João Bernardo William Gillis Carlos Taibo...Carlos Taibo pelo rápido, e além disso irracional,...

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Ecofascismo Uma coletânea João Bernardo William Gillis Carlos Taibo Ecofascismo

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  • EcofascismoUma coletânea

    João BernardoWilliam GillisCarlos Taibo

    Ecofascismo

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    Editora Subtawe.riseup.net/subta

    Primavera de 2019

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  • A fórmula de Bahro não se converte em uma justificaçãosubterrânea da dominação, da exploração e da hierarquiaque estão, paradoxalmente, na origem das crises ecológicas?Não estaremos diante de uma transcrição de uma ideia mui-to difundida, de origem hobbesiana, que implica que somen-te um governo que faça uso de mecanismos coercitivos podepermitir que se enfrente os problemas que estão na origemdo risco de colapso e, mais além deles, aqueles que são apli-cados uma vez que este é verificado?

    Minha franca rejeição das vias hierárquicas e autoritáriasse revela em todos os âmbitos imagináveis. Não me pareceoutra coisa a não ser uma superstição, por exemplo, a suges-tão de que os militares, por organização e disciplina, serãouma ajuda vital para lidar com o colapso. É mais fácil ima-ginar que eles se coloquem ao serviço dos projetos concebi-dos pelas classes dirigentes tradicionais. Tampouco aprecioque qualquer problema relevante seja resolvido pela defesada necessidade de abandonar uma economia de mercado emfavor de outra dirigida – seria preciso colocar-se de acordo,claro, sobre o que este adjetivo significa –, já que as econo-mias dirigidas podem estar ao serviço, também, de um pro-jeto ecofascista. Em outra direção, faz algum sentido imagi-nar que a democracia liberal, claramente subordinada aos in-teresses das grandes corporações, se torne em um mecanis-mo de salvação, no extremo, e durante urgências inevitáveis,da humanidade? Independentemente de como as coisas são,deixo o leitor nas mãos de uma pergunta provocadora: have-rá um ecofascismo ocidental e outro chinês?

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    SUMÁRIO

    Prefácio ..................................................................... 5Editora Subta

    O Mito da Natureza .............................................. 13João Bernardo

    Ecofascismo revisto .............................................. 47William Gillis

    Ecofascismo no colapso ...................................... 75Carlos Taibo

  • pelo rápido, e além disso irracional, crescimento da econo-mia. Não convém esquecer, isso sim, que grande parte dasemissões chinesas de CO² corresponde a produtos importa-dos pelos países ocidentais.

    Rudolf Bahro, outrora representante de um singular e hete-rodoxo marxismo na República Democrática Alemã, transfor-mado num teórico importante de um tipo de ecofascismo sua-ve – permita-se-me o oxímoro – na Alemanha destes dias,acredita que a crise ecológica deve ser resolvida em virtudede mecanismos autoritários implantados por um governo desalvação ou por um “Estado-deus”. Murray Bookchin, quemdebateu na sua época com Bahro, disse que, e me junto a seuargumento, uma ditadura ecológica – em virtude de que estra-nho processo talvez surgisse? – seria qualquer coisa menosisso, ecológica, e acabaria, na verdade, com o planeta, alémde operar em proveito de umas poucas pessoas. Acarretaria aglorificação do controle social, da manipulação, da coisifica-ção dos seres humanos e da negação da liberdade, tudo issoem nome da resolução dos problemas ambientais.

    Diante da resposta de Bahro, de que semelhante afirma-ção não parecia prestar atenção ao lado negativo, o do egoís-mo e da competição, da natureza humana, Bookchin se per-guntou por que haveria de canalizar esse lado negativo atra-vés de sua institucionalização pela via da força, da supersti-ção, do medo e da ameaça, e pela via, em paralelo, de ideo-logias bárbaras. Não seria razoável concluir que as institui-ções resultantes – acrescento –, longe de abraçarem qual-quer procedimento voltado para enfrentar a crise ecológica,deixariam a rédia solta – aí está a Alemanha hitlerianapara ilustrá-lo – para o lado negativo da natureza humana?

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  • Diante do colapso, será que os modelos autoritários servem?

    Sou obrigado a encarar, mesmo que brevemente, umapergunta delicada: na hora de enfrentar o risco do colapso,ou o próprio colapso, as sociedades autoritárias e hierarqui-zadas não estarão em melhor posição do que as que nãoapresentam essa duas características? Não é mais fácil queseja a China de agora, e não as democracias liberais – supo-nhamos que não são autoritárias e não estão hierarquizadas–, a que fará frente de maneira convincente à mudança cli-mática? Há estudiosos que, cheios de razão, entendem queno mundo ocidental um dos principais problemas a esse res-peito é o fato de que as grandes empresas dificultam qual-quer abordagem séria aos elementos causadores do colapso.Cabe perguntar-se, no entanto, se em um cenário como ochinês não estão emergindo interesses e estruturas da mesmanatureza ou, na falta disso, se a competição internacional naqual a China está imersa não conduz novamente a encurralara luta contra a mudança climática ou a implementação demedidas que permitam lidar com o esgotamento das maté-rias-primas energéticas. É verdade que a China, para nãosair do exemplo, declarou em dado momento que entre 2011e 2015, e ao menos no papel, a maior preocupação das insti-tuições não seria o crescimento da economia, mas a qualida-de do desenvolvimento, e que em consequência, procurariafórmulas que garantissem um menor uso do carvão e umamaior eficiência energética. Os esforços das autoridadespara reduzir emissões se viram contrabalançados, entretanto,

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    PrefácioTudo começa com a ecologia clássica. Ou seja, a Nature-

    za vive em equilíbrio, cada elemento, planta ou rocha, fungoou estrela, possui o seu lugar para manter essa dança numaharmonia inspiradora. A Natureza é sábia, a Natureza é bela.De repente, no meio desse todo coeso e autorregulado surgea corrupção. O ser humano, antes aos poucos, agora de ma-neira cada vez mais vertiginosa, se afasta de suas origens,quebra o alegre pacto da vida, torna-se uma aberração.

    Portanto, acima de tudo e antes de mais nada, nós, entretodas as pessoas ignorantes e violentas, nós, que somos cons-cientes e prestativos, devemos voltar para o caminho. E dadaa urgência em que vivemos a cada momento, precisamos aju-dar a Mãe Natureza, coitada, tão explorada, tão fora de si.

    Ecologia e cibernética foram ciências complementares, umabaseada na noção de equilíbrio, a outra na de autorregulação.No século XIX, junto com a “ciência” que pretendia inferircomportamentos étnicos através das medidas do crânio, a cren-ça no Equilíbrio natural foi usada como dispositivo colonial:para que o universo funcione, cada ser necessariamente tem oseu lugar, e o da aristocracia europeia era o de senhores da Ter-ra. Qualquer deslocamento botaria tudo a perder.

    No meio do século XX a moda mudou, porém os pressu-postos continuavam muito semelhantes. De Salazar a Hitler,a identificação do Bem com a Natureza fez criar a ideologiade que um povo saudável e poderoso é aquele diretamentevinculado à terra. Isso porque estar em contato com o chão,

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  • as plantas e os rios nos aproxima do Equilíbrio natural. JoãoBernardo aponta, no texto selecionado nessa coletânea, que“segundo Walter Daré [ideólogo nazista], a população se-dentária que compunha o mundo agrário fora o elementofundador da raça nórdica e continuava a fornecer-lhe o es-teio mais sólido e duradouro, em contato orgânico com aterra, regada pelo sangue dos antepassados”.

    Apesar de efeitos potencialmente diferentes, defensoresda agroecologia e apologistas do modo de vida indígenapartem dessa mesma ideia. Existe um jeito certo de estarno mundo. Por mais perturbador que isso possa parecerquando dito com todas as letras, aí está a chave para enten-der a fusão, muito possível, entre ecologia e fascismo.

    Uma vez ajudei a organizar uma atividade que buscavaevidenciar a autonomia que nós já possuímos. Começamosdescrevendo um cenário hipotético: imagine que foi defla-grada uma greve de caminhoneiros e que, portanto, esta ci-dade não receberá mais combustíveis. Como toda cidade éum local de concentração e subsequente distribuição de re-cursos e serviços, no momento em que o transporte para ocentro é interrompido, a distribuição interna não tem maiscomo acontecer. Imaginando esse cenário, lançamos a pri-meira pergunta: o que, a partir de agora, nós, com nossospróprios corpos e relações, teremos que cuidar? Usamosmeia hora para juntar, através de uma chuva de ideias –onde não discutimos, apenas somamos –, todos os camposda vida: energia, comida, comunidade, saúde, arte, trans-porte, abrigo, etc. Neste pouco tempo, as pessoas presentesfacilmente concordaram ao elencar o que lhes era caro paraviver. Não havia dúvidas nem conflito.

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    Porém, faria mal esquecer que existem alguns elementosque contrariam o vigor do tétrico panorama que acabo dedescrever. Embora historicamente os cenários de escasseztenham sido propícios ao desdobramento de genocídios,existem algumas razões convincentes para concluir que ocolapso pode beneficiar indiretamente os fracos, ou ao me-nos pode ser, para eles, menos prejudicial que para os pode-rosos. Como já sabemos, isso pode muito bem ser assim, emparticular, no caso de países pouco dependentes de energiasestrangeiras e tecnologias complexas, ao ponto de que nãoseria demais sustentar que, quanto mais pobre um país, me-nores serão os problemas que, não sem paradoxo, terá queenfrentar. Num tipo de mundo ao contrário 586, em muitoslugares não haverá multinacionais exploradoras nem planosde ajustes do Fundo Monetário, e as desigualdades recuarão.Kunstler afirma que, ao recuperar o controle sobre seus re-cursos e parar de sofrer a devastação cultural que o Ocidentepromove, os países pobres optarão espontaneamente por es-tilos de vida mais simples como os que, no passado, desen-volveram durante muitos séculos.

