Jorge Luiz Ferreira - Incas e Astecas

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JorgeLuiz Ferreira Professor de História da América da Universidade Federal Fluminense INCAS E ASTECAS Culturas I ~~çÕlQ~--.-~.~ ~~. ~UTO VENDA PROIBIDA :to 0 l'" S\ 3." edição ~:JE3lI:>~ AHO<:IA,Ç.t.O ••••• '11.11 •••• O( 01"1101 "'tOG.;"ICOr. ~~.i" ~ ~ -.-;;; .sf" . ~ODIRLrtO'" EDITORA AFILIADA MUont 41 4 1 Introdução o estudo do Império Inca e da Confederação Asteca re- velava a existência de sociedades extremamente complexas e hierarquizadas, com um sofisticado imaginário social. Tal- vez seja por isto que estas sociedades já foram rotuladas pra- ticamente de tudo no que concerne às suas organizações sociais e políticas: "sociedades primitivas", "escravistas", "feudais", "socialistas", "democracias militares" etc. A importação de conceitual pertinente à trajetória his- tórica européia não apenas leva a estes rótulos, que em nada explicam a dinâmica social destes povos, como ainda con- duz o historiador a deixar escapar as diferenças. Aliás, o pe- so de 20 séculos de tradição ocidental nos faz ter repulsa ao diferente ... Vejamos então algumas questões importantes no estudo dos povos americanos antes da chegada de Colombo, com o fito de estarmos preparados para perceber, nas pági- nas adiante, o que de específico existia na organização social da Confederação Asteca e do Império Inca. O traumatismo da conquista e a colonização que se se- gue ensejam um problema no enfoque de como abordar es- tas sociedades. De um lado, aqueles que exaltam a obra ,\ civilizarória do europeu, interpretando o período anterior a ~..i,l

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JorgeLuizFerreira

Professor de História da América daUniversidade Federal Fluminense

INCAS EASTECAS

CulturasI ~~çÕlQ~--.-~.~~~.

~UTO VENDA PROIBIDA:to0

l'"S\ 3." edição~:JE3lI:>~AHO<:IA,Ç.t.O ••••• '11.11•••• O( 01"1101 "'tOG.;"ICOr.

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EDITORA AFILIADA MUont 41 4

1Introdução

o estudo do Império Inca e da Confederação Asteca re-velava a existência de sociedades extremamente complexas ehierarquizadas, com um sofisticado imaginário social. Tal-vez seja por isto que estas sociedades já foram rotuladas pra-ticamente de tudo no que concerne às suas organizaçõessociais e políticas: "sociedades primitivas", "escravistas","feudais", "socialistas", "democracias militares" etc.

A importação de conceitual pertinente à trajetória his-tórica européia não apenas leva a estes rótulos, que em nadaexplicam a dinâmica social destes povos, como ainda con-duz o historiador a deixar escapar as diferenças. Aliás, o pe-so de 20 séculos de tradição ocidental nos faz ter repulsa aodiferente ... Vejamos então algumas questões importantes noestudo dos povos americanos antes da chegada de Colombo,com o fito de estarmos preparados para perceber, nas pági-nas adiante, o que de específico existia na organização socialda Confederação Asteca e do Império Inca.

O traumatismo da conquista e a colonização que se se-gue ensejam um problema no enfoque de como abordar es-tas sociedades. De um lado, aqueles que exaltam a obra ,\civilizarória do europeu, interpretando o período anterior a ~..i,l

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Seja como for, a conquista empreendida por HernánCortés e a colonização que se segue desagregam e destroemtudo o que vimos até aqui. E, neste ponto, não me refiro ape-nas ao aparelho de Estado e às formas de produção materiale reprodução social. Estou falando de gente, de pessoas: àsvésperas da conquista, a população da Meso-América era deaproximadamente 25 milhões de seres humanos; em 1600, me-nos de 100 anos depois, cai para 1 milhão. Se a palavra ge-nocídio pode ser usada com extrema precisão, este é o caso.

3o Império Inca: o império

dos quatro quadrantes

A Confederação Cusquenha e a expansão

Em finais do século XIII de nossa era; a pequena tribodos Incas chega ao Vale do Cuzco e, por esta época, contaa lenda que de uma caverna a 30 km ao sul do vale saíramquatro irmãos: Ayar Cachi, Ayar Uchu, Ayar Auca e AyarManco, também conhecido como Manco Cápac. Sem pais,terras, em extrema pobreza, teriam migrado pelo vale semrumo certo, até que Ayar Cachi, voltando à caverna,transformar-se-ia em Huaca - entidade divina local -, fi-cando petrificados seus irmãos Ayar Uchu e Ayar Auca. Man-co Cápac, o último irmão, lançando no ar seu bastão de ouro,e simbolizando com isso o fim da vida errante e sem rumo,tomaria sua irmã como esposa e, reunindo as populações dis-persas que viviam em plena "barbárie" no vale, teria lhes da-do acesso a formas "civilizadas" de viver. No mito dacaverna, Manco Cápac é, pois, o fundador do Império Incae herói civilizador de toda a humanidade.

O mito da caverna traduz o momento em que os Incaschegam ao Vale do Cuzco, encontrando e se aliando a trêstribos étnicas diferentes: os Sahuasiray são representados por

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I.

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Ayar Cachi; os AlIcahuisa por Ayar Uchu; os Maras por AyarAuca;_ e representando os Incas, está Manco Cápac, o irmãoque nao apenas sobrevivera, como se tornara o herói civili-zador de todos os homens. .

O mito dos quatro irmãos órfãos procura dar uma ori-gem comum aos quatro grupos étnicos que passam a formaruma confederação no Vale do Cuzco com a chegada dos In-caso Se num momento inicial, histórico, os Incas têm umaposição subalterna perante os outros três grupos, e lhes ado-tam a língua quechua, por exemplo, o mito procura dar-lhesuma origem comum, que culmina com a sobrevivência e su-premacia de Manco Cápac, ou da etnia inca.

Historicamente, a destruição do Império de Huari mar-c.a, nos An~~s Centrais, um longo período de dispersão polí-uca, com vanos Estados locais independentes após o ano 1000de nos~a era (veja Ciro F. S. Cardoso, América pré-colombiana). Na última seqüência histórico-cultural, entre osanos 1000 e 1534 a. D., o único reino que alcançou maiorprojeção foi o Chimu, que chegou a dominar a costa seten-trional do Peru e parte do Equador. Sua capital, Chan-Chan,com população estimada em 80 000 habitantes uma cifra al-, . ,tíssírna para a época, era extremamente urbanizada e, comocentro administrativo e tributário do Império, herdaria maistarde aos Incas toda esta experiência acumulada. A quedado reino Chimu abriu para os Incas o caminho para a unifi-cação política dos Andes Centrais.

