabelecida e para a adoo da poltica que por tanto tempo os Whigs proclamavam.

    O prprio Locke ficou desapontado diante da limitada indulgncia na verdade concedida aos dissidentes

    na Revoluo, e teria preferido a compreenso, que ele definiu como uma ampla expanso da igreja, ou seja, atravs da abolio de vrias cerimnias nocivas, induzir um grande nmero de dissidentes a se submeter82. Estas observaes revelam claramente, o que na verdade est evidente por toda a Carta sobre a tolerncia, que a atitude de Locke para com a religio era essencialmente latitudinariana: ele acreditava que a cristandade consistia essencialmente de um ou dois dogmas, que era tudo em que uma igreja necessitava insistir. Sua idia de que uma igreja uma sociedade voluntria era caracterstica do no-conformismo83 e mostra pouca noo do desenvolvimento histrico da cristandade catlica: sofre, na verdade, dos mesmos defeitos de abstrao e artificialismo de sua teoria do estado84.