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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Programa de Pós Graduação em Psicologia Social Jorge Ricardo Santos de Lima Costa A paixão de olhar: a cidade no cinema brasileiro Rio de Janeiro 2008

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Programa de Pós Graduação em Psicologia Social

Jorge Ricardo Santos de Lima Costa

A paixão de olhar: a cidade no cinema brasileiro

Rio de Janeiro 2008

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Jorge Ricardo Santos de Lima Costa

A paixão de olhar: a cidade no cinema brasileiro

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, área de concentração em Psicologia Social.

Orientadora: Profa. Dra. Ariane Patrícia Ewald

Rio de Janeiro 2008

Jorge Ricardo Santos de Lima Costa

A paixão de olhar: a cidade no cinema brasileiro

Tese apresentada, como requisito para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, área de concentração em Psicologia Social

Aprovado em ________________________________________ Banca Examinadora: ___________________________________________________ Profa. Dra Ariane Patrícia Ewald Universidade do Estado do Rio de Janeiro __________________________________________________ Profa. Dra.Heloísa Guimarães Peixoto Nogueira Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ___________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Cláudio da Costa Universidade do Estado do Rio de Janeiro ___________________________________________________ Prof. Dr. Jorge de Campos Valadares Fundação Oswaldo Cruz ___________________________________________________ Profa. Dra. Monique Augras Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - aposentada

Rio de Janeiro 2008

Dedicatória

Aos meus pais, pela dedicação e presença constante em minha vida,

aos companheiros e amantes da arte do cinema, por terem

compartilhado comigo tantas descobertas e prazeres diante de filmes

inesquecíveis, e às cidades que tenho conhecido, que são o laboratório

para o exercício do olhar e do caminhar ao longo de ruas encantadoras

e imprevisíveis.

Agradecimentos

Aos professores, colegas e funcionários do Programa de Pós-Graduação

em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em especial a

minha orientadora, Profa. Dra. Ariane Patrícia Ewald, pelo carinho e pela

orientação primorosa ao longo desta produção acadêmica tão significativa para

minha história de vida, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior – Capes, pelo apoio institucional e financeiro.

Aos amigos arquitetos pelo interesse em conhecer e divulgar esta pesquisa

que acredito ser importante para nossa formação profissional e cultural e aos

demais parceiros e amantes da cultura, que vibram ao tomarem conhecimento de

um estudo inédito e comprometido com a valorização da vida nos grandes centros

urbanos.

Resumo

Desde a criação do cinema, em 1895, a cidade vem sendo retratada de forma

surpreendente para quem a vivencia em seu cotidiano. A arte do cinema amplia o

sentido de realidade e provoca um impacto sobre o universo psicológico e social

do homem. O cinema brasileiro acompanha, através de sua vasta produção, o

percurso da cidade no tocante ao desenvolvimento estético, social, cultural,

político e econômico, apresentando a forma através da qual o homem se relaciona

com essas variáveis. O historiador Michel de Certeau desenvolve em sua obra o

tema da inventividade do cotidiano, no que se refere à prática do espaço. Os

conceitos de “espaço” (um lugar praticado), e de “lugar” (um espaço geométrico),

permitem aprofundar o estudo do papel do homem no cotidiano da cidade. É este

o eixo teórico da presente pesquisa, que pretende estudar o imaginário da cidade

no cinema brasileiro a partir de três questões principais: a formação do imaginário

urbano, a criação da forma da cidade no cinema (locações, cenários e fisionomias)

e o estado de solidão e isolamento vivido pelo homem nas grandes cidades. Para

tal, foram escolhidas para análise as seguintes produções brasileiras: Dias de

Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane, O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti

e O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein. A cidade representada

nesses filmes nos dá a oportunidade de exercitar o olhar e refletir sobre o

cotidiano da vida urbana e seus reflexos no universo psicológico do homem

contemporâneo.

Palavras-chave: cidade, cinema, imaginário urbano, direção de arte e solidão.

Abstract Since the creation of the cinema, in 1895, cities have been portrayed in a way that

surprises those who experience it in their daily lives. The art of cinema magnifies

the sense of reality, thus triggering an impact on man's psychological and social

universe. Through its large production, the Brazilian cinema follows the city's

journey in connection with the aesthetic, social, cultural, political, and economical

development, depicting the way man relates to these variants. In his work, the

historian Michel de Certeau develops the subject of everyday

inventiveness regarding the practice of space. The concepts of "space" (a

practiced place) and "place" (a geometrical space) pave the way to deepening

the investigation of man's role in the city's everyday life. This is the theoretical

chore of the present research. It proposes to investigate the city's imaginary

contents as seen in the Brazilian cinema, based on three main topics: the

formation of the urban imaginary contents, the creation of the city's form on film

(locations, settings, and looks), and the state of solitude and isolation man must

face in the big cities. In order to supply the adequate material, the following

Brazilian productions have been selected for the studies in question: Dias de

Nietzsche em Turim (Nietzsche's Torino Days) (2001), by Julio Bressane, O

Príncipe (The Prince) (2002), by Ugo Giorgetti, and O Outro Lado da Rua (The

Other Side of the Street) (2004), by Marcos Bernstein. As portrayed in these films,

the city supplies us with the opportunity to exercise the act of looking, and to reflect

about the urban daily life with its effects on the contemporary man's psychology.

Key-words: city, cinema, urban imaginary contents, art direction, and solitude.

Résumé

Depuis la création du cinéma, en 1895, la ville a toujours été représentée de façon

surprenante pour ceux qui la vivent dans son quotidien. L'art du cinéma amplifie le

sens de réalité et joue un rôle impactant sur l'univers psychologique et social de

l'homme. Le cinéma brésilien, par sa vaste production, suit le parcours de la ville

dans ce qui concerne le développement esthétique, social, culturel, politique, et

économique, en nous présentant la façon dont l'homme se met en rapport avec

ces variantes. Dans son travail, l'historien Michel de Certeau développe le sujet de

l'esprit inventif du quotidien, en ce qui concerne la pratique de l'espace. Les

concepts d'espace (un endroit pratiqué) et d'endroit (un espace géométrique)

permettent l'approfondissement de l'étude du rôle jouée par l'homme dans le

quotidien de la ville. Voilà l'axe théorique de la présente recherche, dont l'objectif

est l'étude de l'imaginaire de la ville dans le cinéma brésilien à partir de trois sujets

principaux: la formation du contenu imaginaire urbain, la création de la forme de la

ville au cinéma (extérieurs, décors et physionomies) et l'état de solitude et

d'isolement vécu par l'homme dans les grandes villes. Dans ce but, les productions

brésiliennes qui suivent ont été choisies pour être analysées: Dias de Nietzsche

em Turim (Jours de Nietzsche à Turin) (2001), de Julio Bressane, O Príncipe (Le

Prince) (2002), de Ugo Giorgetti, et O Outro da Lado Rua (L'Autre Côté de la Rue)

(2004), de Marcos Bernstein. La ville représentée dans ces films nous permet

d'exercer le regard et de repenser le quotidien de la vie urbaine et ses effets sur

l'univers psychologique de l'homme contemporain.

Mots-clé: ville, cinéma, imaginaire urbain, direction d'art et solitude.

Sumário

Introdução 11

Capítulo I 24

O sonho e a criação da cidade no cinema 24

1.1. Cenas urbanas, cenas do cinema 25 1.2. O sonho e a tėcnica no cinema 35 1.3. A cidade no cinema: as narrativas clássicas 47

Capítulo II 57

Imaginários da Cidade 57

2.1. A escrita da história, a escrita da cidade 58 2.2. O homem, a cidade e a tradição 75 2.3. O corpo na prática do espaço 88 2.4. Esquecimentos e criações 99

Capítulo III 112

Ambientes e fisionomias: a forma cinematográfica 112

3.1. A imagem do cinema: uma estética reveladora 113 3.2. Primórdios da direção de arte no cinema: obras e conceitos 118 3.3. Cenário e memória 129 3.4. Cenário, figurino, maquiagem e objeto 142 3.5. Modos de criação 153

Capítulo IV 162

Solidão e Isolamento – a vivência do homem nas janelas e nas calçadas da cidade 162

4.1 O vislumbramento da cidade através da janela 163 4.2. Nas calçadas transformamos o mundo 180

Capítulo V 202

E a paixão continua ... 202

Bibliografia 208

Hemerografia 219

Filmografia 222

Filmografia de Apoio 225

Não me interessa, absolutamente, fazer uma crônica sobre a cidade. O meu interesse inicial são as pessoas e como a cidade as influencia. Dessa forma, as pessoas não vivem impunemente; elas vivem na cidade e são do jeito que são porque a cidade é, também, do jeito que é. Então, se uma pessoa vive em São Paulo, ela recebe necessariamente influência de fatores negativos e positivos da vida urbana. Na realidade, o que me interessa, de uma maneira não muito periférica e direta, é contribuir para a criação da mitologia da cidade. Isso eu acho interessante1.

Ugo Giorgetti

1 Trecho da entrevista concedida pelo cineasta paulista Ugo Giorgetti ao programa “Revista do Cinema Brasileiro” de agosto de 2002.

11

Introdução A idéia inicial de se investigar o imaginário e a forma da cidade no cinema

brasileiro é resultante do desenvolvimento de projetos culturais que tiveram como

objetivo ampliar o olhar do espectador em relação à narrativa da vida urbana sob a

ótica do cinema brasileiro e internacional. A importância do tema aparece como

uma necessidade iminente de se buscar significado à experiência do homem

urbano contemporâneo diante da crise social e de seus reflexos no universo da

psicologia do grupo que vive e produz nas cidades.

Ao longo de minha carreira manifestei o interesse em relação à influência

do espaço urbano e da arquitetura sobre o homem. A maneira com que ele recebe

esse acervo de impressões resulta em um perfil psicológico característico do

impacto da forma sobre o ser humano. Os projetos de arquitetura e de urbanismo

precisam levar em conta a psicologia do sujeito nas diversas experiências no

âmbito dos espaços nos quais ele produz cultura, pensamento e afeto. A cidade e

a arquitetura são objetos que provocam sentimentos e aspirações em quem olha e

percebe o movimento e o sentido da forma.

O interesse pela arte do cinema vem de longa data. Desde as primeiras

sessões de cinema que constatei o impacto dos filmes sobre o meu universo

imaginário e os reflexos no cotidiano, a forma de pensar e sentir os fatos, os

objetos e as pessoas foram redimensionados diante das imagens em movimento.

A presença da cidade e da arquitetura no cinema, enquanto área de interesse

para pesquisa e para produção de projetos, surgiu no momento que percebi o

papel da cidade e da arquitetura na construção do ambiente da narrativa

cinematográfica, quando elas se tornam personagens que determinam a forma e o

conteúdo da história.

Esta pesquisa leva em conta inúmeras idéias e reflexões sistematizadas na

prática e que foram consideradas na estruturação do arcabouço teórico e na

seleção dos filmes a serem analisados. No processo de investigação dos

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conceitos adotados foi constituído um acervo de filmes sobre o tema que foi objeto

de relato histórico e estético para o embasamento da análise teórica. A natureza

dinâmica da pesquisa proporcionou a descoberta de inúmeras possibilidades de

se contextualizar o estudo da cidade no cinema brasileiro. Neste sentido, procurei

dimensionar a minha experiência pessoal nos diversos campos de sistematização

de idéias para que eu pudesse alcançar um resultado mais adequado à realidade

social brasileira.

A experiência do homem no espaço urbano na busca de sentido para a sua

existência se caracteriza por confrontações cotidianas da ordem da subjetividade.

A natureza dessa experiência possibilita a ele e ao espaço no qual interage a

constituição de um universo provido de significação proporcionando o

reconhecimento de certos elementos enquanto símbolos representativos do

imaginário social, norteadores, portanto, de um processo conformador da memória

da sociedade, imprescindível à construção da identidade social. O território do

imaginário e do simbólico engloba um conjunto de fatos, objetos e personagens,

os quais exercem papel fundamental na instituição de símbolos representativos do

universo cultural que alimentam o imaginário social.

A estética cinematográfica, enquanto uma expressão cultural da sociedade,

se apresenta como objeto de pesquisa imprescindível para o reconhecimento da

forma como o imaginário urbano é formado e, conseqüentemente, a forma como

a cidade é apropriada pelo homem. O cinema é um instrumento de registro

(memória) social importante no tocante ao estímulo aos conteúdos profundos de

um processo de identificação do homem com sua realidade urbana.

O tema da tese de doutorado é “Cinema, cidade e imaginário”, ou seja, a

formação do imaginário urbano no cinema brasileiro. O cinema apresenta formas e

conteúdos representativos do espaço urbano que são criados e apropriados do

universo social. A visão estética do diretor e da equipe técnica institui uma cidade-

símbolo que irá ser propagada pela narrativa do filme em seus desdobramentos

de forma e de conteúdo. As imagens produzidas dialogam com o espectador

trazendo informações que irão estimular o imaginário individual e social, elas

13

redimensionam o sentido de espaço e de tempo e ampliam o olhar do homem

sobre o cotidiano da cidade.

Desde a primeira filmagem realizada em 1898 -, “Fortalezas e navios de

guerra na Baía de Guanabara”, por Afonso Segreto que, junto com seu irmão

Pascoal Segreto, foram os pioneiros do cinema no Brasil2 -, até os dias de hoje, a

cidade tem sido um tema importante na produção cinematográfica brasileira. Ela

vem sendo simbolizada das mais diversas maneiras retratando tanto os aspectos

positivos – belas paisagens e personagens emblemáticos da vida na cidade, como

os aspectos negativos (sombrios) – espaços degradados (favelas, prédios em

ruínas ... ), pobreza e marginalidade. A importância do tema no cinema permite

que se possa registrar e analisar a transformação da cidade brasileira ao longo

dos diversos momentos da história do cinema nacional.

Para a constituição do objeto de pesquisa foi delimitado o seguinte

problema central: a criação e o desenvolvimento do imaginário urbano no cinema

brasileiro. Verificamos que o ponto de vista do cineasta na criação da obra

cinematográfica produz narrativas que podem ser uma leitura particular da

realidade ou criações artísticas em potencial. A leitura que ele faz do tema pode,

também, abrir novos caminhos de compreensão ainda não explorados pela arte do

cinema e pela sociedade, uma visão a frente de seu tempo e, em um primeiro

momento, questionada pelos atores sociais.

O surgimento do cinema no final do século XIX, em 1895, na França3, é

concomitante ao processo de desenvolvimento dos grandes centros urbanos. A

cidade é retratada de forma sistemática através das lentes do cinema, existindo,

porém, poucos estudos teóricos que tratem da formação do imaginário da cidade

no cinema. A importância do tema é inquestionável pois podemos, em pleno auge

da crise urbana, utilizar o cinema para compreender melhor o universo social e

poder intervir de forma objetiva nos rumos da vida das metrópoles. O cinema é

2 No dia 8 de julho de 1896, o cinematógrafo (omniógrafo) chega no Rio de Janeiro. Em 30 de julho de 1897, instala-se na Rua do Ouvidor nº 141, o primeiro cinema permanente do país, o Salão de Novidades Paris no Rio, de Pascoal Segreto. 3 A primeira sessão pública do cinematógrafo acontece no dia 28 de dezembro de 1895, no Salão Indiano, uma pequena sala localizada no subsolo do Grand Café n. 14, Boulevard des Capucines, Paris.

14

uma arte sedutora e impactante, e apresenta instrumental estético e técnico para

contribuir para o redimensionamento do olhar sobre a cidade, no que se refere ao

papel do homem na construção da realidade social e urbana.

Pensar a cidade significa avaliar a experiência estética e social do homem

no cotidiano. A questão da “prática do espaço” aparece como uma experiência

antropológica na qual a cidade se apresenta como um local de transformações e

apropriações constantes, imprescindíveis ao redimensionamento do homem e do

próprio espaço.

Praticar o espaço significa uma forma de operação onde a cidade se

transforma de um mero “fato urbano” para se constituir em uma “cidade-conceito”,

ou seja, a ação se orienta no sentido de captar o espírito da “cidade dita

metafórica” – o lugar figurado produzido pelo olhar do sujeito. A proposição de

“cidade-conceito” apresentada pelo historiador francês Michel de Certeau (1925-

1986) em sua obra A Invenção do Cotidiano (1994) se desdobra em duas

categorias: “espaço” e “lugar”.

O “lugar” é um espaço geométrico, uma estrutura caracterizada pela ordem

e pela estabilidade, e o “espaço” é um cruzamento de móveis, subjetividades,

descobertas; uma experiência antropológica; um lugar praticado. A denominação

“cidade-conceito” como: “lugar de transformações e apropriações, objeto de

intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos é, ao

mesmo tempo, a maquinaria e o herói da modernidade” (CERTEAU, 1994, p. 174),

requer uma conquista constante e a respectiva participação do homem, no sentido

de se deflagrar um processo simbólico a partir da manipulação dos elementos da

estrutura material urbana. Este processo se caracteriza pelo desenvolvimento de

práticas microbianas, singulares e plurais que vão criando a forma de um espaço

vivenciado por um corpo desejante. O “espaço” é o local da ação e da experiência

humanas, no qual são constituídos símbolos que expressam um campo de

conhecimento de uma cultura. Buscar o sentido de uma cultura significa elaborar a

análise de um discurso no tocante ao conjunto de fatores biológicos, psicológicos

e sociológicos pertinentes à realidade do grupo social.

15

O campo de estudo denominado Sociologia dos Sistemas Simbólicos

desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) em A Economia

das Trocas Simbólicas (1974) situa a cultura e o símbolo como instrumentos tanto

de comunicação e conhecimento (consenso), quanto de afirmação de poder,

legitimação da ordem vigente. Segundo Bourdieu: “O processo de simbolização

cumpre sua função essencial de legitimar e justificar a unidade do sistema de

poder, fornecendo-lhe o estoque de símbolos necessários à sua expressão”

(BOURDIEU, 1974, p. LIV). O símbolo se estabelece não só como conseqüência

natural de uma representação social, mas, além disto, como resultado de uma

estratégia ideólogica que procura redimensionar o universo social com o objetivo

de instituir uma forma de dominação.

Neste contexto, podemos nos reportar ao princípio de habitus de Bourdieu

(1974) como um elemento que estabelece a interação entre dois sistemas de

relações: as estruturas objetivas e as práticas. O habitus é o modo pelo qual o

símbolo é apreendido, assimilado pela sociedade, em um processo de

demarcação de novas formas ou práticas sociais, interpretações e intervenções

redimensionadas. É uma leitura e uma prática da realidade com o objetivo de

promover novas significações ao processo de identidade individual e social.

A arte cinematográfica é uma linguagem fundamental para a compreensão

do processo de construção da realidade. Por ser uma “técnica do imaginário”, ou

seja, por apresentar narrativas ficcionais, como também por se estruturar sobre o

imaginário da fotografia e da fonografia, o cinema se constitui como um campo de

investigação da produção simbólica.

Na realidade, a tela do cinematógrafo pode ser considerada como um

“espelho” em referência ao conceito de “estádio de espelho”, de autoria do

psicanalista Jacques Lacan (1901-1981) apresentado em sua obra Escritos

(1998), que é um momento de fundamentação do imaginário. A associação entre o

conceito de “espelho” e o cinema se configura a partir de um processo de

identificação especular (a tela de projeção) da ordem de um “simulacro psíquico”,

no qual o espectador através da manipulação de suas categorias mentais

16

(maquinário mental) interage com o filme de forma a mergulhar em um universo

imaginário, percorrendo uma trajetória de busca de um significante, de uma

elaboração simbólica.

Como comenta o teórico de cinema Christian Metz (1915-1995) em

Psicanálise e Cinema (1980): “O particular do cinema não é o imaginário que ele

pode eventualmente representar, é aquele que antes de mais nada ele é, aquele

que o constitui como significante” (METZ, 1980, p. 58). O cinema se caracteriza

pela possibilidade de acesso ao imaginário e a respectiva constituição do

simbólico no intuito de comunicar ao espectador o ponto de vista do cineasta. Os

símbolos estimulam o sujeito em seu percurso de manipulação da mente e dos

sentidos e proporcionam o aprimoramento do olhar sobre a realidade.

Podemos estruturar o significante do cinema a partir do conceito de Lacan

de “pulsão perceptora” que fundamenta as seguintes categorias sistematizadas

por Metz (1983): “pulsão escópica” (visual) e “pulsão invocante” (auditiva). O

desejo do espectador é estimulado a partir dos recursos da fotografia e da

fonografia que apresentam o material para a elaboração do significante em sua

produção natural de símbolos representativos de uma determinada proposição

estética. O cinema utiliza em sua estrutura significante o conteúdo de diversas

artes, tais como a: pintura, música, fotografia, moda, cenografia e arquitetura. A

estética múltipla e arrebatadora do cinema, representante maior de uma

“civilização da imagem”, provoca no sujeito uma aceleração dos processos

conscientes e inconscientes. O corpo do espectador é invadido por registros

visuais e sonoros que irão trazer material significante para a produção simbólica.

Neste contexto, a cidade (o corpo urbano) aparece como um organismo produtor

de imagens e sons que estimula e qualifica a realidade de vida do homem

contemporâneo.

A subjetividade a ser considerada entre o homem e a cidade explicita, sob o

ponto de vista da corporeidade, o sentido da imagem humana que se dissemina

pelo corpo da cidade. Este é identificado como o corpo maior do homem – um

território de acúmulo de impressões, afetos e experiências. A apropriação do

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corpo da cidade ocorre quando o sujeito se integra ao seu corpo original em um

processo de correlação entre o mundos objetivo e subjetivo. A partir da elaboração

de um discurso próprio (de uma linguagem), se verifica a integração do corpo do

homem ao corpo da cidade. O historiador Richard Sennett em sua obra Carne e

Pedra (1997) estabelece o argumento de que:

(...) a forma dos espaços urbanos deriva de vivências corporais específicas a cada povo (...) Nosso entendimento a respeito do corpo que temos precisa mudar, a fim de que em cidades multiculturais as pessoas se importem umas com as outras. Jamais seremos capazes de captar a diferença alheia enquanto não reconhecermos nossa própria inaptidão. (SENNETT, 1997, p. 300).

O corpo marca o tecido urbano com uma carga de sofrimento, uma energia

afetiva que engendra novas configurações, funções, reformulando a cultura do

espaço. A cidade se justifica a partir do corpo do homem em suas constantes

intervenções cotidianas, na incorporação de mitos de seu mapa, ou seja, na

constituição de um percurso humano.

O “corpo passivo” denominado por Sennett (1997) surge como uma

estrutura corpórea típica da cidade moderna na qual o sujeito não incorpora o

espaço, não assume uma afetividade em relação a ele. O espaço da cidade se

fragmenta por não estar imbuído de uma intenção humana, tornando-se, assim,

destituído do sentido afetivo e social que identifica a natureza da experiência

urbana.