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  • No que concerne aos países do Sul, também encontramosparadoxos. Parece que serão o terreno, antes de mais nada,da enésima operação de rapina imperial, à mercê de uma re-novada pulsão que tanto aspirará ao controle de matérias-primas escassas como à ocupação de espaços de importânciageoestratégica. Falo, além disso, de regiões do planeta bas-tante afetadas pela mudança climática e muito vulneráveisfrente a eventuais subidas nos preços da energia. Segundouma estimativa, um aumento de 10 dólares no preço do pe-tróleo provocará um retrocesso de 3% no PIB destes Esta-dos. São países, além disso, muito mais permeáveis à expan-são de enfermidades, cenários habituais das revoltas do pão,que arrastam gravíssimos problemas sociais que afetam aci-ma de tudo as mulheres, crianças e idosos, com situaçõesparticularmente críticas nas grandes cidades e com Estadosmanifestamente falidos, dotados de instituições muito frá-geis marcadas pela corrupção e a deterioração de todas asrelações. Claro que se apresentarão circunstâncias delicadasnos países do Sul, como é o caso dos efeitos do afundamen-to do comércio mundial, dado a péssima situação para aseconomias assentadas na exportação, da presumível exten-são da pirataria, de um novo impulso experimentado pelasagressões ambientais – podemos prever, por exemplo, ofranco desaparecimento das grandes superfícies arbóreas –ou de migrações massivas em busca de regiões mais tranqui-las, comumente no norte do planeta, mas ocasionalmente,também, no sul (na Argentina e Chile, na África do Sul, naAustrália e Nova Zelândia, ou inclusive em algumas áreasda Antártida). Não faltarão, enfim, agudas confrontaçõesinternas com as pequenas ilhas protegidas – assim, e talvez,as áreas mais altas e chuvosas do continente africano – emproveito das classes abastadas.

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    Depois de uma rápida sintetização do que foi falado, di-vidimos as várias ideias em algumas poucas áreas. Isso visa-va a divisão das pessoas em grupos menores para debatesmais focados. Assim, a segunda questão que lançamos, combase nesse campo comum de necessidades, foi: o que nós,com nossos próprios corpos e relações, já fazemos hoje paracuidar e atender a essas necessidades?

    O resultado foi negativamente surpreendente: um silênciofrustrante cobriu o espaço, sendo rompido somente por umaou duas ideias delirantes sobre o que deveríamos fazer, e nãodescrições de práticas reais que já compõem nossas vidas.

    Pode ser que essa tenha sido a primeira vez que aquelaspessoas haviam pensado no assunto. Talvez elas nunca tives-sem passado por dificuldades materiais. Talvez elas fossemprivilegiadas o suficiente para já receberem da sociedade oque precisavam. Talvez, tendo vivido sempre numa cidade,essas pessoas não haviam desenvolvido outras habilidadesque não aquelas relacionadas à burocracia e à obediência. In-dependente do que possamos supor sobre a razão daquele si-lêncio, o fato é que ninguém está preparada para uma situa-ção de crise. Seja individual ou socialmente. Se a água acabar(São Paulo, 2014-2016), se a eletricidade faltar (Brasil, 2001-2002), se não houver mais combustíveis (BR, 2018), o quefaremos? O que fizemos?! Afinal, quem poderá nos defender?

    Será que esse é o efeito de 10 mil anos de autoritarismo esubmissão? Será que a obediência ensinada na família, naescola, no trabalho, nas instituições enfim, cria as condiçõespara nossa confusão sobre o que fazer? Instila na sociedade

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  • essa falta de confiança em nós mesmas? E será que acombinação de tudo isso resulta na imensa dificuldadede nos organizarmos socialmente?

    Como aponta Lierre Keith, no livro “O mito vegetariano”,“a sociedade civil estará sob uma tremenda pressão num futu-ro próximo. À medida que as configurações básicas da socie-dade industrial comecem a falhar, o fascismo é um dos resul-tados mais prováveis. Quando as pessoas estão desesperadas,elas são muito vulneráveis a soluções fáceis e autoritárias, es-pecialmente aquelas que utilizam bodes expiatórios”.

    Ao montarmos esta coletânea, tivemos em vista que o fu-turo será catastrófico e que a socialização básica do ser hu-mano há muitos séculos é a submissão. Nos parece que ashabilidades e os recursos para levarmos nossas vidas comautonomia estão longe de nossas mãos. Será que temos no-ção dessa incrível vulnerabilidade?

    Os textos a seguir visam sacudir a poeira dessa alienação esão um convite desconfortável para percebermos como os ine-gáveis valores ecológicos vêm gerando práticas autoritárias.

    Em “O mito da natureza”, João Bernardo aborda em trêspartes como esse mito foi um dos pilares ideológicos do fas-cismo. A primeira, analisa de modo geral a tensão entre eco-logia e desenvolvimento técnico, culminando na figura docamponês, como interface nacional de conexão com a nature-za. A segunda olha para o desenvolvimento fracassado daagricultura familiar no fascismo europeu, enquanto o últimoaponta como o nazismo, levando ao extremo a noção de equi-líbrio natural, promoveu uma guerra pelo “solo e o sangue”.

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    amparada por uma mistura de forças armadas regulares eexércitos privados ou tropas mercenárias que funcionarãode maneira mais ou menos autônoma, permita encarar osprincipais desafios. Os impérios terão que fazer frente,além do mais, a fluxos regionais autônomos cada vez maissignificativos e, ao mesmo tempo, a uma menor ligaçãoentre as diferentes áreas do planeta.

    Faz sentido identificar alguns dos problemas militaresprecisos que previsivelmente sucederão. No caso dos Esta-dos Unidos, Greer estima que os três maiores problemas se-rão o que se espera que aconteça com a dissuasão nuclear, asobrevivência de aliados como Israel e, em suma, o controleda fronteira meridional do país. Saltam à vista, de qualquerforma, as delicadas tecituras que podem se revelar no que serefere à manutenção e ao uso de armas nucleares, que neces-sitam um controle exaustivo e permanente. A isso se soma-rão, previsivelmente, a perda de informação sobre sua loca-lização e as incógnitas que se derivam da proliferação destetipo de armas. Juntamente com as cinco potências nuclearestradicionais, desponta hoje a presença de países como Israel,Índia, Paquistão ou Coreia do Norte. Quem pagará, por ou-tro lado, e num terreno próximo, os contratos dos técnicos eengenheiros encarregados de manter as usinas atômicas? Oque acontecerá com os arsenais de armas químicas e bioló-gicas? Não haverá problemas com barcos, aviões e submari-nos, dado suas altas tecnologias dificilmente sustentáveis,com a informática como um delicado calcanhar de Aquiles?Não terão sido, enfim, os sucessivos fiascos dos militaresestadunidenses no Afeganistão, no Iraque e na Síria umaprévia do que acontecerá em larga escala?

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  • Impérios e países do Sul

    Parece evidente que boa parte da discussão que acabo dedesenvolver se sobrepõe a uma história que vem de longe: ados impérios e a das rédeas usadas por eles nos países doSul. Tentarei delinear alguns argumentos para explicar comoo horizonte do ecofascismo se vincula com as lógicas impe-riais e com a pilhagem desses países.

    Começarei pelos impérios, hoje em dia imersos em numairrefutável fuga para frente que se manifesta, e me fio nosexemplos vinculados com o conteúdo geral deste livro, noprojeto de abrir uma nova via de comunicação marítima noÁrtico e na possível exploração de novos depósitos de maté-rias-primas. A primeira coisa que é preciso destacar em rela-ção aos impérios é a dificuldade de mantê-los, o que vai demãos dadas com a necessidade de empregar uma força quenão estará tão claramente à sua disposição em um momentode escassez geral de recursos. Vaclav Smil sublinhou que osEUA se converteram em um império em boa medida pormeio do emprego muito extenso de uma energia que obvia-mente faltará. A debilidade repentina das tecnologias a ser-viço do ecofascismo pode traduzir-se, por outro lado, numamaior violência num cenário marcado por um paradoxo: osimpérios mostram uma extrema dependência com respeitoaos territórios dominados. O que durante muito tempo deuforça aos impérios, a centralização, está a ponto de se con-verter em um problema agudo, na medida que o resultadoserá um sistema insustentável. E não parece que o tipo dedisseminação de instrumentos de intervenção que se prepara,

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    As críticas de João Bernardo à agroecologia nos fizerampensar muito sobre as origens e condições da fome crônica,mesmo discordando no geral da sua análise marxista do ine-vitável desenvolvimento da sociedade.

    Em “Ecofascismo revisto”, William Gillis faz um comen-tário amplo e cheio de digressões sobre o livro “Ecofascismo,lições da experiência alemã” e o contexto do meio anarquistado seu lançamento nos anos 1980. Com um estilo mais infor-mal e abordando questões filosóficas, Gillis, assim como JoãoBernardo, traça uma genealogia da ideologia nazista baseadana defesa da natureza. O tradicionalismo resultante possuiuma semelhança assustadora com posições primitivistas. “Épreciso se deixar levar”, “as coisas precisam acontecer natu-ralmente”, “foi a razão que nos trouxe à beira do abismo,logo, temos que abandoná-la”, pensamentos como esses colo-cam uma venda sobre nossa capacidade crítica (científica ounão) tornando-nos ora seres dóceis nas mãos de poderosos ca-rismáticos, ora irascíveis seguidores da lei do mais forte.

    Por se tratar de uma resenha permeada por relatos pes-soais, em muitos momentos esse texto se apresenta confu-so ou difícil. Nem sempre uma mente acadêmica se bene-ficia de uma linguagem coloquial. Entretanto, em muitosmomentos Gillis traz questões que nos parecem de impor-tância crítica para esse debate.

    Por fim, extraímos o 5º capítulo do livro “Colapso” deCarlos Taibo e o posicionamos aqui a título de conclusão.Apesar da grande quantidade de “poréns” e “entretantos”,

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  • Taibo apresenta novamente a história catastrófica do séculoXX, mas para além disso, avalia possibilidades sociais futurastendo em vista a trágica virada ambiental que se avizinha.

    Quem nunca ouviu frases como “tem gente demais nomundo” ou “onde tem pobre, tem lixo”? Numa situação decolapso devido ao aquecimento global e à escassez de recur-sos naturais, a “solução fácil” proposta pelas _pessoas debem_ não será outra que o extermínio daqueles que não sealinham com a (sua) defesa da Mãe Natureza. E não há ne-nhum problema de consciência nisso. Afinal, “é preciso fa-zer alguma coisa para salvar a Terra!”

    O ecofascismo já mostrou sua cara durante o séculoXX, principalmente na Europa. Não sem fortes contradi-ções, gigantescas máquinas de guerra estatais, arrancandoincansavelmente matérias-primas para a destruição de po-pulações vizinhas, promoveram políticas públicas de pre-servação ambiental e o enaltecimento da vida no campo.O ponto não é verificar se eles eram “verdadeiros” ecolo-gistas, mas mostrar o que se pode fazer com uma ideolo-gia. Enquanto continuarmos vendo nossa responsabilidadecomo indireta, belas palavras seguirão nos fazendo sorrircom tranquilidade, somos crianças aquecidas por Fukushi-ma, alimentadas pela soja do Mato Grosso.