Instalados no Vale do Cuzco desde fins do século XIIIo início da expansão só iria acontecer quase dois séculos maistarde. Em 1438, os chancas tentam invadir e tomar a cidadede Cuzco. A chefia inca, exercida na época por Huira Cochalnca, propõe a fuga com o abandono da cidade. Discordan-do dele, seu filho, Pachacutec lnca, assumiu a liderança daresistência, cujo sucesso levou não apenas à derrota dos chan-cas, mas à sua subordinação política aos Incas. A vitória so-bre os chancas desequilibrou o frágil jogo de forças na área

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circunvizinha a Cuzco, levando os Incas a terem a hegemo-nia política na região. A partir daí, a expansão que se segueimpulsiona os Incas de encontro ao reino Chimu, última bar-reira ao expansionismo dos Incas, que são derrotados em1463. A herança cultural, administrativa e tributária, herda-da pelos chimus, é de fundamental importância na hegerno-nia inca.

Em 1470, assume Tupac Yupanqui e, na lenda e na his-tória, este Inca passa a ser o fundador do Império. Com ele,as comunidades incorporadas ao Império sofreram um pro-cesso de unificação e centralização a partir da capital, foi or-ganizada uma estrutura agrária também unificada, construídauma rede de transportes e comunicações, criada uma buro-cracia eficaz e um poderoso exército. Em 1493 assumiu Huay-na Cápac, que continuou a expansão com a incorporação denovas áreas ao Império. Quando morreu de varíola em 1528,importada pelos conquistadores espanhóis, jogou o impériodos quatro quadrantes, o Tawantisuyu, na dúvida e incerteza.

Em pouco mais de um século, a pequena tribo dos In-cas passa de uma pequena confederação no Vale do Cuzcopara formar o Império mais vasto de toda América pré-colombiana. Sob seu poder, foram incorporados centenas degrupos étnicos, culturais e lingüísticos, com aproximadamente8 milhões de habitantes. A justificação ideológica para a ex-pansão e a conquista era semelhante à do espanhol: levar acivilização aos povos que viviam na bárbarie. Para os Incas,as inúmeras culturas que viviam nos Andes Centrais pratica-vam o incesto, eram antropófagos, viviam em guerra, nãosabiam plantar o milho e desconheciam as relações de paren-tesco. Cabia aos Incas a missão de inseri-los no mundo civi-lizado e· ensiná-Ios a viverem em paz. Ao contrário dosAstecas, os Incas não tinham uma mentalidade belicosa, ea paz era o bem supremo da humanidade e uma dádiva dosdeuses. Enquanto discurso dominante, os Incas guerreavambuscando a paz e exerciam a dominação como missão civili-

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zatória. Apesar do discurso, os povos conquistados eram sub-metidos à dominação e tributação, e, segundo Favre, os che-fes das comunidades derrotadas eram levados a Cuzco, sendopisoteados pelo Inca até a morte; seu crânio era usado parabeber chicha (bebida fermentada de milho), os ossos viravamflautas, os dentes serviam de colares e a pele usada paratambores.

A expansão inca pode ser vista ao mesmo tempo comocausa e conseqüência de si mesma. A tendência à expansãonasce do próprio êxito da expansão que se inicia com a vitó-ria sobre os chancas. O desequilíbrio de forças nos AndesCentrais, com a vitória inca, gera a hostilidade dos povos vi-zinhos e o receio de serem atacados leva os Incas a novas con-quistas. É neste processo que surge um projeto de unificaçãogeral de toda a região andina central.

. As relações socioeconômicas no ayllu

A unidade de produção agrícola e reprodução social nosAndes Centrais era o ayllu, formado por famílias ligadas porlaços de parentesco que, sem serem organizadas em clãs oulinhagens, apresentavam tendência à endogamia com descen-dência paralela, ou seja, linha masculina para os homens efeminina para as mulheres.

A posse da terra no ayllu era comunal e se dividia em ter-ras cultiváveis e de pastos de uso coletivo. Nesta última, as crian-ças e os jovens solteiros criavam animais, lhamas e alpacas,enquanto os campos cultiváveis eram divididos em lotes - tu-pus -, cuja extensão era a terra necessária para a alimentaçãode uma pessoa. Cada família recebia lotes de acordo com o nú-mero de seus membros, e sua distribuição era rotativa e anual. . 'impedindo assim que determinadas famílias obtivessem privi-légios com o usufruto por longo tempo das melhores parcelasde terras. Nestas faixas, cada família tinha sua casa, animaise plantações, garantindo assim sua subsistência.

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O trabalho no ayllu baseava-se na ajuda mútua entre asfamílias na semeadura, colheita, construção de casas etc. e so-mente com o matrimônio o indivíduo adquiria autonomia e pas-sava a ser um membro efetivo do ayllu. É difícil, inclusive, falarem indivíduo no ayllu, pois este só existia em relação à comu-nidade, sendo completamente estranha a idéia de um indivíduoisolado, fora de sua população local e de suas relações sociais.No período pré-nupcial, os noivos moravam juntos na casa dospais da noiva, sob estrita vigilância, para comprovar a sua realcompatibilidade. A monogamia fundamentava as relações so-ciais no ayllu, e a separação ocorria somente por grave motivo.

A chefia do ayllu era exercida pelo Kuraka, que assu-mia esta função por ser, a nível ideológico, o descendente di-reto dos fundadores do ayllu e do Huaca, entidade divinalocal, protetora e tutelar do ayllu. Esta descendência legiti-mava a posição de chefia do Kuraka. .

