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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
JONATHAN HERNANDES MARCANTONIO
A CONSTRUO DA REALIDADE MODERNA
- Por uma heurstica do Controle na Modernidade -
DOUTORADO EM DIREITO
SO PAULO
2010
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
JONATHAN HERNANDES MARCANTONIO
A CONSTRUO DA REALIDADE MODERNA
- Por uma heurstica do Controle na modernidade -
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada Banca Examinadora da
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,
como exigncia parcial para obteno do ttulo
de Doutor em Filosofia e Teoria Geral do
Direito e do Estado sob a orientao do
Professor Livre Docente Marcio Pugliesi.
SO PAULO
2010
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AGRADECIMENTOS
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo pela acolhida e ponto de
referncia e excelncia de estudos em Filosofia do Direito e do Estado.
Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ) pelo fomento minha pesquisa
em territrio Nacional.
Ao meu orientador, Professor Livre Docente Marcio Pugliesi, pela referncia
e modelo de pesquisador e de vida dedicada todo e qualquer contedo
relacionado s cincias humanas e tambm, ainda que no me vali de tais
conhecimentos, das cincias exatas.
Universidade Livre de Berlim (Alemanha) pela acolhida e amparo no meu
perodo de pesquisa no Exterior.
Ao Coordenao de aperfeioamento de pessoal de Ensino Superior (CAPES)
por fomentar todo meu perodo de pesquisa no exterior e pela pacincia na
recepo dos relatrios.
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Ao meu co-orientador Professor Doutor Gunter Gebauer, pela acessibilidade e
ativa participao em minha pesquisa.
Aos meus familiares Rafael, Denise, Gabrielle, Gilles, Diego e Ana por
preencher minha vida de alegria, unio, apoio e harmonia em tantas e sempre
boas horas.
Aos meus amigos pelo companheirismo, seja de maneira prxima, seja
distncia.
Aos meus alunos por ensinarem muito mais a mim do que o inverso.
Thas companheira de hoje e sempre.
E Deus, em todas as suas possveis formas de manifestao.
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BANCA EXAMINADORA
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RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar a modernidade como
uma estrutura propiciadora de um controle apresentado sob diversas formas
de controles que se apresentaram, como dita, ao longo de todo um perodo
histrico e social, repleto de acontecimentos, aes, estruturas e funes,
todas peculiares e de caractersticas mpares que harmonizam a compreenso
daquilo que chamamos de modernidade. Tal estudo parte do percurso de trs
pilares tericos distintos: O apelo terico, o apelo econmico/social e o apelo
institucional.
A razo que se vislumbra precisamente a inteno de se demonstrar
um elemento que perdura ao longo de toda a modernidade e que, enquanto
tais elementos perdurarem, perdurar tambm aquilo que se denomina por
Modernidade, descartando qualquer hiptese de se aventar a existncia de
uma superao de era, perodo, fundamentao ou qualquer outra justificao
ou legitimao para o mundo atual, que no seja moderna.
Palavras-Chaves
Modernidade Controle Secularizao Capitalismo - Instituies
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ABSTRACT
The present work aims showing the Modernity as na available control
structure presented during a whole historical and social process fulfilled of
peculiar social and historical movements.Such study starts from three
diferent, bu mainly frameworks, whose are: The theoretical appeal, the
social/economical appeal and the institutional apeal.
The reason of the present study is precisely de intent to show the
control as na element which is present during the hole modernity period, til
now a days. And, as long as these elements of control, anyone of them, exists,
also will exist the Modernity itself, which throws off the possibility of the
possibility of a new historical and/or social period discourse.
Key-words
Modernity Control Secularization Capitalism - Institutions
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ZUSAMMENFASSUNG
Das Werk hat als objektive die Modernitt wie eine Struktur zeigen,
dass der Kontrolle in viele Mglichkeiten abgeben kann. Diese Formen aus
Kontrolle zeigt durch eine spezifisch geschichtlich Zeit, mit viele
gesellschaftlich hndeln der alles mit der Modernitt Indentfiziert kann. Das
Werk hat der Beziehung zwichen drei besondere modern Elemente angefang,
der sind: Die Theorie, der Gesellschaft und der Wirschaft und die Institution.
Der Grund fr das Werk ist genau der Kontrolle zu zeigen als eine
besondere Moderne Element und so lange kann es existieren, so wie so die
Modernitt. Man kann nicht ber andere Geschichtlich wie post-Modernitt
zum Beispiel.
Schlsseln-wrte
Modernitt Kontrolle Secularization Kapitalism - Institutionen
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SUMRIO
INTRODUO..................................................................................................................01 1. A MODERNIDADE TEORIZADA.............................................................................05
1.1. A Secularizao..................................................................................................11 1.1.1. Razo e Indivduo.................................................................................30 1.1.2. Tempo e Histria...................................................................................37 1.1.3. Eternidade e Salvao versus Progresso................................................44
1.2. A Individuao...................................................................................................58 1.2.1. Do Indivduo moderno ao Indivduo Burgus......................................61 1.2.2. A gnese do indivduo materializado....................................................81 1.2.3. O Indivduo materializado e seu equivalente econmico......................97
1.3. O Mtodo Cientfico........................................................................................101 1.3.1. A revoluo cientfica moderna............................................................109
1.3.1.1. Modernos problemas e modernas solues.................................112 1.3.2. Do mtodo tcnica..............................................................................119
2. A MODERNIDADE REALIZADA............................................................................130 2.1. O vis econmico da modernidade......................................................................134
2.1.1. A cidade, o comrcio e a terra............................................................134 2.1.1.1. Na Antiguidade...........................................................................134 2.1.1.2. Na Idade Mdia...........................................................................143
2.1.2. A no-regulao regulvel...................................................................164 2.1.2.1. A liberdade do homo conomicus...............................................169 2.1.2.2. As regras da no-regulao..........................................................176
2.2. O vis sociolgico da modernidade................................................................204 2.2.1. A descoberta do fato social..................................................................204 2.2.2. Do fato ao social............................................................................210
3. A MODERNIDADE INSTITUCIONALIZADA.......................................................236 3.1. Instituies e tcnicas de ajuste.......................................................................238
3.1.1. Bictre....................................................................................................240 3.1.2. Os Retiros..............................................................................................245 3.1.3. Psiquiatria e cincia institucional..........................................................249
3.2. O mundo das instituies na modernidade......................................................253 3.3. Uma instituio chamada Estado.....................................................................262
CONCLUSO..................................................................................................................272 BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................278
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1
INTRODUO
Acreditamos ser de relevo em uma introduo apresentar ao leitor os
propsitos do trabalho em questo. E nada mais coerente, neste sentido, do
que iniciar tal desiderato com o explicar de seu ttulo.
Comecemos pela primeira parte do ttulo: A construo da realidade
moderna tenta trazer em seu bojo o engajamento temporal e temtico que se
abordar ao longo do texto, fcil de identificar no ttulo, porm extremamente
complexo em sua constatao e delimitao, qual seja, a modernidade. Assim,
ao expressar ao expressar a realidade moderna como construda, mostra, de
incio os primeiros pressupostos assumidos nesta obra: que existe uma
realidade moderna, distinta de uma realidade antiga ou medieval e que, alm
de ser distinta, ela no natural, mas sim construda a partir de pilares
especficos, embora no necessariamente inditos, mas sim, como uma
importante alterao paradigmtica.
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2
Assim se far na primeira parte do presente trabalho ao identificar as
grandes narrativas e vozes que intentaram dar cabo de uma explanao
dogmtica acerca da apresentao da modernidade, apresentando as diversas
justificativas discursivas acerca daquilo que se, originariamente se
compreende como Modernidade. Faremos isso dividindo a viso de mundo
acerca da modernidade a partir de trs paradigmas distintivos da
modernidade, j bastante difundidos na literatura sobre ela, quais sejam, a
secularizao, a individuao e o mtodo cientfico.
Neste sentido, a segunda parte do trabalho tambm tentar ampliar a
concepo daquilo que se identifica como modernidade, vista a partir de um
vis distinto daquilo que se compreendeu como modernidade na primeira
parte do trabalho. Desta forma, a segunda parte do presente trabalho tem o
intuito de demonstrar como a ao marca central da concepo de mundo da
modernidade e se far isso a partir de duas perspectivas, tambm distintas
entre si, quais sejam: A perspectiva econmica que intentar demonstrar
como o capitalismo essa que pode ser econmica e social.
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3
Assim, na ltima parte do trabalho apresentaremos como resultado das
manifestaes modernas apresentadas na primeira e segunda parte do trabalho
a perspectiva institucional da modernidade, algo decisivamente marcante no
mundo moderno a partir da viso de corretor que s instituies atribuda.
Essa ltima parte do trabalho que possui o elo com a perspectiva prpria da
Filosofia do Direito e do Estado haja vista que, o Estado visto como a mais
importante instituio moderna, sob a perspectiva do Direito, ou, ao menos,
quela que atribuda a funo maior de correo e ordenao social e
individual.
Se, contudo, tal trabalho se preocupasse essencialmente com uma
abordagem expositiva no se poderia afirmar que, com ela, se constitua uma
tese. Nesse intuito, o trabalho est cercado de elementos que so
identificados, no ttulo, em sua segunda parte, qual seja: por uma heurstica
do controle na modernidade. A expresso heurstica traz consigo a idia de
uma busca, um trajeto, ou at mesmo, um palpite. Pois bem, o nosso palpite
dentro desta estrutura que a modernidade , como diria Habermas, um
projeto inacabado, porm no um projeto esclarecedor, mas sim, controlador.
Assim, o principal elemento moderno, em que pese as diversas teses sobre as
diversas concepes sobre aquilo que identificaria a modernidade pode ser
caracterizado como o controle. Controle identificado sobre diversas facetas
em diversos mbitos, que ao longo do todo o trabalho demonstraremos.
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4
Assim, quais so suas formas de apresentao e de adequao quilo que
identificamos como realidade moderna.