    Hoje, a ascensão de governos de extrema-direita em con-texto de catástrofe iminente apontam para o que virá. A clas-se média vem adotando e exigindo valores ecológicos, semmostrar nenhum interesse por quem produz a sua comida ouo que é feito com sua merda. Coisas como energias renová-veis e comidas orgânicas vão se tornando senso comum,

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    e entre os perdedores a maioria da população dos paísespobres, as minorias estrangeiras, os idosos e os deficien-tes. Embora se espere que o grosso da população de deter-minados espaços geográficos se salve, não cabe descartar,inclusive nestes cenários, a implementação de medidas deproibição de imigração, de estrito controle de nascimen-tos, de extensão do aborto e do infanticídio no caso demalformação, do fechamento de horizontes vitais para osidosos e da eutanásia voluntária. Em termos gerais, nãointeressarão, tirando as elites, as pessoas que nem sequerservem como força de trabalho ou, o que é quase o mes-mo, aquelas que não trabalham nem consomem.

    Não surpreende a afirmação de que o ecofascismo recla-ma um projeto político manifestamente hierarquizado.

    Cabe supor que seus impulsionadores, que se autointitu-lam como salvadores, serão em alguns casos líderes caris-máticos. Receberão o apoio das camadas da população quepreferirão perder direitos às custas de manter – ou de intuirque manterão – certos privilégios. Esses impulsionadores tal-vez criem novas instituições que apontarão para uma francamilitarização da vida coletiva e espalharão o terror e o medo.E não apenas isso: destacarão a ideia de que é preciso fazerfrente a um sem número de inimigos hostis. E provavelmenteestimularão as divisões religiosas, étnicas, linguísticas e declasse. É verdade, contudo, e como tenho a oportunidade derecordar em várias ocasiões nesta obra, que a quebra das rela-ções de mando e controle que virão, em uma ou outra medi-da, com o colapso será traduzida em problemas na implanta-ção de uma imaginável maquinaria ecofascista.

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  • Na mesma linha argumentativa, há que recordar as já nume-rosas teorizações que, na onda de Naomi Klein, enxergamnas catástrofes naturais uma oportunidade, não para mudardrasticamente nossas formas de vida e nossas relações, maspara, na verdade, melhorar a economia.

    Destacarei que aos olhos de Milton Freidman as sequelasdo furacão Katrina em Nova Orleans ofereceram uma opor-tunidade única para reformar de maneira radical o sistemaeducativo, na medida em que retiraram muitos dos obstácu-los que dificultavam as reformas desejadas. O mesmo acon-teceu com a reconstrução do Haiti, tão proveitosa para umsem-número de empresas privadas. A própria lógica do capi-talismo verde, que concebe o meio ambiente como um negó-cio, se encaixa perfeitamente em suas considerações. Naverdade, nada retrata melhor o que significa simbolicamenteo capitalismo verde que essas gigantescas torres edificadas,no meio do deserto, em Dubai, totalmente insustentáveismesmo utilizando as técnicas mais modernas em matéria deeconomia de energia e recuperação de água.

    Já apontei – e volto a fazê-lo – que se no passado a euta-násia dos pobres se justificava sobre a base das necessida-des do capital, agora se começa a acrescentar, para ci-mentá-la, um suposto compromisso com o planeta e suapreservação. É certo que os critérios de seleção de quaispessoas devem ser salvas nem sempre são claros, por muitoque sejam, isso sim, fáceis de intuir. Entre os beneficiadosestarão, com certeza, muitos dos habitantes dos países ricose as elites dos países do Sul – são frequentes os exemplosde habitações de gente abastada preparadas para o colapso,como também os de estoques de vacinas e medicamentos –,

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    ao mesmo tempo que o senso comum elege Bolsonaro. Paramuitos, a Amazônia queima lá longe (há décadas!), uma ca-tástrofe distante, que não tem nada a ver com o seu conforto.Nos parece muito possível que essa mesma classe média in-centive a construção de formas democráticas de expurgos,desde que alguém faça o trabalho sujo e a responsabilidadeesteja tão afastada que não consigamos vê-la.

    Alguma start-up a fim de desenvolver um aplicativo queintermedeie essa nossa salvação?

    Editora Subta,primavera de 2019

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  • Demografia e autoritarismo

    O projeto ecofascista coloca em primeiro plano uma dis-cussão demográfica que tem seu fundamento maior na ideiade que na Terra estão sobrando muitos de seus habitantes.Falou-se do efeito, e por exemplo, de uma possível popula-ção planetária de 1000 a 2000 milhões de seres humanospara o ano de 2100, entendendo-se que essas cifras não sãonecessariamente o produto de um ecofascismo: elas poderi-am constituir, sem mais, a resposta da adaptação a um cená-rio marcado pelas numerosas restrições derivadas do colap-so. Para Hamilton, e numa perspectiva próxima, a reduçãoda população se produzirá com ou sem ecofascismo.

    Mas também não é demais mencionar propostas comoaquela que pretendia reduzir a população do planeta a 600milhões de pessoas – um cenário compatível com a sobrevi-vência da biosfera –, presumivelmente realizada pelo cha-mado Clube Bilderberg na sequência de muitas das iniciati-vas ironicamente retratadas por Susan George no RelatórioLugano 566. George sugere que, perante uma crise geral, asautoridades mais altas teriam chegado à conclusão de que aúnica forma de salvar o sistema é uma “estratégia de redu-ção da população”. Nos encontraríamos frente a um tipo deresposta biológica do grande capital, que desfrutaria de umaadesão adicional resgatada por Amery, para quem “se estápartindo do pressuposto de que, graças às últimas inovaçõestécnico-científicas, apenas vinte por centro da populaçãoplanetária é suficiente para satisfazer toda a produção dese-jada da economia mundial”, com as consequências esperadas.

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  • alemãs morressem de fome. Essa promessa de uma vida me-lhor que se circunscrevia aos nossos reclamava, nas palavrasde Amery, um “programa assassino que seria executado porum povo superior” e que outorgaria a este o “poder e bem-estar através de uma agressão permanente, ao mesmo tempoque combatia a limitação dos recursos do planeta mediante acorrespondente submissão e dizimação dos povos escravos”.Com Hitler, também se revelou a defesa de uma espécie de“destino manifesto”, de um direito cuja legitimidade nãoprecisava ser demonstrada, já que beneficiava uma raça on-tologicamente superior. Na mesma esteira, e em seu artigoEichmann em Jerusalém, Hannah Arendt nos lembrou queos nazistas queriam “decidir quem devia e quem não deviahabitar este planeta”. Nos bastidores, e retornemos a Amery,os próprios nazistas demonstraram uma formidável capacida-de na hora de amedrontar os cidadãos alemães e transmutá-los em seres entregues à mais estrita e irracional obediência.

    Entre as consequências da aposta hitleriana estavam a au-toatribuição de uma “missão civilizadora”, a implantação deuma dupla guerra – colonial, contra os eslavos, e anticolonial,contra os judeus –, um culto às raízes que se associa com umarejeição xenofóbica das pessoas que não as compartem, a de-gradação da imagem das vítimas, que muitas vezes foramconvertidas em opressores, e uma visível rejeição da imigra-ção acompanhada de uma obscena defesa da eutanásia. Comoresultado, encontraram-se natureza e política, ecossistema ehabitação, necessidade e desejo. E nesta ordem de coisas, épreciso destacar – volto ao argumento – que em muitas ocasi-ões o extermínio, ou a marginalização, não se justificou sobreas bases das necessidades do capital, mas, pelo contrário, emvirtude das restrições que se derivaram da natureza.

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    João Bernardo1

    O Mito da Natureza

    A mitificação do camponês

    Desde há mais de um século que a extrema-esquerda prog-nostica com uma insistente regularidade a crise do capitalis-mo, e quanto mais revolucionários se pretendem esses profe-tas, tanto mais anunciam que se trata da crise definitiva e der-radeira. Apesar disso o capital tem-se acumulado e concentra-do, a economia tem crescido e o sistema tem-se reforçado edesenvolvido, o que não impede as habituais previsões de serepetirem. Mas estes erros de óptica não se devem apenas aofacto de a generalidade dos revolucionários tomar os desejospor realidades e construir as estratégias em cima de sonhos.Deve-se também a uma instabilidade inerente ao capitalismo.

    O capitalismo é o único modo de produção a exigir ainstabilidade, quando todos os sistemas económicos anteri-ores procuraram garantir que as suas condições de funcio-namento se conservassem inalteradas. Os antigos sistemastendiam a reproduzir a mesma profissão nas mesmas famí-lias e os mesmos tipos de produção nos mesmos lugares,

    1 Publicado no site www. passapalavra.info/2011/11/98773 em 25/11/2011. Mantivemos a escolha ortográfica do autor.

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  • mas o capitalismo alterou decisivamente este panorama e ins-tituiu como regra a mobilidade da força de trabalho e a mutabi-lidade dos tipos de produção. Por isso o capitalismo não podesobreviver nem desenvolver-se sem permanentes crises secto-riais e regionais, sem a ininterrupta adopção de novas técnicase novos sistemas organizativos, sem que estejam sempre a serlançadas no desemprego multidões de trabalhadores enquantooutras são absorvidas por novos ramos de actividade, sem acontínua deslocação de volumes muito consideráveis de capitale a migração de enormes vagas humanas, sem uma destruiçãoque é sempre acompanhada pela construção.

    A instabilidade, em vez de indicar qualquer crise geral docapitalismo, é, pelo contrário, um sintoma da sua vitalidade.Neste sistema a instabilidade não implica por si só um dese-quilíbrio, porque o equilíbrio pode restabelecer-se no tempoou no espaço, quero dizer, um desequilíbrio pode ser com-pensado posteriormente ou noutro lugar por um desequilí-brio em sentido contrário. É por isso que erram os profetasapressados, ao confundirem instabilidade com crise.

    Aquela confusão, porém, não é desprovida de base social,porque um modo de produção que, para assegurar a vitalida-de dos seus fundamentos, não pára de pôr em causa as suasformas episódicas e de substituí-las por outras parece correrum risco grave. Será que os explorados, educados a admitir amutabilidade de todos os meios económicos e de todas ascondições de existência, acabarão afinal por conceber a pre-cariedade do próprio regime de exploração? E assim, ao mes-mo tempo que uma corrente ideológica proclama os valoresdo progresso e anuncia que a instabilidade faz parte das ne-cessidades da vida, outra corrente insiste na necessidade de

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    é por acaso um livro de Carl Amery que leva o título de Hi-tler aus Vorläufer: Auschwitz – der Beginn des 21 Jahrhun-derts? (Hitler como precursor: Auschwitz, começa o séculoXXI?). Essencialmente, Amery ressalta que seria um gran-de erro concluir que as políticas abraçadas pelos nazistasalemães remetem a um momento histórico singularíssimo,conjuntural e, por isso, afortunadamente irrepetível. Amerynos exorta, pelo contrário, a estudar em detalhes essas po-líticas dado que elas podem reaparecer, nos próximos anos,dessa vez não defendidas por grupos ultra-marginais de ne-onazis, mas postuladas – já sugeri isso antes – por algunsdos principais centros de poder político e econômico, cadavez mais conscientes da escassez geral que se aproxima ecada vez mais firmemente decididos a preservar esses re-cursos escassos em umas poucas mãos em virtude de umprojeto de darwinismo social militarizado.

