Joon Ho Kim.Imagens da Cibercultura: As figurações do ciborgue e do ciberespaço no cinema.

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O objetivo deste trabalho é a análise das imagens da cibercultura, mais especificamente como aparecem nos filmes produzidos nas duas últimas décadas. Nos filmes analisados, o corpo representa tanto algo a ser modificado artificialmente, para a superação dos limites impostos pela natureza, como algo a ser sublimado, a fim de se obter a plenitude da experiência virtual em simulações computadorizadas. Independentemente de quão imaginárias sejam essas construções, elas são necessariamente mediadas pelas mesmas categorias que permitem apreender a realidade como uma construção social e refletem as mudanças da própria mentalidade coletiva frente ao desenvolvimento técnico-científico. Nesse sentido, os ciborgues e o ciberespaço das diegeses fílmicas são produtos do que poderíamos chamar de “cibercultura”, uma resposta positiva da cultura na criação de uma “nova ordem do real” diante de contextos práticos inéditos, decorrentes da disseminação das tecnologias chamadas “cibernéticas” e da vulgarização dos discursos científicos, que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da realidade.

Transcript of Joon Ho Kim.Imagens da Cibercultura: As figurações do ciborgue e do ciberespaço no cinema.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

IMAGENS DA CIBERCULTURA:

As figurações do ciberespaço e do ciborgue no cinema

Joon Ho Kim

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo,

para obtenção do título de Mestre em

Antropologia.

Orientadora: Profa. Dra. Sylvia Caiuby Novaes

São Paulo - 2005

Para minha mãe e meus irmãos.

AGRADECIMENTOS

À Sylvia Caiuby Novaes, orientadora sempre atenciosa e paciente, pelo apoio

e pelas incontáveis contribuições, fundamentais para a materialização deste trabalho

e meu crescimento acadêmico e intelectual.

Ao Geraldo Costa, por viabilizar a conciliação entre minha vida profissional e

acadêmica, assim como pelas conversas e entrevistas que muito ajudaram no

amadurecimento da minha pesquisa.

Ao Paulo Menezes e ao John Dawsey, pelas críticas e sugestões no exame

de qualificação, decisivas para o desenvolvimento metodológico e teórico deste

trabalho.

À Miriam Moreira Leite, que me honrou com suas sugestões e atenciosa

leitura dos meus textos.

À Mariana Vanzolini, pelos inúmeros problemas logísticos que ajudou a

solucionar, e ao Giuliano Ronco, pelo apoio nas ilhas de som e de vídeo.

À Paula Morgado, pela constante iniciativa de divulgar minha pesquisa.

Aos demais colegas do Grupo de Antropologia Visual (GRAVI). Em especial,

Andréa Barbosa, Edgar da Cunha, Francirosy Ferreira e Rose Satiko Hikiji.

A Eduardo Utima, Luiz Antônio Barata, Nara Yoshimatsu, Patrícia Galízia e

Sérgio Lima pelas entrevistas gentilmente concedidas.

À FAPESP que financia o projeto temático “Alteridade, expressões culturais

do mundo sensível e construções da realidade: velhas questões, novas inquietações”

do qual esta pesquisa se beneficia.

À Promon, pelo apoio dado durante dois anos.

À Sofia Koon Ja Song, minha mãe, que acompanhou de perto esta jornada.

A todos os demais colegas, amigos e familiares que de alguma forma

participaram do meu mestrado.

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é a análise das imagens da cibercultura, mais

especificamente como aparecem nos filmes produzidos nas duas últimas décadas.

Nos filmes analisados, o corpo representa tanto algo a ser modificado artificialmente,

para a superação dos limites impostos pela natureza, como algo a ser sublimado, a

fim de se obter a plenitude da experiência virtual em simulações computadorizadas.

Independentemente de quão imaginárias sejam essas construções, elas são

necessariamente mediadas pelas mesmas categorias que permitem apreender a

realidade como uma construção social e refletem as mudanças da própria

mentalidade coletiva frente ao desenvolvimento técnico-científico. Nesse sentido, os

ciborgues e o ciberespaço das diegeses fílmicas são produtos do que poderíamos

chamar de “cibercultura”, uma resposta positiva da cultura na criação de uma “nova

ordem do real” diante de contextos práticos inéditos, decorrentes da disseminação

das tecnologias chamadas “cibernéticas” e da vulgarização dos discursos científicos,

que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da realidade.

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ABSTRACT

The aim of this thesis is to analyze cyberculture images, specifically how they

have appeared in films produced over the last two decades. When analyzing films, the

body represents an object to be artificially modified, to exceed the limits imposed by

nature, as well as an object to be sublimated, in order to achieve an absolute virtual

experience in computer simulations. In spite of how imaginary the construction of

cybercultures images may be, they are unavoidably defined by the same categories

that permit apprehending the reality as a social construction and reflect the collective

mentality, which changes due to technical-scientific development. From this point of

view, the cyborgs and the cyberspace of the film's diegeses are products of what we

can name "cyberculture," a positive cultural response in order to create a "new order

of reality" This order deals with new practical contexts, due to the dissemination of

technologies called "cybernetic" and the spread of scientific discourses, that challenge

the traditional categories for the interpretation of the reality.

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ÍNDICE

I. INTRODUÇÃO ___________________________________ - 7 -

II. A SOCIEDADE CIBERNÉTICA _______________________ - 16 -

II.1. ... DA CIBERNÉTICA À CIBERCULTURA .................................................................. - 17 -

II.2. ... O CIBERESPAÇO: DO ABSTRATO AO SENSÍVEL ................................................... - 30 -

II.3. ... O CORPO NA ERA DO PÓS ORGÂNICO ............................................................... - 50 -

III. O REALISMO ESPETACULAR _______________________ - 71 -

III.1. .. O CONTEXTO DA SOCIEDADE DE MASSAS ......................................................... - 72 -

III.2. .. A VIDA MODERNA E O OLHAR CINEMATOGRÁFICO .............................................. - 81 -

IV. AS FIGURAÇÕES DA CIBERCULTURA ________________ - 101 -

IV.1. . O CORPUS DA PESQUISA .............................................................................. - 102 -

IV.1.1 Sinopse dos filmes - 104 - IV.1.2 Ranking de bilheteria dos filmes selecionados - 108 -

IV.2. . AS ALEGORIAS DA TECNOLOGIA ..................................................................... - 113 -

IV.3. . AS IMAGENS DO CIBERESPAÇO ...................................................................... - 135 -

IV.4. . IMAGENS DA ALTERIDADE CIBERNÉTICA .......................................................... - 160 -

V. CONCLUSÃO _________________________________ - 191 -

VI. BIBLIOGRAFIA ________________________________ - 199 -

VII. FILMOGRAFIA _______________________________ - 209 -

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I. INTRODUÇÃO

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As máquinas do fim do século XX tornaram completamente ambíguas as

diferenças entre o natural e o artificial, a mente e o corpo, o autocriado e o

externamente projetado, assim como outras distinções que costumávamos

aplicar aos organismos e máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente

vivas e nós mesmos assustadoramente inertes (Haraway, 2000, p. 294).

No fim da década de 1940, foi publicado um livro que propunha reunir sob

uma única disciplina científica a teoria e a pesquisa relacionada aos sistemas de

controle e comunicação, independentemente de serem fenômenos provenientes de

sistemas artificiais ou orgânicos. Sob um paradigma que reduz tudo a uma espécie de

engenharia universal das mensagens, essa disciplina, batizada de “cibernética”

(Wiener, 1948), influenciou praticamente todas as áreas científicas e tecnológicas

existentes, além de ter sido fundamental o reconhecimento de novas áreas

especificamente “cibernéticas”, inimagináveis antes da década de 1940, tais como a

informática, a robótica, a biônica e a biotecnologia. Sob o paradigma cibernético –

segundo o qual tudo aquilo que “funciona”, seres vivos e máquinas, são, no limite,

sistemas de unidades intercambiáveis – a ciência e a tecnologia mudaram e

continuam mudando nosso mundo natural e social em uma velocidade avassaladora.

Algumas mudanças são sentidas diretamente no nosso dia-a-dia por meio da

aceleração do ciclo de vida de artefatos que forçam a substituição de objetos não tão

velhos – como a máquina de escrever, o toca-disco, o toca-fitas e, mais

recentemente, o vídeo-cassete, na medida em que perdem seu lugar na nossa rotina

e são substituídos por artefatos “pós-eletromecânicos” – e o surgimento de novas

necessidades, tais como a indispensável Internet, seus web-sites e e-mail, sem os

quais a nossa vida cotidiana, hoje, beira o inimaginável. Outras mudanças são

sentidas de forma mais indireta: a robotização que alterou drasticamente a relação

dos homens com os meios de produção ou a biotecnologia que, apesar de já ter

invadido as prateleiras do nosso supermercado, é cotidianamente invisível, como são

invisíveis, para nós, as mudanças que ela promove na criptografia da vida.

Invisibilidade que é, vez e outra, rompida quando os clones e transgênicos – que,

desde a ovelha Dolly1 e a soja Roundup Ready2, deram ares de ficção-científica à

1 O primeiro clone de mamífero produzido com sucesso, Dolly nasceu em 05 de julho de 1996 mas morreu por complicações de saúde consideradas prematuras para sua idade, em 2003.

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nossa realidade – trazem discussões éticas e de bio-segurança para a pauta das

manchetes, reformatadas e simplificadas, é claro, para se adequar ao entretenimento

jornalístico da hora do jantar. Já a nanotecnologia – que mal passava de especulação

há pouco mais de uma década, quando as iniciais “IBM” foram montadas com 35

átomos – anuncia um revolucionário e admirável mundo novo baseado em artefatos

cibernéticos menores que bactérias. O que é denominador comum de todas essas

tecnologias, suas conquistas e promessas é a noção ciberneticista de que tanto os

processos orgânicos como os não-orgânicos compartilham os mesmos sistemas

informacionais. Uma das conseqüências dessa idéia se traduz na equivalência

funcional entre artifício e organismo, tornando imprecisa, ambígua e questionável a

fronteira que separa um do outro.

É notório que as máquinas vivas e os organismos artificiais já fazem parte da

nossa realidade. Na medida em que o mundo cotidiano incorporou as promessas e

produtos das tecnologias cibernéticas, as noções e discursos técnico-científicos,

antes restritos às altas rodas científicas, também foram deslocados para o plano da

cultura de senso comum, por meio do que podemos chamar de “cultura de massas”.

Segundo Morin, (1967, p. 37-38) é próprio da cultura de massas o sincretismo que

tende a “homogeneizar sob um denominador comum a diversidade dos conteúdos”

em formas assimiláveis ao chamado “homem médio”, ele próprio produto de um

pensamento homogeneizador. Esse sincretismo se traduz na união do “imaginário

dominado pela aparência de realidade” com os “fatos diversos”, a matéria básica do

setor da informação, aquilo que “na vida real se assemelha ao romanesco ou ao

sonho”:

A cultura de massa é animada por esse duplo movimento do imaginário

arremedando o real e do real pegando as cores do imaginário (...), esse

prodigioso e supremo sincretismo se inscreve na busca do máximo de consumo

e dá à cultura de massa um de seus caracteres fundamentais (Morin, 1967, p.

39).

Na perspectiva da cultura de massas, podemos ver a cibernética como o

denominador comum que possibilitou a homogeneização de uma diversidade de

2 A soja modificada geneticamente pela Monsanto para ser tolerante ao herbicida glifosato durante todo o seu ciclo de vida. Em sojas não-transgênicas, o glifosato é utilizado apenas no pré-plantio. Como o glifosato é vendido pela Monsanto sob a marca Roundup, sua soja transgênica é conhecida como “Roundup ready”.

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conquistas e promessas da tecnologia em um cientificismo vulgar, porém conveniente

para dar sentido não só a uma realidade mais fantástica que a imaginação, mas

também para dar ares de realidade às fantasias e aos devaneios mais implausíveis. A

cultura de massas matizada com noções cibernéticas deu nomes a seres que eram

inomináveis e naturalizou insólitas criações, reais e imaginárias, intrinsecamente

relacionadas com a transgressão e desagregação de tradicionais fronteiras

classificatórias. É, notoriamente, uma naturalização que se utiliza principalmente de

recursos visuais e que encontra no cinema – a despeito da importante influência dos

videogames, dos quadrinhos e da literatura nos filmes – o principal meio de

disseminação dos temas, modelos e estereótipos que delimitam um recorte cultural

que podemos chamar de cibercultura. Como observam alguns autores (Morin, 1967;

Bourdieu, 2001), o cinema é um dos meios de produção cultural que melhor incorpora

a tendência do mercado da cultura de massas de abolir as fronteiras culturais e

homogeneizar as diferenças em “prol de uma cultura das grandes áreas

transnacionais” (cf. Morin, 1967, p.42-45). A produção cinematográfica possui

características de um cosmopolitismo específico que deriva da independência que o

cinema tem em relação à língua3 e ao nível de instrução do espectador4.

Ao lado da sua grande penetração social, decorrente do cosmopolitismo e

abrangência em termos de classes sociais, encontramos no cinema a consolidação

de uma diversidade de significantes, provenientes de variados campos da cultura e

da ciência, no discurso sincrético típico da cibercultura. É um discurso intimamente

relacionado com a ampliação dos limites humanos por meio da sublimação e

retificação do corpo, que se manifestam, respectivamente, na imagem do ciberespaço

e no ciborgue. A possibilidade da imersão em ambientes virtuais computadorizados

ou de um corpo híbrido de organismo e máquina5 reafirmam velhos ideais e

promessas da modernidade. A modernidade é aqui o “fundo de entendimento”

(“background of understanding”) responsável pelo recorte de nossos discursos e

3 Morin (1967, p.45) nota que todo filme legendado já é cosmopolita e que “todo filme dublado é um estranho produto cosmopolitizado cuja língua foi retirada para ser substituída por outra. Ele não obedece às leis da tradução, como o livro, mas às leis da hibridação industrial”. 4 De acordo com Bourdieu (2001, p. 302), o cinema é, “dentre as práticas culturais”, a “menos estreitamente vinculada ao nível de instrução (...) ao contrário da freqüência a concertos, prática mais rara que a leitura e a freqüência a teatros”. 5 Escobar (2000, p. 56) nota que “enquanto qualquer tecnologia pode ser estudada antropologicamente de uma variedade de perspectivas, cibercultura refere-se muito especificamente às novas tecnologias em duas áreas – inteligência artificial (particularmente tecnologias da informação e computação) e biotecnologia”.

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práticas sob uma perspectiva utilitária que vê a ciência e a tecnologia de forma neutra

e não-problemática (cf. Escobar, 2000, p.58). Com efeito, as imagens do ciberespaço

e do ciborgue engendram profundas alterações na categoria do corpo e cristalizam

uma lógica instrumental na qual a sua sublimação ou alteração da natureza do corpo

são meios plausíveis e justificáveis dentro de uma cadeia de meios e fins. No

ciberespaço, o corpo é uma entidade cognitivamente transparente e, no ciborgue, o

corpo é uma base material pronta para todo tipo de reconstrução cibernética. As

imagens fílmicas do ciborgue e do ciberespaço tornam acessíveis ao senso comum o

“discurso científico contemporâneo” no qual o corpo é “ontologicamente distinto do

sujeito, torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir a fim de melhorá-lo” e

“declinado em peças isoladas”, torna-se uma “estrutura modular cujas peças podem

ser substituídas” (Le Breton, 2003, p. 15-16).

A ficção-científica, categoria dentro da qual enquadram-se todos os filmes

acerca do cibernético analisados por esta pesquisa, não só nos fala das

possibilidades imaginárias da ciência e tecnologia como, normalmente, as narram em

um imaginário do futuro. Nesses casos, como observa Martins (2004, p.4), essas

histórias acerca do futuro constituem um “futuro contemporâneo” porque “ainda que

as narrativas se refiram ao futuro, em última análise, suas âncoras estão

mergulhadas em formas de perceber e explicar o tempo presente”. Le Breton (2003,

p.161), por sua vez, observa que:

A apropriação dos imaginários que organizam as orientações coletivas futuras

encontra na ficção científica um caminho mais fácil de desenvolvimentos e de

projeção em uma trama social. Ela experimenta os cenários do futuro próximo e

já esclarece os processo em jogo no presente.

Assim, desde que são produtos de especificidades sociais e históricas,

encontra-se nos filmes ciberculturais uma contínua mudança das representações

acerca do cibernético que decorre, precisamente, da sensibilidade das construções

fílmicas às transformações do mundo real (cf. Morin, 1970, p.202-203). Nessa

perspectiva, esta pesquisa entende que a obra fílmica possui uma inegável relação

com o senso comum da sociedade onde ela é produzida – “o cinema transmite

representações e esquemas sociais; corta fragmentos do mundo exterior, que

constitui em unidades contínuas, os filmes, que impõe ao público” (Sorlin, 1985,

p.187) – e busca não só delimitar uma especificidade cultural cujas fronteiras são

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marcadas pela apropriação de modelos e discursos tipicamente ciberculturais como

estudar a mentalidade social acerca do cibernético a partir das recorrências –

modelos, clichês e estereótipos – e a evolução dessas recorrências nas construções

fílmicas.

Estudar o imaginário fílmico da cibercultura não visa construir um catálogo de

suas construções, mas analisar, a partir de algumas dessas construções, a relação

que possuem com as transformações do real. De acordo com Sorlin (1985, p.251-

252), os filmes não são meros repertórios do visível, são produtos que dão forma à

ideologia de sua época. Mesmo a “aparência de realidade” de um filme não é, de

forma alguma, universal, mas também sujeita aos códigos e repertório específicos:

“Se considero verdadeiro o filme: quais eram, na época, os critérios de verdade?”.

Complementa o autor:

(...) todas as épocas (...) têm suas regras para organizar o mundo exterior –

mundo dos objetos e das relações sociais – de maneira que encontrem ali uma

coerência e possam aplicar suas regras de conduta: possuem, em particular,

categorias de análise por meio das quais tal maneira de designar verbal ou

iconograficamente os objetos é considerada estilizada, falsa, caricaturesca,

humorística ou fiel à realidade (Sorlin, 1985, p.157).

Tendo em vista que o ciberespaço e o ciborgue são as principais referências

que orientam as figurações dos cibermundos retratados nos filmes, uma das

preocupações desta pesquisa foi estudar o contexto social e histórico no qual essas

referências surgem como categorias simbólicas importantes para fazer frente às

transformações do real. Assim, a primeira parte desta dissertação (II.1 a II.3) versa

sobre a sociedade cibernética e está dividida em três capítulos: o capítulo II.1, “Da

cibernética à cibercultura”, trata do surgimento da cibernética como modelo científico

e da apropriação dos seus resíduos e discursos no processo cultural de “reavaliação

funcional” de categorias no qual velhos significantes são reinventados e

ressignificados para dar conta de uma realidade tecnológica em incessante

transformação. O objetivo do capítulo II.2, “O ciberespaço: do abstrato ao sensível”, é

fornecer um panorama do desenvolvimento tecnológico que transformou o

computador tanto em um bem de consumo de ampla penetração social como um

meio de emular a imersão em ambientes virtuais, tornando socialmente real a

sublimação do corpo das relações sociais. Se o ciberespaço suscita a idéia de que o

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corpo é um excesso, notou-se durante a pesquisa que o espaço sintetizado pelo

computador é apenas uma das possibilidades reservadas ao corpo na perspectiva da

cibercultura, onde ele é visto como um suporte de defeitos a serem retificados pela

cibernética. A transformação do corpo em um mero “rascunho a ser corrigido” (Le

Breton, 2003, p.16) pelas mais variadas tecnologias de reconstrução é o assunto

tratado no capítulo II.3, “O corpo na era do pós-orgânico”, que procura montar um

breve histórico do ciborgue e do discurso no qual a hibridação de artifício e de

organismo é a resposta legítima tanto para a correção de um corpo imperfeito, como

para a superação de seus limites naturais.

A segunda parte da dissertação (capítulos III.1 e III.2) procura contextualizar

o cinema em termos sociais e históricos, analisando-o como produto de uma

modernidade na qual desenvolve-se uma afinidade entre o “realismo espetacular” e a

sociedade de massas. No capítulo III.1, “O contexto da sociedade de massas”, é

analisada como a tendência da sociedade de massas, tanto de elevar aspectos da

realidade à categoria de espetáculo como de revestir o espetáculo com aparências de

realidade, determinaram o surgimento de um olhar cinematográfico antes mesmo do

advento do cinema. O capítulo III.2, “A vida moderna e o olhar cinematográfico”,

analisa o realismo associado à imagem cinematográfica e procura demonstrar que o

“coeficiente de realidade” do cinema – indissociável do “espetáculo cinematográfico” e

lastreado, em grande parte, pela imagem fotográfica, percebida como um “traço da

realidade” – é condicionado socialmente e tem sua origem em um “modo de ver”

renascentista.

A terceira parte é a que trata das figurações da cibercultura encontradas no

cinema. Ela está dividida em quatro capítulos (IV.1 a IV.4). O capítulo IV.1 é uma

introdução ao material de pesquisa e apresenta, além da metodologia utilizada para o

recorte do universo fílmico, uma breve sinopse dos filmes dos quais provêm as

construções fílmicas analisadas nos capítulos subseqüentes. O capítulo IV.2, “As

alegorias da tecnologia”, traça um panorama das representações mais recorrentes do

cibernético e como elas vêm se transformando nas últimas décadas, refletindo a

dinâmica das categorias do senso comum nas quais estão ancoradas. O capítulo

IV.3, “As imagens do ciberespaço”, trata do surgimento e da evolução do imaginário

fílmico dos ambientes virtuais computadorizados apresentados, cada vez mais, como

o ambiente diegético privilegiado para a ação dos personagens e para a realização da

narrativa. O capítulo IV.4, “As imagens da alteridade cibernética”, procura analisar a

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imagem das alteridades que os filmes ciberculturais constroem. Essas alteridades

são, invariavelmente, figuras ambíguas, objetos de um certo estranhamento e retratos

desviantes de humanidade: máquinas com aparência humana, seres-humanos

retificados artificialmente ou tricksters que superam no plano do imaginário fílmico

contradições insolúveis no plano da vida real.

Examinando as produções fílmicas como “manifestações parciais do sistema

de simbolização que é a ideologia de certa época” (Sorlin, 1985, p.190), esta

pesquisa busca desvendar um mundo que é certamente mais e mais visto, porém

cada vez menos compreendido (cf. Carrière, 1995, p.71). Procura também manter

sempre em vista a inserção no que Escobar (2000, p. 59) chamou de “uma das

tarefas da antropologia da cibercultura”: estudar a extensão e “de que maneiras

concretas as transformações vislumbradas” pelas novas paisagens da ficção

científica – “populadas com ciborgues de todos os tipos (seres humanos e outros

organismos com inumeráveis próteses e interfaces tecnológicas), movendo-se em

vastos ciberespaços, realidades virtuais e ambientes mediados por computador” –

estão em processo de tornarem-se reais. É, freqüentemente, um processo no qual a

realidade espetacular parece não se diferenciar mais do espetáculo realista. Para Le

Breton (2003, p.161), “a ficção científica não se opõe mais ao real”:

O próprio mundo compete de forma desleal com os autores de ficção científica

exagerando suas hipóteses ou realizando um meio social e técnico que às vezes

parece diretamente saído de seu imaginário.

O autor acrescenta que a ficção científica – em particular a oposição entre

“um mundo de redenção pela técnica a um mundo de danação” retratado pela ficção

cyberpunk – deixou de ser um devaneio e tornou-se “uma experimentação do

contemporâneo, uma projeção imaginária das questões que assombram nossas

sociedades”. Para ele, a ficção científica “toma o lugar da sociologia ou da

antropologia para expressar, em forma narrativa, as tensões que às vezes falta ao

modo de formulação das ciências sociais” (cf. Le Breton, 2003, p.160). É aqui que

reside a principal meta que norteia esta pesquisa: a de trazer para o foco das ciências

sociais as imagens fílmicas que traduzem o desencontro, muito real e

contemporâneo, entre a ideologia que celebra o homem como uma mera instância da

máquina e a prática que, reduzindo o corpo a mero suporte do cogito ou a

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justaposição de partes sujeitas às mais insólitas reinvenções e retificações, introduz a

desordem simbólica no cosmos do qual o corpo é imagem.

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II. A SOCIEDADE CIBERNÉTICA

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II.1. Da cibernética à cibercultura

Em 1948, o matemático Norbert Wiener publicou Cybernetics: or the Control

and Communication in the Animal and the Machine, livro que apresenta as hipóteses

e o corpo fundamental da cibernética, resultado de vários anos de pesquisa e

interação com pesquisadores de diversas áreas cientificas, incluindo as ciências

sociais, representados, em especial, pelos antropólogos Gregory Bateson e Margaret

Mead. A idéia fundamental desenvolvida por Wiener com seus principais

colaboradores, o fisiologista Arturo Rosenblueth e o engenheiro Julian Bigelow, é a de

que certas funções de controle e de processamento de informações semelhantes em

máquinas, seres vivos e, de alguma forma, na sociedade, são – de fato –

equivalentes e redutíveis aos mesmos modelos e mesmas leis matemáticas. Wiener

entendia que a cibernética seria uma teoria das mensagens mais ampla que a “teoria

da transmissão de mensagens da engenharia elétrica”,

(...) um campo mais vasto que inclui não apenas o estudo da linguagem mas

também o estudo das mensagens como meios de dirigir a maquinaria e a

sociedade, o desenvolvimento de máquinas computadoras e outros autômatos

(...), certas reflexões acerca da psicologia e do sistema nervoso, e uma nova

teoria conjetural do método científico (Wiener, 1984, p.15).

Wiener (1948, p.19 e 1984, p.15) explica que ele e Rosenblueth criaram um

termo artificial para designar esse campo científico porque acreditavam que qualquer

terminologia existente traria um viés indesejado ao seu sentido. Assim, eles

cunharam o termo “cybernetics” derivado do grego “kubernetes”, palavra utilizada

para denominar o piloto do barco ou timoneiro, aquele que corrige constantemente o

rumo do navio para compensar as influências do vento e do movimento da água.

Além do sentido de controle, reforçado pela correspondência que “kubernetes” tem

com o latim “gubernator”, de onde também deriva a palavra “governo”, Wiener quis

fazer referência aos mecanismos de leme de navios, um dos mais antigos

dispositivos a incorporar os princípios estudados pela cibernética.

O campo que Wiener designa de “cibernética” teve início durante os esforços

relacionados com a II Grande Guerra, quando ele realizou pesquisas com

programação de máquinas computadoras e com mecanismos de controle para

artilharia antiaérea. Tanto em uma como em outra pesquisa, Wiener engajou-se no

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que descreve como “estudo de um sistema elétrico-mecânico que fosse desenhado

para usurpar uma função especificamente humana”: a “execução de um complicado

padrão de cálculo” em um caso e a “previsão do futuro”, no outro. A “previsão do

futuro” a que Wiener se refere, neste caso específico, é a capacidade de se prever a

trajetória de uma aeronave, a fim de que o projétil do canhão antiaéreo encontre-se

com o alvo em “algum momento do futuro” (Wiener, 1948, p.11 e 13).

Em suas pesquisas sobre a artilharia aérea ele se interessou particularmente

pelo princípio denominado de “feedback”. Basicamente, esse princípio consiste em

realimentar o sistema com as informações sobre o próprio desempenho realizado a

fim de compensar os desvios em relação ao desempenho desejado. Assim, nas

máquinas controladas por feedback, é indispensável a existência de um ou mais

detectores e monitores que façam papel de órgãos sensórios, de forma que as

informações coletadas possam ser confrontadas com o padrão de desempenho

programado. A diferença entre o desempenho realizado e o esperado é transformada

na informação que o mecanismo de compensação utilizará para trazer o desempenho

futuro para valores mais próximos do padrão esperado (Wiener, 1984, p.24 e Wiener,

1948, p.13).

Durante as pesquisas com mecanismos controlados por feedback, Wiener

notou que eles podiam apresentar uma oscilação anômala e crescente, capaz de

tornar o sistema incontrolável e levá-lo à pane6. Esse tipo de oscilação parecia atingir

não só máquinas controladas por feedback, mas também alguns seres humanos

vitimados pela ataxia, deficiência que se caracteriza pela perda de coordenação de

movimentos musculares voluntários. Wiener e Rosenblueth notaram que, em alguns

distúrbios neurológicos, o portador de ataxia apresenta anomalias ligadas ao sentido

proprioceptivo7, fazendo com que o atáxico, apesar de ter o sistema muscular em

condições adequadas, seja incapaz de andar e mesmo de ficar de pé sem olhar para

6 Um exemplo simples desse tipo de oscilação pode ser observado em um aquecedor controlado por termostato. Neste caso, o controle por feedback consiste basicamente na realimentação do sistema com valores da temperatura do ambiente, medidos por meio de um sensor de calor, que são confrontados com o padrão de temperatura programado na máquina. Assim, se o termostato detectar que a temperatura está abaixo do desejado, acionará o aquecedor; se detectar que está acima, irá desligá-lo. Esse tipo de controle permite que a temperatura de um ambiente fique estável dentro de uma pequena zona de tolerância acima e abaixo da temperatura desejada. Entretanto, desde que a estabilidade do sistema depende do bom funcionamento do controle por feedback, um termostato defeituoso ou de má qualidade pode resultar em violentas oscilações de temperatura (cf. Wiener, 1948, p.115). 7 Percepção sensorial pela qual sentimos e temos a consciência da existência do nosso corpo e a posição relativa de suas partes e membros, bem como o movimento dessas partes, independentemente dos demais sentidos, tais como o tato ou a visão.

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as pernas ou ter distúrbios de coordenação nos quais seus movimentos voluntários

não passam de movimentos erráticos que “resultam apenas em uma oscilação

violenta e fútil”. As pesquisas em pacientes com ataxia demonstravam que bons

músculos não eram suficientes para uma ação efetiva e precisa: as informações de

feedback fornecidas pelo sistema proprioceptivo, combinadas com as provenientes de

outros sentidos, são indispensáveis para o sistema nervoso central produzir o

estímulo adequado para o trabalho muscular. Wiener conclui: “Something quite similar

is the case in mechanical systems” (Wiener, 1948, p.113-114).

Assim, para Wiener (1948, p.15), o sistema nervoso central engendra um

processo circular – “emergindo do sistema nervoso para os músculos, e reentrando

ao sistema nervoso pelos órgãos dos sentidos” – cujo princípio seria idêntico ao que

havia encontrado em dispositivos de controle de máquinas. Essas idéias foram

apresentadas por Rosenblueth em maio de 1942 a um grupo de pesquisadores em

um encontro sob os auspícios da Josiah Macy Foundation, organização filantrópica

dedicada aos problemas decorrentes da inibição do sistema nervoso, e publicadas no

ano seguinte no artigo Behavior, Purpose and Teleology. É desde essa época,

quando a cibernética sequer havia sido batizada, que a antropologia mantém seu

vínculo teórico com ela: além dos pesquisadores ligados à medicina, estiveram

presentes naquele encontro os antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead. A

série de conferências posteriores, conhecidas como The Macy Conferences, reuniu

pesquisadores provenientes de áreas diversas como a matemática, medicina,

psicologia, filosofia, antropologia e sociologia.

Por causa da II Grande Guerra, a primeira conferência aconteceu apenas em

1946 sob o título Feedback Mechanisms and Circular Causal Systems in Biological

and Social Systems. O nome da conferência sofreu pequenas alterações em várias

edições até que em março de 1950, na sua sétima edição, passou a se chamar

Cybernetics: Circular Causal and Feedback Mechanisms in Biological and Social

Systems, nome que preservou até a décima e última edição, em abril de 1953.

Gregory Bateson e Margaret Mead foram ativos participantes desses eventos e,

juntamente com o sociólogo Paul Lazarsfeld, constituíram a presença das ciências

sociais no “core group” das conferências.

Talvez por ser extremamente generalista a cibernética não conseguiu, ao

longo das décadas posteriores, lidar com as especificidades das diversas ciências e

tecnologias que tinham como objeto o controle e comunicação em organismos,

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máquinas e sociedades. Mas, de qualquer forma, praticamente todas elas foram

influenciadas, diretamente ou indiretamente, pelo “projeto cibernético” aspirado por

Wiener e que reverberou por todo mundo científico e tecnológico da segunda metade

do século XX a partir dos participantes das Macy Conferences.

A cibernética não propõe uma simples analogia entre artifício e organismo,

ela propõe uma prática científica cujo princípio é tratar máquinas, seres vivos e

sistemas sociais como instâncias da mesma coisa e, portanto, compostos de partes

intercambiáveis o que permite, por exemplo, do ponto de vista lógico, que

concebamos híbridos montados com partes orgânicas e mecânicas conectadas entre

si ou máquinas dotadas de “inteligência artificial”, reproduzindo e, para alguns,

superando a faculdade que tradicionalmente é distintiva do ser humano. Em um artigo

sugestivamente intitulado When Will Computer Hardware Match the Human Brain,

Moravec (1998, p.2) calcula que o cérebro humano tem a capacidade de processar

100 milhões de MIPS (milhões de instruções por segundo), o que colocaria o Deep

Blue, a máquina com poder de executar 3 milhões de MIPS que derrotou o campeão

mundial enxadrista Garry Kasparov em 1997, a “1/30 do estimado para o

desempenho humano total”. Segundo Moravec, Kasparov, que vangloriava-se de “ver

a mente do oponente durante o jogo”, teria dito sentir no Deep Blue uma “inteligência

alienígena”. Assim, o autor acredita que “um computador parece ter não apenas

superado o melhor humano [Kasparov no jogo de xadrez], mas ter transcendido sua

condição maquinal”. Mas essa perspectiva de equivalência factual entre artifício e

organismo, ou mais especificamente entre homem e máquina, possui uma longa

tradição, cujas raízes confundem-se com a origem da Modernidade: “Considerei-me

primeiramente como tendo um rosto, mãos, braços, e toda essa máquina composta

de ossos e de carne, tal como aparece em um cadáver, a qual designei pelo nome de

corpo” (Descartes,1970 apud Le Breton, 2003, p.17, grifo meu).

Menos conhecido do que os desdobramentos da cibernética nas ciências

exatas e biológicas é a influência que ela teve nas ciências sociais. Ativo participante

do grupo dos fundadores da cibernética, desde antes das Macy Conferences,

Gregory Bateson é praticamente o fundador do pensamento cibernético nas ciências

sociais e provavelmente o maior expoente da cibernética nessa área. A importância

que Bateson dá à cibernética – “Eu acho que a cibernética é a maior mordida na fruta

da Árvore do Conhecimento que a humanidade deu nos últimos 2.000 anos”

(Bateson, 2000, p.484) – e a influência que esta exerceu em sua obra se manifesta

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em diversos trabalhos. Rapport e Overing (2000, p.102-115) notam que, influenciado

pela descoberta apresentada por Wiener de que “o conceito social-científico de

‘informação’ e que o conceito natural-científico de ‘entropia negativa’ eram de fato

sinônimos”, Bateson desenvolveu teorias onde as relações sociais poderiam ser

vistas como “comunicações entre membros co-dependentes cuja interação habitual é

caracterizada por circularidades, oscilações, limites dinâmicos e feedback”. Além

disso, se o princípio cibernético da entropia, derivado da segunda lei da

termodinâmica, se traduz em um processo contínuo de redução de ordem em um

sistema, ou de aumento de seu caos, isso implica que os relacionamentos sociais não

podem permanecer os mesmos por muito tempo. Em relação à outra questão central

no seu pensamento, a dos limites da mente e do “self”, Bateson (2000, p.315-320) vê

na cibernética os modelos necessários para responder à antiga questão da

transcendência ou imanência da mente. A partir dos modelos cibernéticos de controle

e feedback, Bateson conclui que “(...) em nenhum sistema que demonstre

características mentais pode qualquer parte ter controle unilateral sobre o todo. Em

outras palavras, as características mentais do sistema são imanentes, não em

alguma parte, mas no sistema como um todo”. Assim, não é apenas o caso de

descartar a transcendência da mente em relação ao corpo, mas também de alterar o

termo – sistema e não mais corpo – em relação ao qual a mente é imanente pois

“grande parte da rede de pensamento está localizada fora do corpo”.

Rapport e Overing (2000, p.102-115) ainda acrescentam que a cibernética de

Bateson influenciou amplamente as ciências sociais e, a despeito da influência das

suas idéias não ser, na maioria das vezes, explícita, sua contribuição é extensa e é

encontrada na obra de vários cientistas: em Rappaport, a “cultura é um todo que pode

ser entendido como um sistema cibernético que regula as relações entre as pessoas

e seu ambiente”; o trabalho de Goffman sobre “como a estrutura social e a realidade

são mantidas pelo processo de sanções sociais, ‘encontros’ situacionais, ou ‘sistemas

de atividades situadas’” carrega o sinal distintivo da cibernética; já Strathern faz uso

da figura do “cyborg” e mostra “como a natureza das coisas no mundo é um efeito

obtido pela contínua e recíproca relação entre as partes em um particular ponto no

tempo e espaço”.

Encontramos também a influência da cibernética no pensamento de Geertz

que, por sua vez, vê na relação entre a evolução cultural e a evolução biológica

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princípios que levam a um processo contínuo de realimentação e influências

recíprocas e condicionadas:

À medida que a cultura, num passo a passo infinitesimal, acumulou-se e se

desenvolveu, foi concedida uma vantagem seletiva àqueles indivíduos da

população mais capazes de levar vantagem (...) até que o Australopiteco proto-

humano, de cérebro pequeno, tornou-se o Homo Sapiens, de cérebro grande,

totalmente humano. Entre o padrão cultural, o corpo e o cérebro foi criado um

sistema de realimentação (feedback) positiva, no qual cada um modelava o

progresso do outro, um sistema no qual a interação entre o uso crescente das

ferramentas, a mudança da anatomia da mão e a representação expandida do

polegar no córtex é apenas um dos exemplos mais gráficos. Submetendo-se ao

governo de programas simbolicamente mediados para a produção de artefatos,

organizando a vida social ou expressando emoções, o homem determinou,

embora inconscientemente, os estágios culminantes do seu próprio

desenvolvimento biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio

se criou. (Geertz, 1989, p.60).

Ao lado de Bateson, ainda podemos citar Lévi-Strauss como o outro

antropólogo que atentou, ainda em tempos pioneiros, para a importância da

cibernética e disciplinas relacionadas para as ciências sociais. Em Antropologia

Estrutural (s.d.), ele inicia o capítulo III, “Linguagem e Sociedade”, com o seguinte

parágrafo:

Num livro [Cybernetics, or control and Communication in the Animal and the

Machine (Wiener, 1948)] cuja importância não poderia ser subestimada, do

ponto de vista do futuro das ciências sociais, Wiener se interroga sobre a

extensão, à estas últimas, dos métodos matemáticos de predição que tornaram

possível a construção de grande máquinas de calcular (...) (Lévi-Strauss, s.d.,

p.71).

No capítulo XV, “A Noção de Estrutura em Etnologia”, ele compara o modelo

estrutural que propõem com a definição de Von Newmann, matemático e integrante

do core group das Macy Conferences, e o cita em nota de rodapé:

Modelos (tais como os jogos) são construções teóricas que supõem uma

definição precisa, exaustiva e não demasiado complicada: devem ser também

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parecidos com a realidade sob todas as relações que importam à pesquisa em

curso. Para recapitular: a definição deve ser precisa e exaustiva, para possibilitar

um tratamento matemático. (...) A semelhança com a realidade é requerida para

que o funcionamento do modelo seja significativo (...). (Von Neumann;

Morgenstern apud Lévi-Strauss, p.316)

Em outro trecho do mesmo capítulo, Lévi-Strauss (s.d., p.320) afirma que as

pesquisas estruturais nas ciências sociais foram um conseqüência indireta de “certos

desenvolvimentos das matemáticas modernas, que deram uma importância crescente

ao ponto de vista qualitativo”. Ele sustenta que o fato de não haver conexão entre a

noção de “medida” e de “estrutura” não invalida o modelo, visto que “em diversos

domínios (...) notou-se que problemas que não comportavam solução métrica podiam,

apesar disso, ser submetidos a um tratamento rigoroso” e cita as seguintes obras

como “importantes para as ciências sociais”: Theory of Games and Economic

Behavior, de von Neumann e Morgenstern, de 1944; Cybernetics de Wiener, de 1948

e The Mathematical Theory of Communication, de C. Shannon e W. Weaver, de 1950.

Rapport e Overing (2000, p.113-115) observam ainda que a cibernética está

implícita na noção estruturalista de sociedade de Lévi-Strauss – vista como um

sistema de comunicação baseado na troca de mensagens culturais de tipo binário – e

que seu trabalho relacionado com as combinações e recombinações de unidades de

comunicação é influenciado pela ciência da computação, como ilustra bem o seguinte

trecho, retirado de sua análise a respeito de um mito, encontrado no Canadá

Ocidental, “sobre uma raia que tentou controlar ou dominar o Vento Sul e que teve

êxito na empresa” (Lévi-Strauss, 2000, p.35-37):

(...) a razão por que se escolheu a raia é que ela é um animal que, considerando

de um ou outro ponto de vista, é capaz de responder – empregando a linguagem

da cibernética – em termos de ‘sim’ ou ‘não’. É capaz de dois estados que são

descontínuos, um positivo e outro negativo. A função que a raia desempenha no

mito é – ainda que, evidentemente, eu não queira levar as semelhanças

demasiado longe – parecida com a dos elementos que se introduzem nos

computadores modernos e que se podem utilizar para resolver grandes

problemas adicionando uma série de respostas de ‘sim’ e ‘não’. (...) Esta é a

originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o papel do pensamento

conceptual: um animal susceptível de ser usado como, diria eu, um operador

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binário, pode ter, dum ponto de vista lógico, uma relação com um problema que

também é um problema binário. (...) Dum ponto de vista científico, a história

não é verdadeira, mas nós somente pudemos entender esta propriedade do mito

num tempo em que a cibernética e os computadores apareceram no mundo

cientifico dando-nos o conhecimento das operações binárias, que já tinham sido

postas em prática de uma maneira bastante diferente, com objetos ou seres

concretos, pelo pensamento mítico.

Apesar de ter estimulado hipóteses, teorias e pesquisas em diversos campos

científicos – inclusive a antropologia, como foi visto aqui com mais detalhes, e ter

dado origem a novas áreas, como as ciências cognitivas, a cibernética foi esquecida

como a “vasta teoria das mensagens” aspirada por Wiener. Uma matéria da revista

Wired (Kunzru, 1977) observa que seus modelos teóricos se desgastaram e, mesmo

no campo do controle artificial, onde se consolidaram sólidas disciplinas “cibernéticas”

como a informática e a robótica, a proposta de Wiener esvaziou-se na prática.

Acrescenta a matéria:

(...) quase ninguém, hoje, se auto-intitula um “ciberneticista”. Alguns acreditam

que o projeto de Wiener tornou-se vítima da moda científica, com seus fundos

sugados por pomposas mas ao final irrelevantes pesquisas de inteligência

artificial. Outros pensam que a cibernética foi eliminada pelo problema básico

de que o controle e comunicação em máquinas por meio de mecanismos de

porca-e-parafuso são significativamente diferentes daqueles encontrados em

animais, e nenhum destes é semelhante ao controle e comunicação na sociedade.

Assim, a cibernética, que estava baseada em uma inspirada generalização,

tornou-se vítima da sua incapacidade para lidar com detalhes (Kunzru, 1997).

Mas se, por um lado, a cibernética não obteve muito êxito como uma ciência,

ela influenciou de forma determinante a cultura moderna com resíduos de seus

modelos explicativos, engendrando, junto com outros resíduos que são

incessantemente produzidos pela tecnologia e ciência, o que poderíamos chamar de

“cibercultura”. Tais resíduos são certas noções e valores oriundos do discurso técnico

e científico que, deslocados para o plano do senso comum, introduzem novas

distinções nos antigos esquemas interpretativos para que eles possam fazer frente às

propriedades de um mundo, conforme observa Escobar (2000, p.62), no qual as

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fronteiras entre os domínios do orgânico, do tecno-econômico e do textual tornaram-

se permeáveis:

(...) produzindo sempre montagens e misturas de máquina, corpo e texto:

enquanto natureza, os corpos e os organismos certamente possuem uma base

orgânica, eles são cada vez mais produzidos em conjunção com as máquinas, e

esta produção é sempre mediada por narrativas científicas (...) e pela cultura em

geral [grifos do autor].

Um dos resíduos mais importantes que a cibernética legou à cibercultura foi a

visão de que os seres vivos e as máquinas não são essencialmente diferentes. Essa

noção se manifesta materialmente, em especial, nas tecnologias especializadas em

mimetizar a vida (tecnologia da informação, robótica, biônica e nanotecnologia) e nas

tecnologias especializadas em manipular a vida (as biotecnologias), onde a relação

entre organismo e máquina depende intrinsecamente do texto, não só na forma de

narrativa científica, mas também na forma dos códigos que determinam o

funcionamento tanto das máquinas (softwares) como dos seres vivos (o código

genético). Os produtos – reais e imaginários – de tais tecnologias podem contradizer

certas noções de classificação fundamentais tais como a oposição entre natureza e

cultura, entre orgânico e inorgânico, entre o homem e a máquina, dentre outras.

Segundo Lévi-Strauss (2002, p.25), a exigência de ordem “constitui a base de

todo pensamento” e a cultura, como construção concreta e coletiva dessa exigência,

consiste fundamentalmente de sistemas de representação que visam substituir o

aleatório pelo organizado, classificando, codificando e transformando as dimensões

sensíveis do universo em dimensões inteligíveis (cf. Rodrigues, 1979, p.9-12). É por

isso que seres ambíguos são, com freqüência, objetos de restrições e tabus: são

sinais de desordem, contradizem as fronteiras estabelecidas entre as categorias

classificatórias e, assim, ameaçam as próprias convicções acerca da ordem do

mundo. De acordo com Douglas (1991, p.54), a experiência dos indivíduos é mediada

pela cultura, que fornece algumas categorias básicas, “uma esquematização positiva

na qual idéias e valores se encontram dispostos de forma ordenada”. Constatada a

existência de ambigüidades – que já são por si sós, indicadoras da existência do

sistema classificatório que contradizem – a cultura pode lidar com elas “de forma

negativa, ignorando-as, (...) ou ainda percebê-las e condená-las. Positivamente,

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podemos enfrentar deliberadamente a anomalia e tentar criar uma nova ordem do

real onde a anomalia se possa inserir” (Douglas, 1991, p.53-54).

O fato é que o universo não é um agregado de “objetos em si”, mas um

repertório organizado de objetos significantes que portam significados socialmente

compartilhados. Como nota Sahlins (1990, p.10-11), desde que “o sentido do signo (o

valor saussuriano) é definido por suas relações de contraste com outros signos do

sistema (...) ele só é completo e sistemático na sociedade (ou na comunidade de

falantes) como um todo”. Mas os signos e seus significados não são partes de

estruturas estáticas. Além dos consensos que as sociedades elaboram serem

resultados da interação de perspectivas diversas, os significados das coisas e suas

relações estruturais são reavaliados na realização prática e, freqüentemente,

repensados criativamente dentro de certos limites – dados pelo sentido coletivo

empregado no uso real de um signo – em resposta às contingências apresentadas

pela experiência prática. Assim podemos, por exemplo, entender que o consenso

social acerca do que é correio eletrônico (“email”) está dentro dos limites de

significações de “eletrônico” e “correio” (“electronic” e “mail”), sobre os quais já havia

um consenso social. O mesmo ocorre com ciberespaço (“cybernetics space”) ou

ciborgue (“cybernetics organism”). São exemplos onde os termos que sintetizam o

discurso técnico-científico (“E” de electronic ou “Cyber” de cybernetics) adquirem

novas conotações e engendram significados inéditos na sua conjunção com antigos

significantes (mail, space, organism), projetando o sistema antigo de interpretação da

realidade sob novas formas, dentro das dadas possibilidades históricas e culturais de

significação. O que comumente tem se chamado de “cibercultura” é a resposta

positiva da cultura na criação de uma “nova ordem do real” frente aos novos

contextos práticos que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da

realidade.