Assim as linhas que sucedero essa introduo tentaro dar cabo de tal
propsito sobre os seguintes pressupostos: (1) Que a realidade moderna
distinta daquilo que vamos como realidade medieval e antiga; (2) Que a
realidade moderna uma construo que atinge os prismas tericos, de ao e
institucionais; (3) Que em toda e qualquer faceta da Modernidade se pode
identificar uma espcie de controle, seja ela apto a forar coativamente uma
realidade, seja ele apto a demonstrar uma limitao na atuao do homem no
mundo, ou ainda uma ampla capacidade de atuao e manipulao do homem
para com o mundo e para com as estruturas sociais em suas mais variadas
formas. A costura e a forma de apresentao de todos esses pressupostos
que so as preocupaes que estaro presentes em todas as linhas que
compem este trabalho.
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5
1. A MODERNIDADE TEORIZADA
Modernidade: s. f. carter ou estado do que moderno. // F. Moderno. Moderno: 1 Ref., inerente ou pertencente a poca atual, contempornea (a vida moderna; o romance moderno). 2 Novo, recente (tcnica/estilo moderno). 3 Que est na moda (traje moderno). 4 Arq. Art.pl. Liter. Ms. Modernista (literatura moderna; pintor/prdio moderno). 5 Hist. Que de poca posterior Antiguidade. 6 Que do perodo entre o fim da Idade Mdia e a Revoluo Francesa (civilizao/histria moderna). 7 Aor. Brando moderado. 8 N.E. Calado, sossegado, ponderado. 9 N.E. Pop. De tom claro, de pouca intensidade (falando de cor) sm. 10 Aquilo que moderno ou ao estilo moderno: A crtica recebe bem o moderno na literatura. [F.: Do lat. modernus, a, um. Ant. ger.: antigo, antiquado].1
Parece ignorado por uma considervel parcela daqueles que se
debruam, crtica ou sectariamente, sobre a Modernidade, o seu gene material
e historiogrfico. Nessas leituras, o mais usual encontrar a Modernidade
associada determinada legitimao, relativamente nova, de viso de mundo
e insero no mundo por um vis no-material e, concomitantemente, no-
divino de justificao, (ainda) denominado por metafsica, donde as variaes
tericas ou seguem fielmente todos os ensinamentos presentes nas cartilhas
dos modernos, ou rejeitam sem se atentar aos detalhes como se deveria. Como
resultado, tanto de um quanto de outro estilo dos quais a Modernidade alvo,
1 Caldas Aulete. Dicionrio Contemporneo da Lngua Portuguesa.p.2387
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costuma-se revesti-la de um carter a-histrico e laico. O motivo se encontra
amparado no exacerbado revestimento terico-racional atribudo,
principalmente, ao incio desta nova forma de pensar, que em seu projeto,
pretende libertar o homem de seus velhos hbitos e corrigir-lhe a vontade de
acordo com a cincia e o bom senso,
(...) convencido de que sempre vantajoso para o homem e sempre ser uma lei para a humanidade no contrariar os interesses normais, reais, garantidos pelas concluses da razo e da aritmtica2.
na tentativa de demonstrar como se deu esse processo que esta
primeira parte do presente estudo ir se preocupar. Nas linhas que comporo
esse captulo, que tentaremos compreender no que consiste esta tessitura
conceitual que detm o escopo e a tarefa de ler o Mundo a partir de um novo
paradigma: O conhecimento racional.
2 Meno a Fiodr Dostoievski. Notas do Subterrneo. p.42.
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7
De incio, podemos adiantar que os produtos de uma mente esclarecida,
os quais podemos dizer que sejam a Cincia e a Arte, no esto mais
balizados pelo dogmatismo da Igreja catlica nos moldes apresentados
principalmente na Idade Mdia, mas sim, por padres metodolgicos
mensurveis racionalmente. Assim, a prpria frmula instigada pela questo
como conhecer? se concebe sobre as novas roupagens que o conhecimento
passa a assumir, que est intrinsecamente ligada uma coordenao com a
razo humana. Essa plausibilidade racional, proporcionada pela metodologia
nascente que passa a respaldar a legitimao do pensamento e da viso de
Mundo, criando uma nova mentalidade. possvel associar esta nova
mentalidade cientfica como sendo aquilo que:
(...) importa no rigor da investigao, no restringir-se ao que se pode observar e que foi observado, em no insinuar conceitos (estranhos ou, de qualquer forma, do ponto de vista da Cincia, gratuitos, isto , no demonstrveis e no demonstrados) de fins ou de intenes (leis, causas finais ou formas) na natureza. Neste sentido, a mentalidade nova e cientfica da poca que se segue ao Renascimento representa uma revoluo contra a mentalidade entusistica e fantasiosa da poca que a precede. (...) Nem a cincia nova, nem a nova mentalidade cientfica representam algo que surja como absolutamente novo no sentido de que no tenha precedente; todavia, pela separao da pesquisa cientfica da Filosofia (e da Teologia), pela prpria abundncia e importncia que a indagao cientfica assume nos tempos modernos, pelo desenvolvimento da tcnica a que d lugar e pelo qual ela prpria impelida e compelida, a Cincia que se inicia no sculo XVII constitui um trao caracterstico e essencial da que ser a nova Civilizao moderna e europia.3
3 Franco Lombardi. Crise do nosso tempo. pp. 58-59.
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8
Essa cientificidade, dita inerente Modernidade ainda possui outros
contornos que ultrapassam o rigor metodolgico e a crena no alcance da
verdade ou da natureza dos objetos por meio de uma metodologia cientfica
racionalizada e racionalizante. A busca do conhecimento e da justificao de
Mundo por padres outros que no o dogmatismo cristo da Igreja
complementado na medida em que acompanha, ou acompanhado, como j
indicado, por um processo de alterao paradigmtica.
O significado do Humanismo (que, neste sentido, representou no estudo dos antigos a escola do Renascimento) e, pois, com mais ampla viso e nova segurana, do Renascimento, foi a descoberta do homem (cfr. Montaigne), no sentido, antes de mais nada, de uma reconquista do prazer de viver e da positividade (ou auto-suficincia, isto , da justificao por si mesmo) desta vida.4
A partir dessa nova posio paradigmtica, a legitimao e o
conhecimento so enxergados, simultaneamente, por elementos que
funcionaro como lentes que entendero o mundo sob nova tica, dado os
novos pressupostos que ali se apresentam como arauto dos novos tempos e
das novas formas de verdade. Assim, conseguimos categorizar a
modernidade, a partir da citada viso essencialmente teorizada da
Modernidade trs componentes primordiais, dos quais se desdobram os
demais, quais sejam: A individuao j que a compreenso passa a ter o
4 Ibidem. p. 53.
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9
individuo como base de sustentao, a secularizao - j que o paradigma
dogmtico cristo fora solapado a partir do Renascimento -, somado ao
advento do j citado inicialmente, Mtodo cientfico, como caminho ideal na
busca da verdade e do conhecimento. So desses trs elementos que se
consegue claramente constituir o que pode ser considerado como pilares do
que longamente se trata, a partir da, como Modernidade.
Ao longo deste estudo apresentaremos impropriedades acerca da viso
de mundo sobre a tnica usual e paradigmtica da Modernidade. Porm, para
tanto, necessrio aprofundar um pouco sobre o significado dos trs
elementos at aqui apontados. Para desenvolvermos melhor o aqui proposto,
iremos mesclar uma exposio analtica e crtica do pressuposto, ou seja,
daquilo que normalmente aceito como desdobramento da Modernidade, ou
seja, que ela possui seu eixo central na racionalizao do pensamento
cientfico sob o vis do indivduo. Partindo, ento dos elementos citados e
esclarecendo suas diversas formas de abordagens e interpretaes, tentaremos
compreender - na medida do possvel - se efetivamente podemos abordar a
Modernidade sob estes prismas ordinrios assim como a justificativa para tal
abordagem.
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10
A ordem de exposio e explanao de tais elementos obedecer a uma
concatenao de tal sorte a facilitar a conceituao dos elementos
apresentados, bem como a relao entre eles, no querendo, em hiptese
alguma, denotar que algum deles possua maior ou menor grau de relevncia
no que se tenta aqui expor.
Vale ressaltar, se de alguma forma tal ponto no fora claramente
desenvolvido, que os elementos apresentados nesta primeira parte do captulo
so complementares entre si e explanao desta parcela do que compreende
a idia de Modernidade.
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11
1.1 A Secularizao
Mencionamos h pouco que o processo de Modernizao da
cincia, entendido este aqui como aquele processo de exaltao da cincia
pela racionalidade e no pela adequao aos dogmas da Igreja consegue ser
identificado em seu germe no perodo conhecido como Renascimento. Longe
de marcar o fim do reinado da santssima trindade, o Renascimento suscita
questes h muito esquecidas, datadas e registradas em escritos gregos que
situam o Homem no centro do debate e no centro das preocupaes da Arte e
da Cincia. O fato de o Homem ser exaltado como elemento de relevo no
debate Renascentista no se d, de fato, com a mesma leitura em todos os
sculos experimentados pelos novos ensinamentos. Assim, de incio, o debate
cientfico do Renascimento trouxe o homem como preocupao, mas
harmonizando-o com a herana crist da recm finda Idade Mdia.
Nesse contexto, essas preocupaes deram lugar a novas formas de conhecimento da natureza humana e de entendimento de sua histria moral, poltica e religiosa. Tocado pelo por essas proposies, o homem renascentista deseja o livre arbtrio, mas se preocupa com seu destino e com Deus, pois ainda pensa na predestinao. Um exemplo a discusso sobre o pecado e a salvao que se mantm vinculada, no Renascimento, doutrina teolgica medieval e que estar presente no lado conservador
de Lutero.5
5 Francisco Falcon e Antonio Edmilson Rodrigues. A formao do Mundo Moderno A construo do Ocidente dos sculos XIV ao XVIII. p. 79.