    Sobram, além disso, razões para afirmar que existem es-treitos vínculos entre o nazismo, por um lado, e o racismo eo imperialismo característicos do século XIX, por outro.Zygmunt Bauman apontou muito bem que “o Holocaustonasceu e foi executado em nossa moderna sociedade racio-nal, num alto estado de nossa civilização e no auge da reali-zação cultural humana, e por essa razão é um problema denossa sociedade, civilização e cultura”. Theodor W. Adorno,por sua parte, viu no nazismo a manifestação de uma bar-bárie “inscrita no princípio mesmo da civilização”. Em todaesta trama, é muito relevante o conceito de Lebensraum (es-paço vital). Goebbels apontou que o objetivo da guerra eragarantir aos alemães “um grande café da manhã, um gran-de almoço e uma grande janta”, sem que para alcançá-lo,aparentemente, houvesse importância que as pessoas não

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  • que “esta combinação de nacionalismo, autoritarismo e ad-miração por líderes carismáticos, legitimada por uma ‘eco-logia’ mística e biologicista, é potencialmente catastróficano terrenos social”. Staudenmaier aponta que a guerra tra-vada com esses fundamentos não foi apenas genocida: tevetambém um caráter ecocida plasmado num formidávelexercício de violência contra a natureza.

    Biehl e Staudenmaier ressaltam que seria, contudo, umerro considerar esta corrente ecologista como um mero ador-no da parafernália tecnocratica-industrial dos nazistas. Nosfatos, e antes deles, a maioria dos ideólogos nacional-socia-listas participava de um romantismo agrário e de um anti-urbanismo que reclamava um processo de re-agrarização.Em março de 1933, foram aprovadas leis que acarretaram,em todos os níveis, programas de reflorestamento, medidasde proteção de animais e plantas, e decretos que limitavam odesenvolvimento industrial. Em 1935, ganhou corpo, poroutro lado, uma lei de proteção da natureza voltada a prote-ger a flora, a fauna e os “monumentos naturais” do Reich. Éimportante enfatizar, contudo, que o fenômeno que me atraiagora não foi de modo algum exclusivo da Alemanha hitle-rista. Se fez valer também, muito pelo contrário, na Itáliafascista, sob a forma de políticas de desenvolvimento rurali-zantes e de esforços de reflorestamento, estreitamente liga-dos, como se poderia esperar, com uma ideologia nacionalistae racista. Os exemplos mencionados nos colocam de sobrea-viso, é claro, frente a possíveis usos abjetos da ecologia.

    Convém, no entanto, dar mais um passo e formular al-guma consideração relativa ao contexto em que ganhoucorpo o ecofascismo primeiro. O melhor guia a esse respeito

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    dotar a sociedade de uma âncora conservadora. As ideologiascapitalistas têm oscilado entre estas duas perspectivas e, nageneralidade dos casos, combinam-nas de formas variadas.Foi neste quadro que surgiu o mito da natureza.

    A ideia de que a sociedade industrial rompeu o equilí-brio da natureza baseia-se na suposição de que este equilí -brio tivesse alguma vez existido. Os ecologistas, que con-quistaram uma larguíssima expressão pública e consegui-ram um surpreendente poder de intervenção na sociedadecontemporânea, admitem implicitamente, quando não o fa-zem explicitamente, um axioma fundamental – o mito doequilíbrio natural e da natureza como padrão perante o qualdevem avaliar-se as instabilidades económicas. A tal pontoque as contradições sociais são sistematicamente apresen-tadas como contradições entre a sociedade e a natureza, fi-cando deste modo escamoteados o processo de exploraçãoe as suas consequências. Mas atribuir à natureza um estadooriginário de equilíbrio e remeter para ela os postuladosgenéricos de todos os demais equilíbrios é procurar aí ajustificação de ilusórias harmonias sociais e, portanto, éalienar da sociedade os seus modos de funcionamento. Anaturalização constitui a forma suprema de reificação. Apartir do momento em que um dado padrão de ordem éapresentado como natural ele torna-se eterno e indiscutível.A aceitação do mito do equilíbrio natural corresponde aotriunfo absoluto da tradição.

    Isto não seria de estranhar em ideologias conotadas clarae exclusivamente com a ala mais retrógrada do capitalismo.Mas é perturbante verificar que a extrema-esquerda engoliucom isco, anzol e cana de pesca o mito da natureza – e esta é

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  • uma situação nova. Até há poucas décadas atrás a esquerdacaracterizava-se pela ânsia de acelerar o futuro e os amantesde relíquias encontravam-se apenas entre os conservadores.Hoje a situação inverteu-se e é da extrema-esquerda quemais vozes se erguem apelando para os factores históricosde estabilidade, enquanto a direita, mesmo quando se pre-tende conservadora, não tem o mínimo receio de abrir cami-nho a inovações que liquidam os vestígios do passado. Ali-ás, por que motivo a antiguidade de uma cultura ou de umcomportamento colectivo é apresentada como critério emabono da necessidade da sua sobrevivência, quando se podiacom mais lógica argumentar que para algo que já dura hámuito tempo teria chegado a altura de se extinguir?

    Um dos artifícios do multiculturalismo é o de se insurgircontra a destruição de culturas, línguas e modos de vida ar -caicos, como se eles tivessem existido desde sempre e nãotivessem resultado, por sua vez, da destruição de culturas elínguas anteriores. Os multiculturalistas servem assim umduplo objectivo. Em primeiro lugar, num amplo plano es-tratégico, procuram manter a população pobre fragmentadanuma multiplicidade de minigrupos, precisamente quandoo capital, por seu lado, se encontra globalizado mundial-mente. Este é um importante factor de fortalecimento docapital aquando dos confrontos sociais. Em segundo lugar,e no âmbito mais reduzido dos seus interesses profissio-nais, os multiculturalistas, todos eles de extracção universi-tária, procuram conservar em vida as suas cobaias huma-nas, que lhes servem para fazer as teses e artigos sobre asculturas e línguas em que se especializaram.

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    O ecofascismo primeiro: a Alemanha hitleriana

    Ecofascism Revisited (O ecofascismo revisitado), o livrode Janet Biehl e Peter Staudenmaier, é, acima de tudo, umestudo da proposta ecofascista assumida pelos nazistas ale-mães. Nas páginas dessa obra, recorda-se prontamente queno Partido Alemão Nacional Socialista operava um influentegrupo de pressão ecologista dedicado a tarefas variadas,como a adoração da natureza, o renascimento da vida ruralou o vegetarianismo. Essa corrente foi o produto de umasíntese muito singular entre naturalismo e nacionalismo deEstado, forjada ao calor da influência do irracionalismo anti-ilustrado próprio de determinadas manifestações do roman-tismo alemão. Por trás de muitas destas posições era fácilnotar, além disso, um vínculo entre pureza ambiental e pure-za racial. As tradições e a língua se relacionavam então comuma paisagem ancestral que desenhava seres humanos vin-culados a ela e outros totalmente afastados. Os primeiros sereferiam, no caso que me ocupa, à “essência alemã” da quefala Rudolf Bahro. Era preciso separar, então, em virtude dalei natural, umas culturas de outras e privilegiar, como fazHerbert Gruhl, as que possuem as melhores perspectivas emmatéria de sobrevivência. Ou seja, as que estão mais bem ar-madas e as que sabem preservar seus recursos. Desse pontode vista, e adicionando-se, claro, a noção do autoritarismo eda repressão, é possível entender o extermínio dos judeus euro-peus durante a segunda guerra mundial e a rejeição abrupta de-dicada aos imigrantes. Biehl conclui, com argumento certeiro,

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  • Tal aposta carrega, claro, a marginalização, e, neste caso,o extermínio, de boa parte da população, amparada na apli-cação de delicados critérios para determinar quem fica equem não. Se às vezes a opção de exclusão e de extermíniojustifica-se em virtude de códigos religiosos, outras invocaum mero poder material e algumas vezes se vale de presu-midas exigências naturais, ela sempre opera com base emuma ideia matriz: a de que a Terra não pode mais.

    Admito que, inevitavelmente, o emprego do prefixo eco-,comumente conotado de forma positiva, acaba produzindoalguma surpresa quando usado para retratar uma realidadetão negativa como a que agora me ocupa. Terei a oportuni-dade de destacar, no entanto, que distintas manifestações daecologia estiveram presentes, de forma indelével, nas for-mulações ideológicas, e nas práticas cotidianas, de movi-mentos de corte fascista. É importante deixar claro, contudo,que hoje, ao falar de ecofascismo, não estou pensando – ounão estou pensando fundamentalmente – em eventuais ver-sões verdes de forças políticas de extrema direita, mais oumenos marginais. Penso, pelo contrário, em abordagens quevêm à luz no ceio de instâncias políticas e econômicas deprimeira ordem. Convém discutir, em qualquer caso, que,falando propriamente, o ecofascismo seja uma resposta fren-te ao colapso: na verdade, parece que ele é, pelo contrário,uma manifestação precisa deste último.

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    A natureza é um mito porque ela não existe senão comoobjecto da acção humana. Se eu fosse definir os limites danatureza, usaria termos equivalentes aos da coisa em si deKant, ou seja, daquilo que, mantendo-se exterior à acção hu-mana, não pode ser conhecido, porque o homem só pensa econhece a sua própria actuação. Já desde os primórdios dahumanidade esse mito foi desvendado. Os arqueólogos quetêm tentado reconstituir a base das concepções vigentes noneolítico e os pesquisadores que se dedicam à análise estru-tural das narrações mitológicas consideram que um dos ele-mentos fundadores das ideologias arcaicas era a oposiçãoentre a cultura humana e a natureza, entre o mundo civiliza-do e o espaço selvagem. Aristóteles inseriu-se numa lon-guíssima linhagem e, ao definir o homem como um animalsocial, estava realmente a defini-lo como um ser antinatural.O facto de Aristóteles, para estudar o fenómeno da mudan-ça, ter recorrido a analogias extraídas da actividade artísticae artesanal indica que considerava a natureza como objectode intervenção. Enquanto princípio de mudança, a natureza,tal como ele a entendia, opunha-se por um lado ao acaso e poroutro opunha-se também ao ofício do artesão e do artista. Re-ciprocamente, os artistas e os artesãos, embora se servissemdos mesmos materiais que a natureza, transmutavam-nos emformas diferentes; por isso, em vez de imitarem a natureza, en-travam em concorrência com ela. Nesta perspectiva, no séculoII antes da nossa era, numa época em que as técnicas haviamcomeçado a adquirir outra importância, o filósofo estóicoPanætius de Rodes defendeu que a actividade manual dos sereshumanos é capaz de completar a natureza, criando como queuma nova natureza. E nos alvores da época em que a ciência setornou experimental, aquele clássico metodológico que é o

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  • Novum Organum de Bacon anunciou que «a técnica é o ho-mem acrescentado à natureza», o que implicava, como ob-servou Jean-François Revel, arguto comentador de questõesfilosóficas, «que a natureza sem a técnica humana não seriaa natureza». A todos os desequilíbrios inerentes à naturezadevemos somar mais um, o da acção social, que, sendo sem-pre contraditória, só pode entender-se como um desequilí-brio determinante de desequilíbrios.