Os robôs e computadores são antigos personagens do nosso imaginário e, de

certa forma, mais antigos que a própria cibernética. Mas há entre o homem de lata

mecanizado e o corpo humano, ou entre uma máquina de calcular e a mente

humana, descontinuidades gigantescas de tal forma que eles dificilmente passam de

representações caricaturadas do homem, chegando, em muitos casos, a reafirmar a

oposição das categorias que separam o ser humano da máquina. Nesse sentido não

são, ainda, “cibernéticos” pois a principal característica enunciada pela “cibernética” é

a de que não existe descontinuidade entre os diferentes sistemas, sejam

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provenientes de organismos ou máquinas. O futuro cibernético implica em uma nova

ordem do real, porque, enfim, ao contrário do que ratificam os tabus dos mitos e das

religiões, a intercambiabilidade entre as categorias culturais é apenas uma questão

de compatibilidade funcional.

A idéia de acoplar de sistemas orgânicos e máquinas não é recente e estava

anunciada na criatura de Mary Shelley (Shelley, 1998) que, para alguns autores, pode

ser considerado o primeiro “ciborgue” (Gray; Figueroa-Sarriera; Mentor, 1995, p.5).

Assim como o Frankenstein, a figura do ciborgue moderno também “aponta para o

poder da ciência, para o fascínio de um conhecimento que da morte procura criar a

vida, tornando o tempo reversível” (Caiuby Novaes, 1999, p.164). Mas a criatura

morta-viva feita com retalhos de cadáveres de pessoas e animais esquartejados

“ainda vivos para aproveitar-lhe o sopro de vida na recomposição da (...) criatura”

(Shelley, 1998, p.49) também é uma monstruosidade. Produto de uma ciência capaz

de reconstruir corpos, a besta produzida pelo Dr. Frankenstein é desprovida de alma

(Caiuby Novaes, 1999, p.164). E seu corpo é um suporte de profanações: produto da

mistura de cadáveres de diferentes naturezas, sua existência é uma ameaça à

categoria do corpo humano e contamina o mundo da vida com o perigoso mundo dos

mortos.

Como o local mais imediato de ligação entre o social e o biológico no homem

(Rodrigues, 1979, p.43), o corpo é objeto de interdições que ratificam a separação de

um domínio e outro. O corpo também é objeto de sinais que demarcam a separação

entre os vivos e os mortos: um corpo sem vida é um cadáver, um objeto socialmente

impuro, matéria vazia de alma fadada à decomposição. A morte da carne deve ser

acompanhada da morte social. Os rituais de sepultamento não são simples

procedimentos utilitários de higiene, fazem parte do “penoso trabalho de desagregar o

morto de um domínio e introduzi-lo em outro” (Rodrigues, 1979, p.52) e uma vez

cadáver, o corpo não deve mais voltar à vida. Os mortos-vivos são objetos de medo

não porque tememos pela nossa integridade física, mas porque profanam uma

estrutura de significados culturalmente estabelecidos. São produtos da justaposição

de termos incompatíveis: defuntos com atributos de indivíduos vivos, corpos vagando

sem alma, partes e restos de diferentes cadáveres unidos em uma besta errante.

Enfim, o morto-vivo contraria as noções primitivas de vida e de morte e sua existência

é uma ameaça à ordem classificatória do cosmos.

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Contudo, desde os anos 1980, produtos “high-tech” têm tornado corriqueiras

as entidades derivadas da fusão de termos provenientes de domínios classificatórios

incompatíveis (texto, máquina, animal, vegetal, corpo). Além disso, a partir da mesma

época, popularizou-se um tipo de ficção científica que ficou conhecida como

“cyberpunk” 8. Originalmente um gênero literário, sua influência na disseminação –

principalmente por meio do cinema – dos contornos e conotações que o “cibernético”

tem hoje é inegável. O cyberpunk aglutinou a visão distópica do movimento punk e os

estereótipos de seu estilo de vida ao imaginário futurista no qual as gadgets

(bugigangas e geringonças) “cibernéticas” e os ciborgues foram amplamente

incorporados ao cotidiano. Um dos principais legados do cyberpunk é a imagem do

homem-gadget (homem-objeto que não é muito mais que um gadget acoplado a um

sistema ou rede de gadgets) cujo corpo é um banal suporte de biônicos e cuja mente

só encontra sua totalidade quando conectada ao “ciberespaço”. Diversos autores

atentam para a lógica hibridizante da cibercultura: Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera

(1995, p.2) escrevem sobre “a fusão do orgânico e do maquínico, ou a engenharia da

união entre sistemas orgânicos separados”; para Hayles (1999, p.3) “o sujeito pós-

humano é um amálgama, uma coleção de componentes heterogêneos, uma entidade

material-informacional cujas fronteiras permanecem em contínua construção e

reconstrução”; Haraway (2000, p.313) nos lembra que “não há separação

fundamental, ontológica no nosso conhecimento formal da máquina ou organismos,

do técnico e orgânico”; segundo Escobar (2000, p.62), a permeabilidade das

fronteiras entre o orgânico, o tecno-econômico e o textual produzem “montagens ou

misturas de máquina, corpo e texto”.

No romance de Shelley (1998), o grande desafio da ciência, a que se decide

enfrentar o Dr. Frankenstein, é vencer a morte, a finitude da vida e, nesse sentido,

igualar-se a Deus. O domínio do cibernético não é apenas aquele onde, como o

romance de Shelley já havia anunciado, as descontinuidades entre as categorias

culturais são profanadas em nome do utilitarismo e cientificismo sem limites. O

cibernético também é a tentativa de recalcar os medos míticos por meio do discurso

totalitário da ciência, onde é suspeito tudo aquilo que não pode ser reduzido aos

critérios da calculabilidade e da utilidade (Adorno; Horkeimer, 1985, p.21). No caso de

8 A invenção do termo cyberpunk é cercada de controvérsias. Em 1980, Bruce Bethke escreveu um conto chamado “Cyberpunk” que foi publicado em 1983 no “Amazing Science Fiction Stories” (Bethke, 1987), mas parece que o uso como forma de circunscrever um estilo literário foi feito por Gardner Dozois na sua resenha para o primeiro livro de Gibson, “Neuromancer” (Linus Walleij, 1998, cap. 8).

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Shelley, as questões morais e o medo transbordam a partir no momento em que as

míticas fronteiras que separam Deus do homem e os vivos dos mortos são

transgredidas. Já a cibercultura é marcada por um discurso científico que nega a

existência de tais fronteiras, escamoteando os medos e temores a elas relacionadas.

A cibernética é a “idéia abrangente” que engendra a transgressão de fronteiras

classificatórias, reorganizando as ambigüidades sob “um classificador que serve para

estabelecer ordem, mas não a conexão” (Adorno; Horkeimer, p.118). Assim, no lugar

do medo e do horror que a profanação do sagrado deveria provocar, emerge a

apologia que desconecta o híbrido da lógica totalizante do mito e o reestrutura na

lógica totalitária da ciência. Aparentemente livres dos tabus relacionados com a

profanação do sagrado, as imagens da cibercultura falam de um admirável mundo

novo – real ou imaginário – que “não se projeta no céu, fixa-se na terra. Os deuses

(...) estão entre nós, são de nossa origem, são como nós mortais.” (Morin, 1967,

p.176).

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II.2. O ciberespaço: do abstrato ao sensível

Quais são as traduções possíveis de uma realidade abstrata que se expressa

antes por códigos alfanuméricos do que por imagens gráficas? Como se dá sentido

visual àquilo que essencialmente não possui expressão visual? Em The Hacker

Crackdown – Law and Disorder on the Electronic Frontier, Bruce Sterling comenta

que o termo “cyberspace“ surgiu em 1982 na literatura cyberpunk (Sterling, 1992, p.

XI) com a obra de Willian Gibson: Neuromancer. Considerado um clássico da

literatura cyberpunk, Neuromancer, além do termo cyberspace, também introduziu o

termo “matrix” para se referir ao ciberespaço como uma rede global de simulação9.

Sterling acrescenta que o “ciberespaço” não é uma fantasia de ficção científica, mas

um “lugar” onde temos experiências genuínas e que existe há mais de um século:

(...) o território em questão, a fronteira eletrônica, tem cerca de 130 anos.

Ciberespaço é o “lugar” onde a conversação telefônica parece ocorrer. Não

dentro do seu telefone real, o dispositivo de plástico sobre sua mesa. (...) [Mas]

O espaço entre os telefones. O lugar indefinido fora daqui, onde dois de vocês,

dois seres humanos, realmente se encontram e se comunicam.

Apesar de não ser exatamente ‘real’, o ‘ciberespaço’ é um lugar genuíno. Coisas

acontecem lá e têm conseqüências muito genuínas. (...)

Este obscuro submundo elétrico tornou-se uma vasta e florescente paisagem

eletrônica. Desde os anos 60, o mundo do telefone tem se cruzado com os

computadores e a televisão, e (...) isso tem uma estranha espécie de fisicalidade

agora. Faz sentido hoje falar do ciberespaço como um lugar em si.

Porque as pessoas vivem nele agora. Não apenas um punhado de pessoas (...)

mas milhares de pessoas, pessoas tipicamente normais. (...) Ciberespaço é hoje

uma ‘Rede’, uma ‘Matriz’, internacional no escopo e crescendo rapidamente e

constantemente.10

9 Argumento utilizado no filme The Matrix (1999). 10 No original: (…) the territory in question, the electronic frontier, is about 130 years old. Cyberspace is the ‘place’ where a telephone conversation appears to occur. Not inside your actual phone, the plastic device on your desk. (…)The place between the phones. The indefinite place out there, where two of you, two human beings, actually meet and communicate.

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A preocupação de Sterling com o estatuto de “realidade” tem a ver com a

natureza “virtual” do ciberespaço, apreendido, em muitos casos do senso comum,

como uma oposição à natureza “real” da “realidade”. Entretanto, o reconhecimento de

que a “realidade” é “uma qualidade pertencente a fenômenos que reconhecemos

terem um ser independente de nossa própria volição (não podemos ‘desejar que não

existam’)” (Berger; Luckmann, 1998, p.11) basta para ver que essa oposição “virtual”

versus “real” é ilusória e bastante confusa. Os crimes “virtuais” estão aí para nos

mostrar de uma forma bem dura que a “virtualidade” do ciberespaço possui uma

inegável natureza coercitiva de “realidade”. O fato é que já somos seres “virtuais” e

“reais”, queiramos ou não, ao menos dentro dos grandes bancos de dados de

corporações e governos. E cada vez mais temos o conhecimento – “a certeza de que

os fenômenos são reais e possuem características específicas” (Berger; Luckmann,

1998, p.11) – de que o ciberespaço, apesar de “virtual”, é bastante “real”.

É certo que os limites de significação do ciberespaço estão diretamente

relacionados com a inteligibilidade que a produção e o progresso técnico e científico

têm no senso comum. Apesar do conceito do computador digital existir desde o

século XIX e o computador eletrônico ter surgido na década de 1940, o ciberespaço

foi, até o início da década de 1970, uma abstração lógica e matemática compartilhada

apenas por especialistas e técnicos. Durante muito tempo, foi o texto, na forma de

complexos códigos de signos lógicos e mnemônicos textuais, e não a imagem visual,

a mediação por excelência entre as máquinas computadoras e o homem. E mesmo

assim não foi a primeira.

A mediação derradeira entre o homem e a máquina computadora são os

“bits”: sinais físicos que podem assumir apenas dois valores nos circuitos elétricos

dos computadores convencionalmente representados por “um” e “zero”. O bit é o

átomo da informação eletrônica: tudo que é armazenado, processado e intercambiado

dentro dos computadores e entre eles são – fisicamente, nos mais diversos tipos de

suporte – extensas seqüências binárias. O que temos no disco rígido, CD ou disquete

Although it is not exactly “real”, “cyberspace” is a genuine place. Things happen there that have very genuine consequences (…). (…) This dark electric netherworld has become a vast flowering electronic landscape. Since the 1960s, the world of the telephone has crossbred itself with computers and television, and (…) it has a strange kind of physicality now. It makes good sense today to talk of cyberspace as a place all its own. Because people live it now. Not just a few people, not just a few technicians and eccentrics, but thousands of people, quite normal people. (…) Cyberspace today is a ‘Net’, a ‘Matrix’, international in scope and growing swiftly and steadily.

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são apenas cadeias binárias. O que trafega pelo cabo da impressora, pela linha

telefônica ligada ao modem ou pelo cabo da rede são bits. A própria indexação das

cadeias corretas que compõem um arquivo ou um programa estão em outras cadeias

binárias. Entretanto, um bit por si só não possui significado nenhum. Grosso modo, é

o byte a menor unidade de significação digital. Um byte é convencionado como uma

seqüência de 8 bits, o que lhe dá a possibilidade de assumir 256 valores (28) que

podem ser expressos nas mais variadas notações: por exemplo, números –

representados por “0 a 255”, “0 a 11111111” ou “0 a FF”, na base decimal, binária ou

hexadecimal11, respectivamente – ou signos textuais dos mais diversos idiomas.

Desde cedo, na informática, tabelas de conversão dos bytes para caracteres textuais

foram padronizadas: por exemplo, no ASCII (American Standard Code for Information

Interchange), o padrão quase universal para caracteres latinos, por exemplo, as letras

maiúsculas de A à Z correspondem aos valores de 41 a 90 das 256 possibilidades do

byte (cf. Norton, 1996: 339-342).

A relação entre o computador e o número é inseparável desde o seu

ancestral tecnológico, a máquina de somar, construída por Blaise Pascal em 1642, a

quem também é creditada a invenção da caixa registradora. Já o primeiro suporte a

dar persistência ao dado surgiu com a invenção de Joseph-Marie Jacquard que

automatizou a indústria têxtil. O tear de Jacquard utilizava cartões perfurados com a

seqüência de operações necessárias para a produção de um tecido, automatizando e

objetivando o conhecimento antes restrito aos contramestres. Herman Hollerit, por

sua vez, aperfeiçoou a tecnologia dos cartões perfurados dos teares de Jacquard

com o uso da eletricidade para dar entrada aos dados de máquinas de somar e pôde,

em 1890 consolidar os dados do recenseamento dos EUA em uma fração do tempo

que seria normalmente necessário (cf. Gehringer; London, p.15-18).

Contudo, essas máquinas ainda não eram exatamente cibernéticas. O caráter

cibernético da computação está no seu caráter sistêmico onde um processo auto-

11 Existe uma correspondência direta entre as bases binária, decimal e hexadecial de numeração. O número decimal “10”, por exemplo, corresponde ao número hexadecimal “A” (não confundir com a letra “A”) e ao número binário 1010, conforme a seguinte tabela:

Decimal 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

Binário 0000 0001 0010 0011 0100 0101 0110 0111 1000 1001 1010 1011 1100 1101 1110 1111

Hexa-decimal

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 A B C D E F

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regulado de entrada e saída de informações se dá pela cadeia de dispositivos que

compõe, não apenas o computador e suas partes internas, mas também os

dispositivos externos a ele. A comunicação entre os dispositivos é realizada pelas

genericamente chamadas “interfaces”, camadas responsáveis pela saída e entrada

de dados de um dispositivo a outro ou de um sistema a outro. Assim, há interfaces

entre dispositivos – por exemplo, entre o computador e a impressora, entre o

computador e o teclado, entre o computador e o monitor – e há interfaces entre

sistemas, muito mais complexas e realizadas, na verdade, por um conjunto de

interfaces. É o que ocorre em uma máquina industrial computadorizada, como um

torno, onde o confronto entre o programado e o real, entre o modelo e a peça, entre o

número e o fato, resulta em um ajuste constante dos sistemas conectados. A

interação sistêmica entre eletro-mecânica e computação é tal que o conjunto é

percebido como uma coisa só. Isso não é diferente quando os homens e

computadores precisam se relacionar. Teclado, monitor, mouse são, de fato,

dispositivos de interface específicos para a comunicação com o ser humano, da

mesma forma que existem dispositivos de interface entre o computador e uma

impressora, uma máquina qualquer, outro computador, etc. Do ponto de vista

cibernético, esses circuitos podem ser considerados um sistema único.

Alguns dos primeiros computadores modernos sequer possuíam interfaces

com sistemas de signos compatíveis com a linguagem humana. Nas épocas

pioneiras, de fato, era o ser humano que se desdobrava para “interfacear” com a

máquina, como, por exemplo no caso do ENIAC (Electronic Numerical Integrator And

Computer). O ENIAC é considerado um dos primeiros computadores modernos12 e,

ao contrário de seus predecessores que eram desenhados para um fim específico13,

ele podia ser programado para várias finalidades diferentes a despeito de ter sido

originalmente desenvolvido para o cálculo de trajetórias balísticas. Desenvolvido a

pedido das Forças Armadas dos EUA, ele ficou pronto em 1945 e era um monstro

eletrônico com 17.480 válvulas eletrônicas (não existia ainda a tecnologia de

12 Contudo, o ENIAC não é o primeiro computador digital. Em 1839, Charles Babbage, desenhou e desenvolveu o que é considerado o primeiro computador digital. A sua “máquina diferencial” era um computador mecânico projetado para solucionar problemas matemáticos, incluindo equações diferenciais. Apesar da máquina não ter sido construída, o seu trabalho incorporou vários princípios da computação que foram redescobertos quase um século depois. (Winegrad; Atsushi, 1996) 13 O Colossus desenvolvido em 1942 pela Inteligência Britânica, por exemplo, foi especificamente desenhado para decodificar as mensagens criptografadas pela máquina alemã Enigma, durante a II Grande Guerra.

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semicondutores que possibilitaram o transistor e o chip), ocupava uma área de 180

m2, consumia quase 200 KW de eletricidade e todo o conjunto pesava cerca de 8

toneladas. Mas apesar de todo esse tamanho, o ENIAC não possuía teclado: a

“interface” entre a máquina e o ser humano consistia de fios e botões para a

programação, leitora de cartão perfurado para a entrada de dados e números

decimais na saída de dados (figs. 1 e 2). Desde então, boa parte da história das

interfaces entre o homem e o computador é a história de como traduzir um tipo de

texto para outro tipo de texto. Os cartões perfurados, os botões e cabos de

programação, ou os números apresentados nos displays dos primeiros computadores

são, em essência, diferentes notações para mensagens textuais. De forma que o

teclado e o monitor surgem em um contexto onde o objetivo era proporcionar

suportes mais adequados para a comunicação textual.

Figura 1

Figuras 1 e 2. Fotos dos painéis de programação do ENIAC.

Figura 2

Os sucessores do ENIAC incorporaram rapidamente dispositivos de “output”

mais convenientes para o uso humano e mesmo mais compatíveis com a linguagem

humana tais como teclado e monitores para exibição de caracteres alfanuméricos.

Contudo, tais dispositivos eram apenas “mais um” dispositivo de interface e não eram,

necessariamente, obrigatórios. Assim, não é de surpreender que o primeiro

microcomputador para uso doméstico, o Altair 8800 (fig. 3), lançado em 1975,

causasse furor mesmo sem possuir sequer entrada para um teclado e muito menos

conexão para monitor de vídeo. Às vistas de hoje, sua programação e entrada de

dados soa algo irreal, era realizada por um conjunto de chaves e a visualização por

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meio de luzes (fig. 4). O Altair nem era mesmo entregue pronto, mas era um “kit”

eletrônico para “hobbistas”, composto de peças e componentes soltos que eram

soldados e montados pelo próprio usuário, de acordo com um diagrama eletrônico.

Era evidentemente um produto destinado não só para quem entendia de eletrônica

mas para quem, pura e simplesmente, se divertia mexendo com eletrônica. Como não

havia literatura a respeito de computadores e muito menos softwares e programas

disponíveis, as pessoas que tinham ou queriam ter um personal-computer

começaram a se reunir em “clubes” e associações onde técnicos, engenheiros e

programadores se encontravam para discutir e trocar idéias sobre os problemas e

implementações do Altair e tópicos relacionados. O mais famosos desses clubes foi o

Homebrew Computer Club, de onde saíram alguns personagens de grande influência

na história da computação: Adam Osbourne, Steve Jobs e Steven Wozniak, dentre

outros. Osbourne lançou o primeiro laptop do mercado em 1981, quando os personal-

computers ainda engatinhavam; Jobs e Wozniak fundaram nada menos do que a

Apple Computer. Em 1976, quando ambos ainda eram freqüentadores do Homebrew

Computer Club, produziram o Apple I (fig. 5), o primeiro micro-computador a ser

vendido montado14 e a fornecer conexão para um monitor e um teclado. Diz o folclore

que o Apple I era apenas um passatempo feito por Wozniak para mostrar aos amigos

do clube e que Jobs transformou em produto. Mas, seja proposital ou não, o Apple I

foi a prova de conceito – técnico e de mercado – que convenceram ambos a lançar o

Apple II (fig. 6), no ano seguinte, com um design mais aperfeiçoado e melhorias

técnicas, consolidando o conceito do computador como um “produto pronto”, entregue

montado em um gabinete e pronto para usar.

A popularização do microcomputador trazida pelo Apple II e o surgimento de

softwares de processamento de textos e planilhas de cálculo, como o Visicalc,

fizeram com que o computador saísse lentamente do terreno underground dos nerds.

Contudo, mesmo com a entrada do IBM PC no início da década de 1980, que ampliou

enormemente a penetração do microcomputador na sociedade, os personal-

computers continuaram a ter um público consumidor restrito. Foi apenas com o

surgimento da interface gráfica, a “user friendly interface”, que, finalmente, pessoas

sem nenhum conhecimento técnico puderam ligar um computador, usá-lo e desligá-

14 Montado não tinha o mesmo significado que o de hoje. Mas significava que o “kit” de componentes eletrônicos já vinha soldado na placa, ao contrário do concorrente Altair que era vendido apenas na opção de kit desmontado.

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lo. Até então, o uso restritivo dos PCs contrastava com o outro uso dos computadores

que já encontrava ampla disseminação social: os videogames.

Figura 3

Figura 4

Figura 3: Capa da Popular Electronics que anunciou a chegada do primeiro personal computer (1975).

Figura 4: A Interface do usuário do Altair 8800, que se resumia a botões e luzes.

Figura 5

Figura 6

No ambiente tecnológico, o videogame não teve grande importância

acadêmica durante a década de 60. Em um ambiente dominado pela mentalidade

matemática e racionalista que precisava justificar as verbas militares que

alimentavam as pesquisa no auge da guerra fria, o videogame – exceto pelas versões

computadorizadas do jogo-da-velha, xadrez e simulações relacionadas com a “teoria

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dos jogos”, que tinham a ver com o desenvolvimento da inteligência artificial – o

videogame era uma mera curiosidade. Isso não impediu, contudo, que algumas

tentativas fossem realizadas. William Higinbotham do Brookhaven National

Laboratory (BNL), um laboratório de pesquisa nuclear em Upton - NY, montou uma

máquina que chamou de “Tennis for Two” para entreter as pessoas do “Visitor’s Day”

de 1958 no BNL. Era um jogo baseado na representação rudimentar do perfil de uma

quadra de tênis na tela de um osciloscópio no qual dois jogadores brincavam com um

ponto que quicava de um lado para outro da tela (figs. 7 e 8). Apesar do jogo ter sido

um sucesso e ser reeditado na feira do ano seguinte, Higinbotham não patenteou a

invenção por achá-la óbvia demais. Em 1962, Steve Russell e um grupo de alunos do

Massachusetts Institute of Technology (MIT) desenvolveram o “Spacewar!” para a

feira de ciência anual do instituto (figs. 9 e 10). O Spacewar! foi o primeiro videogame

totalmente interativo, onde dois jogadores duelavam com suas respectivas naves e

mísseis em ambiente eletrônico totalmente sintético e virtual, existente apenas na tela

do computador. Da mesma forma que Higinbotham, Russell não patenteou sua

invenção e o Spacewar! disseminou-se pelo meio acadêmico e serviu livremente de

base para muitos videogames dos anos 70.

Figura 7

Figura 8

Figura 9

Figura 10

Figuras 7 e 8: O “Tennis for Two” de Higinbotham (1958).

Figuras 9 e 10: O “Spacewar!” de Russell (1962).

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Assim como os microcomputadores, os videogames saíram do ambiente de

pesquisa também na década de 1970, mas ao contrário daqueles – que levaram anos

procurando o mercado que definiria o formato do personal-computer – os videogames

criaram imediatamente sua demanda no campo do entretenimento. Eles

popularizaram-se em dois segmentos de mercado que existem até hoje: em consoles

para uso doméstico e engenhocas de fliperama denominadas de “arcades” (que quer

dizer “galeria”) movidas a moedas de ¼ de dólar. O primeiro arcade videogame era

uma versão adaptada do Spacewar, chamado de “Computer Space”, lançada por

Nolan Bushnell em 1971. Mas não foi um sucesso. Possuía muitos botões e era difícil

de entender. Bushnell teria dito que:

Você tinha que ler as instruções antes de poder jogar, as pessoas não querem ler

instruções. Para ter sucesso, eu tinha que fazer um jogo que as pessoas já

soubessem jogar; algo tão simples que qualquer bêbado em um bar possa jogar

(Winter, 2005).

Assim, em 1972, a nova empresa de Bushnell, a Atari, lançou o “Pong”, o

primeiro arcade de sucesso, com 38.000 unidades produzidas. O Pong era

basicamente uma simulação de um jogo de pingue-pongue na qual as raquetes eram

pequenas barras controladas pelos jogadores e a bola um pequeno quadrado que

ficava quicando na tela (figs. 11 e 12). Há relatos de que as pessoas faziam fila para

jogar no protótipo do Pong instalado em um bar e que este teria “travado” no segundo

dia porque estava atolado de moedas (cf. Winter, 2005). No ano de 1972 também foi

lançado pela Magnavox (subsidiária da Phillips nos EUA) o primeiro console de

videogame doméstico, o Odyssey, criado por Ralph Baer (ver fig. 13). A despeito de

ser muito primário – não possuía placar e, a fim para agregar mais sofisticação à

imagem, cada jogo era acompanhado de um painel de plástico transparente colorido

que deveria ser colado à tela da TV (ver fig. 14) – o Odyssey vendeu cerca de

100.000 unidades no ano de lançamento. A Atari também passou a competir no

mercado de consoles de videogame com uma versão doméstica do Pong em 1975.

Em 1977 lançou o Atari 2600, um dos consoles de videogame mais populares já

produzidos que ficou conhecido simplesmente como “Atari”.

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Figura 11

Figura 12

Figuras 11 e 12: O arcade Pong (1972), da Atari.

Figura 13

Figura 14

Figura 13: Cartaz publicitário do Odyssey (1972).

Figura 14: Foto do Odyssey com seus acessórios, incluindo as telas com desenhos transparentes que eram colocadas à frente da televisão.

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O mercado de videogames cresceu rapidamente: novas gerações e inúmeros

consoles domésticos surgiram e, depois do Pong, novos arcades foram inventados às

centenas e as casas de diversões eletrônicas espalharam-se pelas cidades do

mundo. As rudimentares representações do “ciberespaço” de jogos como o Pong

foram as primeiras representações visuais do ciberespaço a se popularizarem fora do

círculo acadêmico. Enquanto os computadores mantinham o texto como a única

forma de mediação entre o usuário e a máquina, os videogames já anunciavam a

imagem como mediação por excelência entre o ser humano e o computador. A Atari,

Magnavox, Taito, Sega, Nintendo e outras empresas introduziram, produziram e

espalharam pelo mundo suas versões pioneiras de “realidades virtuais”

ciberespaciais: ambientes gráficos de pequenos mundos sintetizados por computador

explorados de forma sensível com o uso de joysticks e botões. Os videogames

trouxeram à experiência das pessoas um tipo de relacionamento onde predomina a

virtualidade sensorial em detrimento da racionalidade textual. Foram não só os

primeiros ciberespaços ao alcance do senso comum como disseminaram na

sociedade a familiaridade com os rudimentos do que viria ser chamado de “user

friendly interface”, mais de uma década antes de surgir o primeiro personal-computer

com interface gráfica. Seja em consoles ligados a aparelhos de TVs, em engenhocas

de fliperamas ou em pequenas versões de bolso, os videogames se apropriaram

rapidamente da tecnologia que se desenvolvia na informática e instilaram em toda

geração de adolescentes e crianças dos anos 70 e 80 a familiaridade com uma

virtualidade eletrônica cristalizada na matriz de pixels de um monitor.

Fora do âmbito do entretenimento, a tecnologia para que o computador se

transformasse no suporte por excelência do “espaço cibernético” foi desenvolvida

inicialmente no Xerox Palo Alto Research Center (PARC) em 1971 (fig. 17). Essas

pesquisas materializaram-se no Alto, o primeiro sistema baseado em interface gráfica

e responsável pelos padrões que tornaram-se indissociáveis de qualquer interface

amigável. O Alto introduziu o conceito de ambiente gráfico que simula “janelas” (ver

fig. 18) e incorporou um dispositivo de “input” chamado “mouse”, inventado em 1963

por Doug Engelbart, para manusear as janelas e outras entidades na tela do

computador, de forma similar à que fazemos hoje. O mouse faz parte de um grupo de

dispositivos conhecidos como “apontadores” (pointer devices), que inclui joysticks,

trackballs e mesas digitalizadoras (sketchpads). Engelbart materializou o conceito do

mouse em um protótipo de madeira (figs. 15 e 16) que serviu de modelo para os

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mouses industrializados. No projeto original, a captura do movimento era realizada

por duas rodas posicionadas perpendicularmente sobre um plano, que repassavam

ao computador as coordenadas relativas do deslocamento do dispositivo. Esse

conceito é utilizado até hoje nos mouses de esfera, que possuem duas rodas internas

em contato com uma esfera que lhes transmite o deslocamento do mouse sobre um

plano.

Os conceitos utilizados no Alto foram aperfeiçoados e resultaram no Xerox

Star System, de 1981 (fig. 19). É fato notório que nem o Alto e nem o Star System

obtiveram sucesso comercial mas seus conceitos convenceram Steve Jobs, da Apple,

de que a interface gráfica era viável, levando-o a incorporá-la no sucessor do Apple II,

o LISA de 1983 (fig. 20). Contudo, o primeiro personal-computer com interface gráfica

possuía um preço proibitivo (cerca de US$ 10.000,00) e rapidamente a própria Apple

lançou um sucessor com as mesmas qualidades, mas mais acessível, no ano

seguinte. O Macintosh (fig. 21) foi lançado com estardalhaço em 1984 com uma

propaganda dirigida por Ridley Scott (fig. 23) e exibida no intervalo do Superbowl

daquele ano: “Em 24 de janeiro, a Apple Computer lançará o Macintosh. E você verá

porque 1984 não será como ‘1984’”, dizia a propaganda, em referência ao livro de

George Orwell (e o Big Brother era a metáfora, é claro, do maior concorrente da

Apple na época, a IBM). Com o Macintosh, caro mas acessível, e o lançamento

subseqüente do MS Windows da Microsoft (fig. 22) – uma tosca máscara gráfica que

mediava a interface textual dos PCs que rodavam o MS DOS – em 1985, a

comunicação entre o homem e o computador deixou de ser necessariamente um

processo de abstração lógica mediado por complexo código de comandos e

mnemônicos textuais. A partir daí, o uso do computador tornou-se algo cada vez mais

próximo da sensibilidade leiga e cada vez mais distante da racionalidade técnica.

Com a mediação de um ambiente gráfico, não dependemos mais do

conhecimento do “texto” tecnológico que faz o computador funcionar. Algo mais

próximo dos velhos videogames que acompanharam a infância e adolescência das

gerações pós-1970, a interface user friendly privilegia a relação sensível do usuário

com um ambiente virtual, como já faziam os videogames, em detrimento do

tradicional (e inibidor) código textual piscando sobre uma tela escura.

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Figura 19

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Figura 22

Figura 23

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O ambiente gráfico rompeu a cadeia textual que ia do bit ao nosso cérebro.

Enquanto abstração, o ciberespaço é apenas a metáfora de fatos físicos e

matemáticos. Mas na forma de realidades visuais e (sonoras) sintéticas, o

ciberespaço ganha uma dimensão sensorial que é inacessível por meio do texto.

Talvez não seja apenas uma coincidência que o termo “cyberspace” tenha surgido em

1984, no mesmo ano do lançamento do Macintosh, uma década depois do

surgimento do personal-computer, 12 anos depois do Pong e do Odyssey e depois de

4 anos de Toffler afirmar que estávamos na Terceira Onda e viveríamos em “cabanas

eletrônicas”, versões computadorizadas e “business oriented” da aldeia global de

McLuhan. Como resposta cultural às redes de computador cada vez mais presentes

nas empresas, governos e escolas, a noção de “ciberespaço” é uma forma de conferir

sentido àquilo que contraria a categoria fundamental do espaço, reconstituindo-o

sobre aquilo que subverte justamente o próprio espaço. Surge uma nova

espacialidade na forma de simulacro – a realidade virtual – onde a nossa experiência

se realiza, aos nossos sentidos, de forma análoga a que experimentamos no mundo

presencial. Não por acaso, em 1984, no mesmo ano em que o Macintosh introduziu o

“desktop virtual” no mercado de consumo, William Gibson anunciou o ciberespaço

como um espaço lisérgico que exacerba a dimensão sensorial do virtual:

Cyberspace. A consensual hallucination experienced daily by billions (…)... A

graphic representation of data abstracted from the banks of every computer in

the human system. Unthinkable complexity. Lines of light ranged in the non

space of the mind, clusters and constellations of data. Like city lights,

receding...15 (Gibson, 1984, p.51)

Sob influência das realidades virtuais, a noção do senso comum de

ciberespaço é essencialmente o visual, em detrimento do textual. E, desde que

imagem e texto possuem naturezas diferentes, a substituição de uma pela outra não

deixa de ter conseqüências. Ao contrário do que ocorre com as imagens e os bits,

conversão um texto para bits ou vice-versa não é exatamente uma questão de

tradução, mas de notação: a seqüência de letras “i-m-a-g-e-m” e a seqüência de

números hexadecimais “69-6D-61-67-65-6D” possuem uma relação unívoca. Uma

15 “Ciberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões (...)... Uma representação gráfica dos dados abstraídos dos bancos de dados de cada computador no sistema humano. Complexidade inimaginável. Linhas de luz enfileiradas no não-espaço da mente, agregados e constelações de dados. Como cidades de luz, retrocedendo...”

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vez criada e até ela ser modificada ou eliminada, uma mensagem textual pode

trafegar ao longo da cadeia de interfaces de um sistema sob várias notações sem que

ela perca qualquer fragmento do seu conteúdo. E mesmo quando a questão é traduzir

um mnemônico digitado pelo usuário para a execução de uma função do computador,

a cadeia de eventos será um processo textual, desde a mentalização do mnemônico

até sua transformação nos bits que trafegam na forma de corrente elétrica nas placas

de circuito impresso e pelos chips. Mas isso não acontece com a imagem. No limite, é

possível “ler” um texto na sua forma binária, porém “ver” a imagem na forma binária, é

praticamente impossível.

A descontinuidade entre um sistema de comunicação mediado pelo texto e

outro mediado na imagem fica evidente, por exemplo, na impossibilidade de se

adaptar interfaces gráficas para deficientes visuais, ao contrário do que ocorre com

interfaces textuais, onde o monitor de raios catódicos é facilmente substituído por um

terminal Braille. Ou, de forma inversa, a conversão de softwares desenvolvidos para

ambiente textual para softwares “user friendly” requer, na prática, o desenvolvimento

de outro software, ao contrário da suposição, que já foi muito arraigada entre os

profissionais de software, de que a “imagem” é apenas um “texto” mais sofisticado. A

simples agregação de uma “casca gráfica” geralmente mutila o aplicativo original e

compromete a intuitividade que um ambiente gráfico deve ter.

O fato é que não existe a “migração” de um aplicativo de interface textual

para a interface gráfica. Tentativas nesse sentido, geralmente resultam em fracasso.

A versão gráfica de um aplicativo, originalmente desenhado para interface textual,

requer tantas modificações de design e engenharia de software que resulta, na

prática, em outro sistema. Isso ocorre justamente porque há uma descontinuidade

que existe entre um sistema de comunicação baseado em texto e um sistema de

comunicação baseado em imagem. Enquanto a interface textual manifesta a própria

informação apenas na forma de texto, em uma cadeia contínua desde os bytes que

circulam no computador, a interface gráfica simula um ambiente visual onde

prevalece a interação com entidades imagéticas, sejam elas veículos de conteúdo

textual, como a tela de um editor de texto, ou não, como o cursor do mouse. É certo

que a interface gráfica não se desvencilhou do texto, até porque, assim como há

especificidades que somente podem ser expressas na forma de imagem, há aquelas

que só podem ser expressas na forma de texto. E, como nota Quéau (1993, p.91), é

um processo onde o “legível engendra o visível”: a realidade virtual instituiu “uma

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nova relação entre imagem e linguagem” e “pela primeira vez, formalismos abstratos

podem produzir, diretamente, imagens”. Essas imagens não são simplesmente a

reproduções de algo que já existe, “cópias” de outras realidades, mas produtos

sintéticos construídos pela manipulação numérica do átomo da imagem eletrônica: o

pixel.

Toda imagem eletrônica é um mosaico matricial de pequenos pontos, os

pixels, cada qual com uma gradação de luz e cor. Ao contrário da televisão – onde o

pixel é resultado de um processo de “contágio” da luz através dos vários suportes da

maquinaria óptico-eletrônica desde o momento da sua captura – o computador

domina cada ponto da imagem: ele substitui “o automatismo analógico das técnicas

televisuais pelo automatismo calculado, resultante da informação relativa à imagem.

(...) Cada pixel é um permutador minúsculo entre imagem e número” (Couchot, 1993,

p.38-39). A imagem gerada pelo computador não prescinde de uma realidade visual

precedente já que ela não é cópia do real, mas um produto da simulação de modelos

de realidade, reduções lógicas e matematizadas contidas nos dados e nos programas

de computador. Como nota Couchot, (1993, p.24):

Se alguma coisa preexiste ao pixel e à imagem é o programa, isto é, linguagem e

números, e não mais o real. Eis porque a imagem numérica não representa mais

o mundo real, ela o simula.

E por meio dessas simulações, até mesmo o texto é mascarado como

imagem. Com efeito, mesmo o texto de uma “caixa de alerta” passa a ser

subordinada à lógica engendrada pela imagem: antes de ser lida, ela é “vista” em

uma das janelas (a caixa de alerta) do ambiente gráfico com o qual o usuário

interage.

A interface gráfica com a qual o usuário se relaciona não é simplesmente

uma tradução visual do dado textual. Ela também “incorpora um modo de ver” 16 a

realidade tecnológica dentro de novos contextos e articulada ao conhecimento prévio

e consensual acerca de determinadas realidades coletivas. Esse conhecimento

fornece certas expectativas, adquiridas pela experiência passada, que são aplicadas

aos “infogramas”, entidades funcionais que se revestem de aparências de objetos

16 An image is a sight which has been recreated or reproduced. It is an appearance, or a set of appearances, which has been detached from the place and time in which it first made its appearance and preserved – for a few moments or a few centuries. Every image embodies a way of seeing (Berger, 1971, p.09-10).

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conhecidos e com os quais supostamente compartilham características. Os

infogramas são signos que funcionam como parte de um sistema de metáforas

lingüísticas e visuais que “buscam compensar os limites dos sistemas de

representação (...) propondo analogias entre o contexto normal de uma palavra ou

imagem e um contexto novo no qual é arbitrariamente introduzida” (Quéau,1993,

p.93). Os infogramas – os “ícones” do nosso computador, os elementos visuais de um

videogame, o cursor do mouse – são como componentes semânticos de um

determinado contexto que articulam traços de semelhança e de funcionalidade de

objetos de outros contextos.

“Quanto de cópia deve a cópia ter para ter efeito sobre aquilo de que é cópia?

Quão ‘real’ a cópia deve ser?” 17 (Taussig, 1993, p. 51). Ao contrário da suposição de

que uma realidade virtual deve ser idêntica àquela que ela substitui, a semelhança

visual e funcional do infograma em relação aos objetos autênticos é relativa e

freqüentemente muito rudimentar. Essa relativização e rudimentaridade não impedem

que, no contexto da realidade virtual, o cursor do mouse possa ser nosso dedo virtual

e um quadrado possa ser uma bola, apesar do nosso dedo não se parecer com uma

seta e de uma bola não possuir cantos. São como aquilo que Taussig chamou de

“ideogramas pobremente executados” (“poorly executed ideogram”), síntese de traços

daquilo que mimetizam mas também objeto de projeção de expectativas e

instrumento de transformação dos originais que representam.

A interface gráfica, sintetizada na metáfora do desktop virtual, nada mais é do

que um meio de articular o conhecimento de senso comum em modelos de simulação

que engendram experiências análogas às experiências adquiridas pelo usuário em

outros contextos. A mimese se dá, portanto em dois planos, no plano visual e no

plano funcional: no primeiro, o que importa são os traços que nos permitem

reconhecer que tal ou qual infograma é uma pasta ou um documento e, no segundo,

o que importa é que os atributos funcionais do arquivo digital ou diretório do sistema

de arquivos no disco rígido sejam suficientemente análogos ao que esperamos

encontrar em um documento ou pasta. Essa síntese entre aparência e funcionalidade

permite que possamos aproveitar nosso conhecimento prévio acerca das pastas e

documentos para supor que – ao manusearmos os simulacros virtuais de arquivos e

diretórios com aparência de documentos e pastas – diretórios possam conter

17 “How much of a copy does the copy have to be to have an effect on what it is a copy of? How ‘real’ does the copy have to be?”

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diretórios mas que arquivos jamais contenham diretórios, da mesma forma que

pastas podem conter pastas mas documentos jamais contêm pastas.

Assim, em uma lógica semelhante à popularizada anteriormente pelo

videogame, a imagem, ou melhor, os sistemas de imagens articulados por modelos

de simulação passaram a dominar nossa relação com o computador, possibilitando

realidades nas quais “clicar” e “arrastar” documentos com um “mouse” passassem a

fazer mais sentido do que digitar “move C:/dir_1/dir_N/meu_arquivo.DOC

C:/dir_2/dir_N”. Aqui, o olho acoplado ao mouse torna-se o órgão do conhecimento

tátil que, interagindo com as simulações imagéticas dos softwares, passa a ser “como

a mão do cirurgião que corta e entra no corpo da realidade para apalpar as massas

palpitantes dentro dela”18 (Taussig, 1993, p. 31).

A realidade virtual da interface gráfica é uma “bricolagem” construída através

de coleções de “mensagens” – os infogramas – e constitui não só a camada de

interação sensível entre o homem e o ciberespaço como a modalidade de mediação

mais socialmente compartilhada, ao contrário das mediações puramente textuais.

Mas as representações imagéticas da informação digital implicam em uma

descontinuidade entre aquilo que vemos e aquilo que realmente está por trás da

simulação. A realidade virtual opera em dois sentidos, um que cria mundos sensoriais

da informação digital e outro que trabalha ocultando a estrutura tecnológica e material

do ciberespaço. Um “infograma” é tanto um meio de dissimular o mundo abstrato que

o engendra como um meio de torná-lo tangível. “Enquanto ‘imagens’, elas [as

realidades virtuais] não nos permitem entender o modelo abstrato que as engendra,

mas abrem uma janela para ele” (Queáu, 1993, p.92). Por mais perfeito que venha a

ser um modelo de simulação, ele será sempre marcado por dois movimentos

ambíguos: o mesmo poder de simular mundos é o poder de falsificar e mascarar19.

Com efeito, ao mesmo tempo em que o “desktop” eletrônico media nossa experiência

sensível no ciberespaço, ele oculta tudo aquilo que não pode ser traduzido porque

não faz sentido ou é desnecessário para a emulação dessa experiência. A realidade

virtual, portanto, estabelece uma ordem não só de classes, mas também de domínios:

para estender nossos horizontes de interação sensorial com o computador, é

18 “...like the surgeon’s hand cutting into and entering the body of reality to palpate the palpitating masses encloses therein.” 19 “Once the mimetic has sprung into being, a terrifically ambiguous power is established; there is born the power to represent the world, yet that same power is a power to falsify, mask and pose. The two powers are inseparable”. (Taussig, 1993: 42-43).

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necessária uma reconstrução seletiva no domínio cotidiano (onde existem pastinhas

amarelas e se conta até dez) das realidades provenientes do domínio tecnológico

(onde o amarelo da pastinha é um número hexadecimal de valor “FDE985” e o

número “dez” é um byte de valor “00001010”). A interface gráfica naturaliza o

tecnológico justamente porque o oculta. Ela traz à percepção uma realidade que

antes só podia ser acessada com o domínio de complexos textos, tornando-a

acessível como uma forma de experiência ao alcance dos olhos e das mãos. Assim, a

interface gráfica permite replicar aspectos do nosso mundo e criar novos mundos

também.

A plenitude da palavra “cyberspace”, associada a um espaço global, só foi

possível quase uma década depois da invenção do termo, graças a invenção da

World Wide Web e do browser, as janelas user friendly da Internet, que trouxeram

para a singularidade de nossos escritórios e dormitórios o alcance de uma rede

mundial agora na forma de imagens, sons e textos em torrentes multimídia. Como

mais uma evidência da familiaridade e naturalização que as realidades virtuais

promovem, o formato “user friendly” da Internet, instanciada na forma de janelas de

nosso desktop, tornou-se rapidamente o meio predominante – para o senso comum,

o único – de interação entre o usuário e a Internet.

A contrapartida da naturalização do ciberespaço é que nos tornamos,

também, extensão dele: na medida em que a virtualidade se transforma em campo de

ação prática, cada vez mais a realização do ser humano prescinde de sua inserção

como coisa virtual do ciberespaço. Essa perspectiva traz algumas implicações. Ao

contrário do que ocorre no mundo presencial, onde o corpo e a presença da pessoa

são indissociáveis, no mundo virtual o corpo de carne não só é desnecessário, como

se configura como uma âncora que conspira contra a plena realização das

potencialidades do cogito no ciberespaço. Como observa Le Breton (2003, p.148), o

corpo se “transforma ao longo do tempo em algo estorvante, excrescência desastrada

do computador”.

Não por acaso, o corpo já é visto por alguns expoentes da cibercultura como

uma barreira incompatível com a tecnologia: “O corpo é obsoleto”, diz Stelarc, um

artista que realiza performances interferindo e alterando seu corpo com a tecnologia.

Para Stelarc, o corpo não pode mais dar conta com a “quantidade, complexidade e

qualidade da informação que acumulou” e é “intimidado pela precisão, velocidade e

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força da tecnologia” (Stelarc, s.d.). Tomando a distinção que Berger e Luckmann

(1998) fizeram sobre “ter um corpo” e “ser um corpo” 20, Stelarc afirma:

Reforçados pela convenção cartesiana, conveniência pessoal e design

neurológico, as pessoas meramente atuam como mentes, imersos em brumas

metafísicas. O sociólogo P.L. Berger fez uma distinção entre “ter um corpo” e

“ser um corpo”. COMO SUPOSTOS AGENTES LIVRES, AS

CAPACIDADES DE SER UM CORPO SÃO REPRIMIDAS POR TER UM

CORPO (Stelarc, s.d., realce do autor).

Os monitores de vídeo, mouses, alto falantes e microfones que usamos hoje

em dia são interfaces que existem apenas porque há um corpo anacrônico entre a

máquina e a “pessoa” reduzida ao cogito. Dentro de uma lógica instrumental, esse

corpo de carne é um evidente obstáculo a ser contornado para a realização da

pessoa virtual. Daí uma das mais fortes tendências ciberculturais, senão a

predominante, ser o elogio ao pós-orgânico onde o corpo torna-se algo sujeito a

retificações e melhorias técnicas, quando não à eliminação, como qualquer máquina.

20 “Por um lado, o homem é um corpo, no sentido em que isto pode ser dito de qualquer outro organismo animal. Por outro lado, o homem tem um corpo. Isto é, o homem experimenta-se a si próprio como uma entidade que não é idêntica a seu corpo, mas que, pelo contrário, tem esse corpo ao seu dispor” (Berger e Luckmann, 1998, p.74).