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12
De incio, a tradio renascentista, embora j assombrada pelas
questes existenciais do Homem, as indaga a partir dessa herana crist com a
qual harmoniosamente convivia e co-legitimava o mundo. Nesta esteira, a
questo do autoconhecimento do Homem se pautava, no Renascimento, sob
as vestes de trs indagaes existenciais tradicionalmente ligadas ao
Cristianismo tardio, ou seja, aquele j imperioso e dominante por
intermdio da Igreja Catlica - por toda a Europa e consolidado na Idade
Mdia. Tais questes podem ser traduzidas como aquelas inerentes
Dignidade do Homem, a Imortalidade da Alma e a Unidade da Cidade.6
Mas esse fora um processo de passagem de curta durao. Logo a
convivncia harmoniosa entre pensamento Laico e pensamento Cristo
abalada, o que suscita a necessidade de uma nova justificao legitimadora de
Mundo. Podemos destacar como motivos relevantes desta ruptura, dois
fatores importantes que envolvem a forma como o Homem do Renascimento
encarava a relao entre Dignidade humana/Imortalidade da Alma/Unidade da
Cidade: (1) A transio de viso de Mundo - durante o perodo do
Renascimento de um otimismo enaltecedor da figura do Homem a um
pessimismo sobrepujante da Individualidade e da noo de Sujeito.
Conseguimos identificar cronologicamente esses dois momentos:
6 Ibidem. p.80
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13
Um primeiro Renascimento que liga-se aos sculos XIV e XV, em que a influncia do neoplatonismo eleva o homem criatura de maior poder de interveno no mundo, que aprecia sua obra de introduo da esttica do belo ao lado do regime republicano e que um radical quando se fala em liberdade e autonomia; alm disso, desenvolve um indivduo que o faz possuidor de desejos, vontades e interesses, defendendo com unhas e dentes essa condio. (...) O segundo Renascimento, o do sculo XVI, quase o oposto. Liberdade e autonomia saem da esfera individual e so absorvidas pelo Estado. Desse modo, o Estado e no mais a cidade que passa a conferir sentido aos homens no mundo. A experimentao livre reprimida como exagero e desordem. A nova ordem constri modelos que no mais admitem singularidades, a no ser que este se registre no mundo privado.7
A perda da Liberdade, dada na fase pessimista Renascimento
divide esfera pblica e esfera Privada, e institui a prevalncia desta, revestida
pela Autoridade, Fora e Burocracia-Litrgica do Estado sobre aquela, agora,
necessariamente submetidas s vontades e mandos do Estado. A partir daqui,
o Estado regula as formas de vida nas cidades e no mais estas legitimam a
atuao estatal. A represso s ms condutas agora so materialmente
mensurveis e punveis legitimamente por pessoas ligadas ao Estado e no
mais a Deus.
7 Ibidem. p.81.
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14
(2) Essa alterao acerca da expectativa oriunda do pensamento
Renascentista no vem de forma isolada. Imerso ao contexto histrico
europeu destes trs sculos (XIV-XVI) vinculam cada vez mais a viso e o
louvor ao homem s interpretaes renascentistas dos textos bblicos,
causando um contra-movimento repressivo da Igreja catlica que altera o seu
Status com a cincia:
Estas questes ligadas ao louvor do homem vinculam-se s leituras bblicas medievais e s novas interpretaes renascentistas. Essas novas maneiras de interpretar assustam setores da Igreja e fazem com que as antigas prticas dos papas dos sculos XIV e XV sejam ameaadas. De importante recuperador dos textos antigos, o Papado torna-se controlador das leituras dos prprios textos organizados em vrias bibliotecas como a do Vaticano. Essa atitude limita o contato com os textos da Sagrada Escritura e produz uma vulgarizao dos dogmas na forma de catecismo que se encaixa bem na idia de modelo de f e vida.8
O temor crescente da Igreja acentua-se com ao resgate mais
prximo da tradio pag. O interesse do resgate da origem dessas tradies,
como faz Maquiavel, por exemplo, contribui para a diminuio da
importncia da igreja catlica no cenrio cientfico, desembocando, no sculo
XVII, em uma forte resultante de todo este movimento histrico.
8 Ibidem. p.86.
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15
(...)todo esse debate tem uma conexo pag: a tradio da forma eterna. A forma eterna vincula-se ao discurso grego da eternidade, que traduzida no contexto final da Idade Mdia como imortalidade da Alma, j que o corpo era o elemento natural. (...)Por conta do debate, a questo da forma eterna um desejo amplo e expressivo do homem moderno, a ponto de Maquiavel, ao discutir a glria, identific-la com uma mulher. Diferentemente da Idade Mdia, que via a glria como oriunda da providncia divina, Maquiavel a associa a fortuna.9
As tenses geradas por esses novos elementos histricos vo
resultar, j no sculo XVII um novo quadro de justificao e legitimao que
tem como escopo criticar a pretensa harmonia Laico-crist do Renascimento.
Dado a perda de credibilidade cientfica e poltica sofrida pela Igreja catlica
durante os trs sculos do Renascimento, o sculo XVII testemunha do
afastamento brusco da Igreja Catlica produo do conhecimento,
resultando uma abrupta separao entre Cincia e Religio, acompanhada da
exaltao daquele elemento germinado no seio do Renascimento, a Razo.
Constitui-se ento, a partir do sculo XVII o que se conhece como processo
de Secularizao.
9 Ibidem. mesma pgina.
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Foi exatamente no sculo XVII que se constituiu a base da crtica s formas ideais do Renascimento e que se abriu caminho para um processo de secularizao que modificou a forma de produzir conhecimento ao acentuar a importncia da razo como pressuposto da experincia, retomando o elogio do homem por um caminho que, ao mesmo tempo que dava novo alento expresso das aes humanas em todos os setores da vida, mostrava como o sculo XVI havia corrodo a idia de humanidade pelas tenses polticas decorrentes da formao dos Estados Modernos e pelos problemas religiosos que o sculo anterior vivera10. (...) O sculo XVII o sculo do debate sobre a liberdade, a igualdade e a fraternidade. o momento de modificao das vises de mundo universalistas da Renascena, o sculo da busca das singularidades, no qual as expresses particulares se revelam frteis , mas perturbadoras dos historiadores que vem a histria como um fluxo contnuo de rupturas.(...)Com essa mudana, os homens percebem que no podem ficar alheios ao que se passa em torno deles e assumem um olhar crtico que descobre tantas outras coisas, a realidade do mundo, as questes sociais, os limites do poder, a grandeza da sociedade, o jogo da poltica e entre as quais, a nova filosofia e a nova cincia. Isso tudo em uma luta constante contra a nova teologia que reprime e assusta esses homens.11
A riqueza da racionalidade pulsante do sculo XVII trouxe a tona
tambm - e ainda neste sculo - a tcnica enquanto conhecimento cientfico.
Aqui ainda no se consegue identificar a tcnica a partir dos moldes da
Zweckrationalitt de Weber, qui uma propiciadora. Por ora, contudo, nos
basta identificar a tcnica como situada no mundo do pensamento, fazendo e
exigindo dele uma relao com a realidade12. A tcnica, neste sentido toma o
contorno da mais palpvel e possvel forma de Racionalidade e tambm a
mais contrastante do modelo teolgico que a Secularizao tem como escopo
negar. Nesse sentido a Secularizao se mostra como um caminho, um
processo de transformao do mundo; de um mundo encantado de Deuses 10 Ibidem. p.172. 11 Ibidem. p.173. 12 Ibidem.p.175.
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para um mundo desencantado, mas cognoscvel, das coisas13
. neste sentido
que, p. ex. se adqua o pensamento de Baruch Espinosa nesta ruptura
relacional entre razo e f/autoridade crist. Com base nos argumentos
reducendo ad ignorantiam e asylum ignorantiae, Baruch Espinosa traa sua
linha filosfica de embate com a Teologia consolidando o processo de
Secularizao e solapamento da f como estrutura legitimadora, embora seu
foco seja efetivamente na autoridade crist e na forma como a Igreja,
enquanto aparato institucional, se articulava.
A partir da personalidade de Deus, seja qual for a formulao proposta pela poltica crist, seu quadro de referncias impes trs questes que no podem deixar de ser respondidas. A primeira delas concerne origem do poder; a segunda, sua legitimidade e a terceira sua qualidade. O poder desce diretamente de Deus ao governante, ou lhe conferido pela mediao dos que detm o jus circa sacra (papa, conclios, magistrados, cristos que so fiis ao modelo dos antigos Juzes de Israel)? Ou nasce da implantao da lei divina na alma humana, por intermdio do direito natural subjetivo entendido como direo da reta razo e do senso de justia, e do princpio da Lex regia romana, segundo a qual o populus enquanto Voz de Deus, constitui o governante como princeps, isto , como primeiro dos cidados? A segunda questo indaga: um pode legitimo apenas por sua fonte ou tambm pelas qualidades morais e aes do governante? possvel um bom-poder ou um bom-governo num prncipe no cristo ou num prncipe cristo moralmente vicioso? Se todo poder vem de Deus, direta ou indiretamente (no caso de ser institudo pela Vox populi, Vox Dei), pode-se resistir ao mau governo ou derrubar um tirano? Resistir-lhe ou derrub-lo no seria resistir a Deus e lutar contra Ele Mas, se foi posto no poder pela Vox Dei visto que a Lex regia afirma que ningum pode dar o que no tem, ento o poder de Deus est no povo e no teria este o direito de derrubar o tirano, visto que a Lex regia garante o princpio vis repellit vim (a fora repele a fora)? A terceira questo, por fim, indaga: qual o melhor regime poltico? Como reconhecer a vontade divina no momento da escolha da
13 Alain Touraine. Crtica da Modernidade. p.245. Touraine associa este caminho posio majoritria dos autores que se preocupam com o processo de Secularizao, muito embora no seja esta a posio dele mesmo. Na seqncia do citado ele escreve: um relato quase oposto que eu apresento aqui: a ruptura do mundo sagrado, que distancia cada vez mais a natureza e as suas leis do sujeito e da afirmao da sua
liberdade. Separao que, se a deixarmos continuar at a ruptura completa, chega ruptura do interior e do
exterior de uma sociedade identificada a um mercado e de atores sociais reduzidos a pulses ou a tradies.