    As sucessivas tecnologias não se limitaram a instaurardesequilíbrios. Todas elas, enquanto materialização de da-dos sistemas de relacionamento social, surgiram para re-solver desequilíbrios mais ou menos agudos resultantes daapropriação social da natureza, inaugurando assim formasdiferentes de desequilíbrio. Não estou a escrever aqui umahistória da tecnologia em vários volumes, por isso cabeum único exemplo, ilustrativo dos demais, sem excepção.O recurso ao carvão mineral no começo da indústria capi -talista, na passagem do século XVIII para o século XIX,uma fonte de energia muito poluente e a que hoje se atri -buem tão grandes culpas, surgiu para resolver um enormedesequilíbrio provocado durante o regime senhorial,quando a madeira era o material empregue em pratica-mente todas as construções e todos os tipos de fabrico.Este uso extensivo da madeira como matéria-prima provo-cou uma retracção tão acentuada dos bosques e das flores-tas que na Grã-Bretanha a lenha teve de ser importada depaíses distantes, atingindo preços incomportáveis. O usodo carvão mineral veio solucionar a crise suscitada pelouso da madeira na sociedade europeia pré-capitalista.

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    Carlos Taibo

    Ecofascismo no Colapso

    “Existem razões para estarmos inquietos, porque agorasabemos que vivemos em um tipo de sociedade que possi-

    bilitou o Holocausto e que não tinha nada que pudesseevitar que o Holocausto acontecesse”

    Zygmunt Bauman

    “O passo da barbárie à civilização exigiu umséculo; o passo da civilização à barbárie

    necessita apenas um dia”.Will Durant

    Já indiquei que a contribuição dos movimentos através datransição ecossocial não é a única resposta imaginável ao co-lapso. É preciso prestar atenção, em vez disso, a uma outramuito diferente, que vem da mão do que alguns estudiososchamam de ecofascismo. Este último é baseado na intuição deque para resolver eficientemente o problema geral da escasseznão há outra solução do que propiciar um rápido e forte declí-nio no número de seres humanos que povoam o planeta.

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  • O livro Ecofascismo não é uma confusão de associaçõesmarginais. Ele apresenta, de maneira convincente, o papel sig-nificativo que a ecologia teve no desenvolvimento do socialis-mo nacional. A variante do fascismo de Hitler – de longe, amais influente – estava profundamente ligada às narrativas da“ecologia”, e aos essencialismos diretos e à rejeição do pensa-mento que isso proporciona. Entretanto, para entender de fatoessa forte associação, e menos para combatê-la, requer irmosalém da confusa perspectiva que Bookchin fornece.

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    A indústria moderna limitou-se inicialmente a resolver osdesequilíbrios insustentáveis que haviam resultado das tecno-logias e das formas de exploração que a precederam, e a par-tir de então tem encontrado resposta aos desequilíbrios queela própria criou, avançando para outras modalidades contra-ditórias e, por isso, desequilibradas. Nem sequer se deve jul-gar que a sociedade industrial atingiu uma potencialidadedestruidora superior, em termos relativos. Bem pelo contrário,pode definir-se como regra que quanto mais rudimentares fo-rem os meios técnicos empregues por uma sociedade tantomais vastas serão as repercussões da sua acção sobre a natu-reza, por comparação com os resultados obtidos no plano daprodução material. Não faltam os estudos de sistemas econó-micos tanto de povos pré-históricos como de povos contem-porâneos utilizando tecnologias arcaicas que confirmam estaregra. Limito-me a dois exemplos. Os grupos sociais nóma-das que usavam instrumentos de pedra lascada não os volta-vam a afiar quando o gume estava embotado, mas punham-nos de lado e talhavam outros instrumentos. Em prazos mui-tíssimo breves, agrupamentos humanos diminutos consegui-am esgotar completamente pedreiras consideráveis, estabele-cendo-se então junto a uma nova fonte de abastecimento, atéque a tivessem consumido também, e assim sucessivamente.Como o mesmo sistema era aplicado às outras matérias-pri-mas e aos alimentos, em pouco tempo se provocava a depre-dação de enormes territórios. Uma das técnicas que os peque-nos grupos itinerantes de colectores usavam para caçar ani-mais consistia em lançar fogo a uma floresta ou uma savanaquando o vento fazia as chamas correr em direcção a um pre-cipício, levando os animais a despenhar-se para fugir às cha-mas. Ficava assim queimada uma enorme área e matava-se

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  • um número de animais superior às capacidades de consumo,porque, não sendo ainda conhecidos métodos de conserva-ção a longo prazo, a carne só era comida enquanto não apo-drecia. Quando partia para outro lugar, esse pequeno grupohumano deixava atrás de si uma destruição incomparavel-mente superior aos benefícios que retirara da caçada. Podiasomar interminavelmente exemplos, todos eles demonstrati-vos de uma regra única, a de que, proporcionalmente ao ní-vel de produção pretendido, as tecnologias mais toscas sãoas que ocasionam efeitos secundários mais consideráveis eque perturbam áreas mais vastas.

    O mito do equilíbrio natural é inseparável do mito dobom selvagem, do ser humano primitivo em harmoniacom o meio circundante. A própria concepção moderna deselvagem, elaborada por uma sociedade europeia possui-dora de algumas técnicas de produção bastante avançadas,resultou de uma distorção da capacidade de observaçãodos navegantes e colonizadores, que não conseguiam vera considerável sofisticação daquela humanidade que abor-davam pela primeira vez. Procurando nos outros apenasaquilo que eles mesmos possuíam, os europeus chegaram,evidentemente, à conclusão de que os outros nada tinham,ou muito pouco, quando na realidade essas sociedades,embora mantivessem em formas simples certos âmbitosde actividade que na Europa tinham atingido uma grandecomplexidade, haviam desenvolvido a complexidade deoutros âmbitos, que não ultrapassavam entre os europeusum estado rudimentar. Difundiu-se assim, para o bem epara o mal, a noção da existência de selvagens em comu-nhão com a natureza, em vez de se entender que essas

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    E, caramba, como Bookchin adorava umas distopias bu-rocráticas de tirania coletiva. Assim, as mesclas mais proble-máticas tornaram-se piores pelos seus defensores, envene-nando o discurso anarquista por mais de uma geração.

    Ecofascismo: Lições da Experiência Alemã está profun-damente montado em toda essa história. Hoje, ele pareceum cadáver de um conflito ideológico onde nenhum doscombatentes tinha futuro. Isso é uma pena, pois diferentede livros mais rigorosos como A Política do Sangue e doSolo: Ideais Ambientalistas da Alemanha Nazista, ele foiconfeccionado de uma maneira linda para ser sucinto eacessível para o todo do movimento anarquista.

    Botei um monte de lenha na fogueira falando da ideolo-gia responsável pelo livro, mas, cá entre nós, eu gostei. Oque me preocupa é que só consegui fazer uma leitura gene-rosa estando décadas afastado do conflito e tendo queimadominhas próprias pontes com o pós-esquerdismo. Duvido quemuitas outras pessoas, curtidas há tanto tempo no tribalismoda pós-esquerda, terão qualquer motivação para pegar o li-vro, ou, a essa altura, tenham qualquer coisa nas suas veias.

    Hitler ser vegetariano foi por muito tempo o clássicoexemplo fácil de uma posição ideológica irrelevante.

    Mas e se não era?

    E se toda a papagaiada “hippie direitista” dos nazis nãoera um barulho aleatório, mas estava profundamente relacio-nada à sua ideologia fundamental? E se o, aparentemente,insano balaio de gato de posições que os nazis sustentavamfosse, na verdade, relativamente coerente?

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  • Pensamento ativo inerentemente significa risco, instabili-dade e ruptura. Não podemos abraçar a integralidade comoSeres enquanto, ao mesmo tempo, expandimos nossa liber-dade para o interminável processo de Vir-a-Ser. A ecologiasocial de Bookchin foi, no final das contas, uma tentativaequivocada e desesperada de unir coisas incompatíveis.

    Uma vez tiradas as escolhas mais fundamentais, torna-seaparente que fascismo e primitivismo não são ideologias ab-surdamente diferentes que se misturam de forma bizarra – não,elas são muito próximas porque elas brotam da mesma raiz. Omesmo impulso reacionário a aceitar o estável e o preexistente.

    Essa é uma realidade que Bookchin era péssimo emcompreender porque 1) ele era avesso a realmente exami-nar a inclinação a falácias naturalistas que ele herdou deKropotkin, e 2) porque ele certamente não era muito con-sistente com relação à liberdade.

    Então, a avaliação de Bookchin permanece superficial:o problema é que os verdes maus rejeitam a bagagem his -tórica da esquerda, como o Iluminismo e a racionalidade.Porém, o problema é que termos como “modernismo”, “ra-cionalidade”, e “o Iluminismo” há muito tempo se torna-ram uma massaroca tanto de coisas boas quanto de coisasruins, permitindo que as pessoas ora usem-nos para criticar,ora para se defender. Termos como “razão” foram seques-trados e deformados em certos discursos até que conotemnão o pensamento crítico, mas a imposição de certos regi-mes de administração codificada.

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    pessoas actuavam também sobre a natureza, destruíam-na erecriavam-na em moldes sem dúvida diferentes dos euro-peus, mas nem por isso menos carregados de consequências.