Cabia ao Kuraka organizar a produção, velando pela suasegurança material, distribuir os lotes de terras às famíliase arbitrar os conflitos que surgissem no ayllu. Além disso,cabia também a ele assegurar o sustento aos órfãos, viúvase desvalidos e, por assumir este encargo, recebia a prestaçãode trabalho dos membros da comunidade. Periodicamente,um certo número de homens trabalhavam em suas terras enas do Huaca, cuja produção era acumulada pelo chefe quea redistribuía em épocas de má colheita ou catástrofes climá-ticas, além de garantir o sustento dos inativos. Esta presta-ção de serviços ao Kuraka, a mita, levou este chefe a acumularcertos bens, como alimentos, coca, vestuário etc., concentran-do riquezas e reforçando sua autoridade no ayllu, ainda quenão ficasse claramente diferenciada sua posição social em re-lação aos outros membros da comunidade.

o Império como ampliação do ayllu

o ayllu, enquanto unidade econômica e social de todaa região andina central, passou a constituir a base de dorni-

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nação política e exploração social com a dominação inca. Naverdade, encontramos nesta época uma hierarquização entreos ayllus, com os maiores e mais poderosos subordinando osmenores, e o Império Inca passou a formar uma espécie dec.onfederação de confederações de ayllus. Cabe então inves-tigar de que recursos se serviu a dominação inca nos AndesCentrais, a partir da extração de um sobretrabalho das co-~uni?a.des organizadas em forma de ay/lus, e a justificaçãoideológica nesta dominação.

Como vimos, o ayllu se organizava como propriedadec~munal com o usufruto dos lotes pelas famílias, cujas rela-çoes ~a~eavam-se na ajuda mútua. O Kuraka era o primeirob~nefIcIado no excedente econômico produzido pela comu-mdade,com o trabalho periódico em suas terras e nas do Hua-c~ ~ a mita. Com a dominação inca, o ayllu passou por umase~Ie de transformações que são estudadas por M. Godelier,cujas teses centrais passaremos a expor.

Com a conquista militar, o Estado se apropria da terrae recursos naturais do ayltu. O Inca se proclama soberanoda comunidade e divide as terras do ayllu da seguinte manei-ra: uma primeira parte são as terras do Estado ou do Inca;um~ segunda, as terras do culto ou do Sol; e a terceira, a~aI~: ~arte, é de toda a comunidade conquistada, que é "ce-dida a população local, numa demonstração da "benevo-lência': eA"g~nerosidade" do Inca conquistador, permitindoa subsistência da comunidade... Com a conquista inca há uma subversão nas relações so-

CIaISdentro do ayllu, quando a propriedade da terra deixade ser comunal para adquirir o caráter de simples posse e usopela po~~lação local. A rigor, a apropriação das parcelas pe-las famílias, a produção agrícola e as relações de produçãobaseadas na ajuda mútua continuam como antes, mas novasformas de apropriação do excedente agrícola são instituídasfundamentando a exploração e subordinação estatal. A mi~ta, prestação de trabalho pessoal temporária nas terras do

Kuraka e do Huaca, cujo produto final, a princípio, era daprópria comunidade, passa a ser desviada para as terras apro-priadas pelo Estado. Com a conquista, a mira não é pres:a-da somente nas terras do Kuraka e do Huaca, mas tambemnas terras do Inca e do Sol. Desta maneira, as antigas for-mas de reciprocidade e redistribuição, e as formas ideológi-cas que lhe correspondiam, passam a ser reorientadas paraa extração de um excedente pelos Incas. Isto pode ser ates:a-do pela correlação entre Kuraka-Huaca e I~c~-~ol, ou seja,a mita, enquanto trabalho devido ao chefe e a dIVmdade, con-tinua, agora, inserida em outra dimensão. .

A dominação inca mantém as antigas relações comum-tárias buscando apoio e criando novas formas em cima de-Ias. Q'uando da época da prestação de trabalho nas t~rras' doInca e do Sol, o Estado distribuía roupas de festa, alimentose bebidas como antes fazia o Kuraka e, embora mantendoo culto aos deuses locais, incorpora o culto. ao Sol e a seufilho, o Inca, ao qual os aldeãos devem oferecer trabalho.Sem mudar a forma e a estrutura das antigas relações de pro-dução no seio do ayllu, os Incas faziam agora reproduzir umanova forma de exploração nos Andes Centrais.

Para o êxito da dominação política sobre as diversas co-munidades, a chefia do Kuraka não apenas teria de ser con-servada, como também ele deveria ser cooptado. Em trocade sua cooperação, o Estado permitia-lhe conservar sua che-fia como organizador da produção agrícola e manter suas ter-ras com a prestação do trabalho comunitário. Preservada afigura do Kurako, mantinha-se aos olhos da comunidade oseu papel de representante da aldeia, ao mesmo te~po emque se lhe convertia em elo de ligaçã? en:re .os aldeaos e oEstado inca. Cooperando com a dommaçao mca, o Kurakamantinha seus privilégios econômicos e de mando no ayllu.

Com a dominação inca, o trabalho excedente despendi-do pela comunidade não podia aparecer como "trabalho for-çado", mas sim como "trabalho devido". A mita, enquanto

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trabalho devido, a nível ideológico, atravessava as relaçõesde redistribuição e reciprocidade, salientadas por J. Murrae da qual já falamos no caso asteca.

O conceito de reciprocidade supõe relações entre indiví-duos ou grupos simétricos, e implica que os deveres de uns cor-respondem a deveres de outros, seja nas relações entre aldeãos,aldeãos-Kuraka ou comunidade-Estado. O conceito de redis-tribuição, por sua vez, implica que um grupo seja coordenadopor outro, legitimando esta subordinação a partir da distribui-ção de bens ao grupo coordenado. Desta forma, a reciprocida-

.de implica que a relação aldeãos-Kuraka e comunidade-Inca sejamarcada por deveres mútuos: o dever do aldeão é a prestaçãode trabalho nas terras do Kuraka e do Inca e a reciprocidadeimplica que este "trabalho devido" gere um excedente acumu-lado, que possa ser a garantia em períodos desfavoráveis à pro-dução agrícola, que será então redistribuído.

A redistribuição e a reciprocidade justificam, ideologi-camente, o "trabalho devido" pelos aldeãos em benefício doKuraka - em suas terras e nas do Huaca -, e do Estadoinca - terras do Inca e do Sol. O sucesso da dominação in-ca, como no caso asteca, explica-se não apenas pela força mi-litar, mas predominantemente pelo aparato consensual epersuasivo, que justifica a existência do Estado e legitima aacumulação de um excedente econômico produzido pelas inú-meras comunidades existentes nos Andes Centrais.