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forma poltica para que seja constitudo o bom regime? A razo suficiente para isso ou requer uma graa especial,, que lhe confira um saber capaz de decifrar , seja no livra da obra divina, a Natureza, seja no livro da palavra divina, a Bblia, a vontade de Deus?(...) se tudo quanto h de universal na Bblia direta e imediatamente compreendido por todos, nenhuma teologia pode ter a pretenso de ir mais longe na universalidade e, por conseguinte, o ensinamento teolgico sempre particular e sectrio, o telogo nada mais fazendo seno impor sua prpria autoridade e, com isso, semeando discrdia, dissenses e lutas sem fim na sociedade.14
Olhando para trs e na esteira de uma crtica autoridade da
Igreja, Max Weber tambm aponta para o processo de secularizao como
marca registrada da Modernidade, contudo, para ele o processo de
racionalizao que demarca o processo de Secularizao detm um elemento
conceitual extremamente distintivo. A racionalizao trouxe a partir do poder
de desencantamento do mundo (die Entzauberung des Welt) que despe a vida
de toda finalidade transcendental ou significao sobrenatural, tornando o
universo um mecanismo causal, glido e metlico (...) 15 o principal marco da
secularizao e, como desdobramento deste, a auto-referncia da
Modernidade a partir do paradigma da razo, causando certo fenmeno de
auto-legitimao. Naturalmente, Max Weber no observava a Razo a partir
de seu aparato reflexivo, como faziam os pensadores a partir do renascimento,
mas sim a partir de seu carter compreensivo. Desta forma, a contingncia de
14 Marilena Chau. Poltica em Espinosa. pp. 90 e 94. 15 John Patrick Diggins. Max Weber A poltica e o esprito da Tragdia. p. 139.
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19
contedo racional, no encontrava no indivduo seu aparato legitimador, mas
sim nas Instituies propiciadoras da vida em sociedade:
O Poder j teve uma base objetiva em Deus, na natureza ou na razo mas Weber via as instituies de poder como histricas e contingentes em relao s condies de seu desenvolvimento. Ele pedia aos leitores que observassem como o poder se faz aceitar na sociedade moderna.(...) O poder como autoridade e dominao baseia-se na razo no como reflexo crtica, mas como racionalizao e modo convencional de legitimao. Formas de poder podem se auto-instituir-se sem referncia a algo objetivamente verdadeiro e com autoridade.16
Neste sentido, John Patrick Diggins17 aponta em Max Weber a
riqueza como grande motivador do processo de Secularizao da
Modernidade j que o aparato institucional no qual a Igreja promovia o
respaldo era violentamente contrrio ao enriquecimento com base na estrutura
pecaminosa denominada de usura. O que Weber mostra, portanto, que o
processo de secularizao teve como objetivo central a admisso da prtica do
lucro como no condenvel institucionalmente. O mais curioso que Weber
estrutura o processo de secularizao a partir da reforma religiosa e no
propriamente a partir de um afastamento pleno da religiosidade como se
identifica nos discursos acerca do processo de Secularizao, discursos estes
pautados em categorias historiogrficas. O que se mostra, portanto, que o
processo de secularizao estruturado a partir do processo de
16 Ibidem. p. 92. 17 Ibidem. p. 122-124.
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20
desencantamento do mundo se deu, para Weber, no efetivamente no mundo
ftico, mas sim a partir das instituies, ou seja, normativamente.
Assim, duas so as caractersticas exaltadas por Weber como
frutos do processo de Secularizao: (1) O processo de racionalizao
propiciado pela Secularizao fora de carter compreensivo, tentando
acomodar as exigncias histricas-materiais do contexto da ascenso da
burguesia como classe proeminente e no de forma crtica, com o escopo
principal de solapar a religio na sua forma dogmtica de compreenso de
mundo e, (2) O processo de secularizao se deu de forma normativa a partir
da estrutura hierarquizada das instituies quer laicas, quer estruturadas via
reforma protestante, no intuito de adequar normativa e coativamente a
estrutura social com o objetivo maior de aceitao da prtica de
enriquecimento de forma verticalizada, tendo como maior caracterstica deste
fenmeno o critrio auto-legitimador, atribudo por Weber racionalidade
moderna. Neste sentido, Weber no reconhece o abrupto rompimento com a
religiosidade crist como caracterstica maior do processo de Secularizao.
Ao contrrio, encara-os harmoniosamente consecutivos, j que alguns padres
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21
cristos foram utilizados no sentido de legitimar certas prticas seculares, ou
seja, aquelas ainda fruto da reforma protestante18.
Aceitando a argumentao de Max Weber, acerca do padro
auto-legitimador e institucional da racionalidade moderna19, Habermas
identifica em escritos recentes o processo de secularizao a partir destas duas
categorias. Para ele, a sedimentao do processo de secularizao se daria
principalmente em funo da ascenso do Estado Burgus de Direito
(Staatsbrgerrechte) que legitima institucionalmente a liberdade de arbtrio
(Willkrfreiheit) a partir da proteo jurdica dos Direitos Subjetivos
consolidada pela competncia atribuda Constituio Federal
(Gesetzgebungverfahren) em legitimar tais Direitos. Aqui, o Estado assume
uma concepo neutra de mundo face o aspecto religioso, no que concerne ao
seu status de Legitimao e fora (Staatsgewalt). A concluso weberiana que
Habermas alcana se molda sobre novo referencial estrutural: A legitimidade
da lei se confunde paradoxalmente com legalidade, o que imputa, de acordo
com Jrgen Habermas, um carter auto-legitimador do Estado Moderno
18 Vlido lembrar os motivos que culminaram na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) nas quais a intolerncia e o dogmatismo de ambos os lados catlicos e protestantes - estavam, em distintas parcelas da Europa legitimados por uma aparato institucional de idntica ou similar forma. S lembrarmos dos princpios Il cuius rgio eius religio e Il reservatum ecclesiasticum que valiam a todos os reinos signatrios da Paz de Augusta de 1555. Interessante, sobre o tema a leitura de Jacopo Fo. Srgio Tomat e Laura Malucelli. O livro negro do cristianismo Dois mil anos de crimes em nome de Deus. pp.177-182. 19 Wirtschaft und Gesellschaft. pp. 761-2.
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22
Burgus20. Neste sentido, Habermas refora que a secularizao traria uma
expectativa normativa de desenvolvimento liberal do Estado burgus a partir
de um novo pressuposto cognitivo e epistemolgico que resultaria na
alterao das formas de conscincia religiosa, que ameaavam a aquiescncia
deste projeto burgus.21 Assim, a secularizao, em seu vis institucional,
implica na separao do poder do Estado e dos Dogmas da Igreja. Isso
equivale idia de que a motivao das aes do Estado, materializadas pelas
Instituies burocrticas que corporificam este mesmo Estado, no devem
basear-se em mandamentos religiosos e sim em uma justificativa legal, com
base em dois componentes diferenciadores da legitimao do Estado
Moderno: O controle discursivo das leis, tendo como resultado sua aceitao
racional mediante sua compreenso.22
20
Faktizitt und Geltung Beitrge zur Diskurstheorie des Recht und des demokratischen Rechtstaat.
pp. 109-112. Sobre o critrio auto-legitimador da Modernidade a partir do processo de secularizao encontramos tambm em Jrgen Habermas. Zwischen Nauralismus und Religion Philosophische Aufstze. pp.145-153. 21 Idem. Zwischen Nauralismus und Religion Philosophische Aufstze. p. 124. 22 Ibidem. pp. 126-129.
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23
A abordagem poltico-burocrtica da secularizao dada por
Habermas concentra todo este processo em uma esfera pblica racionalizante
de legitimao que, de acordo com o prprio Habermas j est superada, vez
que nos encontramos em um estgio Ps-Secular, no qual as preocupaes do
Estado esto, p.ex. em admitir a liberdade de manifestao religiosa, seja ela
qual for, mediante uma solidariedade estatal (staatsbrgerliche Solidaritt)
identificada a partir da forma cultural de vida (kulturelle Lebensformen),
propiciada por uma dinmica poltica inerente especialmente a uma prtica
democrtica.23 Aqui, o tom assumido por Habermas, resume o discurso que
assume a modernidade e todas suas caractersticas como propiciadoras ou
caracterizadoras de um crescente processo de pluralizao.
Na esteira desta preocupao do pluralismo assumindo o tom da
Modernidade secular, Peter L. Berger e Thomas Luckmann j haviam, antes
de Habermas e de forma no to otimista, se preocupado com as formas e os
desdobramentos deste pluralismo institucional. Para eles, o processo de
secularizao retira do indivduo uma predestinao das formas e caminhos de
vida antes da Modernidade no qual:
23 Idem. e Joseph Ratzinger. Dialektik der Sekularisierung ber Vernunft und Religion. Herder. pp. 22-25.
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24
O destino determinava antigamente quase todas as fases da vida. O indivduo passava pelas fases segundo padres predeterminados: infncia, ritos de passagem, profisso, casamento, criao de filhos, velhice, doena e morte. Tambm o mundo interior indivduo j estava predestinado: seus sentimentos, sua interpretao do mundo, seus valores e sua identidade pessoal. Os deuses j estavam presentes tanto no nascimento quanto depois na seqncia dos papis sociais. Dito de outro modo: o alcance das auto-evidncias alegadas abrange a maior parte da existncia humana.24
De forma otimista ou pessimista a partir do processo de
modernizao, contudo, que este horizonte paradigmtico se altera. Como j
afirmado, a perda do status uniformizante dos Dogmas da Igreja Catlica,
acompanhados pela brusca alterao do status scio-econmico, desemboca
nos arredores do conceito de pluralismo em uma proporo indita em
qualquer estrutura social, ocidental ou no. Aqui, o pluralismo indica
imediatamente uma reprogramao dos indivduos inseridos num contexto
social no que tange ao seu modus vivendi, especificamente no que tange
capacidade e responsabilidade de orientar sua prpria vida, tendo que,
necessariamente, utilizar de sua capacidade de escolha e deciso. O que
Habermas atribui como um progresso iluminista via racionalizao e discurso,
garantidos pela Democracia, Peter L. Berger e Thomas Luckmann identificam
como uma nova forma de opresso, vez que situam o Homem em um universo
de escolhas que o tiram, como conseqncia, o espectro da verdade e da
inquestionabilidade de suas condutas: No h mais uma verdade nica e
24 Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido A orientao do homem moderno. pp. 58-59.