    O mito do bom selvagem, continuado por antropólogosque curiosamente, no panorama político actual, gostam dese situar na esquerda, tem reforçado as implicações social-mente conservadoras do mito da natureza. Se a terra, mãecomum, fosse a fonte inesgotável de uma tradição perene eimutável, então os homens e as mulheres pretensamentedesprovidos de técnica seriam os actores de uma vidaexemplar. O tipo de racismo surgido nos países germânicoscom o romantismo, na passagem do século XVIII para oséculo XIX, introduziu uma alteração neste mito, entroni-zando como modelo da tradição não a gente de outras pelese outros narizes, mas aquela parte da população europeiaque fora relegada para o emprego de instrumentos arcaicos,ou seja, os camponeses. A noite dos tempos é a ignorânciados historiadores e a imutabilidade das técnicas arcaicas éa ignorância dos comentadores triviais acerca das mutaçõesoperadas. Quem procura na história uma estabilidade que ja-mais existiu está a adulterá-la para servir as conveniênciaspolíticas do presente. Pouco importa hoje aos entusiastas doarcaísmo camponês que desde as pesquisas de Lefebvre desNoëttes e depois, noutra perspectiva, de Marc Bloch e dosseus seguidores, bem como de Haudricourt, se saiba que astécnicas rurais, longe de se terem mantido imutáveis, havi-am sofrido numerosas adaptações e mesmo, por vezes, re-modelações muitíssimo profundas e relativamente rápidas,destinadas a resolver desequilíbrios provocados pelas técni-cas anteriores e inaugurando assim desequilíbrios novos.

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  • Numa obra dedicada ao regime senhorial europeu entre oséculo V e o século XV (ver as Referências no final desteartigo) analisei detalhadamente as transformações operadasnas técnicas agrárias e o leitor muito interessado encontraráaí abundantíssima bibliografia. Mas servirá para algumacoisa? É de mitos que se trata, e estes são tanto mais sóli -dos quanto mais cegamente resistem às demonstrações queos invalidam. Os camponeses europeus foram consideradospelo romantismo como estando imemorialmente apegadosa técnicas que, por comparação com as velozes mutaçõesdifundidas na indústria, eram apresentadas como neutras,efectivamente não-técnicas.

    Ilustrativo deste percurso ideológico é o caso de ErnstMoritz Arndt, um dos expoentes do racismo e nacionalismoromântico de conotação linguística, que derivou da apologiado campesinato para a apologia da terra. A natureza era, paraArndt, uma totalidade orgânica, em que plantas, pedras e se-res humanos estavam inter-relacionados, sem que uns fos-sem mais importantes do que os outros. E assim o solo e araça eram apresentados como partes de um mesmo conjunto.

    No círculo de intelectuais formado pelo romantismo ger-mânico tornou-se um lugar-comum a ideia de que as flores-tas haviam moldado a maneira de pensar teutónica e, portan-to, haviam condicionado as características cerebrais da raça,e Martin Bernal, historiador que se deteve nestas questões,referiu «a insistente propensão dos românticos para deduzi-rem o carácter de um povo a partir das paisagens da sua ter-ra natal». Note-se que eles não estavam a escolher o factorgeográfico em detrimento do factor racial, mas a uni-los am-bos num conjunto indiferenciado, porque a visão de dados

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    Bookchin era péssimo na compreensão ou disputa com acomplexidade e a teoria da informação. Sua visão econô-mica era uma tremenda burocracia participatória – de inter-mináveis reuniões – que quase instantaneamente repeletoda anarquista, não importa o quão interessado ela possaestar. Era também, como é óbvio para qualquer pessoa comum mínimo de conhecimento de economia, impossível.Simplesmente não dá para fazer crescer em escala a toma-da de decisão coletiva de forma que ainda seja favorável ouque satisfaça os reais indivíduos para além de um pequenoprojeto rural. Projetos ou produtos tecnologicamente com-plexos – e menos ainda qualquer economia inovadora oufluidamente adaptativa – requer dinâmicas de mercado.

    Dessa forma, será que é de se surpreender que Bookchintenha falhado em lidar com as questões de complexidade emjogo na nossa integralidade ecológica?

    Os cérebros humanos não conseguem lidar ou compreen-der produtivamente a biosfera muito mais do que os planeja-dores do soviete central conseguiram lidar ou entender omercado. Mas tampouco podemos silenciar a destrutividadeinata de nossa criatividade e nossa capacidade investigativade vivermos em “harmonia” dentro da natureza puramentecomo engrenagens instintivas.

    Com isso, não estou sugerindo um chamado para umaguerra de extermínio, mas um divórcio – o mais agradávelpossível, espero, e com pensão alimentícia. Uma justiçarestaurativa perfeita é impossível, mas podemos fazer omínimo essencial: retirar os pavimentos, fechar as saídasde dejetos das fábricas, replantar o Saara, recuar para cida-des fechadas, e por fim, sair da Terra.

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  • ecologia social, o municipalismo libertário, etc. É difícil fa-zer diferente. Esse é um livro que serviu como uma arma naguerra ideológica, mas distante do próprio fascismo, mesmosendo um livro sólido sobre fascismo.

    Vale ressaltar que Bookchin se via como um verde. Ele ten-tou desenhar um caminho do meio que evitava o conflito entre acapacidade de ação e a natureza, entre pensamento e estase. Eleviu a subida histórica de Estados e hierarquias sociais como umerro profundamente irracional, um artefato de uma transição tur-bulenta da evolução biológica para a evolução social.

    “Após dez mil anos de evolução social bastante am-bígua, devemos reentrar na evolução natural”, e in-staura “não menos a humanização da natureza como anaturalização da humanidade”. (Ecologia da Liberdade)

    E assim,

    “a evolução natural desembocará na autoconsciência,no cuidado, e na compaixão com a dor, com o sofri-mento, e com os aspectos incoerentes de umaevolução largada à própria sorte, que geralmente sedesdobra de maneira instável.

    Aqui vem o pepino: e se tudo isso é impossível?

    E se os seres humanos simplesmente não consegueminteragir extensivamente com a biosfera de um jeitobenéfico para ambos?

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    panoramas naturais suscitaria uma dada linguagem, e umadada linguagem corresponderia a uma dada estrutura cere-bral. «Mal começava o século XIX», observou Peter Stau-denmaier, «e já estava solidamente estabelecida a relaçãomortífera entre o amor à terra e o nacionalismo racista mili-tante». Criou-se assim o mito da harmonia do camponêscom a natureza ou, em termos mais drásticos, da própria in-tegração do camponês na natureza, enquanto elemento natu-ral. Cultivador de raízes, ele mesmo seria uma raiz, funda-mente implantada na terra mãe.

    Os ecologistas actuais, ao postularem o equilíbrio naturale considerarem a indústria demoníaca por haver introduzidoo desequilíbrio, espartilham-se — possivelmente sem o sa-ber — com um par de conceitos que estruturou a dialécticada história na obra principal de Spengler, um dos monumen-tos do pensamento de extrema-direita nas primeiras décadasdo século passado — a cultura, que corresponderia a umaessência orgânica e se definiria pela coesão interna, e a civi-lização, que seria meramente exterior e adventícia, não ul-trapassando o plano técnico. Tratava-se para Spengler daoposição entre a vida e o artifício, entre o orgânico e o me-cânico. «Cultura e civilização, isto é, o corpo vivo e a mú-mia de um ser animado!». Nestes termos, inevitavelmente,«a civilização representa a vitória da cidade. A civilização li-berta-se da origem rural e corre para a sua própria destrui-ção». Muito antes de se terem iniciado as lucubrações ecoló-gicas, bastou a utilização daquele par de conceitos para queum dos clássicos do pensamento de extrema-direita chegas-se à principal conclusão dos ecologistas.

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  • ReferênciasA frase de Francis Bacon e o comentário de Jean-François Revel encon-tram-se em Jean-François Revel, Histoire de la Philosophie Occidentalede Thalès à Kant, Paris: Nil, 1994, pág. 357. A obra minha referida é Po-der e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Se-nhorial, Séculos V-XV,. 3 vols., Porto: Afrontamento, 1995, 1997, 2002.O leitor deverá consultar o verbete Técnicas agrárias no Índice de As-suntos, no final de cada volume. A observação de Martin Bernal encon-tra-se na sua obra Black Athena. The Afroasiatic Roots of Classical Civi-lization, vol. I: The Fabrication of Ancient Greece 1785-1985, NewBrunswick, Nova Jersey: Rutgers University Press, 1987, pág. 334. Apassagem de Peter Staudenmaier está em Janet Biehl e Peter Stauden-maier, Ecofascism. Lessons from the German Experience, Edimburgo eSan Francisco: AK Press, 1995, pág. 6. As citações de Oswald Spenglersão retiradas da edição espanhola do seu livro, La Decadencia de Occi-dente. Bosquejo de una Morfología de la Historia Universal, Madrid:Espasa-Calpe, 1942-1944, vol. II, pág. 205, e vol. III, pág. 150.

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    Na verdade, Bookchin parece bem feio de uma perspecti-va antifascista. Biehl cita uma discussão que ele teve comRudolph Bahro e dedica um bom número de páginas expon-do todas as associações e afirmações fascistas de Bahro.Tudo isso desemboca numa enorme citação onde o velhoBookchin aniquila totalmente Bahro ou algo assim apósaceitar um convite de fala dele. Pára tudo! Sim, você leucerto. Aceitou um convite pago para falar. Isso é tão altisso-nante quanto a parte que Jeff Tucker admite em seu própriolivro que um milionário nazista tentou recrutá-lo.

    Podemos ter uma impressão diferente de que Bookchin –sempre propenso a uma fala paga e com sua clássica inge-nuidade Sem Plataforma, de um velho dinossauro de esquer-da – fez merda e agora a incumbência dos seus seguidores élimpar a bagunça que ele deixou, se esforçando para reen-quadrar a narrativa como antifa.

    Mas talvez a atitude de Bookchin aceitar o convite de falavindo de um líder fascista – ou pelo menos bem fascho – erauma decisão estratégica bem esperta que fez mais bem do quemal. Quem sou eu, décadas depois, para julgar? Porém, certa-mente temos a impressão de que Biehl sabe que tudo isso soamuito mal e está escrevendo muito em função de reverter isso.

    Enfatisei nesta resenha, muito mais fortemente que nasminhas outras resenhas de livros antifascistas, às ideologiasnão-fascistas que estavam em jogo: as amplas ideologias“eco” como primitivismo, ecologia profunda, anti-civ, selva-gismo, eco-extremismo, etc, uma misturança de posiçõesmuito próximas que tratei de uma maneira meio jogada, mastambém as posições dos atacantes aqui, o bookchinismo, a

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  • Porém, será inútil definir o fascismo meramente em ter-mos de tais meios estatistas extremos. E a miríade de fas-cistas que, desde o terceiro Reich, se posicionaram contraambos, o Estado e a sociedade industrial, deveria nos lem-brar que o fascismo é uma filosofia do mal anterior aosmeios malvados que ele escolhe. Hoje, podemos apontarpara merdas como os Lobos da Vinlândia e Augustus Invic-tus (agora ele é um grande fã do tio Ted), e em 1995 certa-mente não faltavam exemplos para Janet Beihl. Quempode, nessa era, verdadeiramente opor-se à frase de Wolf-gang Haug que diz: “A Nova Direita, com efeito, quer, aci-ma de tudo, redefinir as normas sociais para que a dúvidaracional seja encarada como decadente e seja eliminada, eque novas normas ‘naturais’ sejam estabelecidas.”