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A tributação

tributo. Isto implicava que o casamento representava não ape-nas a inserção do indivíduo como membro no ~~llu, comotambém na rede de tributação estatal. Ao contrano do casoasteca, o tributo com os Incas era em forma ~e trabalho pes-soal, e não em espécie. Estavam isentos .do tnbuto os setoresdominantes ligados ao Estado - guerreiros, burocratas e ~a-cerdotes -, as crianças, velhos e inválidos. Os Kurakas, ~m-tomaticamente, além de estarem dispensados, .recebiamtributo na-forma de trabalho pessoal de sua comumdade: ~o-mo vimos. Era um dos meios de cooptação posto em praticapelo Império. .

Havia, entre os Incas, três tipos de t~lbutos que as co-munidades deviam ao Estado. Um primeiro er~ o trabalhocoletivo nas terras do Inca e do Sol. Com ~ste tributo, o Im-pério Inca acumulava considerável quantidade de produ:~sagrícolas para sustentar sua vasta burocr~cla e,pessoal mIl~-tar, além de servir de "estoque regulador em epocas de cri-se agrícola. .

O segundo tipo de tributo era o serviço pessoal te~po-,. a mita em que um certo número de homens saia derano, ,

suas comunidades e ficava à disposição ,do Esta,d? na c~ns-trução e conservação de obras públicas. ~ necessan?, P?rem,relacionar a mitacom os períodos antenor e postenor a con-quista inca. . ..

Antes da conquista, a mita possibilitava ao Kur~ka terà sua disposição um contingente de homens pa.ra CUIdar deseus rebanhos, atividades de tecelagem e da agnc~ltura, porum período de três meses a um ano. O trabalh~ nao er~ ngo-roso e o Kuraka tinha que demonstrar generoslda~~, alirnen-tando e dando habitação ao mitayo. Nas fest~s religiosas, porexemplo o Kuraka garantia o milho, a cerveja e a coca. Coma conquista inca, o Estado assumiu os encargos ~ue anteseram dos Kurakas e o serviço pessoal tanto podena se: n~sobras públicas como na produção agrícola dentro do propnoayllu, dependendo das necessidades do Estado.

A economia no Império Inca não conheceu a moeda.As relações comerciais baseavam-se na simples troca, e o tri-buto devido ao Inca assegurava a circulação de bens por to-do o Império.

Toda a população entre 25 e 50 anos era tributada, ese o aldeão casasse com menos de 25 anos também pagaria

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Por fim, o tributo têxtil que tinha, ao mesmo tempo,uma função econômica e um ritual religioso, com cada fa-mília entregando ao Inca uma parte do produto fiado e teci-do. A atividade têxtil era de grande importância para oImpério, e esta necessidade ensejava o surgimento das Ac-elas, mulheres escolhidas e recolhidas ao Templo do Sol, queassumiam a posição de esposas subsidiárias do Inca. O tem-plo funcionava como verdadeira oficina têxtil, chegando ater 2 000 Acelas nas vésperas da conquista espanhola.

O tributo devido ao Inca era legitimado a partir de cer-. tas construções ideológicas que mediavam as relações entreEstado e comunidades. Numa primeira, pela redistribuição,o tributo aparecia para as comunidades como um estoque queseria distribuído em épocas de catástrofes climáticas ou ca-restias. Ocorria o mesmo com a "benevolência" do Inca que,se apossando das terras das comunidades, permitia que estasas usassem para seu próprio sustento. Além disso, o tributoperdia seu caráter meramente econômico - extração de umexcedente econômico - e assumia uma capa religiosa, quandoo Incaaparecia como o Filho do Sol, aquele que transmitiaa proteção e a segurança do universo, garantindo a ordemsocial. Sua generosidade assegurava o sustento dos velhos ,inválidos e enfermos e, em épocas de crise, abria os arma-zéns para a sobrevivência de todos. Para os aldeãos impunha-se o sentimento de que participavam daquilo que entregavamao Inca como tributo, justificando e legitimando a domina-ção estatal. A hegemonia inca tinha predomínio no campoda persuasão, do consentimento, da confiança, da busca àaceitação da submissão.

O tributo, porém, conservava seu caráter local. O Incaproibia o aldeão de sair de sua comunidade, e a mira era pres-tada no próprio local em que vivia. Como o tributo era en-viado a Cuzco, e daí redistribuído a todo o Império, omecanismo permitia ao mesmo tempo a circulação de mer-cadorias e o imobilismo social. O tributo assumia então uma

dupla função: vinculava a comunidade a um conjunto maisvasto e exilava-a em seu marco local, consolidando as estru-turas tradicionais.

Nos últimos anos do Império, desenvolveu-se com gran-de rapidez o segmento dos yanas, espécie de serviço pessoalhereditário, mas que em nada se assemelhava à escravidãoclássica ou moderna. Dentre suas atividades principais, os ya-nas se incumbiam dos serviços no palácio do Inca, do culti-vo de suas terras e chegavam a exercer cargos administrativos.Quando a serviço de um Kuraka, exerciam atividades na agri-cultura, pecuária e serviços caseiros. Como o escravo asteca,um yana era alimentado, vestido, poderia ter casa, rebanhose outros bens, mas somente um de seus filhos herdava o es-tatuto do pai. Como os yanas eram absoluta minoria nestasociedade, devemos considerá-los enquanto setor secundáriono processo produtivo global e não superestimar seu apare-cimento, coisa que levou alguns estudiosos do assunto a con-siderarem o Império Inca como escravista ou feudal.

Pelo que vimos até aqui, é possível perceber um parale-lo entre Inca-Sol-Irnpério e Kuraka-Huaca-ayllu. Neste ca-so, o Império Inca reproduzia um gigantesco ayllu,

A organização político-administrativa

À medida que a expansão política e a subjugação dascomunidades avançavam, o Estado passou a ter uma sériede necessidades para controle, distribuição e apropriação doexcedente agrícola. Uma vasta máquina administrativa, umpoderoso exército e as obras públicas, particularmente os ter-raços para o cultivo e os canais de irrigação, alguns abertosem rochas; são explicados pela própria expansão e a necessi-dade de aumento e controle da produção de mantimentos.