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25
universal que separa e traa uma linha concreta entre o bem e o mal, entre o
divino e o profano. A dicotomia agora, se encontra no mais nos lados de uma
mesma moeda, mas sim no mesmo lado de moedas distintas:
A modernizao humana mudou esta situao a partir da base. (...) Posso mudar minha confisso religiosa, minha cidadania, meu estilo de vida, minha auto-imagem e meu hbito sexual. (...) O pluralismo no s permite que escolhamos, mas obriga a decises. J no possvel no escolher, pois impossvel fechar os olhos diante do fato de que uma deciso tomada poderia ter sido diferente. Duas instituies centrais da sociedade moderna promovem a passagem do destino para as possibilidades de escolha e para a compulso de escolher: a economia de mercado e a democracia. Ambas se baseiam na escolha agregada de muitos indivduos e elas mesmas estimulam a um constante escolher e selecionar. O etos da democracia faz da escolha um dos direitos fundamentais do ser humano. (...) O conhecimento inquestionavelmente seguro se dissolve em um conjunto de opinies unidas de modo livre, sem mais o carter de agregado muito constrangedor. Interpretaes firmes da realidade tornam-se hipteses. Convices tornam-se questes de gosto. Preceitos tornam-se sugestes. Estas mudanas na conscincia criam a impresso de certa superficialidade.25
Tambm focado nesta transio de domnio do conhecimento
causado pelo processo de secularizao da Modernidade, John B. Thompson o
identifica a partir da relao de disposio da possibilidade de transmisso de
contedos para as Sociedades ocidentais existentes nesta fase de transio
experimentadas especialmente pela Europa. Ele identifica esta capacidade de
transmisso de contedos como um Poder Simblico, vez que preenchem as
caractersticas que so apontadas por ele como identificadoras do Poder
25 Ibidem. pp. 59-60.
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26
simblico, quais sejam: (1) Os envolvidos na comunicao se servem de toda
sorte de recursos nomeados como meios de informao e comunicao, que
incluem os meios tcnicos de fixao e transmisso, as habilidades,
competncias e formas de conhecimento empregadas na produo,
transmisso e recepo da informao e do contedo simblico; (2) O
prestgio acumulado, o reconhecimento e o respeito tributados a alguns
produtores ou instituies e; (3) Detm capacidade de intervir no curso dos
acontecimentos, de influenciar as aes dos outros e produzir eventos por
meio da produo e da transmisso de formas simblicas.26 Com o
decrscimo de respaldo experimentado pela Igreja catlica a partir do
Renascimento, houve, no s a criao de outras Instituies, mas tambm a
atribuio de respaldo e competncia para a produo e transmisso do
contedo simblico, que no mais detinham o controle exclusivo e
monopolizador que havia outrora pela Igreja Catlica. Fora o caso das Escolas
seculares e Universidades criadas at ento, bem como o fortalecimento da
Imprensa, ou Mdia de Massa, que, como bem aponta John B. Thompson,
inverte e acompanha um importante fator da Organizao social do Poder
Simblico, isto , a mudana desta transmisso que agora no mais era feita
via escrita monogrfica, mas sim, via Impresso.27 Aqui identificada uma
das mais relevantes marcas da Modernidade bem como de todo processo de
Modernizao, qual seja a autonomizao, na qual a relao entre 26 A Mdia e a Modernidade Uma teoria social da Mdia. p. 24. 27 Ibidem. pp. 54-67.
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27
produo/tempo/produtividade se altera violentamente. Naturalmente, tal
processo possui um efeito colateral importante em grande parte da atividade
humana. A este fenmeno em particular, Pierre Bourdieu atribui o nome de:
(...) olhar escolstico que supe um ponto de vista nico e fixo e portanto a adoo de uma postura de espectador imvel instalado por um ponto (de vista) bem como a utilizao de uma moldura que recorta, recolhe e abstrai o espetculo por um limite rigoroso e imvel28
Tudo isso, feito ao longo de um processo temporal de
diferenciao entre religio e cincia e entre as diversas reas da cincia entre
si. Esse processo detinha a inteno de, vagarosamente, obscurecer o aspecto
simblico-valorativo que envolvia os atos e as relaes de produo dos bens
(como um quadro ou um artefato produzido artesanalmente) e exaltar o
carter econmico, visto que este se revestia com a pretensa objetividade das
cincias, dos saberes prticos que contrapunham a forma mstico-religiosa
de justificao29.
28
Meditaes Pascalianas. p. 32 29 Ibidem. pp. 28-30.
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28
Esse efeito colateral, contudo, no impediu a alterao do Poder
simblico. Assim como Thompson baseado nos primeiros escritos de
Bourdieu sobre Poder Simblico o prprio Bourdieu tambm identifica a
alterao do poder simblico da Igreja para outros agentes sociais que no a
Igreja no processo de secularizao presente na Modernidade, destacando,
contudo, como resultado o inverso do esperado em um processo de
descentralizao desta monta: O contexto econmico e social do Mundo ps-
renascentista, somado crescente necessidade de confronto entre esses
agentes sociais laicos e a igreja pelo domnio da produo simblica
favoreceu uma necessidade de sistematizao deste conhecimento que obteve
como propiciadora os conceitos cientficos metodolgicos em voga at ento:
(...) esses novos agentes sociais se mostraram inclinados e capazes de afirmar sua autonomia individual e coletiva perante os poderes econmicos e polticos que tinham a necessidade de seus servios. Todavia, ao obrigar esses agentes a mobilizar cada momento, em suas lutas presentes, os recursos especficos e acumulados no decurso de lutas anteriores, a lgica dos campos eruditos em processo de constituio levou-os a criar regras e as regularidades especficas de microcosmos regidos por uma lgica social favorvel sistematizao e racionalizao, fazendo progredir diferentes formas de racionalidade e de universalidade. (...) A exemplo dos mundos escolsticos, a emergncia de universos em condies de oferecer posies onde podemos nos sentir autorizados a apreender o mundo como uma representao, um espetculo, a ser contemplado de longe e do alto, a ser organizado como um conjunto destinado exclusivamente ao conhecimento, favoreceu decerto o desenvolvimento de uma nova disposio, ou melhor, de uma viso do mundo, no sentido verdadeiro, que encontrar sua expresso tanto nos primeiros mapas geogrficos cientficos como na representao galileana do mundo ou na perspectiva pictria.30
30 Ibidem. p. 32.
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29
Essa forma de viso de mundo racional e universal, ou melhor,
esse olhar escolstico - ainda para Bourdieu propicia um escoamento no
antigo paradigma legitimador religioso e impregna na organizao social a
racionalidade e a universalidade como paradigmas legitimadores e
justificadores das aes humanas que, devido esse novo paradigma, no mais
possuem a dominao eclesistica como fundantes, mas sim o valor e a
capacidade econmica daqueles que detm, a partir de ento a habilidade de
manter em suas mos o poder simblico, ou seja, o Capital Simblico.
Assim, essa universalidade e objetividade tambm criam uma espcie de
singularidade ou individualismo visto que o olhar a ser produzido por
qualquer sujeito caracterizam-no como corpos reduzidos a um puro olhar,
portanto quaisquer e intercambiveis, tm a certeza, tal como o sujeito
kantiano, de possuir a mesma viso, objetiva, aquela cuja representao em
perspectiva, enquanto forma simblica de uma subjetivao do sujeito, opera
a objetivao31 e desta faceta do processo de secularizao que nos
concentraremos agora.
31 Ibidem. p.33.
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30
1.1.1. Razo e Indivduo
A secularizao pode ser encarada, portanto como uma das
manifestaes do processo Racional tpico da Modernidade. Ela a face da
Razo que se distancia e no se suporta mais pelos ditames religiosos. a
parcela negativa da Razo, vez que afirma e nomeia a Religio como seu
oposto, negando-a. Contudo, uma ateno deve ser dada a este processo
denominado aqui por negao. Este no implica na constituio de debates e
dilemas de mundo inditos e no explorados pelas mentes clericais, mas sim a
substituio da forma de encarar tais debates e dilemas e, principalmente,
como procurar resolv-los. Aqui, as questes que se constituam como as
principais questes existenciais do Homem tratadas at o fim da Idade Mdia
com exclusividade pela igreja Catlica32 continuam a ser tratadas em
destaque, porm por critrios legitimadores distintos. E isso, nos destaca de
maneira convincente Giacomo Marramao:
32
Ibidem. p. 03.