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II.3. O corpo na era do pós orgânico

A ausência do corpo nas relações ciberespaciais é um dos sinais

contemporâneos mais visíveis de uma sociedade na qual a presença da pessoa está

cada vez mais dissociada de seu corpo orgânico. A necessidade de sublimação do

corpo, nitidamente visto como um “excesso” no elogio ao virtual típico da cibercultura,

é conseqüência de uma tendência mais ampla, onde o corpo se tornou, em muitas

circunstâncias, algo ineficiente – e portanto, indesejável – na sua forma in natura. É

indiscutível que a sociedade informática nos coloca à frente de uma época de

“desabono ao corpo”:

(...) fato vivido em seu nível por milhões de ocidentais que perderam sua relação

de evidência com um corpo que só utilizam parcialmente. No limite, esse sonho

de uma humanidade livre do corpo é lógica nesse contexto em que o veículo é

rei e o ambiente é excessivamente tecnicizado, e no qual o corpo não é mais o

centro irradiante da existência, mas um elemento negligenciável da presença (Le

Breton, 2003, p.20-21).

A desvalorização do corpo decorre da perspectiva mecanicista da cibernética,

na qual organismos e artifícios são reduzidos a meros sistemas de informação. As

descobertas científicas e tecnológicas – sobretudo das bio-tecnologias – parecem

corroborar o paradigma cibernético: além dos computadores e sistemas informáticos

que simulam e potencializam o trabalho da mente, a própria vida parece ser, no limite,

uma espécie de máquina que se desenvolve e funciona de acordo com uma

programação criptografada nos genes. O modelo cibernético é impregnado de um

behaviorismo radical segundo o qual toda máquina ou ser vivo é definido por um

permanente feedback entre as informações nele programadas e as informações

provenientes do ambiente exterior. Na perspectiva cibernética, o modelo do corpo é,

invariavelmente, a máquina.

Contudo, longe de ser contemporânea, a imagem mecanicista do corpo é

anterior à cibernética. É notório que o período renascentista foi marcado não só pela

valorização das proporções matemáticas do corpo como pela introdução de um modo

de ver esse mesmo corpo que é, formalmente, o mesmo modo de ver que planifica os

artefatos e máquinas. O Homem Vitruviano (fig. 24), de Leonardo Da Vinci, é uma das

mais emblemáticas representações da matematização do corpo humano. O desenho

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refere-se a uma passagem onde o arquiteto romano Marcus Vitruvius descreveu as

proporções do corpo humano a partir da largura dos dedos. Inscrito dentro de um

quadrado e de uma circunferência cujo centro é o umbigo, o Homem Vitruviano

celebra o corpo humano como um ideal matemático. Apesar de ser uma espécie de

representação de um homem-protótipo que já insinua a separação do corpo da noção

de pessoa, o Homem Vitruviano ainda mantém o princípio do todo.

Figura 24

Figura 25

O corpo que se separa em partes já estava enunciado em outros estudos do

próprio Da Vinci, como, por exemplo, os seus desenhos sobre a anatomia do braço

(fig. 25). Mas foi Vesálio que desmontou o corpo e deu autonomia às suas partes,

consolidando a “representação médica do corpo que não é mais solidária de uma

visão simultânea do homem” (Le Breton, 2003, p.18). Em 1543, Vesálio publicou De

Humanis Corporis Fabrica, ou “do funcionamento do corpo humano”, onde ele

representou o corpo como se representa uma máquina. É um corpo que pode ser

“desmontado” por camadas – do corpo esfolado com os músculos visíveis (fig. 26) ao

esqueleto desprovido carne (fig. 27) – e em partes que são desenhadas

separadamente para uma análise mais minuciosa – uma caixa torácica (fig. 29) ou

uma traquéia e laringe conectada aos tubos bronquiais (fig. 28) – e, quando

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necessário, em vistas ortogonais – o verso e o reverso dos ossos da mão (fig. 31) ou

da mandíbula (fig. 30) – exatamente como são tratadas as representações das peças

de uma máquina. Vesálio instituiu a visão na qual o corpo nada mais é do que a

articulação de mecanismos e peças elementares.

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Ao realizar um tipo de “engenharia reversa” do corpo, os desenhos de Vesálio

também fundam uma separação radical onde o corpo se desconecta da morte que,

de fato, está ligada aos cadáveres que servem de modelos. Ao realizar essa

desconexão, o corpo-artefato de Vesálio também se desconecta da pessoa, esta sim

sujeita à morte:

O corpo, como representação, é desligado do campo negativo da morte, e a

compreensão de seu funcionamento passa a ser assimilada, progressivamente, à

de processos mecânicos, físicos e químicos totalmente objetivos. (...) Vesálio

trabalha sobre um corpo-artefato destituído e separado da alma da morte (Leite

Leite Brandão, 2003, p.292).

As pranchas de Vesálio antecipam um olhar e um método que se tornaram

típicos da modernidade. Um olhar esvaziado de sentimento e um método que

desmonta o corpo em partes para compreensão do todo. Separado da pessoa, o

corpo-artefato de Vesálio não suscita empatia e seu desmonte em conjuntos de

peças cada vez mais elementares conduzem, no limite, à idéia de que um exímio

artesão poderia reproduzir tais “peças”, desde que com os recursos técnicos

necessário e um bom “projeto” – do qual De humanis corporis fabrica seria um

escorço – em mãos.

Leite Brandão (2003, p.293) observa que o projeto de Vesálio é similar ao

cartesianismo, onde o cogito constituinte do sujeito, é totalmente distinto do corpo e

do universo reduzidos “às propriedades geométricas e mecânicas passíveis de serem

compreendidas e manipuladas pelo espírito”. Le Breton (2003, p.18) acrescenta que

Descartes, ao desligar a “inteligência do homem de carne”, transformou o corpo

apenas no “invólucro mecânico de uma presença; no limite poderia ser

intercambiável, pois a essência do homem reside, em primeiro lugar, no cogito”.

Segundo o autor:

Descartes formula com clareza um termo-chave da filosofia mecanicista do

século XVII: o modelo do corpo é a máquina, o corpo humano é uma mecânica

discernível das outras apenas pela singularidade de suas engrenagens. Não

passa, no máximo, de um capítulo particular da mecânica geral do mundo.

As concepções do corpo introduzidas por Descartes e Vesálio disseminaram-

se durante o Iluminismo e resultaram em profundas modificações na forma como o

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homem é visto pelo próprio homem. Segundo Coli (2003, p.300), com o Iluminismo

torna-se dominante a visão científica na qual “as partes, organizadas e em função,

produzem o todo”, quebrando a unidade divina irredutível que era conferida ao

homem. Antes “seus pedaços não formavam elementos constituintes”. Acrescenta o

autor:

Assiste-se, paralelamente, ao adentrar pela cultura dos últimos séculos, a um

fascínio pelo humano que se desmembra. (...) Cria-se, por assim dizer, uma

poética do fragmento.

Posto que a visão mecanicista do corpo possui uma longa tradição no

pensamento ocidental, é importante ressaltar que por mais que o corpo fosse visto

como uma máquina, não era ainda, de fato, uma máquina.

Isso mudou com a cibernética.

“Wiener foi decerto o primeiro a embaralhar as fronteiras do autômato e do

vivo. Da mesma maneira que ele dissolve a especificidade do homem sob o

ângulo do mecanismo, proporciona à maquina um sistema de organização que a

aparenta ao vivo” (Le Breton, 2003, p.182).

Essa concepção do vivo, e do não-vivo, resultaram em novas formas de

pensar o corpo. A poética do fragmento fundiu-se à poética da máquina. Cada parte

do corpo é, desde então, um objeto passível de ser substituído ou melhorado por

máquinas, tendo em vista o desempenho e de acordo com as possibilidades

tecnológicas em permanente evolução. Assim, o monstro construído pelo Dr.

Frankenstein dá lugar ao ciborgue e os retalhos de cadáveres dão lugar a reluzentes,

limpas, e eficientes máquinas biônicas.

Resultado da contração de cybernetics organism, o termo “cyborg” foi

apresentado em 1960 por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline (1995, p. 30-31) no

Psychophysiological Aspects of Space Flight Symposium. No simpósio, eles

sugeriram que “alterar as funções corporais do homem para se atingir os requisitos

dos ambientes extraterrestres pode ser mais lógico do que prover um ambiente

terrestre para ele no espaço”. Inspirados por uma experiência realizada nos anos 50

em um rato, no qual foi acoplada uma bomba osmótica que injetava doses

controladas de substâncias químicas, os autores propuseram que o astronauta fosse

ligado fisiologicamente a sistemas capazes de monitorar e regular as funções físico-

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químicas e deixá-lo dedicado apenas às atividades relacionadas com a exploração

espacial. Propuseram o termo “cyborg” para o acoplamento de um organismo com

componentes exógenos capazes de auto-regular e estender as funções fisiológicas

do conjunto para novos ambientes.

Associadas com as promessas das tecnologias biônicas, o ciborgue proposto

por Clynes e Kline tornou-se imagem da transposição dos limites humanos e figura

emblemática dessa “nova ordem do real” baseada na cibernética. O termo “bionics”

foi cunhado pelo Major Jack Steele da Força Aérea Americana em 1958 e

popularizado no primeiro “Bionics Symposium”, em 1960. Segundo Steele (Gray,

1995, p. 62), o termo surgiu da palavra grega “bion” – “unidade de vida em oposição à

‘morphon’ com ênfase na forma” – acrescida do sufixo “ics”, utilizada amplamente

para denominação de áreas de conhecimento ou outras atividades como

“mathematics” ou “athletics”. Ao contrário de apenas buscar a imitação da aparência e

de funcionamento de sistemas biológicos, como ocorre com a bio-mimética em geral,

a biônica é um processo de design. Para Steele (Gray, 1995, p. 62), a “biônica é a

disciplina que utiliza princípios derivados de sistemas vivos na solução de problemas

de design” e sua especificidade está em um método que sistematiza a análise

biológica, a formalização matemática e a síntese da engenharia:

“Tendo selecionado um problema, o sistema biológico e os processos

responsáveis pela sua solução são analisados. A informação é formalizada ou

descrita matematicamente e aplicada à solução do problema de engenharia. Esta

é a análise, formalização e síntese representada no símbolo biônico” (Steele,

1995, p. 58).

Em 1972, sob influência dos discursos científicos do ciborgue e da biônica,

Martin Caidin publicou a ficção científica Cyborg, um dos primeiros produtos literários

a tratar da artificialização do corpo como forma de superar os limites humanos. O livro

conta a história de um piloto de testes da Força Aérea americana, Steve Austin, que

após um grave acidente, é reconstruído com partes biônicas pelo laboratório

cibernético do Dr. Killian:

“(...) para transformar a carcaça de um humano mutilado não apenas em um

novo homem, mas em um tipo totalmente novo de homem. Uma nova raça. Um

casamento da biônica (biologia aplicada à engenharia de sistemas eletrônicos) e

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cibernética. Um organismo cibernético. Chame-o de ciborgue...”21 (Caidin,

1972, p. 55-56 apud Abbate, 1999)

O ciborgue que Caidin legou para a cultura de massas é produto de uma

biônica reinventada que, sob a inspiração da idéia de Clynes e Kline, torna-se o meio

de superar a natureza humana com o acoplamento de máquinas melhores que os

sistemas biológicos que elas substituem. A história do homem biônico Steve Austin

ganhou notoriedade com a famosa série de TV intitulada The Six Million Dollar Man

(“O Homem de Seis Milhões de Dólares”) veiculada na década de 1970 (Abbate,

1999) e a figura do homem-biônico cujo corpo natural é melhorado com o

acoplamento de máquinas vem, desde então, sendo reproduzida à exaustão.

Como nos lembra Pyle (2000, p.125), “quando fazemos ciborgues – ao

menos quando os fazemos nos filmes – também fazemos e, nessa ocasião,

desfazemos nossas concepções sobre nós mesmos”. O ciborgue é, antes de tudo,

um homem que se dispõe em fragmentos, como nas pranchas de Vesálio, para os

quais se abre a possibilidade de substituição por produtos que tenham desempenho –

resistência, velocidade, força, durabilidade – melhor. The Six Million Dollar Man e

outros ciborgues imaginários anunciam a imagem de um homem “melhorado” com a

acoplagem da tecnologia e cada vez mais além das limitações ditadas pela natureza.

O ciborgue, seja ele imaginário ou não, é produto do pensamento utilitarista aplicado

sem limites (se é que há algum limite para esse tipo de pensamento) à fusão da carne

com o aço e o plástico: feita a concessão, que pode ser justificada por um acidente ou

não, a “performance” passa a ser a noção fundamental para a reformulação do ser

humano na direção do “pós-orgânico”.

Apesar de serem representações imaginárias, é certo que o homem pós-

orgânico só tem sentido a partir dos resultados socialmente concretos e promessas

palpáveis da ciência e da tecnologia, sem os quais o ciborgue não seria sequer

inteligível. Talvez o marca-passo cardíaco seja o primeiro marco, para o homem

comum, da dissolução efetiva das fronteiras entre organismo e artifício propostas pela

teoria cibernética.

Desenvolvido para pessoas cujo coração bate muito lentamente, o marca-

passos é, em essência, um dispositivo eletrônico que envia pulsos elétricos ritmados

21 No original: “(...) to create out of the mutilated human wreck not only a new man but a wholly new type of man. A new breed. A marriage of bionics (biology applied to electronic engineering systems) and cybernetics. A cybernetics organism. Call him cyborg...“.

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para o coração a fim de estimulá-lo a bater mais rapidamente. O primeiro marca-

passo foi apresentado em 1955. Desenvolvido por Paul Zoll, o PM-65 consistia de um

gerador de pulsos elétricos sobre o qual era montado um eletrocardiógrafo para a

monitoração do ritmo cardíaco. Apesar de manter o paciente vivo, o PM-5

transformava a pessoa em uma espécie de eletrodoméstico que precisa ficar

permanentemente ligado na tomada. Além disso, ele era tão grande e pesado que

requeria um carrinho (fig. 32). Em 1957, Walton Lillehei apresentou um modelo muito

menor (fig. 33), alimentado por baterias e que podia se amarrado ao corpo do

paciente, restituindo sua mobilidade. Finalmente, em 1958, apenas uma década após

a publicação de Cybernetics, começou a era na qual máquinas são acopladas

definitivamente ao homem para corrigir seus corpos defeituosos. Naquele ano, em

Estocolmo, Ake Senning implantou o marca-passo desenvolvido por Rune Elmqvist

no corpo de Arne Larsson, que viveu – após passar por praticamente todas as

gerações de marca-passos – até 2001, quando faleceu por motivos que não estavam

relacionados com o coração. O primeiro marca-passo implantado era, em contraste

com seus antecessores, um disco com 5,5 centímetros de diâmetro com 1,6

centímetro de espessura e possuía autonomia de 12 a 18 meses (fig. 34).

Figura 32

Figura 33

Figura 34

A busca por dispositivos que corrijam corações defeituosos ou mesmo que

venham a substituí-los completamente é exemplar. A implantação de marca-passos

tornou-se rapidamente um procedimento corriqueiro e eles passaram a ser, de fato,

cibernéticos ainda nos anos 60, quando incorporaram mecanismos de feedback:

sensores capazes perceber quando o coração bate por conta própria ou quando

precisa de ajuda externa. Desde os anos 70, os marca-passos são dispositivos que

podem ser programados externamente por rádio, dispensando a intervenção cirúrgica

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para esse procedimento e, a partir dos anos 90, eles passaram a ser pequenos

computadores programados para reagir a diversas circunstâncias cardíacas. Marca-

passos que também monitoram e gravam o histórico da atividade cardíaca do

paciente tornar-se-ão comuns.

A história de sucesso do marca-passo – a do pequeno dispositivo que auxilia

o órgão deficiente – se contrapõe à menos bem sucedida busca por um artefato

capaz de substituir integralmente o coração. Em 1969, Denton Cooley, do Texas

Heart Institute, conectou, pela primeira vez, um primeiro coração artificial ao ser

humano como procedimento de emergência. O paciente sobreviveu por 55 horas

ligado ao coração artificial até que recebesse um coração humano. Mas foi somente

mais de uma década depois, em 1982, que um ser humano teve um coração artificial

implantado em seu corpo. No Centro Médico da Universidade de Utah, William De

Vries implantou em Barney Clark um coração modelo Jarvik-7, transformando-o

imediatamente em espetáculo. Clark, o protótipo de uma nova era, atraiu a fascinação

da mídia. Relatórios quase que diários sobre o estado de saúde de Clark foram

publicados ao longo dos 112 dias até sua morte por falência múltipla dos órgãos. Diz-

se até que repórteres tentavam entrar na UTI escondidos nos “cestos de roupa da

lavanderia, ou disfarçados de médicos” (Ditlea, 2002, p.36).

O Jarvik-7 era implantado na caixa torácica, porém permanecia ligado por

tubos a um compressor de ar externo, trazendo os mesmos problemas dos primeiros

marca-passos externos: falta de mobilidade e um canal de entrada para infecções.

Descobriu-se também que a descontinuidade das superfícies do Jarvik-7 propiciava a

formação de trombos e coágulos, capazes de provocar derrames. De Vries implantou

ainda o Jarvik-7 em mais 3 pacientes que sobreviveram por 620, 480 e 10 dias. A

experiência demonstrou, contudo, que o preço da sobrevida era altíssimo em termos

de qualidade. William Schroeder, o paciente que viveu por mais tempo com o Jarvik-

7, sofreu derrames, febres, infecção e passou um ano sendo alimentado através de

tubo (Ditlea, 2002, p.38). O procedimento ainda foi testado em outros hospitais e com

outras versões derivadas do Jarvik-7, mas a idéia foi abandonada pela maioria dos

médicos e a imagem do moribundo-biônico, apesar do estardalhaço da mídia,

também foi apagada da memória coletiva.

Apesar dos enormes riscos envolvidos e dos sucessivos fracassos, o sonho

de se construir um ser humano no qual zune um coração totalmente artificial continua.

Ao contrário de seus antecessores da década de 1980 o coração modelo AbioCor,

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fabricado pela Abiomed, é uma máquina totalmente implantável. A idéia e a imagem

do AbioCor certamente são fascinantes. Confrontado ao seu equivalente orgânico

(Figs. 35 e 37), ele tem a vantagem de ser virtualmente inesgotável e independente

dos fatores de rejeição, orgânicos e simbólicos. Sem possuir tubos ou fios externos –

mesmo a energia elétrica é passada pela superfície da pele, por indução

eletromagnética, para uma bateria implantada no abdômen do paciente – o AbioCor

também não estigmatiza os pacientes como seus antecessores. Em testes desde

julho de 2001, o AbioCor é, sem dúvida, uma evolução, mas ainda possui problemas

que o impedem de ser considerado um sucesso.

Talvez a principal diferença entre o Jarvik-7 e o AbioCor seja a forma mais

reservada com a qual o segundo vem sendo tratado pela mídia, o que se deve, em

parte à divulgação limitada das experiências clínicas. A imagem do moribundo-biônico

não voltou à tona apesar dos problemas relacionados à formação de coágulos

persistirem – o que implica no uso de drogas anticoagulantes incompatíveis com a

saúde dos receptores, provocando eventualmente hemorragias fatais – e sabe-se, o

AbioCor requer a remoção do original sem fornecer uma solução definitiva.

Em resposta às críticas acerca dos problemas que seus protótipos têm

apresentado, o fundador da Abiomed, David Lederman, afirmou que “o coração

artificial continuou funcionando em situações que poderiam ter lesado ou destruído

um coração natural, como insuficiência de oxigênio no sangue e uma febre de 41,5º

C” (Ditlea, 2002, p. 39). Da perspectiva de Lederman, o ponto não é apenas se o

AbioCor um dia substituirá ou não o coração humano, mas que, apesar das

inconveniências apresentadas, o coração artificial já aponta para a superioridade da

cópia em relação ao original em alguns aspectos. Esse elogio à máquina é aderente

ao discurso geral que se escora na condição de saúde dos candidatos, tão precária

que os torna inaptos ao transplante. Frente às adversidades encontradas nos testes,

tanto médicos como os representantes da Abiomed tendem a supor que não é o

AbioCor que funciona mal, mas que é o corpo em volta dele que não funciona (c.f.

Ditlea, 2002, p. 38). Não é a toa que insinuem surpresa diante de um coração-biônico

que continue a funcionar em um ambiente tão deteriorado.

Mesmo a comunidade científica se divide em relação à substituição do

coração por uma máquina. Robert Jarvik, o criador do Jarvik-7, confessa:

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Extirpar completamente o coração não é uma boa idéia na prática (...). Em 1982

não se sabia que o coração pode melhorar muito se você o ajudar em certas

doenças comuns. É por isso que você só deve tirar o coração nas situações mais

extremas (Ditlea, 2002, p.43).

Jarvik se refere ao acoplamento de bombas auxiliares no coração,

conhecidas como “aparelho de assistência ao ventrículo esquerdo”. Conectados ao

coração, essas pequenas bombas aliviam e complementam o trabalho do coração

doente e, em alguns casos, promovem a regeneração do tecido cardíaco. Em

contraste com os dispositivos que visam auxiliar e recuperar o tecido original, a

obsessão pelo coração de titânio e plástico – e mesmo a forma como ele é exibido na

mídia, uma máquina cristalina e sempre dissociada do corpo – manifesta uma

incômoda postura onde a cura é apenas um detalhe do processo de mecanização do

corpo cujo fim é a ampliação de seus limites naturais.

Nessa perspectiva, recuperar a condição original do corpo não passa de uma

etapa na evolução do ciborgue. De certa forma é o que está acontecendo no campo

das próteses para portadores de deficiência física, onde estão aqueles que são vistos

e aceitos pela sociedade como os primeiros ciborgues a materializarem o que era, há

uma década, apenas imaginação. À semelhança do que o Dr. Kirlian disse a respeito

de Steve Austin no romance Cyborg, uma reportagem sobre o assunto anunciava,

ainda em 1999: “Quase melhor que o original” (Dias, 1999). A maior estrela da

reportagem era Tony Volpentest (fig. 36), um dos para-atletas que levou para a mídia

as próteses especiais de competição e que fez fama por mostrar que não só podia

ultrapassar, e em muito, as pessoas comuns como chegar próximo do recorde

mundial olímpico:

Tony Volpentest inspira admiração e, quem sabe, até despeito. Munido de duas

pernas mecânicas, o atleta americano, de 26 anos, faz 100 metros rasos em

impressionantes 11 segundos e 36 centésimos de segundo - apenas um segundo

e meio atrás do recordista mundial, o canadense Donovan Bailey, que nasceu

com tudo no lugar. Medalha de ouro nos Jogos Paraolímpicos de Atlanta, em

1996, Tony veio ao mundo sem os pés e sem as mãos (Dias, 1999, p. 136).

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No ano anterior, em setembro de 1998, a revista Dazed and Confused trouxe

na capa a imagem que lembra a de uma sereia cujo rabo de peixe foi trocado por um

par de próteses de competição (fig. 39). Nua da cintura para cima e acoplada a

próteses de alto desempenho, mais do que as limitações reais impostas pela

deficiência a foto de Aimée Mullins confronta o estigma tradicionalmente associado à

deficiência física. “Fashionable?”, insinua a capa da revista. Aimée Mullins amputou

as pernas abaixo do joelho quando tinha um ano de idade, o que não a impediu de se

tornar um destaque no esporte. Chegou a competir com pessoas não-deficientes em

alguns eventos e consagrou-se como para-atleta olímpica. Porém tornou-se mais

famosa ainda por instigar nosso olhar com estranhamento e fascinação ao participar

de desfiles de moda e posar para revistas e anúncios publicitários onde o estigma da

deficiência física é ostensivamente contraposto a sensualidade e beleza de outras

partes do seu corpo.

O estigma do portador de deficiência física decorre da incompatibilidade entre

o seu corpo e os modelos sociais aos quais ele não se conforma. Mais do que

portador de deficiência física, o estigmatizado possui um atributo “desviante” que se

impõe a todos os demais atributos “normais”, destruindo as possibilidades de

relacionamento simétrico e igual entre quem possui o estigma e quem não o possui

(cf. Goffman,1988, p.13-14). Além disso, poderíamos acrescentar, na medida em que

o estigma marca seu portador como alguém que não é completamente humano

(Goffman, 1988, p.15), reafirma, por oposição, a normalidade de quem não o possui.

As fotos de Aimée Mullins (figs. 38-40) ameaçam justamente a noção de

“normalidade” sobre a qual está ancorada a percepção do que é socialmente o corpo

humano. Elas não incomodam porque ela é bela e apareça seminua ou de lingerie

exibindo seu corpo bem torneado apesar de portar uma deficiência física visível. Elas

incomodam porque ela é atraente mesmo possuindo esta deficiência que é,

normalmente, um estigma e, certamente, as fotografias não teriam o mesmo apelo se

ela estivesse de muletas e pernas de pau. A forma pela qual a mídia exibe os corpos

dos para-atletas não deixa de ser um tipo de espetacularização do estranho, mas

diferente daqueles que eram exibidos em freak shows e circos de aberrações ao lado

de garrafas com fetos mal-formados e bezerros de duas cabeças.

É porque nossa relação frente à correção do corpo está mudando que

podemos olhar para as fotos de Mullins e perceber que há outros atributos em seu

corpo além daquilo que, em outras circunstâncias, apenas estigmatizaria. A imagem

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do para-atleta transcende a estigma do corpo incompleto, ao qual falta um pedaço,

justamente porque ele se conforma a uma outra noção de corpo, o corpo-máquina

melhorado pela tecnologia e, nesse sentido, algo sobre-humano ao qual não se aplica

a noção convencional de corpo. A existência do corpo mutilado, porém corrigido pela

tecnologia, afeta diretamente a normalidade que deveria ser reafirmada pelo corpo

estigmatizado: ao mesmo tempo em que é inegavelmente um corpo mutilado, seu

desempenho não confirma a inferioridade que deveria acompanhar o estigma e mais,

indicam a inferioridade do ser humano “normal”, cujo desempenho é muito menor em

uma pista de corridas. Além disso, parte da fascinação deve-se à encarnação em

seres humanos da perspectiva do “culto ao fragmento” que se aplicava apenas às

estátuas e estudos de anatomia. Não só aceitamos com certa facilidade um corpo no

qual partes faltantes convivem com partes sobressalentes e sobre-humanas, como

permitimo-nos, ainda que com surpresa consternada, perceber nas demais partes

atributos que suscitam empatia e mesmo o desejo.

Volpentest e Mullins são pioneiros de uma tendência que se confirma. Uma

recente matéria jornalística (Marriot, 2005) intitulada “Prótese hi-tech é motivo de

orgulho” diz: “Jovem amputado exibe em público suas pernas e braço mecânicos e

torna-se exemplo de uma nova tendência”. Esse jovem é Cameron Clapp (fig. 41),

que perdeu, aos 15 anos, ambas as pernas e um dos braços ao dormir bêbado sobre

trilhos e ser atropelado por um trem. Ao contrário dos portadores de deficiência física

de outras épocas, preocupados em disfarçar ou esconder o estigma mais do que

superar a deficiência, Clapp faz parte do grupo de pessoas que, não satisfeitas em

apenas exibir suas próteses tecnológicas, as decoram para destacá-las mais ainda:

suas pernas de competição são decoradas com camuflagem verde.

O orgulho de Clapp e de tantos outros usuários de produtos da Ossur, Otto

Bock Health Care, Hanger Orthopedic Group e outras empresas deriva, certamente,

da força de vontade e determinação de superar situações adversas, inclusive o

estigma de portar uma deficiência física. Mas, como admite Clapp, a tecnologia está a

seu favor: “Tenho motivação e auto-estima, mas talvez encarasse a minha situação

de forma diferente se a tecnologia não estivesse, cada vez mais, do meu lado”.

Ao contrário de Barney Clark e outros que incorporaram a imagem do

moribundo-biônico, os para-atletas são celebrados pela mídia, como a antecipação do

futuro no qual a tecnologia não só recuperará a funcionalidade do corpo mas também

ampliará o seu desempenho. Atingir o desempenho desejado – que não

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necessariamente é o do corpo fornecido pela natureza – manifesta um discurso

estritamente ciberneticista e sustenta novas posturas frente ao próprio corpo objeto

da reconstrução. Essa nova postura liberou a tecnologia para saltos fantásticos que

se materializam em dispositivos biônicos de alto desempenho que assumem o design

dinamizado, matematizado e geometrizado da máquina, despreocupados com a

morfologia da parte humana que substituem. O mundo das novas próteses não é

mais limitado pela imitação caricata do corpo humano, mas determinado por

requisitos de funcionalidade e desempenho, cuja solução nem sempre aponta para o

mesmo desenho do órgão ou membro original. Assim, as próteses biônicas não mais

preocupadas em reproduzir a imagem do órgão faltante, apontam para um futuro

onde os limites humanos – não só os impostos àqueles cuja natureza do corpo foi

mutilada, por nascença ou acidente – podem ser superados pela manipulação

artificial do corpo. No discurso da mídia e da propaganda, onde exibem

ostensivamente o seu corpo híbrido, os para-atletas corredores materializam hoje as

aspirações do futuro do corpo pós-humano, do homem redesenhado para uma

“melhor performance”.

É claro que próteses caríssimas, que podem chegar a US$ 40 mil cada

membro, determinam diferentes possibilidades para que é rico e para quem é pobre,

caso você não seja um para-atleta financiado pelas indústrias. Os para-atletas, além

de serem excelentes laboratórios de testes onde as máquinas são levadas ao limite,

também proporcionam imagens espetaculares, de corpos vigorosos e musculosos

que são, no jogo da mídia, associados aos seus produtos. O conjunto homem-

máquina dos para-atletas sintetiza uma imagem de vitória na pista e na vida. O que

antigamente era estigma, hoje é vitrine para exposição das marcas que competem

pelo mercado de pernas e braços artificiais: os “pés” de Clapp e o braço de Aron

Ralston22 – que posa na foto com Clapp (fig. 42) em um duplo aperto de mão, um

orgânico e outro mecânico – ostentam a marca de seu patrocinador.

É fato que o espetáculo funciona melhor quando pode mostrar os portadores

de deficiência física lidando com situações tão bem – às vezes melhor – quanto

aqueles que não as portam. Essas imagens não fragmentam apenas o corpo,

também fragmentam a realidade social e mostram apenas o que pode valorizar o

22 Aron Ralston é famoso por ter decepado o próprio braço após um acidente no qual uma rocha esmagou sua mão em 2003. Ele ficou preso durante 5 dias em um cânion do Colorado até que quebrasse os ossos do braço e cortasse a carne com um canivete cego. Após se libertar da rocha, Ralston ainda teve que descer pelo cânion e andar vários quilômetros pelo deserto até ser encontrado.

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produto. Daí serem os para-atletas, e de modalidades específicas de deficiência, que

são exibidos e se exibem. Algumas modalidades de deficiência, mesmo que

assistidas pelas mais recentes tecnologias, não fornecem um espetáculo hi-tech e

estigmatizam duplamente seu portador: como mutilado e como protótipo mal

resolvido. É o caso de Jesse Sullivan (fig. 43 e 44), que sofreu amputação de ambos

braços na altura dos ombros após um acidente com eletricidade. Ele ganhou certa

notoriedade porque um de seus braços mecânicos foi substituído por outro que pode

ser controlado diretamente pelos impulsos elétricos dos músculos que ainda possui

na região do ombro. Apesar de ser um grande avanço tecnológico, o novo braço de

Jesse Sullivan ainda é uma geringonça cibernética desajeitada e, acima de tudo, não

possui design atraente. O conjunto mecânico pendurado nos ombros de um senhor

mutilado certamente é melhor que nada, mas além de ser pouco atraente e pouco

funcional, ele ratifica a deficiência do corpo de Sullivan. Ao contrário das pernas dos

para-atletas o braço de Sullivan não é um produto acabado.

Contudo, é provável que seja só uma questão de tempo para que os futuros

Jesse Sullivans possam realizar a ficção do “Six million dollar man” de Caidin e dêem

continuidade ao espetáculo onde as atuais vedetes são os para-atletas. É um

espetáculo cada vez mais exaltado pela mídia, mas que só adquiriu essa dimensão

atual porque as indústrias de próteses gastam fortunas patrocinando grandes equipes

de para-atletas para que estes usem seus produtos e ostentem as suas logomarcas.

Algumas competições de para-atletismo são tanto uma vitrine de corpos glamourosos

acoplados a próteses reluzentes como pistas de provas onde conceitos e produtos de

alta tecnologia são testados por ciborgues de competição antes de serem

transformados em produtos de consumo. Como acontece na Fórmula I.

Engendrados na lógica do consumo, já é possível encontrar catálogos e

prospectos de próteses que não são mais desenhadas para o médico ou

fisioterapeuta, mas para o usuário final. Como uma peça de bicicleta ou acessório de

carro, podemos escolher o “joelho” de nossa preferência no site da Ossur (fig. 45).

Todos são apresentados como produtos duráveis, com ruído reduzido e com garantia

de dois anos. Oferecido em quatro modelos, pode-se escolher o “Total Knee 1900”,

caso você tenha um “estilo de vida pouco ativo” ou o “Total Knee 2100”, desenhado

para “estilos de vida ativos” – com níveis extremos de impacto, trabalho pesado e

esportes – e para suportar adultos com mais de 125 quilos. Há também um joelho

cujo metal ganhou cores alegres para satisfazer o público infantil, é o “Total Knee

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Junior”, que aparece em um prospecto decorado com um par de alegres mascotes

dançando. Certamente, o “Total Knee” é uma prótese para ser exibida desde criança.

Para a criança há ainda uma “junior solution from Ossur” (fig. 46) que fornece uma

perna inteira para a criança amputada acima do joelho, com o “total knee” já incluso.

“It’s playtime”, diz o prospecto em letras coloridas.

Uma solução inteira é o que também promete a “Hanger Complete System”

(fig. 47), cujo maior diferencial é o joelho hidráulico controlado por micro processador.

Na home-page da Hanger Orthopedic Group pequenos filmes aleatórios são exibidos

para mostrar como a “vida pode ser normal” com os produtos da Hanger (fig. 48).

Nada indica, no começo do filme, que o simpático senhor de bermudas em plano

americano que vemos rebolando e dançando com desenvoltura use uma Hanger

Complete System. Ao longo desse e de outros pequenos filmes, as tomadas

enfatizam os movimentos naturais que o usuário da Hanger Complete System pode

fazer, lançar uma bola de futebol americano e não deixar nada a desejar para o seu

par feminino, inclusive. O braço mecânico, por sua vez, tem presença

significativamente menor – aparecendo em um filme onde seu usuário liga e opera

um aparador de grama – talvez pelo conjunto menor de situações onde uma mão

mecânica possa executar com naturalidade o que uma mão humana faz.

O concorrente da Hanger, anuncia seu joelho biônico, o Rheo Knee, como:

Uma revolução baseada em um sonho de atingir a pura fisiologia. Função sem

limitação. A revolução é biônica, fundada sobre a interdisciplinaridade e fusão

precisa da eletrônica, mecânica e fisiologia humana.

Ao lado, uma grande foto do Rheo Knee (fig. 49) sintetiza a poética do

fragmento do corpo, agora biônico. A máquina humaniza-se nos testemunhos

ilustrados que mostram Julie Greder (fig. 50) – “o Rheo Knee faz parecer que minha

perna anda por mim” – e Gil Moncrief (fig. 51) – “pela primeira vez na minha vida, eu

tenho uma tremenda sensação (...) de confiança no próprio joelho” – caminhando

com naturalidade.

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Inserida na lógica do consumo, as propagandas de próteses high-techs

prometem restaurar uma naturalidade que nem sempre é real, mesmo em termos de

funcionalidade, e omitem as circunstâncias nas quais elas não são adequadas. O

quanto a mão mecânica que manuseia tão naturalmente o cortador de grama

consegue fazer a higiene pessoal no banheiro? As próteses high-tech têm mostrado

maior eficiência justamente porque elas são desenhadas para determinados fins e

não são, ainda, versáteis e flexíveis como a parte original que substituem. Um

portador de deficiência que pratique para-atletismo costuma ter três modelos de

pernas, em quantidades variadas.

A imagem social que fazemos dos atuais ciborgues traduz uma nova postura

em relação ao corpo, cada vez mais relacionada com o desempenho desejado (essa

noção tão cibernética). As imagens que exaltam os corpos híbridos dos portadores de

próteses biônicas materializam hoje as aspirações do futuro do corpo pós-orgânico, o

homem redesenhado e reconstruído para um “melhor desempenho”. Mas os

ciborgues que emergem da fusão do corpo mutilado com a tecnologia biônica são

apenas um extremo de um processo social mais amplo de objetivação do corpo, onde

ele pode ser disposto como um tipo de acessório, mesmo que a pessoa não possua

partes mecânicas.

O corpo ideal do “body building” – atlético, sexy e clean – tão em moda

atualmente, é um reflexo cotidiano do mesmo pensamento cibernético que objetiva o

corpo como um artefato. Na medida em que a máquina torna-se, de fato, a unidade

de medida do homem, uma nova postura estética do corpo toma forma, na qual o que

é belo materializa-se na modelagem desse corpo como a encarnação do

desempenho, forjado e trabalhado como uma máquina. Le Breton (2003, p. 40-43)

nota que o corpo do body builder é uma “fortaleza de músculos inúteis em sua

função, pois para ele não se trata de exercer uma atividade física em um canteiro de

obras ou trabalhar como lenhador em uma floresta canadense”. Contudo é um corpo

que exalta a estética do desempenho, transformando “o corpo em uma espécie de

máquina, versão viva do andróide”.

Produto da mentalidade que vê o corpo de forma fragmentária,

o body building é um hino aos músculos, um virar o corpo do avesso sem

esfoladura, pois as estruturas musculares são tão visíveis sob a pele viva dos

praticantes quanto nas pranchas de Vesálio. (...) Peça por peça, o body builder

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constrói seu corpo à maneira de um anatomista meticuloso preso apenas à

aparência subcutânea.

Até mesmo o vocabulário fica marcado pela analogia do corpo com a

potência mecânica: uma pessoa é “uma máquina”, está “bombada” ou é um “avião”. A

ideologia do desempenho transforma-se em obsessão por massa muscular e a

alimentação é reduzida a “pura matéria para fabricar músculos”, baseada “em um

cálculo científico da soma de proteínas a serem absorvidas”. Daí a noção afetada de

pureza na qual comer um torresmo ou fumar um cigarro são atos relativamente mais

impuros do que ingerir complementos alimentares sintéticos ou injetar esteróides

artificiais.

Na perspectiva da “estética do desempenho”, no imaginário que coloca o

corpo no mesmo patamar da máquina, os equipamentos de musculação, os

programas planejados de modelagem muscular, as próteses estéticas, as técnicas

cirúrgicas de lipoaspiração, a toxina botulínica (Botox), os anabolizantes e os

complementos alimentares são apenas meios que a tecnologia disponibiliza para se

atingir e antecipar a imagem do corpo de alto desempenho, a imagem do ciborgue.

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III. O REALISMO ESPETACULAR

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III.1. O contexto da sociedade de massas

Na sua análise da sociedade americana, Mills nota que a ascensão da

sociedade de massas, é concomitante com o declínio do que ele chamou de

“comunidades de públicos” (1968, p.354). Ele associa a primeira com a

industrialização desenfreada de todos os aspectos da sociedade e a segunda ao

liberalismo político dominante do período pré-capitalista. Nesse processo de

“massificação” da sociedade, ainda que seja a referência ideológica, o indivíduo é

reduzido a mero fragmento da “massa” coletiva, “substituído pelas formas coletivas de

vida econômica e política” nas quais passaram a predominar, dentre outras coisas, as

“decisões dos peritos nos assuntos complicados” e o “apelo irracional ao cidadão”. De

forma muito similar à oposição comunidade-sociedade de Tönnies23, a tipologia de

Mills (1968, p.354-357) opõe a “sociedade de massa” à “comunidade de públicos”. Ele

observa, contudo, que tanto “sociedade de massa” como “comunidade de público”

devem ser entendidos como tipos extremos – elaborações que indicam certas

características da realidade – e que se encontram combinadas na realidade social,

com a exacerbação de um tipo em detrimento de outro. Para Mills, na “comunidade

de públicos” há uma proporção entre os grupos que formam opiniões e aqueles que

as recebem, enquanto a sociedade de massas é fundamentada na desproporção

entre um grupo e outro de forma que “o número de pessoas que expressam opiniões

é muito menor que o número de pessoas para recebê-las”. Aqui a imagem

emblemática é aquela na qual há o “porta-voz que fala, impessoalmente, através de

uma rede de comunicações, a milhões de ouvintes”. Nessa perspectiva, a

comunicação em uma sociedade de massas caracteriza-se pela assimetria baseada

na concentração dos veículos em poucas instituições, frente às quais os indivíduos,

praticamente não possuem poder de resposta ou autonomia. Essa passividade se

realiza no mercado da diversão com torrentes de produtos de entretenimento

oferecidos em formas de prazer prontamente consumíveis, engendrando um

processo de mecanização do lazer justamente para aqueles que querem “escapar do

23 “Em teoria, a sociedade consiste em um grupo humano que vive e habita lado a lado de modo pacífico, como na comunidade, mas, ao contrário desta, seus componentes não estão ligados organicamente, mas organicamente separados. Enquanto, na comunidade, os homens permanecem essencialmente unidos, a despeito de tudo o que os separa, na sociedade eles estão essencialmente separados, apesar de tudo o que os une” (Tönnies, 1995, p.252).

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processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo”

(Adorno; Horkheimer, 1985, p.131).

Em certo sentido, a sociedade de massas possui especificidades culturais

que a diferenciam das “sociedades tradicionais”, em particular no que tange à

produção cultural, realizada em larga escala. Para Adorno e Horkheimer (1985) esse

tipo de produção cultural destinada às massas é o que chamam de “indústria cultural”.

Em essência, a indústria cultural é a indústria da diversão e do entretenimento que

alia o espetáculo e o consumo, potencializados pelas tecnologias de reprodutibilidade

mecânica. E Morin (1962, p.16-17), por sua vez, crê mesmo que há uma cultura

própria ligada à sociedade de massas, uma “cultura de massas” produzida “segundo

as normas maciças da fabricação industrial; propagada pelas técnicas de difusão

maciça (...); destinando-se a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de

indivíduos da sociedade”. Para ele, essa cultura, como qualquer cultura, entra em

concorrência com outras culturas e apresenta “um corpo de símbolos, mitos e

imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e

de identificações específicas”.

A indústria cultural não visa apenas a produção e o consumo das

mercadorias culturais mas também inculca – por meio delas – o consumo de produtos

reais e sua eficácia fundamenta-se, em grande parte, na identificação do sujeito com

o espetáculo e com o espetacular. É um consumo tanto do imaginário como do real,

da imagem do personagem que nos causa empatia como do cigarro que ele fuma ou

a roupa que ele veste. Nas telas do cinema, por exemplo, o ordinário e prosaico se

tornam espetaculares, e nas modas de consumo lançadas pelas vedetes, as

mercadorias reais contaminam-se do espetacular. Em grande parte, a cultura de

massas é resultado dessa aliança entre o espetáculo e o consumo: o espetáculo

como mercadoria e a espetacularização do consumo. Daí o papel preponderante do

imaginário na sociedade de massas. De acordo com Morin (1962, p.81 e p.176), a

“característica mais marcante da cultura de massas é a proximidade entre o

imaginário e o real” de forma que é pela união estética entre a realidade ordinária ao

imaginário espetacular que a cultura de massas presta-se tanto como mercadoria em

si como instrumento para o consumo dirigido de outras mercadorias:

Nas sociedades ocidentais esse desenvolvimento do consumo imaginário

provoca um aumento da procura real, das necessidades reais (elas mesmas cada

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vez mais embebidas do imaginário, como as necessidades de padrão social,

luxo, prestígio); o crescimento econômico caminha num sentido que teria

parecido incrível há um século atrás: realizar o imaginário. Ainda há mais: é a

própria vida, pelo menos a um certo nível médio entre dois limiares variáveis,

que se consome mais e sob o efeito da cultura de massa. As participações

imaginárias e as participações na vida real, longe de se excluírem, se

compatibilizam.

Certamente a cultura de massas está marcada pela efemeridade de estilos e

modas decorrente, em grande parte, da obsolescência planejada e do curto ciclo de

vida das mercadorias. Contudo, a cultura de massas não é um simples porta-voz da

ideologia dominante e extensão mecânica da estrutura de reprodução do capital. Se

por um lado, como nos lembram Adorno e Horkheimer (1985, p.127), há uma

dependência entre as “inovações e aperfeiçoamentos da produção em massa” e a

capacidade da cultura de massa se inovar, por outro, não podemos reduzir a segunda

a uma mera conseqüência da primeira, visto que as conseqüências proporcionadas

pela evolução tecnológica possuem, sempre, conseqüências imprevisíveis. É certo

que, por exemplo, exista uma relação causal entre a evolução tecnológica das

câmeras de vídeo e a inovação dos programas de televisão. A tecnologia de

produção de câmeras de vídeo teve tal barateamento que elas deixaram de ser

apenas bens de capital, restritos às grandes emissoras, e invadiram o mercado de

consumo na forma de um bem acessível às classes médias de todo o mundo. Com

isso surgiram novos tipos de produtos televisivos baseados nas – atualmente já

famosas – cenas do “cinegrafista amador” que se desdobraram basicamente em

programas que justapõem os fragmentos espetaculares da “vida como ela é” e em

programas que incorporam o “vídeo amador” como meio estético e narrativo capaz de

dar mais “credibilidade” à cena assim produzida. Há certamente uma dependência

entre o mercado de câmeras de vídeo e o surgimento de novos tipos de produtos

culturais, mas não é possível afirmar que a renovação dos produtos televisivos e o

novo mercado de compilações temáticas tais como as “pegadinhas”,

“videocassetadas” ou séries como “The World's Most Amazing Videos” são meras

conseqüências da inovação tecnológica e da lógica de mercado. Perde-se nessa

redução o aspecto cultural do fenômeno.

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A transformação de cada um de nós em um cameraman em potencial não

ocorre simplesmente porque temos acesso à câmera, mas porque o vídeo vernacular

surge no contexto de uma modernidade que há muito incorporou o culto à imagem. É

mero truísmo dizer que sem o desenvolvimento de câmeras de vídeo melhores,

menores e mais baratas não teríamos a enxurrada de vídeos amadores que temos

hoje. Mais importante do que isso é observar que a câmera de vídeo doméstica

surgiu em um contexto social no qual vários mecanismos de produção e consumo da

imagem já estavam disseminados e o registro de imagens por meio de câmeras

fotográficas e, mais raramente, por meio de câmeras super 8mm já constituíam uma

espécie de rito em determinadas situações sociais. As câmeras de vídeo, por sua

vez, superaram as limitações técnicas que tornavam difíceis, caros e breves os

registros de imagens em movimento (como ocorria com o super 8mm), tornando

prosaica a captura de horas e horas de filmes. Um vídeo doméstico surge

simplesmente apertando-se o gatilho e mediando o olho e o mundo por meio da

câmera enquanto ela roda.

Não há dúvidas de que a câmera de vídeo doméstica é, na maior parte das

vezes, uma máquina de vulgarização serial da imagem, usada compulsivamente

como meio de satisfazer a obsessiva necessidade de “não se perder nada”. Frente à

efemeridade da vida, a câmera de vídeo fornece a ilusão de que é possível capturar a

totalidade de uma dada realidade – imagem com som e movimento – para revivê-la

quantas vezes quisermos, exacerbando o processo de substituição da experiência

pela imagem inaugurada pela fotografia. Em outras palavras, não se vive o fato para

poder registrá-lo em uma fita de vídeo que freqüentemente jamais é assistida.

Carrière (1995, p.194) chama esses vídeos de “pseudo-filmes” e comenta sobre os

vídeos de viagens:

A cada ano, milhares de homens e mulheres levam suas câmeras de vídeo para

as férias. Conservam-na junto ao rosto e assim eles mesmos nada vêem. (...)

E eles mesmo se esquecem de viajar. (...)

Deixar a câmera filmar significa não filmar mais. E ninguém vê esses pseudo-

filmes, nunca mais, nem mesmo os que os fizeram. Por uma razão: eles não têm

tempo de vê-los. E agora já é tarde para ver o mundo para o qual fecharam os

olhos, enquanto viajavam.