As grandes obras públicas que se seguem ao aparecimen-to do Estado não o condicionam, conforme a tese defendida

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por Karl Wittefogel para o conjunto das "sociedades hidráu-licas", em que procura demonstrar que o aparecimento doEstado decorreu da necessidade de se organizarem grandestrabalhos coletivos. De fato, no caso inca, a existência de umaagricultura andina, com a necessidade de construção de ter-raços, é condição prévia para a formação de uma sociedadede classes e do Estado. A conquista e a apropriação de umsobretrabalho das comunidades levam à concentração de umaquantidade considerável de um excedenteeconômico, permi-tindo e exigindo o desenvolvimento de grandes obras públi-cas. Mas não é a necessidade de realizar grandes trabalhoscoletivos que enseja o surgimento de uma sociedade de clas-ses e do Estado; pelo contrário, é a possibilidade de ampliaras condições de produção do excedente agrícola que conduzàs grandes obras estatais. Neste caso, a construção de terra-ços é fundamental na possibilidade do aumento da produ-ção agrícola, jáque os vales são estreitos, com as terras planasde pouca largura.

A forte centralização político-administrativa de todo oImpério em Cuzco tornou necessária a constituição de umavasta burocracia fortemente hierarquizada.

Segundo Favre, toda a população sob domínio inca eradividida em sete unidades que correspondiam a grupos de 10,50, 100, 500, 1 000, 10 000 e 40 000 indivíduos. A cada uni-dade correspondia a chefia de um Kuraka e, no cume da hie-rarquia, estava o Inca que aparecia, a nível do imagináriocoletivo, como o Kuraka dos Kurakas.

O governo do Inca era auxiliado por quatro Apos, con-selheiros e ao mesmo tempo responsáveis pelas quatro divi-sões do Império - norte, sul, leste e oeste. Para cada umadestas divisões - sob a chefia de um Apo -, um grupo de40 000 pessoas correspondia a uma "província", governadapor um Tukrikuk, Desta forma, um Apo tinha sob sua res-ponsabilidade uma série de províncias, chefiando igual nú-mero de Tukrikuks. Cada província, por sua vez, subdi-

vidia-se em quatro grupos de 10 000 pessoas, cada um che-fiado por um Kuraka que estava subordinado ao Tukrik~k.Este grupo novamente se subdividia em grupos de 1 000 ~n-divíduos sob o comando de outros tantos Kurakas, e aSSImpor diante até um pequeno grupo de 50 pessoas. Por este es-quema, fortemente hierarquizado, cada Kuraka estava subor:dinado a um outro, passando pelo Tukrikuk, pelo Apo, ateo todo-poderoso lnca, a quem cabia a palavra final.

Sem dúvida, uma das figuras mais importantes nesta ca-deia de mando era o Tukrikuk, Representante direto do Incana sociedade e exercendo a justiça em seu nome, ao Tukri-kuk cabia a responsabilidade pela construção e conservaçãodas obras públicas e a coleta da produção agrícola provenientedo tributo devido pelas comunidades. Pela importância desua função não apenas era nomeado diretamente pelo Inca,como tinha que pertencer à sua linhagem.

No auxílio ao Tukrikuk, nas atividades de contabilida-de, estava o Kipukamaiyoc, a quem cabia a especializadíssi-ma tarefa de manejar os kipus, arcos com dezenas decordinhas de cores variadas. Pela combinação das cores e dosnós dados, fazia a contabilidade para o Tukrikuk do tributoa ser arrecadado, do recenseamento da população, do númerode homens exigidos para a mita etc. Pela importância de suaatividade, o Kipukamaiyoc tinha que pertencer à etnia inca,enquanto os outros funcionários poderiam pertencer a ou-tras etnias, desde que aculturados pela inca.

Com os Incas, os cargos burocrático-administrativos nãoeram hereditários, e estes funcionários poderiam ser demiti-dos por motivos variados. Seus benefícios eram em formade yanas, esposas subsidiárias e terras em suas comuni~adesde origem, que não constituíam qualquer tipo de proprieda-de individual. A idéia de propriedade coletiva da terra eraalgo tão enraizado na mentalidade coletiva, que a formaçãode uma aristocracia a partir da apropriação fundiária aindanão tinha encontrado espaço.

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Às vésperas da conquista espanhola, os Kurakas que che-fiavam as unidades de 40 000 a 100 indivíduos já formavamuma espécie de burocracia média, sem necessidade de per-tencerem à etnia inca. Suas funções incluíam a chefia das guer-ras e cobrança do tributo. Eram ainda juízes e organizadoresna construção de obras públicas. Os Kurakas encarregadosde unidades de 50 e 10 pessoas eram simples capatazes, ten-do inclusive que pagar tributo.

A importância e o reconhecimento de um Kuraka era di-retamente proporcional ao número de indivíduos que tinha sobsua chefia. Se fosse um governador de província, um Tukri-kuk, tinha a seu dispor vastos domínios territoriais, manu-seio de grandes parcelas do tributo e comando de frações doexército. No caso de chefe de ayllu, não passava de um sim-ples "juiz de paz". A hierarquização entre os Kurakas crioutoda uma teia de controle, um sobre o outro, gerando fortís-sima centralização nos escalões superiores, culminando noInca..

A importância do Kuraka não pode ser medida apenasem sua atividade administrativa, pois seria simplificar exces-sivamente a análise e apontá-Io como um simples funcioná-rio subalterno. O Kuraka formava, como vimos, o elo deligação do poder central com a população local submetidae, ao mesmo tempo que executava as ordens do Inca atravésdo Tukrikuk, representava o Filho do Sol em sua comunida-de. A legitimidade do Kuraka frente ao ayllu que chefiava,provinda das antigas tradições, legitimava também o poderexercido pelo Inca. O espaço de autonomia do Kuraka emsua comunidade teria de ser respeitado, ao menos tacitamente,pelo Inca neste complicado e delicado jogo de forças na ma-nifestação do poder. Isto pode ser exemplificado na questãoda sucessão de um Kuraka. Sendo o cargo de chefia no aylluvitalício e hereditário, com sua morte, a investidura de seufilho era confirmada a partir de um referendo entre os mem-bros do ay/lu. Legitimado pela população local, o no-

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. bé a confirmação do Inca, mas estavo «urako recebia tam em f do Inca demonstrar sua

. - a apenas uma orrna , .conflrmaçao er . t rvir na questão sucessona.. ão procurava me.presença, pOls.n , . k da chefia de sua comumdadeO Inca só destltula um Kura a 1 ebelião.

" omo por exernp o, rpor falta gravISSlma, ~ _'. o reconhecimento da im- .