-
31
O homem de Modernidade filho muito mais da mensagem crist que do humanismo antigo. (...) O Weltbild moderno pode ento proclamar a centralidade do Homem na medida em que o homem j foi reduzido a Centro-subjectum.Tal traduo tem seu antecedente filosfico conceitual no princpio agostiniano do redi in te ipsum. (...) de fato, a tese de Agostinho, segundo o qual Deus me ntimo mais do que eu mesmo sou, jamais constituiu uma verdadeira ameaa ao Humanismo: ao contrrio, serviu-lhe, mesmo historicamente, de suporte.33
Complementando a concepo anterior, e com o intuito de
se identificar diretrizes para a formulao e delimitao daquilo que
associamos aqui ao conceito de Modernidade, encontramos na obra de Alain
Touraine uma importante contribuio que destaca, neste processo, a
substituio da Legitimao Divina pelas idias de natureza34 e utilidade
social35
. A primeira arraigada tradio grega de pensamento - conecta-se a
uma negao dos parmetros Divinos de conduta e legitimao que se
desdobram em diversas outras formas de justificao humanistas como, p. ex.,
a idia de Direito Natural, da qual se extrai a mxima de que o indivduo s
est submetido s leis naturais36. Este novo padro paradigmtico tem como
escopo maior unir o homem e o mundo, no mais pela interveno divina ou
mgica, mas (...) permitindo ao pensamento e ao humanos agir sobre
essa natureza conhecendo e respeitando suas leis sem recorrer revelao
33 Poder e Secularizao. As categorias do tempo. p. 163. 34 Ibidem. pp. 21-23. 35 Ibidem. pp. 23-28. 36 Ibidem. p. 21.
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32
nem aos ensinamentos das Igrejas37
. A segunda, como sabido, substitui a
dicotomia bom/mau pela dicotomia til/intil. Ainda para Touraine, a idia de
Natureza possibilita a no fundamentao por bases religiosas ou
psicolgicas, mas apenas sociais. Assim, os valores presentes - como bons -
inseridos em determinada sociedade s o so devido seu carter til, o que
implica dizer que o conceito de natureza detm elementos que apontam para a
noo de utilidade social, interligando essas duas categorias.
dessa noo que se funde o conceito laico de Liberdade,
identificado imediatamente pela noo moderna de sociedade que se
desenvolve a partir da idia de que (...)A ordem social no deve depender de
nada alm de uma livre deciso humana, que faz o homem o princpio do bem
e do mal e no mais o representante de uma ordem estabelecida por Deus ou
pela natureza. Neste sentido, (...)a sociedade substitui Deus como princpio
de juzo moral e se torna muito mais do que um objeto de estudo, um
princpio de explicao e de avaliao de condutas38
. Assim o faz Maquiavel,
bem como os demais modernos cientistas Polticos, cada um ao seu modo,
substituindo a Moral Crist, expressamente religiosa e dogmtica, pela Moral
Cvica, flexvel pela reivindicao de utilidade da qual impregnada.
37 Ibidem. p. 23. 38 Ibidem. p.24.
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33
Por mais que a associao dos conceitos de liberdade e
utilidade possa parecer de em certo grau suspeita ou negligente, assim no o
em uma segunda anlise. A grande celebrao da filosofia Moderna se faz por
crer que se rompera com a vinculao justificadora da Igreja Catlica,
superando, inclusive, o tmido resgate, em termos temporais, do naturalismo
grego. Isso implica em dizer que o Homem moderno pensa por si, isto ,
detm autonomia para deliberar sobre seu prprio futuro, no dependendo
mais de que suas aes e pensamentos estejam atrelados a um padro
normativo externo, ou heternomo. A ruptura da heteronomia pr-moderna e
o advento da autonomia moderna fazem com que o homem procure outras
bases para sua atuao e para constituio de seu valor.
A ao verdadeiramente Moral, a ao verdadeiramente humana, ser primeiramente e acima de tudo a que atesta essa caracterstica do homem que a liberdade entendida como faculdade de escapar a toda determinao por uma essncia prvia: enquanto minha natureza j que tambm sou animal, mas no apenas me leva prioritariamente como qualquer natureza ao egosmo, tambm tenho, essa em todo caso a primeira hiptese da moral laica, a possibilidade de me afastar dele para agir de forma desinteressada, altrusta.(...) o imaginrio moderno vai fundar esse altrusmo , essa preocupao como o interesse geral, na hiptese da liberdade humana.39
39 Andr Comte-Sponville e Luc Ferry. A Sabedoria dos Modernos. pp. 222-223.
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34
A moral moderna, ento, para sobreviver abrupta
alterao de sentido deve buscar paradigmas externos para justificar a ao do
indivduo e possibilit-lo dispor de repertrio para fazer inferncias sobre
aquilo que bom e sobre o que mal dicotomia esta no superada pelo
processo de secularizao. O mesmo mvel proclamado como emancipatrio
traz ao homem perda de referencial que faz com que ele direcione sua
autonomia de forma heternoma, mantendo as amarras formais do
dogmatismo cristo, no que tange mentalidade do homem moderno e do
homem medieval. Por mais que valorativamente, para ns, que colhemos os
frutos tericos deste processo, nos parea melhor pensar o mundo a partir
deste valor, formalmente, o homem ainda planeja todas as suas aes a partir
de referncias heternomas. precisamente neste ponto que a Utilidade
social se sobrepe Liberdade, necessariamente mantendo a escolha dos
homens a partir de uma orientao Poltica, ao invs de religiosa, mantendo,
contudo, o padro externo de orientao.
Liberdade, virtude da ao desinteressada, preocupao com o interesse geral: eis as trs palavras-chave que definem as morais do dever do, dever justamente, porque elas ordenam uma resistncia, quando no
um combate contra a naturalidade ou a animalidade que existe entre ns. (...) Por ai mesmo, a questo do sentido da vida que a secularizao filosfica do religioso modificou profundamente, inclusive para os que no rejeitam a mensagem do cristianismo: no mais adorar o Altssimo, desprezando o mundo, mas a prender a se elevar, a se tornar adulto nesse mundo, por assim dizer, por e para outrem.40
40 Ibidem. p.521.
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35
De forma mais explcita, Franco Lombardi destaca e
aponta diretamente para a influncia da teologia crist na formao da moral
presente na Modernidade. Aquela, inclusive, detm uma contribuio decisiva
para a sobrepujana do naturalismo grego ressuscitado pelo Renascimento. O
autor explica que toda a base da moderna filosofia moral do dever,
carregada de altrusmo e aes desinteressadas, tem sua gnese na noo
crist de pecado. Na tentativa de ultrapassar o apelo e o resgate da filosofia
naturalista grega, os modernos acabam por escorar toda sua concepo
filosfica de Moral nos padres de condutas j pregados pelo Cristianismo.
Lombardi, contudo, nos alerta, com razo, para o fato de que a filosofia moral
moderna tem sua gnese no cristianismo, mas, em hiptese alguma, pode ser
considerada idntica aos padres de condutas revelados por estes. Ela - e
isto que nos importa - mantm o homem preso s amarras de um molde de
condutas que no propicia, como alegado, uma emancipao real da atividade
racional e material do homem, a ponto de interferir decisivamente no rumo
das relaes sociais, em prol da materializao e realizao destes moldes
racionais aclamados como as luzes a iluminar o caminho da humanidade
rumo ao progresso lato sensu.
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36
Deve-se observar que, atravs do sentido do pecado, nasce o conceito de dever, ainda que este ultrapasse a sua determinao religiosa, pela converso desta no conceito do que no bom fazer e no se deve fazer. Assim, atravs do sentido do pecado, surge, embora afastando-se dele, o conceito de dever e, onde este aparece ele conceito moderno, em todo caso conceito ps-cristo, que no se teria afirmado sem ou fora do Cristianismo. Basta pensar, por exemplo, no conceito do imperativo categrico de Kant e da kantiana negao da material e m natureza do homem (m e enquanto material e enquanto natural).41
Assim, ruptura, no seria o melhor vocbulo para
compreender ou definir o processo de secularizao, mas sim superao. O
que a Modernidade apresenta, em termos tericos e legitimadores uma
sofisticao e implementao de nova legitimao terica para manuteno da
justificativa da ao do homem em padres heternomos. Em outras palavras,
a moral moderna mantm o homem nas amarras de uma necessidade de
aprovao de suas condutas a partir de referenciais supostamente maiores que
ele. Mesmo quando do afastamento de Deus como referencial primeiro para
as condutas dos homens, cria-se sucessivos e sobrepostos modos de criao de
referenciais que no so frutos diretos da razo humana, entendida ela nos
moldes do iluminismo. Retornaremos a esta questo mais tarde.
41 Franco Lombardi. Idem. p. 44.
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37
1.1.2. Tempo e Histria
Outra compreenso categrica fortemente alterada pelo
processo de Secularizao fora a noo de Tempo e, com ela, a de Histria. A
linearidade do tempo cristo, que constri a vida terrena com princpio, meio
e fim, transcorre em um sentido j definido profeticamente pelas Sagradas
Escrituras. Neste sentido, pouco ou nada produzido no tempo terrestre fruto
da ao livre do Homem. Toda ao ocorrida no tempo terrestre fruto da
vontade divina, caminhando, portanto, para o destino bblico conhecido como
Apocalipse. Assim a histria detm um apelo divino e atribuir ao homem a
responsabilidade de seu movimento profan-la. Toda histria, pelo conceito
cristo passado e todo passado consiste em uma preparao para o futuro.
(...) O passado, como parte do tempo, obtm significado apenas de modo retrospectivo, atravs de suas contribuies ao futuro. O passado no neutro, tampouco tem qualquer valor em si e para si mesmo. A histria, disse Agostinho, desenvolve-se sombra do futuro42.
42 Krishan Kumar. Da Sociedade Ps-Industrial Ps-Moderna Novas Teorias sobre o Mundo Contemporneo. p.81.
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38
Na Idade Mdia, essa relao crist com o tempo adquiriu
novos atributos que banalizavam e desdenhavam o tempo terreno, legitimando
o conceito cristo de Eternidade e reforando a incapacidade humana de
gesto do tempo terrestre, j que, em reforo, este tempo terrestre, por sua
finitude, era nada mais do que um pequeno estgio de aprovao rumo
Salvao Eterna.
O tempo, mais uma vez, movia-se em torno do ponto fixo da eternidade. E derivava todo o seu valor e significado ou falta deles desse ato. Os conceitos medievais preferidos memento mori (lembra-te que morrers), fortuna labilis (a inconstncia da sorte), theatrum mundo (o mundo um palco) enfatizavam, sem exceo, o carter ilusrio, a transitoriedade da vida humana e a incapacidade dos seres humanos de controlar seu prprio destino.43
Assim como a importncia da Razo, a relao do Homem
com o tempo tambm alterada com o advento do Renascimento. Pelo apego
tradio pag, crescente, neste perodo o interesse pela Histria dos
Homens - em claro antagonismo preocupao presente em a Cidade de Deus
de Agostinho readequando a disposio formal da histria, de linear para
cclica, recuperando a noo histrica de retorno conhecida pelos antigos e
aumentando o interesse da histria antiga Greco-romana focando a
preocupao do homem histria do prprio homem. Neste sentido, o tempo
43 Ibidem. p.83.
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39
ganha um contorno todo novo, se comparado formatao crist sobre o
tempo; O passado terreno ganha relevncia determinante para a historiografia,
vez que o tempo se ps cclico. O passado o pressgio proftico do que pode
vir a ser.