O cinema nos permite identificar e compreender uma realidade que, muitas

das vezes, se torna difícil de assimilar no cotidiano. A cidade vista pelo cinema

aparece para o espectador de forma ampliada, potencializada no tocante ao

conteúdo e à forma do filme. A partir do redimensionamento da noção de tempo

do cinema podemos percorrer diversos lugares da cidade, a forma que o espaço e

o tempo são elaborados possibilita ao homem vivenciar inúmeras realidades e

perceber o contraste no tocante aos “fundamentos sensoriais da vida psíquica” de

18

cada segmento do espaço urbano, conforme nos fala George Simmel em A

Metrópole e a Vida Mental (1967).

O século XX foi, sem dúvida alguma, o século do cinema. Desde o

surgimento da arte cinematográfica a sociedade tem se reportado ao imaginário

social de forma a enriquecer e desenvolver a percepção individual e coletiva.

A modernidade trouxe, através da estética do cinema, a transformação do

olhar do sujeito que resultou em um “novo estatuto para o olhar”. Segundo Leo

Charney e Vanessa Schwartz em O Cinema e a Invenção da Vida Moderna

(2001):

A “modernidade”, como expressão de mudanças na chamada experiência subjetiva ou como uma fórmula abreviada para amplas transformações sociais, econômicas e culturais, tem sido em geral compreendida por meio da história de algumas inovações talismânicas: o telégrafo e o telefone, a estrada de ferro e o automóvel, a fotografia e o cinema. Desses emblemas da modernidade, nenhum personificou e, ao mesmo tempo, transcendeu esse período inicial com mais sucesso do que o cinema. (CHARNEY e SCHWARTZ, 2001, p. 19).

A narrativa do universo do cinema instaura no homem uma ativação do imaginário

e a respectiva produção simbólica, esta experiência subjetiva característica da

modernidade promoveu um salto no tocante ao conhecimento da diversidade da

experiência humana. O espectador recebe a tarefa de capturar do movimento

contínuo de imagens elementos que possam instituir o significante da própria obra

cinematográfica, como também o sentido de um percurso enquanto indivíduo e

agente social. O imaginário urbano se reconfigura com a chegada do cinema que

permite ao homem aprofundar o conhecimento sobre a realidade e criar novas

formas e idéias acerca da arquitetura e da cidade de seu cotidiano.

O objetivo geral desta pesquisa é ampliar o conhecimento da cidade, sob a

ótica do cinema brasileiro, no tocante à forma com que o homem experimenta o

espaço e estabelece sentido à prática urbana. A cidade, enquanto local de

distração, sensação e estímulo, impede o homem de realizar uma apropriação

adequada da realidade. A cidade na tela do cinema constitui um momento no qual

ele pode perceber o mundo a partir de diversos pontos de vista: técnico - distância

19

do objeto, ângulos de câmera, e cor; estilo - ficção, documentário e experimental;

subjetivo - olhar do diretor; antropológico; histórico e psicológico. Esta variedade

de leituras possibilita ao espectador ampliar o conhecimento sobre o objeto urbano

e suas especificidades culturais, visto que em seu cotidiano ele não dispõe de

recursos apropriados para realizar a tarefa de percepção e interpretação plenas da

realidade urbana.

O final do século XX e o princípio do século XXI aparecem na história do

cinema brasileiro como um período marcante em relação ao crescimento da

produção cinematográfica. A atual crise das cidades brasileiras tem sido retratada

em um considerável número de produções de forma sistemática e polêmica, o

universo urbano é considerado em seus aspectos físicos, sociais e culturais,

propiciando um debate público até então incipiente em relação ao tema.

Para o desenvolvimento da pesquisa foi delimitado o período entre 1994 e

2004, década de grande repercussão do cinema brasileiro no exterior e no país. O

período inclui o que é denominado pelos historiadores e críticos os anos da

“retomada do cinema brasileiro”, que vão de 1994 a 1998. O “renascimento do

cinema” se estabelece em relação direta a uma preocupação no tocante ao tema

da “redescoberta da nação brasileira”, as mazelas sociais e as riquezas culturais

da sociedade brasileira voltam a fazer parte das preocupações estéticas dos

cineastas brasileiros. Central do Brasil (1998) de Walter Salles é o filme-símbolo

do período da retomada que faz repercutir a imagem do Brasil para o mundo,

como também para o sentido de identidade social do povo brasileiro.

A partir de uma extensa pesquisa bibliográfica e filmográfica pude fazer

uma seleção criteriosa entre os filmes de ficção do período que tratavam da

cidade enquanto personagem da trama cinematográfica. A seleção levou em conta

a possibilidade de se apresentar uma pesquisa com uma análise inédita de filmes

brasileiros com o objetivo de desenvolver o tema em seus aspectos formais e de

conteúdo. A riqueza do universo imaginário de seus personagens, a forma (a

construção) dos espaços retratados e o estado de solidão e de isolamento vivido

por eles nas cidades em que experimentavam o mundo foram fatores decisivos

20

para a escolha dos filmes. O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti, O Outro Lado da

Rua (2004) de Marcos Bernstein e Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio

Bressane foram os filmes selecionados e que atendiam a todo esse universo de

idéias e conceitos desenvolvidos ao longo da pesquisa. A análise dos três filmes

foi elaborada a partir de um diálogo com obras cinematográficas nacionais e

internacionais que pudessem aprofundar os conceitos tratados. Os filmes ilustram

o meu ponto de vista acerca da importância da qualidade da interação entre o

homem e o espaço urbano e da experiência psicológica decorrente dessa

produção de sentidos.

O filme O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti configura um símbolo de cidade

brasileira degradada na qual o protagonista Gustavo (Eduardo Tornaghi) no

retorno ao Brasil, vindo de Paris, não mais reconhece a cidade de sua juventude.

A realidade é cruel e o diretor quer mostrar a decadência da cidade paulista e de

um grupo social que perdeu de vista os ideais e os lugares nos quais ocorriam a

produção de pensamentos e afetos que poderiam transformar as futuras gerações.

A cidade de São Paulo de Giorgetti aparece como uma cidade-símbolo que

corresponde à realidade do homem urbano contemporâneo, ela é um espelho de

um momento histórico caótico – a “cidade real” do nosso cotidiano.

O cineasta paulista Ugo Giorgetti tem uma longa experiência em

publicidade e iniciou sua carreira no cinema com o documentário Campos Elíseos

(1973) que apresenta a história do bairro conhecido inicialmente como lugar da

elegância paulistana e, posteriormente, transformado como lugar da criminalidade

da Boca do Lixo. Os documentários Edifício Martinelli (1975), Quebrando a Cara

(1983) e Uma Outra Cidade (2000) e as ficções Jogo Duro (1986), Festa (1989),

Sábado (1994), Boleiros (1998), O Príncipe (2002) e Boleiros 2 (2006) formam a

produção cinematográfica do diretor conhecido como um retratista da paisagem

urbana de São Paulo. A cidade e a arquitetura na filmografia de Giorgetti são

personagens que provocam o olhar do espectador com relação ao sentido do

lugar no cotidiano da vida urbana do homem contemporâneo.

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A descoberta do espaço urbano e do amor através da janela de uma mulher

solitária, este é o tema do filme O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein.

A personagem Regina (Fernanda Montenegro), informante da polícia, presencia

da janela de seu apartamento o suposto assassinato de uma mulher doente por

parte de seu marido, o juiz aposentado Camargo (Raul Cortez). A experiência de

um olhar invasor, que lembra o clássico do suspense Janela Indiscreta (Rear

Window, 1954) de Alfred Hitchcock, promove a transformação de uma mulher de

terceira idade na busca de afeto e de sentido para a sua vida. As dificuldades

relativas ao encontro amoroso no espaço da cidade do Rio de Janeiro constituem

uma obra que se caracteriza como uma crônica urbana protagonizada por

personagens de terceira idade de uma grande metrópole.

Marcos Bernstein pertence à nova geração de roteiristas do cinema

brasileiro. Ele se projetou enquanto roteirista a partir do filme Central do Brasil

(1998) de Walter Salles, roteiro em parceria com João Emanuel Carneiro.

Elaborou os seguintes roteiros de filmes de ficção: Terra Estrangeira (1995) de

Walter Salles e Daniela Thomas, Oriundi (1999) de Ricardo Bravo, Crime Nobre

(Noble Crime, 2001) de Walter Lima Jr., O Xangô de Baker Street (2001) de

Miguel Faria Jr., Inesquecível (2006) de Paulo Sergio de Almeida e Zuzu Angel

(2006) de Sergio Rezende. O Outro Lado da Rua (2004) é o seu primeiro longa-

metragem, uma obra de ficção que lança um olhar sobre as janelas e as calçadas

do Bairro de Copacabana nas quais o homem produz experiência social e afetiva.

Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane mostra a experiência

intelectual e urbana do filósofo Friedrich Nietzsche na cidade de Turim entre abril

de 1888 e janeiro de 1889. Nietzsche percorre os becos, as praças e os edifícios

públicos em um processo intenso de produção filosófica no espaço urbano. O

pensamento do filósofo brota do corpo da cidade e da arquitetura evidenciando o

espírito do lugar e a produção permanente do imaginário. Turim no filme de

Bressane aparece como uma obra de arte, um objeto que transcende a mera

materialidade e se apresenta como um elemento de transformação do espírito

humano.

22

O cineasta experimental carioca Júlio Bressane começou a trabalhar no

cinema como assistente de direção de Walter Lima Jr. em Menino do Engenho

(1965) e de Fernando Campos em A Viagem (1965). Junto com Rogério

Sganzerla João Silvério Trevisan e Ozualdo Candeias formaram, nos anos 60 e

70, o movimento denominado Cinema Marginal que se caracterizava por

produções de baixo orçamento no período inicial do movimento, pela noção de

autor lançada no Brasil pelo Cinema Novo e pela forma com que subvertia a

linguagem cinematográfica. Cara a Cara (1967) foi seu primeiro longa-metragem e

que obteve um prêmio especial do júri no Festival de Brasília. Em sua filmografia

destacam-se os seguintes filmes: O Anjo Nasceu (1969), Matou a Família e foi ao

Cinema (1969), Agonia (1977), Tabu (1982), Brás Cubas (1985), O Mandarim

(1995), Miramar (1997), São Jerônimo (1998), Dias de Nietzsche em Turim (2002),

Filme de Amor (2003) e Cleópatra (2007).

Os procedimentos da Filosofia, Teoria Cinematográfica, Psicanálise,

História Cultural (Urbana), Sociologia, Estética, entre outros campos de

conhecimento, aparecem como subsídios teóricos para o desenvolvimento do

objeto de pesquisa. Os conceitos de Michel de Certeau, Pierre Bourdieu, Christian

Metz, Jacques Lacan, Richard Sennett, André Comte-Sponville, Kevin Lynch, Jane

Jacobs, Cornelius Castoriadis, Jacques Aumont, Walter Benjamin, Nobert Elias,

Gaston Bachelard e outros teóricos proporcionaram o desenvolvimento do tema

“Cinema, Cidade e Imaginário” contribuindo para a visibilidade dos estudos da

cidade no cinema, área de pesquisa pouco aprofundada pelos pesquisadores

acadêmicos. O instrumental teórico adotado elabora uma análise da forma e do

conteúdo das obras cinematográficas em questão apresentando um estudo que

amplia o sentido da cidade na vida cotidiana do homem brasileiro.

A tese de doutorado está estruturada em 5 (cinco) capítulos: O capítulo I -

O sonho e a criação da cidade no cinema - apresenta a relação entre a cidade e o

cinema a partir da história da técnica de cinema e de seus reflexos na psique

humana. Ao longo do capítulo são apresentados clássicos do cinema brasileiro e

internacional que evidenciam a trajetória da cidade no cinema no contexto da

23

história da cultura; o Capítulo II - Imaginários da cidade - trata da criação e do

desenvolvimento do imaginário social e urbano se reportando à cidade tradicional,

analisando o papel do corpo do homem na prática do espaço e contrapondo a

memória e o esquecimento na formação da sociedade; o Capítulo III - Ambientes e

fisionomias: a forma cinematográfica - aborda a criação dos espaços (cenografia),

a escolha das locações e o trabalho de produção da fisionomia dos personagens

na cena cinematográfica. Neste capítulo foi elaborado um histórico do projeto de

direção de arte salientando sua importância estética e técnica para a criação da

forma dos espaços, objetos e personagens; o Capítulo IV - Solidão e isolamento –

a vivência do homem nas janelas e nas calçadas da cidade - analisa os conceitos

de solidão e isolamento do homem nos grandes centros urbanos a partir da

arquitetura – a janela e do espaço da cidade – a calçada. A questão do olhar, do

corpo no espaço e do encontro social são discutidos como elementos que

demarcam a prática e o sentido do espaço urbano para a vida do homem; e

Capítulo V – E a paixão continua ... – apresenta as considerações finais da

pesquisa.

O estudo da cidade no cinema brasileiro permite à sociedade ter acesso ao

imaginário social e urbano de forma a constituir uma prática cotidiana em

consonância à realidade cultural e psíquica do homem. O homem é o produtor e,

ao mesmo tempo, o receptor de pensamentos e sentimentos que poderão

transformar a realidade social das cidades brasileiras

24

Capítulo I

O sonho e a criação da cidade no cinema

Todos aqueles que amam a sua arte

buscam a essência profunda da sua própria técnica. Dziga Vertov

25

1.1. Cenas urbanas, cenas do cinema

O movimento do corpo do homem no âmbito do espaço urbano compõe

uma seqüência de imagens que permite construir uma narrativa identificadora de

uma cultura em um determinado momento histórico. O desenvolvimento da

seqüência de imagens forma um quadro representativo da intenção e das

possibilidades humanas em seu espaço. A relação do homem com o espaço

urbano constitui um sistema de signos que representa uma diversidade de formas

de pensar, sentir e agir. A dinâmica desse movimento cria um desenho que traz

vida às linhas que definem a forma da cidade. A arte cinematográfica captura o

espírito das imagens que pulsa em um momento de apropriação do espaço.

O cinema, enquanto linguagem que se reporta ao real, apresenta uma

elaboração estética dos elementos (signos) que caracterizam a cultura da vida na

cidade. As cenas urbanas são o material primordial de experimentação das

possibilidades técnicas e estéticas que o cinema materializa para o aprimoramento

do ponto de vista do espectador diante das cenas do cotidiano. A cidade é o lugar

da sistematização do recorte do espaço e do movimento incessante dos objetos

que imprimem ritmo ao percurso do olhar. O olhar do homem é redimensionado a

partir do olhar investigativo da câmera em relação ao objeto urbano.

Os signos podem oferecer um conjunto de significados para uma análise

sistemática da cidade. A questão fundamental é apreender a natureza

essencialmente significante do espaço, promovendo uma semântica urbana na

intenção de se procurar a imagem da cidade em seus usuários. A busca de uma

legibilidade significa reencontrar no espaço urbano o que o semiólogo francês

Roland Barthes (1915-1980) em sua obra A Aventura Semiológica (1987)

denomina de “unidades descontínuas” que são os caminhos, fechamentos,

bairros, pontos de referência, a realidade física e cultural construída pelo homem.

Esta prática possui um enunciado a ser apreendido pelo leitor da cidade o qual o

26

semiólogo considera como uma “fonte de erotismo”, um ensinamento a ser

adquirido a partir da natureza metafórica do discurso urbano.

O caráter erótico de uma prática aparece através da interação afetiva entre

o sujeito e a cultura do espaço, um processo de apropriação da forma e do

conteúdo da experiência humana na cidade. Erotismo, enquanto uma força de

natureza da ordem de um lirismo amoroso, promove um movimento que cria um

laço, uma comunicação afetiva entre o sujeito e o lugar de produção da vida. O

espaço e os objetos que formam o universo da realidade urbana se tornam

elementos eróticos quando ocorre uma nomeação afetiva e cultural por parte do

grupo social. O envolvimento produzido ultrapassa o mero sentido funcional do

espaço e atinge o lugar da produção simbólica, o que constitui a representação

genuína do imaginário social.

A praça na história de uma cidade aparece como lugar do exercício do

afeto, da prática social onde o lúdico e o contemplativo regem a dinâmica da

organização do espaço. As interações afetivas ocorridas ao longo de uma praça

imprimem ao lugar um sentido erótico, pois ela seduz os seus usuários para um

encontro marcado pela disponibilidade pelo outro e para si mesmo. Esta abertura

do espírito humano é decorrente da própria natureza (do desenho) do lugar que

propicia o movimento erótico, afetivo, em relação ao ambiente e aos atores que

praticam o lugar desse encontro.

Os elementos os quais Barthes (1987) se refere – “as unidades

descontínuas”, e que caracterizam a cultura do espaço urbano são constituídos a

partir do desenho, da escrita da cidade. Todos os objetos que desempenham uma

função no desenho da forma urbana resultam de uma “técnica de montagem”

realizada por um especialista da área de urbanismo que permite a formação de

cenas do cotidiano que irão imprimir significado à forma original. A montagem dos

objetos da cena urbana é uma técnica que promove o exercício de uma prática

erótica constituidora de uma narrativa coletiva do espaço. Os fragmentos de cenas

da cidade se constituem como planos que serão montados para atender às

funções narrativa, metafórica, rítmica ou plástica necessárias para o

27

desenvolvimento da linguagem do cinema, a poética do espaço é o insumo para a

montagem das cenas poéticas do cinema. A captação de imagens da realidade da

vida urbana é a matéria bruta para o exercício e a construção de uma estética que

tem como objetivo mostrar a representação do mundo sob um olhar subjetivo e

poético.

O espaço urbano, enquanto ambientação - cenário natural, concentrador da

vida do homem contemporâneo, visto que a grande maioria da população mundial

vive nas cidades, aparece como um grande set de filmagem, um espaço propício

para o ato cinematográfico. Os olhos humanos são lentes que detectam e

presenciam cenas preciosas da dramaturgia cotidiana, cenas poderosas que

podem elucidar, sob a ótica do cinema, as nuances e o sentido da narrativa

humana. A narrativa cinematográfica pode se inspirar na narrativa do cotidiano na

tentativa de provocar um êxtase do sujeito diante do filme e da vida. A produção

do cotidiano do homem torna-se, assim, material significante para o processo de

criação artística e para a compreensão do fenômeno urbano.

O cinema surge no momento em que o desenvolvimento das cidades

começa a se estruturar com maior visibilidade. O frenesi urbano – o ritmo e a

forma de viver nas cidades, aparece como insumo para a criação do cinema. O

movimento das imagens (cenas) urbanas está relacionado ao movimento das

imagens do cinema. A técnica do cinema reflete a necessidade da sociedade de

criar um instrumento que possa captar e mostrar imagens que simbolizem o

dinamismo típico de uma época. As cidades se apresentam como tema das

primeiras imagens captadas pela tecnologia nascente, elas aparecem como objeto

de interesse dos pioneiros do cinema, contribuindo para a afirmação de uma arte

que amplia o sentido de realidade, linguagem que propicia um diálogo entre o

mundo interno do homem e o mundo material.

A arte cinematográfica registra e divulga informações, situações e

significados que, muitas das vezes, não são apropriados pelo olhar humano em

seu cotidiano. Ela aparece como elemento de expansão do acesso e da

compreensão do mundo, de aprimoramento das acuidades visual, auditiva e

28

mental e de sensibilização do afeto humano. O teórico francês de cinema, pintura

e imagens, Jacques Aumont, em A Estética do Filme (1995), afirma que:

O cinema foi inventado para uma coisa, uma única coisa: mostrar o mundo tal qual é. A vocação é tão forte, tão irresistível, que nem os gêneros “irrealistas”, nem as cinematografias expressionistas, nem os excessos de truques puderam livrar o cinema desta vocação (gênio de Cocteau cineasta: ter compreendido que o cinema não devia produzir a magia, mas partir da magia, como de alguma coisa que fosse do mundo). (AUMONT, 1995, p. 23)

O cinema é o espelho do mundo, um quadro gerador de sentido e de desejo, uma

arte que propicia um conhecimento maior da dimensão humana e do poder

extraordinário (mágico) do cotidiano da vida. A estética do cinema reflete a

capacidade humana de transformar gestos, palavras e movimentos em momentos

mágicos que constituem material significante para a conhecimento da realidade. O

espaço das cidades é o cenário no qual o homem experimenta práticas que irão

instituir o potencial mágico de produção de novos contextos sociais. O cinema

capta e elabora imagens reveladoras de uma forma de criar sentido às

representações do homem em seu ambiente. O potencial estético e técnico que a

arte do cinema utiliza em seu processo de criação permite que a fonte de magia

inerente à vida urbana seja materializada e disseminada através da forma e do

conteúdo das imagens. O sutil, o poético do cotidiano é revelado pela composição

do enquadramento das cenas filmadas.

Podemos considerar a tela do cinematógrafo como espelho do mundo e

fazer referência ao conceito elaborado por Jacques Lacan de “estádio de espelho”

que constitui um momento de fundamentação do imaginário, segundo ele um

processo de identificação do homem com seu universo físico. Lacan discorre

sobre o conceito:

Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assum28e uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago. (LACAN, 1998, p.. 97)

29

O espelho, enquanto superfície reflexiva, traduz a realidade do homem diante da

constatação de sua imagem e da forma com que ele se apropria do corpo

representado no aparelho especular. A imagem do corpo refletido no espelho

institui um caminho no qual o corpo se apresenta como um instrumento de

apropriação do cotidiano (espaço) do universo psíquico e social do sujeito. A

consciência de sua imagem comunica ao outro as diversas possibilidades de

contato que possam construir um processo de significação da existência individual

e coletiva.

Em relação ao cinema, o conceito de “estádio de espelho” pode se

configurar a partir de um processo de identificação especular (a tela) na qual o

sujeito, através da manipulação de suas categorias mentais e sensoriais, interage

com o filme de forma a mergulhar em um universo imaginário, percorrendo uma

trajetória de busca de significante e elaboração simbólica. A transformação do

espectador acontece quando há uma apropriação dos conteúdos estéticos a partir

de referenciais culturais e psicológicos próprios, e o que ele vê na tela do cinema

é a realidade de uma narrativa imaginária e não a imagem do seu corpo. Esta é

uma diferença importante quando se aplica o conceito lacaniano no âmbito do

dispositivo cinematográfico.

Por outro lado, temos duas características comuns apresentadas por Lacan

(1998): a “submotricidade” – a redução da atividade motora e a “superpercepção”

– a predominância das funções visuais e auditivas, a suspensão da interação

(movimentação) do corpo no espaço é compensada pela concentração nos

sentidos do ver-olhar-ouvir. Estes sentidos aparecem como elementos

predominantes que estabelecem o contato entre a estética cinematográfica e o

espectador.