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E foi a partir da produção maciça desses pseudo-filmes, sucedâneos da

experiência, que obteve-se a matéria prima dos programas televisivos baseados em

cenas “reais”, tão comuns hoje em dia. Sem dúvida, isso influenciou o formato e a

linguagem da própria televisão, sendo a obra mais acabada dessa estética do “real”

os sofisticados e profissionalizados “reality shows”, que minimizam o acaso e

maximizam o espetáculo da vida real por meio da planificação social aplicada a um

ambiente “ideal” e totalmente monitorado.

A disseminação social do vídeo vernacular e seus desdobramentos na

indústria do entretenimento por todo o mundo são apenas um exemplo recente da

tendência cosmopolita e homogeneizadora – ainda que não ocorra necessariamente

tal como planejada – da sociedade de massas. É uma tendência inerente ao sistema

de produção industrial e freqüentemente disfarçada sob uma variedade limitada pela

“moda” e seus modelos de referência que são copiados pelas mercadorias da

indústria cultural. De acordo com Morin (1967, p.58-59), a indústria cultural multiplica,

“segundo suas próprias normas aquilo que vai buscar nas reservas de alta cultura”,

acompanhado de um processo de vulgarização que consiste de procedimentos de

“simplificação, maniqueização, atualização, modernização” para “para aclimatar as

obras de ‘alta cultura’ na cultura de massa”. Essa “aclimatação” se refere às

alterações que retiram “excessos” e introduzem “temas específicos da cultura de

massa, ausentes da obra original como, por exemplo, o happy end”, consideradas

necessárias para transformá-las em mercadorias facilmente consumíveis.

A repetição cega engendrada pela indústria cultural, segundo Adorno e

Horkheimer (1985, p.155-156), acaba por esvaziar a conexão dos termos

reproduzidos nas mercadorias culturais e a experiência. Para eles, a liberdade de

escolha nesse mundo homogêneo se resume a “escolher o que é sempre a mesma

coisa” e ter personalidade (“personality”) significa “pouco mais do que possuir dentes

deslumbrantemente brancos e estar livre do suor nas axilas e das emoções”. Assim, a

homogeneização da cultura de massas não é apenas a dos produtos culturais ou a

das mercadorias concretas que os primeiros promovem, mas também a das próprias

pessoas que, por meio do consumo, acabam por mimetizar os modelos e estereótipos

disseminados pela indústria cultural. A tendência homogeneizante da cultura de

massas atravessa as classes sociais, as distâncias geográficas e mesmo as faixas

etárias, sendo marcada emblematicamente pelo predomínio dos temas jovens – que

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não sabemos se se destinam para “crianças com caracteres pré-adultos” ou “adultos

acriançados” (Morin, 1962, p.41) – capazes de atrair audiências de 8 a 80 anos.

Homogeneizar não significa simplesmente eliminar a diversidade, significa,

muitas vezes, incorporá-la e, por vezes transformá-la em uma falsa variedade. Para

Morin (1967, p.37-39) na cultura de massas, há uma indissociável relação entre o

sincretismo e a homogeneização, tornando “euforicamente assimiláveis a um homem

médio ideal os mais diferentes conteúdos” e reunindo “sob um denominador comum a

diversidade de conteúdos”. Assim, ao lado da padronização há uma variedade –

mesmo que planejada – “que visa a satisfazer todos os interesses e gostos de modo

a obter o máximo de consumo”. Uma das manifestações mais evidentes do

sincretismo da cultura de massas é a tendência em unificar sob um mesmo prisma os

fatos informativos e os aspectos imaginários da vida cotidiana. A demanda pelo fato –

atendido pelo setor informativo da indústria cultural – não só privilegia “tudo que na

vida real se assemelha ao romanesco ou ao sonho” como também “as informações

que se revestem de elementos romanescos, freqüentemente inventados ou

imaginados pelos jornalistas” 24. Inversamente, a demanda pelo imaginário privilegia

as “intrigas romanescas que têm as aparências da realidade”.

Ainda que surgido em espaços sociais marginais, as apropriações culturais

da cibernética tornaram-se centrais na cultura de massas contemporânea,

transformados em vagos traços genéricos – simplificados, maniqueizados,

atualizados e modernizados – com pouca ou nenhuma conexão direta com a idéia

original. Como termo da cultura de massas, por exemplo, a cibernética não possui

nenhum vínculo com Wiener. Tornou-se um mero componente semântico apropriado

não só para dar sentido ao que antigamente era mesmo inominável, mas para

também valorizar, diferenciar e espetacularizar o banal.

São muitas as facetas do cibercultura na cultura de massas contemporânea.

No mundo do fato jornalístico, por exemplo, é inegável o fascínio que os crimes

praticados por computador provocam frente aos seus equivalentes não-cibernéticos.

Uma fraude feita pela Internet será mais atraente no noticiário do que uma fraude

feita por um falsário comum; uma gang de pixadores não tem como competir com um

vírus de computador em termos de audiência; e o que dizer da pedofilia que ganhou

24 Como observa Carrière (1995, p.160) acerca da necessidade de tornar a realidade prosaica mais interessante em um roteiro: “a realidade não é suficiente. O imaginário precisa introduzir-se na realidade, desfigurá-la, intensificá-la”.

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tanta visibilidade com o advento da Internet que parece até que surgiu com ela. Muito

do que era trivial tornou-se espetacular aos olhos do mercado do fato: cibercrimes,

comunidades virtuais, guerra cibernética, comércio eletrônico, pirataria cibernética. O

apelo cibernético é tão tentador que, se houver algum computador por perto do crime

– seja este um crime cibernético ou não – dir-se-á que o computador teve algo a ver.

Os próprios jornais “renovam” seu formato com imagens diretas do campo

transmitidas via Internet. Inaugurado na Guerra do Iraque, esse formato de cobertura

foi amplamente anunciado como uma inovação tecnológica para trazer as notícias na

velocidade do fato. Poderão dizer alguns que esse “diferencial competitivo” foi um

grande engodo que trocou a qualidade visual por uma variedade duvidosa de

imagens ao vivo que, de tão toscas, cada plano pouco acrescenta aos demais.

Aquelas tantas cenas parecidas do que nos diziam ser imagens de rastros luminosos

de balas e foguetes ou tanques em uma tempestade de areia no deserto do Iraque

marcaram uma estética na qual a qualidade da imagem perdeu a primazia para o

apelo à velocidade da informação. Nesse apelo, não importa que as imagens sejam

ruins – cenas tremidas, borradas, com bruscos congelamentos do movimento (a típica

queda do frame rate em transmissões via Internet) e mal-sincronizadas com o áudio –

mas que as imagens sejam produzidas e trafeguem pela “information highway”. O que

consumimos é uma espécie de “reality show” que nos dá a certeza de que se uma

pessoa explodir ou for atingida no campo – tanto mais sensacional se for o próprio

jornalista – o momento da sua morte poderá ser visto, praticamente no mesmo

instante, graças à cobertura cibernética, em qualquer lugar do planeta.

Da mesma forma que o “cibernético” sensacionaliza o noticiário do jantar, o

“cyber” também faz parte do sincretismo que articula a renovação real ou ilusória das

mercadorias e das promessas de uma vida espetacular. Em um mercado de consumo

fortemente pautado por imagens de “gadgets” exaltados nos programas de TV, nos

anúncios publicitários, nas reportagens de revistas e nos espetáculos

cinematográficos, há tempos consolidou-se um mercado específico de produtos

cibernéticos: computadores de mesa, notebooks, handhelds, celulares, videogames,

robôs de brinquedo, bichinhos virtuais (“tamagotchis” e afins), periféricos, acessórios

e complementos diversos. Objetos de desejo já consagrados – automóveis, veículos

aéreos, armas, casas, aviões, roupas – também são constantemente “renovados”

pela “cibernética” e o último “release” sempre está preparado para ser lançado nas

lojas mais próximas de nós.

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O raciocínio de agregar compulsivamente “melhorias”, “diferenciais” e

“exclusividades” a produtos já existentes a um custo mínimo, tornando mais rentável

e mais atraente um mesmo produto, é levado a limites, que outrora pareciam

absurdos, com as tecnologias cibernéticas. Se, na década de 60, a idéia de gadgets

que uniam as funcionalidades mais díspares em um objeto único – como o

“sapatofone” do Maxwell Smart, o agente 86 (ver figs. 52 e 53) – eram caricaturas

exageradas para comédias televisivas, a década de 90 mostrou que aquelas imagens

eram pouco perto daquilo que realmente estava por vir.

Figura 52

Figura 53

Figuras 52 e 53: Fotos do agente 86 e seu sapatofone. Do seriado “Get Smart”, veiculado nos EUA de 1965 à 1970.

Mesmo importantes figuras do mundo tecnológico têm criticado a compulsão

mútua que o culto ao gadget criou entre os produtores e consumidores de

mercadorias. Alan Cooper, considerado o pai do Visual Basic, em seu livro com o

título sugestivo de “The Inmates are Running the Asylum” (1999) nota que essa

tendência é particularmente perversa nos produtos computadorizados porque o

funcionamento destes é baseado em software. Ao contrário do que ocorre

necessariamente com novas funcionalidades ou acessórios de mercadorias físicas –

por exemplo, os bancos de couro, rodas de liga leve e o ar-condicionado de um

automóvel – existem funcionalidades que podem ser agregadas a um software

existente por custos praticamente marginais (cf. Cooper, 1999, p.27-29). Daí a

profusão de gadgets digitais que diversificam a mesma carcaça com a justaposição

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de uma variedade crescente de funções – nem sempre compatíveis – baseadas em

software, freqüentemente comprometendo a utilidade original com o acúmulo de cada

vez mais funções diferentes em um conjunto muito menos flexível de teclas e botões

físicos. Nicholas Negroponte (2000, p.94), um dos fundadores do Media Lab do

Massachusetts Institute of Technology, já comentava no começo em meados da

década de 90:

Os telefones celulares têm uma interface que consegue ser ainda pior que a dos

videocassetes. Um Bang & Olufsen [uma marca de produtos eletrônicos] é uma

escultura, não um aparelho telefônico – não é mais fácil, mas mais difícil de usar

do que aqueles antigos telefones pretos.

E, o que é pior: encheram os telefones de “características especiais”.

Armazenamento de números, rediscagem, gerenciamento de cartão de crédito,

espera de chamada, transferência de chamada, resposta automática, mostrador

de números etc. etc. – tudo isso é constantemente espremido na superfície de um

aparelho de pequena espessura que cabe na palma de sua mão, tornando-lhe a

utilização praticamente impossível.

E Negroponte ainda não vira ainda os celulares hand-held com câmera.

O que é consumido, afinal, já não é mais um telefone. Mas um artefato com a

tecnologia digital (ainda que quase ninguém saiba o que é isso) capaz de

espetacularizar a vida cotidiana com as cores e sons multi-tonais de um mundo

sintetizado por chips de computador. Compram-se as possibilidades imaginárias do

poder da informação e do ciberespaço na palma das mãos, da versatilidade de se

capturar frames sensacionais da vida para nunca mais serem vistos, de se comunicar

da mesma forma – sem palavras, mas ao vivo e a cores com imagens via celular –

que fazem aquelas pessoas tão maravilhosas que aparecem nas propagandas. Além

de ser espetacular e espetacularizar nossa vida, o aparelho celular ainda serve de

telefone.

Como acontece no cinema.

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III.2. A vida moderna e o olhar cinematográfico

Muitos autores irão demarcar nas mudanças das sociedades ocidentais do

século XIX o terreno onde a transformação das mentalidades e das experiências

subjetivas, engendrada pelo capitalismo e pela cultura de massas emergente, criou

um lugar para o cinema antes mesmo da sua invenção. O cinema e a modernidade

seriam, nessa perspectiva, praticamente indissociáveis. Charney e Schwartz (2001, p.

19-21) notam que há um conjunto de “inovações talismânicas” cujas respectivas

histórias geralmente são instrumentos de compreensão e análise da “modernidade”:

“o telégrafo e o telefone, a estrada de ferro e o automóvel, a fotografia e o cinema”.

Fundamentalmente invenções que anularam ou encurtaram o tempo e o espaço, são

tanto reflexos como meios de maximizar a circulação de mercadorias e do capital.

Destacam os autores, que “desses emblemas da modernidade, nenhum personificou

e ao mesmo tempo transcendeu esse período inicial com mais sucesso do que o

cinema”. Mais do que isso, o cinema se inseriu em uma cultura urbana de

entretenimento que o antecede, baseada na “reprodução mecânica, mobilidade de

produtos, consumidores e nacionalidades”. Nessa perspectiva, segundo os autores,

“a cultura da modernidade tornou inevitável algo como o cinema, uma vez que as

suas características desenvolveram-se a partir dos traços que definiram a vida

moderna em geral”.

O surgimento de uma mentalidade da vida moderna é, em muitas análises,

fundamental para a compreensão da genealogia do cinema. Em geral, tomam como

ponto de partida a perspectiva de Simmel acerca da vida e da mentalidade do sujeito

metropolitano cujos sentidos são incessantemente estimulados. Assim, para Charney

(2001, p.404), o cinema “refletiu a experiência epistemológica mais ampla da

modernidade”. O cinema incorporou esteticamente certas características fenomênicas

da vida moderna – choque, velocidade, deslocamento, esvaziamento da presença –

na fragmentação intrínseca do filme, “sempre uma sucessão de momentos”. A

modernidade seria, como nos lembra Singer (2001, p.116-117), concebida como “um

bombardeio de estímulos” provenientes de um mundo fenomênico “marcadamente

mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da

cultura humana”. A imprensa ilustrada da virada do século XIX para o século XX

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reflete as “ansiedades de uma sociedade que não havia se adaptado por completo à

modernidade urbana” na sua preocupação com os riscos cotidianos, retratados de

forma intensa e sensacionalista (Singer, 2001, p.133). O cinema surgiu em meio a

essa “estética do espanto” onde predominava a excitação e tornou-se, em alguns

casos, um emblema da descontinuidade e da velocidade modernas. O autor lembra

que, para Kracauer, a “estética da excitação superficial e da estimulação sensorial

(...) assemelhou-se ao tecido da experiência urbana e tecnológica”. Nessa

perspectiva, “o ritmo rápido do cinema e sua fragmentação audiovisual de alto

impacto constituiriam um paralelo aos choques e intensidades sensoriais da vida

moderna” (Singer, 2001, p.137-138). O sensacional, o espetacular, o espantoso

atendem a demanda de maior quantidade e intensidade de estímulos, de forma a

adequar as novas formas de entretenimento às mentalidades e sentidos “calibrados

para a vida moderna”. Mas o sensacionalismo também “funcionou como uma

resposta compensatória ao empobrecimento da experiência na modernidade” (Singer,

2001, p.137-139).

Outras invenções e modas já haviam antecipado o lugar do cinema e, como

observa Sandberg (2001, p.443) havia todo um contexto econômico, tecnológico e

cultural que ampliou as possibilidades de “uma clientela ávida por cultura visual” e

“em combinações diversas, os espectadores de cinema também freqüentavam outras

atrações visuais”. Nessa mesma perspectiva, para Bruno (2001, p.39-44), a demanda

pelos simulacros transportáveis e sua lógica de circulação, a qual o cinema atendeu

prontamente, já havia sido antecipada pelos cartões-postais e fotos estereoscópicas:

“Os primeiros filmes de atualidade apresentavam com freqüência um simulacro

de viagem não apenas ao apresentar paisagens estrangeiras mas também

‘passeios fantasmas’, que eram filmados da parte dianteira de trens ou da proa

de barcos e que davam aos espectadores, sentados e parados, uma sensação

palpável de movimento”.

Schwartz (2001, p.411-440), por sua vez, nota que a experiência

cinematográfica já era cultivada em uma série de práticas culturais anteriores ao

cinema nas quais predominava uma indistinção entre a vida e a arte, na realidade

transformada em espetáculo e na obsessão dos espetáculos pelo realismo. Estes, por

sua vez incorporaram “muitos elementos que já podiam ser encontrados em diversos

aspectos da chamada vida moderna”. A autora cita alguns locais da Paris de fin de

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siècle onde se praticou um tipo de “flânerie para as massas” intimamente relacionada

com o olhar que irá definir o espectador cinematográfico: os necrotérios de Paris, os

museus de cera e os panoramas. São locais identificados com o espetáculo, onde a

“vida real era vivenciada como um show mas ao mesmo tempo, os shows tornavam-

se cada vez mais parecidos com a vida” (Schwartz, 2001, p.411). A exibição pública

de corpos nos necrotérios era uma espécie de “espetáculo da vida real” gratuito,

capaz de exercer grande fascinação pois, ao contrário dos museus de cera, as

pessoas exibidas eram “realmente de carne e osso”. As exibições públicas dos

necrotérios são encerradas no ano de 1907, ano também marcado pela proliferação

de instituições dedicadas exclusivamente ao cinema: “O público, ao que parece, havia

mudado da salle d’exposition para a salle du cinéma” (Schwartz, 2001, p.420).

Os museus de cera e os panoramas faziam do show algo semelhante à vida

real. O Musée Grévin foi concebido como um museu cuja finalidade era reproduzir

fielmente, em cenários habitados por pessoas de cera, os principais acontecimentos

noticiados na mídia impressa. A despeito de ser inanimado, o realismo do conjunto

era impressionante, em grande parte devido ao cuidado e a fidelidade com que as

cópias – cenários e adereços – tinham em relação aos originais:

A dedicação do Musée Grévin ao gosto do público pela realidade, seu uso da

figura de cera para reproduzir o mundo social, seu foco em eventos

contemporâneos e na mudança rápida, seu vínculo com o espetáculo e a

narrativa, bem como a organização abrangente de seus quadros, são elementos

associados com o início do cinema e, no entanto, encontrados no Musée Grevin

bem antes da sua alegada invenção em 1895 (Schwartz, 2001, p.429).

Similarmente, os panoramas também eram representações de experiências

da vida real e ofereciam “versões sensacionalistas do mundo” (Schwartz, 2001,

p.435). Benjamin (1986, p.185) observa que “antes que o cinema começasse a formar

seu público, o Panorama do Imperador, em Berlim, mostrava imagens, já a essa

altura móveis, diante de um público reunido”. Feitos para se assistir coletivamente, os

panoramas eram simulacros de eventos históricos ou lugares turísticos que

chegavam a utilizar recursos como a fotografia e engenhocas mecanizadas para

melhorar o realismo do espetáculo. O próprio cinema, em seu início, foi incorporado

em panoramas mecanizados como mais um recurso de “realismo” dos passeios

simulados. Os museus de cera e os panoramas conseguiram reunir nas suas platéias

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massas de espectadores das mais diversas origens sociais: “camponeses,

trabalhadores (...), homens e mulheres da burguesia, comerciantes e diplomatas” 25.

Contudo, a despeito do requinte e da sofisticação dos simulacros apreciados por

todos, sem distinção social, seu sucesso “estava no olho e na mente do espectador; o

realismo não era meramente uma evocação tecnológica” (Schwartz, 2001, p.432-

433). É a exata continuidade dessa mentalidade e desse olhar, notavelmente

predispostos ao realismo espetacular e fragmentário dos simulacros, que está por

trás do “modo de ver” do cinema. Seguindo a tradição dos espetáculos realistas que

precederam-no, “a estética do cinema repousa sobre uma técnica exata de

reprodução da realidade: o cinema é por essência ‘realista’, dá impressão da

realidade” (Martin, 1963, p.87). E mais até do que os museus de cera e os

panoramas, a experiência cinematográfica, a estética e o realismo sobre o qual se

fundamenta, não são meros produtos das tecnologias de registro óptico –

supostamente neutras, objetivas, verdadeiras e universais – mas também são

condicionados por determinados contextos e heranças sociais específicos que

privilegiam esta ou aquela forma de perceber e representar o mundo visível. Como

observa Benjamim (1986, p.169), “o modo pelo qual se organiza a percepção

humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas

também historicamente”. Sorlin (1985, p.157) também atenta para a importância da

disposição do espectador para a realização do “realismo” da construção fílmica: “A

impressão de contemplar a realidade (...) que nós mesmos sentimos diante de certos

filmes não se deve (...) ao conteúdo das imagens, mas às disposições em que se

encontram os espectadores”.

A dependência do contexto histórico e social fica tanto mais evidente quando

constatamos a exigência de uma “experiência cinematográfica” adquirida, sem a qual

um espectador inexperiente não consegue “ver nada (...) além de um monstruoso

embaralhamento do tempo, exatamente como um extraterrestre num estádio de

futebol não faria a menor idéia do que estava acontecendo no jogo” (Carrière 1995,

p.114). Esse é um dos motivos, segundo Carrière (1995, p.13), pelo qual, nos

primórdios do cinema, havia a figura do “explicador” nas exibições em sociedades de

25 Vale notar que Morin (1962, p.42) parece desconsiderar esse fato: “o cinema foi o primeiro a reunir em seus circuitos os espectadores de todas as classes sociais urbanas e mesmo camponesas”. Contudo para os fins desta pesquisa, o que importa é que esse caráter unificador ou homogeneizante – que Morin crê ser uma tendência da cultura de massas e que o cinema apresenta de forma exemplar – era compartilhado por outras formas de manifestação da cultura de massas contemporâneas ou anteriores ao cinema.

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tradição oral. Ele ficava ao “lado da tela, durante todo o filme” explicando aos demais

o que acontecia naquela “sucessão de imagens silenciosas” que eram o oposto

daquilo que estavam acostumados. A figura do “explicador” ainda era encontrada na

África da década de 1950. Em relação às especificidades sociais e históricas que

determinam a disposição ao realismo cinematográfico, podemos acrescentar que,

como notam Aumont et al. (1983, p. 21), um espectador típico reage à imagem plana

do cinema como se visse uma “uma porção de espaço de três dimensões, análoga ao

espaço real em que vivemos”, a despeito das suas limitações. A força dessa analogia

envolve uma “’impressão de realidade’ específica do cinema, que se manifesta

principalmente na ilusão de movimento (...) e na ilusão de profundidade” [grifos

meus]. E, provavelmente, a ilusão de profundidade não seria tão intensa para os

“primeiros espectadores” de filmes como é para o espectador habitual

contemporâneo. Os primeiros deviam ser, “sem dúvida, mais sensíveis ao caráter

parcial da ilusão de profundidade” [grifo meu].

Se o gosto pelo realismo espetacular e a percepção fragmentária da

realidade – ambas fundamentais para a constituição do espectador cinematográfico –

consolidaram-se no fin de siècle, o olhar realista do cinema tem suas raízes na

renascença, mais especificamente na definição de um tipo de perspectiva como a

representação da realidade visual por excelência. A perspectiva pode ser definida

como “a arte de representar os objetos sobre uma superfície plana, de maneira que

esta representação se pareça com a percepção visual que se pode ter dos objetos

mesmos” (Aumont et al, 1983, p.30). Essa percepção visual está indissociavelmente

ligada à certas convenções tácitas que não só determinam o que é uma

“representação tridimensional” adequada mas também condicionam o olhar,

predispondo-o à “perceber” tridimensionalidade onde ela não existe. São essas

convenções, preservadas e transmitidas socialmente, que estão por trás tanto das

ilusões de profundidade às quais estamos acostumados como dos “muitos sistemas

representativos e de perspectiva que (...) nos parecem mais ou menos estranhos”

(Aumont et al, 1983, p.30).

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Figura 54 - “A Última Ceia” de Giovanni Canavesio (Santuário de Notre-Dame des

Fontaines, La Brigue), de 1492.

Figura 55 - “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci (Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão), de 1498.

Figura 56

PF1 PF2

Figura 57

Figura 58

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Com efeito, duas representações da última ceia de Cristo, uma de Giovanni

Canavesio (fig. 54) e a outra de Leonardo da Vinci (fig. 55), realizadas quase que na

mesma época, mas segundo distintas normas estéticas de representação do espaço

tridimensional, nos impressionam de formas diferentes. É importante observar,

independentemente da eficácia da impressão, que a dimensão da profundidade está

registrada em ambas obras: da mesma forma que sabemos que na pintura de da

Vinci a mesa está à frente dos personagens e há uma janela ao fundo do conjunto,

podemos notar que na de Canavesio há personagens à frente da mesa e que Cristo

está atrás da mesa. No limite, ambas obras são ilusões parciais que reconstroem o

espaço de três dimensões em um plano bidimensional e compartilham as mesmas

deficiências: além de planas, não dispõem de paralaxe e nem de binocularidade. É

certo que consideraremos, nós como observadores, a perspectiva de da Vinci muito

mais “eficaz”. Mas vale questionar se não contribui para essa eficácia, talvez mais do

que a sofisticação técnica, a ilusão que já está nos olhos de quem a vê.

Um dos fatores que provoca estranhamento na obra de Canavesio é a

ausência da distorção na qual a representação de objetos de mesmo tamanho devem

ser relativamente menores de acordo com sua posição no sentido da profundidade.

Daí a impressão “chapada” que a cena nos provoca. Além disso, há mesmo uma

aparente aleatoriedade na proporção de tamanho entre os apóstolos e destes com

Cristo, representado em tamanho visivelmente maior que todos o demais. Nosso

estranhamento ocorre porque, em grande medida, no que tange à representação da

tridimensionalidade do espaço, “o único sistema que costumamos considerar como

próprio, posto que domina toda a história moderna da pintura, é aquele que se

elaborou no princípio do século XV sob o nome de perspectiva artificialis, ou

perspectiva monocular” (Aumont et al, 1983, p.30).

É o caso da representação do espaço na Última Ceia de da Vinci. A

perspectiva utilizada por ele é o sistema que, dentre outros experimentados durante a

Renascença, tornou-se dominante por permitir a reconstrução, por meio de leis

geométricas, a visão do olho humano (daí sua denominação “monocular”) e por

possuir um caráter automático (artificialis) através do uso de formas elementares que

se materializaram em técnicas e nos aparatos mais diversos de geometrização da

imagem. Nesse tipo de perspectiva, também conhecida como “cônica”, a ilusão da

tridimensionalidade baseia-se na relativização do que é representado em função de

um “observador”, o que não ocorre em outros sistemas de perspectiva. Na

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perspectiva paralela por exemplo, o observador não existe no desenho e o tamanho

relativo dos objetos representados independem dele, tal como ocorre com a pintura

de Canavesio. Isso implica que, por exemplo, ao representarmos um conjunto de

cubos cujas arestas estejam paralelas ao triedro altura X largura X profundidade, não

importará a posição relativa deles no espaço que um cubo sempre será

representando igual a outro cubo (ver fig. 56). Na perspectiva cônica, a distorção da

imagem tridimensional no plano depende da posição relativa do objeto representado

em relação à uma “linha do horizonte” imaginária, referida a um observador virtual à

frente do objeto representado, no qual situam um ou dois pontos de fuga26 que

definem a distorção da perspectiva. Assim, a representação dos objetos em uma

perspectiva cônica depende da localização espacial desses objetos em relação ao

olho que os vê, o olho de um observador que transcende o plano (ver fig. 57). Objetos

que são representados de forma idêntica na perspectiva isométrica27 (fig. 56), serão

diferentes dos uns dos outros na perspectiva cônica (fig. 57) de acordo com sua

posição em relação ao observador. Na perspectiva cônica, é possível até reconstruir

a posição geométrica do olho para o qual se configura a perspectiva.

A familiaridade ou estranhamento em relação à tridimensionalidade na obra

de Canavesio ou de da Vinci não é meramente uma questão técnica, mas também de

condicionamento do olhar. Não encontramos em Canavesio a reconstrução

matematizada à qual nosso “modo de ver” já está condicionado. Mais do que isso,

não conseguimos nos localizar no quadro de Canavesio. Ao contrário, em da Vinci, a

perspectiva cônica ordena não só o espaço visível, mas também o invisível,

designando o local do próprio observador: exatamente em frente da cabeça de Cristo,

por onde passa a linha do horizonte e se localiza o ponto de fuga (PF1) da obra (ver

fig. 58). Aumont et al. (1983, p.30-32) notam que a instituição de um ponto de vista

que corresponde ao “olho do pintor” foi fundamental para a constituição do olhar

moderno. Para os autores, “a perspectiva fílmica é tão somente a continuação exata

dessa tradição representativa” e, na medida em que “esta perspectiva inclui na

imagem, através do ‘ponto de vista’, um sinal de que está organizada por e para um

26A linha do horizonte está sempre posicionada no nível dos olhos do observador e é onde o céu se encontraria com a terra, em um terreno completamente plano. O ponto de fuga é um ponto localizado na linha do horizonte para o qual convergem a linhas paralelas ao eixo da profundidade. 27 Um tipo de perspectiva paralela onde os eixos de largura, profundidade e altura possuem um ângulo de 60º entre elas.

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olho colocado diante dela”, a representação fílmica também “supõe um sujeito que a

vê, a cujo olho se assinala um lugar privilegiado”.

Na Renascença, vários dispositivos foram utilizados para automatizar a

perspectivação ou projetar a perspectiva de objetos reais. Dentre eles estava a

camera obscura, que era uma caixa lacrada contra a luz e com um pequeno furo em

uma das faces verticais. Grande o suficiente para comportar um homem, o artista

dentro da camera obscura podia desenhar sobre a imagem do exterior projetada na

parede oposta ao furo. Essa era uma das técnicas para se obter automaticamente

uma perspectiva do mundo real idêntica à perspectiva artificialis em todos os

aspectos matemáticos. Contudo, o registro da imagem dos objetos reais projetados

dentro da camera obscura passava necessariamente pela mão e pela sensibilidade

do artista, o que lhe conferia um caráter subjetivo inegável. A busca por uma forma de

fixar as imagens projetadas na camera obscura era a meta de muitos pesquisadores.

Isso foi conseguido com o deguerreótipo, o precursor das câmeras fotográficas

modernas. Segundo Benjamin (1991, p.224), no “instante em que Daguerre

conseguiu fixar as imagens da camera obscura, (...) os pintores haviam sido

despedidos pelo técnico”.

Com o advento da fotografia, a subjetividade do pintor deu lugar à

objetividade das lentes da câmera fotográfica. “Quer o pintor queira, quer não, a

pintura transita inevitavelmente por meio de uma individualidade. (...) Ao contrário, a

foto, naquilo que faz o próprio surgimento de sua imagem, opera na ausência do

sujeito” (Dubois, 2003, p.32, grifo meu). É dessa suposta ausência de uma

subjetividade que provém a “objetividade” da fotografia que é onde, por sua vez, se

assenta o “coeficiente de realidade” que Martin (1963, p.21) atribui à imagem fílmica.

Para ele, a fotografia (ou o “fotograma” da imagem cinematográfica) é “antes de tudo,

um dado científico: é o produto da ação de raios luminosos sobre uma superfície

química sensível por intermédio de um sistema óptico justamente chamado de

‘objetiva’”. Ou em outras palavras, é no “automatismo de sua gênese técnica”

(Dubois, 2003, p.25) que repousa a credibilidade que a fotografia tem em relação às

outras formas de representação visual. É por isso que, dentre outros problemas, a

ausência de cor das primeiras fotografias – uma nítida desvantagem frente à pintura

que, em certos aspectos, conseguia ser mais “realista” do que as fantasmagóricas

imagens impressas no vidro dos antigos daguerreótipos – não impediu a fotografia de

se difundir como um “espelho de real, onde ela é considerada a ‘imitação mais

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perfeita da realidade’” (Dubois, 2003, p.27). Isso explica-se, em parte porque a

fotografia, ao eliminar a intermediação humana da gênese da imagem, passa a ser

percebida, ela própria, como um pedaço da realidade que representa. Como nota

Barthes (1990, p.12-15), a fotografia opera uma redução do objeto – em termos de

perspectiva, cor e proporção – mas não executa uma “transformação do real”. Por

esse motivo, “no senso comum, o que define a fotografia é essa perfeição analógica

que ela tem com o real: mesmo não sendo o real, a fotografia é o seu ‘analogon’

perfeito”.

Entretanto o estatuto de analogia perfeita da realidade não significa,

necessariamente que ela simplesmente “copie” as aparências do real. Como comenta

Dubois (2003, p.25) a consciência do “automatismo de sua gênese técnica” confere à

fotografia um “peso de realidade” que independe da sua semelhança com o original.

O seu realismo é beneficiado antes pela “transferência de realidade da coisa para sua

reprodução” do que pela sua fidelidade com a realidade: a ontologia da fotografia está

na “relação de contigüidade momentânea entre a imagem e seu referente, no

princípio de uma transferência das aparências do real para a película sensível”

(Dubois, 2003, p.35). Aqui a foto é índice antes de ser ícone: “por sua gênese

automática, a fotografia testemunha irredutivelmente a existência do referente”.

Acrescenta o autor que o realismo da fotografia deve mais ao seu caráter indicial do

que a sua semelhança visual com o real: a priori, nada implica que o aquilo que é

visto em uma fotografia de um objeto realmente se pareça com a visão que temos do

objeto28.

Ao contrário da pintura, a fotografia parece estar investida de uma “verdade”

que deriva de seu caráter indicial. Não supomos que a Última Ceia de da Vinci seja

uma “prova” do evento, ainda que, por outros motivos, possamos crer que o evento

tenha ocorrido e possamos mesmo imaginá-lo tal como da Vinci o representou. Já as

fotografias são provas da existência daquilo que representam, elas não são

simplesmente imagens realistas, são também “traços do real”. É inegável a

predisposição em acreditar que uma fotografia apresenta uma verdade sobre o

28 Isso também pode ser constatado nos registros fotográficos não convencionais – como, por exemplo, a fotografia realizada por meio de lentes macro, microscópios, telescópios e vistas aéreas, ou mesmo aquelas realizadas com o uso de filmes sensíveis às partes do espectro invisíveis ao ser humano (UV e infra-vermelho) ou raios-X que são prontamente aceitos como evidências de uma realidade, a despeito das diferenças, às vezes absoluta, em relação ao real que apreendemos com os nossos olhos. Nestes casos imputamos ao real uma verdade que só pode ser apreendida na sua reprodução.

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mundo que ela registra. Mas, acerca do quê as fotografias nos comunicam a

verdade? Becker (1978, p.9-13) lembra-nos que, devido ao caráter polissêmico da

fotografia, a sua “verdade” está condicionada às inumeráveis questões que podemos

formular acerca da realidade evidenciada por ela. A verdade dita pela fotografia – que

não é, necessariamente “toda a verdade” – é apenas uma verdade dentre várias que

podem ser, até mesmo, contraditórias entre si. Acerca da “verdade” da foto, Carrière

(1995, p.58) ainda nota:

A “verdade” de uma foto, ou de um cinejornal, ou de qualquer tipo de relato, é,

obviamente bastante relativa, porque nós só vemos o que a câmera vê, só

ouvimos o que nos dizem. Não vemos o que alguém decidiu que não deveríamos

ver, ou o que os criadores dessas imagens não viram. E, acima de tudo, não

vemos o que não queremos ver.

No contexto levantado por Becker e Carrière, a polêmica em torno da famosa

fotografia de Joe Rosenthal (fig. 59) da bandeira americana em Iwo Jima é

emblemática. Ela não era a foto da primeira bandeira hasteada em Iwo Jima, no

monte Surubachi em 1945, mas era sem dúvida muito mais espetacular do que

aquela tirada pelo fotógrafo da Marinha Americana, Lou Lowery, que acompanhou o

grupo que hasteou a primeira bandeira (fig. 60). Contudo, foi o grupo registrado por

Rosenthal que foi heroificado pela mídia. Há mesmo registros das bandeiras sendo

trocadas (fig. 61).

Certamente ambas fotos contam verdades, em certos casos a mesma

verdade. Mas algumas verdades contadas pela foto de Lowery – como o medo

retratado na imagem do soldado em guarda com a arma em punho – são muito

menos sedutoras do que a gloriosa imagem de Rosenthal, que exclui para fora do

quadro qualquer “sujeira” visual que comprometa o espetáculo. Se por um lado, a

despeito das polêmicas, não existam evidências de que sua foto seja uma mentira,

por outro lado, sua verdade não deixa de ser parcial, ocultando aspectos que

suscitam perguntas que não são compatíveis com o espetáculo proporcionado pela

imagem. Assim, porque não adaptar a própria realidade para que ela própria seja

alçada à categoria de espetáculo? Assim, tudo que pudesse espetacularizar o

momento da foto de Rosenthal foi realçado e os soldados que nela aparecem foram

elevados à qualidade de heróis pelo presidente Truman e pelos meios de

comunicação de massa. Retirados do campo de batalha pelo presidente, os soldados

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da foto de Rosenthal que sobreviveram a Iwo Jima, tornaram-se garotos-propaganda

e foram envolvidos – aparentemente à contra-gosto – em uma enorme campanha de

arrecadação de dinheiro para a guerra. Tornaram-se, eles próprios, cópias vivas da

fotografia, ícones em carne e osso, não sem impactos, alguns trágicos, na vida

pessoal deles29. Em contrapartida, tudo aquilo que conspirasse contra o espetáculo

deveria ser escondido e os soldados da primeira foto, assim como a própria foto,

foram convenientemente esquecidos pelos meios de comunicação de massa.

Figura 59

Figura 60

Figura 59: Foto de Joe Rosenthal do hasteamento da segunda bandeira no Monte Surubachi em Iwo Jima, às 1:05 da tarde de 23 de fevereiro de 1945 (cf. Landsberg, 1995).

Figura 60: Foto de Lou Lowery do hasteamento da primeira bandeira no Monte Surubachi em Iwo Jima, às 10:37 da manhã de 23 de fevereiro de 1945 (cf. Landsberg, 1995).

Figura 61: Foto de Bob Campbell da troca de bandeiras. À frente a primeira bandeira sendo recolhida e, ao fundo, a segunda bandeira, maior, sendo hasteada.

Figura 61

Contudo, no dia-a-dia, assumimos a priori que as fotografias são traços da

realidade. Exacerbamos tanto o aspecto objetivo da fotografia que freqüentemente o

29 A história mais famosa é a do soldado indígena Ira Hayes retratado no filme “The Outsider” de 1961. Ele tornou-se alcoólatra e morreu em 1954.

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fotógrafo não passa de um ser anônimo, extensão da máquina que fotografou. Ao

abstrairmos o fotógrafo, esquecemo-nos também que a fotografia não é, no fim das

contas, tão objetiva assim. Ela é, no mínimo, uma seleção da realidade e produto de

um recorte que define o que é deixado ou não no quadro. Ao contrário do que supõe

a “objetividade da fotografia”, há todo um mundo para além dos limites do campo

registrado na fotografia e um fotógrafo sempre tende a recortar o mundo de acordo

com seus próprios quadros de apreensão da realidade, excluindo aquilo que não faz

sentido. Além disso, no limite, o poder de evidência da fotografia sempre estará

ameaçado pela possibilidade dela ter sido montada ou fraudada de alguma forma30.

Mesmo assim, a verdade que a fotografia nos diz continua sendo irresistível e a

tendência natural é “acreditar nas imagens que contemplamos antes de que algo nos

induza a desconfiar de sua veracidade” (Menezes, 1996, p.84).

“Temos, na verdade, perante uma fotografia, a impressão de contemplarmos

um analogon, um eidolon a que só faltasse o movimento” (Morin, 1970, p.43). E o

cinema trouxe o movimento às entidades congeladas pela fotografia. A imagem

fílmica é uma reconstrução imagética que não só privilegia o nosso olho como

referência espacial – a perspectiva monocular – como se vale de uma característica

desse mesmo olho, a persistência retiniana, para conferir a ilusão de movimento à

ilusão de profundidade do analogon fotográfico. É inegável que o movimento da

imagem fotográfica tornou a analogia do cinema com a realidade vivida

particularmente intensa. Mas a imagem do cinema não é exatamente a mesma que

uma imagem fotográfica ou uma fotografia animada. Ela não é única, “um fotograma

está sempre colocado em meio de outros inumeráveis fotogramas”; depende do

tempo, a imagem do filme “se define por uma certa duração”; e está em movimento,

não só movimentos internos ao quadro (...), mas também movimentos do quadro em

relação ao campo (Cf. Aumont et al., p.38).

Martin (1963, p.197) nota que “o cinema reproduz de maneira bastante

realista o espaço material real, mas que cria à parte um espaço estético

absolutamente específico”. É um espaço construído tanto pela perspectiva do quadro

30 Alguns crêem que o maior problema da foto de Rosenthal é que ela é “muito perfeita”, não há o que “pôr ou tirar” para deixá-la melhor. Essa perfeição é a base da freqüente acusação, nunca provada, de que a foto seria uma fraude, uma encenação produzida por Rosenthal (cf. Landsberg, 1995).

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como pelo campo que é revelado pelo quadro. Esse é o que chamamos de “espaço

diegético” 31 do filme:

(...) o espaço diegético é inseparável dos personagens que evolucionam nele (...).

O espaço fílmico é um espaço vivo, figurativo, tridimensional, dotado tanto de

temporalidade como de espaço real, o qual a câmera experimenta e explora

como nós fazemos na realidade; ao mesmo tempo, é uma realidade estética, do

mesmo modo que a pintura, sintética e densificada, com o tempo, pela

planificação e montagem (Martin, 1963, p.197).

Em certo sentido, a diegese fílmica é apreendida como um mundo à parte,

análogo ao mundo real dos espectadores. É nesse mundo diegético que a ficção

realiza-se como um mundo concebível e encaixa-se no que Eco (2000, p. 172-177)

chama “pequeno mundo” da narrativa. “Pequeno” porque ele “não é um estado de

coisas maximal e completo”, suas propriedades estão circunscritas ao que é narrado

e ele não está sujeito às mesmas cadeias de implicações do mundo real. Contudo,

apesar disso, esse mundo diegético possui uma relação “parasitária” com o mundo

real que deriva de sua condição analógica: “se as propriedades alternativas [do

mundo narrativo] não são especificadas, aceitamos como ponto pacífico as

propriedades que valem no mundo real”32.

Para que o mundo diegético faça sentido ele deve ser um mundo “concebível”

porém não, necessariamente, um mundo “possível”. Lembra-nos Eco, que o mundo

“possível” está ligado ao que nós entendemos como crível e verossímil, enquanto que

o mundo “concebível” está ligado aos nossos hábitos lógicos e epistemológicos.

Assim, podemos representar mundos impossíveis que façam sentido, como, por

exemplo, mundos populados por animais e objetos falantes ou mundos onde pessoas

convivam com desenhos animados, apesar disso ser incrível e inverossímil. Por outro

lado, mundos que sejam inconcebíveis – “mundos mobiliados com círculos quadrados

que se compram com uma quantidade de dólares correspondente ao maior número

31 Originalmente, em Platão, a diegese e mimese são as duas formas de se colocar uma narrativa. Na diegese o autor conta a história e na mimese a história é representada. Assim, neste sentido, uma peça é uma mimese e um poema é uma diegese. Contudo, “diegese” é também utilizada para se referir ao mundo criado por uma narrativa de qualquer tipo e inclui não só aquilo que está descrito – espaço, personagens, objetos, etc. – mas também aquilo que a narrativa pressupõe, como eventos passados e futuros, por exemplo. A diegese fílmica está relacionado a este segundo sentido da diegese. 32 “(...) se é verdadeiro que John mora em Paris, também é verdadeiro que John vive na capital da França, que vive ao norte de Milão e ao sul de Estocolmo, e que vive numa cidade cujo primeiro bispo foi São Diniz” (Eco, p.172).

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par” (Eco, 2000, p. 174) – tendem a tornar a diegese ininteligível. Isso não impede,

contudo, que mundos inconcebíveis sejam citados e mesmo que sejam possíveis

apesar de estarem além da nossa capacidade de compreensão.

Mesmo sendo um produto mediado pelo imaginário, o cinema estende para si

parte da suposta “objetividade” que imputamos à fotografia. Tudo que é visível na

diegese fílmica possui um “coeficiente de realidade” lastreado pela imagem

fotográfica que é o ponto de partida e pedra fundamental do realismo fílmico. Para

Martin (1963, p.21), os “fenômenos de adesão e de crença do público no filme” são

explicados, em parte, pelo “caráter realista da imagem cinematográfica”. Essa adesão

não significa, vale frisar, que em algum momento o “realismo” do filme pretenda se

confundir com a realidade do espectador. Um filme é até mesmo composto por

diversos elementos não-realistas – a trilha musical talvez seja o exemplo mais

evidente – e o espectador cinematográfico tem consciência de que o mundo diegético

do filme não é o mesmo mundo da vida prática: a adesão à diegese fílmica não

significa que ela esteja no mesmo nível de adesão que temos, por exemplo, com a

experiência de comer pipoca na sala de cinema onde o filme é projetado. Isso não

impede, contudo, que a experiência cinematográfica seja mais intensa do que a

experiência de comer pipocas.

Com exceção dos desenhos animados e filmes abstratos ou “experimentais”,

a matéria bruta do cinema é a realidade e o “cinema continua fundamentalmente um

ambiente realístico” (cf. Carrière, p.81). A diegese fílmica assenta-se sobre um

“realismo espacial” por meio do qual podemos penetrar no espaço diegético33 e aderir

à ação (cf. Martin, p.197). Para que a ilusão de “realismo” se sustente, o cinema deve

ser intransigente em relação à subordinação dos elementos visuais da diegese à

geometria da perspectiva e ao realismo fotográfico. Todo conjunto visual apresentado

pelo filme deve parecer ao espectador tão real quanto o seu equivalente “autêntico”.

Observa Morin (1970, p.191) que:

Foi o próprio Méliès, mágico do irreal, que estabeleceu sem equívocos a regra

de ouro da verdade das coisas: ‘Tudo é necessário para dar uma aparência de

verdade a coisas inteiramente fictícias (...) Em questões materiais, deve o

cinematógrafo fazer melhor que o cinema e não aceitar o convencional’.

Enquanto o teatro pode (...) satisfazer-se com panos de fundo e sinais

33 Vale lembrar que o espaço da diegese fílmica vai além do que surge no quadro.

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convencionais, o cinema necessita de objetos e dum meio ambiente

aparentemente autênticos. A sua exigência de exatidão corporal é uma exigência

fundamental. Se bem que um filme admita uma voz post-sincronizada, uma

intriga extravagante, uma orquestra no fundo duma mina e um rosto de vedeta

invulnerável à sujidade do carvão, nunca admitirá uma vagoneta sem a forma

material duma vagoneta, ou um picareta que não apresente a forma material

duma picareta.

Até mesmo a ilusão de profundidade da perspectiva, originalmente produto da

automação do processo fotográfico, pode resultar de maquinações ópticas, como

cenografias bidimensionais posicionadas de acordo com o horizonte e o ponto de

fuga determinados pela posição da câmera. Se no teatro ou na ópera a aparência

ostensivamente artificial do cenário e o uso de sucedâneos lúdicos ou artifícios

totalmente insinuados não comprometem a diegese, no cinema, a verossimilhança

visual dos elementos em cena e a estruturação deles em perspectivas referidas a um

único observador são imprescindíveis para a adesão do espectador (ver figs. 62 a

65).

É certo que tanto no cinema como no teatro, o plano da diegese não é o

mesmo que o da realidade. Mas, enquanto o palco não faz o menor segredo de sua

irrealidade, e complementamos aquilo que não vemos com a nossa própria

imaginação, o cinema baseia-se justamente na substituição da imaginação pelo

realismo fabricado pela técnica:

Se, em certo trecho do Mahabharata, um ator inspirado nos diz: “Eu vejo nossos

elefantes na planície, de suas trombas decepadas jorra o sangue”, nenhum

espectador se volta para ver os elefantes no fundo da platéia. Ele os vê, se tudo

correr bem, em algum lugar dentro de si. Eles aparecem independentemente de

qualquer contexto realista (...).

Este tipo de processo seria totalmente inaceitável no cinema. O cinema tem que

mostrar os elefantes. Não existe escolha: é parte do contrato que cada espectador

faz ao pagar pelo ingresso. (Carriére, p. 78)

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Figura 62

Figura 63

Figura 64

Figura 65

Figura 62: Cena de making-off que mostra o set de filmagem de The Matrix. Aqui podemos ver o painel cenográfico e o mock-up de helicóptero utilizado em algumas seqüências do filme (figura 65).