N I,· da dommaçao rnca, .a OglC~ , . ção de outros mecamsmos~ . d Kuraka levava a cria ~ .portanCla o. _ . aos privilégios economl-~~SC~~~:~;:~s:~~~j~~~~;~:i~:;:avam à cooptaçãodoKu-

raka eo~ o poder c;nt~k~ seu eventual sucessor, era leva-O fllh~ de um ur zc~ e educado na corte do Inca. Ao

do ainda cnança para Cu 1 d o futuro Kuraka, ao as-refém e acu tura o, .

mesmo tempo _ hefia erante sua comumdade, erasumir suas f,unçoes dei c ultu~al, apesar de pertencer a ou-um Inca a nível menta e c . ãs dos Kurakas iam mo-tra etnia. Também as fld'lhasou plr:as subsidiárias do Inca,

ca ital, tornan o-se es ,rar na ~ . destas esposas-refens.selando alianças a pa.rtlr _, dominação, o poder inca

N~ busca da aceltaç~od~~:;ade local, o Huaca. Sua es-não deixava escapar nem e colocada no templo para sertátua era levada para Cuzco . um refém em poder do

d na verdade era maiscultua a, mas l' _ 'dolo era exposto a insultos eInca, e em caso de rebe iao o Idegradação pública. . íd do o papel dos Kurakas na

Examinando c~m mais CUI a erceber que o poder norede ,d~ dominaçã~ :nca,. P,~~~:~~t~e eles e o Inca. O poderImpeno era na p~.~IC~dl~~ Império e sua justificação ideo-do lnca, a canso I açao dação do tributo nas cornu-lógica eram medid?s pela arrfecama de trabalho agrícola nas. d O o tnbuto em or Inída es. ra, di às faixas do Inca e do So ,

terras do ayllu , que correspo.n lamo aumentar a extensão das. . d . t ' não havia comera limita o, is o e, onstrução de terraços e

I· , . a não ser com a c .terras eu tivaveis. . a vez o segundo ti-" ansão A mita, por su ,com a propna ~xp '. elasticidade, pois correspon-po de tributo, tinha uma maior

II

I

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d.ia ao número de homens que a comunidade cedia tempora-nam.e~t~ ao Inca para o trabalho nas obras coletivas - uepossibilitava uma maior produção ag rícola Apart' d q .ta I ,. . Ir a mt-lida~ ~pen~ encontrav~ uma maior elasticidade na possibi-

e o acumulo do tnbuto agrícola e, conseqüentementeno aume~to e consolidação de seu poder. 'Kur ~ t~lbuto na.forma da mira, porém, era mediatizado pelo

a ~ ocal, pOIS era ele quem recrutava os homens de sua:i~udmdade, justifican~o este tributo a partir de sua legiti-

.a e per~n.t~ a comunidade. Assim, se a mira permitia uma. ~al~r yosslbIlldadeno acúmulo do excedente agrícola pelo

m~eno, e se o Kuraka era a peça-chave neste sistema, haviaentao entre o Inca e os Kurakas um equilíbrio de poder Nge~al, podemos dizer que os possíveis conflitos entre o; Ku~rba.a: e o In~a flc~vam neutralizados pelos laços de redistri-uiçao e reciprocidade.

Ist~ se.m~nifestava na festa anual de Raymi. Nesta fes-ta, os~nnclpals Kurakas iam a Cuzco e, representando suascomunidades, entregavam o tributo ao Inca davamte ' presen-I s e prestavam contas de suas administrações. Recebiam doS~cab ~ulheres, vestuário luxuoso e yanas como prese~tesrm ~ icamente, a festa de Raymi, mais do que uma formal

cortesia, representava uma troca; a reciprocidade entre o ode~ central e as.diversas comunidades representadas pelo ;u:ra a, materializada na forma de presentes.

seres, faz do homem o que de fato é: um ser finito, pensan-te, sexuado etc. Assim, a história sagrada passa a ser a histó-ria verdadeira, pois, como nos lembra Mircea Eliade, o mitoda morte é verdadeiro à medida que o homem morre.

Como no caso asteca, o imaginário social inca era com-posto por um conjunto de práticas, crenças e costumes quenão se reduziam a uma fórmula única. Porém, comparandocom o caso asteca, o projeto de dominação inca parecia re-correr com mais freqüência às construções teológicas, coma imposição do culto solar a todas as comunidades conquis-tadas nos Andes Centrais, cujo alcance político girava em tor-no da formulação de uma cultura hegemônica inca. Era umfato político que se cruzava com uma questão de cunho reli-gioso, e esta tentativa de impor um projeto cultural homogê-neo por todo o Império nunca foi pretendida por seus vizinhos

do norte.Devido às fontes disponíveis, o estudo da área andi-

na central não se encontra no mesmo nível que o da Meso-América. A riqueza maior das fontes disponíveis para ocaso asteca possibilita aprofundar questões relativas à orga-nização econômica, à dinâmica social e ao imaginário co-letivo. No caso inca, as fontes se resumem praticamente aosrestos arqueológicos e textos em línguas européias escri-tos por cronistas espanhóis, missionários, conquistadores etc.No caso asteca, além destes, existem textos em língua indíge-na escritos com caracteres latinos e os livros de pinturas

(códices).Uma renovação no estudo dos Incas foi dada por J. Mur-

ra quando usa como fonte as "visitas" , relatórios de funcio-nários espanhóis sobre as áreas recém-conquistadas. Sejacomo for, do ainda pouco que sabemos sobre o imagináriosocial inca, 'percebemos a riqueza em suas formas de ver, con-tar e mesmo viver o mundo, apesar de muitas perguntas ain-

da estarem sem respostas.

o imaginário inca

A cons:rução de um panteão de deuses, por sociedadesn? .mesmo nível de desenvolvimento que a dos Incas nã .nifica u " . .., ' ao SIg-" .. m p'nmltlVISmO cultural", estágio marcado ela

afetividade ou coisa similar. Significa que a irrupçã~ dosobrenatural no.mundo dos homens, pela intervenção dos en-tes sobrenaturais, além de relatara origem das coisas e dos

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Viracocha e o Sol: os deuses do baixo e do alto.

Dos vários deuses do panteão inca, Viracocha e o Solestavam em posição de destaque por representarem o pró-prio universo de ação do Império. Num prisma geográficoe ecológico (veja Ciro F. S. Cardoso, América pré-colombiana), os Andes Centrais caracterizam-se por tf'ês áreasdistintas: o litoral do Pacífico, numa faixa de 3 200 km decomprimento na direção norte-sul, por 1,5 a 40 km de largu-ra; as cordilheiras temperadas e frias; e a região amazônica,parcialmente integrada ao Império. As duas primeiras, porserem o eixo central das culturas existentes desde 1500 a. C.e .integradas efetivamente ao Império Inca, refletem o planode ação destas .duas entidades.