A estruturação do significante do cinema pode ser elaborada a partir do

conceito lacaniano de “pulsão perceptora”, o qual fundamenta as categorias

desenvolvidas por Christian Metz (1983) de “pulsão escópica” (visual) e de “pulsão

invocante” (auditiva). O desejo do espectador é estimulado a partir dos recursos

da fotografia e da fonografia que apresentam o material para a elaboração do

30

significante em sua produção natural de símbolos representativos de uma

determinada proposição estética e técnica. Ele passa por um processo de

direcionamento dos sentidos visual e auditivo para se apropriar da narrativa

simbolizada na tela do cinema; temos uma superpercepção que radicaliza o

momento interior do espectador e institui o momento mágico da arte e da vida.

Segundo Metz, cujo trabalho trata de uma semiologia do cinema que utiliza

os procedimentos da lingüística e da psicanálise, a “pulsão de olhar” e a “pulsão

auditiva” se constituem no âmbito da mise-en-scène do espaço, da experiência

dramática e sensorial do lugar da cena. O teórico elucida esta correlação:

(...) Já no caso das outras pulsões, como na pulsão de olhar ou nas pulsões auditivas, tem-se uma mise-en-scène espacial. Nas artes, na pintura, no teatro – em todas as artes ligadas aos sentidos da distância (visão e audição) – observa-se essa lacuna espacial, essa mise-en-scène da distância. O ato de olhar implica precisamente uma distância. Se nos achamos demasiados próximos de um objeto, não o vemos mais. O ato de ouvir implica precisamente uma distância. Assim, acho que todas as pulsões fundamentam-se nessa relação perdida com o objeto. Em certas pulsões, há uma mise-en-scène espacial concreta desse liame perdido. Em outras pulsões, naquelas relacionadas com os sentidos do contato, pode-se chegar mais facilmente à ilusão ou à impressão de uma relação diversa com o objeto. (METZ, 1983, p.430)

O espaço criado pela narrativa imaginária do cinema é vivenciado pela

imobilização motora e pela mobilização intensa dos sentidos da visão e da

audição. A busca da forma e do sentido do objeto na tela é incrementada pelo

aguçamento desses sentidos que acompanham o desenvolvimento da construção

da narrativa. O espaço da experiência fílmica é o espaço do exercício do

olhar, ouvir e perceber o significado transcendente das imagens em

movimento. Os recursos técnicos do cinema levam o espectador a experimentar

o percurso de uma cena, o movimento dos personagens em sua relação com o

espaço e os objetos. A qualidade do sentido do olhar, ouvir e interagir é invocada

a partir da mise-en-scène que caracteriza a narrativa de uma história. A técnica

cinematográfica amplia o canal de comunicação entre o conteúdo perceptivo da

cena (olhar e ouvir) vivenciado pelos personagens, lugares e objetos e a recepção

do conteúdo dramático pelo espectador.

31

A cidade é o universo no qual o homem vivencia uma profusão de imagens,

sons e percepções que dinamizam sua capacidade de dar sentido e transformar a

realidade. O cenário que contextualiza o modo de vida do homem urbano é

marcado por referenciais físicos, sociais e culturais que anunciam as diversas

possibilidades de poder construir cenas imaginárias no cinema. O antropólogo

Jean-Paul Colleyn apresenta algumas questões sobre o interesse dos cineastas

pela cidade:

O que é abordar um objeto, um espaço, uma cidade? O que é circular e o que é inventar trajetos? E por que a cidade atrai tanto os cineastas? Sem dúvida porque todos os temas essenciais ligados ao reencontro do tempo com o espaço aí se encontram condensados e o que se tem a fazer é escolher os trajetos, os itinerários, os buracos, os interiores, os exteriores. (COLLEYN, 1997, p. 206)

As marcas do tempo e as configurações do espaço se apresentam como

elementos de um processo de representação da realidade. O cinema reproduz a

cidade sob novos ângulos e pontos de vista oferecendo ao espectador material

para o redimensionamento do olhar e a respectiva transformação da forma de

intervir no mundo. Os trajetos, os itinerários, os buracos, os interiores, os

exteriores, ou seja, as “unidades descontínuas” que nos fala Barthes (1987) são

signos do espaço urbano a serem apreendidos pelo sujeito. Esses elementos

quando enquadrados na tela do cinema sofrem um processo de potencialização

de seus significados constituindo, assim, uma redescoberta do espaço pelo

homem. O cinema exerce, então, a função de uma arte que mostra para ele o que

é impossível de ver e olhar no cotidiano da vida urbana.

O percurso do homem na cidade, os lugares simbólicos e o cotidiano do

povo carioca são temas de Rio, 40 Graus (1955) de Nelson Pereira dos Santos,

produção que é um marco na história do moderno cinema brasileiro. O filme é o

início da trajetória do cineasta marcada por obras – ficcionais e documentais, que

tematizam o universo social e político e a literatura brasileira. Rio, 40 Graus

(1955), Rio Zona Norte (1957), Vidas Secas (1963), Como era gostoso o meu

francês (1972), O Amuleto de Ogum (1974), Memórias do Cárcere (1984), dentre

32

outras produções, apresentam o olhar de Nelson Pereira dos Santos sobre a

cultura e a realidade da vida brasileira.

Rio, 40 Graus (1955) mostra a história de cinco vendedores de amendoim

da favela do Morro do Cabuçu na busca de sobrevivência material e social em um

domingo de forte calor. Os jovens negros percorrem os pontos turísticos da cidade

oficial: Quinta da Boa Vista, Copacabana, Maracanã, Pão de Açúcar e Corcovado

para realizar um contraponto com a cidade real dos habitantes da favela. As

diferenças sociais, étnicas e geográficas são exploradas em contraste com

personagens que representam a burguesia da grande cidade. Segundo a

pesquisadora Mariarosaria Fabris, o filme mostra o espaço da favela de forma

realista, trazendo a voz do morro em toda a sua representação cultural:

(...), a câmera de Nelson Pereira, ao acompanhar o perambular pelas ruas da então capital federal dos pequenos vendedores de amendoim, traçava um painel das várias camadas sociais do país, mostrando não só o ritual de espoliação a que as comunidades marginalizadas pela cidade burguesa estavam sujeitas, como a solidariedade intraclasse, que as ajudava a sobreviver. (FABRIS, 2005)

Os trajetos percorridos pelos vendedores de amendoim representam o mapa

oficial dos elementos simbólicos da cidade do Rio de Janeiro. Os espaços

vivenciados por eles recebem a marca da experiência humana de quem vive numa

cidade, mas está impedido de transitar junto aos outros segmentos da população.

O filme mostra a realidade dos habitantes da favela e a possibilidade de uma

integração, mesmo que esta seja conflitante. O espaço do Morro do Cabuçu

aparece como integrante de uma rede urbana de diversos espaços portadores de

um discurso social, cultural, afetivo ou econômico próprio. A inspiração do neo-

realismo italiano permite que atores não profissionais participem da produção e

tragam um relato mais documental do que uma simples montagem ficcional. Essa

espontaneidade da experiência e do discurso da população negra do morro coloca

a cultura dos excluídos frente à cultura oficial. A cidade deixa de ser um mero

cartão postal e se torna uma cidade mais humana e marcada pela diferença, pela

realidade social, cultural e econômica dos diversos segmentos da população. O

33

filme constitui uma estética que amplia o significado da função da arte enquanto

elemento de investigação do mundo.

O quadro da imagem cinematográfica institui um olhar investigativo sobre a

representação estética do mundo. O recorte de uma cena representa a forma com

que o diretor ilustra seu ponto de vista em relação às especificidades estéticas e

técnicas da narrativa do filme. Aumont diz que a técnica do enquadramento

estabelece o campo do imaginário,

(...) institui uma relação entre a posição da câmera e a do objeto; o enquadramento cria uma superfície de contato imaginário entre as duas zonas: a do filmado e a do que filma. (...) O quadro é, antes de tudo, limite de um campo, no sentido pleno que o cinema nascente não tardaria em conferir à palavra. O quadro centraliza a representação, focaliza-a sobre um bloco de espaço-tempo onde se concentra o imaginário, ele é a reserva desse imaginário. (AUMONT, 2004, p. 39)

O objeto (a cidade) é deslocado do mundo real para o mundo imaginário do

cinema a partir da intervenção da técnica – os recursos da câmera, que

transcende sua função original de mera estrutura material para se tornar veículo

da arte. O quadro captura o imaginário apresentando um momento revelador do

sentido da história, identificado a partir de um recorte espacial e temporal, que

conduzirá o olhar do espectador em direção a um percurso no qual ele vai

adquirindo conhecimento do universo imaginário que está sendo criado.

O homem diante da tela de cinema se apropria através de seus sentidos de

um determinado “lugar” da cena. Este ato de apropriação transforma o “lugar” em

“espaço”, o qual é constituído a partir de uma experiência sensorial, mental e

afetiva que produz sentido à forma e à função do “lugar” da narrativa. O

procedimento teórico da “prática do lugar” elaborado por Michel de Certeau (1994)

apresenta uma forma de se elaborar a nomeação pelo sujeito (espectador) dos

elementos funcionais e simbólicos da vida urbana. A cidade simbolizada no

cinema é proveniente do ponto de vista do diretor que oferece ao espectador uma

imagem-símbolo de uma cidade a ser vivenciada. A forma narrativa apresentará

os elementos técnicos e estéticos que irão fornecer subsídios para a crença ou

34

não em uma cidade imaginária. A criação de mitos e símbolos resultante da

vivência do “lugar” promove a estruturação de uma narrativa que justifica a

presença de um determinado sujeito e objeto no contexto urbano. O “espaço”

nomeado pelo espectador é o “espaço” resultante de uma crença em uma imagem

que toca os sentidos e o afeto de quem se dispõe a olhar e vivenciar o “lugar” da

narrativa.

O filósofo Walter Benjamin (1892-1940) ao longo de sua vasta obra

relaciona a experiência de passear pelas ruas à experiência de ver um filme. O ato

de flanar na cidade sugere uma interação afetiva (erótica) com o ambiente a partir

do movimento do corpo e do direcionamento do olhar. Esta experiência constrói

uma narrativa indentificadora de um momento histórico, de uma cultura produzida

pelo grupo social. O sujeito ao ver um filme vive uma experiência - uma “aquisição

cognitiva”, resultante de uma forma sensorial e afetiva de flanar através de uma

narrativa cinematográfica. Ele sonha de olhos abertos e vê uma cena imaginária

de uma história que ele poderá viver.

As duas experiências permitem o mergulho do homem em um universo

narrativo (imaginário) sob a supremacia de um olhar extasiado diante das imagens

(cenas) em movimento. Andar pela cidade pode significar a possibilidade de

criação de uma história a ser narrada através do cinema. O homem articula o

movimento do corpo e a produção de pensamento ao se deparar com o cenário

urbano instituindo, assim, um momento de percepção do real significado da vida

na cidade. O cinema captura o trajeto da experiência humana no que se refere à

articulação com o espaço e o tempo da narrativa urbana.

Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro a partir do movimento da câmera

do cinema é o que nos proporciona o documentário Cidade do Rio de Janeiro

(1948) de Humberto Mauro que traça um panorama das diversas paisagens que

integram o espaço urbano carioca. O percurso pela geografia da cidade é um

momento de celebração da memória no que ela pode contribuir para o exercício

do afeto do homem pela sua cidade, uma celebração no sentido erótico da

paisagem do lugar. O ponto de vista da câmera é mostrar a cidade em seus

35

diversos quadros de paisagem que elucidam a forma e a função dos espaços. A

narrativa do documentário procura seduzir o espectador para o exercício de

promoção da memória urbana e a respectiva apropriação do espaço pelo homem

no cotidiano da capital do país. Assistir ao filme Cidade do Rio de Janeiro é poder

passear pelas ruas e pelos lugares representativos de uma cidade que é exibida

pela história de sua paisagem, costumes e personagens que constituem a

identidade brasileira.

1.2. O sonho e a tėcnica no cinema

A experiência de ver um filme está relacionada ao espaço no qual o homem

passa por uma vivência onde o seu desejo é ativado e regulado pela natureza

metapsicológica do cinema. A arte cinematográfica produz uma simulação técnica

do sonho em um espaço concebido para que o “sujeito desejante” – aquele que se

apropria do objeto fílmico, vivencie a representação do mundo e seja estimulado

por fortes efeitos subjetivos. O espectador é o agente receptor de um acervo

imagético que será transformado em material significante a partir da elaboração de

cenas imaginárias. O imaginário do filme conduz o olhar do observador por um

percurso de assimilação do conteúdo narrativo em sua expressão plástica.

O êxtase vivido pelo espectador aparece como uma experiência onírica na

qual fantasias e emoções são ordenadas pela estrutura da linguagem do cinema.

O sonho produzido durante o filme acontece em um espaço da técnica, um lugar

praticado pelo homem através dos sentidos. O pensador e analista Félix Guattari

(1930-1992) em Caosmose – um novo paradigma estético (1992) comenta sobre a

relação entre o corpo e o espaço:

A abordagem fenomenológica do espaço e do corpo vivido mostra-nos seu caráter de inseparabilidade. Por exemplo, no sono e no sonho, o corpo fantasmado coincide com as diferentes modalidades de semiotização espacial que ponho em funcionamento. A dobra do corpo sobre si mesmo é acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários. (...) No cinema, o corpo se

36

encontra radicalmente absorvido pelo espaço fílmico, no seio de uma relação quase hipnótica. (GUATTARI, 1992, p. 153)

O momento do sonho no cinema surge com o afastamento do espectador de sua

realidade e a respectiva inserção em uma narrativa estética da ordem do

imaginário. O corpo do homem é tomado pelo universo do filme que engendra,

através das diversas técnicas que caracterizam a linguagem cinematográfica, um

processo de ressiginificação das categorias de espaço e de tempo. A técnica do

cinema conduz o olhar do homem para uma vivência de um estado onírico no qual

o contato com o imaginário aparece como um elemento que o qualifica para a

produção de novas realidades. A experiência fílmica proporciona um

enriquecimento da vida psíquica e social do homem em seus embates cotidianos

na busca de significação de seus sonhos.

Os psicanalistas Chaim Samuel Katz e Jurandir Freira Costa em recente

entrevista Sem Mistério nem Sacrifício (2005) levantaram a questão de que o

sonho produzido pelo homem contemporâneo está perdendo presença na clínica

psicanalítica e na vida, os sonhos já não são rememorados, invocados como em

outros momentos históricos. A forma narrativa de elaborar o material onírico pelo

sujeito não tem mais o mesmo significado de antes, o sonho se tornou um fato

comum, um elemento que não causa mais o mesmo espanto, os relatos

diminuíram e o impacto resultante proporciona pouca surpresa e inexpressivo

incômodo para o homem. Katz afirma:

Eu diria que os adultos se surpreendem menos. Curiosamente, também, as crianças, por causa das novas linguagens às quais elas estão sujeitadas, a televisão, o computador, a internet. Aí a criança aprende a sua vivência, o seu inconsciente. Com isso o sonho não é mais surpresa, ele entra permanentemente por meio de outras modalidades. (KATZ , 2005)

Percebemos que a linguagem audiovisual proveniente da televisão, vídeo,

computador – internet, cartazes informativos, terminais eletrônicos e painéis de

alta definição passou a exercer um papel preponderante no tocante à produção de

imagens a serem apropriadas pelo homem. O movimento interno de geração de

37

imagens oníricas é influenciado pelo fluxo externo de imagens do cotidiano

tecnológico. O sentido de elaboração e individuação próprio à função do sonho na

vida do homem não encontra uma contrapartida nas imagens eletrônicas, elas

oferecem uma forma pradonizada (coletiva) de recepção de conteúdos. Essas

invenções da indústria da informação demarcam uma linguagem caracterizada

pela velocidade, por um ritmo frenético de estímulos visuais e sensoriais que

entorpecem o olhar. Por outro lado, a linguagem cinematográfica possibilita um

processo de significação de conteúdos estéticos para o desenvolvimento do

universo psíquico e social do homem, a técnica do cinema consegue criar uma

atmosfera de produção imaginária que traz sentido ao percurso de individuação. O

surgimento do cinema trouxe uma revolução na forma de olhar e de pensar o

mundo.

Em 1895, a partir da invenção do cinema, a modernidade toma novos

rumos na sociedade francesa trazendo um sentido transformador da realidade

cultural e social. A imagem precursora do cinema A chegada de um trem a Ciotat

(L’ Arrivée d’ un train à La Ciotat, 1895) produzida pelo cineasta, desenhista e

fotógrafo Louis Lumière (1864-1948) provoca no público espanto diante das

possibilidades de percepção das figuras humanas e dos objetos filmados. Lumière

é considerado por Aumont o inventor do cinema:

(...) porque ele é aquele que mais se aproxima da conjunção ideal dos três momentos maiores dessa invenção: imaginar uma técnica, conceber o dispositivo no qual ela será eficaz e perceber o objetivo em vista do qual essa eficácia se exerce. (AUMONT, 2004, p. 30)

A transformação revolucionária do olhar do artista (diretor) e do espectador

aparece como decorrência do caráter transcendente da técnica do cinema. O

aparato tecnológico da arte cinematográfica é apenas a base para a conquista de

uma outra técnica, a técnica do exercício do olhar, uma experiência que

transcende o real em direção ao campo do imaginário. O homem passa a

vivenciar sonhos engendrados por uma tecnologia que cria imagens

representativas do mundo. A natureza psíquica já não tem mais a supremacia na

38

produção de sonhos; o cinema aparece como uma nova forma de se produzir

estados oníricos.

O filme A chegada de um trem a Ciotat (L’ Arrivée d’ un train à La Ciotat,

1895) de Lumière mostra a chegada de um trem vindo de Marselha e a espera dos

passageiros na estação de Ciotat. A forma com que os elementos são

enquadrados sugere uma precipitação do trem no espaço da sala de exibição. O

pavor causado nos espectadores decorre da dinâmica de uma perspectiva cujo

sentido é invertido, uma técnica que transmite a idéia de precipitação do trem para

fora do quadro (campo), um movimento que constitui o “transbordamento da

imagem”, ou seja, o trem e os passageiros interagem (atravessam) os limites do

quadro. Toda esta configuração estética demarca o uso do “fora de campo” como

um elemento técnico que traz para a narrativa do filme o sentido e a função do

universo do imaginário. O espaço da cena cinematográfica aparece como uma

nova forma de se poder interagir e perceber o espaço do cotidiano da vida do

espectador.

O cinema retrata o espírito de uma época mostrando não só suas

possibilidades estéticas e técnicas, mas também o surgimento de inovações que

trouxeram novas possibilidades de experiências sociais. A estrada de ferro é um

elemento precursor nas imagens em movimento, um dos componentes que

demarca a modernidade no final do século XIX. O telégrafo, o telefone, a estrada

de ferro, o automóvel, a fotografia e o cinema são inovações emblemáticas desse

momento que provocam um redimensionamento do universo social, econômico e

cultural do homem. Um jornalista da época comenta sobre a nova tecnologia do

cinema que aparece como um instrumento de reprodução da vida:

Quando esses aparelhos forem entregues ao público, quando todos puderem fotografar os seres que lhe são caros, não mais em sua forma imóvel, mas em seu movimento, em sua ação, em seus gestos familiares, com a palavra nos lábios, a morte deixará de ser absoluta. (jornalista anônimo apud TOULET, 1998, p. 17)

39

A descoberta do cinema estimula o desejo de se poder conhecer e dominar as

forças da natureza. A influência das imagens em movimento na psicologia humana

amplia o conhecimento de si próprio, do outro e proporciona um

redimensionamento da realidade social. Olhar as imagens na tela significa encher

os olhos de esperança diante dos embates entre a vida e a morte percorrendo,

assim, a dimensão do infinito da existência. A vivência do espectador percorre um

trajeto que vai ao encontro do espírito de Eros – momentos afetivos e

harmoniosos, e do espírito de Tanatos – momentos de combate e de provação,

proporcionando o refinamento da capacidade de pensar e de sentir o mundo. O

espectador experimenta energias opostas e complementares do universo da

experiência humana que proporciona o fortalecimento do sentido de identidade da

vida em sociedade e a delimitação de um ponto de vista refinado engendrando

formas de conhecimento e domínio das forças da natureza. A arte do cinema

produz uma experiência estética e imaginária que estimula o espírito do homem a

ampliar a qualidade do contato com o mundo.

O espanto inicial dos franceses ao receber as imagens de sua própria

realidade significou uma mudança de paradigma psicológico e ótico. Até então, a

fotografia, criada em 1839, apesar de ser o primeiro meio de reprodução

verdadeiramente revolucionário, não proporcionou o sentimento de estranheza e

atração que o cinema trouxe para o público. O movimento dos corpos humanos e

dos objetos na tela era uma imagem refletida do próprio cotidiano da vida dos

espectadores, o olhar do homem sofreu um processo de ressignificação do

sentido e da forma de perceber a realidade. A fotografia aparecia como uma

imagem estática - segundo André Bazin (1983), ela concentrava um tempo

“embalsamado”, e o cinema como uma imagem dinâmica (animada) – detentora

de um tempo que alimentava o desenvolvimento da história a ser narrada. Ambas

as linguagens elaboram um diálogo com o instante explorando a forma com que

ele é capturado. O instante único da fotografia que promove a eternidade de uma

amostra de uma história de vida; e o instante do cinema que está em constante

processo de significação de sentido. A imagem do cinema apresenta uma

40

diversidade de pontos de vista, ela amplia a posição fixa do olhar do espectador

promovendo uma vivência do universo imaginário do filme.

A construção de sentido da estética cinematográfica se dá a partir tanto do

ponto de vista do criador da obra quanto do espectador. O universo imagético

constituído no quadro representativo da cena cinematográfica é o material que o

diretor concebe para o exercício do olhar de quem interage com um fluxo de

imagens reveladoras de pensamento e emoção. A natureza da linguagem do

cinema influi no processo de consciência humana como comenta o neurologista

americano Oliver Sacks no artigo A Torrente da Consciência (2004), considerado

um dos maiores escritores clínicos do século XX:

Um filme, com seu fluxo constante de imagens tematicamente integradas, sua narrativa visual integrada segundo os pontos de vista e os valores do diretor, não é uma má metáfora para designar o próprio fluxo de consciência. (...) Apreendemos o movimento, assim como apreendemos a cor ou a profundidade, como uma experiência qualitativa única que é vital para nossa consciência visual. (SACKS, 2004)

A consciência visual que o cinema proporciona ao espectador está diretamente

relacionada à consciência do indivíduo frente a sua realidade. Os estímulos

estéticos e técnicos são elementos que alimentam o processo de desenvolvimento

da consciência e redimensionam o olhar em relação à forma e ao conteúdo da

experiência humana. A composição plástica do filme é o lugar no qual ocorre o

exercício do refinamento da percepção visual de quem elabora o significado da

obra. A experiência do espectador imerso em um espaço da técnica – formado

pelo projetor, pela ambientação da sala de exibição e pela tela, demarca um clima

de transcendência que constitui um momento de elaboração do estado interior do

observador das imagens em movimento. O ato de olhar as cenas (imagens) de um

filme é o canal de constituição do processo de criação e recepção da obra

cinematográfica.