    Os atuais ecologistas ocultistas que falam de uma forçavital cósmica obscura ou que divagam sobre a “naturezaselvagem” e a intuição não são desvios malucos do fascis-mo histórico, mas estão na mesma longa e contínua linha.E não é difícil ver por que o essencialismo naturalista fala-cioso e a hostilidade ao pensamento se tornaram compo-nentes comuns entre ecologia e fascismo. No livro, Book-chin é parcialmente colocado fora disso, como mostra umacitação sua: “uma ecologia que é mística, por sua vez, podese tornar uma justificação para um nacionalismo místico”.

    Mas, infelizmente, quando chegamos ao contexto moder-no, Ecofascismo: Lições da Experiência Alemã lança seusataques em parte trabalhando para a agenda bookchinita.

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    A agricultura familiar no fascismo

    Não poderemos entender o mito campestre sem nos aper-cebermos de que ele vigora num nível estritamente ideológi-co, servindo de adorno ao crescimento da grande produçãofabril. São regimes promotores da industrialização ou atéfrancamente tecnocráticos que propõem a pretensa harmoniarural como padrão de comportamento genérico. Assegurar aordem e a obediência às hierarquias numa sociedade em mu-dança contínua, conseguir o milagre de enxertar a estabilida-de dos modos de vida e de pensamento sem comprometer anecessária instabilidade da economia e os ritmos aceleradosda produção — eis a ambição de quem promove o mito docampesinato e das suas raízes. As maiores companhiastransnacionais sustentam hoje organizações não-governa-mentais destinadas a alertar a opinião pública acerca dos ris-cos da poluição e a promover outras boas causas, e nada háde contraditório nesta conjugação, já que os mesmos gruposeconómicos que poluem ou destroem o meio ambiente ga-nham redobradamente, depois, a vender serviços de limpezada poluição e a reconstituir o meio ambiente. Exactamente damesma maneira, em todos os regimes fascistas, sem excep-ção, existiam duas correntes, uma industrializadora e moder-nista, fazendo a apologia do mundo urbano e fabril, e a outratradicionalista e ecológica, glorificando o mundo rústico.

    A mitificação da agricultura familiar foi gerada em con-junto com a produção fabril em série. Henry Ford é uma fi-gura que qualquer pessoa associa imediatamente à indústriade massas, mas ele foi também um incansável apologista da

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  • sociedade agrária e da agricultura familiar. «Sou um homemdo campo», afirmou em 1918, uma das muitas declaraçõesdo mesmo estilo que prodigou ao universo. «Quero ver cadaacre da superfície terrestre coberto por pequenas quintas,onde habitem pessoas felizes e satisfeitas». Estes devaneiosruralistas não eram politicamente inocentes, porque foramdesenvolvidos poucos anos depois em The International Jew(O Judeu Internacional), uma obra que Ford assinou e quetanto contribuiu para divulgar o anti-semitismo, exercendouma influência directa sobre o racismo alemão e nomeada-mente sobre Hitler. Na primeira edição de Mein Kampf Hi-tler classificou Henry Ford como um «grande homem» edurante vários anos ornamentou com uma fotografia dele asua mesa de trabalho. Aliás, mais tarde o Terceiro Reichhomenagearia Henry Ford com uma condecoração. «A teo-ria mais desastrosa», escreveu ou mandou escrever o gran-de industrial, «é a que estabelece um contacto íntimo e umaharmonia entre as ideias modernas e as catástrofes delas re-sultantes, dizendo que “tudo são sinais de progresso”, por-que, se realmente forem, então será de um progresso queconduz ao abismo. Ninguém pode assinalar um progressoefectivo no facto de que, onde os nossos antepassados usa-vam moinhos de vento ou hidráulicos, nós empreguemosmotores eléctricos. Sinal de um verdadeiro progresso seriaa resposta a esta pergunta: que influência essas rodas exer-cem sobre nós? Foi a sociedade da época dos moinhos devento melhor ou pior do que a actual? Foi mais uniformenos costumes e na moral? Tinha mais respeito pela lei eformava caracteres mais elevados?».

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    Para aquelas pessoas que veem a mecanização da ma-tança no século XX como uma forte, qualitativa e objetivainterrupção com a matança generalizada do milênio anteri-or, o fascismo serve apenas como o mais emblemático dosexemplos. Nessa perspectiva, é algo mais sólido como o“modernismo” que é responsável pelo nosso senso de hor-ror com relação ao regime nazista. E certamente podemossentir um impulso para fundir marxismo, capitalismo, e ofascismo como sendo a ideologia principal, já que os meiosque elas escolhem acabam fortemente convergindo.

    Porém, então, os primitivistas são familiares com essesprós e contras dos meios-e-fins. John Zerzan usava óculos.Ted Kaczynski usava tecnologia para matar pessoas. Quasesempre haverá algum pragmatismo em como alguém se en-gaja num mundo do qual não gosta, especialmente quandoquer ver uma mudança cataclísmica. Embora eu esperasseque ninguém que esteja lendo este texto aceitasse um Es-tado-nação como uma máquina industrial de guerra comosendo um meio válido, devemos admitir que sempre há operigo do utilitarismo sedutor em nossos meios.

    Que o leninismo alegue, grosso modo, os mesmo valoresou objetivos que o anarco-comunismo, isso, na verdade, émotivo para parar e refletir sobre como tal divergência catas-trófica “na execução” pode acontecer e se ainda existe algu-ma semente duradoura desse tipo na ideologia anarco-comu-nista atual. Só porque perdemos o desvio para o massacre in-dustrial total levado pelo Estado-nação não quer dizer queconseguimos evitar todo tipo de corrupção. Há lugar para ascríticas de anarquistas verdes que diagnosticam tendênciascomuns entre as máquinas industriais de morte da nossa era.

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  • que mais apreciavam o horror industrial, ainda havia umafalácia naturalista que venerava um tipo de consciência e ra-cionalidade que cheiravam a violência.

    Ainda, é claro que importa muito que os nazistas tenhamcriado uma máquina de guerra industrial. Eles não eram pri-mitivistas completos. Obviamente.

    Os nazistas certamente acreditavam no ambientalismo ena redução drástica da “sobrepopulação” da Europa e domundo, mas eles eram tão comprometidos com a suprema-cia da raça ariana mística assim como com o projeto de Es-tado-nação e a máquina de guerra para poder realizar seusobjetivos. Os nazis demandaram a agricultura orgânica, masnão estavam destruindo todo o setor agrário. Na sua sedepor poder, construíram projetos infraestruturais gigantescoscomo a Autobahn (sistema de rodovias), e uma enorme vigi-lância burocrática para, no final das contas, fazer essa “har-monia com a natureza” não contar muito. Havia protestosinternos dos verdadeiros crentes ideológicos dentro do mo-vimento nazista contra coisas como drenagem de pântanos,mas mesmo assim isso foi levado a diante.

    Os ambientalistas radicais tentaram passar a “Lei para a Prote-ção da Mãe Terra do Reich” e tiveram o apoio de todos os minis-tros menos o da economia, que estava mais preocupado com amineração e a industrialização necessárias para realizar a guerra.

    Essa é mais ou menos a história do partido nazista. En-quanto uma ideologia ecológica reacionária fundamentassesuas aspirações, eles precisavam fazer as coisas para poderalcançar seus ditos fins e isso, em última instância, signifi-cava uma máquina industrial de guerra.

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    Estas linhas, assinadas por um dos empresários que maiscontribuiu para tornar obsoletos os velhos moinhos e propa-gar os novos motores, só parecerão extraordinárias se nãovirmos, na continuação do livro, que Ford pretendia defen-der o que considerava serem valores autenticamente norte-americanos contra o cosmopolitismo e o desenraizamentoatribuídos aos judeus. Não eram os motores das suas fábri-cas mas os agentes da finança internacional judaica quemporia em causa as harmonias agrárias, e assim o ruralismode Ford fazia parte do seu anti-semitismo. Ele consideravaque os tractores saídos das suas linhas de montagem contri-buiriam para revitalizar as famílias rurais, e com o mesmoobjectivo defendia a implantação de pequenos pólos indus-triais disseminados nos campos e movidos pela energia hi-dráulica. «As fábricas e as quintas deviam ter sido organiza-das não como concorrentes mas como colaboradoras», pos-tulou Ford. O certo é que, pondo o dinheiro onde pusera aspalavras, mandou construir alguns pequenos estabelecimen-tos fabris, integrados no complexo de indústria automóvel ecuja mão-de-obra estava dispensada do trabalho industrialnas ocasiões em que precisasse de atender às exigências daagricultura. Aquele fanático da produção fabril de massasnunca perdeu o entusiasmo pelas excursões campestres nemo gosto pelas danças aldeãs, e parecia encontrar na calmados campos as mesmas lições de humildade, de modéstia ede respeito que o chefe do fascismo português professava.

    «A agricultura», disse Salazar em Maio de 1953, «pela suamaior estabilidade, pelo seu enraizamento natural no solo emais estreita ligação com a produção de alimentos, constitui agarantia por excelência da própria vida, e, devido à formação

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  • que imprime nas almas, manancial inesgotável de forças deresistência social». Estas timoratas palavras foram proferi-das a propósito do primeiro Plano de Fomento, e como opresidente do Conselho receava que o desenvolvimento eco-nómico provocasse o colapso do seu morigerado país, expli-cou que «aqueles que não se deixam obcecar pela miragemdo enriquecimento indefinido, mas aspiram, acima de tudo,a uma vida que embora modesta seja suficiente, sã, presa àterra, não poderiam nunca seguir por caminhos em que aagricultura cedesse à indústria». E avaliando a situação en-quanto financeiro e enquanto ideólogo, Salazar concluiu:«Sei que pagamos assim uma taxa de segurança, um preçopolítico e económico, mas sei que a segurança e a modéstiatêm também as suas compensações».