Viracocha era o deus criador e civilizador do universo.Terminada sua obra de gênese material e humana, partiu an-dando pelo mar em direção ao oeste - mais tarde FranciscoPizarro seria confundido com Viracocha que prometera vol-tar. O Sol, personagem sagrado, deus principal e fonte davida, teve seu culto difundido e imposto a todas as comuni-dades conquistadas nos Andes Centrais por razões de ordempolítica.

Como lembra N. Wachtel, Viracocha e Sol são deusescomplementares: o Sol refere-se ao céu, ao fogo, à serra eao alto; enquanto Viracocha aponta para a terra, a água, acosta, o baixo. No arcabouço mental do período, Viracochae Sol refletiam as duas culturas e os dois modos diferentesde vida, marcados pelas variáveis geográficas e ecológicas:a costa do Pacífico e as cordilheiras andinas.

A correlação Sol-serra e Viracocha-costa não deve su-por um mero e reducionista determinismo geográfico. As di-ferenças entre as duas zonas são tão delineadas que as culturasformadas nestas regiões agiam sobre este espaço geográficoe dele sofriam influência, além da não-integração destas duaszonas durante séculos. Para se ter uma idéia de tamanha di-

versidade, uma das penalidades que o Império impunha a urnacomunidade rebelada era sua mudança para a outra zona.A desestruturação material e cultural que essa população so-fria era completa. Por outro lado, essas transmigrações for-çadas (mitmaq) eram, segundo J. Murra, o meio essencial decolonização agrícola implementada pelos Incas. Pela mitmaqlevou-se o milho da costa para a serra e a batata da serra pa-ra a costa. Assim também os Incas começaram a adentrar pelaAmazônia peruana.

A relação Sol- Viracocha com os Incas lembra a relaçãoTlaloc-Uitrilopochtli com os Astecas, mas esta semelhançatambém denuncia uma diferença. Ao contrário dos Astecas,que colocavam as duas entidades em igual posição no cultoe adoração sem procurarem unificar o vasto mosaico étnicoa partir de um projeto religioso homogêneo, os Incas elabo-raram um projeto unificador para os Andes Centrais com aimposição do culto solar.

A representação do tempo histórico

A representação do tempo histórico para os Incas emmuito se assemelhava com a dos Astecas. O tempo históricotambém era pensado como um tempo cíclico, não-linear, comvárias humanidades que surgiram e desapareceram junto comseu próprio tempo.

O tempo atual dos Incas era entendido como a QuintaIdade, precedida por outras quatro. A Primeira Idade era cha-mada de "Homens de Viracocha", e seu fim viria com asguerras, pestes e, sintomaticamente, com a rebelião dos ob-jetos contra seus senhores. A Segunda Idade seria a dos "Ho-mens Sagrados", e seu fim foi o de arderem com o Sol. ATerceira Idade, a dos "Homens Selvagens", chegaria ao fi-nal com um dilúvio universal. A Quarta Idade, ou a dos"Homens Guerreiros", terminaria, paradoxalmente, com a

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decadência completa. Com a Quinta Idade, a "Idade dos In-cas" , seria o tempo cíclico da etnia que veio regenerar os ho-mens e o corolário e cumprimento das quatro idadespreceden tes.

o Inca

A necessidade de recorrer às explicações, com base noaparato religioso, se fazia presente de forma mais delineadana legitimação do poder do Inca, levando sua figura a assu-mir posição sem igual no imaginário do período.

Um novo Inca apresentava-se pobre e órfão e, assumin-do o poder, renunciava ao parentesco, à herança e se casavacom a irmã, da mesma maneira que Manco Cápac apareceuno mundo, reatualizando e tornando presente o mito da ca-verna. O fato de casar-se com a irmã não apenas rememora-va a história do ancestral mítico e o ritualizava, como tambémfechava a entrada de estranhos na dinastia do poder. Mas estaprática consolidou-se somente após a estabilidade da hege-moniainca, pois, até então, a necessidade de fortalecer alian-ças políticas, levava o Inca a se casar com a filha do Kurakado ayllu mais próximo.

Um Inca não tinha antecessor nem sucessor e a sucessãolegitimava-se a partir da força, ou seja, os irmãos herdeiros pre-tendentes ao trono, representantes das diversas facções políti-cas, lutavam até um único vencedor. O período da sucessão eramarcado pela violência e, com o exército dividido, o Impériomergulhava no caos político com o centro do poder acéfalo,sem a figura do Inca unificador e centralizado r - era a opor-tunidade para várias comunidades tornarem-se independentes.Com a vitória de um dos pretendentes, a ordem voltava a seimpor, como. se o Império renascesse a cada Inca.

Se a ascensão de um novo Inca era marcada por umaverdadeira guerra civil, e o controle das tropas do exército

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era fundamental, sua legitimação com a vitória circulava naesfera do sobrenatural, com a investi dura pelo Grande Sa-cerdote que o fazia "Filho do Sol", mediador privilegiadoentre este mundo e o além. O Inca era o vínculo entre a or-dem natural e social, entre o mundo dos homens e o divinoe, após a investidura, sua figura ficava acima do próprioGrande Sacerdote. O penúltimo Inca, Huayna Cápac - ado-rado como um deus -, levou 4 000 seguidores, que se imo-laram voluntariamente, para o acompanharem ao túmu~o.

Em termos de comparação, a imagem que o mundo l Il>

ca tinha de seu monarca diferia fundamentalmente do casoasteca. Neste último, as divindades estavam acima do Tla-toani e apenas legitimavam seu poder. Eleito por um grupode representantes das classes dominantes, seu papel e.ra o dechefia da Confederação e comando das tropas guerreiras. Seo mundo asteca pode ser considerado como despótico-teocrático num certo momento a figura do Tlatoani começaa se reificar, desvencilhando a imagem do chefe da socieda-de da idéia do guia espiritual.

No caso inca, o processo era outro quando não existiadissociação entre a divindade e o chefe político. O Inca erao Filho do Sol, fonte primordial nas relações entre o mundomaterial e o espiritual, a ligação entre a natureza e a culturae o ponto de encontro entre os deuses e os homens. Numa.palavra, o Inca era o centro carnal do. universo. _ .