A modernidade marca o tempo da reprodutibilidade técnica que promove a

emancipação da imagem em um percurso de ativação dos padrões inconscientes

da forma de olhar e captar a realidade. O significado da questão ótica passa tanto

41

pela câmera quanto pelo olho humano. Benjamin (1992) associa a câmera ao

inconsciente ótico e o olho ao inconsciente relativo às pulsões – o universo da

psicanálise. A câmera é um instrumento científico, um “olho” que capta de maneira

objetiva imagens do mundo. Os recursos estilísticos e formais que ela detém

podem ser considerados como um potencial subjetivo que redimensiona o caráter

objetivo de formação da imagem. O olho do espectador é o canal de recepção do

material imagético que processa uma elaboração dos conteúdos recebidos a partir

dos sentidos visual e auditivo, dos pensamentos e das emoções. O sujeito da

experiência cinematográfica passa por momentos de intenso dinamismo de sua

atividade psíquica que o leva a uma interpretação particular das cenas narradas.

O aparato da técnica é a base para que se possa superar o sentido estritamente

objetivo do real e caminhar em direção ao universo do imaginário. Desta forma,

percebemos que o filme é o resultado do ponto de vista da câmera e do

espectador que criam um discurso constitutivo da linguagem cinematográfica. Não

podemos deixar de lembrar do ponto de vista ideológico de quem manipula a

câmera. Apesar dela ser um instrumento científico – um “olho mecânico”, o

processo de captação e tratamento das imagens é conduzido pelo diretor que

imprime um pensamento, uma visão de mundo.

O cineasta soviético Dziga Vertov (1896-1954) em Resolução do Conselho

dos três (1983) denomina a câmera como um “super-olho”, um instrumento que

concentra qualidades tecnológicas próprias intermediadas pelas qualidades

fisiológicas do homem (cérebro). O operador da câmera e o diretor são os

responsáveis pela sistematização das capacidades tecnológicas e fisiológicas.

Vertov considera a imagem cinematográfica um elemento de compreensão e de

análise da realidade (cinema-verdade) mostrada e elaborada a partir da câmera.

Esta tecnologia revolucionária – “o super-olho”, sistematizada em sua teoria,

aparece como um instrumento necessário para se ampliar o sentido e a projeção

da história da humanidade. O registro de imagens através do cinema permite que

a construção da história possa ter seu percurso subsidiado por relatos

audiovisuais que sejam testemunhos de um momento histórico.

42

Vertov foi considerado um designer da imagem e do som por acreditar na

arte do cinema enquanto técnica que organizava os movimentos entre as imagens

- a tese dos intervalos, e detentora de uma série de recursos artísticos rítmicos

pertinentes à forma e à função de cada objeto. O som aparece como um elemento

que complementa o sentido da realidade no tocante ao que “o olho não vê”. O

cinema-verdade difundido por ele traz sua experiência realizada no Laboratório do

Ouvido no qual pesquisava o som dos lugares, desde a fala humana até os ruídos

das ruas e das fábricas. O importante é a qualidade de percepção da realidade e o

papel da câmera neste processo, o cineasta discorre sobre sua teoria:

O principal, o essencial é a cine-sensação do mundo. Assim, como ponto de partida, defendemos a utilização da câmera como cine-olho, muito mais aperfeiçoada do que o olho humano, para explorar o caos dos fenômenos visuais que preenchem o espaço, o cine-olho vive e se move no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que colhe e fixa impressões de modo totalmente diverso daquele do olho humano. A posição de nosso corpo durante a observação, a quantidade de aspectos que percebemos neste ou naquele fenômeno visual nada tem de coercitivo para a câmera, que percebe mais e melhor na medida em que é aperfeiçoada. (VERTOV, 1983, p. 253)

A câmera é um aparelho – um “olho mecânico”, que surge para ampliar o que olho

humano não consegue captar e elaborar. Ela revoluciona o olhar do sujeito frente

à realidade preenchendo as lacunas – os vazios de sentido, da existência

humana. A teoria do cine-olho é um procedimento teórico não só de percepção

visual, mas também de percepção auditiva, no tocante ao registro dos elementos

sonoros que compõem e estimulam o olhar do espectador na busca de

compreensão do mundo.

Em 1916, o psicólogo alemão Hugo Münsterberg (1863-1916) elaborou a

primeira obra de teoria sistemática de cinema denominada “The Photoplay: a

Psychological study”. Münsterberg (1983) considera o processo cinemático como

um processo mental, ou seja, o cinema é a arte da mente. O filme é um objeto

mental elaborado a partir de uma “atenção extasiada” vivida pelo espectador que

desempenha um papel fundamental no tocante à organização das imagens,

imprimindo no universo do objeto fílmico um ponto de vista intelectual e emocional.

43

A consciência do espectador diante do filme cria um momento propício para o

surgimento de uma subjetividade que dará sentido às imagens projetadas no uso

das faculdades mentais que aparecem como instrumento de produção de

significado da forma e do conteúdo do material imagético. O autor considera que o

cinema dá a oportunidade ao espectador de vivenciar momentos nos quais a

atenção, a memória, a imaginação e a emoção são ativadas a partir do olhar sobre

o filme. O universo interior do homem é um campo de projeção de sentido em

relação aos elementos que constituem a narrativa cinematográfica. Münsterberg

comenta:

(…), o cinema pode agir de forma análoga à imaginação: ele possui a mobilidade das idéias, que não estão subordinadas às exigências concretas dos acontecimentos externos, mas às leis psicológicas da associação de idéias. Dentro da mente, o passado e o futuro se entrelaçam com o presente. O cinema, ao invés de obedecer às leis do mundo exterior, obedece às da mente. (MÜNSTERBERG, 1983, p. 38)

A experiência do espectador institui um momento de dinamização da capacidade

mental a partir da fruição do objeto, a qual caracteriza uma prática - uma aquisição

de conhecimento diferenciada, pois ela está submetida a um olhar e a uma

experiência de um determinado sujeito, mas única no que se refere ao resultado

da produção artística concebida pelo diretor.

Os conceitos de Sacks (2004) e Münsterberg (1983) apresentam uma

analogia entre a natureza das imagens em movimento (cinema) e a produção do

fluxo de pensamento humano. O cinema não é apenas uma expressão estética da

realidade, mas também uma arte da consciência humana, onde as imagens

cinematográficas são constituídas a partir de uma contrapartida fisiológica do

homem. O sujeito interage com o objeto fílmico e reconstrói sob o seu ponto de

vista o acervo imagético em material significante que representará uma leitura

particular da obra. Os valores estéticos e psíquicos reelaborados pelo espectador

é resultado de uma experiência particular que contribuirá para a repercussão da

história do filme no que se refere ao desenvolvimento cultural da sociedade.

44

O cinema permite ao homem se tornar mais humano, mais vivo e atuante

diante da realidade. A força das imagens reside na correspondência entre o

imaginário social e o imaginário do homem que juntos constituíram um olhar

ampliado sobre a estética e o significado das imagens. Estas aparecem como uma

necessidade de se poder materializar todo um universo não estruturado no campo

simbólico e que significa promover uma vitalização de uma expressão humana

ainda não constituída em sua totalidade. Os símbolos constituídos no filme

aparecem como elementos de materialização de conteúdos culturais, sociais e

psicológicos tendo a função de comunicar e representar um discurso estético e

social. O filme é uma linguagem que simboliza um determinado discurso da

coletividade, um veículo de acesso ao imaginário de uma nação como afirma o

sociólogo, teórico e crítico de cinema alemão Siegfried Kracauer (1889-1996):

E, em geral, veremos que só se pode compreender totalmente a técnica, o conteúdo da história e a evolução dos filmes de uma nação relacionando-os com o padrão psicológico vigente nesta nação. Os filmes de uma nação refletem a mentalidade desta, de uma maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico, por duas razões: primeiro, os filmes nunca são produto de um indivíduo. (...) Em segundo lugar, os filmes são destinados, e interessam, às multidões anônimas. Filmes populares ou, para sermos mais precisos, temas de filmes populares são supostamente feitos para satisfazerem os desejos das massas. (KRACAUER, 1988, p.17)

A leitura de um filme traz a possibilidade de uma leitura do universo cultural e

psicológico de uma sociedade. A obra cinematográfica é um elemento simbólico e

representa o discurso cultural e psicológico instituído de uma organização social

em um determinado momento histórico. Ela concentra um potencial estético, social

e técnico significativo por ser um produto coletivo – resultado de uma equipe

técnica, e por ser destinada a um grande público, que justificará o investimento

econômico da produção do filme.

O ensaio fílmico São Paulo, Sinfonia e Cacofonia (1995) de Jean-Claude

Bernardet elabora, a partir de trechos de filmes de ficção e documentários do

início do século que abordam a cidade de São Paulo, um novo olhar sobre a

cidade imaginária – uma metrópole sem referências precisas de espaço e de

tempo. Segundo o diretor, o filme é uma obra da ordem da “antropologia poética”

45

que permite ao espectador realizar um diálogo sensorial. As 53 produções

filmadas em São Paulo e selecionadas para o ensaio não apresentam, na maior

parte do tempo, diálogos. A música de Lívio Tratemberg e Wilson Sokorski conduz

o espectador a uma experiência dramática através das imagens urbanas. Estas

fazem parte de clássicos do cinema brasileiro tais como: Anjos da Noite (1987) de

Wilson de Barros, Anjos do Arrabalde (1986) e Filme Demência (1986) de Carlos

Reichenbach, Cidade Oculta (1986) de Francisco Botelho, A Dama do Cine

Shangai (1987) de Guilherme de Almeida Prado, Noite Vazia (1964) de Walter

Hugo Khoury, O Bandido da Luz Vermelha (1968) de Rogério Sganzerla, São

Paulo Sociedade Anônima (1965) de Luiz Sérgio Person, dentre outros

representantes do cinema paulista. Na realidade, a produção torna possível um

processo de apropriação do conteúdo imaginário e, posteriormente, da

constituição de determinados símbolos sob o ponto de vista do agente receptor. É

uma obra que estimula o sujeito a se posicionar diante de seus sentidos e do

ambiente urbano mostrado no filme.

São Paulo, Sinfonia e Cacofonia (1995) apresenta uma leitura do drama da

vida do homem em uma grande metrópole. A relação do corpo com o espaço é

trabalhada a partir do movimento e sua dinâmica com a rua, prédios, janelas,

portas e escadas. A solidão, a angústia, o medo e o anonimato vividos pelos

personagens provocam um choque no espectador, apresentando uma radiografia

psicológica do homem urbano contemporâneo. Os personagens estão em busca

de um sentido para suas vidas, eles necessitam de uma resposta para continuar a

viver. “Tem que haver um centro!”, diz o personagem do ator Edison Celulari

procurando informação sobre a localização exata do centro da cidade de São

Paulo. As grandes cidades já não têm mais uma precisão geográfica de seus

limites, elas se expandiram de tal forma que o homem se perdeu na imensidão de

espaços que desconcertam o direcionamento do olhar. O fluxo das imagens do

filme está diretamente relacionado ao fluxo da vida urbana em seu movimento

frenético onde a cidade apresentada é objeto de um discurso estético da

representação no cinema.

46

A solidão é um fato que perpassa a vida do homem nas grandes cidades.

Os personagens dos filmes que aparecem em São Paulo, Sinfonia e Cacofonia

vivenciam a “solidão da diferença” identificada por Richard Sennett (1989), ou

seja, em alguns momentos eles “estão sós’, em outros, “sentem-se sós”, mesmo

fazendo parte de uma multidão. A natureza indiferenciada da multidão leva o

homem a refugiar-se em seu próprio mundo tornando o seu estado interior

oscilante no que se refere a sua auto-suficiência, o isolamento do indivíduo nas

cidades demarca um espaço de alienação de si próprio e do grupo social. O

estado de solidão institui uma subjetividade típica da cultura moderna que marca a

geografia das cidades por uma indiferença contagiante. Viver na cidade significa

trilhar caminhos nos quais a presença humana nem sempre demarca a

possibilidade de trocas afetivas e sociais que possam fortalecer o espírito social.

O movimento e a luz são os elementos característicos da arte do cinema. O

processo de apreensão dos corpos e objetos em movimento, sob um foco

luminoso, constituiu uma revolução cultural para a percepção humana, pois

possibilitou uma vivência até então não experimentada, a percepção real de um

determinado recorte espacial e temporal. O cinema nada mais é do que uma

máquina de construção (manipulação) do espaço e do tempo, uma arte que

produz memória articulando personagens, cenários, locações, objetos e figurinos.

O mundo interno do sujeito (espectador) é mobilizado por essa arte revolucionária

no sentido maior da dimensão psicossocial.

A memória social é instituída a partir da confecção de um filme e

redimensionada a cada visionamento realizado por parte do espectador. Desta

forma, o filme torna-se material instituinte, ou seja, em constante processo de

reapropriação estética e psicológica. Este processo permanente de busca de

significado é uma prática de invenção cotidiana do mundo e de seus símbolos

culturais. Inventar o mundo (a cidade) é poder criar o ambiente propício para que o

homem de fato possa olhar a sua volta e experimentar a vida em seu cotidiano.

Tanto o espectador quanto o criador de imagens necessitam reinventar a sua

realidade para se relacionar com o universo imaginário que apresenta múltiplas

47

formas de expressão. O ato de invenção cotidiana é uma tentativa de poder ver o

mundo de forma ampliada, particular e criativa e transformar a experiência

humana em um acontecimento da ordem do extraordinário.

1.3. A cidade no cinema: as narrativas clássicas

Imagens de corpos, casas, ruas atormentadas, anúncios luminosos,

sombras de árvores, edifícios, carros poderosos. Caminhamos através de imagens

híbridas que inundam os espaços pessoais dos habitantes da cidade. O corpo do

homem se torna um arquivo de imagens múltiplas em constante enfrentamento

que demonstra a intenção de uma configuração do simbólico, pela palavra e pela

imagem que darão significado à interação entre o corpo do homem e o corpo da

cidade. Os corpos se fundem em um espaço que se alimenta de um volume

incessante de informações.

Vivemos num tempo alienante no qual a assimilação do que está a nossa

volta, e em nós mesmos, é influenciada pela velocidade de informações e pela

natureza do sistema social que não estimula o reconhecimento e a compreensão

das forças atuantes sobre o homem. O universo urbano permanece em estado

trágico, o silêncio se personifica, pois o sujeito impossibilitado de olhar, furta-se a

toda tentativa de interpretação, inviabilizando a adequação entre o espaço pessoal

e o espaço público. A cidade é um organismo que impressiona a cada esquina e

solicita de seus habitantes que enunciem palavras e gestos reveladores.

A partir do surgimento do cinema o universo urbano passou a ser focalizado

em sua totalidade provocando no olhar do homem que vive na cidade um

redimensionamento em sua relação com o espaço. O espanto inicial na história do

cinema marca o início de uma trajetória de novas percepções de experiências

culturais no âmbito do espaço urbano. Ao longo da história do cinema foram

produzidas obras emblemáticas da vida na cidade que se tornaram símbolos da

48

cultura audiovisual e possibilitaram uma leitura da modernidade em seus aspectos

de inovação e compreensão do percurso histórico e social.

A modernidade, enquanto momento de transformação material, cultural e

social, aparece como um esforço do homem em materializar o desejo de criação

de novas formas de se viver. Segundo o sociólogo francês Henri Lefébvre (1901-

1991): “A modernidade é esta tentativa: a descoberta e a apropriação do desejo”

(LEFEBVRE, 1969, p. 223). A busca de um sentido para a realidade implica em

um movimento contínuo de descobertas que possam dar continuidade ao

processo de desenvolvimento social, o desejo do homem é o elemento que

promove essa transformação da forma de se olhar e intervir no mundo. O cinema

é a expressão maior do processo de transcendência da experiência subjetiva do

olhar e da projeção da modernidade na história das inovações culturais.

O documentário aparece como um modo de representação que se

transformou em símbolo da cultura audiovisual no tocante à vida urbana. A

linguagem do documentário apresenta uma forma própria de se poder elaborar

uma representação de temas e de personagens que se tornem elementos de uma

leitura da realidade. A leitura produzida pelos cineastas, pioneiros das produções

sobre as grandes cidades, era inspirada nos movimentos da avant-garde, um

desejo de natureza estética de interpretar o mundo. Os filmes eram realizados à

margem das grandes indústrias de cinema e tinham uma preocupação com o

universo plástico da imagem e o uso da técnica de montagem. A captação das

imagens das cidades era feita no lugar de produção do cotidiano urbano. A

locação é o espaço no qual são criadas imagens representativas da realidade de

uma metrópole.

A primeira produção cinematográfica que apresenta a cidade como

proposta estética é Apenas algumas horas (Rien que les heures, 1926) de Alberto

Cavalcanti. A obra francesa inaugura, sob o formato de “sinfonia urbana” -

combinação variada de imagens da vida na cidade, uma série de filmes sobre o

olhar do cinema em relação às grandes cidades do mundo. Esse repertório

apresenta a cidade como um “personagem coletivo”, protagonista e tema da

49

narrativa cinematográfica. Apenas algumas horas (1926) aborda a vida na cidade

de Paris dos anos 20 mostrando os pobres e suas mazelas em contraste aos

lugares turísticos e desconhecidos. A experiência do cotidiano na cidade de Paris

é mostrada através do encontro entre pessoas, da relação do corpo do homem

com o espaço, da transformação da matéria orgânica, da alegria e da tristeza do

ato de se viver em uma metrópole. O filme conduz o olhar do espectador por uma

experiência subjetiva do significado da imagem para a apreensão da realidade

urbana.

O cineasta e arquiteto brasileiro Alberto Cavalcanti (1897-1982) teve um

papel importante na avant-garde francesa ao lado de Marcel L’Herbier, Jean

Renoir e Louis Delluc. Ele realizou seu primeiro trabalho no cinema como

cenógrafo no filme A desumana (L’Inhumaine, 1923), de L’Herbier. Os projetos

cenográficos desenvolvidos por ele tiveram uma marca de originalidade com a

introdução da cor com o objetivo de facilitar o trabalho dos iluminadores e de dar

um tom favorável ao desempenho dos atores. Os primeiros filmes de Cavalcanti –

Le train sans yeux (1925), Rien que les Heures (1926), Yvette (1927), ... -

apresentavam temas e momentos específicos da vanguarda, sob uma linguagem

tipicamente experimental. O diretor brasileiro era um “surrealista cinematográfico”,

apesar do seu olhar “realista”, e declarou em uma entrevista:

Mas a vanguarda não tinha nada de escola, como se chegou a acreditar com o tempo, não mais do que o estilo pré-concebido que cultivava: ela representava a expressão de um grupo de pessoas que se opunha ao cinema romanesco, ao cinema teatral. Tínhamos o desejo e a intenção de criar uma linguagem puramente cinematográfica. Desse ponto de vista, a vanguarda estava à procura de uma forma própria no cinema, de um meio de expressão específico às imagens. (PELLIZZARI, 1995, p. 279)

A criação das imagens se dava no campo restrito do cinema, não incorporando

referências da linguagem da literatura e do teatro. A arte do cinema era concebida

como um campo próprio de expressão artística e reveladora de uma forma e de

um conteúdo que recriavam o mundo. Apesar de ser uma arte onívora – que

incorpora outras linguagens artísticas, o cinema apresenta uma peculiaridade

50

estética no tocante à poética do espaço e do tempo, a captação das imagens em

movimento, do real, institui uma forma de resgate da vida sob a ótica de uma

câmera que enquadra um momento narrativo.

Apenas algumas horas (1926) é uma obra impressionista no sentido da

forma – contraste do preto-e-branco, imagens da ordem do surrealismo onírico e

experimentalismo estético, e do conteúdo – personagens populares e excluídos da

sociedade e cenas marcadas por conteúdos afetivos, sociais e psicológicos. Em

entrevista Cavalcanti comenta: “Rien que les heures foi o primeiro filme a dar uma

perspectiva sociológica ao documentário” (PELLIZZARI, 1995, p. 290). A produção

promoveu o ingresso do cineasta ao grupo seleto da intelligentsia cinematográfica

da década de 20, momento marcante de experimentalismo estético e teórico. O

filme antecede em “invenção” uma das mais importantes obras do gênero Berlim,

sinfonia da metrópole (Berlin, die sinfonie der grobstadt, 1927) de Walter Ruttman.

A opção por um olhar voltado para o popular e os excluídos é evidenciada

nos primeiros instantes do filme, quando vemos uma cena da sociedade elegante

parisiense e logo após uma fotografia dessa mesma cena sendo rasgada,

destruída. A partir deste instante, a câmera percorre ruas que, na maioria das

vezes, aparecem em perspectiva acentuada, e mostram os monumentos e os

personagens da cidade em cenas de trabalho, amor, angústia, lazer e desamparo.

Em determinado momento do filme um dos letreiros apresenta a seguinte

afirmação: “Todas as cidades serão semelhantes se seus monumentos não as

distinguirem”. O valor simbólico dos monumentos constitui a marca identitária e a

imagem representativa de uma cidade, é uma obra sobre o tempo, o tempo de

uma grande cidade - uma “cidade-mundo”, segundo o registro das imagens. O

filme aborda o olhar sobre a realidade da vida das pessoas que vivem na cidade e

pela cidade, personagens do cotidiano que são protagonistas de uma abordagem

onírica de ver o mundo.

Berlim, sinfonia da metrópole (1927) apresenta cenas da vida na cidade de

Berlim ao longo de um dia no final da primavera. É uma obra cinematográfica que

pertence à escola dos filmes de montagem – corte transversal, e é um marco do

51

cinema documental de vanguarda. O diretor alemão Walther Ruttman (1887-1941)

iniciou sua carreira na pintura e passou a realizar filmes abstratos constituídos de

formas geométricas em movimento. Os estudos de arquitetura o influenciaram na

concepção dessa obra marcante que integra a série de filmes que tem como tema

a cidade. A produção de Ruttman teve influência das teorias sobre montagem de

Serguei Eisenstein e, principalmente, de Dziga Vertov. A teoria do cine-olho de

Vertov o inspirou na realização de filmes a partir de fragmentos da “realidade

objetiva”, sem a participação de atores e enredo.