Figura 63: Cena de making-off do filme The Matrix onde se pode ver como a sobreposição de perspectivas diferentes (o “observador” desta imagem está em uma posição diferente do “observador” da foto impressa no painel) acaba anulando a perspectiva da paisagem urbana impressa no painel.

Figura 64: Cena de making-off que, em contraste com a imagem do filme propriamente dita (figura. 65), evidencia que o espaço diegético é uma construção artificial que funciona apenas de um ponto de vista.

Figura 65: Cenas do filme The Matrix onde podemos ver como a perfeita coesão dos elementos cenográficos constroem a ilusão de realismo fotográfico da diegese. O realismo não está apenas na aparência “autêntica” dos elementos visuais, mas também na estruturação deles em uma perspectiva cônica referida a um único observador.

É certo que o filme não é composto apenas de traços ou simulacros de

realidade34 e a contradição entre a visão exigente e o ouvido tolerante é a

manifestação mais emblemática da complexa relação entre realismo e irrealismo do

34 “(...) foi em volta da irrealidade musical que primeiro o complexo de realidade e irrealidade se formou. A vida real encontra-se, evidentemente, desprovida de eflúvios sinfônicos. E todavia a música, acompanhante já do filme mudo, vai-se integrar na banda sonora. Esta exigência de musicalidade vem situar-se no pólo oposto da exigência de objetividade” (Morin, 1970, p.195).

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cinema. Se, por um lado, a trilha sonora, ou mesmo a dublagem, não furtam a

aparência de realidade do filme (cf. Morin, 1970, p.195 e p.202), por outro, a

necessidade de fidelidade fotográfica nas manifestações visuais da sua diegese é

indispensável. Por mais fantasioso que seja um filme, não se toleram deformações da

forma visual pois, ao mesmo tempo em que um filme apresenta as estruturas afetivas

do imaginário, ela também necessita apresentar as aparências da vida vivida (Morin,

1967, p. 106). Daí a intransigência do cinema quanto à aparência dos cenários,

adereços e personagens. Mesmo que não sejam “reais”, suas imagens – capturadas

por um aparato supostamente objetivo – precisam atender a determinados critérios de

realismo. Contudo, esses critérios estão relacionados aos modelos idealizados de

realidade: ao mesmo tempo em que a suaviza – rejeitando “tudo o que na vida real

nos parece incomum ou absurdo” (Carrière, 1995, p.87) – o realismo fílmico não é

validado pelos mesmos critérios que validam a experiência prática. Morin (1970, p.

192-193) comenta que como os elementos visuais da diegese devem preservar sua

aparência de autenticidade durante o movimento do filme, mesmo sob seus planos e

cortes rápidos, eles são, muitas vezes, reduzidos aos traços considerados essenciais

e transformados em signos convencionais, processo no qual podem se tornar

tipificações desprovidas de verdade. E graças aos recursos técnicos que enfatizam

certas características desejadas enquanto ocultam as características indesejadas,

obtém-se mesmo, em certos aspectos, um realismo imagético maior do que a própria

realidade, uma “hiper-realidade” que visa atender muito mais as expectativas

baseadas na imagem mental que temos de tal ou qual objeto do que reproduzir

exatamente o autêntico.

A objetividade e a homogeneização do conteúdo acabam destilando de forma

tão acentuada os traços do real que o “objeto típico é aquele que, de certa maneira,

foi supra-objetivado”, podendo mesmo “voltar-se contra o real: as paisagens típicas,

os trajos típicos, as casas típicas, etc., acabam por perder toda a verdade” (Morin,

1970, p. 193). Em outras palavras, isso significa que mais do que mostrar os

elefantes, o realismo da diegese fílmica exige que os elefantes manifestem

visualmente o modelo aceito de elefante, nem que, para isso, tenham-se que

construir os elefantes caso os elefantes reais não se enquadrem no modelo

idealizado. Tipificações supra-objetivadas dessa natureza atendem à demanda por

signos imediatamente compreensíveis para a maioria dos espectadores e compõem o

universo iconográfico do cinema. E a repetição e reemprego de seus figurinos,

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paisagens, interiores, adereços estereotipados assegura a impressão de familiaridade

frente às mais fantasiosas representações do fantástico (cf. Sorlin, 1985, p.182).

E quais seriam os traços essenciais e supra-objetivados daquilo que não

existe na realidade ou que não possui uma imagem mental definida? Como já foi

observado, o realismo funda-se não só na aparência fotográfica como na articulação

da imagem em racionalizações que dão sentido aos mais fantasiosos mundos

diegéticos. Muito do realismo das diegeses dos filmes de ficção científica – onde se

enquadram praticamente todos os filmes relacionados com o cibernético – está

relacionado com a racionalização do “fantástico desconhecido” por meio do “trivial

tipificado”. A ficção científica “constrói mundos impossíveis que dão a ilusão de serem

concebíveis” (Eco, 2000, p. 177) e essa ilusão é engendrada por racionalizações

baseadas em vulgarizações do discurso científico, supra-objetivados em estereótipos

de tecnicismo e cientificismo: é o elétrico, o atômico e, também, o cibernético. De

fato, nos filmes de ficção cientifica mais recentes, que poderíamos enquadrar como

ciberculturais, a vulgarização da cibernética tem um papel diegético similar ao da

centelha elétrica em Shelley ou à radiação atômica nos filmes “B” de ficção científica

dos anos 50.

Nas imagens da cibercultura, sua conexão com o mundo vivido está ancorada

em estereótipos construídos a partir de traços genéricos da realidade tecnológica e

científica, engendrados em racionalizações que, apesar de mirabolantes, dão o

caráter realístico às situações mais insólitas e fantasiosas. Os oráculos bio-

eletrônicos, os exoesqueletos, os escravos produzidos geneticamente, a fusão entre

a mente e o computador, as máquinas que parecem seres biológicos e os organismos

maquínicos não são apenas imagens do fantástico, são manifestações de um

imaginário embebido de realidade onde as tipificações da realidade prática da

tecnologia e de seus “fatos variados” (as Dollies, os vírus de computador, os corações

artificiais) fornecem a racionalização – é verdade, nem sempre adequada ou

suficiente – sobre a qual se assenta o ar de veracidade da diegese fílmica. Em certos

casos, frente a campos inusitados e desconhecidos, as racionalizações fílmicas

chegam mesmo a prover modelos de rápido entendimento e fácil digestão que dão ao

sujeito carente de conhecimentos as tipificações que serão reproduzidas nos seus

próprios quadros de compreensão de seu mundo prático.

O cinema é o reino da fantasia, porém é a fantasia realista, produto da

imaginação condicionada tanto pelas identificações subjetivas como pelas

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racionalizações realistas. Entretanto, é importante notar que a participação afetiva do

cinema – o que é “afetivamente vivido” na realização do espetáculo em oposição ao

“praticamente vivido” da vida cotidiana – leva os espectadores a se identificar tanto

com o semelhante como com o estranho: seu poder de mobilizar a subjetividade e os

sentimentos do espectador leva “tanto a uma identificação com o semelhante como a

uma identificação com o estranho, sendo este segundo aspecto o que quebra

nitidamente com as participações da vida real” (Morin, 1970, p. 128, grifo do autor).

Daí a ambigüidade inerente às imagens da cibercultura que proporcionam devaneios

nos quais, ao mesmo tempo em que identificamos o familiar, nos identificamos com o

estranho. Elas, ainda que amplamente relacionadas com o que nos causa

estranhamento, também estão relacionadas com a apologia daquilo que elas tornam

familiares por meio da identificação afetiva. O imaginário da cibercultura, enfim, não

manifesta apenas a fantasia, mas, ao necessariamente articular esta com as

racionalizações ancoradas na vida prática, também manifesta as “necessidades de

todo imaginário, de todo o devaneio, de toda a magia, de toda a estética: aquelas que

a vida prática não pode satisfazer” (Morin, 1970, p. 136).

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IV. AS FIGURAÇÕES DA CIBERCULTURA

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IV.1. O corpus da pesquisa

Para esta pesquisa, buscou-se montar um corpus composto por filmes que,

além de estarem ligados diretamente aos temas da cibercultura, fossem socialmente

representativos. De partida, todos as obras selecionadas são referências na

constituição de um imaginário visual do cibernético. São filmes que, além de

engendrarem exemplarmente o sincretismo entre fato e fantasia, típico da cultura de

massas, criaram novos signos ou ressignificaram antigos para dar inteligibilidade a

admiráveis mundos novos – outros não tão admiráveis assim – que despontavam no

horizonte da cibercultura. São filmes “cujo título, ao menos, todos conhecem” – pelo

menos quando se fala em cibercultura – e que proporcionaram alguns planos que

“são indefinidamente reproduzidos” ou que marcaram “transformações ou novas

tendências” (cf. Sorlin, p. 208-209), em alguns casos, não apenas na indústria

cinematográfica, mas na indústria cultural de forma geral.

Tendo em vista que as realizações mais interessantes do ponto de vista

histórico são aquelas que “tenham mobilizado um enorme público, provocado

debates, polarizado a atenção inclusive daqueles que não se interessavam no

cinema” (Sorlin, 1985, p.208-209), tomou-se como critério de seleção a relevância em

termos de audiência. Exceto pelo filme Metropolis, do qual não se obteve os dados

necessários, os filmes selecionados para esta pesquisa se enquadram ao menos no

que se pode considerar uma “bilheteria média”, a partir da comparação com a

bilheteria de outros filmes produzidos no mesmo ano. Os dados foram obtidos no site

The Numbers (http://www.the-numbers.com/) e complementados, quando necessário,

por informações obtidas no site The Internet Movie Database (http://www.imdb.com/).

A opção preferencial pelo site The Numbers em detrimento do The Internet Movie

Database, é porque o segundo não possui uma uniformidade na apresentação dos

dados, apesar de, em muitos casos, oferecer mais informações do que o primeiro.

Há diferenças entre os números entre uma fonte e outra, mas a ordem de

grandeza é geralmente a mesma. Desde que o que se busca aqui, não é um estudo

mercadológico preciso, mas um indicador da relevância social do filme, pequenas

disparidades foram desprezadas. Foi considerado que uma comparação em termos

de ordem de grandeza é suficientemente válida para excluir filmes com bilheteria

muito tímida e que seriam, em tese, irrelevantes para a análise da mentalidade e do

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imaginário coletivo. Foi também considerado indiferente o fato do site The Numbers

listar uma quantidade de filmes menor que o The Internet Movie Database, visto que

os filmes que interessam a esta pesquisa e os de renda mais significativa constam

das duas fontes de dados.

Assumindo que a audiência é diretamente proporcional à bilheteria, quando

não maior, foi montado um ranking anual para “validar” os filmes inicialmente

selecionados. O ranking é resultado da comparação da bilheteria entre filmes

lançados no mesmo ano, a fim de minimizar as defasagens que teríamos, por

exemplo, se comparássemos a bilheteria de um filme de 1968 com um de 1999.

Certamente isso não impede que filmes que sofreram sucessivas reprises,

“remasterizações”, remontagens e reestréias, apresentem distorções em relação aos

demais filmes produzidos no mesmo ano da sua estréia. Contudo, neste caso,

podemos inferir que a própria durabilidade da obra reafirma a relevância histórica e

social do filme.

O mesmo critério da bilheteria que validou o corpo de pesquisa, também

excluiu filmes cuja arrecadação indicasse uma difusão social restrita. Assim, por

exemplo, obras como eXistenZ (bilheteria americana de US$ 2.840.417 e 173º lugar

em um ranking de 428 filmes produzidos em 1990) e SimOne (bilheteria americana de

US$ 9.680.000 e 148º lugar em um ranking de 464 filmes produzidos em 2002) foram

deixadas de lado, a despeito de estarem relacionados com o tema desta pesquisa.

Além disso, alguns filmes com bilheteria relevante, como o The 13th Floor (bilheteria

americana de US$ 11.810.854 e 113º lugar em um ranking de 428 filmes produzidos

em 1999), não foram considerados na pesquisa porque não acrescentavam muito

material de análise ou porque material similar era proporcionado por outros filmes, de

maior bilheteria, já incluídos na pesquisa.

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IV.1.1 Sinopse dos filmes

Em ordem cronológica de lançamento, segue abaixo a sinopse e algumas

informações dos filmes selecionados para compor o corpo desta pesquisa.

Metropolis (1927). Metropolis é uma cidade-modelo dividida em dois

mundos: um subterrâneo, na qual operários são explorados até a

exaustão, e outro, de superfície, onde a elite vive uma vida de luxúria. A

cidade é governada por Joh Fredersen cujo filho, Freder, apaixona-se por

Maria, líder espiritual dos operários. Fredersen tem a seu serviço Rotwang,

um cientista louco e que está criando um robô para substituir os seres

humanos. Maria é raptada e o robô de Rotwang é transformado em uma

cópia dela. Enquanto Maria permanece presa com o cientista, o robô é

infiltrado em seu lugar a fim de semear a discórdia e a desordem nos

subterrâneos de Metropolis.

2001: A Space Odyssey (1968). Os tripulantes da nave espacial

Discovery One são incumbidos de ir a Júpiter em uma missão que só será

revelada em seu destino: descobrir qual forma alienígena recebeu o sinal

enviado por um monolito desenterrado por uma missão lunar. O único

tripulante que conhece o real objetivo da missão é HAL 9000, computador

que controla praticamente todas as funções da nave. O astronauta Frank

Pole e os demais tripulantes humanos em hibernação são assassinados

por HAL. Dave Bowman, o astronauta humano que consegue a sobreviver

à paranóia do computador, decide desligá-lo.

Star Wars (1977). Obi-Wan Kenobi, um cavaleiro jedi, e seu aprendiz Luke

Skywalker partem do planeta Tatooine para ajudar a princesa Leia Organa,

que foi capturada por Darth Vader e as forças imperiais. Acompanhados

dos robôs C3-PO e R2-D2, Luke e Obi-Wan contratam um mercenário,

Han Solo, para partirem de Tatooine. Após serem capturados pelas forças

imperiais, Obi-Wan se sacrifica e é morto por Darth Vader, para que os

demais, junto com a princesa, possam fugir. Leia carrega as plantas da

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Estrela da Morte, uma super-arma imperial capaz de destruir planetas

inteiros, que são fundamentais para que os rebeldes organizem um ataque

à ela.

Blade Runner (1982). Em um futuro onde sempre chove e nunca se vê a

luz do sol, Deckard é um policial especializado em caçar replicantes,

andróides de carne e osso, com força e resistência espetaculares

fabricados para trabalhar para os humanos. A missão de Deckard é

“aposentar” quatro replicantes, Roy, Pris, Zhora e Leon, que voltaram a

Terra. Espécimes de um modelo especial, o Nexus 6, os andróides

adquirem aspirações realmente humanas e querem encontrar Tyrrel, dono

da corporação que os fabricou, para descobrir como configurar a

expectativa de vida para além dos 5 anos programados. Para se

familiarizar com o modelo, Deckard é apresentado à Rachel – uma Nexus

6 que pensava ser sobrinha de Tyrrel até ser reprovada no teste de Voight-

Kampff –, por quem acaba se apaixonando.

Tron (1982). Flynn é um ex-engenheiro de software da Encon que foi

despedido após ter seus videogames roubados pelo atual presidente da

empresa, Dillinger. Dono de um fliperama e exímio jogador de videogames

Flynn tenta invadir o sistema da Encon para obter provas do roubo.

Sentindo-se ameaçado, o Master Control Program (MCP), software

ditatorial da Encon, desmaterializa o Flynn de carne e osso e o re-

materializa dentro do ciberespaço. No mundo virtual Flynn descobre que

precisa sobreviver a sucessivos videogames, nos quais o game-over

significa a morte, e encontrar uma forma de ajudar Tron, o avatar de seu

amigo Alan, a derrotar o MCP.

Wargames (1983). David é um hacker que utiliza seus talentos para coisas

ilícitas como mudar as notas da escola e não pagar conta de telefone. Mas

ao tentar invadir uma empresa de videogames para copiar um jogo antes

de seu lançamento, acaba inadvertidamente acessando o WOPR (War

Operation Plan Response), um novo sistema militar de lançamento de

mísseis nucleares. Decidido a jogar com o WOPR uma partida do que

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pensa ser um simples videogame, David coloca o mundo a beira de uma

guerra nuclear.

The Terminator (1984). Sarah Connor é mãe de um futuro líder que

comandará a resistência dos seres humanos contra o domínio das

máquinas. Para evitar isso, as máquinas do futuro enviam para 1984 um

Exterminador, ciborgue desenhado para matar, extremamente forte e

resistente. Para evitar que o Exterminador assassine a mãe do futuro líder,

ele próprio envia para o passado um soldado, Kyle, para protegê-la.

The Lawnmower Man (1992). O Dr. Lawrence Angelo é um cientista de

uma empresa de armas que desenvolve meios de ampliar a capacidade

cognitiva com o uso da realidade virtual. Após alguns insucessos com

chimpanzés, ele decide testar seus métodos em Jobe, um jardineiro com

problemas mentais. Jobe não só desenvolve uma velocidade de raciocínio

e inteligência sobre-humanos como adquire poderes paranormais. Alterado

com seus super-poderes, Jobe planeja se transformar em entidade

puramente ciberespacial para controlar as redes de dados e

telecomunicações do mundo todo.

Johnny Mnemonic (1995). Em um futuro onde ocorre uma epidemia

incontrolável de NAS (Nerve Attenuation Syndrome), doença neurológica

provocada pela tecnologia, Johnny é contratado para traficar dados da

Pharmakon da China para os Estados Unidos. Ele é um courier cibernético

que, graças a um implante, é capaz de carregar dados digitais em seu

cérebro. Contudo, como a Yakuza também está interessada nos dados,

Johnny precisa usar suas habilidades ciberespaciais para salvar sua

cabeça que está, literalmente, a prêmio.

The Matrix (1999). Em um futuro dominado pelas máquinas, a maior parte

da humanidade foi reduzida a geradores de eletricidade e vive uma vida de

simulação na Matrix, um gigantesco sistema de realidade virtual. Neo é um

hacker que consegue se libertar da Matrix com a ajuda de Morpheos, líder

de um grupo de hackers rebeldes. Morpheos acredita que Neo é “O

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Prometido” e o ensina a manipular as regras da Matrix para realizar coisas

impossíveis. O grupo é traído por um de seus integrantes e Morpheos é

capturado pelos programas vigilantes da Matrix, os agentes. Decidido a

salvá-lo, Neo descobre que não só pode desviar de balas, mas pode pará-

las.

Minority Report (2003). A Divisão Anti-Crime da Washington do futuro

conseguiu reduzir os homicídios para zero graças a um sistema

computadorizado que une as visões de três paranormais, os Pré-Cogs,

capazes de prever crimes violentos. O trabalho de John Anderton é

organizar as visões dos Pré-Cogs e identificar o local do crime para que a

polícia possa chegar ao local a tempo de prender o criminoso antes que

perpetre o crime. Uma possível falha do sistema surge quando o próprio

John Anderton se vê nas visões dos Pré-Cogs como um assassino.

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IV.1.2 Ranking de bilheteria dos filmes selecionados

2001: A Space Odyssey Comparativo a partir dos 25 filmes de 1968 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º Funny Girl $ 58.500.000 n. d. n. d.

2º 2001: A Space Odissey $ 56.700.000 $ 190.700.000* $ 10.500.000*

3º The Odd Couple $ 44.527.234 n. d. n. d.

4º Bullit $ 42.300.873 n. d. $ 5.500.000*

5º Romeo and Juliet $ 38.901.000 n. d. n. d.

6º Oliver! $ 37.402.877 $ 40.000.000* $ 10.000.000*

7º Rosemary's Baby $ 33.395.426 n. d. $ 3.800.000*

8º Planet of the Apes $ 33.395.426 n. d. $ 5.800.000*

9º Yours, Mine and Ours $ 25.912.624 n. d. $ 2.500.000*

10º The Lion in Winter $ 22.276.975 n. d. n. d.

25º Doctor Faustus $ 1.000.000 n. d. n. d.* dados obtidos no site “The Internet Movie Database”.

Star Wars Comparativo a partir dos 39 filmes de 1977 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º Star Wars $ 460.998.007 $ 797.900.000 $ 11.000.000

2º Close Encounters of the 3rd Kind $ 166.000.000 $ 303.800.000 $ 20.000.000

3º Saturday Night Fever $ 139.486.124 $ 282.400.000 n. d.

4º Smokey and the Bandit $ 126.737.428 $ 126.737.428 n. d.

5º Goodbye Girl, The $ 83.700.000 n. d. n. d.

6º Oh, God! $ 51.061.196 n. d. n. d.

7º Bridge Too Far, A $ 50.800.000 n. d. $ 26.000.000

8º The Deep $ 50.681.884 n. d. n. d.

9º Rescuers, The $ 48.775.599 n. d. n. d.

10º The Spy Who Loved Me $ 46.800.000 $ 185.400.000 n. d.

39º March or Die $ 1.000.000 $ 1.000.000 $ 7.000.000

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Blade Runner Tron Comparativo a partir dos 127 filmes de 1982 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º ET: The Extra-Terrestrial $431.197.000 $772.000.000 $10.500.000

2º Tootsie $177.200.000 $177.200.000 $15.000.000

3º Officer and a Gentleman, An $129.795.554 $129.795.554 -

4º Rocky 3 $125.049.125 $125.049.125 -

5º Porky's $109.492.484 $109.492.484 $4.000.000

6º Star Trek II: The Wrath of Khan $79.912.963 $96.800.000 $11.000.000*

7º 48 Hours $75.936.265 - -

8º Poltergeist $74.706.019 - $10.700.000*

9º The Best Little Whorehouse in Texas

$69.701.637 - -

10º Annie $57.059.003 - $50.000.000*

21º Blade Runner $34.968.423 n. d. $28.000.000

26º Tron $26.918.576 n. d. $17.000.000*

50º Author! Author! $13.111.101 n. d. n. d.

100º Diva $2.678.103 n. d. n. d.

127º Hammett $8.222 n. d. n. d.* dados obtidos no site “The Internet Movie Database”.

Wargames Comparativo a partir dos 152 filmes de 1983 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º Return of the Jedi $309.205.079,00 $572.700.000,00 $32.500.000,00

2º Terms of Endearment $108.423.489,00 n. d. n. d.

3º Flashdance $90.463.574,00 n. d. $7.000.000,00

4º Trading Places $90.400.000,00 n. d. n. d.

5º WarGames $74.433.837,00 n. d. $12.000.000*

6º Octopussy $67.900.000,00 $183.700.000,00 $27.500.000*

7º Sudden Impact $67.642.693,00 n. d. n. d.

8º Mr. Mom $64.800.000,00 n. d. n. d.

9º Staying Alive $63.841.474,00 n. d. n. d.

10º Risky Business $63.541.777,00 n. d. $6.200.000*

50º Survivors, The $14.000.000,00 n. d. n. d.

100º Traviata, La $3.594.000,00 n. d. n. d.

152º Better Late Than Never $24.164,00 n. d. n. d.

* dados obtidos no site “The Internet Movie Database”.

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The Terminator Comparativo a partir dos 144 filmes de 1983 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º Ghostbusters $238.600.000 $291.600.000 $30.000.000

2º Beverly Hills Cop $234.760.478 $316.300.000 $15.000.000

3º Indiana Jones and the Temple of Doom

$179.870.271 $333.000.000 $28.000.000

4º Gremlins $148.168.459 $148.168.459 $11.000.000*

5º The Karate Kid $90.800.000 n. d. n. d.

6º Police Academy $81.198.894 n. d. n. d.

7º Footloose $80.000.000 n. d. n. d.

8º Star Trek III $76.471.046 $87.000.000 $17.000.000*

9º Romancing the Stone $74.900.000 $114.900.000 n. d.

10º Purple Rain $63.358.487 n. d. n. d.

22º The Terminator $38.019.031 n. d. $6.400.000

50º The Last Starfighter $21.000.000 n. d. n. d.

100º Ninja III: The Domination $5.717.795 n. d. n. d.

144º Crackers (1984) $58.689 n. d. n. d.* dados obtidos no site “The Internet Movie Database”.

The Lawnmower Man Comparativo a partir dos 179 filmes de 1992 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º Aladdin $217.350.219 $501.900.000 $28.000.000

2º Home Alone 2: Lost in New York $173.585.516 $279.600.000 $20.000.000

3º Batman Returns $162.831.698 $282.800.000 $80.000.000

4º Lethal Weapon 3 $144.731.527 $319.700.000 n. d.

5º A Few Good Men $141.340.178 $236.500.000 $33.000.000*

6º Sister Act $139.605.150 $231.600.000 n. d.

7º Bodyguard, The $121.945.720 $410.900.000 n. d.

8º Wayne's World $121.697.323 $121.697.323 n. d.

9º Basic Instinct $117.727.224 $352.700.000 $49.000.000

10º A League of Their Own $107.533.925 n. d. $40.000.000

42º Lawnmower Man, The $32.100.816 n. d. $10.000.000*

50º Hoffa $23.365.858 n. d. n. d.

100º Gladiator, The $8.205.703 n. d. n. d.

179º Rain Without Thunder $5.000 n. d. n. d.

* dados obtidos no site “The Internet Movie Database”.

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Johnny Mnemonic Comparativo a partir dos 235 filmes de 1995 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º Toy Story $191.796.233 $356.800.000 $30.000.000

2º Batman Forever $184.031.112 $335.000.000 $100.000.000

3º Apollo 13 $172.070.496 $334.100.000 $65.000.000

4º Pocahontas $141.579.773 $347.100.000 $55.000.000*

5º Ace Ventura: When Nature Calls $108.360.063 $212.400.000 $30.000.000*

6º Goldeneye $106.429.941 $351.300.000 $80.000.000*

7º Jumanji $100.458.310 $264.700.000 $65.000.000

8º Casper $100.328.194 $282.300.000 $55.000.000

9º Se7en $100.125.643 $328.125.643 $30.000.000

10º Die Hard: With a Vengeance $100.012.499 $365.000.000 $90.000.000*

50º Money Train $35.324.232 $77.200.000 $68.000.000

84º Johnny Mnemonic $18.976.621 $33.300.000* $26.000.000*

100º Highlander: The Final Dimension $13.715.170 n. d. n. d.

200º Underneath, The $536.023 n. d. n. d.

235º Business Affair, A $5.000 n. d. n. d.

* dados obtidos no site “The Internet Movie Database”.

The Matrix Comparativo a partir dos 428 filmes de 1999 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º Star Wars: Phantom Menace $431.088.297,00 $925.600.000,00 $115.000.000,00

2º Sixth Sense, The $293.501.675,00 $672.800.000,00 $40.000.000,00

3º Toy Story 2 $245.823.397,00 $485.800.000,00 $90.000.000,00

4º Austin Powers: The Spy Who Shagged Me

$206.040.085,00 $309.600.000,00 $35.000.000,00

5º Matrix, The $171.479.930,00 $456.500.000,00 $65.000.000,00

6º Tarzan $171.091.819,00 $447.100.000,00 $145.000.000,00

7º Big Daddy $163.479.795,00 $233.800.000,00 $30.000.000,00

8º Mummy, The $155.385.488,00 $413.500.000,00 $80.000.000,00

9º Runaway Bride $152.149.590,00 $307.900.000,00 $70.000.000,00

10º Blair Witch Project, The $140.539.099,00 $248.300.000,00 $35.000,00

50º House on Haunted Hill $40.846.082 n. d. $19.000.000

100º Tea with Mussolini $14.395.874 n. d. $14.000.000

200º Tumbleweeds $1.350.248 $1.788.168 $312.000

400º Getting to Know You $5.000 n. d. n. d.

428º Summerspell $603 n. d. n. d.

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Minority Report Comparativo a partir dos 464 filmes de 2002 com informações disponíveis no site “The Numbers”.

Rank. Título original Bilheteria EUA

(US$) Bilheteria mundial

(US$) Orçamento (US$)

(estimativa)

1º Spider-Man $403.706.375 $821.700.000 $139.000.000

2º Lord of the Rings: The Two Towers

$341.784.377 $924.291.552 $94.000.000

3º Star Wars: Attack of the Clones $302.181.125 $648.200.000 $115.000.000

4º Harry Potter and the Chamber of Secrets

$261.987.880 $869.400.000 $100.000.000

5º My Big Fat Greek Wedding $241.437.427 $353.900.000 $5.000.000

6º Signs $227.965.690 $407.900.000 $70.000.000

7º Austin Powers in Goldmember $213.079.163 $292.700.000 $63.000.000

8º Men in Black 2 $190.418.803 $440.200.000 $97.000.000

9º Ice Age $176.387.405 $375.600.000 $65.000.000

10º Chicago $170.684.505 $306.400.000 $30.000.000

17º Minority Report $132.014.112 $342.000.000 $102.000.000

50º Like Mike $51.432.423 n. d. $30.000.000

100º Adam Sandler's 8 Crazy Nights $23.607.202 n. d. n. d.

200º State Property $2.099.719 n. d. n. d.

400º Scarlet Diva $18.062 n. d. n. d.

464º Besotted $656 n. d. n. d.

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IV.2. As alegorias da tecnologia

Figura 66 (Metropolis)

Figura 67 (Metropolis)

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Para o realismo da diegese fílmica não importam as premissas e implicações

científicas ou tecnológicas do impossível, mas sim sua “aparência” de cientifico e

tecnológico, articulada em alegorias e racionalizações que reduzem o mito “às

normas da objetividade ou, pelo menos, envolto em verossimilhança” (cf. Morin, 1970,

p. 200). É a tendência que se materializa no culto ao gadget, simulação de tecnologia

e produto da obsessão moderna por máquinas. Daí as alegorias mais incoerentes ou

supérfluas não conspirarem contra o realismo do filme, ao contrário, com freqüência,

são recursos que privilegiam a performance visual em detrimento das implicações

científicas, reforçando racionalizações que passariam despercebidas. Constituem

estereotipações distantes da realidade técnica e científica, freqüentemente

inconsistentes nesses termos, porém revestidos de certos traços essenciais

adequados para conferir o realismo necessário à diegese fílmica. Introduzem certas

“condições de (...) de veracidade que asseguram a comunicação com a realidade

vivida” (Morin, 1967, p. 86) no seio do impossível e do desconhecido, da ciência

regredida ao nível do mito. São as alegorias tecnológicas – figurações do “cérebro

eletrônico”, da informação automática, da realidade virtual, dos biônicos e gadgets

acopláveis ao corpo – que tornam imaginariamente concebíveis mundos onde seres

humanos vivem imersos no ciberespaço, assassinos são condenado por assassinato

antes de cometê-los e as máquinas são dotadas de consciência.

Desde cedo, a indústria do cinema representa a tecnologia com alegorias

construídas a partir de significantes conhecidos do senso comum. O andróide de

Metropolis (fig. 66), é uma alegoria de gente e máquina, bricolagem de articulações e

encaixes com estilizações de costelas, seios, abdômen e rosto estampados em metal.

É também uma alegoria que, apesar de tecnológica, incorpora a simbologia mística: a

cabeça da máquina é coroada por uma auréola metálica e a andróide surge no filme

sentada em um trono exatamente à frente de um grande pentagrama, do qual uma

das pontas termina por trás de sua cabeça. Rotwang, “o inventor”, diz para Johhan:

“Então, Joh Fredersen?! Não valeu a pena a perda de uma mão para criar o homem

do futuro, o Homem-Máquina?” [grifo da legenda do filme], exibindo orgulhosamente

tanto sua obra como sua mão, supostamente artificial, coberta por uma grossa luva.

Ele vai ainda mais longe: “Me dê outras 24 horas, e ninguém, Joh Fredersen,

ninguém poderá distinguir o Homem-Máquina de um mortal!”. A fusão de Maria (fig.

67) com o andróide é um notável exemplo de como as alegorias tecnológicas estão

ancoradas em seu próprio presente, mesmo que articulem um imaginário – o do

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ciborgue, neste caso – muito à frente de seu tempo. Assim, os traços genéricos do

técnico e do científico assentam-se sobre a estereotipação visual da eletricidade e da

química. Em um mundo ainda desprovido de raios lasers, computadores, painéis de

controle eletrônicos e plásticos, o laboratório de Rotwang é uma grande alegoria

construída com arcos voltaicos, relógios, chaves, alavancas e acessórios de vidro. A

cada girar de chaves e alavancas, vemos um gadget entrar em funcionamento: luzes

se acendem, líquidos borbulham em tubos e recipientes de vidro, faíscas surgem de

relés expostos sobre isoladores de cerâmica, arcos voltaicos disparam sobre o domo

cilíndrico de vidro onde Maria jaz inconsciente, círculos de luz oscilam em torno da

máquina humanóide. Assim, mediado pelas figurações da química e da eletricidade,

aos poucos a andróide adquire os atributos humanos de Maria, vemos um coração e

circulação sanguínea que brilha no corpo da máquina que antecede o surgimento do

Golem do “barro” tecnológico, com a metamorfose da face metálica do andróide na

face humana de Maria.

Durante décadas, as alegorias da tecnologia foram fundamentalmente

estereotipações de gadgets elétricos, químicos ou mecânicos, onde luz, fumaça e

movimento transformavam o técnico-científico em metáforas visuais. A matemática e

a geometria, em geral, não produziram figurações marcantes até o surgimento da

computação e sua assimilação pela cultura de massas. Segundo o artigo de

Winegrad e Akera (1996), ENIAC: A Short History of the Second American

Revolution, para demonstração pública do ENIAC em 1946, as lâmpadas de

monitoramento dos acumuladores do ENIAC foram cobertas com meias-esferas

translúcidas, na verdade bolas de ping-pong cortadas ao meio. Desde então, “as

luzes piscantes de computadores (...) têm sido parte da cena envolvendo

computadores e ficção cientifica”. Contudo, essa forma de se estereotipar a

computação não era algo visualmente inédito, visto que luzes piscantes sempre

fizeram parte, e ainda fazem, do repertório de alegorias tecnológicas. A verdadeira

inovação dessas alegorias aconteceu em 1969, no filme 2001: A Space Odissey que

transformou as alegorias tecnológicas com a incorporação de novos estereótipos,

relacionados com a computação. Ao mecânico e elétrico introduziu-se o informático,

que se tornou indissociável da idéia de “cibernético”, cada vez mais consolidado

como categoria de apreensão da realidade.

A palavra computar vem do latim computare, que significa calcular, contar,

fazer o cômputo, avaliar. Não por acaso, os códigos e signos matemáticos (números,

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equações, enunciados) e os traços geometrizados são praticamente onipresentes nas

estereotipações da computação. Na construção fílmica, tais signos ganham novos

sentidos e referem-se a imagens mentais diferentes daquelas às quais estão

relacionados em seus contextos originais. Reduzidos a estereótipos eminentemente

visuais, em detrimento de seus significados originais, e inseridos em novos contextos

de significação, os caracteres matemáticos e seus enunciados (ou a aparência de

enunciados) são incorporados no que podemos chamar de alegorias tecnológicas. Os

significados originais não são importantes sendo, muitas vezes, articulados como

mensagens propositalmente ininteligíveis, justamente para simular o distanciamento e

opacidade em relação ao senso comum, reforçando a aparência de cientificismo e

tecnicidade. De fato, desde que mobilizados como um discurso visual destinado ao

público leigo, a alegoria tecnológica não tem nenhum compromisso com o sentido

original dos signos que o compõe, o que resulta, na maior parte das vezes na

bricolagem de pseudomensagens tecnológicas, destituídas de qualquer sentido se

extraídas do contexto visual do filme. Já a reta, signo intermediário entre o número e

a imagem, é também, além de um dos símbolos mais simples da racionalidade

humana, um forte índice de oposição à natureza: a reta é, antes de tudo, produto da

abstração humana. Não existem retas na natureza e a associação visual com elas

simboliza uma oposição ao “estado de natureza” das coisas. Nas representações da

realidade virtual freqüentemente vemos estereótipos que têm nas retas o seu

elemento estrutural mínimo, como se assim traduzissem de forma visual a

matematização do universo. A esses estereótipos acrescenta-se outro complementar:

o traço, abstração típica do desenho técnico, relacionado ao reducionismo no qual o

mundo visual pode ser esquadrinhado, medido, equacionado, e reconstruído em

“wireframes” (“modelos em arame”) sob referência do número e da reta.

Nas diegeses fílmicas, o código lógico-matemático, as formas geométricas

primitivas e o wireframe são figurações recorrentes das alegorias tecnológicas,

largamente utilizadas para tipificar as realidades virtuais e os gadgets

computacionais. É essa tendência alegórica que já estava anunciada no design dos

instrumentos das naves espaciais de 2001: A Space Odyssey. Dentre os gadgets, as

inumeráveis bugigangas com luzes e indicadores diversos, destacam-se as telas de

raios catódicos para as quais os pilotos sempre olham para conduzir as naves

espaciais. No filme, quando o ônibus espacial se aproxima da estação orbital, a

seqüência (fig. 68) oferece uma visão privilegiada do interior da cabine do piloto. Do

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lado de fora da nave, no espaço, desloca-se uma estrutura em forma de anel duplo

girando em seu próprio eixo: é a estação orbital, o destino do ônibus espacial. O

interior da cabine é escuro, o que dá destaque à imagem do exterior, ao mosaico de

luzes dos indicadores e botões e às telas localizadas, estrategicamente, no centro da

cena. São cinco telas, duas no painel de instrumentos superior e três no console

central entre os pilotos. As telas superiores e laterais do console central exibem

alternadamente fórmulas, tabelas, e gráficos matemáticos com curvas em duas e três

dimensões, enquanto a tela central do console exibe uma mira vermelha sobre um

conjunto de traços verdes que formam retângulos do mesmo tamanho. No decorrer

da aproximação da nave à estação orbital podemos ver que o conjunto de traços

retangulares que compõe a imagem por trás da mira na tela possui um movimento de

paralaxe e rotação que supostamente acompanha a posição absoluta da estação

orbital. Assim, mesmo quando, da perspectiva do piloto, a estação parece não girar, a

pequena simulação composta de traços retangulares permanece em rotação.

O filme apresenta esse modelo de simulação com pequenas variações em

outras cenas. O transporte da estação orbital para a estação lunar é realizado por

uma outra nave, cuja manobra de aterrissagem ocorre sem o contato visual dos

pilotos com a plataforma. Eles se orientam por uma imagem, exibida pelo monitor

central do painel de pilotagem, composta por círculos de diferentes tamanhos cujos

centros se movem para um ponto comum, demarcado pelo cruzamento de duas

linhas perpendiculares (fig. 69). O alinhamento dos círculos é anunciado visualmente

nessa tela por um aviso textual, por uma barra graduada à esquerda do conjunto e

por cantoneiras invertidas que realçam o centro da composição, indicando que o alvo

foi atingido e que a nave está alinhada com a plataforma de pouso. Em outra

seqüência, quando o protagonista Dave Bowman resgata o corpo do seu colega com

o módulo de manutenção espacial (fig. 70), a densidade de gadgets na cena,

começando pelo próprio traje de astronauta de Dave, conota uma “tecnicidade” maior

que nas demais seqüências que mostram cabines de pilotagem das naves espaciais.

Dentre as luzes do painel e as várias telas do módulo de manutenção, ricas em

gráficos matemáticos, uma das telas é destacada e, como nas demais cenas, é a que

exibe um modelo de simulação do espaço exterior. A tela mais olhada por Dave, e

pelo espectador por conta do close-up no painel de instrumentos, é a que antecipa a

aproximação do alvo – por meio de uma composição de traços que sobrepõe

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coordenadas circulares e retilíneas, acompanhadas de códigos textuais – antes

mesmo que ele seja visualizado: o corpo do colega de Bowman, Frank Poole.

Os instrumentos de navegação em 2001: A Space Odyssey são claramente

tipificações da computação e da aviônica (instrumentação de aviões). Mas eles

contêm algo de inovador para uma época na qual a televisão ainda era um artigo de

luxo. Os monitores raramente exibem imagens de câmeras, exibem números,

equações, gráficos matemáticos e modelos animados que simulam a realidade

exterior: são figurações do imaginário das possíveis “interações humano-computador”

(IHC) e que se tornaram prototípicas nas diegeses fílmicas posteriores. Reproduzem

o que pode ser identificado como produto do “fato diverso”, banalizações e

simplificações veiculadas cotidianamente nos meios de comunicação de massa, mas

também são objetivações da tecnologia e da ciência, estereotipadas em pequenas

unidades semânticas acessíveis ao público leigo – a reta, o círculo, a matriz de linhas,

o número, a equação, o código, o gráfico matemático – capazes de fornecer as

racionalizações que dão ar de plausibilidade ao imaginário e ao fantástico.

Apesar de realizado em um período anterior ao uso das interfaces gráficas e

dos modernos programas de CAD (computer aided design), o filme já cita o

“wireframe”, ou “modelo em arame”. O wireframe é produto inerente ao processo de

representação técnica da forma, é o desenho ou modelo em linhas que materializa a

primeira instância de realização dimensional e figurativa do objeto, tanto em duas

como em três dimensões. Com as possibilidades de automatização da sua

visualização pelo computador, antes dependente do exaustivo e extenso trabalho

braçal do desenhista técnico, o wireframe tornou-se o estereótipo mais paradigmático

da realidade virtual computadorizada. A cena em que o computador HAL 9000 sugere

que há um problema na unidade “AE-35” é ilustrada com imagens de um modelo

virtual em 3 dimensões em uma das telas do computador (fig. 71). O modelo em

wireframe é rotacionado em três eixos perpendiculares de forma a exibir, sem

interrupção, as suas vistas ortogonais. A cena dá ênfase ao sensível (o analógico, a

similaridade entre as imagens do modelo virtual e as imagens do objeto real) em

detrimento do inteligível (o digital, o textual). E, mesmo aquilo que se propõe ser

“digital” e “textual” , como ocorre nas demais partes do filme, não passa de uma

estereotipação do código alfa-numérico cujo sentido literal é simbolicamente

insignificante. Com efeito, na cena do “diagnóstico” do módulo supostamente

defeituoso (fig. 72), os textos que piscam, se alternam, se atualizam conforme o

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modelo em wireframe gira na tela não parecem fazer o menor sentido para a

linguagem humana, exceto como algo que tem a “aparência” de texto técnico-

científico. Esses textos, juntamente com a matriz quadriculada que acompanha a

imagem em wireframe do módulo, são apenas signos visuais que ao mesmo tempo

em que ilustram as possibilidades imaginativas do computador, conotam a

“objetividade” da técnica e da ciência.

As alegorias baseadas em wireframes também surgem em outra grande

referência de uma cibercultura emergente do final da década de 1970: Star Wars.

Como forma de conferir um ar “tecnológico” aos combates espaciais os wireframes

sempre estão presentes de alguma forma. Em algumas seqüências, as naves

inimigas são reproduzidas em “wireframe” nas miras dos caças espaciais (fig. 73) e

em outras seqüências, o caminho percorrido pela nave aparece na forma de um

esquema visual que associa um “cenário” quadriculado a duas barras verticais que se

movem para o centro conforme o “alvo” se aproxima (fig. 74), em uma lógica visual

muito similar ao painel da nave utilizada por Dave para resgatar o corpo de Frank (fig.

70). Entretanto, a alegorização tecnológica não impede que estereótipos antigos

façam parte da alegoria. Na seqüência em que a espaçonave Millenium Falcon é

atacada pelos caças do Império, a performance nas cenas é praticamente a mesma

daquela vista nos filmes que retratam batalhas aéreas das fortalezas voadoras B-17

americanas da II Grande Guerra. Esta é a referência de senso comum que é

“modernizada” e “tecnologizada” com um cenário cheio de plásticos, luzes e armas

“laser” com “displays” que reproduzem a “movimentação” dos inimigos dentro de

grades quadriculadas (fig. 75).

De forma análoga, Blade Runner une esterótipos antigos e novos nas suas

alegorias tecnológicas. O antigo, muito presente nos figurinos e alguns cenários, é

“modernizado” com máquinas e aparelhos esquisitos, como o utilizado durante o

“teste Voight-Kampff” de “detecção de andróides”: uma geringonça dotada de um

braço com uma câmera na ponta, caixas com luzes piscantes e monitores de TV, com

destaque ao monitor maior que exibe o close-up do olho do interrogado (fig. 76). Mas

é, ainda, uma alegoria sem muitos estereótipos computacionais, não possui índices

de que é uma máquina pensante. Ao contrário, o painel do veículo policial e o

equipamento de ampliação de fotografias são nitidamente “computadorizados”. Na

seqüência em que o veículo policial leva Deckard para a delegacia (fig. 77), pode-se

ver um monitor que exibe códigos alfanuméricos e esquemas de uma plataforma

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circular esquadrinhada por uma matriz, em uma montagem bastante similar à do

pouso lunar em 2001: A Space Odissey (fig. 69).

Figura 68 (2001: A Space Odyssey)

Figura 69 (2001: A Space Odyssey)

Figura 70 (2001: A Space Odyssey)

Figura 71 (2001: A Space Odyssey)

Figura 72 (2001: A Space Odyssey)

Figura 73 (Star Wars)

Figura 74 (Star Wars)

Figura 75 (Star Wars)

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Figura 76 (Blade Runner)

Figura 77 (Blade Runner)

Figura 78 (The Matrix)

Figura 79 (The Matrix)

Figura 80 (The Six Million Dollar Man)

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A união de estereótipos da tecnologia antiga, muito similares esteticamente

com aqueles encontrados em Metropolis, e estereótipos das novas tecnologias

cibernéticas persistem até em filmes mais recentes, não havendo indicação de que os

arcaísmos tecnológicos incorporados aos artefatos estejam relacionados

exclusivamente ao nível tecnológico da sociedade na época de produção do filme. Ao

contrário, muitas vezes, é o que pretende ser futurista aquilo que mais parece velho

nesses filmes. The Matrix, por exemplo, exibe junto com seu discurso “super-futurista”

incontáveis símbolos do arcaísmo tecnológico: engrenagens, faíscas, seringas,

gadgets eletro-mecânicos. A sala onde se dá a “desconexão” de Neo da Matrix é uma

grande alegoria tecnológica no seu sentido mais pleno (fig. 78). Talvez o telefone

antigo acoplado a um dispositivo mecânico de “discagem automática” seja o exemplo

mais significativo desse cenário abundante de artefatos que, apesar de eletrônicos,

informáticos e telemáticos, têm aparência de antiguidades, em caixas de ferro, com

engrenagens, alavancas e fios expostos.

O antigo, em The Matrix, está vinculado ao mundo presencial: ou é o próprio

“Real World”, como o chamam os personagens, ou é um canal conectado a ele. A

nave onde Neo é acolhido depois de ser desconectado da Matrix é um artefato que

mais parece ter saído de um conto de Júlio Verne. Seus controles, assim como dos

equipamentos do “mundo real” em geral se assemelham aos encontrados nos filmes

de ficção científica dos anos 50 e, para a imersão no mundo high-tech da Matrix, as

pessoas precisam conectar um enorme e primitivo plug metálico nas suas nucas. Em

outra seqüência (fig. 79), quando Neo é reconectado à realidade virtual, o ambiente

clean e homogêneo do ciberespaço contrasta com o ambiente presencial precedente:

sujo, velho, populado por pessoas subnutridas e maltrapilhas.

É evidente a importância dos estereótipos da computação na “modernização”

das alegorias tecnológicas, mesmo que elas sejam tão arcaicas quanto as alegorias

de Metropolis. Os estereótipos do wireframe e do código alfanumérico – figuração

tanto do discurso científico como da linguagem de máquina – são praticamente

signos indispensáveis nas alegorias tecnológicas relacionadas ao cibernético de uma

forma geral. Ainda no início da década de 1970, a abertura da série de TV “Six Million

Dollar Man” já incorporava a alegorização do ciborgue com a bricolagem de

estereótipos do corpo humano, da máquina e do computador. O nome do seriado

aparece sobre o piscar de luzes em uma trama quadriculada (um computador?). Toda

a apresentação é acompanhada de um número aleatório exibido no canto da tela.

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Logo após as cenas do desastre de uma espaçonave, enquanto a voz em off diz

“Steve Austin, astronauta, um homem que mal está vivo”, passam as cenas de uma

sala de cirurgia e o rosto de um homem inconsciente. É a imagem da fragilidade da

carne. Mas a voz continua:

Cavalheiros, nós podemos reconstruí-lo. Nós temos a tecnologia. Temos a

tecnologia para construir o primeiro homem biônico do mundo. Steve Austin

será este homem. Melhor do que era antes. Melhor, mais forte, mais rápido.