A importância do Inca como catalisador da coesao so-cial nos Andes Centrais pode ser percebida quando do assas-sinato do último Inca, Atahualpa, por Francisco Pizarro.Sobre o assunto, M. León-Portilla cita um cântico quéchua,de autor anônimo, que tem por título "Apu Inca Ata-hualpaman" :

Que arco-lris é este negro arco-írisque se levanta?Para o inimigo de Cuzco horrível flechaque amanhece.

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Por toda parte granizada sinistragolpeia.

Meu coração pressentiaa cada instanteaté em meus sonhos, assaltando-me,em sonho profundo,a mosca azul anunciadora da morte;dor interminável.

O sol torna-se amarelo, anoitece,misteriosamente;amortalha Atahualpa, seu cadáver

.e seu nome;a morte do Inca reduzo tempo que dura uma piscada.

Sua amada cabeça já a envolveo horrendo inimigo;e um rio de sangue caminha, se estende,em duas correntes.

Seus dentes rangedores já estão mordendoa bárbara tristeza;tornaram-se de chumbo seus olhosque eram como o sol, olhos de Inca.

Já ficou gelado o grande coraçãode Atahualpa.O pranto dos homens das Quatro Regiõesafogando-o.

As nuvens do céu já estãoficando negras;a mãe Lua, angustiada, com o rosto enfermo,torna-se pequena.E tudo e todos se escondem, desaparecem,padecendo.

A terra se nega a sepultarseu Senhor,como que envergonhada do cadáverde quem a amou,como se temesse devorar seu guia.

E os precipícios de rochas tremem por seu amo,canções fúnebres entoando,

As nobres escolhidas se inclinaram, juntas,todas de luto,

o rio brame com o poder de sua dor,seu caudal levantando.

As lágrimas em torrentes, juntas,se recolhem.Que homem não cairá em prantopor quem amou?Que filho não há de existirpara seu pai?

Gemente, dolente, coração feridosem glórias.Que pomba amante não dá seu serao amado?Que delirante e inquieto cervo selvagema seu destino não obedece?

Lágrimas de sangue arrancadas, arrancadasde sua alegria;espelho vertente de suas lágrimas,retratai seu cadáver!Banhai todos, em sua grande ternura,vosso regaço.

Com suas múltiplas, poderosas mãos,os acariciados;com as asas de seu coração,os protegidos;com a delicada tela de seu peito,os abrigados;clamam agoracom a doi ente voz das viúvas tristes.

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o Huillaj Umu se vestiu de seu mantopara o sacrifício.Todos os homens desfilarampara suas tumbas.

Mortalmente sofre sua tristeza delirantea Mãe Rainha;os rios de suas lágrimas saltamsobre o amarelado cadáver.Seu rosto está duro, imóvel,e sua boca (diz):"Aonde foste, perdendo-tede meus olhos,abandonando este mundoem minha aflição;eternamente desgarrando-tede meu coração?"

Enriquecido com o ouro do resgateo espanhol.SeU horrível coração pelo poder devorado;empurrando-se uns aos outros,com ânsias cada vez mais escuras,fera enfurecida.Deste-lhas o quanto pediram, os cumulaste;não obstante, te assassinaram.Seus desejos até onde clamaram os fartastetu somente;e morrendo em Cajamarcate extinguiste.

Acabou-se já em tuas veiaso sangue:apagou-se em teus olhosa luz;no fundo da mais brilhante estrela caiuteu olhar.

Geme, sofre, caminha, voa enlouqueci datua alma, pomba amada;delirante, delirante, chora, padeceteu coração amado.Com o martrrio da separação infinitao coração se rompe.

o límpido e resplandecente trono de ouro,e teu berço;os vasos de ouro, tudo,foi repartido.

Sob estranho império, acumulados os martírios,e destruídos;perplexos, extraviados, negada a memória,sozinhos;morta a sombra que protege,choramos;sem ter a quem ou aonde nos voltar,estamos delirando.

Suportará teu coração,Inca,nossa errante vidadispersada,pelo perigo sem contacercada, em mãos alheias,pisoteada?

Teus olhos, que como flechas de felicidade feriam,abre-os;tuas magnânimas mãosestende-as;e com essa visão fortalecidos,despede-nos.

Adorado como um deus, a desolação, a angústia e a dornão se referem apenas à perda de um ente querido. Revelam.o alcance místico e milenar do desaparecimento do Filho doSol. Para as populações dos Andes Centrais, a morte do In-ca e a dominação espanhola são processos organicamente li-gados, pois com sua ausência desaparece a proteção sociale divina. Privados de seu guia, são condenados a uma vidaerrante, dispersa, pisoteados por estrangeiros, literalmente ór-fãos e oprimidos.

O Filho do Sol, aquele que assegurava a mediação entrehomens e deuses, garantia de harmonia e ponto carnal do uni-verso, desaparece, e com ele, a referência do mundo. A

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ordem universal foi brutalmente destruída, surgindo o vazioe o caos. Para o nosso autor desconhecido, só resta, então,a angústia e a dor. 4

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Conclusão

Assim posso afirmar que Deus nunca criou raça mais cheiade vícios e de bestialidades, sem mistura alguma de bondadee de cultura. (...) Os índios são mais idiotas do que os asnos,e não querem fazer esforço no que quer que seja.

Esta foi a conclusão que o dominicano Tomas Ortiz fezao Conselho das Índias, ao descrever as sociedades que encon-trou em sua viagem à América, então recém-conquistada peloseuropeus. O primeiro Vice-Rei de Nova-Espanha (México) acre-ditava que o trabalho nas minas era o melhor remédio para amaldade natural do indígena, enquanto Sepúlveda afirmava queos índios mereciam a opressão porque seus pecados e idolatriaseram ofensas a Deus. Eduardo Galeano lembra que Bacon,

. Montesquieu, Hume e Bodin negavam-se a reconhecer comosemelhantes os "homens degradados". Hegel falava da impo-tência física e espiritual da América, e Voltaire acreditava queos índios eram preguiçosos e estúpidos.

O verdadeiro massacre coletivo, que seguiu à conquista es-panhola, não deve ser delimitado apenas no período inicial daexpansão comercial e marítima européia nos tempos modernos,e sim remetido a um processo mais amplo que vem até nossosdias. Em 1957, a Corte Suprema de Justiça do Paraguai emitiu