O filme constituído de cinco atos traz a cidade como um organismo vivo que

vai manifestando ações e impressões com relação à passagem do tempo. A cena

inicial do movimento do trem em direção a Berlim demarca o papel da técnica, da

modernidade em um momento histórico de grande efervescência cultural. A

velocidade do trem é o sinal de que a cidade acorda e mostra sua fisionomia –

vistas da cidade aparecem para exibir a imagem do objeto a ser observado. Os

trabalhadores percorrem as artérias (ruas) do espaço urbano demonstrando o

papel da força de trabalho na criação da atmosfera social de uma cidade moderna,

eles se movimentam em direção às fábricas. As lojas de rua abrem suas vitrines,

os manequins e os objetos de consumo aparecem para pontuar a encenação da

vida urbana. A vida do espaço público toma força ao mesmo tempo em que as

cenas domésticas dinamizam o interior das casas preparando a saída das

crianças para a escola. O sentido de liberdade, irreverência e dramatização do

espaço público aparece através de protestos políticos e cortejos, a massa toma as

ruas e passa por um extravazamento de suas emoções coletivas. Os meios de

transporte – o automóvel, o trem e o bonde promovem a circulação de pessoas

que irão vivenciar as mais diversas experiências em pontos distantes de uma

prática doméstica e segura, o caos urbano se configura. A possibilidade de

apreender outras realidades – fatos e lugares se dão também com a circulação

dos jornais que ampliam o conhecimento do universo social, uma mulher com uma

fisionomia representativa dos filmes expressionistas se joga da ponte,

possivelmente ela será matéria dos jornais. O culto ao corpo aparece através do

52

desfile de modas e da prática de esportes. Fim do expediente, os trabalhadores

saem das fábricas, a noite chega, os cinemas, os teatros de revista e os clubes de

dança proporcionam momentos de prazer e de fantasia aos entusiastas da vida

noturna.

O valor artístico de Berlim, sinfonia da metrópole (1927), enquanto obra de

vanguarda, se dá em seus aspectos de documento audiovisual que utiliza a

técnica de montagem como elemento de construção narrativa e explora as

qualidades formais dos objetos filmados em um padrão caracterizado por um

movimento intenso. Ao contrário do projeto idealizado pelo roteirista Carl Mayer,

que tinha como objetivo criar uma obra de conteúdo no sentido de que ela

pudesse imprimir um significado ideológico às imagens, Ruttmann optou por uma

obra formal sem a preocupação de elaborar um conteúdo crítico da sociedade

alemã. O filme enaltece a cidade moderna a partir de um deslocamento do olhar

que traz para o espectador a possibilidade de uma apreensão das várias

paisagens que compõem uma cidade. A multiplicidade de lugares, técnicas e

movimentos é o que caracteriza a vida do homem da cidade moderna.

Dziga Vertov associa em sua obra os aspectos formais e as implicações de

conteúdo – no caso o ponto de vista dos ideais comunistas, apresentando

significado ideológico às cenas captadas da realidade soviética do período Lênin.

A produção Um Homem com uma câmera (L’homme à la câmera, 1929), de

Vertov, aparece como um filme-paradigma da gênese cinematográfica no que se

refere à técnica – aos procedimentos de filmagem, montagem e projeção. A obra

soviética apresenta o olhar (a tese) do artista em relação ao processo

cinematográfico voltado para a captação do real, o “cinema-verdade”. O filme é

uma investigação epistemológica do próprio cinema a partir de um estudo de caso

– a cidade de Leningrado, atual São Petersburgo.

Um Homem com uma câmera (1929) mostra a vida do homem na cidade, o

trabalho, o lazer, a arquitetura, a forma urbana e a performance do cineasta no

processo de captação das imagens. A obra é uma tese sobre o processo de

construção da forma fílmica e do seu significado crítico sobre a grande cidade.

53

Segundo o pesquisador e documentarista Sílvio Da-Rin, o papel do espectador é

de fundamental importância para o exercício da crítica social e da elaboração

estética do filme:

Ao invés de alimentar a contemplação passiva de uma história que parece contar-se por si própria, o filme impõe-se como discurso construído e reconstruído pelo espectador através de um processo intenso de intelecção baseado no distanciamento crítico. (Da-Rin, 2004, p.179)

A produção de Vertov, a partir do uso intenso de metáforas visuais, apresenta uma

obra que provoca uma sensação de estranhamento que leva o espectador a

redimensionar o seu olhar frente ao objeto fílmico e à cidade de Leningrado. A

narrativa não-linear e a ausência de um continuum espaço-temporal promovem a

inserção do espectador em um universo mágico no qual a técnica e os temas

abordados se constituem em elementos de produção de conhecimento.

O operador de câmera – o captador das imagens, é o protagonista de um

espetáculo urbano que é registrado a partir da câmera e do olhar do cineasta – um

cinema espetáculo. Ele inscreve uma sinfonia de imagens sobre o movimento da

cidade, os ritmos das cenas do cotidiano captados pelos mais diversos ângulos. A

modernidade é revisitada sob o ponto de vista de um cineasta engajado no uso da

técnica para a realização de um ensaio audiovisual crítico sobre a relação entre o

homem, a cidade e a arquitetura. Um filme que apresenta uma metáfora entre o

olho humano e o olho da câmera e é um exemplo de uma obra que propõe a

promoção da educação estética do homem moderno.

A visão futurista (o sonho) de um diretor trouxe para a história do cinema

um dos mais representativos filmes sobre a cidade industrial moderna. A viagem a

Nova York no ano de 1924, inspirou o diretor austríaco Fritz Lang (1890-1976) na

criação do clássico do cinema mudo alemão Metropolis (1927). A obra pertencente

à estética do expressionismo alemão é um marco da ficção científica e

representou um papel importante no que se refere à utilização das capacidades

econômicas, técnicas e humanas no processo de produção cinematográfica. Os

estudos de pintura e de arquitetura de Lang contribuíram para a criação de um

54

filme que tem como cenário obras arquitetônicas monumentais e paisagens

industriais desafiadoras. A estética da produção alemã é impregnada de símbolos

que representam a marca de grandeza, do drama e do vigor de uma grande

cidade.

Metropolis (1927) aborda o conflito do papel da técnica (máquina) na gestão

econômica, social e tecnológica de uma grande metrópole. Vemos o confronto de

uma cidade superior, desenhada por arranha-céus em estilo art déco e

simbolizada pelo conhecimento e pelo poder, em relação à uma cidade inferior

(subterrânea), constituída por casas e ruas labirínticas próximas a uma central de

produção de energia elétrica – o coração da cidade. A cidade superior é

comandada pela elite econômica e política, e a cidade inferior é o lugar da vida e

do trabalho dos operários, responsáveis pelo funcionamento da engrenagem

urbana. O ensaísta espanhol Eduardo Subirats, autor de um importante ensaio A

Flor e o Cristal (1988) sobre arte e arquitetura modernas, elucida sobre a natureza

do conflito explicitada no filme:

Esse conflito entre a cidade superior e a cidade inferior não é somente espacial e simbólico: é um conflito humano, em que se entretecem os aspectos psicológicos, sociais, tecnológicos e morais, que configuram a trama complexa da narrativa cinematográfica. Fritz Lang introduz, sob a forma espacial de uma metrópole dividida, o conflito entre produção e destruição, entre o desenvolvimento técnico-econômico da civilização e a regressão humana que caracteriza o mundo moderno. (SUBIRATS, 1988, p. 120)

Essa metrópole dividida é simbolizada pelo “cérebro”, que conduz o destino

histórico da sociedade – a classe política e social da cidade superior, e pela “mão”,

que executa as ordens superiores – a classe operária da cidade inferior. Ao

mesmo tempo em que a técnica traz um avanço para o desenvolvimento da

organização social e econômica, ela instaura um conflito permanente com relação

às necessidades íntimas do homem em seu processo de aprimoramento espiritual.

O filme mostra a importância da técnica e a exaustão humana diante de seu

domínio material e político. A fisionomia da cidade e de seus personagens se

materializa através da estética da máquina que demarca ornamentos, formas e

movimentos próprios. A mediação entre o comando – o “cérebro”, e a produção –

55

a “mão”, é simbolizada pela personagem Maria (Brigitte Helm) que utiliza o poder

do “coração” como instrumento de convivência humana e uso racional da técnica.

A cidade é um organismo vivo constituído de embates cotidianos que vão

promovendo a ressignificação da forma do homem interagir em seu espaço social.

O conflito implícito da experiência urbana é decorrente do processo natural de

transformação da sociedade e da forma e do conteúdo do espaço da cidade.

As obras cinematográficas sob o formato de “sinfonia urbana” analisadas

contrastam com Metrópolis (1927) não só por serem documentários que retratam

a vida na cidade em seus diversos aspectos – estéticos, sociais, culturais e

econômicos, elas oferecem um vislumbramento ampliado da potência da cidade

enquanto personagem da vida moderna. O pesquisador de cinema Ismail Xavier

comenta sobre esse contraste:

O filme de Lang, ao contrário das sinfonias da cidade, onde a simultaneidade é um campo de possibilidades e promessas, conota abafamento, cadeia opressiva, sistema fechado. A cidade aí é trabalho e supervisão do trabalho que não produzem senão a própria cidade, num movimento de reprodução do que não teria outro uso senão o de espelhar uma suposta grandeza de seus criadores. (XAVIER, 2007, p. 31)

A natureza ficcional de Metrópolis (1927) espelha um momento histórico no qual a

cidade vive o impacto da ideologia industrial marcada pela produção e exploração

da força de trabalho. O ponto de vista do filme enaltece a razão, a técnica e o

poder fazendo um recorte rigoroso que enquadra a cidade como um objeto

meramente industrial. A narrativa de Lang descarta o imprevisível e a criatividade

da vida na cidade.

O ato de sonhar com as cidades imaginárias do cinema é vivenciado não só

por quem está vendo o filme, mas também por quem presencia a vivência do

sonho do outro. A arte cinematográfica consegue através da técnica produzir o

sonho do homem inebriado pela razão e pela própria técnica. A fabricação de um

estado onírico vivido pelo espectador no cinema subverte o sentido restrito da

técnica, enquanto instrumento de produção objetiva do processo de otimização da

ação humana. A técnica cinematográfica permite aproximar o homem do universo

56

gerador da realidade urbana – o imaginário social, contribuindo para o

aprimoramento do olhar em relação ao modo de interpretar o mundo. O imaginário

da cidade, enquanto segmento do imaginário social, é constituído de uma

multiplicidade de encarnações estéticas, afetivas, sociais e históricas que fazem

da cidade um personagem de múltiplas personalidades. Percorrer o espaço

urbano é se lançar em uma jornada repleta de olhares que atravessam o tempo e

o corpo da cidade.

57

Capítulo II

Imaginários da Cidade

A cidade é antes um campo de forças em movimento e organização contínua.

Nelson Brissac Peixoto

58

2.1. A escrita da história, a escrita da cidade

Ao andar pelas ruas de uma cidade o homem se depara com um vasto

acervo de formas urbanas que compõe a paisagem cultural da sociedade. As

obras arquitetônicas, os elementos urbanísticos, os meios de transporte e o

movimento do homem no espaço urbano desenham uma paisagem cuja

fisionomia apresenta um campo de conhecimento que delineia o percurso histórico

da cidade. Os diversos tempos deste percurso constituem o material da narrativa

do lugar e a forma com que o homem inventa o cotidiano, transforma o ambiente

social produzindo histórias que o revelam enquanto agente de criação do

imaginário social. O acúmulo de experiências decorrente da vida na cidade vai

constituindo um acervo e uma fonte de saberes, imagens, fatos e idéias que

formam um universo gerador de produção da realidade. O homem se reporta a

este universo significante para instituir narrativas que configurem um canal de

comunicação de conteúdos socializantes.

O narrador das experiências culturais e os personagens de filmes que

formam o imaginário urbano aparecem como porta-vozes que trazem significado

aos acontecimentos. Ao se deparar com a realidade da vida na cidade eles

introjetam o espírito do flâneur, o observador do clima de encontro social, figura

cujo interesse se concentra nos locais públicos. O escritor e jornalista carioca João

do Rio (1881-1921) foi um dos representantes mais expressivos da arte de narrar

os costumes e a transformação do espaço da cidade. João do Rio (1987) inspira-

se em Charles Pierre Baudelaire (1821-1867) – poeta da modernidade, autor de

As Flores do Mal, que aborda a temática visceral do submundo e expressa o

sentimento da vivência na cidade. Baudelaire é quem lança a idéia do flâneur

enquanto agente social que recupera o sentido da individualidade, perdido na

multidão, mas imerso no prazer de olhar o universo cultural. A rua – símbolo maior

das trocas sociais, aparece sob o olhar de João do Rio, como um objeto

59

transbordante em qualidades humanas. Em sua época, a Rua do Ouvidor era uma

artéria da futilidade, lugar de pose, vaidade e inveja, um personagem-símbolo da

cultura carioca. Ele caracterizava o objeto urbano a partir de especificidades

psicológicas da natureza humana, a rua era um reflexo da performance da

sociedade em relação aos conteúdos simbólicos do lugar. A alma da cidade

floresce pelo entrecruzamento de desejos humanos intervindo nas formas urbanas

que incorporam uma dimensão psicológica e afetiva.

A modernidade que se estabelece a partir do nivelamento dos gostos e

costumes sociais provoca a perda da “alma singular” do objeto urbano, resgatada,

porém, por João do Rio em sua obra através de um olhar sensível e crítico acerca

de possibilidades mais humanas de coexistência social. Percebemos um

movimento intenso de resgate de sensibilidades reconhecido pela pesquisadora

Mônica Pimenta Velloso em sua obra As Tradições Populares na Belle Époque

Carioca (1988),

Esse transbordamento de sensibilidade e de tensão é marcante na obra de João do Rio, sendo denominado de “hiperestesia”. É a experiência do choque, vivenciada pelo homem moderno angustiado e dilacerado em sua integridade de sujeito. (...) De início, João do Rio se comporta como um observador atento, que deleita a si próprio e a seus leitores com a seqüência de imagens carnavalescas. Ele é um flâneur, que se caracteriza pela vagabundagem descompromissada, pela curtição e pelo voyeurismo. Mas depois ele adere aos cordões, se transformando num homem da multidão. (VELLOSO, 1988, p. 33)

A inserção do sujeito no espaço urbano é redimensionada com a chegada da

modernidade, que traz, além de uma racionalidade característica, uma cultura

irracional pontuada por vícios, corrupção e miséria. O drama da vida urbana

transfigura a estabilidade do ambiente social, demarcando o espaço da cidade a

partir de comportamentos sociais que passam a simbolizá-lo. A “hiperestesia”

promove uma marca no corpo urbano dos sentimentos que caracterizam o modo

de vida da cultura da modernidade. O papel do narrador (cronista) aparece como

crítico de uma nova ordem que necessita ser entendida, nomeada e denunciada,

ele é uma figura simbólica a serviço do conhecimento social e da comunicação

dos anseios do homem.

60

As experiências ao longo do tempo organizam um discurso histórico

produzido nos lugares de subjetivação da prática do sujeito – o cotidiano das

realizações efetivas originárias do imaginário social. Os locais públicos e os

espaços privados da vida do homem urbano representam o cenário no qual são

criados os relatos de demarcação dos processos de individualidade e de

alteridade. O confronto com o outro delimita a fronteira entre as diversas

espacialidades e seus respectivos modos de expressão. O sentido do discurso

histórico institui a noção de identidade social em seu processo dinâmico de

produção simbólica, as marcas identitárias de uma cidade resultam de um modo

de interpretar o mundo, da forma com que o homem simboliza os conteúdos

formadores do universo do imaginário. Interpretar uma realidade significa escrever

(demarcar) no tecido urbano as impressões captadas do imaginário e

imprescindíveis para a organização da vida na cidade, do universo imagético que

a caracteriza.

O cinema apresenta o ponto de vista de personagens (narradores) de um

universo urbano retratado que configura um determinado discurso da ordem social

e cultural. O imaginário do filme é o imaginário de seus personagens em confronto

com o imaginário da cidade que detém um acervo de experiências, desejos e

pensamentos constituídos ao longo do tempo. A construção narrativa do filme

instituída mostra a marca da identidade dos narradores da história e do espaço no

qual ela se desenrola.

O pensamento flui ao percorrer os becos, ao olhar a arquitetura de Turim

em sua representação simbólica e registro da memória de uma sociedade. O

imaginário do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), interpretado pelo ator

Fernando Eiras, em Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane,

explode ao se defrontar com a carga estética e cultural da cidade italiana onde a

história provoca os sentidos de um filósofo que vive o êxtase do pensamento e da

arte. A permanência nessa cidade, entre abril de 1888 e janeiro de 1889, nos

proporcionou algumas obras de grande relevância para a história da filosofia e da

cultura tais como: Ecce Homo, Crepúsculo dos Ídolos e Os Ditirambos

61

Dionisíacos. Nietzsche era imbuído de um espírito dionisíaco, um poeta lírico que

revia as perspectivas da natureza humana.

Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane

Beco de Turim

62

Turim, antiga capital da Itália, uma cidade barroca amarela e marrom-

avermelhada, a partir do trabalho do arquiteto Guarino Guarini (1624-1683) se

projetou como uma cidade “aristocrática”, marcadamente geométrica, distante dos

padrões modernos. A exuberância da arquitetura encontra uma contrapartida na

natureza seduzindo Nietzsche em suas associações mentais com a cidade

conforme apresenta Lesley Chamberlain no livro Nietzsche em Turim – o fim do

futuro (2000):

Nietzsche se apaixonou instantaneamente pela cidade, e um dos motivos era o seu esplendor, combinado a uma acomodação sem esforço ao ambiente natural. Constituía motivo de celebração o fato de poder, do estreito balcão exterior à sua janela, ver la collina – os norros verdes de Turim – a sudeste e, num dia claro, os Alpes a noroeste. (CHAMBERLAIN, 2000, p. 35)

O olhar contemplativo do filósofo se voltava para a cidade e para a natureza

dermarcando um diálogo entre a paisagem urbana e a natural. Este cenário é o

alimento para que Nietzsche promova um caminhar constituído pelo prazer do

próprio caminhar, de pensar e de elaborar uma escrita que materialize essas

experiências que são, na realidade, “expedições filosóficas”, segundo Chamberlain

(2000), no âmbito do interior da paisagem.

A cidade para ele é um laboratório do pensamento e do corpo em

movimento: “Meus bigodes são meus filtros e as calçadas desta cidade são o

paraíso para os meus pés. Só os pensamentos que temos caminhando valem

alguma coisa”. A liberdade de pensar é a liberdade do corpo em seu percurso de

observação e reconhecimento de uma cidade amada que estimula os pés e os

olhos. Amar um objeto urbano significa se entregar ao espírito de suas formas e

ao seu sentido na história da civilização. A manifestação de prazer ao se defrontar

com a cidade italiana proporcionou a produção de escritos (anotações) que

aparecem como o reflexo de uma escrita da cidade, de um pensamento oriundo

da contemplação da arquitetura.

63

Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane

O ato de flanar de Nietzsche

64

O espírito de flâneur de Nietzsche, a “expedição filosófica” que ele promove

ao longo da cidade, nos labirintos da arte e da razão, consiste em procurar no

ambiente urbano algo que provoque sua percepção interior e do mundo. A

arquitetura enquanto elemento formal, então, reflete o processo do filósofo de lidar

com o seu caos original: “Sendo uma arte fundada na síntese do impulso vital

(dionisíaco) com o impulso formal (apolíneo), a arquitetura constitui um meio

racional para satisfazer fins irracionais” (PULS, 2006, p. 416). O ato de flanar pela

Piazza Castello e arredores aparece como uma possibilidade de Nietzsche

redimensionar o corpo e o espírito em direção à arte da razão, ao processo de

associações mentais que conduzem à criação do seu corpo filosófico.

A câmera trêmula que nos leva pelos becos de Turim reflete a natureza do

pensamento de Nietzsche – instigante, em constante êxtase, uma mente que

percorre os extremos do humano. A dinâmica do percurso do filósofo pela cidade

se dá a partir do olhar, do perceber e do pensar. A assimilação e a apropriação do

espaço urbano é resultado de um processo intenso da dimensão do intelecto. O

corpo de Nietzsche vai acumulando impressões que acabam o levando à

desorganização de sua estrutura psíquica, à loucura. A “hiperestesia” vivida por

ele transfere as marcas imaginárias e físicas da cidade para o universo corpóreo

de um espírito inebriado.

A riqueza do pensamento de Nietzsche reflete a riqueza, a minúcia da

forma e da função da arquitetura e da cidade de Turim. Os detalhes, sob o ponto

de vista do personagem, que vemos ao longo do filme, revela a sutileza do olhar e

do pensamento de um filósofo que ousa ao se deparar com uma arquitetura, uma

arte que inspira a vida de quem contempla a cidade, “A arte torna a vida possível”,

diz ele. O esplendor da arquitetura leva a marca do pensamento humano e faz

com que um observador sensível possa se revelar perante o seu próprio

imaginário e o imaginário da sociedade. A obra de arte, então, exerce a função do

divino na matéria, o humano encontra o divino a partir da contemplação de um

objeto de arte irradiado.