Wireframes mostram partes do corpo como uma superfície mapeada para a

intervenção biônica. Os modelos coloridos e com aparência de simulação

computadorizada que surgem dentro do boneco virtual quadriculado emprestam a

conotação de “precisão” e “superioridade” às máquinas que aparecem em seguida,

em uma sala de operações, supostamente sendo implantadas no corpo humano. As

cenas que fundem os gráficos de uma tela de um osciloscópio – que exibe um traço

que se move rapidamente, em oposição ao monótono e regular traço do

eletrocardiograma humano – com a imagem do “novo homem” correndo evocam o

“desempenho” superior do ser humano reconstruído pelas tecnologias cibernéticas

(fig. 80).

Em 1984, a alegoria do “built machine-man” ganhou novos horizontes com

The Terminator, onde somos confrontados com um ciborgue que inverte a hierarquia

dos termos: ao invés do ser humano ser melhorado com o acoplamento da máquina,

é a máquina que é melhorada com o acoplamento de uma casca de carne. Assim, o

filme apresenta, vez e outra, estereótipos da computação incorporados às imagens

que o exterminador vê, a “perspectiva de mundo” do ponto de vista da máquina por

meio de imagens transformadas por tecnologias que supostamente “melhoram” a

percepção visual e “turbinadas” com gráficos matemáticos e figurações de códigos de

computador (fig. 81). Em outro caso, quando o exterminador rouba um caminhão, o

desenho esquemático em linha estereotipa um “processo” de coleta e “aprendizado” a

partir das informações de sua memória digital (fig. 82).

Mais ou menos no mesmo período, em 1982, o filme Tron introduziu, sob

influência dos videogames, o imaginário do ciberespaço como um espaço de imersão

do ser humano. As referências visuais, entretanto, a despeito da sofisticação das

imagens proporcionadas, não só pela evolução tecnológica, mas também por novas

possibilidades imaginativas, permaneceram articuladas por estereótipos baseados na

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geometrização da forma, no desenho em linha e no código alfanumérico. O filme nos

apresenta um ambiente ciberespacial do ponto de vista das entidades digitais,

representando-o como um mundo paralelo que, apesar do “funcionamento

fenomênico” similar ao mundo presencial do qual supõe-se ser extensão, é marcado

por amplos espaços planos cobertos por linhas quadriculadas ou padrões similares,

sobre os quais erguem-se formas geométricas regulares e paredes retilíneas, dotadas

de superfície extremamente homogêneas e pontuadas por grafismos e estilizações

futuristas. É nesse ambiente que entidades de aparência humana, “alter-egos” dos

jogadores de videogame (fig. 83) e usuários de computador (fig. 84), evolucionam em

máquinas virtuais espetaculares.

De fato, foi Tron que popularizou o padrão quadriculado e o wireframe como

“traços característicos” por excelência da “realidade virtual” – em oposição à ausência

desses “traços” in natura na “realidade presencial”. Assim, o wireframe e os padrões

quadriculados – a princípio, instrumentos que precedem o “rendering35” das imagens

produzidas por computador – são incorporadas como figurações que permanecem

ostensivamente nas cenas que retratam o ciberespaço, ou quando a cena que

pretende retratar o virtual é resultado da filmagem convencional, traços e padrões

similares ao wireframe são reproduzidos no cenário físico ou por trucagem óptica a

fim de simular a simulação que não pôde, por limitações tecnológicas da época, ser

realizada. A realidade virtual representada em Tron é o campo da experiência no

ciberespaço. O filme introduz a realidade virtual não apenas como mera simulação ou

imitação da realidade presencial, mas também como o mundo da hiper-realidade

sintética que se opõe ao presencial pelo exagero do conceito que homogeneíza e

uniformiza. É o mundo clean, esterilizado pela fórmula dos modelos

computadorizados que proporcionam experiências em ambientes limpos, sem ruídos

visuais e delimitados por traços e formas uniformes demarcadas por geometrias

simples onde predominam a reta.

35 Processo que resulta na visualização das superfícies do modelo computadorizado. A visualização em wireframe é uma visão ainda esquemática do modelo que, em tese, desaparece com o processo de rendering.

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Figura 81 (The Terminator)

Figura 82 (The Terminator)

Figura 83 (Tron)

Figura 84 (Tron)

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Figura 85 (Tron)

Figura 86 (Johnny Mnemonic)

Figura 87 (Tron)

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Figura 88 (Johnny Mnemonic)

Figura 89 (The Matrix)

Figura 90 (The Matrix)

Figura 91 (The Matrix)

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Figura 92 (The Matrix)

Figura 93 (The Matrix)

Figura 94 (The Matrix)

Figura 95 (The Matrix)

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Tron também associa esse mundo da hiper-realidade com o mundo do

impossível: ao exagero visual se associa o exagero do desempenho. Na seqüência

onde dois times se enfrentam com as lightcycles (fig. 85), as máquinas virtuais

“surgem” em torno dos jogadores, reproduzindo o próprio processo de “rendering” da

computação gráfica: o desenho em linha do wireframe se materializa por “camadas”

e, depois de atingida a forma final do objeto, o “modelo em arame” é coberto por

superfícies uniformes até que se torne opaca. As lightcycles possuem aceleração

irreal e realizam impossíveis curvas em ângulo reto. A ampla flexibilidade das leis

físicas também se aplica às câmeras, que juntamente com as motos, realizam

travelings fisicamente impossíveis e não possuem restrições de profundidade de

campo. Tron também introduziu a noção de que o ciberespaço é uma realidade virtual

na qual a mesma simulação que reproduz o funcionamento do mundo presencial é

também o modelo de superação desse mundo. Com esse filme, a realidade virtual

passa a ser o elemento de racionalização narrativo segundo o qual podemos

conceber mundos onde a flexibilização e ruptura das regras às quais habitualmente

estamos submetidos dão abertura para experiências impossíveis de serem vividas

fora do ciberespaço.

A penetração da computação e dos gadgets cibernéticos reais na vida prática

das pessoas, a partir do fim da década de 1980, não mudou em essência o

imaginário do ciberespaço. Ainda que o advento da interface gráfica, do mouse e da

Internet tenham trazido o ciberespaço para o dia-a-dia das pessoas e estejam

tornando progressivamente indistinta a descontinuidade entre virtual e presencial na

vida prática (o quanto do e-mail é presencial e o quanto dele é virtual?), as

construções fílmicas permanecem, como em Tron, fortemente marcadas pela

oposição do presencial e do virtual. Essa oposição é, ainda, como mostram os filmes

da década de 1990 e pós-2000, ancorada nos mesmos estereótipos da computação,

ainda que travestidas em figurações tecnologicamente atualizadas. Assim, apesar de

Jonnhy Mnemonic nos apresentar a Internet como um mundo de imersão total

alcançado com o uso de “visores de realidade virtual”36, que produzem a ilusão de

profundidade, e data-gloves, luvas que capturam movimentos das mãos para

reconstruí-las na realidade virtual, alegorias lisérgicas baseadas em estereotipações

de códigos matemáticos, wireframes, matrizes quadriculadas e formas geométricas

36 Tecnicamente conhecidos como HMD (Head Mounted Display).

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regulares são bastante visíveis nas suas imagens do ciberespaço. Nesse sentido,

chega a ser notável a semelhança entre as figurações da realidade virtual na

seqüência na qual Johnny realiza um upload de dados diretamente para o seu

cérebro (fig. 86), as imagens de Tron dos ambientes liminares que mediam a entrada

(fig. 87) e a saída de Flynn do ciberespaço.

Em outra seqüência que ilustra a relação de Johnny com o ciberespaço (figs.

88), assim que ele estabelece a conexão com o ciberespaço vemos o que

supostamente ele vê por meio dos visores: sobre um limbo negro, suas mãos virtuais,

os dizeres “INTERNET LOCAL TIME: 10:15:37 PM” e um código de barras com uma

seqüência numérica que retoma, de forma mais gráfica, o estereótipo do signo lógico-

matemático. O gestual de Johnny denota a interação exclusiva com o ciberespaço: os

movimentos de suas mãos realizados no vazio são reproduzidos pelas mãos virtuais

que manipulam a realidade virtual que se materializa à frente de seus olhos. Apesar

da maior densidade visual do que a encontrada em Tron, no ciberespaço de Johnny

Mnemonic ainda podemos ver a predominância das formas geométricas regulares e

sua organização ortogonal. E, conforme Johnny penetra nas camadas mais atômicas

da informação – Internet, mundo, China, Beijing, Hotel – o wireframe e a uniformidade

de superfície tornam-se cada vez mais evidentes, até que ele chega a um banco de

dados com informações organizadas visualmente em forma de matriz.

O uso de figuras matriciais ou que fazem alusão à matriz é um dos recursos

mais recorrentes nas alegorias da tecnologia. Nelas, a presença da matriz indica

tanto aquilo que é sintetizado por meio do número como indica a presença de um

cogito artificial do qual eliminou-se qualquer traço não cartesiano. Manifestação visual

da ortogonalidade típica da geometria analítica, o plano quadriculado é sobretudo

símbolo de uma tradição cartesiana de pensar o mundo. A matriz é índice de

objetividade, da apropriação do mundo ou da criação de outros sob a exatidão e

regularidade do número. Indica também controle obtido pela redução do universo às

coordenadas geométricas e equações.

A matriz aparece desde os primórdios dos filmes ciberculturais – nas telas

dos consoles do HAL 9000 em 2001: A Space Odissey, na apresentação do Six

Million Dollar Man, nos artefatos de mira de Star Wars, em todo o background do

ciberespaço de Tron, nos instrumentos dos veículos e no dispositivo de edição

fotográfica de Blade Runner – e mesmo que em filmes mais recentes, ainda que

tenha se tornado mais “discreta”, ou mais camuflada por trás das linhas subliminares

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dos objetos em cena, a matriz continua sendo o estereótipo mais importante quando

se deseja conotar “tecnicidade” ou “artificialidade” às construções imagéticas da

tecnologia.

Não por acaso, em The Matrix, as linhas de grade estão, invariavelmente,

presentes no cenário – na forma de objetos comuns do mundo presencial, tais como

janelas, azulejos, estruturas, prateleiras, ladrilhos – como índices visuais de que o

ambiente no qual os personagens estão evolucionando é uma construção “virtual” de

computador, apesar de possuir sempre uma aparência “fotográfica” e de ser, quase

sempre, fenomenologicamente aceitável como representação fílmica do mundo onde

(nós, espectadores) vivemos.

Em The Matrix, às vezes, as alusões à linha de grade são sutis, outras nem

tanto. Na seqüência em que os agentes procuram por Neo em seu escritório (fig. 91),

os móveis, as baias e o teto marcam linhas paralelas verticais e horizontais no

cenário. Na cena após sua captura (fig. 92), a sala de interrogatório é introduzida

visualmente por vários monitores de TV dispostos em matriz. O interrogatório se dá

sobre planos quadriculados marcados pelas linhas da parede, atrás dos personagens.

A luta de kung-fu entre Neo e Morpheos no “programa de treinamento” (fig. 94) é

ambientada em uma edificação tipicamente oriental, cujos padrões quadriculados são

realçados e dominam todo o cenário da ação: a estrutura de madeira, as portas, as

armações de papel, o tatame, o forro. Não é difícil enxergar nas cenas da luta de

kung-fu em The Matrix a mesma composição visual das cenas das lightcycles ou dos

tanques de guerra virtuais de Tron.

The Matrix mostra um ciberespaço de aparência fotográfica – praticamente

rompendo com a estética da imagem sintética inaugurada com Tron – e muito

próxima da realidade presencial tal qual a conhecemos. São, contudo, imagens

marcadas pela ostensiva e exagerada presença da organização matricial, um típico

índice de artificialidade associado à computação. Assim, mesmo em cenas em que a

desorganização e a sujeira predominam, elas são pontuadas pela organização

matricial. Na seqüência em que Neo e Morpheos dirigem-se ao encontro do Oráculo,

o ambiente que eles percorrem é notavelmente sujo e desorganizado. Em uma das

cenas há um mendigo sentado com seus pertences, um carrinho de mão com um

trapo jogado de um lado e uma garrafa pousada sobre uma pilha de entulho do outro

lado. Apesar da sujeira, da parede e do banco pichados, a figura do mendigo é

emoldurada por um mosaico retangular formado por linhas perpendiculares entre si e

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quadrados vermelhos (fig. 91). Na cena seguinte, quando Neo e Morpheos já estão

no elevador, o padrão matricial é reafirmado pelo painel de botões do elevador. O

interior da casa que Morpheos e sua gang costumam utilizar para entrar e sair da

Matrix também tem seus padrões visuais regulares disfarçados pela imundície. Na

seqüência em que eles são emboscados nessa casa (fig. 93), as saídas da casa são

fechadas com paredes de tijolos expostos e as luzes aleatórias dos policiais iluminam

ambientes que revelam as linhas do azulejo e quadriculados do piso xadrez por baixo

da sujeira e do pó. Em The Matrix, o predomínio da sujeira e a desorganização

aparente estão associados aos interstícios do controle da Matrix, ainda que a

presença do padrão matricial marque o pertencimento ao ciberespaço. Inversamente,

a exacerbação da composição matricial e das linhas retilíneas em cenários

impecavelmente limpos e uniformes, sem ruídos e interferências visuais, conota

“controle”. Todo o cenário do interrogatório de Morpheos pelo agente Smith (fig. 94) é

uma apoteose do retilíneo: o abajur, a poltrona, as janelas dos prédios ao fundo, os

enormes vidros retangulares e mesmo as bolinhas da cadeira seguem coordenadas

ortogonais. Da mesma forma, o hall de entrada do edifício de segurança máxima

onde Morpheos está aprisionado (fig. 95), é composto por linhas retilíneas que se

cruzam ortogonalmente: o piso, o equipamento de detecção de metal, os painéis de

pedra retangular das paredes e colunas, as estrutura da janela ao fundo.

A fronteira entre o presencial e o virtual, em The Matrix, assim como em

outros filmes, está associada à alegoria do signo matemático-lógico. Aqui, o uso de

colunas com números e caracteres katakana37 invertidos (fig. 96) ampliam a

sofisticação aparente do signo, tornando-o mais distante ainda do senso comum

ocidental e reforçando o seu caráter conotativo. É um signo praticamente despido de

denotação dentro do contexto narrativo, é alegoria pura, produto da supra-objetivação

do “código matemático-lógico”. O traço do “extremo oriente”38 incorporado pelo

“código da Matrix” tem a ver com uma idéia de tradicionalidade, reforçada pela cor do

texto, no mesmo tom dos velhos monitores monocromáticos de fósforo verde. São os

enigmáticos códigos “orientais” da Matrix que ganham ares de revelação no fim do

filme quando aquilo que só pode ser visto pelos monitores do mundo presencial fora

37 O japonês possui três sistemas que são utilizados na escrita corrente: o kanji, o hiragana e o katakana. O primeiro corresponde aos caracteres chineses, o segundo e o terceiro são sistemas de escrita silábicos, sendo que o katakana é o utilizado para palavras estrangeiras. 38 Trata-se também de um certo orientalismo cuja presença vêm se acentuando na cibercultura e que é melhor analisado no capítulo IV.3 – Imagens da Alteridade Cibernética.

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da Matrix é visto por Neo dentro da realidade virtual, sobre o cenário e os agentes a

sua frente, transmutados em uma composição que evoca um complexo wireframe

sobre o qual os códigos deslizam (fig. 97).

A revelação mediada pelo computador também é tema de Minority Report,

que mostra como as previsões de oráculos ligados a computadores, os “PreCogs”,

permitem que o Departamento de Pré-Crime de Washington possa punir os

assassinatos antes que eles aconteçam de fato. Na seqüência de abertura (fig. 98), é

o olho do oráculo humano que vê e a sua boca que diz “assassino”, mas é o gadget

que formata a “prova” do crime. O maquinário desbasta com um raio de luz as arestas

de dois cubos até torná-los esferas que são lançadas dentro de dois tubos em forma

de espiral. Uma das bolas, com os nomes de Sarah Marks e Donald Dublin,

desemboca em um compartimento com os dizeres “VICTIM” e a outra bola, com o

nome de Edward Marks, cai em um compartimento com os dizeres

“PERPETRATOR”. As enigmáticas imagens previstas pelo oráculo e armazenadas

em um fantástico sistema da divisão Pré-Crime são esquadrinhadas e organizadas

pelo protagonista do filme, John Anderton. As caóticas imagens dos eventos, das

vítimas, do assassino, da arma e da cena do crime se organizam de acordo com os

gestos de Anderton sobre um painel transparente onde se vislumbra uma barra

horizontal graduada e numerada. Aos poucos, as fragmentadas e borradas imagens

do crime se contaminam com as conotações de objetividade proporcionadas por

alegorias tecnológicas: a sobreposição de códigos alfa-numéricos, as fotos de

possíveis suspeitos organizadas em linhas e colunas, as marcações de tempo, as

visões dos “PreCogs” reduzidos e esquadrinhados em seqüências de fotogramas que

detalham a cronologia e a geografia do crime. Descoberto o local do crime, Anderton

e sua equipe do Departamento “Pré-Crime” descem por uma rampa em forma de

espiral. Eles impedirão a consumação de um crime e punirão o assassino pela

certeza de que ele praticaria este crime. A figura da espiral marca a passagem entre

o virtual e o presencial: as bolas que descem os tubos acrílicos pontuam a

transformação das caóticas imagens de uma vaga premonição humana na certeza

material de modelos computadorizados; simetricamente, a rampa em espiral pela qual

os policiais descem é a fronteira entre a ilusória convicção proporcionada pela

realidade virtual e a incerta realidade presencial que a simulação aspira substituir.

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Figura 96 (The Matrix)

Figura 97 (The Matrix)

Figura 98 (Minority report)

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IV.3. As imagens do ciberespaço

Apesar de serem obras relativamente distantes no tempo, há uma

característica comum a todos os filmes que retratam o ciberespaço: a referência ao

videogame. Freqüentemente os protagonistas dos filmes estão associados aos

videogames e a imagem do ciberespaço é construída como um espaço de imersão,

com raras exceções, marcado por uma “estética do videogame”, independentemente

de quão sofisticada visualmente seja essa representação.

É no início da década de 1980 – pouco antes do lançamento do Macintosh –

que surgem os primeiros filmes que retratam os computadores como mediadores de

“realidades virtuais”: Tron e Wargames. Neles, a representação do que ainda viria a

ser conhecido como ciberespaço ficou fortemente marcada pela referência aos

videogames. A função mais evidente dessa referência é supra-objetivar não só as

“coisas” tecnologicamente distantes do senso comum – redes de computadores,

realidade virtuais, sistemas de simulação por computador – mas também as pessoas

que manipulam essas “coisas”, sujeitos excepcionais cuja habilidade nos videogames

só é superada pela perícia em invadir e enganar complicados sistemas eletrônicos,

que não passam, no contexto fílmico, de apenas mais um jogo.

Tanto o protagonista de Tron, Flynn, como o de Wargames, David, são

apaixonados por videogames e os filmes enfatizam a ligação deles com os arcades, a

forma mais socializada de imersão no ciberespaço na época. O primeiro é um

engenheiro de software e programador de videogames e o segundo, um adolescente

colegial cujo hobby é invadir sistemas por meio do modem para, dentre outras coisas,

alterar suas notas escolares e conseguir acesso a jogos de computador que ainda

não foram lançados. A composição do estereótipo que associa a imagem do hábil

videogamer à imagem do “especialista em computação” é muito similar em ambos os

filmes. Logo no início, Tron mostra-nos a casa de diversões eletrônicas do

protagonista do filme, o “Flynn’s”, ambiente que parece divertido, repleto de pessoas

jogando, conversando e rindo. Na seqüência em que aparece jogando um dos

videogames do seu fliperama, o “Space Paranoids” (fig. 99), as pessoas ao redor de

Flynn se aglomeram, vibram, torcem – “outro ‘reco’ [recognizer] e ele consegue o

recorde mundial”, diz alguém – e gritam ao fim do jogo. A trama de Tron também é

baseada nos videogames: Flynn é um ex-programador de videogames que teve seus

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programas roubados por Dillinger, ex-colega e atual presidente da ENCON. O filme

narra a saga de Flynn dentro dos computadores da ENCON a fim de encontrar provas

contra Dillinger e recuperar os direitos sobre seus softwares.

De forma análoga, em Wargames, o protagonista também é obcecado por

videogames. David é apresentado no filme por meio do seu reflexo em um arcade,

em uma seqüência (fig. 101) que começa com adolescentes de malas e mochilas

saindo do “20 Grand Palace”, um tipo de fliperama agregado a uma lanchonete.

Vemos pelo reflexo na tela que David está compenetrado no jogo, enquanto os

garotos ao seu redor saem apressadamente para a escola. Ele só larga o jogo

quando percebe que realmente está atrasado e o vemos, já na seqüência seguinte,

chegando à escola depois das aulas terem começado. A trama principal de

Wargames também é baseada nessa compulsão por videogames que o leva a

acessar inadvertidamente uma rede militar de computadores no lugar de uma

empresa de jogos. Nessa rede David conecta o WOPR (War Operation Plan

Response - fig. 102) – um novo sistema computadorizado de lançamento de mísseis

nucleares – do NORAD (North American Aerospace Defense Command) e disputa

com ele um jogo virtual que pode desencadear o lançamento de mísseis reais (fig.

103).

Mesmo uma década depois de Tron e Wargames, The Lawnmower Man nos

mostra a associação literal do videogame às habilidades excepcionais de um

determinado personagem. O filme conta a história da transformação de Jobe, um

inofensivo jardineiro com problemas mentais, em um super-vilão virtual, após ser

envolvido como cobaia humana nas experiências de realidade virtual do Dr. Lawrence

Angelo. A realidade virtual de The Lawnmower Man é muito similar a um videogame

visualmente sofisticado e é freqüentemente tratada na própria diegese como um

“jogo”: “Eu tenho um jogo na minha casa que talvez você goste de jogar”, diz Dr.

Angelo para cooptar Jobe, enquanto este limpa seu jardim. Após isso, Dr. Angelo –

cientista de um empreendimento militar que pesquisa o uso da realidade virtual como

meio de aumentar as capacidades mentais – submete Jobe a um tratamento que une

a imersão na realidade virtual com a injeção de “neurotrópicos” que catalisam o

desenvolvimento mental proporcionado pela interação com novos mundos cognitivos.

No filme, a seqüência na qual Jobe vence no “cyber-boggie” (fig. 104) é uma espécie

de rito de passagem que demarca o fim do processo “evolutivo” da sua mente

humana e início da sua transformação em uma entidade supra-humana. Enquanto Dr.

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Angelo diz que a mente de Jobe “é como uma esponja faminta e limpa” e que “sua

atividade sináptica cresceu 400% em menos de um mês”, vemos cenas de Jobe, com

um olhar “esperto”, resolvendo testes de lógica que ele não conseguia, antes, sequer

entender. Durante as cenas que mostram Jobe recebendo drogas e sendo imerso em

realidades virtuais, complementa a voz do Dr. Angelo: “seu cérebro humano responde

aos neurotrópicos e estimulação virtual mais rapidamente do que minhas cobaias

animais”. A seqüência encerra-se com o Dr. Angelo congratulando Jobe após sua

vitória no cyber-boggie: “Parabéns, você acabou de se graduar para o próximo nível”.

Mais recorrente do que a associação do personagem com a imagem do

videogamer, é o uso do videogame como a referência “estética” na construção fílmica

do ciberespaço. Nesse sentido, ele é pensado tanto como realidade logicamente

concebível e ancorado em analogias da realidade presencial (por mais “lisérgico” e

mesmo absurdo que possa ser, o ciberespaço não é um “sonho”) como é pensado

em termos de um espaço circunscrito de impossibilidades, como de fato são os

videogames onde, dentre outras coisas, as regras de funcionamento da realidade são

distorcidas ou ignoradas a fim de realçar esta ou aquela possibilidade performática.

Na diegese de Tron, existe todo um mundo virtual contíguo ao mundo

presencial populado por “avatares” de usuários e videogamers humanos. A proposta

inovadora de Tron, que tornou-se rapidamente lugar comum, foi imaginar o

ciberespaço como uma realidade onde a simulação fosse tão plena e análoga à

realidade presencial que não teríamos como distinguir sensorialmente uma da outra.

Tron não foi o primeiro filme a mostrar como deveria ser uma realidade virtual

computadorizada, mas foi o primeiro filme a representar o ciberespaço como

ambiente de imersão, o que difere das telas que mostram modelos de simulação

tridimensionais, como aquelas vistas em 2001: A Space Odissey (figs. 68 a 72) ou

Star Wars (figs. 73-75). O ciberespaço imaginativo de Tron é evidentemente

influenciado pela estética do videogame, a despeito das enormes diferenças gráficas

entre o videogame daquela época e as imagens do filme. Esse ciberespaço é

justificado mesmo como uma “grande arena de videogame” que conecta todos os

videogames e computadores do mundo, do arcade do Flynn’s aos computadores do

Pentágono. Essa conexão entre o mundo presencial e o mundo virtual é apresentada

logo no início do filme, em uma seqüência que começa com uma moeda sendo

colocada em um arcade de videogame adornada com traços geométricos e

luminosos, realçadas pelo ambiente escuro de seu entorno. A seqüência (fig. 83)

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continua com uma voz dizendo, em off, “all right, give me room, here we go” e vemos

uma mão empunhando o joystick que controla um dos dois traços luminosos – um

laranja e outro azul – que vão se desenhando no monitor escuro, em segmentos de

reta contínuos e perpendiculares. Conforme o zoom amplia a área da tela do

videogame para um primeiro plano, vemos que o jogo chama-se “lightcycle” e que a

partida em andamento é entre um jogador e o computador. A tosca imagem

bidimensional da tela do arcade se funde lentamente com a sofisticada imagem do

ciberespaço “por trás” do videogame: um ambiente tridimensional com um extenso

plano quadriculado delimitado por paredes com grafismos de inspiração “tecno-

futurista” sobre o qual correm dois bólidos que lembram motocicletas feitas com

sólidos geométricos regulares. São as “lightcycles” do ponto de vista de “dentro” do

ciberespaço. As arestas que definem seu desenho são marcadas por linhas claras e

as lightcycles deixam, no seu rastro, paredes verticais que visam bloquear a trajetória

do oponente, destruindo-o. Intercalados entre as cenas em que os veículos correm

sobre o tablado quadriculado, vemos os closes de duas figuras humanas: são os

“pilotos” virtuais das lightcycles. Seus rostos são monocromáticos e o corpo é suporte

de grafismos luminosos que lembram a regularidade do traçado de circuitos

impressos. Um é a projeção do videogamer no ciberespaço, o “avatar” do jogador

humano, coisificado como entidade virtual, e o outro, o avatar do computador,

antropomorfizado com feições humanas. A seqüência justapõe cenas da tela do

arcade, onde vemos apenas duas linhas correndo sobre um fundo preto, com as

cenas do ciberespaço “por trás das telas”, onde fantásticas motos realizam manobras

absurdas em cantos retos e sem inclinação. Quando a moto do avatar humano

espatifa-se no ambiente virtual, a mão, no mundo presencial, imediatamente bate no

joystick e ouve-se uma voz praguejar “Damn!”.

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Figura 99 (Tron)

Figura 100 (Tron)

Figura 101 (Wargames)

Figura 102 (Wargames)

Figura 103 (Wargames)

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Figura 104 (The Lawnmower Man)

Figura 105 (The Matrix)

Figura 106 (The Lawnmower Man)

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Tron também foi o primeiro filme a oferecer uma visão de “videogame” em

“primeira pessoa” (que praticamente não existia naquela época), uma perspectiva que

a diegese tornou possível com a imersão do videogamer no ambiente virtual. Essa

visão é a mesma utilizada para tipificar o que acontece “por trás dos monitores” de

um computador. Na seqüência em que Flynn tenta invadir o sistema do Master

Control Program (fig. 84), vemos Flynn, vestido de kimono, na penumbra de seu

quarto, mal iluminado por um abajur, e com o rosto iluminado pela claridade do

terminal de computador à sua frente. Enquanto ouvimos o ruído do teclado, um close-

up mostra o que Flynn está digitando: “REQUEST ACCESS TO CLU PROGRAM

CODE 6 PASSWORD TO MEMORY 0222”. Aos poucos, a imagem do texto se funde

com um ambiente virtual tridimensional, onde uma grade quadriculada se estende até

a linha do horizonte e sobre a qual elevam-se blocos geométricos que desenham um

gigantesco labirinto. Entre as enormes paredes vemos um veículo que lembra um

tanque de guerra, composto de formas sólidas simples e com contornos realçados

por traços vermelhos. O interior do tanque é um pequeno ambiente cheio de

grafismos e linhas luminosas, assim como o corpo da figura antropóide que executa

movimentos mecânicos. O avatar “virtual” possui a mesma fisionomia de Flynn, seu

usuário do mundo presencial. A semelhança entre ambos indica a extensão da

personalidade presencial no mundo virtual dentro dos computadores; a comunicação

vocal entre Flynn e seu avatar no tanque é a tradução verbal daquilo que é visto

textualmente em código no monitor no mundo presencial. O videogame do fliperama

e o computador de Flynn são, na diegese, as portas para um mesmo ambiente, uma

realidade virtual que é o campo da experiência no ciberespaço. Enquanto no mundo

presencial as nossas mediações são limitadas a pobres interfaces baseadas em

monitores de vídeo como “output” e joysticks e teclados como “inputs”, o mundo

virtual abre um novo universo de experiências sensórias iguais ou melhores que das

experienciadas no mundo presencial.

Ao contrário de Tron – que propôs um tipo de realidade virtual sintetizada por

computador e perspectivas dessa realidade em primeira pessoa, coisa que as

tecnologias dos videogames e computadores não conseguiam produzir em tempo real

naquela época – Wargames, filme contemporâneo de Tron, mostra um ciberespaço

mais conservador, similar ao que havia em termos de jogos de computador e

videogames no início dos anos 1980. Em Wargames, as representações do

cibernético estão ancoradas em imagens e situações que eram mais familiares e,

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portanto mais confortáveis – apesar de visualmente mais pobres – aos espectadores

da época, ao contrário de Tron, que exigiu até mesmo o desenvolvimento de novas

tecnologias de computação gráfica e de trucagem fotográfica para criar imagens de

mundos jamais vistos anteriormente. Entretanto, assim como em Tron, o videogame

é, em Wargames, referência fundamental tanto para as representações do

ciberespaço como para a história narrada onde a guerra termonuclear é reduzida a

uma espécie de jogo de computador. As imagens do ciberespaço em Wargames são

bastante convencionais, mais arcaicas em termos estéticos do que aquelas já

propostas nas visualizações tridimensionais vistas em 2001: A Space Odyssey e Star

Wars. Mas a idéia fundamental aqui é a de que as telas de computador representam

um mundo virtual – vale relembrar, um mundo visual – descontínuo do mundo

presencial mas contíguo a ele e capaz de trazer conseqüências reais. Como o filme

mostra, enquanto em um arcade de fliperama, o máximo de conseqüência real do

videogame é gerar atrasos no dia-a-dia de David. Mas, quando ele lança seus

mísseis virtuais no que pensa ser apenas um videogame chamado “Thermonuclear

War”, as imagens que aparecem nas inúmeras telas do NORAD são interpretadas

pelos militares como um ataque real dos russos. O filme trabalha com o argumento de

que se a mesma lógica por trás da simulação dos videogames é utilizada para simular

mundos presenciais, as fronteiras que separam aquilo que é cópia daquilo que é

original podem se confundir.

A partir dos anos 1990, ainda que permaneça esteticamente muito presente,

o videogame começa a decair como referência literal. The Lawnmower Man e Johnny

Mnemonic são filmes que pontuam bem essa transição, enquanto no primeiro, a

realidade virtual continua sendo efetivamente a instância de um jogo, o segundo já

caracteriza a realidade virtual como um espaço de interação humano-computador –

não mais o videogame, apesar de preservar sua estética visual – refletindo,

possivelmente a naturalização do computador no cotidiano das pessoas. Como o

cyber-boogie usado pelo Dr. Angelo para testar Jobe, a maior parte das

representações do ciberespaço de Lawnmower Man são literalmente videogames. A

seqüência de abertura (fig. 106) intercala as imagens de um chimpanzé acoplado a

diversos gadgets de realidade virtual e as imagens em primeira pessoa da realidade

virtual na qual está imerso. A paisagem virtual por onde ele flutua é mostrada em uma

perspectiva de jogo muito similar à que era encontrada no primeiro PC-game em

primeira pessoa, o Wolfenstein 3D. Durante a seqüência, típica de um videogame,

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avisos vocais, textos e ícones aparecem na tela: um símbolo piscante de “bio-hazard”

com uma barra com o aviso “TOX-DET” e, conforme ocorrem explosões virtuais e

inimigos estilizados são destruídos pelo chimpanzé-videogamer, surgem alertas de

“THREAT” e “KILL COMPLETE”. Johnny Mnemonic, por sua vez, marca uma nítida

transição no cinema na qual não há mais a referência literal ao videogame, apesar de

utilizar praticamente as mesmas alegorias tecnológicas utilizadas em The

Lawnmower Man, tanto na representação do ciberespaço como nos equipamentos e

gadgets utilizados para a imersão do usuário no virtual. Possivelmente, à época da

produção de Johnny Mnemonic, os computadores e as interfaces gráficas, assim

como a cibercultura relacionada ao consumo de gadgets cibernéticos, já estivesse

socializada suficientemente para dispensar o videogame como a referência por

excelência do ciberespaço.

Apesar do videogame não ser mais a imagem literal do ciberespaço e da

relação humano-computador, sua influência estética persiste até os filmes mais

contemporâneos, tais como The Matrix, onde as seqüências de luta corpo-a-corpo

são nitidamente influenciadas pelos exageros, planos e tomadas utilizadas em

videogames. Há também referências aos “cartuchos” utilizados para implantar

conhecimento diretamente na mente dos personagens, dispensando o “aprendizado”.

Esses “cartuchos”, que lembram os antigos cartuchos de videogame, aparecem na

seqüência em que Neo é submetido ao “combat training” (fig. 105). A tela de um

computador do “operador” mostra bonequinhos estilizados em posição de combate

sobre grafismos de caracteres enquanto os dizeres “JU JITSU”, “KEMPO”, “TAE

KWON DO”, “DRUNKEN BOXING” vão se alternando. A imagem de um cérebro na

tela do computador sendo “preenchida” indica o nível do upload do conhecimento no

cérebro de Neo. As cenas de luta no ciberespaço em The Matrix apresentam planos

evidentemente influenciados pelos videogames de luta que se popularizaram a partir

dos anos 1990, tais como o Mortal Kombat e Street Fighter, reproduzindo no cinema

estereótipos39 típicos desses jogos, como a forma dos oponentes se encararem antes

de uma disputa (fig. 107), os saltos sobre-humanos com cambalhotas (fig. 108) ou

que se prolongam durante longos momentos (fig. 109), o lançamento espetacular do

oponente golpeado (fig. 110), o efeito “estroboscópico” que apresenta em uma

39 Na verdade, a maioria desses estereótipos provém dos mangás (histórias em quadrinhos) e dos animes (desenhos animados). Porém foi por meio dos videogames que tais estereótipos tiveram ampla penetração no mercado de massas não-japonês.

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mesma imagem diversos momentos de um movimento a fim de conotar uma grande

velocidade (fig. 111) e impossíveis saltos seguidos de um vôo horizontal contra o

oponente (fig. 112).

A referência que os filmes fazem aos videogames não é gratuita, visto que

estes foram, bem antes dos personal-computers, os primeiros instrumentos de

mediação sensível com simulação de modelos computadorizados disponibilizados no

mercado de massas e, durante muito tempo, as únicas referências de ciberespaço

tangíveis ao senso comum. O videogame é referência recorrente no cinema sempre

que é necessário um mediador entre o conhecimento de senso comum e a descrição

de ambientes novos e inusitados construídos pelo computador. Frente ao

distanciamento, e mesmo estranhamento diante de gadgets que mediam realidades

virtuais novas, a generalização do ciberespaço impalpável dos computadores como

uma espécie de videogame é uma forma de naturalizar o estranho, tipificando-o como

uma instância do conhecido.

Além disso, o cinema não deixa de incorporar o fato de terem sido – e ainda

serem – os videogames os primeiros modelos de realização prática do que Lupton

(2000, p. 479) chama de “discurso do desincorporação” (“discourse of

disembodiment”), central na cibercultura, onde o computador oferece a fuga do corpo,

e este é “freqüentemente representado como uma infortunada barreira para a

interação com os prazeres da computação”. Segundo a autora, “o sonho da

cibercultura é deixar a ‘carne’ para trás” destilando o relacionamento com o

computador em algo “limpo, puro e descontaminado”. Assim, não é por acaso, que

quando surgem na década de 1980, pouco antes do lançamento do Macintosh, as

primeiras representações fílmicas da interatividade do ser humano com o

ciberespaço, essas fossem predominantemente ancoradas na experiência real que

era experimentada não nos arcaicos computadores de interface textual – máquinas

de recursos limitados e pobres em experiência sensível – mas nas mini-realidades

simuladas nos populares arcades e consoles de videogame. O “discurso da

desincorporação” se traduz nos filmes na transformação do ciberespaço em um lugar

privilegiado da realização da ação, nos quais os personagens têm o seu melhor

desempenho, transformados em entidades virtuais desvencilhadas das coerções do

mundo físico. A trajetória dessas representações ao longo dos filmes, e as

racionalizações diegéticas que as engendram, das mais plausíveis às mais absurdas,

mostra a metamorfose da própria mentalidade acerca do ciberespaço.

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Figura 107

Oponentes se encaram antes de luta em The Matrix e no videogame Mortal Kombat.

Figura 108

Cena do filme The Matrix e screen-shot do videogame Street Fighter.

Figura 109

Imagem do ápice de salto que precede golpe, em The Matrix e no videogame Street Fighter.

Figura 110

Oponente sendo lançado à distância, em The Matrix e no videogame Street Fighter.

Figura 111

Efeito “estroboscópico” típico dos movimentos “mais rápidos que os olhos”, em The Matrix e no videogame Mortal Kombat.

Figura 112

Salto com vôo horizontal, em The Matrix e no videogame Street Fighter.

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Em Tron, Flynn é inserido no ciberespaço por meio de um gadget quase

inexplicável que desintegra objetos físicos por meio de um canhão de laser e os

transforma em dados de computador. Quando Flynn é atingido pelo canhão (fig. 100),

o tempo parece congelar-se e seu corpo é esquadrinhado e recoberto por uma grade

de cubos. Em uma espécie de animação suspensa, ele é rastreado e

desmaterializado cubo a cubo. Sugado para as entranhas do computador através do

feixe de luz, acompanhamos seu percurso por formas caleidoscópicas que, aos

poucos, se transformam em um cenário sintético de luzes e objetos geometrizados

(fig. 87). Dentro de um ambiente “in door” no ciberespaço, uma área reservada à

entrada de novos programas no sistema do MCP, um feixe de luz materializa o corpo

de Flynn (fig. 113) e assim que ele recobra a consciência, é recepcionado por

“guardas” que o conduzem, sob a mira de bastões elétricos (fig. 114), às celas

reservadas aos programas “rebeldes”, que insistem na existência dos “usuários” (fig.

115). Por meio dos programas que dividem a cela com ele, Flynn descobre que está

dentro do MCP e que freqüentará a arena dos videogames, não mais como usuário,

mas do lado oposto do monitor, preso ao ciberespaço. É como entidade virtual nesse

ciberespaço que Flynn obtém aquilo que não consegue como um “usuário”, pelo lado

de lá do monitor. Não mais limitado pela condição de exterioridade ao ciberespaço,

Flynn, um “game warrior” por vocação, pode ludibriar a vigilância do MCP e trafegar

pelas entranhas do ciberespaço atrás das informações capazes de mudar sua

condição no mundo presencial e, de quebra, libertar, no mundo virtual, os softwares

oprimidos pelo sistema autoritário do Master Control Program.

O realismo de um filme é conduzido tanto pelas aparências de realidade

como pela consistência das racionalizações utilizadas pela diegese. Assim como os

filmes de ficção-científica em geral, os filmes ciberculturais são permeados por

racionalizações derivadas do discurso científico-tecnológico – não necessariamente o

mesmo discurso – sobre as quais desenvolve-se a estrutura lógica que sustenta a

diegese. É bem verdade que no sentido de propor uma impossibilidade concebível,

Tron, comparado a outros filmes ciberculturais, parece estar mais para um conto de

fadas ou uma história infantil – como aquelas que propõem mundos habitados por

automóveis antropomorfizados – do que para uma ficção científica. Mas também é

verdade que a falta de consistência das suas racionalizações, substituída por uma

liberdade poética e metáforas lúdicas nem sempre eficazes ou lógicas, também é

reflexo da falta de “massa crítica” para produzir racionalizações e da dificuldade de

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propor imagens plausíveis do ciberespaço a partir da tecnologia conhecida na época.

A interface gráfica sequer era imaginada fora dos laboratórios tecnológicos e a

computação gráfica parecia ser um luxo sem grande utilidade. Não existia, exceto as

rudimentares visualizações dos videogames, nenhum tipo de tecnologia de imersão

no ciberespaço. E mesmo o mais primitivo de todos os dispositivos de imersão do

“corpo” na realidade virtual, o mouse, era desconhecido fora dos laboratórios em

1982.

Se por um lado, as racionalizações de Wargames, filme contemporâneo a

Tron, parecem mais consistentes e minimamente aderentes com as possibilidades

tecnológicas conhecidas, por outro lado, sua representação do ciberespaço é muito

mais pobre visualmente e a diegese não o apresenta como uma realidade virtual de

imersão. Em Wargames, a relação que os personagens têm com o ciberespaço é

essencialmente baseada na inteligibilidade de códigos e esquemas, onde o

videogame funciona mais como uma metáfora do que como um modelo de interação

humano-computador baseado em mediações sensíveis. O jogo que David e o WOPR

travam é mediado sem dúvida por imagens (fig. 103), mas ao contrário da proposta

altamente sensorial de Tron, o mundo virtual de Wargames desenrola-se como uma

série de planisférios esquemáticos. De certo modo, Wargames era um filme mais

confortável para o espectador pois sua diegese adere às mesmas categorias

utilizadas para dar conta da realidade cotidiana, ao contrário de Tron, freqüentemente

lembrado como um filme interessante porém um tanto quanto absurdo e

incompreensível. Mas a influência deste na representação do ciberespaço nas

produções posteriores é muito maior do que Wargames o que, talvez, demonstre a

afinidade que a percepção de “ciberespaço” tem com o visual, mesmo que

eventualmente não faça muito sentido do ponto de vista “racional”.

Foi em The Lawnmower Man que o cinema introduziu as primeiras

representações que mostram o ciberespaço mediado por gadgets de imersão virtual,

lembrando que em Wargames não há imersão do personagem no ciberespaço e Tron

não apresenta uma explicação consistente de como se dá essa imersão. Os

personagens de The Lawnmower Man utilizam e vestem parafernálias que a diegese

propõe serem os meios que ao mesmo tempo em que emulam sensações visuais,

auditivas, táteis e cinéticas, isolam o corpo do ambiente presencial, a fim de

proporcionar uma experiência otimizada de imersão no ciberespaço. O filme

introduziu na cultura de massas a imagem da workstation de realidade virtual (figs. 59

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e 60), conceito que se consolidou nos anos 1980 com o uso integrado do HMD (Head

Mounted Display) e datagloves, dispositivos desenvolvidos especificamente para

emular a relação sensorial do usuário em um ambiente virtual (figs. 57 e 58). O HMD

consiste de dois visores colocados à frente de cada olho que projetam imagens com

pequenos desvios de paralaxe entre elas, a fim de simular o efeito tridimensional da

binocularidade. O dispositivo também captura a posição e os movimentos da cabeça,

de forma a reproduzir em tempo real as imagens que usuário vê de acordo com tais e

quais movimentos fisicamente realizados. E as datagloves são luvas que utilizam a

tecnologia de “motion capture” na qual o computador é capaz de apreender e

reconstruir virtualmente os movimentos capturados por sensores cinéticos junto ao

corpo ou em parte dele, como a mão, no caso das datagloves. O mouse, por

exemplo, é um dispositivo que registra o movimento de apenas um sensor e em

apenas duas dimensões, enquanto que uma dataglove possui diversos sensores,

localizados nas articulações e extremidades e o seu movimento é registrado em três

dimensões. Os uso conjunto da HMD e datagloves também introduz um “coeficiente

de proprioceptividade” virtual, na medida em que torna sensível a presença de partes

do corpo – cabeça e mãos – em um espaço virtual. Além da workstation de realidade

virtual, The Lawnmower Man apresenta usuários montados em estruturas mecânicas

que supostamente reproduzem o movimento, ou parte dele, que eles têm na

realidade virtual, tecnologia que já era utilizada nos arcades de videogame como o

After Burner (1987) ou R-36040 (1991, fig. 56).

Em uma das seqüências de The Lawnmower Man, na qual o Dr. Angelo está

“relaxando” imerso no ciberespaço com suas datagloves e HMD (fig. 120), vemos o

corpo virtual dele “caindo” e “voando” pelos lisérgicos ambientes ciberespaciais. Seu

isolamento das frustrações do mundo presencial é interrompido quando sua esposa

desliga repentinamente o computador, produzindo um “choque” com a realidade.

“Nunca desplugue um programa quando eu estiver conectado. Você acabou de

arruinar todo o efeito”, pragueja o Dr. Angelo. Sugerindo uma crítica em relação ao

distanciamento do marido com as coisas reais, ela retruca, lendo no CD que acabou

de tirar do computador: “Falling, floating, and flying? So, what’s next, fucking?”. Com

efeito, outra seqüência mostra Jobe e uma mulher, Marnie, em uma espécie de

40 O R-360 da SEGA era um simulador de combate aéreo e seu maior atrativo era a cabine montada sobre um mecanismo que permitia a rotação em 360º para qualquer direção, reproduzindo a posição do avião virtual pilotado pelo usuário, deixando-o, inclusive, de cabeça para baixo.

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experiência sexual ciberespacial na qual os corpos virtuais se tocam, se abraçam e

se fundem, enquanto os corpos físicos permanecem isolados e separados pela

parafernália de simulação (fig. 121). Porém, o filme leva a realização do “discurso do

desincorporação” mais longe. Convencido de que a realidade virtual não é apenas

uma simulação, mas uma nova dimensão, Jobe decide completar sua evolução,

iniciada com os videogames, por meio da imersão total no ciberespaço para levar a

cabo seus projetos de dominar todas as redes de computadores do mundo. Em uma

das seqüências finais do filme (fig. 122), após se conectar à parafernália da

workstation de realidade virtual, ouve-se a voz de Jobe em off e vemos seu corpo se

desmaterializar – literalmente, como que sugado pelo equipamento que veste – e

Jobe, libertado das limitações físicas, transforma-se exclusivamente em uma entidade

virtual capaz de circular livremente pelas redes de telecomunicações pelo mundo,

argumento bastante similar ao utilizado em Tron, uma década antes.

Utilizando recursos semelhantes, todas as peripécias do protagonista do filme

Johnny Mnemonic, uma espécie de “hacker do futuro”, acontecem dentro do mundo

virtual da Internet. Como não poderia deixar de ser, pouco realiza enquanto

personagem presencial mas quando Johnny veste seu HMD e suas datagloves ele

encontra seu ambiente natural e obtém tudo aquilo que o mundo presencial lhe nega.

Após sofrer uma série de reveses no mundo presencial, perseguido pela Yakuza,

Johnny resolve acessar a Internet para descobrir porque sua cabeça – literalmente –

está a prêmio. Conectado ao ciberespaço da Internet (fig. 88), parece entrar na arena

de um grande jogo: paisagens coloridas e objetos geométricos iluminados,

publicidade espalhada por todo o cenário virtual, como uma grande cidade eletrônica.