    É interessante desvendar estas origens históricas da teseda soberania alimentar, sobretudo quando os seus promoto-res actuais, no MST e nos outros movimentos de luta pelaterra, a apresentam como um programa de esquerda ou mes-mo anticapitalista. Curiosamente, aquela tese é defendidanuma época em que a altíssima produtividade conseguida pe-los maiores produtores agro-pecuários e o grande volume deexportações daí resultante asseguram pela primeira vez na his-tória um abastecimento alimentar adequado a todo o mundo.Se um país consumir exclusiva ou preferencialmente os ali-mentos ali produzidos e se isolar das redes do comércio mun-dial, a sua situação alimentar torna-se precária porque não con-segue resistir às oscilações das colheitas próprias. As fomes ca-tastróficas, que periodicamente são noticiadas pelos jornais epela televisão e servem às organizações não-governamentaispara angariar donativos, ocorrem sistematicamente em países

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    para um niilismo que reverencia a violência. É claro queexistiam dezenas de futuristas que eram anarquistas e conde-naram e lutaram contra o fascismo, e também não haviadúvida que havia alguns ecologistas que combateram o regi-me nazista. O livro Ecofascismo não faz nenhuma tentativade mostrar essas complicações.

    Mas vale a pena examinar o arco que vai do modernismoitaliano para a ecologia alemã. Isso porque, é claro, no final,o fascismo italiano se virou contra os futuristas – emprestan-do dos conservadores alemães críticas sobre a cultura globa-lizada, logo denunciando o futurismo como uma arte dege-nerada. Ainda assim, ao mesmo tempo que os nazistas ti-nham como apelo central o passado e o essencialismo deuma forma que conflitava profundamente com certas noções“modernistas”, eles também abraçaram edifícios artificiais,paradas militares e uma máquina de guerra gigantescos. Em-bora acadêmicos geralmente coloquem o fascismo comoprincipalmente anti-moderno, certamente alguns o viramcomo fornecedor de novas narrativas e estruturas titânicasque podiam eliminar o passado. Novas mega-narrativas e es-truturas? Parece meio esquisito em relação a um retornopara uma vida natural simples.

    Mesmo assim, a despeito do seu nome, os futuristas seimportavam menos com todas essas conotações sobre “pro-gresso” do que com a destruição masculina violenta, a mas-culinidade essencializada, a violenta destruição da ordemexistente. De fato, essa adoração do novo, da gigantescaguerra mecanizada, apareceu fundada na noção de um retor-no à identidade essencial, natural. Então, mesmo nas correntes

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  • discurso normal impede que reconheçamos diretamente. Enão é apenas o essencialismo humano, mas a subjugação daconsciência humana pela natureza, como aponta Robert Poisem Socialismo Nacional e a Religião da Natureza: “Por to-dos os seus escritos, não apenas de Hitler, mas da maioriados ideólogos nazistas, podemos perceber uma depreciaçãofundamental dos seres humanos em relação à natureza”.

    E a coisa continua. Walter Schoenichen, chefe da Agên-cia para a Proteção da Natureza do Reich, vincula o nazismocom o organicismo e holismo ambientalista e fala de uma“sobrecivilização” de humanos. Hitler e Himmler embarca-ram entusiasticamente em todas essas coisas.

    E não era algo marginal ou enfeites estéticos divorciadosda política. O Chanceler do Reich Rudolf Hess, nomeado porHitler como seu “conselheiro próximo”, o segundo depois deGoring para suceder o Fuhrer, ajudou a implementar o ambi-entalismo ideológico do partido nazista através de uma sériede leis, programas de reflorestamento, proteções legais paraespécies, bloqueios ao desenvolvimento industrial, etc. Os na-zistas criaram as primeiras reservas naturais da Europa.

    Agora, pouco importa – e Ecofascismo: Lições da Expe-riência Alemã não transparece no seu título – que a históriaseja um pouco diferente na Itália, o lugar onde o “fascismo”foi lançado originalmente. As raízes primordiais do fascismolá são interessantes e – embora menos influentes que a ex-pressão socialista nacional – ainda prevalecem de diferentesformas nos meios fascistas contemporâneos. Um “modernis-mo” que quer arrancar destrutivamente todo o legado do pas-sado inicialmente combina bem com a virada de Mussolini

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    ou regiões que por algum motivo estão isolados das redesmundiais de comércio. Não é a seca mas a incapacidade dese ligar ao mercado que provoca a fome. Porém, o facto deos resultados práticos da tese da soberania alimentar estarempatentes aos olhos de quem quiser ver não perturba os seusapóstolos, tanto mais que o tipo de socialismo que eles de-fendem se confunde com uma economia de escassez.

    O problema é mais grave ainda porque as oscilações dascolheitas agrícolas serão tanto maiores quanto menos indus-trializado for o cultivo e quanto mais difundida for a agro-ecologia. Soberania alimentar e agro-ecologia são elementosde uma mesma nebulosa ideológica. Basta olhar para as pri-meiras páginas de qualquer atlas histórico, onde está figura-da a evolução das curvas demográficas, para se percebernum relance que o modo de produção capitalista permitiuum aumento sem precedentes não só da quantidade da popu-lação mas igualmente da esperança média de vida. A fomecrónica e as epidemias, dois factores que nos modos de pro-dução pré-capitalistas provocavam a estagnação demográfi-ca, foram em grande medida solucionadas pelo capitalismo,que possui a capacidade técnica para operar uma resoluçãocabal. Aliás, foi precisamente este o contexto material quesuscitou o aparecimento do socialismo moderno. O socialis-mo nasceu da compreensão de que a produção industrial demassa e a aplicação dos princípios da indústria ao campoproporcionam a satisfação de todas as necessidades materi-ais e tornam possível o desenvolvimento de uma civiliza-ção em que ficará ultrapassada a luta pela sobrevivência. Énesta perspectiva e nesta dimensão histórica que devemosentender a importância da agricultura industrializada e a

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  • sua consequência em termos de concentração do capital, oagronegócio. Mas não é no plano das realidades que vivemas boas almas ecologistas e, em nome do mito da natureza,preferem condenar a população à escassez e à iminênciadas catástrofes alimentares.

    Se pegarmos numa calculadora e fizermos o exercício deatribuir aos trabalhadores agrícolas dos principais países pro-dutores de alimentos o baixo grau de produtividade que ca-racteriza os camponeses nos países e regiões onde se pratica aagricultura familiar tradicional, constataremos que se chega auma redução catastrófica da produção agrícola e pecuária. Écerto que a agro-ecologia se identifica com um socialismo damiséria; porém, a queda brutal de produtividade que seriaprovocada pela generalização desse sistema a todo o mundojá nem a miséria traria, mas o extermínio pela fome.

    A experiência histórica dos fascismos, tal como a das em-presas de Henry Ford, mostra que, para não ter resultadoseconómicos negativos, a apologia do arcaísmo rural ou ficoureservada ao plano ideológico ou foi compensada por medi-das de carácter oposto. Afinal de contas, mesmo quando omito campestre surtiu efeitos institucionais, estas institui-ções tiveram a função única de servir de fachada ideológica.

    Depois do que Henry Ford disse, escreveu e fez em prolda agricultura familiar, é esclarecedor que os estabelecimen-tos fabris que implantou em áreas rurais tivessem sido tãopouco numerosos que a sua mão-de-obra proveio de menosde mil famílias, o que mostra que aquelas noções tiveramapenas um valor de exemplo e foram desprovidas de conse-quências práticas. Mas mesmo enquanto exemplo estavamcondenadas a fracassar. Ford defendia que a mecanizaçãodas fainas da terra, aumentando os rendimentos das famílias

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    Tá, claro, então nazis e movimentos ambientalistas frequen-temente compartilham raízes em comum, e essas figuras fun-dadoras viram as políticas direitistas que nós em geral associa-mos com o termo “reacionário” como algo obviamente vincu-lado com um retorno à natureza assim como com uma valori-zação mais profunda dela. Mas isso é apenas uma parte docontexto! O período entre guerras foi complicado e confuso.Então não seria óbvio que a conexão dos nazistas com essesmovimentos ambientalistas fosse superficial, escolhida a dedo?

    Bom, se pudéssemos – como os libertarianistas do Insti-tuto Mises –, de alguma forma, ignorar que o slogan centralnazista era Sangue e Solo, Staudenmaier não cede terreno,vinculando esses hiper-reacionários ano centro e ano nasci-mento do movimettno ambientalista ao passado nazista. Ri-chard Walther Darre, por exemplo, é um nazista ambienta-lista importante, em cuja história consta uma anedota queconta que ele pessoalmente convenceu Hitler e Himmler so-bre a necessidade de exterminar os judeus.

    Mas talvez isso seja injusto. Que tal ouvirmos diretamente Hitler?

    “Quando as pessoas tentam se rebelar contra a férrea ló-gica da natureza, elas acabam entrando em conflito comos próprios princípios aos quais elas devem suas existên-cias como seres humanos. Suas ações contra a naturezanecessariamente as levarão a sua queda.” (Minha Luta)

    Não deveria surpreender ninguém que Hitler era muitochegado nas leis da natureza, nas forças da natureza, nasidentidades naturais, nos papéis naturais, tanto ao ponto deleser um ávido fã de numerosas práticas e noções ambientalis-tas. Mas mesmo que seja óbvio e conhecido por qualquerpessoa que o tenha lido, isso ainda é algo que o nosso

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  • O que Ecofascismo: Lições da Experiência Alemã desta-ca é a forma como o socialismo nacional emergiu de ummeio alemão de movimentos conservadores e New Age quese centravam no ambientalismo e na rejeição da racionali-dade. Como exemplo do lado da New Age, o movimentojovem Wandervogel pegou o misticismo e a hostilidade àrazão como parte de uma agenda de “espíritos livres”,eventualmente transitando sutilmente da veneração da na-tureza para a veneração do Fuhrer.

    Entre os filósofos reconhecidos, temos Ludwig Klages,autor de “O Homem e a Terra”, que pegou tudo isso, com-pletou com a hostilidade ao utilitarismo e a “ideologia doprogresso”, desembocando diretamente no hiper-conserva-dorismo, nacionalismo e antissemitismo. E – vejam só! –qual o grande mal que ele identificou por trás de todas ascoisas que se opunha? Nossas mentes. Todo pensamentoracional deve ser abolido.

    E, é claro, todos sabemos a história de Heidegger, cujasimpatia pelos nazistas tem a ver com o essencialismo. Nosencontramos lançados no mundo, com todos os tipos de casu-alidades e “embutididades”, nossos corpos, contexto social,ambientes, nosso local de nascimento, etc, e ao invés de al-cançar qualquer distância agencial de tais arbitrariedades par-ticulares, o Grande Filósofo Nazista quer que as abracemos.Uma entrada fundamental e inextricavelmente anti-intelectu-al, ser ao invés de se tornar, identificar-se com nossas amar