(...) Havia tambm a histria da prpria civilizao greco-romana, sua ascenso e queda, que se oferecia como uma espcie de paradigma de toda a histria mundial. Ambas essas fontes constituam estmulos poderosos para uma volta idia cclica antiga de mudana. (...) Essa concepo cclica da histria a responsvel por algumas das muitas ambigidades da idia de progresso da Renascena. Os novos tempos de fato representavam um rompimento revolucionrio com a estagnao da Idade Mdia, mas esta revoluo foi concebida de acordo com o modelo dos antigos, como movimento de uma roda ou crculo que volta origem.44
Essa nova concepo de tempo eleva a importncia do
homem na produo da histria e na conduo do prprio destino. J foi
esboado aqui a temtica da percepo instrumental de mundo de que
falaremos mais adiante. No podemos, contudo, afirmar que a estrutura
temporal assumida a partir do Renascimento se posta identicamente
concepo antiga de tempo e de histria. H um entrelaamento entre diversas
concepes de tempo presentes tanto na Antiguidade, quanto na Idade Mdia
que resultam, j na Renascena, uma concepo sobre tempo e sobre histria
44 Ibidem. p.86.
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que , concomitantemente, algo antigo lido a partir de novos olhos, nos quais
o homem, sem dvida alguma, passa ser a medida de todas as coisas, mesmo
que das que antes estavam sob o jugo de Deus.45
A traduo do Homem em sujeito como condio da mensurabilidade e do domnio lana uma luz significativa tambm sobre o curso fundamental da histria moderna, primeira vista quase absurdo. (...) O Weltbild moderno pode ento proclamar a centralidade do Homem na medida em que o homem j foi reduzido centro-subjectum.
Quer a antigidade encarada como a Idade de Ouro da
humanidade, como o na fase otimista do Renascimento - esperando do
retorno cclico Antigidade a realizao futura de uma nova poca de luzes,
o desabrochar efetivo do moderno, quer a antigidade no possuir foras para
se firmar frente nebulosidade em que se encontra o homem medieval isso
na fase pessimista do Renascimento - estagnando-o em uma obscuridade
intelectual e mundana, a histria do Homem a partir do Renascimento altera o
45 Podemos encontrar em Marramao um fecundo debate acerca da alterao da concepo de tempo a partir da gnese da Modernidade que ele, assim como ns, atribui ao Renascimento. No desenvolvimento dessa concepo ele se vale da inter-relao a qual nos referimos entre os diversos sentidos que o tempo, representado conceitualmente bifurcado, assume quando de uma necessria adaptabilidade temporal entre os antigos conceitos de (Kronos), (ain), (stor) e os medievais sculum e vum em um outro conceito que dar margem concepo de progresso que norteia todo o espectro da Modernidade e, sobre a qual, falaremos mais adiante. No utilizamos diretamente essa inter-relao feita por Marramao, no por desconhec-la ou por no nos parecer substancializada, mas apenas pelo fato de a construo intelectual feita por Marramao, conduz essa inter-relao diretamente a um outro quadro, mais arraigado em uma construo ideologizada da Modernidade sob os olhos de uma leitura ps-moderna da Modernidade a partir das leituras feitas sobretudo por Mazzarino, Lwith e, mais adiante em sua obra, Heidegger, o que no compatibiliza com o intuito do presente estudo. Porm se de interesse, tal debate pode ser encontrado em Giacomo Marramao. Idem. pp. 37-42; 47-58 e 167-171.
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seu enfoque: Enquanto a tradio histrica crist, personificada e
materializada pelo gnio de Agostinho - e pela sua descrio prescritiva da
Cidade Divina - foca-se na pr-destinao do homem e de toda vida mundana
a partir das concepes divinas, voltando toda a ateno dos Homens ao
futuro, a nova tradio histrica, secularizada, direciona a ateno do homem
ao passado: no primeiro caso, no passado a Antigidade que se encontra
o modelo ideal de civilidade e civilizao que ciclicamente retornar aos
homens aps a Idade Mdia, trazendo consigo a luz e o progresso que
salvaro a humanidade. No segundo caso, a baixa - seno nula - perspectiva
de melhora das condies humanas e mundanas faz com que o homem, j
secularizado, perca o interesse no vir a ser e, no encontrando condies
factcias para se apegar ao presente, vez que o denotam de um pessimismo
mitigador de progresso, voltam suas atenes, saudosamente, poca de Ouro
do Mundo.
(...) De forma paradoxal, foi a prpria inclinao secular do pensamento histrico da Renascena que a impediu de conceber seu prprio tempo como ligado, de uma forma radicalmente nova, ao futuro. Seu secularismo, ligado concepo de ciclos dos admirados modelos clssicos, virou o rosto para trs, para o passado. Na medida em que se interessou pela idia crist da histria, agarrou-se a opinio agostiniana de que o mundo envelhecera e estava em um estado de decadncia terminal.46
46 Ibidem. p.86-87.
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Contudo:
(...) No que dizia respeito ao mundo humano a natureza era outra questo no havia necessidade de acrescentar muita coisa. Historia magistra vitae, a histria a mestra da vida essa mxima de Ccero expressou a opinio dominante sobre a histria at meados do sculo XVIII. A histria, pensava-se, era um rico manancial de exemplos para instruo em assuntos morais e polticos. Essa tese pressupunha uma viso da vida humana como basicamente uniforme e imutvel, de tal modo que a experincia de geraes passadas poderia fornecer lies para finalidades presentes.47
No s a forma de viso de Mundo, e lio de vida e viso
no linear da Histria influenciou no Modus vivendi das sociedades ps-
renascimento. A partir desta nova percepo da Histria podemos afirmar que
esta ganhou contornos dialticos em sua forma de ser percebida, ou seja, a
partir desta ruptura ela encarada e descrita como um curso de eventos dos
quais a emancipao que possui como paradigma dominador, a concepo
Crist de mundo - s pode ser alcanada a partir de uma radical transformao
e distoro daquela viso de mundo em todas as suas vertentes e
possibilidades48. Porm, o que assistimos ao longo das modernas tentativas
de redesenhar os mtodos de compreenso da histria quando muito superam
as abordagens crists, sem, contudo, romp-las. A compreenso moderna da
47 Ibidem. p.90. 48 Gianni Vattimo. Idem. pp. 178-179.
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Histria mantm-se, p.ex., como afirmado por Lothar Paul49, um carter
metafsico e ideolgico de legitimao que j era identificado na forma de
compreenso crist da histria. Por mais que a dialtica apresente a histria
como um desenvolvimento (entwicklung) lgico a partir da relao temporal
de um valor e seu equivalente material, resultando em uma sntese que se
desdobra, por si, em um segundo momento, em outro valor e outro
equivalente material, o quadro formal desta perspectiva histrica, mantm-se
sob o prisma e na dependncia de um ponto de partida metafsico, assim como
era balizada a concepo crist de mundo. Tais valores, paradoxalmente,
possibilitam e limitam a percepo da histria e da relao do homem com o
mundo.
No por acaso ou coincidncia, o conceito h pouco citado
de Eternidade sofre ataques substanciais que resultam na sua substituio,
ainda no processo de Secularizao, pelo conceito de Progresso. Com a
alterao na forma de se enxergar o tempo e a histria, com a perda da
importncia dos olhos divinos sobre a prxis mundana, a busca do Reino de
Deus, do paraso, da morada eterna das boas almas, o homem ps-
renascimento se encontra preocupado no mais com Deus, mas com aquilo
49 Gesetze der Geschichte Geschichtslogische Rekonstrutionen zur Ortbestimmung der Gegenwart. pp.21-24.
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que ele vivencia, uma vez que a compreenso acerca do tempo para o homem
se altera bruscamente. A orientao do homem secular era para a vida, para os
padres de uma vida mundana boa e no mais para o que ele encontraria no
post mortem. Essa transio, que compe substancial e relevantemente o
processo de Secularizao conhecido na Modernidade, deve ser mais bem
destacada e compreendida desde sua origem.
1.1.3. Eternidade e Salvao versus Progresso
Viver a Eternidade no Paraso. A busca pela Salvao traz
consigo uma preocupao de acomodao de prticas que, ab initio, no se
mostram propriamente conciliveis: Livre Arbtrio, F e Desinteresse. Como
conciliar crena em dogmas religiosos - como dicotomia entre cu/inferno,
deus/diabo, bem/mal, pecado original - com a capacidade livre de escolha nas
pautas de suas aes, que, por fim devem, para alcanar a Salvao,
consagrao maior de qualquer criatura de Deus, faz-lo sem almejar tal
desiderato? Esse quebra-cabea cristo deveria ser resolvido na realizao de
feitos ao longo de toda uma vida. A Salvao deveria ser alcanada por
aquele que conseguisse agir com base nos trs pilares de sustentao para que
o paraso fosse jubilado e regozijado por toda a eternidade. O fardo dilemtico
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da tradio crist amparado nesta trade recaia ombro a ombro sobre os
homens, de forma individual, j que a razo humana deveria ajudar o homem
nesta difcil empreitada e a razo, embora concebida a todos os homens, a
feita individualmente. Assim, de forma individual, o homem s alcanaria a
Salvao eterna se e somente se, ao posto em prova pelas dificuldades
mundanas, escolhesse de acordo com os mandamentos divinos sem saber que
eram mandamentos e, tambm, sem saber que ao escolher o que efetivamente
escolhera isso salvaria sua Alma. Qualquer condio que fugisse a esse
complexo esquema no implicaria na Salvao. Se escolhesse com base nos
mandamentos de Deus, mesmo desconhecendo a premiao em jogo, no caso
a Salvao da Alma, s pelo fato de serem os mandamentos de Deus, o
indivduo no escolheria livremente temendo fria, desaprovao ou qualquer
outra sano possvel, ferindo, portanto, o livre-arbtrio. Por sua vez se agisse
de acordo com as regras divinas, no por conhec-las ou temer certa fria,
mas por almejar a Salvao, sua conduta no poderia ser considerada
desinteressada e at mesmo livre, posto que o desejar da Salvao que
motivara a agir de determinada forma, possibilitando a ns, at mesmo, supor
que haveria a possibilidade deste homem agir de outra forma se no fosse de
seu conhecimento que tal prtica levaria Salvao.50
50 Como questo incidental, poder-se-ia argumentar que em ambos os casos, o conceito de difcil harmonizao um s: O Desinteresse, j que at quando o homem desconhece a Salvao, o seu mvel o interesse de no ser punido, ou seja, no receber qualquer castigo. A distino que fazemos aqui, contudo, a de natureza quanto posio do sujeito face o seu mvel legitimador. No caso de no querer ser punido, o
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Ao longo da incorporao dos valores cristos e o
desenvolvimento de uma teologia-moral, o cristianismo passou a conduzir
essa relao sob o vis de certo humanismo. A relao do homem com Deus
se daria de acordo com aes no para com ele, mas para com seu prximo. A
partir desta concepo a liberdade do homem estaria pautada na sua
possibilidade de agir visando o seu prprio bem, ou, o bem do prximo,
conforme lhe melhor parecesse uma ou outra conduta. Assim, o livre arbtrio
passa a ser orientado no mais de forma exclusivamente reflexiva - de onde
provm a germe da concepo primeira de f mas uma reflexo que tenha
como objetivo a escolha de uma conduta a tomar: A ao para si, ou para
outrem. Neste sentido, a f assume um carter prtico e a liberdade est
conduzida para o bem do outro, embora possa ser direcionado para si mesmo.