65

Michel de Certeau em sua obra A Cultura no Plural (1995) nos fala que o

imaginário urbano tem uma predominância do “ver”, no qual o homem é levado a

captar o sentido das impressões visuais, constituindo o valor da imagem em um

elemento representativo do imaginário social. No contexto do universo urbano

temos, então, uma exaltação da “pulsão escópica” (visual), conceito denominado

por Metz (1983), que leva o homem a sistematizar uma produção acelerada de

conhecimento. A velocidade da informação visual configura uma forma de

pensamento na qual a imagem aparece como um signo que traz significados para

a interpretação do mundo. A cidade instituída é um acervo e uma fonte

permanente de escrita, de produção de novas imagens:

A cidade contemporânea torna-se um labirinto de imagens. Ela se dá uma grafia própria, diurna e noturna, que dispõe um vocabulário de imagens sobre um novo espaço de escritura. Uma paisagem de cartazes organiza nossa realidade. É uma linguagem mural com o repertório das suas felicidades próximas. Esconde os edifícios onde o trabalho foi encerrado, cobre os universos fechados do cotidiano; instala artifícios que seguem os trajetos da faina para lhes justapor os momentos sucessivos do prazer. Uma cidade que constitui um verdadeiro “museu imaginário” forma o contraponto da cidade ao trabalho. (CERTEAU, 1995, p. 46)

A imagem da cidade vai sendo remodelada a partir de novas leituras e

interpretações em um momento histórico particular. A realidade urbana é fruto de

uma apropriação constante de algo da ordem do “exotismo ótico”, de imagens

ainda não pertencentes à realidade, mas que poderão ser incorporadas a partir de

um olhar revelador de uma experiência social. A busca e o conhecimento de

novos significados da produção imagética implica em um desvelamento das

diversas camadas encobertas pelas imagens instituídas. A constituição de um

“espaço”, a prática de um “lugar”, como elucida Certeau (1994), a transfiguração

do sentido de estabilidade e o respectivo cruzamento de experiências de direção,

velocidade e tempo, traçam o momento do surgimento de imagens até então

apagadas por um processo de alienação relativo à capacidade ótica, às

possibilidades de “ver” outras imagens. A cidade é uma grande galeria de quadros

de imagem – a arquitetura, a publicidade, os equipamentos urbanos, as imagens

66

digitais formam seu acervo visual, que vão se remodelando ao longo do tempo em

um processo de manipulação do espaço. A forma e a qualidade da imagem

encobrem e interferem no valor estético e simbólico do espaço transfigurando o

sentido da composição urbana. A natureza de uma cidade, enquanto um “museu

imaginário”, nos remete aos diversos espaços que estão escondidos, guardando

um acervo de imagens a ser descoberto pelo caminhante, pelo flâneur e pelo

poder imaginário do ser humano.

O imaginário urbano é um campo de percepção vivenciado pelo

homem em relação à vida na cidade, a partir de experiências visuais, afetivas

e mentais, que fazem com que o presente seja um momento de inspiração

para a produção de material significante que transforme o espaço

estabelecido. As possibilidades advindas da inspiração do homem estão sujeitas

a um processo de seleção que é definido segundo critérios políticos e econômicos

estipulados pelos organizadores da ordem social. A materialização de um

elemento do universo do imaginário percorre uma trajetória de redimensionamento

da realidade, de promoção de uma mudança de paradigma das formas simbólicas.

As práticas urbanas são o reflexo de um processo de subjetivação de fatos e

pensamentos vivenciados no mundo imaginário, elas constituem o que foi possível

ser nomeado para que se desse prosseguimento à atualização das formas de

representação da vida social.

A categoria do imaginário se estabelece como uma determinante de

geração de sentido que redimensiona a estrutura do real. O real é um universo

constituído por uma lógica demarcada pelo o que existe, ou seja, uma lógica

instituída no que se refere ao valor absoluto do objeto (da matéria) enquanto

elemento que organiza a vida do conjunto da sociedade. O imaginário alimenta e

subverte o real constituindo a realidade do sujeito, resultado de uma experiência

(prática) vivida do real. A realidade se caracteriza a partir de um processo de

experimentação da ação e do pensamento do sujeito sob a produção incessante

da fonte imaginária, o acervo de imagens proveniente dessa fonte se apresenta

como uma matriz das imagens presentes na realidade do homem.

67

A alusão ao tempo é um fato na demarcação do universo do imaginário. O

passado e o por vir aparecem como referências ao tempo presente no que tange

às possibilidades de significação de novas realidades, o presente é uma dimensão

fugaz – instantânea, entre os dois momentos que estão instituindo a noção de

tempo. O homem escreve sua história se reportando ao imaginário e trazendo

idéias aos lugares de produção da cultura social, a instituição de novas práticas

cria uma forma diferenciada de pensar o cotidiano e redirecionar o percurso da

sociedade. Os projetos urbanísticos constituem um corte epistemológico na

realidade da organização e do funcionamento da cidade, eles demarcam um novo

mapa que conduzirá as práticas cotidianas emergentes. O cotidiano é o universo

no qual o homem experimenta a todo momento a simbolização de conteúdos do

imaginário social.

Em A Escrita da História (1982), Certeau diz que a escrita da história é

produzida sob o ponto de vista de quem a escreve e do momento no qual é

realizada a leitura do passado. O autor discorre sobre as nuances do

desenvolvimento dos estudos históricos na relação entre o tempo e o lugar da

produção da história:

Assim, fundada sobre o corte entre um passado, que é seu objeto, e um presente, que é o lugar de sua prática, a história não pára de encontrar o presente, no seu objeto, e o passado, nas suas práticas. Ela é habitada pela estranheza que procura, e impõe sua lei às regiões longíquas que conquista, acreditando dar-lhes a vida. (CERTEAU, 1982, p. 46)

A leitura de um fato histórico advindo do imaginário social aparece de forma

ressignificada como decorrência do olhar do historiador em um momento particular

onde o passado é uma fonte de informação e de inspiração para a construção do

que é próprio ao momento presente. O passado é recriado pela experiência do

homem em uma direção na qual os princípios instauradores dessa prática vão

adquirindo uma verdade narrativa mais próxima ao sentido da história. O presente

traz novos significados ao passado ampliando seu valor e sua dimensão no que se

68

refere à transformação de um material “morto” (ruínas urbanas, documentos

deteriorados, pessoas e fatos esquecidos) em objeto de análise e de (re) criação

de vida. O material “morto” – um elemento não apropriado pelo discurso social,

pela narrativa dos agentes culturais, faz parte do corpo social, constitui uma

presença a ser nomeada (enunciada) pela fala e pela prática dos produtores do

espaço.

A tendência atual de revitalização de áreas urbanas e de restauração de

obras arquitetônicas resgata a importância do valor estético e social de

determinados bens imóveis enquanto portadores de um discurso histórico que traz

conhecimento acerca da forma de organização da sociedade. As formas a serem

revitalizadas ilustram a necessidade de se promover um diálogo entre a

atualização do passado e a criação do presente. O discurso dos bens históricos,

no que tange às experiências técnicas, estéticas e simbólicas, marca no espaço

da cidade uma referência cultural na trajetória da construção do imaginário social.

O espírito de uma época é lembrado através de um elemento urbano que relata

um episódio da formação da sociedade.

O passado da cidade inscrito no imaginário social é uma fonte de

questionamento acerca de seu destino traçado ao longo da história. O material

“morto” do corpo da cidade – as áreas abandonadas, as ruínas urbanas,

relacionado a uma experiência cristalizada – destituída de significados, em um

tempo decorrido, acompanha o desenvolvimento da sociedade trazendo material

para a (re) formulação da noção de identidade social. O distanciamento no tempo

de produções culturais de uma época não implica em um esquecimento do valor

histórico dessas produções para a efetivação da memória social instituinte. A

história deixa marcas no espírito de uma sociedade que poderão ser resgatadas e

incorporadas a um momento de redefinição de um discurso. Pensar a vida na

cidade é retomar o sentido dos diversos estágios que contribuíram para a

formação da cidade atual, a retomada significa reelaborar a escrita que constituiu

uma forma inacabada no que tange às possibilidades de criação do universo do

imaginário.

69

A desintegração mental de um homem, o visionário professor de história

Mário, vivido pelo ator Ricardo Blat, é o fio condutor do filme O Príncipe (2002) de

Ugo Giorgetti que retrata a degradação social e do espaço da cidade de São

Paulo. Uma produção que narra os descaminhos de uma geração de jovens da

classe média paulista, um registro de memórias de uma geração. A potência do

imaginário social que transborda através das imagens cinematográficas revela

desejos que foram cultuados e, posteriormente, alijados de seus propósitos de

transformação do tempo e do espaço.

Um olhar estrangeiro, mas testemunha de um momento histórico singular

da cultura brasileira – anos 60 e 70, é o elemento de constatação de uma

identidade perdida. Gustavo (Eduardo Tornaghi), tio de Mário, retorna a São

Paulo, depois de 20 anos vivendo em Paris, ainda com um imaginário permeado

por lembranças de lugares e de pessoas repletos de afeto, esperança e ideais

revolucionários. Constatamos a configuração de um verdadeiro “espaço”, visto que

o lugar da experiência social e cultural da geração de Gustavo é apropriado pelos

atores sociais em seu processo de transfiguração de valores instituídos. O filme

revela a existência de um “espaço” que sai do universo cotidiano de uma época e

passa a se localizar apenas no imaginário social.

O percurso físico e afetivo da cidade vivido pela geração de Gustavo se

transformou em cenas obscuras de uma realidade degradada: o drama dos sem-

teto, a violência urbana, a perda e a descaracterização de espaços da memória

social e cultural. A fotógrafa Hilda (Márcia Bernardes), mulher de Mario, pontua

através de seu trabalho de repórter fotográfica a banalização do registro de corpos

mortos em uma cidade sem apelo afetivo e cultural. Os ideais de uma geração que

poderiam transformar o espaço social e urbano tornaram-se inócuos diante da

dinâmica da era da cultura de mercado, o capital minou o espírito de uma possível

vida poética. A poesia que poderia abrir o espírito de uma geração para novas

formas de olhar e intervir no mundo se tornou apenas uma expressão literária, um

fato marcante da memória social. Maria Cristina (Bruna Lombardi), antiga paixão

70

de Gustavo, ilustra esta passagem de uma personagem engajada poeticamente

para uma profissional militante de um projeto de marketing cultural.

O imaginário do prof. Mário mostra a contradição de uma sociedade que

reprime a visão poética de uma vida em um espaço urbano caótico em

conhecimento, visualidade e comunicação, o olhar de Mário denuncia a “falsa

história” que é propagada pelo discurso oficial da sociedade. O imaginário urbano

do filme reflete o percurso da mentalidade e da produção dos diversos grupos

sociais que fizeram a história da cidade. A forma urbana é o reflexo, então, de um

projeto estético e social decorrente do universo do imaginário.

A figura do Príncipe (Gustavo), um intelectual exilado, chega a São Paulo

para constituir um olhar revelador de uma realidade perturbada pelo descaso com

o imaginário, como diz Mário: “É preciso levarmos o imaginário a sério para

transformar este país e arrancá-lo de sua própria mediocridade ...”. A potência do

olhar estrangeiro de Gustavo identifica um percurso físico e cultural de uma cidade

que está desintegrando sua memória.e ofuscando a percepção e o sentimento de

seus habitantes. A cidade começa a ficar na sombra e seus elementos

constituintes perdem o potencial criativo de produção de vida tornando-se, assim,

material “morto” de um conjunto urbano em estado de entropia. O olhar desvelador

de um “doente psiquiátrico” enxerga com sensibilidade e precisão o estado atual

de uma cidade caída: “As luzes desta cidade estão se apagando”, comenta Mário.

71

O Principe (2002) de Ugo Giorgetti

Gustavo chega de táxi na Rua Morato Coelho

Ao regressar de Paris Gustavo encontra a rua onde morava – a Rua Morato

Coelho, transfigurada estética e socialmente. O impacto por ele vivido

corresponde ao espanto que viverá junto com o jornalista Renato (Otávio

Augusto), deficiente, usuário de cadeira de rodas, ao se deparar com alguns dos

lugares marcantes de sua geração – Praça D. José Gaspar, Praça da Biblioteca,

... -, lugares desaparecidos, decadentes, que ficaram na memória de uma geração

apaixonada por livros, poesia e fotos, símbolos de uma época passada que

vislumbrou um potencial de transformação da realidade. Renato mostra através do

seu corpo retraído (sem vigor) uma cidade retraída em seu processo de

valorização do imaginário social. No entanto, o corpo passivo de Renato não deixa

de viver o êxtase ao ter o contato com os resquícios físicos e afetivos de lugares

do passado. A memória dos lugares reacende o desejo de se animar um presente

destituído de significado.

72

Benjamin, em cuja obra encontramos uma tentativa de construção de uma

nova estética que possa redefinir a noção de crítica, traz uma contribuição para a

arte de escrever a história através de imagens, ele percorre uma trajetória literária

que investiga a formação da fisionomia da metrópole moderna e se inspira nos

Tableaux Parisiens de Baudelaire que o levam a realizar uma leitura da cidade

como a de um corpo humano, superpondo a percepção da cidade e a do corpo na

produção de uma narrativa do ambiente social.

O conceito de história de Benjamin (1985) trata da construção do objeto

histórico como um momento constituído de um tempo presente eterno e não de

um tempo homogêneo, vazio, morto. As lembranças que permanecem no

imaginário social são o veículo de (re) construção de um passado que já não é

mais o mesmo para o homem que se debruça sobre as suas origens. Os embates

do cotidiano recuperam o passado com o objetivo de fortalecer o presente.

Benjamin comenta:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. (BENJAMIN, 1985, p. 224)

Desta forma, a verdade do discurso histórico se apresenta de forma relativa,

sujeita aos conteúdos ideológicos das narrativas representativas da organização

da sociedade. Por outro lado, o distanciamento do tempo histórico dos

acontecimentos permite uma maior compreensão de seu desenvolvimento

decorrente dos sucessivos enfrentamentos intelectuais e sociais que apresentam

uma leitura mais verossímil do objeto histórico.

A crítica moderna da cidade, desenvolvida por Benjamin, traça as

possibilidades de compreensão da realidade do homem no espaço publico, ela

contribui para a busca do sentido das imagens da cidade no processo de

afirmação da experiência humana, Segundo ele:

73

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro . (BENJAMIN, 1993, p. 73)

Essa instrução é uma forma resultante de um desenvolvimento permanente, onde

o homem possa criar um espaço à sua imagem, e estruturar um inter-

relacionamento significa permitir que ele participe, demarque uma linguagem

inerente ao seu perfil sociocultural, crie um texto pertinente aos seus anseios, a

sua solidão e o interprete visando a um aprimoramento do que já foi construído (o

passado) em uma dimensão social mais adequada. O homem está diante de uma

diversidade de caminhos que o levarão a percorrer os labirintos da realidade

material e social da cidade.

A solidão de uma mulher de terceira idade em um bairro marcado pela

violência nos faz acompanhar o drama de Regina (Fernanda Montenegro) pelo

bairro de Copacabana no Rio de Janeiro no filme O Outro Lado da Rua (2004) de

Marcos Bernstein. O olhar de Regina percorre o caminho da sombra, do universo

do crime, do duvidoso e do abandono. A solidão a faz tomar atitudes em prol da

justiça pelo outro, ela observa o outro para se afastar de sua dor, entrega o outro

par fazer valer a lei do bem-estar social. Todo este percurso promove o retorno

para dentro de si, em direção ao seu afeto perdido, a apropriação do espaço cria

uma nova forma de expressão humana. Os labirintos da cidade são o cenário da

jornada de uma mulher em busca de sentido para sua vida em uma experiência no

espaço urbano que se apresenta como uma oportunidade para o refinamento do

sentimento e da comunicação afetiva.

A experiência vivida no espaço urbano, Copacabana como cenário de uma

dramaturgia voltada para o afeto enquanto elemento de transformação social,

demarca a efetivação do “espaço” a partir da predominância do “ver”, segundo

Certeau (1995), a exaltação da “pulsão escópica” (visual), como indica Metz

(1983). A determinação do redimensionamento do afeto se dá através da

investigação do sentido das cenas (imagens) da cidade que vão promovendo o

74

despertar desse afeto adormecido, a crítica do olhar aparece como instrumento de

aproximação ao universo do outro.

A cidade aprisiona o homem, mas também pode possibilitar sua libertação.

O sentido de orientação e de perda na cidade postulado por Benjamin (1993)

possibilita um aprendizado que se dá em O Outro Lado da Rua através do olhar

que aprisiona e, posteriormente, liberta. A prisão de Regina ao olhar a afasta da

possibilidade de troca, a potência de seu olhar esvazia a entrega ao outro, ela

declara: “Vejo coisas demais, é isso. Eu acho que eu ainda me vejo de um jeito

que ninguém mais me vê. Eu me vejo como eu sempre fui, entende?”. As janelas

nas quais Regina se lança ao mundo são as barreiras e, ao mesmo tempo, o canal

de comunicação com a vida na cidade. O alvo do olhar inquisidor de Regina, o

sujeito de sua investigação, torna-se objeto de desejo, Camargo (Raul Cortez) é a

figura que redimensiona seu olhar em direção a uma nova forma de se relacionar

com o mundo.

O imaginário de Regina é materializado nos espaços por onde ela circula. O

sentimento de isolamento aparece no momento após a tentativa de assalto a uma

senhora no banco, ela desabafa conversando com a sua própria secretaria

eletrônica, cena presenciada pela cachorra Betina, e se vê inteiramente sozinha

no espaço da rua por onde transita a multidão solitária de uma grande cidade. O

espaço psicológico (o vazio do espaço urbano) sob o seu ponto de vista simboliza

a solidão de uma mulher de terceira idade perdida em uma cidade que ameaça os

seus habitantes.

O apartamento de Regina é banhado de luz e sombra sendo o cenário de

cenas nas quais ela aparece solitária, um ambiente que remete a uma caverna de

onde alguém espia e se esconde do mundo. A cachorra Betina é a única

possibilidade de interação afetiva, apesar das limitações de sua natureza animal,

ela a faz se manter operante na vivência do espaço da cidade e do apartamento.

O percurso ao longo de Copacabana vivenciado por Regina demarca os

elementos que norteiam o seu imaginário: a praça onde os velhos se encontram

para jogar cartas, o caminho de sua casa para a praia que proporciona uma

75

abertura dos horizontes limitados de seu apartamento, a ida à delegacia para

comunicar a suspeita de um crime – a morte da mulher de Camargo, visto que ela

exerce o serviço voluntário de “olheira” da polícia sob o pseudônimo de Branca de

Neve, aparecem como espaços que são a marca do imaginário de uma mulher

movida pela solidão e pela tentativa de preencher o vazio existencial de sua vida.

As histórias que são escritas nos filmes revelam o drama de seus

protagonistas em cidades que se apresentam como personagens da trama

cinematográfica. A escrita da história, sob o ponto de vista de Nietzsche, Gustavo,

Mário, Regina e Camargo tem sua força dramática decorrente de uma escrita

particular que eles produzem acerca da forma, da função e da cultura das cidades-

personagens.

2.2. O homem, a cidade e a tradição

Ao longo da história da humanidade a cidade vem sofrendo transformações

provocadas pela forma com que o homem se organiza socialmente. A mentalidade

de uma determinada sociedade é identificada no espaço no qual ela sistematiza

sua produção cultural promovendo, assim, uma elaboração simbólica dos fatos

sociais. Os símbolos representam a capacidade imaginária da sociedade em

efetivar referências que tenham como função a reunião social e o desenvolvimento

econômico. Eles são instrumentos do universo do imaginário que expressam o

mundo social-histórico, conformam sua existência, e geram consenso, sendo

objeto de comunicação e conhecimento que demarcam a imagem de uma

sociedade de maneira que ela possa estabelecer parâmetros identitários, no

intuito de promover a efetivação do processo histórico. O símbolo promove no

conjunto social a possibilidade de estimular o desenvolvimento cultural, que vai

além da prática e da dimensão material, atingindo camadas sutis – o imaginário,

onde reside o acervo da memória social.

76

Pierre Bourdieu, autor de uma importante obra que aborda a função do

símbolo como elemento de comunicação e conhecimento e de legitimação e

justificativa do sistema de poder, traz um campo conceitual – a “Sociologia dos

Sistemas Simbólicos”, para o estudo do símbolo no processo de representação

social. Segundo Sergio Miceli (1974), o trajeto de Bourdieu:

Visa a aliar o conhecimento da organização interna do campo simbólico – cuja eficácia reside justamente na possibilidade de ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representações, que não passam de alegorias que simulam a estrutura real de relações sociais - a uma percepção de sua função ideológica e política e legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente. (MICELI, 1974, p. XIV)

O símbolo sinaliza e identifica a cultura de um sistema de poder comunicando um

conteúdo ideológico representado por um elemento material ou imaterial que

alimenta o imaginário social. A cidade, estruturada como campo simbólico, sugere

uma rede de significações que necessita ser assimilada, avaliada e reelaborada

pela sociedade, visando à construção de um espaço mais adequado aos anseios

e às reais necessidades dos seus usuários. A cultura histórica de uma cidade é

apreendida através de seus elementos simbólicos que expressam os diversos

discursos políticos formadores do imaginário urbano.

A categoria cultura desenvolvida por Bourdieu em A Economia das Trocas

Simbólicas (1974), representada sob a forma de símbolos, como um conjunto de

significantes e significados, é elucidada a partir de uma estrutura estruturada, que

elabora a ordem interna dos próprios símbolos – um sistema fechado, e de uma

estrutura estruturante, que é a influência do símbolo como elemento propagador

de um conteúdo cultural – um sistema aberto, situando a imagem da sociedade

como um campo de batalha que opera com base na força e no sentido. O poder

do símbolo aparece como uma estratégia utilizada pelos organizadores da ordem

social para imprimir significado político e cultural às práticas adotadas pelos

grupos no poder.

Neste contexto, o princípio do habitus se apresenta como um instrumento

que estabelece a interação entre dois sistemas de relações: as estruturas

77

objetivas e as práticas. Na realidade, o habitus é o modo pelo qual o símbolo,

enquanto estrutura objetiva, é apreendido e assimilado pela sociedade, ele

demarca novas formas ou práticas sociais, interpretações e intervenções

redimensionadas, uma leitura e a respectiva prática da realidade, com o objetivo

de dar novas significações ao processo de identidade da sociedade.

A apreensão da forma urbana se dá através de uma imagem que apresenta

material significante para a apropriação do espaço. A fisionomia (imagem) urbana

apresenta características da vida material e espiritual dos produtores do espaço e

é o resultado da escrita da história, a marca da passagem do tempo através da

imagem, do rosto e do corpo urbanos. Uma cidade vivenciada expressa a forma

com que o homem traz do imaginário novas maneiras de pensar e transformar a

realidade. Estabelecer uma relação com o imaginário é uma experiência da ordem

do sagrado, no sentido do homem poder se remeter a sua fonte original de vida, e

comunicar objetivamente conteúdos que poderão redimensionar o sentido e a

forma do cotidiano da sociedade.

A cidade-símbolo de Nietzsche (Fernando Eiras) em Dias de Nietzsche em

Turim (2001) de Julio Bressane é um símbolo da arquitetura barroca que aparece

como o cenário para a sua “expedição filosófica”. O percurso trilhado pelo filósofo

ao longo dos becos, das praças e do interior dos palácios é o alimento para um

pensamento barroco, exuberante, marcado pelo conflito entre o espírito e a

matéria. A arquitetura inspira e reflete o imaginário de um homem caminhante

(viajante) no tempo e no espaço.

Ele vivencia a cidade através do olhar e do pensamento entrando em

contato com o imaginário social em todo o seu esplendor estético e cultural. A

apropriação do espaço urbano se dá a partir de um ideal de integração entre a

cidade (a cultura) e a natureza que proporciona a abertura para a vertigem

intelectual de um espírito dionisíaco.