Essa seqüência intercala cenas de Johnny movendo a cabeça para o nada e

movimentando as mãos para pegar coisas no vazio com cenas do que ele vê em

primeira pessoa, na realidade virtual. Vemos a projeção de suas datagloves no

ciberespaço manipulando objetos virtuais a fim de acessar um Hotel em Beijing (fig.

88, primeira coluna) e invadir seu sistema de computadores, procurar o destinatário

de um fax no buffer de dados do fax do quarto desse hotel (fig. 88, segunda coluna) e

acessar a loja em Newark para onde o fax foi enviado (fig. 123).

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Figura 113 (Tron)

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Figura 120 (The Lawmower Man)

Figura 121 (The Lawmower Man)

Figura 122 (The Lawmower Man)

Figura 123 (Johnny Mnemonic)

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Figura 124 (The Matrix)

Figura 125 (The Matrix)

Figura 126 (The Matrix)

Figura 127 (The Matrix)

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O ápice da apologia ao mundo virtual surge com o filme The Matrix. Sua

diegese é centrada na Matrix, sistema de realidade virtual no qual toda a humanidade

está presa e crente de que vive uma realidade presencial. A representação visual do

ciberespaço de The Matrix rompe com a tradição iniciada com Tron, quase duas

décadas antes, onde as diegeses sempre identificaram as imagens do ciberespaço

com o uso ostensivo de “traços de irrrealidade” em oposição aos “traços de realidade”

das imagens fotográficas, reservadas para identificar a realidade presencial. Já em

The Matrix, contudo, o ciberespaço também é representado com o uso da imagem

fotográfica a fim de denotar que é uma réplica exata do mundo presencial, exceto

pelo fato de que o virtual permite que “regras” de funcionamento da realidade sejam

quebradas. De fato, The Matrix não eliminou os “traços de irrealidade” que

caracterizam o ciberespaço, apenas os reinventou. É o que dá às suas

representações do ciberespaço uma característica particularmente paradoxal, já que

a mesma construção fílmica contém tanto estes “traços de irrealidade” como os

“traços de realidade” apoiados na imagem fotográfica. Assim, a despeito das

aparências de realidade presencial, o mundo da Matrix é o mundo onde as regras de

funcionamento da realidade podem ser exageradas e trapaceadas. Como acontece

nos videogames.

A seqüência inicial (fig. 124) do filme nos oferece os primeiros sinais de que a

realidade mostrada não se conforma aos critérios que validam a realidade presencial.

No que parecia ser uma operação policial rotineira em um pequeno quarto de um

velho edifício, Trinity, uma hacker procurada é surpreendida enquanto tentava fazer

contato com Neo, outro hacker. Aparentemente acuada, ela vira-se de forma

cautelosa para, de repente, dobrar o braço do policial mais próximo. Com os policiais

ainda surpresos frente ao ataque, Trinity salta para dar o golpe fatal e vemos o efeito

visual que The Matrix tornou famoso: o “slice time effect” ou “bullet time effect”. O

tempo nesse momento congela, como se nós, juntamente com Trinity, pudéssemos

apreender toda a realidade ao redor no tempo infinitesimal que dura o ápice de seu

salto, antes dela desferir um chute anormalmente violento. O segundo momento

absurdo da seqüência fica por conta da corrida que Trinity realiza pelas paredes a fim

de se desviar dos tiros. Na seqüência imediatamente posterior a esta, vemos que não

é apenas Trinity que é capaz de subverter as regras de funcionamento da realidade.

Ao chegar no limite de um edifício Trinity não para, mas salta de um edifício a outro,

literalmente atravessando a rua pelo ar. Quando o grupo de policiais que a perseguia

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é obrigado a parar, a fala do policial – “That’s impossible” – verbaliza a nossa própria

surpresa não só frente ao salto dela, mas também diante do salto do “agente”, ainda

mais eficaz e preciso (fig. 125).

“Guns, a lot of guns”, diz Neo ao celular enquanto ele e Trinity aguardam no

“loading program”, espaço virtual intermediário pelo qual as projeções virtuais dos

personagens humanos passam antes de entrar na Matrix. É um espaço vazio,

totalmente branco, sem céu ou terra para dividir o horizonte. Após ouvir as instruções,

Tank, o “operador”, dá meia dúzia de toques no teclado e – como os códigos secretos

dos videogames que permitem ao jogador ter munição ilimitada ou acesso a todas as

armas do jogo – uma infinidade de armas surge do infinito cobrindo todo o horizonte

imaginário do “loading program” (fig. 126). Essa imagem, assim como outras do

filme, como a sequência em que Neo é introduzido pela primeira vez no ciberespaço

depois de conhecer o “mundo real” fora da Matrix (fig. 79) ou quando o cenário de

uma cidade surge aos pés de Neo e Morpheos (fig. 127), evocam o ciberespaço

como uma possível instância da singularidade, onde qualquer coisa pode surgir do

nada. Possivelmente as cenas nas quais Flynn, em Tron, é materializado no

ciberespaço (fig. 113) e motocycles se materializam em volta dos personagens (fig.

85) são as primeiras a imputar à realidade virtual essa possibilidade. Não muito

diferentes são os widgets41 de The Lawnmower Man, Johnny Mnemonic e de tantos

outros filmes, que surgem do nada, reproduzindo uma lógica muito similar à dos

widgets que já eram populares nas interfaces gráficas dos computadores. O

planisfério que Johnny abre para “navegar” na Internet (fig. 88) ou o menu que o Dr.

Angelo abre vazio (fig. 120) são apenas versões mais espetaculares dos menus e

“popups” que existem em qualquer personal-computer. Contudo, em nenhum desses

filmes, o ciberespaço representado pretende ser “idêntico” à realidade que

conhecemos. A proposição de uma realidade alternativa e oposta à presencial está

dada na própria imagem sintética que caracteriza a maioria dos filmes, ao contrário

do ciberespaço de The Matrix, onde mesmo as coisas mais impossíveis – como

coisas que surgem do nada – e extremamente exageradas são representadas com

fidelidade fotográfica. E as infinitas prateleiras de armas que surgem com o toque no

teclado apenas anunciam o apoteótico exagero que virá nas seqüências seguintes,

41 Componente de interface gráfica com o qual o usuário interage. Exemplos de widgets: botões, ícones, barras de rolagem, janelas e pop-ups, caixas de diálogo, menus. Um widgets pode ser composto por outros widgets, como por exemplo o desktop do computador.

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quando Neo e Trinity entram na Matrix para resgatar seu líder, Morpheos, capturado

pelos agentes.

A regra básica dessas seqüências é o exagero. Na seqüência que inicia a

invasão ao edifício onde Morpheos está preso (fig. 95), Neo é solicitado a mostrar os

objetos metálicos no detector de metais no lobby de entrada. Ele exibe suas armas,

em uma nítida releitura do estereótipo do “homem-armado-até-os-dentes” dos filmes

de ação de Stallone e Schwarzenegger. Quando Neo ataca o segurança mais

próximo, o filme desacelera e roda em um slow-motion que perdura até a chegada de

Trinity, permitindo que nos fixemos, junto com Neo, nos alvos que são mortos antes

mesmo que percebam o que está acontecendo. Assim que os guardas da entrada

são eliminados, chega um grupo de soldados, com fuzis e metralhadoras. “Freeze!”

grita um deles antes de Neo e Trinity saírem por lados opostos. A seqüência de ação

restante é uma montagem frenética, porém quase toda rodada em slow-motion, feita

para o deleite do exagero que caracteriza o ciberespaço da Matrix: cartuchos

deflagrados jorrando das armas, o cenário sendo destruído por tiros que nunca

atingem os protagonistas, enquanto eles correm, chutam, dão piruetas – atirando

durante elas – e eliminam um a um os adversários ao redor. A coreografia é a

apoteose do exagero, estetizada como um videogame e com ares de videoclipe.

Em The Matrix, o ponto máximo da apologia ao virtual está na seqüência que

mostra o agente e Neo se desviando de balas. Enquanto Neo descarrega suas

armas, os movimentos do agente se desviando das balas ficam sobrepostos, como

em um efeito “estroboscópico”, denotando visualmente que muitos movimentos foram

realizados em um curtíssimo espaço de tempo. A seguir, assim que Neo fica sem

munição, o agente descarrega sua arma. Logo após o primeiro disparo, o filme dilata

o instante que os projéteis levam para percorrer a distância entre o agente e Neo em

longos segundos de um travelling circular à sua volta, onde podemos contemplar de

forma espetacular os projéteis que se aproximam e passam um após o outro sem o

ferir, enquanto seu corpo se retorce abaixo deles. A última bala é, enfaticamente,

dirigida à nós, simples espectadores do mundo real, alvos passivos daquilo que nos é

projetado na tela do cinema (fig. 128). Apesar da lentidão da cena, tudo acontece em

uma breve “rajada de balas”, como atesta o comentário da própria Trinity: “nunca vi

ninguém se mover tão rápido”. Em oposição à percepção de tempo “real” dos tiros

contra o agente, tem-se a percepção de um tempo dilatado que emula o tempo virtual

no qual a mente e o corpo podem ser mais rápidos que uma bala.

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Em Minority Report, a alienação do presencial é dada por realidades virtuais

que pretendem tanto emular experiências passadas a partir de fragmentos gravados

em hologramas como sintetizar as imagens do devir para evitar certas experiências

futuras. O futuro é reconstruído por meio de uma parafernália cibernética que

converte as visões dos “PreCogs” – para-normais sensíveis a eventos violentos – em

imagens virtuais que antecedem os crimes antes que eles aconteçam no mundo

presencial. As vagas visões de três indivíduos ligados em rede entre si são

convertidas na sólida certeza tecnológica: as imagens articuladas por simulações

computadorizadas dão o testemunho ocular que corrobora as provas materiais do

crime – duas esferas de madeira com os nomes da vítima e do criminoso, lapidadas

pelo mesmo maquinário premonitório – a ser evitado e punido antecipadamente (fig.

98). No filme, a virtualidade é também a presentificação das experiências passadas.

John Anderton não rememora, mas revive o passado por meio de fragmentos

petrificados em pseudo-experiências holográficas. As prateleiras cheias de retratos de

uma vida familiar alegre contrastam com o amplo apartamento vazio que se abre no

plano seguinte (fig. 132). Ninguém aparece quando ele diz “estou em casa”. As

únicas respostas que Anderton obtém são a música ambiente que começa a tocar e

as luzes do apartamento que se acendem. A pia sobre a qual ele despeja os pacotes

de “clarity”, uma droga, está cheia de louça suja. Em seguida (fig. 133), vemos

Anderton pegar um cartucho transparente com a etiqueta “Sean at the Beach” de um

pequeno rack com vários outros cartuchos, todos com etiquetas relacionadas a Sean,

seu filho que desapareceu misteriosamente: “Sean at home playing with toys”,

“Sean’s 4th birthday”, “Sean and Lara”, “Sean – Soccer”, dentre outros. Após inserir o

cartucho e apertar um botão no computador à sua frente, Anderton pede: “wall

screen”. Surge a imagem de Sean em tamanho natural, mais botões são apertados e

outros projetores começam a funcionar. Na medida em que o simulacro ganha

animação Anderton revive o diálogo que teve quando filmou o arquivo a que assiste.

Ele cumprimenta o filho, que responde enquanto ele anda na direção de Anderton: “Oi

pai. Pode me ensinar como correr mais rápido? Porque todos os meninos da minha

classe correm mais rápido que eu”. Os olhos de Anderton brilham enquanto re-

experiencia um momento com o filho desaparecido. “Eu te amo papai”, diz o menino

virtual antes de desaparecer gradualmente. Anderton “turbina” seus sentidos com

uma dose do “clarity” e insere o arquivo “Lara e John”, onde ele vê a esposa

mandando-o colocar a câmera de lado e “cuidar da sua esposa”. Ele se aproxima da

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imagem tridimensional da esposa em tamanho natural, envolve-se com a experiência

mas o choque com o real emerge dramaticamente quando toda a simulação

desaparece e é substituída pela frase “END OF FILE”, bem à frente dos olhos

vidrados de Anderton.

De Tron a Minority Report, há uma trajetória das representações do

ciberespaço que mostra uma tendência de naturalização da realidade virtual, cada

vez mais o lugar privilegiado da experiência, em detrimento da realidade presencial,

algumas vezes reduzida a um mero repositório de corpos físicos. O “modo de ver”

das construções fílmicas acerca do ciberespaço incorpora, invariavelmente, um

discurso visual que faz a apologia sem pudores ao sintético, ainda que camuflado por

um discurso textual que diga o contrário. De fato, por mais que os personagens digam

que a “realidade virtual não é real”, os filmes retratam o ciberespaço como o lugar

onde se realiza a existência “prática” e autonomia desses personagens, enquanto a

realidade presencial é o lugar da negação dessa autonomia. No modelo dicotômico

em que se opõe o virtual ao presencial, a apologia ao virtual – e portanto à

modernidade da qual ela é produto – implica na representação do presencial como

uma realidade medíocre: Flynn (Tron) é um programador fracassado que parece um

adulto infantilizado rodeado de brinquedos eletrônicos; David (Wargames) é um

simples garoto de desempenho escolar medíocre e viciado em videogames; o Dr.

Angelo e Jobe (The Lawnmower Man) são, respectivamente, um excêntrico cientista

abandonado pela esposa e um jardineiro retardado; fora da Internet, Johnny (Johnny

Mnemonic) é apenas um sujeito sem sobrenome com problemas de memória e alvo

de gangues que querem arrancar sua cabeça; os personagens desconectados da

Matrix (The Matrix), não passam de pessoas comuns, pouco atraentes, maltrapilhas e

perdidas em uma realidade desconectada do ciberespaço.

Apesar da recorrência de uma estrutura dicotômica onde a crítica do

presencial marca a apologia do virtual, há uma notória mudança do objeto de

estranhamento, que passa, conforme os filmes são mais recentes, do mundo virtual

para o mundo presencial. Em Tron, quando Flynn é “materializado” no mundo virtual,

o filme expõe o estranhamento de estar imerso no ciberespaço. Já em The Matrix,

quase duas décadas depois, somos solidários com o estranhamento de Neo frente ao

mundo presencial, quando ele acorda imerso em um líquido gosmento e vê seu corpo

repleto de cabos conectados diretamente na carne (fig. 129), após passar por uma

espécie de transe no mundo virtual que pensava ser presencial, onde viu um espelho

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fundir-se e correr pelos seus braços engolfando-o (fig. 78). O que The Matrix coloca

em pauta é justamente a inversão do estranhamento, onde o virtual parece cada vez

mais com a realidade “por excelência” enquanto o presencial torna-se objeto de

estranhamento e frustração. Logo após acordar no mundo presencial, Neo é

apresentado às cenas do mundo fora da Matrix: cidades devastadas, “plantações” de

seres humanos em fazendas de fetos, bebês engatados aos casulos das usinas de

energia (fig. 131). É também um mundo vigiado por sentinelas, máquinas com traços

de molusco e inseto e que andam em bando para destruir qualquer ser vivo que

encontrem pela frente (fig. 130). The Matrix evoca o estranhamento ao mundo

presencial – repulsivo e povoado por aberrações: seres humanos maquínicos e

artefatos com aparência orgânica – e a naturalização do mundo virtual que se adequa

àquilo que aceitamos (nós, espectadores) como representação fílmica de uma

metrópole do final do século XX. Ao longo do percurso dessas representações, de

Tron a The Matrix, o que observamos é um estranhamento cada vez menor com o

ciberespaço, na medida em que ele não se parece mais com um espaço sintético,

como vinha sendo representado desde Tron, e na medida em que as próprias

entidades digitais desse ciberespaço são representadas como figuras humanas.

Contudo, continua sendo no virtual que os limites humanos são superados: quando

vemos, ao fim do filme, as balas que se aproximam lentamente de Neo parando no

ar, à sua frente e o código da “realidade da Matrix” estampado sobre o cenário (fig.

97), The Matrix reafirma a apologia ao mundo da fantasia sintética, no qual é

possível, não só viver a “vida”, mas transcender a mediocridade e estranhamento que

temos em relação à própria vida no mundo real.

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Figura 128 (The Matrix)

Figura 129 (The Matrix)

Figura 130 (The Matrix)

Figura 131 (The Matrix)

Figura 132 (Minority Report)

Figura 133 (Minority Report)

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IV.4. Imagens da alteridade cibernética

A contrapartida da perspectiva que vê o computador como um meio de negar

o corpo é o movimento concomitante de humanização do computador. Nas

representações da alteridade cibernética, a inteligência é, talvez, o traço humano

mais essencial. A capacidade de a máquina jogar xadrez – notório símbolo de desafio

ao intelecto humano – é um índice recorrente não só de inteligência, mas também de

superioridade intelectual, que pode ser visto em filmes de diversas épocas, sejam

eles sobre computadores ou outras formas de “alteridades cibernéticas”. Em 2001: A

Space Odissey, HAL joga xadrez com Frank Poole (fig. 134); em Wargames, o xadrez

aparece em um documentário sobre o criador do WOPR (fig. 135); em Star Wars,

mesmo sem ser exatamente um xadrez, o robô C3PO é visto jogando um jogo de

tabuleiro similar (fig. 137); em Blade Runner, o jogo de xadrez é a primeira mediação

direta entre o andróide e seu criador (fig. 136).

A mediação do jogo é por si só um elemento de antropomorfização, na

medida em a máquina e o ser humano confrontam-se no mesmo nível de

interlocução. Mas além dos atributos intelectuais, são igualmente recorrentes tanto os

traços de emoção como o antropomorfismo na construção das alteridades

cibernéticas. Imaginar que os computadores possam ser semelhantes aos seres

humanos – dotados de personalidade, voz, fisionomia e, eventualmente, qualidades

que os tornam mais humanos do que o próprio ser humano – não é uma construção

restrita ao imaginário fílmico. Como observa Lupton (2000, p.482), “paradoxalmente,

enquanto a cultura do computador muitas vezes procura negar o corpo humano, a

forma como a tecnologia dos computadores é vendida e representada,

freqüentemente, desenha uma analogia entre o computador e o corpo humano”. A

tendência social de humanizar ou materializar um “corpo” no computador é uma

forma de se reduzir a ansiedade e o desconforto que ele provoca, proporcionando um

“sentido” à essa entidade construída para mimetizar faculdades humanas. Lupton

nota que a humanização dos computadores se manifesta de várias formas e é um

recurso praticamente exclusivo dos personal-computers: “ícones sorridentes não são

encontrados em outras tecnologias que as pessoas acham difíceis de usar, como os

videocassetes” (Lupton, 2000, p.484). Outro sinal de que os computadores são, ao

menos potencialmente, uma espécie de alteridade está na corriqueira metáfora do

“vírus de computador” que supõe que os computadores, assim como os humanos,

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estão sujeitos à disseminação de doenças por vírus que, por sua vez, pode estar

relacionado a um comportamento “promíscuo” (Lupton, 2000, p.486). Contudo, a

tendência de se atribuir traços humanos ao computador não é recente, nem no

cinema e nem na vida social. Segundo Winegrad e Akera (1996), o ENIAC foi a

primeira máquina a ser chamada, pelo menos na mídia, de “cérebro eletrônico”, nome

que continuou sendo usado para se denominar os mainframes durante décadas.

Em 2001: A Space Odyssey, HAL 9000 manifesta diversos traços humanos: a

comunicação verbal e o tipo de relação (humana) que os demais personagens têm

com ele e vice-versa, as imagens “subjetivas” de HAL capturadas por seus “olhos”

que tudo vêem e, talvez o mais importante, os rudimentos de emoção que HAL

parece possuir, em certos casos até mais emocional que seus pares humanos. O

computador HAL 9000 é apresentado no filme juntamente com os astronautas Frank

Pole e Dave Bowman, na seqüência em que todos assistem à matéria sobre sua

missão no noticiário da BBC, a bordo da nave espacial Discovery One (fig. 138).

Quando o jornalista comenta que “a tripulação da Discovery One consiste de cinco

homens e uma das gerações mais avançadas dos computadores HAL-9000” vemos o

que seria um primeiro plano da “face” de HAL: um “olho” eletrônico vermelho

emoldurado em um retângulo com as inscrições “HAL 9000” ladeado por monitores

de vídeo, que nos permitem ver parcialmente o que o “cérebro eletrônico” pensa e vê.

Enquanto o programa de TV transcorre, o filme mostra planos do interior da nave,

normalmente sincronizados com a matéria à qual assistem os personagens. Em um

dado ponto do noticiário o repórter comenta:

(...) o sexto membro da tripulação não ficou preocupado com a hibernação

porque ele é o mais recente resultado em inteligência de máquinas: o

computador HAL-9000 que pode reproduzir, embora os especialistas prefiram

usar o termo “mimetizar”, a maioria das atividades do cérebro humano, e com

velocidade e confiabilidade incalculavelmente maiores. Falamos com o

computador HAL 9000 a quem, descobrimos, todos chamam de “Hal”.

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Figura 134 (2001: A Space Odyssey)

Figura 135 (Wargames)

Figura 136 (Blade Runner)

Figura 137 (Star Wars)

Figura 138 (2001: A Space Odyssey)

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Em um dos monitores de vídeo, que exibe partes do programa de TV, o

jornalista parece se dirigir ao olho de HAL: “(...) você é o cérebro e o sistema nervoso

da nave. Entre suas tarefas está a de cuidar dos que estão hibernando. Isso lhe

causa alguma insegurança?”. Assim que HAL inicia sua resposta – “deixe-me colocar

nesses termos, senhor Amer: a Série 9000 é o mais confiável computador já feito.

Nenhum ‘9000’ jamais cometeu um erro ou distorceu informações” – vemos um close-

up da grande lente vermelha seguida de um plano que supõe-se ser a visão

“subjetiva” de HAL do interior da nave e dos astronautas sentados, durante o qual

HAL continua: “todos nós somos, por quaisquer definição prática das palavras, à

prova de falhas e incapazes de errar”. Um pouco mais adiante, perguntado se

acredita se HAL possuiria emoções genuínas, Bowman responde:

Bom, acho que ele age como se tivesse emoções genuínas. É claro que ele é

programado dessa maneira para tornar mais fácil que conversemos com ele. Mas

se ele possui ou não emoções reais é algo que acho que ninguém pode realmente

responder.

A capacidade de um computador conversar já manifesta uma forte

antropomorfização. A voz monótona e aveludada de HAL-9000 reflete sua natureza

sintética, porém ela também é o suporte da ansiedade e do medo ocasionado pela

sua desconexão. A transparência das emoções e fraquezas que HAL manifesta em

alguns momentos contrasta com a frieza dos personagens humanos frente às

adversidades ou à morte. Lupton (2000, p. 483) nota que atribuir emoções ao

computador é “um movimento discursivo que enfatiza sua natureza humanóide” pois

a emoção não só é um atributo dos seres vivos como também é considerada como

um “fenômeno que separa seres humanos dos animais, evidência de sua

sensibilidade, espírito e alma”.

No que se refere à caracterização de uma máquina como portador de

atributos humanos, até mais do que os próprios humanos, a seqüência em que Dave

desconecta HAL é emblemática (fig. 139). Vemos, pelo reflexo do olho de HAL, Dave

aproximando-se ameaçadoramente. “Dave, pare”, pede o computador. “Você pode

parar Dave?”, continua a voz de HAL enquanto Dave desconecta os cartuchos de

memória de HAL, um a um. “Tenho medo, Dave. Minha mente está se esvaindo”, diz

mais de uma vez com a voz progressivamente mais grave e lenta. Em um dado ponto

HAL começa a “delirar” e conversar como se estivesse na sua “infância”:

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Boa tarde, senhores. Eu sou um computador HAL 9000. Me tornei operacional

nas instalações HAL em Urbana, Illinois em 12 de janeiro de 1992. Meu

instrutor foi o Senhor Langley e ele me ensinou a cantar uma música. Se quiser

ouvi-la posso cantá-la para você.

Dave pede que HAL cante a música e ele canta até que sua voz, quase

incompreensível, cesse. É inevitável reconhecer em HAL 9000 uma alteridade que

“experiencia” o drama da própria morte.

A alegoria do computador falante é um lugar comum quando se representa a

“inteligência artificial” e um traço antropomórfico essencial para se construir a

alteridade cibernética. Quando, em Wargames, David consegue acessar o WORP, a

tela do computador mostra o diálogo textual entre ambos que rapidamente é

substituído por diálogo verbal “Você quer ouvi-lo falar?”, pergunta à sua namorada

antes de ligar uma engenhoca com alto-falante. Diante do espanto de Jennifer (fig.

140) – “Como ele consegue falar?” – David explica que a caixinha apenas “interpreta

os sinais do computador e os transforma em som”. Por meio desse dispositivo, o “bip”

é substituído pela vocalização eletrônica – típico clichê da “voz de computador”:

sintetizada, estridente e metálica –, associada não à engenhoca que a justifica na

diegese, mas à voz de “Joshua”, nome humanizado do WOPR. A “voz” acompanha a

“fala” de Joshua ao longo de todo o filme, mesmo quando não há mais a engenhoca

"vocalizadora” na cena. Em Tron, Dillinger não só parece falar ao computador

embutido sob o tampo de vidro de sua mesa, como aos poucos percebe-se que a voz

que repete as frases do Master Control Program que surgem no monitor do

computador não é uma voz em off externa a diegese. É a voz que dialoga “de fato”

com Dillinger, pois este mal olha para o monitor e, em um certo momento, vira-se de

costas sem interromper o diálogo com o MCP, quando passamos a ver Dillinger pelo

reflexo da janela (fig. 144).

Contudo, nota-se em filmes mais recentes que a faculdade da fala deixou de

ser vista como uma manifestação da capacidade de pensar. Assim, em certos casos,

a “fala” perdeu seu “coeficiente de humanização”, caracterizando com mais

freqüência – quando há máquinas falantes – uma “interface” de comando vocal ou

simplesmente um gadget sonoro do que como um traço humano. Possivelmente isso

seja reflexo de uma realidade social que já está infestada de produtos que não

passam de caricaturas falantes incapazes de dialogar e, freqüentemente, objetos de

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irritação e frustração onde a fala, muito longe de humanizar, transforma-se no signo

vocal da rigidez mecânica. Em The Matrix, os personagens humanos não conversam

com as máquinas ou com os computadores, cuja relação é estritamente mediada por

botões, teclado, texto ou interface gráfica, e em The Minority Report – reproduzindo

uma tendência que já era notória em Johnny Mnemonic e Lawnmower Man – a

faculdade da “fala”, por si só, é insuficiente para a construção de uma alteridade e ela

aparece nas cenas apenas como a vocalização de comandos textuais – não um

suporte de diálogos – ou como forma de satirizar a falta de bom senso da máquina.

Nas representações mais recentes do computador consolidou-se a tendência

de se desvincular os traços antropomórficos do hardware e de se enfatizar o caráter

humanóide do software. É uma tendência que já se encontra de forma embrionária

em Tron, o primeiro filme a humanizar o software, como se este fosse a “alma” do

computador: na diegese do filme, as entidades do ciberespaço – exceto o MCP –

compartilham as mesmas características antropóides da projeção virtual de Flynn.

Entidades que parecem gente, são softwares que trabalham ou foram capturados

pelo MCP, como esclarecem os diálogos surreais que se seguem após Flynn ser

capturado, assim que aporta no ciberespaço (figs. 113-114). Levado para a cela (fig.

115), um dos guardas do Master Control Program diz empurrando-o: “Videogame

unidade 18. Aqui programa!”. Flynn responde: “Ei, a quem você está chamando de

programa, programa?”. Dois companheiros de cela, Tron e Ram, observam o

“software” recém capturado e comentam:

- Outro programa livre off-line.

- Você realmente acha que os Usuários ainda estão lá?

- É bom estarem lá. Eu não quero fugir daqui e encontrar nada além de um

monte de circuitos frios esperando por mim.

Em uma seqüência posterior, Ram comenta com Flynn: “Eu era um programa

atuarial. Trabalhei para uma grande companhia de seguro. Realmente dá uma boa

sensação ajudar as pessoas planejar suas necessidades futuras”. O MCP, por sua

vez, inaugurou a antropomorfização da imagem sintética. Dentro do ciberespaço, a

voz do MCP é uma “besta” digital que tem um “rosto” lapidado por polígonos

sintetizados por computador (fig. 141), um tipo de construção da entidade virtual que

se tornou um estereótipo corriqueiro, tal como podemos ver em Johnny Mnemonic na

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personificação da BBS que Johnny consegue “hackear” (fig 142) ou no corpo

humanóide de Jobe, de The Lawnmower Man, quando ele transforma-se em uma

entidade totalmente ciberespacial (fig. 122).

Contudo, é em The Matrix que temos a antropomorfização total da alteridade

ciberespacial. Aqui, desde que a diegese supõe um mundo virtual cujo funcionamento

simula exatamente o mundo presencial de 1999, a figura humana é a imagem que

representa tanto as projeções virtuais dos seres humanos no ciberespaço como os

programas residentes na Matrix, tais como os “agentes”. Nos filmes precedentes, a

representação dos híbridos ciberespaciais baseia-se na articulação sintagmática de

signos visuais que originalmente pertencem a categorias distintas e descontínuas,

tais como signos associados a atributos e corpo humanos e signos associados ao

inorgânico e artificial, tais como linhas luminosas, polígonos, sólidos geométricos

primitivos, superfícies hiper-reais, códigos textuais e números. Em The Matrix, os

“agentes” – programas vigilantes da Matrix – além de possuírem uma aparência

humana, reproduzem o estereótipo de “agentes do FBI”. Esse recurso privilegia a

apreensão do “agente” dentro de quadros relacionados com categorias sociais –

inclusive nas diversas conotações que um “agente” de terno preto e óculos escuros

pode ter – em detrimento de categorias relacionadas com o artificial e o sintético. É

na manifestação de certos traços de “irrealidade”, em particular no que tange à

performance surreal dos personagens, por exemplo que se revela a condição artificial

do que é representado como humano, seja ele “agente” ou não.

A construção da computação como um meio de negar o corpo, por um lado, e

como suporte de atributos humanos, por outro, está relacionada a uma lógica mais

ampla, derivada das possibilidades – reais ou imaginárias – abertas pela hibridação

entre o organismo e a máquina. Uma das características predominantes da

cibercultura é a crença cibernética de que a “informação pode circular inalterada entre

diferentes substratos materiais” (Hayles, 1999: 1), de onde deriva a idéia de que os

seres humanos são “entidades de processamento de informação essencialmente

similares às máquinas inteligentes” (Hayles, 1999: 7). É essa crença que está por trás

do imaginário proposto em construções fílmicas mais recentes onde a ligação da

mente humana com o computador realiza-se por meio da fusão entre corpo e

máquina, unidos por dispositivos conectados diretamente à carne e ao sistema

nervoso do usuário. A idéia de que entidades ciberespaciais podem ser instâncias

das mentes humanas separadas de seus corpos – realizando plenamente o “discurso

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da desincorporação” – é apenas uma das possibilidades abertas por um imaginário

mais amplo, o imaginário do “pós-humano”, onde o ciborgue é a figura emblemática.

A figura do ciborgue anuncia a imagem de um homem “melhorado” com a acoplagem

da tecnologia e cada vez mais além das limitações de desempenho ditadas pela

natureza: a “performance” é a noção fundamental para a reformulação da imagem do

ser humano na direção da imagem do “pós-humano”. Nos filmes sobre o ciberespaço,

paradoxalmente, é a imagem do corpo humano otimizado com o acoplamento de

máquinas que viabiliza a fuga desse mesmo corpo.

Em Johnny Mnemonic, o protagonista é um courier que trafica dados de

computador em seu próprio cérebro, misturados às suas memórias de gente que,

para tanto, tiveram que ser parcialmente sacrificadas. O filme, é um dos primeiros

filmes que une o “discurso da desincorporação” à imagem do ciborgue. Híbrido de

gente e computador, Johnny possui um “implante cerebral” que o transforma em um

dispositivo humano de armazenamento de dados digitais e seus olhos a entrada de

chaves de criptografia que o impedem de “ler” os dados armazenados. Antes de se

apresentar aos clientes para executar um serviço, ele “duplica a capacidade” de

gravação de seu cérebro. Nessa seqüência (fig. 143) somos apresentados ao

pequeno “slot” para a conexão de dispositivos eletrônicos que ele possui em sua

cabeça. “Activating Pemex Memory Doubler”, diz uma voz feminina assim que Johnny

liga um pequeno gadget à sua cabeça por meio de um cabo, iniciando o processo que

permite a Johnny aumentar sua capacidade de armazenamento de 80 para 160

gigabytes, em uma clara alusão aos softwares de “duplicação de disco” – como o

Double Space, muito usados até início dos anos 1990 – que ampliavam a capacidade

de armazenamento do disco rígido para além de seus limites nominais por meio da

compactação de dados.

Na seqüência do upload de dados, Johnny explica aos seus clientes como

proceder quando a transferência estiver quase completa:

Quando o contador se aproximar de zero, clique em três frames da TV,

quaisquer três. Eles serão mesclados aos dados e eu não saberei o que eles são.

Esse é o código de download. Pegue a cópia física [dos frames da TV] e envie-a

por fax ao seu contato do outro lado. Quando eu chegar lá, introduziremos o

código e faremos o download.

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À frente de uma mesa cheia de gadgets que ele tirou de sua valise, Johnny

prepara seu HMD (Head Mounted Display), espeta o cabo para a transferência de

dados na sua cabeça e diz: “o upload começa quando você pressionar aqui”,

indicando o botão no mini CD player. “Hit me!”, ele anuncia colocando o HMD à frente

dos olhos e um mordedor entre os dentes. O CD começa a girar, Johnny cerra as

mãos e os dentes, seu corpo enrijece, códigos alfanuméricos e gráficos

tridimensionais – metáforas dos dados que estão sendo enviados diretamente para o

cérebro – correm frente aos seus olhos vidrados, a contagem regressiva indica o

montante de dados ainda a ser transferido, os frames de TV se misturam à torrente

de imagens que passam pelo HMD e quando o contador chega a zero, tudo se

silencia. Diante dos clientes pasmos, uma cópia dos frames da TV sai da mini-

impressora (fig. 86).

Johnny Mnemonic apresenta-nos uma imagem inovadora do “homem-

gadget”: um ser que, conectado à máquina, torna-se extensão física dela sendo

capaz de interagir cognitivamente e sensivelmente – com dor, inclusive – aos dados

que são transferidos de um CD para o seu cérebro. Essa imagem do “homem-gadget”

como meio de transcender o corpo material é levada ao limite em The Matrix, onde o

corpo é reduzido a um mero suporte físico para a conexão dos cabos que introduzem

a mente dos personagens diretamente no ciberespaço. Na diegese de The Matrix, as

pessoas “vivem” toda a sua vida em um mundo virtual que é a réplica do mundo

presencial de 1999. A condição de seu corpo revela-se após Neo “acordar” no mundo

presencial (fig. 129), em uma bolha cheia de um líquido gelatinoso, e romper a

película desse “útero sintético”. Assim que ele retira um longo tubo de sua boca e

regurgita o líquido para respirar diretamente o ar, percebe que sua pele está

totalmente enrugada pelos anos imersos nesse líquido “amniótico” sintético e que

cabos metálicos estão plugados à sua nuca, espinha e outros pontos nevrálgicos. À

sua volta, Neo vê um ambiente escuro e sem céu: apenas uma imensidão de domos,

iguais ao seu, que se acumulam em forma de enormes edifícios, nos quais bilhões de

outros seres humanos dormem. Nas seqüências seguintes descobrimos que a

imersão na realidade virtual só é possível para os homens-gadgets que dispõe do

conector cervical onde um longo conector é espetado (fig. 79). Os não ciborgues, os

“naturalmente” gerados como o operador Tank, só podem permanecer no mundo

presencial e utilizar mediações arcaicas como teclado e monitor – curiosamente

sequer há um mouse – e, freqüentemente, diante de códigos textuais ininteligíveis.

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Figura 139 (2001: A Space

Odyssey)

Figura 140 (Wargames)

Figura 141 (Tron)

Figura 142 (Johnny Mnenomic)

Figura 143 (Johnny Mnenomic)

Figura 144 (Tron)

Figura 145 (The Terminator)

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Do ponto de vista da categoria social, a reconstrução do corpo pela conexão

ou substituição de partes dele por artefatos é sempre um potencial objeto de aversão.

É uma relação homóloga à que ocorre quando esse mesmo corpo, o social, é

contaminado em contextos indevidos pelo corpo natural, suas emanações, secreções

e partes internas. Nesse sentido, a imagem ciborguiana coloca o hibridismo tanto

como a imagem da superação dos limites naturais do corpo como objeto de aversão e

estranhamento. A diegese de The Matrix reserva ao mundo presencial o lugar do

estranhamento e da aversão e ao mundo virtual a superação dos limites humanos. A

imagem do “desempenho”, a pedra de toque da cibernética, que se realiza no mundo

virtual da Matrix é exatamente a mesma dos ciborgues não virtuais de outros filmes,

como o exterminador de The Terminator e os andróides de Blade Runner. São

imagens nitidamente marcadas por estereótipos de força e resistência que eram

tipicamente aplicados aos super-heróis dos filmes B e das histórias em quadrinhos,

tais como o Superman.

Em The Terminator, o assassino-ciborgue de um futuro onde as máquinas

dominaram o mundo volta ao ano de 1984 para eliminar uma mulher, Sarah Connor,

a mãe do líder humano que sequer foi concebido e que irá comandar a rebelião dos

humanos contra as máquinas. Construído com tecnologia futurística, o exterminador

não é um robô, mas máquina revestida de carne e sangue. É um supervilão cuja

indestrutibilidade incorpora toda uma apologia à hibridação ciborguiana: sua casca de

gente permite que ele passe despercebido entre suas vítimas humanas e seu interior

artificial controlado por computador garante a máxima eficiência de destruição. A

despeito de Arnold Schwarzenegger, ator que representa o ciborgue, ser uma pessoa

real, ele é a imagem da ambigüidade, tendo em vista tanto o ar maquínico da sua

atuação como o seu físico body-built, Mr. Universo e Mr. Olympia diversas vezes (fig.

145). Essa ambigüidade da aparência fica ainda maior com as demonstrações de

força e a resistência física fenomenais do exterminador mas, a partir de certo ponto,

ela desaparece com a eliminação da progressiva da carne que reveste o metal da

máquina. O exterminador é imbatível na luta com mãos nuas, como na seqüência em

que ele mata a pancadas o namorado da amiga de Sarah (fig. 146) – que se resume

na sucessão de cenas de um corpo humano sendo lançado através de uma porta de

vidro, contra um espelho, sobre uma cômoda e finalmente através de uma porta,

morto – ou quando vemos o exterminador saltar do meio de chamas sobre um

automóvel em movimento para atravessar seu pára-brisa com um soco (fig. 147).

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A forma como The Terminator tipifica o corpo ciborguiano, como suporte de

demonstrações exageradas de força e resistência não é inédita. Ela já aparecera de

forma rudimentar no seriado Six Million Dollar Man e, poucos anos antes de The

Terminator, o filme Blade Runner, já havia apresentado construções muito similares.

Os andróides de Blade Runner, chamados de “replicantes” são máquinas orgânicas e

o contexto diegético do filme supõe um tal desenvolvimento técnico que a única

diferenciação visual entre um ser – humano ou animal – “verdadeiro” e um ser

fabricado é o número de série microscópico impresso nas células. Cada “replicante”

do filme, em algum momento aparece exibindo “super-poderes” que marcam a

diferença e a superioridade entre eles e os seres humanos com os quais se

assemelham. Leon, em uma cena aparece mergulhando a mão em um líquido

congelante (fig. 148) e noutra aparece surrando Deckard, um blade runner ou caçador

de andróides, que parece indefeso frente à força e resistência de Leon. Até certo

ponto da seqüência, poderíamos aceitar que Leon é apenas “muito” forte, mas

quando o soco de Leon atravessa a chapa metálica de um caminhão fica claro que,

apesar da aparência, ele não é “apenas” humano (fig. 149). Em outra seqüência,

quando Deckard é perseguido por Roy, vemos que atravessar coisas muito sólidas

com o corpo é algo trivial para um replicante. Em uma cena Roy perfura com o punho

a parede de concreto (fig. 150) para pegar a mão de Deckard e quebrar-lhe os dedos

e noutra, ele atravessa a parede com a cabeça para dizer provocações a Deckard

(fig. 151): “É melhor andar logo ou eu terei que matá-lo. Se você não ficar vivo, não

pode brincar, e se não pode brincar...”. Deckard arranca um cano da parede e Roy

corre em sua direção, levando vários golpes fortíssimos dos quais ele se recobra

rapidamente e responde animado: “Esse é o espírito!” (fig. 152). Deckard foge

novamente ciente de que não tem chances em uma luta corporal contra um

replicante. Ao final da perseguição, Roy salta facilmente de um edifício a outro atrás

de Deckard, que está pendurado em uma viga após fracassar na tentativa de salto

(fig. 153). Contudo, apesar dos replicantes parecerem resistentes à morte – como na

longa e demorada cena em que Deckard mata Zhora (fig. 154) ou na cena da morte

de Pris (fig. 155), quando ela tem convulsões que parecem mais uma espécie de

“curto circuito” que cessam apenas com outro tiro de Deckard – eles morrem depois

de, no máximo, dois tiros.

Mas o exterminador que vem do futuro é quase indestrutível. Quando ele está

para executar Sara com um tiro, Kyle o defensor humano dela, que também veio do

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futuro, surge por trás com uma espingarda pump-action e dispara cinco vezes contra

o exterminador que, empurrado pelos tiros, é lançado através da vitrine e cai

aparentemente desacordado na calçada. No breve tempo em que Kyle diz “venha

comigo se quiser viver”, na tentativa de convencer Sarah a fugir com ele, o

exterminador recobra os sentidos e imediatamente retoma a perseguição a eles (fig.

156). Em outra seqüência, o exterminador cai da moto e a caminhonete na qual

Sarah e Kyle fugiam ainda passa por cima dele antes de capotar. Depois de deslizar

vários metros, o exterminador é atropelado por um caminhão-tanque e, mesmo

assim, ele levanta-se e assume o caminhão para continuar a perseguição. Quando

Kyle consegue explodir e incendiar o caminhão-tanque, o exterminador, em chamas,

cambaleia para fora da cabine e cai junto a outros destroços no meio do fogo. Seus

movimentos tornam-se cada vez mais lentos até que ele pára, já com a carne

consumida pelas chamas. É claro, o exterminador não morreu. Na seqüência

seguinte, enquanto Kyle e Sarah se abraçam aliviados, pode-se ver a silhueta do

esqueleto metálico que surge do meio dos destroços. O exterminador já sem a casca

de carne e reduzido ao esqueleto de aço os fita com os olhos vermelhos antes de

reiniciar a caçada (fig. 157).

Contudo, o filme leva a “recusa em morrer” ao limite: a besta ainda “morre”

ainda mais duas vezes no filme. Kyle, após dar uma série de pancadas com um cano

no exterminador, fazendo-o ceder a cabeça (fig. 158) – como na cena em que

Deckard bate em Roy com um cano, em Blade Runner –, é lançado para o chão com

dois golpes. Kyle consegue encaixar uma bomba no esqueleto metálico do

exterminador que acaba explodindo em pedaços. Mas a perseguição continua. O

corpo mecânico mutilado do exterminador, sem o abdômen e as pernas, rasteja por

cima do corpo de Kyle, morto com a explosão, arrastando cabos e fios pendurados no

lugar do que seriam as vísceras em um corpo humano (fig. 160). Sarah, ferida na

perna, também se arrasta até encontrar e fechar uma grade providencial que lhe dá

tempo para alcançar um botão que aciona uma prensa hidráulica sobre o

exterminador. Raios saem do esqueleto metálico, Sarah e ele trocam olhares

enquanto seu corpo e rosto são esmagados. O olho do exterminador se apaga (fig.

161). Mas, permanece a dúvida, ele estará mesmo morto?

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Figura 146 (The Terminator)

Figura 147 (The Terminator)

Figura 148 (Blade Runner)

Figura 149 (Blade Runner)

Figura 150 (Blade Runner)

Figura 151 (Blade Runner)

Figura 152 (Blade Runner)

Figura 153 (Blade Runner)

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Figura 154 (Blade Runner)

Figura 155 (Blade Runner)

Figura 156 (The Terminator)

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Figura 157 (The Terminator)

Figura 158 (The Terminator)

Figura 159 (The Terminator)

Figura 160 (The Terminator)

Figura 161 (The Terminator)

Figura 162 (The Terminator)

Figura 163 (The Matrix)

Figura 164 (The Matrix)

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Nota-se que há uma relação entre a proximidade com a morte e o grau de

humanização de alteridade cibernética. O medo e ansiedade de HAL, impotente

diante de sua própria morte, é desconcertantemente humano e o momento de

máxima humanização dos replicantes de Blade Runner é quando Roy, diante da

morte iminente de Deckard, acaba salvando-o e aceitando sua própria morte diz:

“time to die”. Ao contrário, a indestrutibilidade aparente do exterminador de The

Terminator se dá ao longo de um progressivo “descarte” dos traços humanos. No

quarto de seu hotel, ele corta a carne de seu braço com um estilete a fim de

“consertar” o mecanismo da mão (fig. 159) e, com o mesmo estilete, ele espeta o olho

a fim de arrancar a casca orgânica danificada (fig. 162). Esse processo revela a

inutilidade e descartabilidade da carne, e culmina com o renascimento do

exterminador como uma entidade cibernética purificada pelo fogo (fig. 160).

A indestrutibilidade e a bestialidade parecem ter afinidade semântica. Estar

sujeito à morte, de certa forma, continua sendo um traço que aproxima a alteridade

cibernética do ideal natural de ser humano enquanto que a “imortalidade” ou

“indestrutibilidade” freqüentemente constitui um traço de bestialidade. Em Tron, o

ciberespaço é uma espécie de arena de videogames onde o “game over” é

experienciado pelos avatares e pelos softwares como a “morte”. Por outro lado, a

“indestrutibilidade” é, em The Matrix, justamente a característica que mais distancia

os “agentes” dos “seres humanos”. Mesmo que sujeitos à fatalidade, a morte do

agente é sempre momentânea pois o corpo que cai nunca é o de um agente: após

Trinity atirar na cabeça de um deles, o cadáver que bate no chão é do piloto de

helicóptero que teve seu corpo ocupado pelo agente, momentos antes (fig. 163). Da

mesma forma, quando o agente Smith é atingido pelos tiros disparados pela

metralhadora giratória de Neo, o corpo que cai transforma-se no corpo de um policial

(fig. 164) e, pouco depois, vemos o mesmo agente Smith entrar pela porta.

A morte ainda tem outra importante função na construção de algumas

alteridades cibernéticas. É onde a “performance” como “máquina de matar” pode ser

vista como uma das mais recorrentes construções ciborguianas. E mesmo com

intervalo de quase duas décadas, é uma construção que permanece praticamente

inalterada, desde os filmes que a consagraram, como Blade Runner e The

Terminator, até filmes mais recentes, como The Matrix, que caracteriza a realidade

virtual como o local possível dos exageros da “máquina de matar” e reproduz nos

agentes e nos protagonistas projetados dentro da matrix os mesmos estereótipos que

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caracterizam os replicantes e o exterminador. Não por acaso a seqüência em que

Neo e Trinity invadem o prédio de segurança máxima onde Morpheos está preso (fig.

95) é praticamente uma releitura da seqüência de The Terminator na qual o

exterminador invade a delegacia de polícia atrás de Sarah (fig. 165). Logo após ele

anunciar seu retorno com a célebre frase “I’ll be back”, o vemos arrombar a delegacia

com um automóvel. Ele sai do veículo com uma metralhadora na mão esquerda e

uma espingarda na mão direita e invade o interior da delegacia atirando em todos que

vê no corredor e nas salas que olha uma a uma. Além de possuir uma mira

impressionante, conseguir arrombar facilmente portas e enxergar no escuro, ele é “à

prova de balas”. Qualquer resistência é inútil e os tiros dos policiais, sejam de

revólveres ou de fuzis, com os quais se armam desesperadamente, não surtem

nenhum efeito e eles são abatidos às pencas pelo exterminador. Além de aspectos

performáticos similares com armas de fogo – em ambos os filmes os personagens

demonstram tal conhecimento e intimidade com as armas que estas chegam a

parecer extensões deles –, as “máquinas de matar” assassinam de forma

particularmente fria e impiedosa. O que muda, entre The Terminator e The Matrix, é a

justificativa da diegese para a matança, mas o aspecto performático que caracteriza a

“máquina assassina” é o mesmo.