No prprio texto dos evangelhos a questo no cessa de ser levantada: a Salvao deve advir aos homens pelas obras que eles consumam ou pela graa de Deus, de que a f o indcio subjetivo, que eles alcanam seu paraso. Nessa vertente a laicidade j est, por assim dizer, presente no mago da problemtica crist. A moral aparece a como condio
necessria e suficiente da tica; ela que nos leva a Deus. (...) Nossas boas aes, longe de serem a causa de um estatuto qualquer, so a conseqncia de uma converso.51
faz evitando uma ao de terceiros, no caso, Deus e isso o coloca passivamente frente aos mandamentos de Deus. Por outro lado, aquele que age no intuito de receber a salvao, o faz desejando-a, ou seja de forma ativa. Acreditamos que o mvel do sujeito, seja determinante e suficiente para justificar a distino aqui apresentada. 51 Andr Comte-Sponville e Luc Ferry. Idem. p. 217.
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Se daqui se objetivasse um debate teolgico poderamos
direcionar tal problemtica para tentar delinear o que de fato leva o homem
Salvao: Sua ao perante o outro ou sua f no altssimo. Isso fora
amplamente debatido especialmente com o advento do protestantismo, cujo
Lutero se mostra como figura determinante. A moral catlica atribua s
condutas na terra o critrio avaliador para a obteno da Salvao. J o
protestantismo atribua f, exclusivamente, a capacidade de o homem
alcanar o reino dos cus, independente de sua conduta na terra. O processo
de secularizao, contudo, transforma tal debate metodolgico
harmoniosamente em duas questes que pautaro os escritos tericos
modernos ao longo de sculos: O dever- moral e a metafsica.
O Paraso! Aquilo por que, desde pelo menos o sculo XVIII, introduziu-se a suspeita de que a promessa da salvao crist bonita demais para ser honesta, humana demais para ser divina. essa suspeita que funda todas as crticas da religio como fetichismo, como projeo, em suma, como iluso ligada extraposio indevida na existncia do real do que no passa de uma aspirao subjetiva. Deus no , ou antes, Ele s existe sob a forma da necessidade que os homens tm Dele: esse, no essencial, o credo dos materialistas desde as Luzes. (...) Paradoxalmente, essa tica religiosa no desvinculada do nascimento da moral moderna, como reflexo sobre os deveres do homem na Terra. O advento das prprias morais laicas inseparvel de sua origem religiosa, de seu arraigamento no teolgico-tico. Por falta de perceber essa filiao, torna-se quase impossvel formular a questo do estatuto da tica, da problemtica da salvao portanto, num mundo desertado pelos deuses.52
52 Ibidem. p.216.
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a partir destes dois elementos que grande parte dos
filsofos morais pautar seus escritos; a ao desinteressada do homem passa
a ser o grande critrio de verificao do grau de moralidade que este detm.
Sob este prisma e nesta esteira, a modernidade substitui a noo de Salvao
pelo conceito de Dever, mantendo, contudo, o mesmo revestimento formal
presente na moral crist como principal meio de avaliao de suas condutas,
como j dito: o desinteresse. Esse desinteresse detm como principal
paradigma um padro metafsico de justificao que, todavia, j no mais o
divino. Um dos maiores expoentes desta capacidade de harmonizao secular
e laica sobre o debate teolgico entre catlicos e protestantes acerca de um
aparato metodolgico racional encontrado, sem dvida, sob o gnio de Kant
ao identificar no Imperativo categrico (Kategorische Imperativ) a
manuteno de estrutura formal do desinteresse em uma moral moderna,
permeada pela preocupao do homem para consigo.
Ao lado desta desfigurao laica da Salvao, a
Modernidade tambm comporta outra leitura que traz o fenmeno da salvao
ao mundo dos homens, tirando das mos de Deus tal competncia. Trata-se do
Progresso.
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O progresso pode ser considerado como o filho dileto da
modernidade. Entre tantos ele que alimenta a conscincia e a separao
entre o que e o que no moderno. Falamos h pouco sobre a transformao
da concepo de tempo que a modernidade experimentou, e precisamente
nesse ponto em que tanto o progresso quanto a liberdade vo se alimentar, se
sustentando reciprocamente. o que Zygmunt Bauman chama de
autoconfiana do presente que relega o passado ao espectro de fracasso,
ultrapassado, antigo, no qual no h qualquer relao com os eventos que
ocorrem no presente. Sendo assim, a histria da civilizao e da humanidade
no levada em considerao ao se estabelecer o rumo, o destino e as
manifestaes do presente.
O sentido mais profundo, talvez nico, do progresso feito de duas crenas inter-relacionadas de que o tempo est do nosso lado, e de que somos ns que fazemos acontecer. As duas crenas vivem juntas e morrem juntas e continuaro a viver enquanto o poder de fazer com que as coisas aconteam encontrar sua corroborao diria nos feitos das pessoas que as professam. (...) Os que mantm o presente nas mos tm confiana de que sero capazes de forar o futuro a fazer com que seus prprios negcios prosperem, e por essa mesma razo podem ignorar o passado como bobagem, que se traduz, em termos mais elegantes, como sem sentido ou mistificao(...) O progresso uma declarao da crena de que a histria no conta e da resoluo de deix-la fora das contas.53
53 Modernidade Lquida. pp. 151-152.
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A noo de progresso trata o tempo e o disponibiliza
completamente vontade do homem. Tanto que a idia de tempo atrelada ao
progresso que supera a concepo renascentista de tempo cclico. A
transformao experimentada foi tamanha que no se sentia mais o espectro
do passado como algo de relevo, tampouco a insero do homem em um
fenmeno maior que ele mesmo. Ao contrrio, o Progresso deu ao homem
moderno a sensao de poder antever, prever e modificar a partir de seus atos
qualquer coisa a qualquer momento. E o momento o presente, sempre. As
concepes imediatas de mundo e bem estar fizeram o homem moderno
perder o referencial de futuro e planejamento. As aes do homem eram
pautadas no presente e o progresso foi considerado uma prtica por si s, na
qual tudo aquilo que foi, ou seja, que j passado deve ser melhorado, vez
que ultrapassado. O progresso cai na sua prpria armadilha e os seus frutos j
no so to bons se no forem frutos do presente.
O encantamento com o progresso com a vida que pode ser trabalhada para ser mais satisfatria do que , e destinada a ser assim aperfeioada ainda no terminou, e no provvel que termine to cedo. A modernidade no conhece outra vida seno a vida feita: a vida dos homens e mulheres modernos uma tarefa, no algo determinado, e uma tarefa ainda incompleta, que clama incessantemente por cuidados e novos esforos.(...)O progresso no mais uma medida temporria, uma questo transitria, que leva eventualmente a um estado de perfeio, mas um desafio e uma necessidade perptua e talvez sem fim, o verdadeiro significado de permanecer vivo e bem.54
54 Ibidem. p.155.
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Mas a concepo de progresso no foge regra da dupla
caracterizao do processo de secularizao experimentado pela forma de ver
o mundo. comum atribuir superao da idia de f a partir daquilo que se
elabora racionalmente. Nesse sentido, a razo volta-se para a idia de
Verdade, ao mesmo tempo em que se associa a aplicao da racionalidade
humana, em pleno seio do Progresso, aos padres de utilidade ou inutilidade
vida. indissocivel, como bem menciona Vattimo, as concepes de
secularizao e progresso. O progresso, para ele, ainda marcado pela
exacerbao e celebrao do presente e da capacidade inventiva do homem e
de sua emancipao no sentido de no mais depender de valores, padres,
condutas ou explicaes de elementos externos a ele mesmo. o que ele
chama, apropriando-se adequadamente da terminologia de Arnold Gehlen, de
Diesseitigkeit ou a substancializao e exaltao do tempo presente e
mundano como marca da modernidade. O novo, o presente e o progresso,
fazem parte da dicotomia da Modernidade, instaurados pelo binmio
Verdade/utilidade. Falaremos melhor sobre isso no prximo tpico. Por hora,
de relevo demonstrar que a noo de progresso e de presente se associam
imediatamente noo de secularizao que desemboca no que ns
chamamos de Modernidade. assim que Gianni Vattimo nos esclarece tal
relao:
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Secularizao, como moderno, ao mesmo tempo um termo que descreve o que aconteceu em certa poca e que assumido como seu carter, e o valor que domina e guia a conscincia da poca em questo, sobretudo como f no progresso (que ao mesmo tempo, uma f secularizada e uma f na secu