A fisionomia (a imagem) de Turim é o produto da escrita da história de uma

época redimensionada a partir do ponto de vista de Nietzsche em seu momento

de criação de pensamento e sofrimento interior. A cidade-símbolo italiana é

78

potencializada não só pelo seu valor cultural intrínseco, mas pela qualidade da

apropriação do filósofo em relação ao objeto de inspiração. Este encontro torna-

se, assim, da ordem do sagrado, pois ele evidencia a originalidade de um ser

humano em sua plenitude existencial.

Ao nos reportarmos à origem da cidade antiga, mais especificamente, aos

tempos da Grécia e de Roma, vemos que seu nascimento se deu a partir da união

de várias tribos, da confederação de diversos grupos. A referência não era um

indivíduo, mas, sim, um grupo organizado que se agregou a outros grupos

formando a rede urbana. A importância do grupo era um fator de estabelecimento

da ocupação física e social da cidade. A organização espontânea do espaço se

dava a partir de uma necessidade social em constituir uma infra-estrutura

adequada para o funcionamento da cidade.

Segundo Fustel de Coulanges em A Cidade Antiga (1981) a religião

exerceu papel fundamental na constituição da cidade antiga, confundindo-se, na

realidade, com o Estado, não havendo diferenciação e conflito entre os dois

poderes:

A alma, o corpo, a vida privada, a vida pública, as refeições, as festas, as assembléias, os tribunais, os combates, tudo estava sob o jugo da religião da cidade. A religião regulava as menores ações do homem; dispunha de todos os momentos da sua existência; determinava todos os seus hábitos. Ela governava o ser humano com autoridade tão absoluta que coisa alguma ficava fora do seu poder. (COULANGES, 1981, p. 175)

A mentalidade do homem da cidade antiga estava em sintonia com o espírito

religioso, materializado em seu cotidiano sob a forma de um poder absoluto. A

ação humana e suas formas representativas eram modeladas e referendadas por

valores religiosos que imprimiam um conjunto de significações que instituía o

caráter indentitário da sociedade. O imaginário social era impregnado de imagens

e de fatos da ordem do divino que redimensionavam o sentido de organização da

realidade.

O sagrado inspirava e organizava a sociedade, transformando a cidade em

um santuário, onde o culto aparecia como vínculo unificador de todas as camadas

79

sociais. Os banquetes públicos eram a principal cerimônia de culto e tinham como

objetivo a salvação da cidade, a celebração das divindades para a purificação e a

consolidação do cotidiano. A denominação de Deus era dada a todo homem que

tivesse contribuído tanto para a fundação da cidade, quanto para a sociedade,

prestando algum grande serviço social. Desta forma, percebemos que o sentido

de sagrado não se relacionava somente ao universo do imaginário, mas ele se

materializava através de práticas (rituais) que apresentavam benefícios sociais. As

celebrações despertavam no homem a sua capacidade imaginária de reafirmar o

valor do sagrado no cotidiano, as práticas religiosas e culturais alimentavam o

corpo e o espírito do homem em uma trajetória de enriquecimento dos valores que

regiam a marca ideológica do espaço urbano.

A memória da fundação da cidade antiga aparece como uma referência

religiosa e cultural, uma crença no espírito da época, que norteava o

desenvolvimento social e urbano, estabelecendo princípios de identidade para o

conjunto da sociedade. A referência geográfica do ponto de fundação - o altar

público – tinha, em contrapartida, o culto do antepassado, agregando a família ao

redor do altar. O ponto aglutinador do espírito divino e social referendava uma

delimitação física; a geometria tornava-se sagrada, protegendo e reforçando os

laços afetivos e sociais, a organização do espaço urbano se estabelecia a partir de

um fato divino constituído na realidade física do homem. O espaço de fundação

era o símbolo sagrado do princípio instaurador de um percurso histórico no qual as

práticas cotidianas iam (re) atualizando o sentido sagrado da ordem social.

O caráter público tinha um valor preponderante sobre o privado. O sentido

de organização social estava estritamente vinculado à esfera do bem comum; o

objetivo maior era a consolidação dos laços sociais que acarretariam benefícios e

sentido à vida privada. De uma certa forma, os universos público e privado não

eram estabelecidos a partir de um grande contraste, pois ambos se inter-

relacionavam de forma harmônica, havendo um conteúdo privado significativo no

universo público, que propiciava um intercâmbio de produção de conhecimento

entre os dois universos. O sentido da vida privada era delineado com base na

80

projeção de uma vida pública constituída sob o domínio do bem-estar religioso e

social da sociedade.

Nobert Elias (1897-1990) apresenta um conceito sociológico que

sistematiza o público e o privado - o de “rede de relações sociais” (1994), que se

define como:

(...) um continuum de seres humanos interdependentes que tem um movimento próprio nesse cosmos mais poderoso, uma regularidade e um ritmo de mudança que, por sua vez, são mais fortes do que a vontade e os planos das pessoas individualmente consideradas. (ELIAS, 1994, p. 46).

Este conceito estabelece o pressuposto de que o indivíduo não é um fim em si; ele

é fruto de uma estrutura social que o modela a todo o momento, apropriando-se

do seu corpo, do seu espírito, criando um imaginário que influencia a organização

da ordem material da sociedade. Os indivíduos são como “espelhos” que

desempenham a função de mostrar para outros indivíduos conteúdos que lhe são

relativos e que só serão apreendidos pela existência dessa rede de “relações

sociais”. Os reflexos das individualidades no todo criam uma prática de embates

sociais que leva a um ajustamento das partes visando o fortalecimento do espírito

do grupo. A natureza da trama social justifica a subjetivação do homem em um

contexto no qual a questão da alteridade aparece como condição para a

construção da pertinência do grupo e dele próprio. Desta forma, o

desenvolvimento do indivíduo é um meio para que o universo social justifique seu

valor no que tange ao sentido de interdependência entre os indivíduos em prol do

conjunto da sociedade. O imaginário social é uma potência que regula o cotidiano

e é alimentada pelo exercício constante de subjetivações individuais e coletivas. A

cultura que é produzida a partir destas experiências constitui um processo

permanente de apropriação de novos conteúdos do universo do imaginário

passando a regular o sentido e a forma de organização social.

O sentido do sagrado se evidencia quando consideramos o ideal de uma

geração de jovens imbuídos do desejo de transformar a realidade segundo um

potencial criativo genuíno. O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti mostra a

81

transfiguração de ideais sagrados em meros produtos de divertimentos sociais

onde a cultura é um pretexto para se efetivar uma estratégia de marketing que

vise à obtenção de lucro. A cidade é o cenário no qual presenciamos as marcas

do desgaste moral; ela aparece como ruínas das memórias de uma geração. Os

espaços sagrados de então – os bares, os restaurantes, os centros de cultura,

onde a poesia e os discursos revolucionários eram exaltados já não existem mais,

tornaram-se ruínas, vestígios do imaginário social, a cidade passa a ser um

símbolo de uma ruína no sentido físico e moral. O espaço da cidade de São Paulo,

por não sofrer apropriação por parte de seus agentes sociais, configura-se como

um lugar do anonimato no qual a repórter fotográfica Hilda (Márcia Bernardes)

denuncia a decadência do universo urbano a partir do registro de corpos

esfacelados no asfalto.

O esvaziamento da esfera pública, relativo à descrença nos valores sociais

e culturais que marcam os espaços de encontro e de produção de cultura,

provocou um movimento de retração da dimensão pública em prol da dimensão

privada. Os espaços de encontro perderam o seu sentido sagrado de agregar a

sociedade em torno das discussões sobre o destino urbano, a cidade já não vive o

seu apogeu.

A “rede de relações sociais” foi se deteriorando e provocou o fortalecimento

dos interesses privados que, na realidade, passaram a reger o espaço público, o

qual se tornou um lugar híbrido de abandono e de posse por parte dos agentes

privados.

A cidade, enquanto objeto simbólico, estético e funcional imprime na vida

do homem valores que direcionam a organização física e social do espaço. A

forma urbana ideal pode estar associada à princípios morais que propõem um

modelo que os simboliza, e à padrões estéticos e funcionais que apresentam a

cidade sob o ponto vista plástico e produtivo.

O termo ideal caracteriza um modelo onde a cidade é considerada uma

obra de arte, imprescindível como referência para a cidade real. As reformas

urbanas e as reivindicações dos movimentos sociais aparecem como uma

82

maneira de se remodelar a cidade real aproximando-a da cidade ideal. Uma obra

de arte concentra em sua forma não somente valores estéticos, mas também

outras ordens de valores que contribuam para a sua formação. O historiador

italiano Giulio Carlo Argan (1909-1992) em História da Arte como História da

Cidade (1992) apresenta o conceito de cidade ideal como uma referência do

imaginário social para a análise e a leitura dos problemas da cidade real:

A hipótese da cidade ideal implica o conceito de que a cidade é representativa ou visualizadora de conceitos ou de valores, e que a ordem urbanística não apenas reflete a ordem social, mas a razão metafísica ou divina da instituição urbana. Daí se deduz que a cidade moderna contrapõe-se à antiga exatamente na medida em que reflete o conceito de uma cidade que, não tendo uma instituição carismática, pode continuar a mudar sem uma ordem providencial e que, portanto, exatamente a sua mudança contínua é representativa, de modo que o que resta do antigo é interpretado, sim, como pertencente à história, mas a um ciclo histórico já encerrado. (ARGAN, 1992, p. 74)

O modelo ideal, enquanto função originária e justificativa da cidade, por seus

princípios estéticos, metafísicos, divinos e sociais, configura-se como um elemento

alusivo permanente para o desenvolvimento da cidade. O imaginário urbano está

impregnado de pensamentos, valores e imagens de uma cidade ideal que possa

em algum momento ser vivenciada por seus habitantes. O homem aspira a um

espaço no qual possa se efetivar uma interface harmoniosa entre as variáveis

físicas, sociais e econômicas.

O lugar da cidade ideal no imaginário urbano cada vez mais adquire uma

referência etérea, se distanciando de uma realização efetiva, mas sendo objeto de

criação sob as mais diversas linguagens artísticas. Ao mesmo tempo que a crise

dos grandes centros urbanos se evidencia, a literatura, as artes plásticas e o

cinema, buscam a expressão de uma cidade ideal como uma forma de lutar contra

o esquecimento de um espaço urbano que possa dar conta dos anseios de uma

coexistência social de maior significado humano. A partir de 1907, com a abertura

de inúmeras salas de exibição no Rio de Janeiro e em São Paulo, o cinema

brasileiro floresce no tocante à produção de curtas-metragem jornalísticos e,

posteriormente, de longas-metragem de ficção que alimentam o imaginário social

83

promovendo um reconhecimento da realidade urbana. As atuais condicionantes

sociais e econômicas estão apresentando um entrave para a constituição de

cidades sob princípios funcionais e estéticos mais adequados para a organização

social.

A busca de um modelo de cidade foi objeto de investigação de alguns

pensadores clássicos. Platão (1973), autor da doutrina filosófica relativa à teoria

das idéias (ideais, formas e arquétipos), apresenta o argumento de que as idéias

são objetos imutáveis e eternos do pensamento e que a realidade, nada mais é do

que uma cópia ou uma transformação (deterioração) da fonte original. Os

princípios superiores são elementos que servem de parâmetro para a composição

da realidade.

Platão (1973) configura seu conceito de cidade-modelo a partir de quatro

virtudes principais que norteiam a organização social em seu processo de

demarcação do espaço urbano: a sabedoria – conhecimento inspirado em idéias

divinas e humanas e pertencente à classe dos chefes (filósofos) que a dissemina

para toda a sociedade; a coragem – qualidade relacionada aos auxiliares dos

chefes, os guardiães do dogma da cidade (guerreiros); a temperança – virtude

caracterizada como um elemento mediador a todas as classes, estabelecendo

uma prática de moderação entre elas; e a justiça – a faculdade que constitui a

base das outras virtudes, fonte de ordem e força sociais, princípio inspirador da

divisão do trabalho e da especialização das funções, visando ao progresso moral

da sociedade.

As virtudes apresentadas por Platão são configuradas a partir da divisão de

classes e de uma estrutura político-econômica que qualifica o destino da cidade:

A ventura da cidade é, além do mais, condicionada por seu estado econômico. A cidade feliz não deve ser demasiado rica, nem demasiado pobre, pois, enquanto a riqueza engendra a ociosidade e a moleza, a pobreza faz nascer a inveja e os baixos sentimentos, sempre acompanhados de um triste séqüito de desordens. Quanto ao território, o justo limite intransponível é o que conserva ao Estado a sua perfeita unidade. (PLATÃO, 1973, p. 25)

84

O caráter pragmático do estabelecimento das virtudes apresentadas por Platão

não tem o objetivo de promover apenas uma afirmação econômica e social, e, sim,

o de conformar um universo moral para o conjunto da sociedade segundo os

princípios de justiça social. A sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça

aparecem como virtudes a serem promovidas no interior da estrutura social da

cidade no intuito de constituir a base para a criação de um espaço que possa

manter e atualizar os princípios éticos e morais que inspiraram a formação da

sociedade, a forma do espaço reflete os princípios elaborados no plano das idéias.

O imaginário urbano é uma fonte geradora de idéias e imagens que é

sistematizada sob uma ordem material e política instauradora de um

processo de ressignificação da fonte criadora.

Apesar de correlacionar o espaço da cidade à princípios (virtudes) que

regem o espírito da organização social, Platão sistematiza de maneira rigorosa as

classes sociais da cidade ideal: filósofos, guerreiros, artífices e agricultores. Ele

subestima os movimentos e os desafios naturais do funcionamento da pólis,

aprisionando as funções humanas e sociais de forma centralizadora, fixa. A

dinâmica do crescimento urbano: a variedade, o conflito e a desordem natural de

certas experiências sociais, não é levada em conta em seu projeto de

aprimoramento da vida na cidade. A diversidade cultural da experiência urbana é

um dado fundamental para o engrandecimento da consciência do homem em seu

cotidiano, revelando novos significados que não estão previstos em um modelo

rígido de sociedade.

O olhar sagrado de Regina (Fernanda Montenegro), em O Outro Lado da

Rua (2004) de Marcos Bernstein, em relação ao que ela acredita ter visto a

impulsiona ao longo de uma trajetória marcada pela aproximação com o outro –

Camargo (Raul Cortez), e pela libertação do seu olhar e do seu corpo. A cidade

dura, traiçoeira, real, aos poucos vai dando lugar a uma cidade “ideal”, no sentido

de ainda poder se experimentar algo da ordem do afetivo em um universo

desregrado em virtudes, mas que ainda pode estabelecer um equilíbrio na

organização social.

85

A cidade “ideal” de O Outro Lado da Rua tem a forma de uma ilha isolada

que pode coexistir dentro de um oceano repleto de ameaças sociais e morais, ela

se tornou uma cidade “possível” em relação a um grau de tolerância e

coexistência à cidade real. As virtudes propagadas por Platão se situam no

imaginário social e são apenas referências isoladas para um modelo de cidade de

nosso cotidiano.

Na realidade, não existe a possibilidade de um modelo ideal de cidade. Por

ser um organismo em constante processo de mudança decorrente da diversidade

das variáveis econômicas, sociais, políticas e culturais, a cidade se constitui como

um organismo “imprevisível” nas repercussões da forma e da função determinadas

a priori.

Segundo o historiador de religiões Mircea Eliade (1907-1986), pesquisador

da linguagem dos símbolos nas religiões, em sua obra Mito do Eterno Retorno

(1992), o espaço da cidade na Antigüidade era um espaço de natureza do sagrado

visto que o homem tradicional, na articulação com o seu meio social, reportava-se

à mitos - à padrões arquetípicos, que se configuravam com base na idéia de

semelhança ao “centro do mundo”, que aparece como uma região considerada

realidade absoluta, cuja constituição se dá quando ocorre a imitação ou a

repetição de um arquétipo. O imaginário da cidade alimenta a construção do

cotidiano da sociedade enquanto acervo estabelecido a partir de valores

ancestrais. O sentido do sagrado mantém a sociedade em um “tempo eterno”, de

manutenção da vida - o espaço sagrado; em contraposição ao espaço profano,

que se constitui em um universo distante do conhecimento superior, espaço que

se caracteriza por um esvaziamento de referenciais religiosos e culturais

significativos para a organização social.

Na realidade, a repetição de um arquétipo é a manutenção do ato divino de

criação, onde o caos se transforma em cosmos. A permanência do ritual no

mundo primitivo se deu com base no protótipo divino - cidade celestial , situada

em uma “região ideal da eternidade”. Eliade declara:

86

As cidades também têm protótipos divinos. Todas as cidades babilônicas tinham seus arquétipos nas constelações. (...) Não só existe um modelo que precede a arquitetura terrena, mas o modelo também se encontra situado numa região ideal (celestial) da eternidade. (ELIADE, 1992, p. 20)

A natureza simbólica da cidade antiga era sagrada, sendo considerada de fato um

“espaço”, pois havia uma prática religiosa do “lugar”, uma busca antropológica de

transcendência da realidade material. A cidade tinha um caráter rico em

subjetivações que a transformava em um grande santuário, repleto de

apropriações para a permanência da representação da cidade celestial no mundo

físico. O imaginário urbano era o próprio locus do espírito divino, influenciando a

elaboração da matéria e mostrando através dela a presença do sagrado no

cotidiano.

A importância da tradição para o conhecimento do papel do homem no

contexto social aparece como elemento que estabelece uma relação entre ele e

seu passado de modo a manter a continuidade e o desenvolvimento da sociedade.

A herança cultural e social constituída a partir de instituições, crenças e costumes,

e transmitida pela história oral e escrita, é uma fonte que alimenta o imaginário

social apresentando material para a aquisição de inovações e para o

estabelecimento de novas elaborações da realidade.

O sentido do momento histórico do homem reside no valor da tradição e na

forma com que ele ressignifica sua herança frente ao tempo presente. Segundo

Eliade (1992), podemos, então, nos referir ao momento do Homem Tradicional,

aquele que vive o “tempo mítico”, de natureza cíclica, distante do materialismo

histórico; e ao momento do Homem Moderno, sintonizado com o “tempo concreto”,

histórico, atento ao valor dos acontecimentos, das constantes novidades que

surgem em seu mundo. A produção simbólica do Homem Tradicional se constitui

como elemento de comunicação com o sagrado, no intuito de trazer e manter no

espaço da cidade os princípios divinos e éticos, permitindo que a organização

social seja a base da justiça e do conhecimento. Por outro lado, a conformação

simbólica do Homem Moderno é de natureza profana, estritamente ligada aos

fatos históricos, sem contrapartida com um referencial que transcenda ao

87

materialismo ideológico e econômico. Desta forma, percebemos que o símbolo é

manipulado a favor de certos grupos sociais, não contribuindo para a efetivação

genuína do perfil identitário da sociedade moderna. O distanciamento de valores

absolutos impede a regulação da vida social e conduz a um processo de alienação

que afasta o indivíduo de sua fonte superior de vida.

A cidade e o homem guardam em suas origens a influência do poder do

mito que atua como elemento que dá sentido e fornece subsídios éticos e morais

para o desenvolvimento de suas trajetórias. Os embates cotidianos estão a todo o

momento se reportando aos mitos ancestrais e fornecendo material para o

redimensionamento da vida humana. As “marcas de origem” (mitos) estão

presentes no imaginário do homem e são reelaboradas com o objetivo de ampliar

a capacidade de transformação do ambiente social e cultural. O mito, através de

suas narrativas repletas de significados simbólicos, engendra no cotidiano do

homem a possibilidade de se efetivar uma transcendência dos valores materiais

que enrijecem a produção espontânea de material significante.

Os mitos vividos pelos personagens que aparecem nos filmes em análise

podem provocar uma transformação, uma superação, da ordem do humano,

levando a um suposto “final feliz” – o caso de Regina e Camargo em O Outro Lado

da Rua, ou a um “final trágico” – a superação intelectual de Nietzsche em Dias de

Nietzsche em Turim que o leva à loucura.

As “marcas de origem” (mitos) podem, também, apenas oferecer uma

vivência retrospectiva da vida de um grupo social levando a um questionamento

do que foi vivido e de suas marcas afetivas, culturais e sociais, é o caso de

Gustavo e de sua geração em O Príncipe. Desta forma, o mito na trajetória desses

personagens promove a vivência do sagrado, a possibilidade do exercício de

superação e de reconhecimento do que foi possível viver.

88

2.3. O corpo na prática do espaço

O homem urbano no processo de apropriação da cidade produz em seu

cotidiano um imaginário que atua como um universo unificador de consciências,

constituidor de idéias, imagens, ações e sentimentos. Esse universo tem como

base uma estrutura social, onde os objetos e os fatos urbanos se estabelecem a

partir de ideologias com objetivos determinados por um percurso de práticas e de

sistematização de idéias.

A cidade se apresenta como um símbolo, um instrumento conformador de

mentalidades, ela não desempenha somente a função de um objeto estético, mas,

também, de um elemento psicossocial, que desperta reações que tanto

configuram a consciência humana e estabelecem um registro de natureza

psicológica, quanto atribui ao homem a determinação de um novo sentido de

espaço, fruto de um processo de apropriação. O historiador Maurice Halbwachs

em A Memória Coletiva (1990) declara:

Quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem. Ele se fecha no quadro que construiu. A imagem do meio exterior e das relações estáveis que mantém consigo passa para o primeiro plano da idéia que faz de si mesmo. Ele penetra todos os elementos de sua consciência, comanda e regula sua evolução. (HALBWACHS, 1990, p. 133)

Temos, então, uma troca permanente de impressões e ajustes que (re) alimentam

a função do símbolo urbano, a qualidade da experiência do homem no espaço

produz transformação e/ou manutenção de formas e intervenções urbanas

instituídas. O símbolo vai se redimensionando de acordo com o momento histórico

e o perfil psicológico do grupo social. O espaço praticado leva a uma reelaboração

do imaginário social e sua respectiva produção simbólica, onde o homem ao

praticar o lugar estabelece um caminho de novas formas urbanas que irão instituir

um novo discurso, no qual o modo de narrar simboliza a qualidade da

transformação social. As narrativas do universo urbano refletem um estado de

percepção resultante do impacto da cidade no corpo humano.