A despeito do estereótipo do “arsenal ambulante” ser um traço marcante na

construção da alteridade cibernética como “máquina de matar” ele não é o único e

nem essencial. Talvez o estereótipo mais importante seja o da transformação do

corpo em uma máquina de alto desempenho e resistência, instrumento ideal e

praticamente invencível na disputa corporal contra seres humanos comuns. O corpo

de alto desempenho é tipicamente aquele corpo com aparência humana mas capaz,

como mostra, ad nauseam o filme The Matrix, fazer paredes e colunas cederem sob o

impacto de seus corpos e destruir paredes e colunas com a força de seus socos e

cabeçadas (fig. 93 e 166), em cenas, por sinal, bastante semelhantes com as

encontradas em The Terminator (fig. 147) e Blade Runner (figs. 149, 148 e 150).

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Figura 165 (The Terminator)

Figura 166 (The Matrix)

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A despeito das eventuais diferenças, há, notavelmente, um padrão

conservador de representação desse corpo, muito aquém das possibilidades dadas

pelo conceito do ciborgue. A fusão de organismo e máquina é sempre um meio de

ampliar as capacidades e os limites propriamente, ou reconhecidamente, humanos,

sendo muito rara a presença de “novas funcionalidades” e, sobretudo, alterações

morfológicas do modelo básico do corpo humano. Os ciborgues do cinema podem

quebrar concreto com os punhos, esmagar uma cabeça com as mãos, resistir ao

calor e ao frio extremos, dar saltos inacreditáveis, desviar de balas ou mesmo ser à

“prova de balas”, mas não os vemos lançando raios com os olhos, atirando com os

dedos, soltando gases venenosos ou cuspindo fogo. Nesse sentido, o imaginário

ciborguiano se identifica menos com a imagem desumanizada da besta cibernética de

The Terminator, uma carcaça de aço “disfarçada” no corpo “super-marombado” de

Arnold Schwarzenegger, e mais com a figura ambígua dos replicantes de Blade

Runner ou com os personagens ciberespaciais de The Matrix. Mesmo incorporando

as promessas da biônica, a representação dos ciborgues tem no corpo uma categoria

simbólica central e sua subversão e violação – por meio da transformação das

relações que os signos ligados ao corpo têm entre si e com signos de outras

categorias – inevitavelmente o torna objeto de estranhamento e potencial portador de

traços de bestialidade, como ocorre com o exterminador, ou símbolo de degeneração,

como nos corpos violados por conectores metálicos em The Matrix. É nessa

perspectiva que a imagem de corpos reconstruídos pela realidade virtual ou

biotecnologia tem um apelo irresistível, pois manifestam a ampliação das

possibilidades da bio-maquinaria sem agredir a integridade das aparências do corpo

humano valorizado como máquina. Nesse sentido, a imagem ciborguiana que é

exaltada no cinema não é a do homem-gadget ou da besta-cibernética, uma versão

contemporânea de Frankenstein, mas imagem do corpo reconstruído e remodelado

artificialmente em corpos não só melhores e mais eficientes do que o obsoleto corpo

de carne e osso, mas também mais belos. Assim, o culto à beleza coincide com o

culto ao desempenho: os andróides e entidades ciberespaciais mais-que-humanos

são modelos de beleza cujos corpos podem quebrar coisas mais sólidas que o aço e

vencer os limites da própria física.

Em certos casos, também observamos um certo orientalismo, cuja presença

vem se acentuando na cibercultura, incorporado na construção das alteridades

cibernéticas. Trata-se, certamente, de um orientalismo fabricado tanto pelo fascínio

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como pelo medo que se tem do outro oriental, em oposição às concepções do “eu”

ocidentalizado. Talvez porque seja percebido como um novo território a ser

qualificado, definido e generalizado como por muito tempo foi – e ainda é – o

“Oriente”, a construção do “cibernético” e da alteridade cibernética seja homóloga às

construções que se faziam do Oriente e do oriental. Em seu sentido original,

orientalismo refere-se ao estudo das sociedades do Oriente, desde o Oriente Próximo

ao Extremo Oriente, pelos ocidentais, mas também é aplicado à imitação ou

estereotipação de traços do Oriente pelas artes ocidentais. O termo tornou-se

academicamente obsoleto e é pejorativamente vinculado a uma visão colonialista do

Oriente. Entretanto, Said (2001, p.289) nota que mesmo decaído o colonialismo

francês e britânico, o discurso e a prática orientalista continuam. Fundamentalmente o

produto do orientalismo é um Oriente que não passa de uma construção do Ocidente,

na qual o primeiro se define por oposição ao segundo. É uma construção abstrata,

onde sempre é preferível a imagem de um Oriente “clássico” às “evidências diretas

extraídas das realidades orientais modernas” (cf. Said, 2001, p.305), como se

houvesse uma incompatibilidade entre a modernidade e o Oriente. Assim, nos filmes,

a relação entre o Oriente e a modernidade é fundamentalmente de dois tipos: uma na

qual a associação de traços de modernidade e de orientalidade proporcionam figuras

caricatas e decadentes e outra, na qual oriental é símbolo de resistência às

vicissitudes da modernidade42. Ainda que seja, como neste caso, um objeto de

admiração, o “Oriente, no fundo, ou é algo a ser temido (o Perigo Amarelo, as hordas

mongóis, os domínios pardos) ou a ser controlado (por meio da pacificação, pesquisa

e desenvolvimento ou ocupação pura e simples sempre que possível)” (Said, 2001,

p.305). Um objeto, enfim, que suscita reações análogas àquelas que os objetos

cibernéticos provocam.

Apropriado pela cibercultura, o Oriente reforça o contraditório e o híbrido

característico do “outro” cibernético, dentro de esquemas onde o ciber-futuro ou ciber-

42 Como exemplo recente podemos citar o filme The Last Samurai. Ele retrata a elite militar japonesa que se alia aos ocidentais e adota armas de fogo como gananciosa e traiçoeira. Ao contrário dos generais “ex-samurais” que trocaram a armadura pela farda, aqueles que se recusam a abandonar a espada e a aderir às armas de fogo, são retratados como monumentos de moralidade e coragem. É sintomático que o “último samurai” seja um ocidental: enquanto o custo da modernidade a um oriental é a destruição da sua integridade moral, a orientalização de um ocidental resgata sua moralidade corrompida. A despeito da aparência “histórica” que têm os eventos do filme, as armas de fogo são utilizadas pelos exércitos comandados pelos samurais desde o século XVI, período no qual o Japão se unificou sob Ieyasu Tokugawa.

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presente é atravessado pelo arcaísmo do tradicional. O orientalismo dos filmes

ciberculturais é reflexo de um imaginário popular ocidental que freqüentemente

associa o outro oriental à superação das contradições entre o progresso da

modernidade e as tradições milenares. Na vida prática, esse imaginário se manifesta

nos procedimentos “orientais” reinventados dentro de quadros de referência

ocidentais, nos quais floresce a idéia da harmonia entre a visão bucólica do antigo e a

utilitária eficiência do moderno: são o budismo e o kendo de fim de semana capazes

de resolver o stress do cotidiano e é a apropriação da “Arte da Guerra” de Sun Tzu –

sempre em moda entre os executivos ocidentais – como um manual de sucesso na

“guerra” empresarial.

Nos filmes ciberculturais, o ocidente cada vez mais se reveste de oriente e se

manifesta nas conotações de auto-disciplina e determinação normalmente associadas

ao modo de vida tradicional e estamental que sobrevive “no Oriente”. Mas esse

mesmo orientalismo também se manifesta no estranhamento e desconfiança que o

outro sempre inspira. Assim como o “cibernético”, o Oriente é tanto objeto de medo

como de fascinação. É onde emerge a oposição entre o Oriente naturalizado como

um traço pitoresco do ecletismo ocidental e o Oriente profanado pela modernidade, e

portanto, encarado como degenerado e impuro. Em um caso, a associação entre o

ocidente com estereótipos orientais produz uma valoração positiva enquanto que o

Oriente contaminado por estereótipos ocidentais – sinal da degeneração do “Oriente”

– produz um juízo de valor negativo.

No grupo de construções em que o Oriente produz conotações positivas,

situam-se as construções onde personagens ocidentais associam-se aos símbolos

orientais, como na cena em que Flynn aparece vestido de quimono enquanto ele

“hackeia” o computador da Encon (fig. 84) ou na seqüência em que Neo e Morpheos

aparecem vestidos a caráter lutando kung-fu em um ambiente tipicamente oriental

(fig. 92). Com a computação, o Oriente também se tornou mais acessível e foi

incorporado tecnologicamente pelo “eu” ocidental: caracteres japoneses invertidos

tornam-se os “códigos da Matrix” (fig. 96) ou os ideogramas chineses são traduzidos

automaticamente para a linguagem ocidental (fig. 88). Ainda em The Matrix, percebe-

se que os estereótipos do oriente misturam-se nitidamente ao antigo, aos sinais de

arcaísmo associados aos mocinhos do filme. São como os telefones antigos e as

telas verdes monocromáticas que aparecem ao longo das áreas que a diegese nos

apresenta como intermediárias entre o presencial e o virtual; são signos da “história

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congelada”, sinais de sobrevivência e salvação nos interstícios do desenvolvimento

tecnológico opressor.

As construções que portam valorações negativas também são supra-

objetivações freqüentes. Aqui podemos situar o mundo deprimente de Blade Runner,

lugar abandonado por todos que podiam e passaram pelos controles de imigração

para outros planetas mais aprazíveis. Em certo sentido, a Terra é retratada como um

repositório da escória humana, um lugar sujo, escuro – nunca há sol – e sempre

chuvoso. A cidade do filme é cheia de luminosos e video-walls gigantes que exibem

dragões em néon, ideogramas e garotas-propaganda orientais anunciando produtos

ocidentais. Parece uma metrópole que foi engolida pela “Chinatown” (fig. 167), com

as ruas apinhadas de uma mistura degenerada de etnias e sub-culturas,

significativamente representada por pessoas orientais ou vestidas como tais. Assim

como em outras construções, o Oriente de Blade Runner é homogeneizado e elimina

qualquer distinção de origem entre os signos da cultura japonesa e da chinesa, por

exemplo, apesar de ficar bem claro o que é e quem é o Ocidente e o ocidental. Blade

Runner é um filme que fala dos híbridos, os replicantes, e o Oriente é também um

signo do estranho, do alienígena, que entra no esquema da hibridação, misturado aos

significantes – a tecnologia e a ciência – ocidentais. Analogamente, a Beijing de

Johnny Mnemonic aparece como uma cidade caótica, lugar de passeatas e violência,

e o único refúgio calmo, nesse Oriente sinônimo do caos é o hotel – um fragmento do

ocidente – mas com servos orientais que reverenciam Johnny assim que ele entra na

recepção (fig 168). Johnny também é o Ocidente que vai ajudar clientes orientais que,

de tão atrapalhados que são, apontam suas armas contra o salvador (fig. 169). Os

bandidos orientais são, evidentemente, a imagem do Oriente deteriorado,

contaminado e impuro, associado às coisas “ruins” do Ocidente: o banditismo de uma

Yakuza com capangas ocidentais e mestiços (fig. 170) ou o chefão japonês vestido

com trajes ocidentais que segura um revólver em uma mão e uma katana, a espada

samurai, em outra (fig. 171).

Por fim, também encontramos nesses mitos cinematográficos personagens

que lembram, em muitos aspectos, a figura do trickster. O trickster, segundo Queiroz

(1991, p.94) é, em geral:

(...) o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de

façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no

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tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e

más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os,

despertando-lhes, por conseqüência, sentimentos de admiração e respeito, por

um lado, e de indignação e temor, por outro.

O trickster está presente em mitos de praticamente todas as culturas o que,

segundo o autor, constitui “uma categoria por meio da qual podem manifestar-se

certas dimensões universais da existência humana”. Contudo, completa ele:

(...) esta última só se concretiza em contextos sócio-culturais específicos, cada

qual com sua história. Assim, as diferentes modalidades do trickster também

não poderiam deixar de traduzir peculiaridades próprias aos grupos sociais que

lhes dão vida (Queiroz, 1991, p.104).

E não é diferente na cibercultura. Situados no limiar da desordem, nas

regiões de fronteira e hibridação entre o artefato e o organismo, entre a cultura e a

natureza, entre o virtual e o presencial, os “tricksters cibernéticos” são tanto

desrespeitadores da ordem social vigente como agentes de uma nova ordem social.

O hacker talvez seja o tipo de personagem que melhor exemplifica a imagem do

“trickster cibernético”. As aventuras dos hackers, como ocorre com os tricksters em

geral, são “marcadas, amiúde, pela malícia, pelo desafio à autoridade e por uma série

de infrações às normas e aos costumes” (Queiroz, 1991, p.96). Neo de The Matrix é

perseguido pelos agentes justamente porque é uma ameaça à ordem do sistema;

Johnny de Johnny Mnemonic trafica em seu cérebro os dados secretos da

Pharmakon, capazes de curar uma doença neurológica que interessa à empresa que

continue existindo; Flynn, de Tron, utiliza suas habilidades para destruir o Master

Control Program e seu controle sobre o ciberespaço; David, de Wargames, abala a

ordem geopolítica do mundo com seu jogo contra o WORP.

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Figura 167 (Blade Runner)

Figura 168 (Johnny Mnemonic)

Figura 169 (Johnny Mnemonic)

Figura 170 (Johnny Mnemonic)

Figura 171 (Johnny Mnemonic)

Figura 172 (Wargames)

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Figura 173 (The Matrix)

Figura 174 (Wargames)

Figura 175 (Wargames)

Figura 176 (The Lawnmower Man)

Figura 177 (The Lawnmower Man)

Figura 178 (The Lawnmower Man)

Figura 179 (The Lawnmower Man)

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Nos filmes, os hackers compartilham quase sempre as mesmas

características. São outsiders, diferentes do que é visto como norma na sociedade da

qual fazem parte, são amantes “do viver errante e solitário” e “raramente têm morada

fixa, perambulando pelos espaços sociais, naturais e sobrenaturais” (cf. Queiroz,

1991, p.87). David (Wargames) é um garoto aparentemente comum, mas vive em um

mundo à parte de seus pares escolares e seus amigos são outros hackers mais

velhos, mais outsiders ainda que ele, que ficam escondidos nos fundos de uma

empresa de computação (fig. 172); Johnny (Johnny Mnemonic) perdeu parte de suas

memória e, da mesma forma que não lembra quem é, não tem vida pessoal e mora

em hotéis; Neo (The Matrix) leva uma vida dupla, de dia é Thomas Anderson,

programador em uma empresa de software, e à noite é um hacker famoso que rouba

e vende dados. A imagem fílmica dos hackers também está associada à desordem,

seu ambiente é uma “bagunça” de gadgets cibernéticos misturados aos seus objetos

pessoais, como o quarto de Neo (fig. 173), o quarto de David (fig. 174) ou o escritório

de seus mentores hackers que contrasta visivelmente com o ambiente contíguo, onde

os mainframes repousam em um lugar limpo, organizado e monitorado por pessoas

“normais” (fig. 172).

Os hackers também são, invariavelmente, especialistas que manifestam sua

intimidade com a tecnologia pela desenvoltura com que dominam os temíveis e

“indecifráveis” códigos de computador e manipulam, além de computadores,

aparelhos eletrônicos e outros gadgets. Os aparatos manipulados pelos “tricksters

cibernéticos” não costumam ser de grande sofisticação tecnológica, são usualmente

objetos que não precisam ser “apresentados” ao senso comum e muitas vezes

objetos que fizeram, fazem ou farão parte, como supõem os filmes futuristas, do

cotidiano das pessoas. Assim, o “circo” montado por Johnny antes dele iniciar o

upload de dados para sua cabeça são basicamente adereços estilizados que

lembram um CD player, um contador digital, uma impressora e um visor que lembra

os antigos óculos estereoscópicos, mas caracterizados como high-techs, não porque

sejam tecnologicamente sofisticados, mas porque são o futuro de 1995 (fig. 86). Mas

foi Wargames que forneceu algumas das construções mais consistentes do hacker

“traquitaneiro” e que influenciam até hoje o imaginário da cultura de massas. David

ameaça a humanidade e a ordem geopolítica do mundo não com aparelhagem

sofisticada, mas a partir de uma miscelânea de aparelhos eletrônicos que eram, já

naquela época, acessíveis à população comum, mas vistas, pela maioria, como

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gadgets esquisitos (fig. 174 e 177). Muitos desses gadgets já foram naturalizados e

incorporados ao nosso cotidiano pela explosão dos personal-computers, tais como o

drive de disquete (gigantesco no filme) e o modem (fig. 177), a engenhoca mais

importante do filme, já que ele não é só um gadget, mas o ícone fílmico da

“conectividade”, talvez o primeiro, da aliança entre o computador e a telefonia, a base

fundamental sobre a qual foi construído o imaginário do ciberespaço tal como

concebemos hoje43.

Outro traço característico do hacker que o diferencia nitidamente de outras

construções de “especialistas” científicos ou mesmo mágicos – sempre

caracterizados como senhores experientes e maduros – é a aparência jovem,

freqüentemente associada a traços juvenis, sejam eles físicos ou comportamentais.

Nos filmes mais antigos isso é mais evidente, tanto pela presença constante do

videogame como pelo fato de crianças serem mais íntimas deles do que amigos da

mesma idade. Em Tron, Lori, a amiga de Flynn pergunta por ele a um menino em um

arcade videogame que responde prontamente “Sim, ele está lá, naquela máquina”,

apontando para o lado, antes de retomar o jogo em seguida (fig. 99). Ainda que o

Flynn seja um adulto, a construção do personagem é a de um adulto infantilizado com

um comportamento adolescente e que continua a se dedicar a coisas pouco sérias,

como o videogame, e a se vestir como um adolescente. No filme ele aparece com o

cabelo desleixado, vestido de camiseta e jeans, com um fone de walkman pendurado

ao pescoço, enquanto seus ex-colegas usam ternos. Em Wargames, enquanto todos

saem do fliperama para a escola, o amigo que entra e para quem David passa o jogo

em andamento antes de sair correndo é um menino (fig. 101). Longe de serem jovens

exemplares, os hackers são representados como a imagem da imaturidade social.

Flynn é alguém que montou uma casa de diversões eletrônicas depois de ser

despedido da empresa de software onde trabalhava. David, chega atrasado à aula

porque joga videogame até não poder mais, faz piadas do professor e “rouba” senhas

para acessar o sistema da escola e melhorar suas péssimas notas do boletim. Traço

essencial do trickster, a ambigüidade se manifesta aqui na tipificação do hacker como

adolescente rebelde e visual desleixado que contrasta com o conhecimento técnico e

a perspicácia normalmente imputados ao tipo sênior e conservador tradicionalmente

associado à ciência e tecnologia.

43 Não por acaso, o telefone é uma metáfora onipresente da conectividade em The Matrix.

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Essa imagem do “trickster cibernético” talvez seja até anterior à socialização

do termo “hacker”. Nos filmes, o termo só surge a partir de meados dos anos 1990 e

mesmo no ambiente de desenvolvimento de softwares dos anos 1980, essa palavra

não era comum. É provável que a palavra só tenha começado a ser usada fora do

que seriam os “círculos hackers” quando os vírus de computador e as invasões de

sistemas começaram a ganhar notoriedade na mídia, entre o final dos anos 1980 e

início dos anos 1990. O estereótipo do “trickster cibernético” – o adolescente outsider

e subvertedor da ordem, uma ameaça, portanto – é mais antigo do que o termo

hacker, como demonstram os filmes, e persiste praticamente inalterado até hoje.

Talvez isso ocorra, em grande medida, porque esse mesmo estereótipo é utilizado,

desde os anos 90, pela mídia de fatos variados para espetacularizar o real, ao

destacar aos garotos que realmente invadem e vandalizam sistemas de alta

tecnologia, cujo conhecimento necessário – ao menos aos olhos do senso comum –

não poderia estar a alcance de meninos que nem terminaram o colégio.

Mas o fato menos conhecido, e parcialmente explorado nesses estereótipos,

é que a circulação de informações acerca de sistemas de tecnologia eletrônica nunca

foi, ao contrário do que se costuma pensar, tão restrito. A eletrônica já era um hobby

há décadas, antes do personal-computer se popularizar e, quando este surgiu, foi no

contexto do hobby eletrônico, que reunia uma diversidade de pessoas com interesses

e formações diversas – tais como radioamadores, médicos, profissionais de som,

engenheiros, técnicos ou simples curiosos – e que tradicionalmente já consumiam

literatura, trocavam informações, comercializavam ou realizavam escambo de peças

eletrônicas, kits e placas de circuito feitas em casa. Da mesma forma, a invasão de

sistemas de telecomunicações também não é recente. Antes mesmo do termo

“hacker” ser conhecido, já havia a denominação “phreak” para aqueles que

desenvolviam e compartilhavam técnicas para burlar e violar sistemas de telefonia,

desde enganar o sistema de cobrança até acessar funções reservadas do sistema.

Algumas dessas técnicas eram facilmente implementadas com dispositivos

eletrônicos que qualquer “hobbista” podia construir, sendo que as mais procuradas e

desenvolvidas eram as que permitiam realizar ligações de longa distância sem pagar.

O personagem mais famoso do mundo do phreaking é John Draper, conhecido como

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Captain Crunch44, que construiu um dispositivo para esse fim que ficou conhecido

como blue-box45. A partir dos anos 1980, com a popularização dos personal-

computers surgiram as BBBs (Bulletin Board System) que eram redes disponíveis à

conexão de outros computadores via modem para troca de arquivos e mensagens.

Como a conexão era realizada por meio do telefone e o custo da ligação era

proporcional à distância entre os computadores e o tempo de conexão, as técnicas de

phreaking tornaram-se parte inseparável do arsenal de truques do que viria a ser

conhecido na cultura de massas como “hacking”. Se em Tron, as referências ao

phreaking são limitadas a uma visão lúdica da invasão ao MCP, onde Flynn explora

as brechas do sistema, Wargames possui claras referências ao phreaking, como a

seqüência em que David, sem moedas, desmonta o bocal do telefone público e utiliza

um lacre de lata de refrigerante para “aterrar” o sistema momentaneamente para

liberar a linha (fig. 175).

A associação do videogame ao “trickster cibernético” também não é gratuita.

De fato, o universo de pesquisa da computação sempre esteve ligado aos jogos,

vistos com interesse por serem úteis no desenvolvimento da inteligência artificial.

Além disso, não é incomum que profissionais de desenvolvimento de software sejam,

até por uma afinidade mental, apaixonados por jogos.

Em filmes mais recentes, a figura do “trickster cibernético” evoluiu para um

imaginário ciborguiano que, ao mesmo tempo em que projeta nossa mente para uma

fusão sem fronteiras com o ciberespaço, transforma nosso corpo para que ele

ultrapasse suas fronteiras naturais. São as representações de Jobe (The Lawnmower

Man) e de Neo (The Matrix), que transcendem a condição carnal humana por meio da

conexão direta da mente com a máquina, as mais próximas do caráter liminar do

trickster. No início de The Lawnmower Man, Jobe não é retratado apenas um adulto

infantilizado, mas também aparentemente portador de deficiência mental e seu único

amigo é um menino que é mais inteligente que ele (fig. 176). Potencializado pela

realidade virtual, Jobe adquire novo aspecto e sua relação com o cortador de grama,

construído por ele, resume sua transformação. No início do filme, o cortador de grama

parece “puxar” o corpo torto de Jobe (fig. 176) e, já após a primeira fase de

44 Esse apelido deve-se ao fato dele ter distribuído a informação de que um apito que acompanhava a caixa de cereais Captain Crunch reproduzia o som de 2.600 Hz necessário para enganar o sistema de cobrança da Bell, como uma blue-box fazia. 45 Apesar de ilegais, produziam-se blue-boxes para escambo e venda. Steve Wozniak aprendeu com Draper a tecnologia e construiu com Steve Jobs, sua versão de blue-box pouco antes de fundarem a Apple Computer.

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transformação, a máquina é conduzida imponentemente por um Jobe com o corpo

másculo e viril (fig. 178). Por fim, após transcender sua condição humana, não há

corpo conduzindo a máquina, ela é conduzida mentalmente por Jobe (fig. 179). Tanto

em Lawnmower Man como e The Matrix, os protagonistas adquirem “poderes

excepcionais, mágicos, empregando-os tanto nas ações destrutivas ou perturbadoras,

quanto de modo construtivo, auxiliando os que se encontram em situações adversas”

(cf. Queiroz, 1991, p.97). Mas, Jobe, conforme seus poderes sobrenaturais se

desenvolvem, transforma-se em um personagem que vive também na fronteira do

bem e do mal, nesse sentido mais próximo ainda da imagem do trickster, que não é

nem uma entidade exclusivamente benfazeja ou malfazeja, como prega a

mentalidade maniqueísta ocidental (cf. Queiroz, p.104), ao contrário de Neo, muito

mais próximo do modelo messiânico.

Os tricksters são “personagens que mediam o desejo da própria sociedade de

violar tabus" (Queiroz,1991, p.99). Objeto de fascinação e medo – porque ao mesmo

tempo em que “realiza tudo aquilo que todos, secretamente, gostariam de fazer”

(Queiroz, p.100), é ameaça à ordem social vigente – é na figura do “trickster

cibernético” que se consolida a tendência mais evidente da cibercultura de se

aproximar do mito, criando modelos lógicos para resolver contradições que são

insuperáveis no plano da realidade (cf. Lévi-Strauss, s.d., p. 265).

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V. CONCLUSÃO

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Mauss (p.369-397) nota que das raras culturas que “fizeram da pessoa

humana uma entidade completa, independente de qualquer forma, exceto de Deus”, a

romana é a mais importante. De acordo com o autor, os romanos herdaram dos

etruscos o sentido original da palavra “persona”, associado à máscara e semelhante à

noção de personagem: “de papel cumprido pelo indivíduo em dramas sagrados,

assim como ele desempenha um papel na vida familiar”. A noção de pessoa foi

parcialmente estabelecida pelos romanos que a tornaram um fato fundamental do

direito, a persona civil, do qual eram excluídos, por exemplo, os escravos. Ao sentido

jurídico da persona acrescentou-se o sentido moral, o sentido “de ser consciente,

independente, autônomo, livre, responsável”. Mas foi na pessoa cristã que se deu a

base metafísica consistente para a pessoa moral e para a unidade da pessoa:

É a partir da noção de uno que a noção de pessoa é criada – acredito nisto há

muito tempo – a propósito das pessoas divinas, mas simultaneamente a

propósito da pessoa humana, substância e modo, corpo e alma, consciência e ato

(p.393).

É essa noção de pessoa indivisível que é destruída com o corpo cibernético.

Vale relembrar que as raízes desse corpo remontam à Renascença quando também,

de acordo com Mauss, tem origem a noção de pessoa, a categoria do Eu, identificada

ao Cogito e à consciência. Desde então, o corpo humano passa a ser visto como um

suporte do espírito e cada vez mais identificado à imagem da máquina. A cibernética,

por sua vez, propôs que essa imagem fosse muito mais do que uma simples

metáfora. Aos olhos da cibernética, o corpo passou a ser, de fato, uma máquina.

Esse olhar é, em grande medida, o olhar da sociedade contemporânea, resultado da

influência que as idéias cibernéticas exerceram, a partir do último quarto do século

XX, na cultura ocidental em geral, em especial por meio da indústria cultural e cultura

de consumo, como foi observado por esta pesquisa.

A ciência, longe de ser um repositório estanque de produção e conhecimento,

é apropriada pelo “senso comum” na reavaliação funcional das categorias sobre as

quais se assentam as possibilidades lógicas de apreensão do mundo (cf. Sahlins,

1990, p.9-10). É assim que o cibernético, o digital, o biônico, o genético, o eletrônico,

o robótico, o nanotecnológico, idéias originárias das altas rodas científicas,

transformaram-se em lugares comuns e importantes referências para lidar com as

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contingências classificatórias trazidas pelos corpos-biônicos, realidades virtuais,

computadores, clones e transgênicos.

No contexto da cibercultura, o ciberespaço e o ciborgue são as categorias

mais fundamentais pois são elas, justamente, que articulam – ou desarticulam – as

possibilidades tecnológicas com a categoria do “Eu” 46. Tanto as possibilidades

abertas pelo virtual mediado por modelos computadorizados como a artificialização

do organismo fundam-se na objetivação do corpo como um artefato e sua separação

do Eu. A ausência do corpo no sonho da realidade virtual é a separação cibernética

do cogito do corpo, não muito diferentemente de como Descartes enunciara, e a

percepção do corpo como um “reservatório de partes destacáveis e manipuláveis” (Le

Breton, 2003, p.83), sujeitas tanto a defeitos como melhorias, é inseparável do modo

de ver o corpo inaugurado por Vesálio em seu De Humanis Corporis Fabrica. O

ciberespaço e o ciborgue são, de fato, apesar de produtos de uma recente “revolução

cibernética”, herdeiros de uma antiga tradição de conceber a categoria social do

corpo. Nessa perspectiva, a cibernética coroou um longo processo de separação do

Eu do corpo e rompeu definitivamente com a indivisibilidade do corpo e do espírito, a

pessoa do cristianismo. Com a cibernética, passou a dominar a tese de que a

separação do corpo do cogito não é metafísica, mas fisicamente possível. Sustentada

pela vulgarização do discurso cibernético e pelos avanços tecnológicos, a imagem de

que o corpo é um mero acessório da pessoa, a ser descartado para a plena

experiência no ciberespaço ou a ser melhorado para superar as limitações impostas

pela natureza, tornou-se lugar comum.

Boa parte da produção cultural contemporânea está inserida no contexto da

cultura de massas, onde predomina a lógica do mercado e da produção industrial.

Não é diferente com a cibercultura, ela própria uma especialização da cultura de

massas. Predominantemente, a produção cibercultural se manifesta em produtos de

consumo e nos meios de comunicação de massas: a televisão, o cinema, a imprensa,

a música, a literatura, as máquinas de entretenimento, as histórias em quadrinhos.

Neles, os fragmentos dos discursos, metáforas e modelos explicativos da ciência e

tecnologia dialogam com as transformações tecnológicas da nossa vida prática, que

está se tornando tão ou mais espetacular quanto os tecno-mundos dos filmes

46 Poder-se-ia adicionar, aqui, pelos mesmos motivos, o “clone” como outra categoria cibercultural fundamental. Mas aparentemente a clonagem ainda é motivo de grande confusão classificatória no senso comum, sendo mais freqüente encontrar, na cultura de massas, imagens ciborguianas que incorporam e mesclam as características do clone.

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ciberculturais que, apesar de fantásticos, são logicamente concebíveis e mesmo

plausíveis aos olhos do conhecimento científico de botequim.

Produto cultural indissociável da indústria de massas, pelo seu modo de

produção e de distribuição, o cinema também é o veículo privilegiado de

disseminação das imagens relacionadas com a cibercultura. A despeito da temática

super-futurista e das modernas técnicas de produção, as figurações da cibercultura

manifestam-se sobretudo em um meio no qual predomina um tipo tradicional de

visualidade e, pode-se acrescentar, o cinema é uma das formas de representação

mais conservadoras das artes visuais contemporâneas. Praticamente ancoradas em

um “modo de ver” renascentista47, as imagens fílmicas podem até mesmo ser hiper-

reais ou surreais, como demonstram, nesse sentido, o cinema impressionista e

algumas maneiras de se incorporar a imagem sintética aos filmes. Contudo, muito

raramente, a diegese de um filme será composta por imagens destituídas de “traços

de realidade”. Mesmo quando resultados da síntese por computador, que desvincula

a produção da imagem e a existência material do seu referente, o resultado

demonstra-se, com raras exceções, um ideal renascentista. Ao contrário do que

ocorre em outras artes visuais, tais como a pintura, escultura e mesmo fotografia ou

vídeo, o cinema abstrato é raro e dificilmente sai de círculos sociais muito restritos.

O corpo ciberespacial ou o corpo ciborguiano refletem um ideal no qual o

corpo poderia ser manipulado como se manipulam as simulações de computador,

onde se altera a cor de um objeto, sua espessura ou textura com o clique de um

mouse. Esse ideal, quase que onipresente nos filmes, reflete a noção social de

“corpo” na qual ele perdeu sua especificidade e, sendo considerado simples matéria,

artefato, coisa, equipamento, máquina, também é esvaziado de sua sacralidade.

Ainda que seja antiga a idéia da que o espírito é uma entidade independente do

corpo, é apenas com as tecnologias cibernéticas que temos a ruptura de fato da

unidade da pessoa. Nesse sentido, os filmes não são meros produtos do imaginário,

mas manifestações da mesma mentalidade coletiva que tem de lidar com as

mudanças tecnológicas que já se fazem sentir. A figurações da cibercultura tornaram-

se tão ricas e abundantes na cultura de massas porque, por mais fantásticas que

sejam, elas fazem sentido e têm aderência com a realidade concreta das pessoas. É

inegável que o homem-virtual e o homem-máquina já se façam presentes fora do

47 Ver: III.2. A vida moderna e o olhar cinematográfico.

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contexto fílmico e muito além dos videogames e próteses. O advento do “embrião”

como categoria social é um exemplo que sintetiza a necessária adaptação da

mentalidade coletiva frente a uma nova realidade prática: lidar com a produção,

armazenamento e tráfego – e tráfico, algumas vezes – de pessoas potenciais, prontas

para serem “plantadas” no útero. Aqui o embrião é visto como um proto-corpo,

agregado de células, receptáculo minimamente viável de DNA, do qual pretende-se

riscar qualquer traço de humanidade. O recém-nascido, assim produzido, assemelha-

se ao resultado de um processo de manufatura: “A criança entra na era de sua

reprodutibilidade industrial (...)”. (cf. Le Breton, 2003, p.96 e p.98). O homem virtual

também não é uma fantasia que existe apenas nas diegeses fílmicas. Como as

moléstias e as deficiências do corpo passam a ser vistas como um defeito de

fabricação do corpo artefato, cada vez mais, o homem potencial (o embrião) depende

do homem virtual (a projeção de seu genótipo) para ser autorizado a se desenvolver.

E, como demonstram as tendências médicas atuais, mesmo depois disso, viverá à

sombra de seus genes e será visto como alguém limitado pelos defeitos de fabricação

– predisposição ao câncer, ao enfarte, ao Mal de Alzheimer – atestados pelo eu

genético (cf. Le Breton, 2003, p.90-93).

O corpo da mentalidade cibercultural, além de ser herdeiro de uma longa

tradição, também se antecipa às possibilidades de fato da ciência e tecnologia.

Enquanto o futuro tecnológico realiza-se plenamente nos filmes, simulacros desse

futuro já permeiam aspectos da vida do homem comum: seja no cabeleireiro ou no

cirurgião plástico, a simulação de computador que mostra como ficará o corpo após

passar pela tesoura ou pelo bisturi, é a caricatura de um futuro imaginário onde a

mediação humana – do cabeleireiro, do cirurgião plástico – será eliminada por

processos totalmente objetivos e automáticos, como a fotografia fez com o pintor que

imprimia a imagem da camera obscura sobre uma tela. É o que antecipam os filmes,

onde o freqüente elogio à automatização das faculdades humanas manifesta o desejo

de eliminar as distorções e imperfeições introduzidas pelo homem. Nos futuros

imaginativos da cibercultura, fílmicos ou não, as tecnologias de redesign e

reconstrução orgânica serão tão desenvolvidas que nosso corpo nada mais será do

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que o equivalente biológico dos protótipos e mock-ups fabricados pelas atuais

tecnologias de CAD/CAM48.

Ao lado da constatação de que a cibercultura e o modo de ver

cinematográfico estão profundamente enraizados na cultura e história do ocidente,

não pôde passar despercebido o olhar etnocêntrico que vez ou outra se manifesta

nas imagens da cibercultura. Seja como um Oriente degenerado que contamina o

mundo, como em Blade Runner, ou como algo que o Ocidente admira porém supera,

como em The Matrix, é evidente que há, nos filmes ciberculturais em geral, uma

perspectiva que generaliza e circunscreve o oriental e as coisas orientais de forma

análoga ao tratamento dado ao cibernético. A presença do Oriente nesses casos

pode estar relacionada com a afinidade simbólica entre o asiático do imaginário

ocidental e a ambigüidade que permeia a cibercultura de uma forma geral. Colocado

em uma categoria de estranhamento similar à que as criaturas e espaços cibernéticos

ocupam, o asiático e os estereótipos de sua cultura são necessariamente “objetos

alienígenas”, mesmo que as cenas sejam ambientadas em território Oriental, neste

caso apenas um território a ser “conquistado”. Além disso, o personagem de

aparência asiática é caracterizado como um fragmento estereotipado do Oriente, tal

como os ideogramas, as roupas típicas e as artes marciais. Corrobora para essa

conclusão, o fato de que, ao contrário, um personagem representado por um ator de

aparência negra não é caracterizado como um “pedaço da África”. Certamente isso

não significa que a negritude não esteja sujeita a outros tipos de discriminação, cujo

melhor indicador é a escassez de atores negros nos filmes ciberculturais até

produções mais recentes, a partir de quando passaram a pesar regras da “inclusão

racial” e do que é politicamente correto. Contudo, mesmo assim, na maioria dos

casos em que há um personagem representado por ator de aparência negra nos

filmes analisados, não é difícil supor que ele possa ser representado por um ator de

aparência branca ou vice-versa.

Por fim, alguns comentários acerca do caráter mitológico das narrativas

ciberculturais devem ser feitos. Foi observado que, como figurações de mundos

imaginários, as imagens da cibercultura também abrem possibilidades para

reencantar aquilo que foi desencantado pela modernidade. Contudo, longe de

48 Acrônimo de computer-aided design / computer-aided manufacturing. Os sistemas CAD/CAM permitem que um projeto desenhado por computador seja executado diretamente por uma máquina, sem a intermediação humana.

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constituir uma crítica, o reencantamento proposto pela cibercultura não abre mão das

vantagens da modernidade. De fato, são as próprias racionalizações tecnológicas e

científicas a inspiração para as construções fílmicas que ultrapassam as raias do

absurdo. Nessas construções, como em um mito, tudo pode acontecer:

(...) parece que a sucessão dos acontecimentos não está aí sujeita a nenhuma

regra de lógica ou de continuidade. Qualquer sujeito pode ter um predicado

qualquer; toda relação concebível é possível (Lévi-Strauss, s.d., p.239).

Na maioria dos filmes analisados também foram encontrados, a exemplo do

que Lévi-Strauss observa em relação aos mitos, uma trama baseada em um ponto de

partida e de chegada que são invariáveis (cf. Lévi-Strauss, s.d., p.257) e um conjunto

de variantes que são combinadas para cumprirem funções análogas dentro das

diferentes narrativas que são, na verdade, também análogas entre si (cf. Lévi-

Strauss, 1987, p.169). Nestes filmes, o ponto de partida é o surgimento de uma

máquina ou máquinas com características humanas que ameaçam a ordem e a

existência do sistema ao seu redor: Hal 9000 de 2001: A Space Odyssey, os

andróides de Blade Runner, o MCP de Tron, o WORP de Wargames, o Exterminador

de The Terminator, a Matrix e seus agentes de The Matrix e mesmo Darth Vader de

Star Wars. Tais máquinas-gente confrontam-se com heróis que são figuras comuns

das tramas ciberculturais e que foram aqui denominados de tricksters cibernéticos,

em vista das similaridades que têm com certos heróis míticos (cf. Lévi-Strauss, s.d,

p.237-276; cf. Queiroz, 1991, p.93-107). Assim como seus pares dos mitos

tradicionais, os tricksters dos filmes ciberculturais são personagens liminares e

ambíguos, muitas vezes tão ambíguos quanto as ameaças contra as quais eles

lutam. Mas, ao contrário destes, os tricksters cibernéticos, ainda que dependam da

tecnologia ou do acoplamento de máquinas, possuem alguma característica humana

ou poder mágico fora do alcance da tecnologia, permitindo-lhes agenciar – o ponto de

chegada desses mitos – o restabelecimento da ordem ou instauração de uma nova

ordem.

Lido como mitos, os filmes ciberculturais não só dão forma aos medos e

ansiedades provocados pela tecnologia, como também são meios de superar, no

plano do mito, contradições que são insuperáveis na vida real. Daí a importância do

trickster e a razão de suas características ambíguas: “porque ele retém qualquer

coisa da dualidade que tem por função superar” (Lévi-Strauss, s.d., p.261). É só

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porque as contradições coexistem no trickster cibernético que é possível restituir, ao

menos imaginariamente, parte da mágica que foi esvaziada pela mesma ciência e

tecnologia que lhe dá forma. Mas, no fundo, talvez eles nada mais sejam do que

sucedâneos ao qual se colou uma película de magia, pouco mais do que refinados

produtos do mesmo desencantamento do mundo que pretendem superar. Nesse

sentido os tricksters cibernéticos – os Blade Runners, hackers e ciborgues da

cibercultura – seriam somente a conciliação ilusória e artificial de contradições que,

no limite, traduzem-se no confronto entre a fantasia de onipotência do homem e a

mortalidade de seu corpo.

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VII. FILMOGRAFIA

2001: A Space Odyssey (2001: Uma Odisséia no Espaço). Direção:

Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick. Intérpretes: Keir Dullea (Dr.

Dave Bowman); Gary Lockwood (Dr. Frank Poole); Douglas Rain (voz do

HAL 9000); William Sylvester (Dr. Haywood R. Floyd) e outros. País de

produção: EUA; Reino Unido. Produtora: Metro Goldwyn Mayer. Ano de

produção: 1968. Disponível em: DVD (148 min), wide screen, color, Warner

Home Video Brasil, 2001.

BLADE Runner (Blade Runner: o Caçador de Andróides). Direção: Ridley

Scott. Produção: Michael Deeley. Intérpretes: Harrison Ford (Rick

Deckard); Rutger Hauer (Roy Batty); Sean Young (Rachael); Edward

James Olmos (Gaff) e outros. Roteiro: Hampton Fancher e David Peoples.

País de produção: EUA. Produtora: Blade Runner Partnership; The Ladd

Company. Ano de produção: 1982. Disponível em: DVD (117 min), wide/full

screen, color, Warner Home Video Brasil, 1998. Baseado na novela “Do

androids dream of eletric sheep?” de Philip K. Dick.

JOHNNY Mnemonic (Johnny Mnemonic: o Cyborg do Futuro). Direção:

Robert Longo. Produção: Don Carmody. Intérpretes: Keanu Reeves

(Johnny Mnemonic); Dina Meyer (Jane); Ice-T (J-Bone); Takeshi Kitano

(Takahashi); Dennis Akayama (Shinji); Dolph Lundgren (Street Preacher) e

outros. Roteiro: William Gibson. País de produção: Canadá; EUA.

Produtora: Alliance Communications Corporation; Cinévision; TriStar

Pictures. Ano de produção: 1995. Disponível em: DVD (98 min), color,

wide/full screen, Columbia Tristar Home Video, 1997. Baseado no conto

“Johnny Mnemonic” de William Gibson.

LAWNMOWER Man, The (O Passageiro do Futuro). Direção: Brett

Leonard. Produção: Gimel Everett. Intérpretes: Pierce Brosnan (Lawrence

Angelo); Jeff Fahey (Jobe Smith); Jenny Wright (Marnie Burke); Mark

Bringleson (Sebastian Timms); Geoffrey Lewis (Terry McKeen) e outros.

Roteiro: Brett Leonard; Gimel Everett; Stephen King. País de produção:

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EUA. Produtora: Allied Vision; Fuiji Eight Co.; Lane Pringle Productions;

New Line Cinema. Ano de produção: 1992. Disponível em: DVD (113 min),

wide screen, color, New Line Home Video, 1997.

THE MATRIX (Matrix). Direção: Andy Wachowski; Larry Wachowski.

Produção: Joel Silver. Intérpretes: Keanu Reeves (Neo / Anderson);

Laurence Fishburne (Morpheus); Carrie-Anne Moss (Trinity); Hugo

Weaving (Agent Smith); Joe Pantoliano (Cypher); Marcus Chong (Tank) e

outros. Roteiro: Andy Wachowski; Larry Wachowski. País de produção:

EUA. Produtora: Groucho II Film Partnership; Silver Pictures; Village

Roadshow Pictures. Ano de produção: 1999. Disponível em: DVD (136

min), color, wide screen, Warner Home Video, 1999.

METROPOLIS (Metrópolis). Direção: Fritz Lang. Produção: Gale Anne

Hurd. Intérpretes: Alfred Abel (Johhan Fredersen); Gustav Fröhlich (Freder

Fredersen); Brigitte Helm (Maria / Der Maschinen-Mensch / o Robô) e

outros. País de produção: Alemanha. Produtora: Universum Film A.G.

(UFA). Ano de produção: 1927.

MINORITY Report (Minority Report: a Nova Lei). Direção: Steven

Spielberg. Produção: Jan de Bont; Bonnie Curtis; Gerald R. Molen; Walter

F. Parkes. Intérpretes: Tom Cruise (John Anderton); Colin Farrell (Danny

Witwer); Steve Harris (Jad); Max von Sydow (Lamar Burgess); Samantha

Morton (Agatha); Kathryn Morris (Lara Anderton) e outros. Roteiro: Scott

Frank e Jon Cohen. País de produção: EUA. Produtora: 20th Century Fox;

DreamWorks SKG; Amblin Entertainment; Blue Tulip. Ano de produção:

2002. Disponível em: DVD (148 min), wide screen, color, Twentieth

Century Fox Home Entertainment Brasil, 2003. Baseado no conto “Minority

Report” de Philip K. Dick.

TRON (Tron: Uma Odisséia Eletrônica). Direção: Steven Lisberger.

Produção: Donald Kushner; Steven Lisberger. Intérpretes: Jeff Bridges

(Flynn / Clu); Bruce Boxleitner (Alan / Tron); David Warner (Dillinger / Sark /

voz do Master Control Program); Cindy Morgan (Lora / Yori); Barnard

Hughes (Dr. Walter Gibbs / Dumont) e outros. Roteiro: Steven Lisberger;

Bonnie MacBird. País de produção: EUA. Produtora: Lisberger-Kushner;

Walt Disney Pictures. Ano de produção: 1982. Disponível em: DVD (96

min), color, wide screen, Buena Vista Home Entertainment, [s.d.].

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WARGAMES (Jogos de Guerra). Direção: John Badham. Produção: Harold

Schneider. Intérpretes: Matthew Broderick (David Lightman); Dabney

Coleman (Dr. John McKittrick); John Wood (Dr. Stephen Falken); Ally

Sheedy (Jennifer Katherine Mack); Barry Corbin (Gen. Jack Beringer) e

outros. Roteiro: Lawrence Lasker; Walter F. Parkes. País de produção:

EUA. Produtora: MGM; Sherwood; The Leonard Goldberg Company. Ano

de produção: 1983. Disponível em: DVD (113 min), wide screen, color,

MGM Home Entertainment, 1998.

STAR Wars: A New Hope (Guerra nas Estrelas: Uma Nova Esperança).

Direção: George Lucas. Produção: Gary Kurtz, George Lucas. Intérpretes:

Mark Hamill (Luke Skywalker), Harrison Ford (Han Solo), Carrie Fisher

(Princess Leia Organa), Peter Cushing (Grand Moff Tarkin), Alec Guinness

(Ben Obi-Wan Kenobi) e outros. País de produção: EUA. Produtora:

Lucasfilm Ltd. Ano de produção: 1977.

TERMINATOR, The (O Exterminador do Futuro). Direção: James

Cameron. Produção: Erich Pommer. Intérpretes: Arnold Schwarzenegger

(o exterminador); Michael Biehn (Kyle Reese); Linda Hamilton (Sarah

Connor) e outros. País de produção: EUA. Produtora: Hemdale Film

Corporation; Cinema 84; Euro Film Fund; Pacific Western. Ano de

produção: 1984.