89

Os relatos do cotidiano urbano organizados pelo homem demarcam um

diálogo permanente que constitui uma elaboração simbólica. O teórico colombiano

Armando Silva em sua obra Imaginários Urbanos (2001), cujo trabalho abrange a

arte, a cidade e os meios de comunicação, comenta sobre a experiência da

narrativa urbana:

Se alguém vê um aviso, se deduz o seu sentido ou se responde com atos reais a uma motivação urbana, em todos os casos fala com a cidade. Se caminha em alguns roteiros em vez de outros, se segue um caminho ou decide abordar um ponto da cidade a certa hora da manhã ou à noite, fala com a cidade. (SILVA, 2001, p. 77)

O processo de comunicação entre o homem e o espaço urbano promove uma

ressignificação permanente da forma e da intervenção urbanas constituindo,

assim, um redimensionamento da produção imaginária e simbólica. O diálogo

entre eles alimenta a dinâmica da “rede de relações sociais” que amplia o olhar do

sujeito em relação aos diversos elementos constitutivos da vida urbana. A prática

de comunicação, a apreensão da realidade, o aprofundamento da percepção do

homem em relação ao seu universo físico e cultural e a respectiva instituição de

novos significados aos diversos elementos compõem a forma e o sentido da

cidade. A qualidade do conteúdo da experiência urbana influencia o destino da

organização e do funcionamento da sociedade ao longo de seu percurso histórico.

Em O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti o personagem Mário (Ricardo Blat)

é o porta-voz da desordem social e urbana que passa a sociedade brasileira, a

desintegração mental vivida por ele na realidade aponta para a importância de se

transformar a vida nas grandes cidades. Mário tem consciência do caos no qual

nos encontramos, ele fala com a cidade e se comunica com a paisagem ao seu

redor. Em um dos momentos do filme percebemos sua preocupação em relação à

qualidade de vida na cidade de São Paulo. Ele conversa com Gustavo sobre a

Rua Morato Coelho na qual eles residem: “Já viu a velha rua? ... Então espera

para ver o resto da cidade. Um monte de bosta e uma paisagem toscana na

primavera dessa cidade! Você vai ver!”. A loucura de Mário não o impede de

90

vislumbrar novos caminhos e necessidades e reconhecer a degeneração da

paisagem urbana decorrente da alienação e do descaso dos que habitam e

produzem no espaço da cidade.

A chegada de Gustavo depois de 20 anos morando em Paris e o seu

espanto diante da descaracterização física e social da Rua Morato Coelho

simboliza o estado atual da fisionomia (da imagem) das cidades brasileiras. O

desequilíbrio mental de Mário é o reflexo de uma paisagem social doente no

tocante à sua forma e à organização de seus conteúdos sociais e culturais.

Segundo a avaliação do próprio Mário o que ele está sofrendo se rotula de um

“desabamento central da alma”, a cidade, assim, passa por um processo de

“desabamento” de sua paisagem, de seus princípios estéticos e sociais. A falta de

comunicação do homem com o meio ambiente urbano tem configurado paisagens

desbotadas, desprovidas de identidade, as paisagens das cidades já não

conseguem ser mais fontes de inspiração para a vida de seus habitantes.

O imaginário, como um dado fundamental da experiência humana, institui

uma intermediação entre dois universos paralelos e complementares: o universo

do indivíduo e do grupo e o contexto no qual eles se dispõem como agentes

sociais. Esta contextualização, que é resultado da própria ação do grupo social, se

constitui em uma reformulação permanente para o grupo, formando uma rede

complexa, na qual seu desenvolvimento ocorre de forma constante através de

novas configurações e atribuições que o homem e os universos físico e cultural

afirmam em correspondência às novas reapropriações.

A regulação da vida coletiva através do imaginário social demarca a

importância de se produzir determinados símbolos, visto que: “(...) os imaginários

sociais repousam sobre o simbolismo que é, ao mesmo tempo, sua produção e

seu instrumento” (BACZKO, 1984, p. 18). A constituição simbólica no espaço

urbano estabelecido tem o intuito de identificar ideologias que estão representadas

através de obras e elementos arquitetônicos. Percebemos a marca política em

determinadas obras que expressam a forma como o Estado interpreta a realidade

e marca sua presença na história. O lado monumental da arquitetura exprime o

91

pensamento e o desejo de seus promotores em estabelecer uma presença

suprema da afirmação humana. Como afirma o teórico da Nova História Cultural

Bronislaw Baczko (1985), o imaginário social é um epifenômeno do real, ele se

materializa através das formas e das idéias produzidas pelo homem. A cidade é

um instrumento de leitura da mentalidade de quem exerce o poder de instituí-la

enquanto objeto estético e social. Baczko prossegue:

Todas as cidades, são, entre outras coisas, uma projeção dos imaginários sociais no espaço. A sua organização espacial atribui um lugar privilegiado ao poder, explorando a carga simbólica das formas (o centro opõe-se à periferia, o acima opõe-se ao abaixo). A arquitetura traduz eficazmente, na sua linguagem própria, o prestígio que rodeia um poder, utilizando para isso a escala monumental, os materiais, etc. (BACZKO, 1985, p 313)

A memória de uma cidade se constitui a partir da história de seus elementos

materiais que produzem símbolos representativos da mentalidade social. Os

símbolos urbanos – os monumentos, as obras arquitetônicas e os sítios urbanos e

paisagísticos são elementos de produção do imaginário de uma sociedade e

formam a referência para o estabelecimento de uma linguagem que promova a

troca de idéias e de experiências sobre o percurso da cidade, o rumo que ela está

percorrendo ao longo da história. A cidade é a expressão maior do universo

subjetivo das relações humanas e sociais na busca de um espaço que seja um

elemento funcional e simbólico representativo da vida urbana.

A subjetividade do elemento concreto - a forma urbana, propicia um

discurso que conforma, de modo subliminar, o inconsciente do homem. A matéria

demarca no inconsciente impressões que irão redimensionar o pensamento e a

ação do homem em seu cotidiano. A linguagem humana é sistematizada através

de símbolos identificadores de experiências situadas em um determinado espaço

que é o universo no qual o homem elabora seu inconsciente a partir de

determinantes individuais e sociais, ele redefine o espaço com base em uma

experiência particular de elaboração de seus conteúdos internos.

No intuito de alcançarmos um estágio de significação pertinente entre o

homem e o espaço, urge a necessidade do reconhecimento da cidade enquanto

92

símbolo psicossocial, de uma explicitação afetiva em relação ao seu corpo. O ato

de deflagrar o afeto do homem em seu espaço cotidiano sistematiza uma prática

de sedimentação de elementos formadores da identidade do objeto urbano,

delimitando um quadro imagético identificador dos valores socioculturais da

sociedade, o afeto materializa intenções e promove o transbordamento dos

conteúdos espirituais do objeto desejado.

A linguagem do corpo da cidade está diretamente relacionada à linguagem

do corpo do homem. Richard Sennett em sua obra Carne e Pedra (1997), na qual

apresenta uma nova história urbana através da experiência corporal, estabelece o

argumento de que:

Em geral, a forma dos espaços urbanos deriva de vivências corporais específicas a cada povo: este é o meu argumento em Carne e Pedra. Nosso entendimento a respeito do corpo que temos precisa mudar, a fim de que em cidades multiculturais as pessoas se importem umas com as outras. (SENNETT, 1997, p. 300)

O corpo marca o tecido urbano com uma carga de sofrimento, uma energia afetiva

que engendra novas configurações, funções, reformulando a cultura do espaço. A

cidade se justifica a partir do corpo do homem em suas constantes intervenções

cotidianas, na incorporação de mitos de seu “mapa”, ou seja, na constituição de

um verdadeiro “percurso” humano, de acordo com Certeau (1994). O “percurso” se

apresenta como um instrumento antropológico, um ato de enunciação, que se

constitui ao longo do “mapa”, do aparato físico no qual se dá a narrativa urbana.

A idéia de Sennett de que a vivência do homem, o choque do corpo no

tecido urbano, influi na forma das cidades, nos leva a pensar a respeito das

relações entre os corpos humanos na prática do espaço, a importância da

qualidade do contato na instituição de formas urbanas significantes. A carga

afetiva resultante das experiências dos diversos percursos ao longo do espaço da

cidade apresenta uma tipologia que sugere determinados estados de espírito.

Temos espaços de contemplação (parques e praças), tensão (favelas e

complexos penitenciários), alegria (praias e bares), tristeza e dor (cemitérios e

hospitais), reflexão (centros de cultura). O homem é influenciado pela forma e pela

93

função dos espaços que organizam a vida da cidade, como também ele subverte,

redimensiona o seu sentido original. A prática do espaço institui um imaginário

próprio à produção cultural do homem no percurso histórico de desenvolvimento

das qualidades sociais e humanas.

O corpo e a mente de Nietzsche (Fernando Eiras) em Dias de Nietzsche em

Turim (2001) de Julio Bressane invadem a arquitetura e a cidade italianas

promovendo um encontro de mentalidades barrocas, “Eis a cidade de que eu

precisava nesse momento ... Esta é uma cidade feita por encomenda para mim ...”

O potencial de arte e de pensamento de Nietzsche reverbera diante de espaços

que geram reflexão e contemplação. Após dez anos de expedições por Sorrento,

Gênova, Veneza, Zurique e Nice, ele reconhece que Turim “era o primeiro lugar

onde ele era possível” (CHAMBERLAIN, 2000, p. 58).

O clima, a arquitetura e a cidade são elementos que aceleram a idëia de

“vontade de potência” preconizada por ele. O encontro (o choque) entre o corpo

de Nietzsche e o corpo de Turim desencadeia o processo de explosão do

imaginário do filósofo: “Eu não sou um homem, sou uma dinamite”.

Os mitos gregos – Apolo (a arte) e Dionísio (o êxtase) inspiram e regem o

percurso de Nietzsche ao longo de Turim. Esta cidade digna, severa, uma

verdadeira residência do século XVII com seus 300 mil habitantes, é o cenário

para a vivência do ritual de seu corpo no espaço. A contemplação do belo o leva

ao êxtase diante da arquitetura e da cidade e da produção do pensamento. A

vivência dos mitos de Apolo e Dionísio é o insumo para a constituição de um

“percurso” celebrado pela arte e pelo pensamento. A geografia de Turim – o

“mapa da cidade”, o “lugar” no qual o filósofo passa por um exercício da ordem do

afeto, do belo e da razão, elementos que produzem uma prática do espaço e que

instituem uma forma urbana sagrada em seus princípios estéticos e funcionais.

A “expedição filosófica” transcorrida em Turim se utiliza da estética da

arquitetura, da cidade e da natureza para o exercício do papel de filósofo que é o

de “superar em si seu tempo, tornar-se atemporal”. O imaginário de Nietzsche se

enriquece ao se defrontar com o imaginário social de Turim materializado em cada

94

pedra da cidade, as pedras dos edifícios barrocos são a marca e o arquivo do

espírito de uma civilização.

95

Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane

Nietzsche observa e interage com a arquitetura

A expedição de Regina (Fernanda Montenegro) em O Outro Lado da Rua

(2004) de Marcos Bernstein é da ordem do visual visto que ela espia o outro em

busca de delação. Da sua janela com a ajuda do binóculo Regina espreita

Camargo (Raul Cortez) em um suposto crime. Na realidade, ela é vítima de uma

cilada armada pelo seu próprio ofício, a espiação de Camargo é o pretexto para

ela se aproximar de seu desejo, de se entregar ao outro e conquistar a liberdade.

96

O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein

Regina espia Camargo em seu apartamento.

O corpo tenso e deprimido de Regina enquadrado na janela de um edifício

de uma grande cidade é um corpo-objeto, um organismo passivo, à espera de um

outro olhar, de um outro corpo desejante, o corpo dela no apartamento é mais um

objeto de uma cena marcada pela solidão e pela tristeza. Por outro lado, o corpo

de Regina no espaço da cidade é ativo, ágil no movimento e malicioso no

pensamento. A passagem do universo privado (o apartamento) para o público (a

cidade) é feita sob um olhar inquisidor da realidade urbana, ela sai à busca de um

sentido de justiça no trato social, reflexo de seus desencontros afetivos e

familiares.

97

O “mapa” do cotidiano de Regina se restringe às ruas e à praia de

Copacabana, áreas próximas ao seu apartamento – uma “caverna-símbolo” da

exaltação do olhar e do corpo oprimido. A prática do “lugar” de Regina está

associada a uma vivência da cultura do perigo e da desconfiança pelo outro, ela

se expõe a cada momento de sua jornada. O “percurso” criado por ela se estrutura

a partir de um combate de corpos, mentes e afetos subordinados às ameaças de

um imaginário urbano em guerra. Vemos, então, um “espaço” retraído que

segrega os seus habitantes em apartamentos confinados, à espaços públicos

cercados e rotulados por um tipo de necessidade social – a praça dos velhos e o

submundo das casas noturnas onde mora o “perigo”. Copacabana de O Outro

Lado da Rua é o lugar de corpos em constante processo de exaltação e sujeitos a

uma demanda social oriunda de um espaço de tensão como a favela localizada no

bairro.

A favela, enquanto espaço de tensão social, evidencia a experiência

brasileira através de uma expressão urbanística que simboliza uma dívida social

marcante para as classes menos favorecidas. O aglomerado de subabitações,

sem infra-estrutura, denominado favela começa a se formar no Rio de Janeiro no

começo do século XX, mais especificamente nos anos 40 e 50, devido à migração

das populações das zonas rurais para a cidade. Este fenômeno é universal e

reflete a marcha de urbanização acelerada ocorrida no mundo após a Segunda

Guerra Mundial. Na realidade, a primeira favela do Rio de Janeiro surge em 1897

no morro da Providência, antigo morro da Favela, ocupado pelos ex-combatentes

da Guerra dos Canudos. Os morros cariocas tornam-se locais de assentamento

de comunidades organizadas fora dos padrões construtivos e urbanísticos.

A ausência de uma política habitacional tem levado a população de baixa-

renda a ocupar áreas sem uma infra-estrutura adequada para a subsistência

humana. O corpo de um habitante de uma favela é carregado de ameaças que

partem do seu próprio espaço – a pobreza, a violência e a falta de infra-estrutura,

e da sociedade que o rotula como um corpo segregado, marcado por uma

diferença que desorganiza a ordem social. Por outro lado, a forma do espaço da

98

favela fortalece o corpo exigindo dele uma performance vertiginosa (do

movimento) na prática cotidiana. As ruas estreitas, íngrimes e sinuosas

demandam agilidade, malícia e ritmo do corpo do habitante da favela em seu

percurso. A proximidade característica entre os elementos arquitetônicos e

urbanísticos produz um tipo de vida marcado por um alto grau de sociabilidade.

A natureza do espaço da favela é da ordem do movimento – o movimento

social, do corpo, da geografia e do espaço arquitetônico e urbanístico. A arquiteta

e pesquisadora Paola Berenstein Jacques em seu livro Maré, vida na favela

(2002) tem como objeto de investigação a dinâmica do movimento do corpo no

universo do espaço da favela. O percurso vivenciado ao longo dos becos e ruelas

das favelas produz uma ginga própria à experiência corporal em um “espaço-

labirinto” que transforma o corpo em um elemento que produz um desenho no

espaço. A pesquisadora comenta sobre a natureza do espaço da favela:

As favelas são espaços em movimento. A idéia de espaço em movimento não estaria mais ligada apenas ao próprio espaço físico mas sobretudo ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo e, ao mesmo tempo, ao movimento do próprio espaço em transformação. O espaço em movimento é diretamente ligado a seus atores (sujeitos da ação), que são tanto aqueles que percorrem esses espaços no cotidiano quanto os que os constroem e os transformam sem cessar. (JACQUES, 2002. p. 56)

A narrativa urbana se constitui através da palavra e do movimento do corpo que

nomeiam a forma e o sentido dos lugares em um processo de criação de uma

identidade representativa da cultura e do imaginário da cidade. O corpo é o

protagonista da prática do espaço cuja presença elabora a todo momento novas

leituras e criações acerca de um momento pulsante da realidade urbana. O

movimento orgânico do corpo no espaço da favela aparece como uma

contrapartida do movimento contido do corpo no espaço urbano tradicional. O

desenho de uma cidade é resultante do percurso do homem na busca de

otimização de suas ações cotidianas.

A prática do espaço é conseqüência de um processo de experimentação da

imagem da cidade e da própria imagem do homem. O caráter familiar que o sujeito

99

passa a estabelecer com sua imagem possibilita uma ruptura do sentimento de

estranheza consigo mesmo, e uma difusão de um sentido de transparência com

relação ao outro. O sistema social se torna permeável às trocas afetivas e

promove um revigoramento da estrutura como um todo, que passa a justificar e

valorizar o papel dos elementos participantes. Desta forma, a cidade se apresenta

como uma tela viva, pronta para sofrer a realização de leituras e apropriações

simbólicas.

A subjetividade peculiar da relação entre o homem e a cidade evidencia,

sob o ponto de vista da corporeidade, um sentido de uma imagem pessoal – o

corpo humano, que se dissemina através do espaço subjetivo da cidade, o qual é

considerado como o macro-corpo do homem. A apropriação corpórea se constitui

quando o sujeito é integrado ao seu corpo original, assimilando todas as

correlações entre os conteúdos subjetivos e objetivos concernentes a ele, e

projetando no corpo da cidade, a carga individualizadora de sua experiência. A

manifestação do fator inconsciente na estrutura corpórea é redimensionado no

objeto urbano, no qual seu conteúdo passa a ser vitalizado, sofrendo um

tratamento objetivo, marcado por elaborações que não poderão ocorrer sem uma

contrapartida da estruturação simbólica, da própria subjetividade que emana da

cidade.

As produções cinematográficas apresentam um imaginário urbano

concentrado em cenas que mostram o processo de construção de símbolos no

tempo e no espaço de uma narrativa. O corpo da cidade e dos personagens são

símbolos representativos do imaginário social expressos pela estética do cinema e

que ampliam o significado da realidade urbana.

2.4. Esquecimentos e criações

Os elementos e os fatos procedentes do imaginário e representativos de

uma corrente ideológica definem papéis e funções que são incorporados aos

100

mecanismos de organização e de funcionamento da cidade. A cidade estabelece

em sua geografia uma tipologia física e cultural, algumas vezes assimilada de

forma radical pela sociedade, que pode impedir a reformulação de sua estrutura,

dos objetos urbanos conceitualmente estabelecidos, obstaculizando uma nova

configuração que tenha como meta o redimensionamento do espaço. Desta forma,

o acervo subjetivo (o imaginário) se torna refém dos mecanismos de organização

social. A implementação de uma proposta urbana deve ter como origem o campo

do imaginário social, não podendo se esquecer de que a nova proposta deve ser

pertinente às reais necessidades da sociedade. Algumas medidas técnicas são

necessárias para o desenvolvimento do espaço urbano no que se refere ao início

de um processo de mudanças sociais e culturais.

Segundo Halbwachs (1990), a expropriação, que é um instrumento legal de

retirada da posse de um bem imóvel para o uso coletivo, aparece como um fato

necessário para a evolução urbana, responsável pela dinâmica do processo de

transformação do espaço da cidade. A reformulação de parte da imagem já

estabelecida é uma forma da cidade poder atender às mudanças do uso do solo e

às novas perspectivas culturais e sociais. Essa medida permite que se possa

trazer do imaginário social elementos que irão redimensionar a forma e o sentido

do objeto urbano, o imaginário social alimenta a realidade e, ao mesmo tempo,

reconfigura seu próprio universo gerador de novos significados sociais.

O sentido do esquecimento no processo de reformulação do espaço da

cidade é um insumo importante no que se refere à reconfiguração da memória

social. O ato de expropriar, de implementar novos projetos urbanísticos,

paisagísticos e arquitetônicos, significa promover o esquecimento de

determinados elementos impróprios a um momento histórico e reencaminhar o

que deverá fazer parte do acervo material e ideológico da sociedade. A cidade não

se sustentaria enquanto objeto social se não houvesse uma apropriação de novos

conteúdos sociais e econômicos que vão surgindo.

O esquecimento é uma marca do processo de desenvolvimento humano. A

conquista de novas experiências requer a vivência de libertação das amarras da

101

memória, dos abusos que ela sofre e pode gerar ao homem. O psicanalista inglês

Adam Phillips em seu artigo A Memória Forçada (2005) discorre sobre o sentido

de uma memória forçada:

A memória forçada, como toda forma de doutrinação, é na verdade medo da memória ou daquilo que pode surgir dela, caso permitamos que funcione sem interferência. Para permitir que a memória funcione como é preciso, o esquecimento é necessário; o tempo, o metabolismo, a dilação do esquecimento. Esquecer precisa ser permitido, se queremos dar uma chance à memória – memória não-manipulada, memória desregrada. (PHILLIPS, 2005)

O peso da força da memória deve ser relativizado por um esquecimento cujo

sentido é de poder dar espaço à criação, ao novo como uma decorrência de uma

história de vida, libertando o excesso de experiências trágicas que inibem e

aprisionam a esperança, a renovação. O decorrer do tempo traz a necessidade de

se livrar (esquecer) parte das impressões vividas e preencher o percurso do

homem com novas aquisições que irão se tornar material da memória. O

metabolismo humano funciona como um processo no qual os mecanismos

químicos, psicológicos e sociais transformam a realidade produzindo perdas,

esquecimentos e criações. O prolongamento do poder da memória se dá através

do esquecimento que abre um campo para a reorganização da capacidade de

registrar e lembrar de fatos do cotidiano.

A memória urbana se constrói em uma sistemática na qual ocorrem perdas

- construções são demolidas e áreas remodeladas, e aquisições - novas

construções, apropriações diferenciadas e expansões urbanas surgem no cenário

urbano. A imagem da cidade se institui a partir de visões ideológicas específicas,

onde se determina o que será transformado (esquecido) e a forma para se atingir

tal transformação. A reorganização do espaço demanda um questionamento dos

códigos instituídos e da respectiva memória instituída. O rito de passagem para

uma nova proposta espacial propiciará ao homem um estímulo ao

desenvolvimento de sua consciência, pois o sentido de ruptura levará a um

redimensionamento do tempo presente, com base no passado recente e na

perspectiva de um porvir.

102

Os elementos representativos da memória social e urbana da cidade de

São Paulo em O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti estão em crise diante de um

presente que denuncia um “esquecimento forçado” da sua história. A arquitetura

foi transfigurada, algumas vezes, apagada do ambiente urbano gerando uma

perda de referenciais do corpo da cidade que resvala no corpo do homem, a

quebra do sentido de identidade urbana repercute na dinâmica da identidade

social. O homem se vê esquecido de si próprio, mutilado, em decorrência das

perdas desqualificadas que a cidade vem sofrendo ao longo do tempo. O novo

aparece não como um ganho para o processo de desenvolvimento social, mas

como um elemento de degeneração da cidade enquanto organismo vivo. A Rua

Morato Coelho, em franco processo de decadência física e visual, o fim da poesia

e da música da Galeria Metrópole, os restaurantes e os bares nos quais Gustavo

(Eduardo Tornaghi), Maria Cristina (Bruna Lombardi), Renato (Otávio Augusto),

Mariano Esteves (Ewerton de Castro) e Aron (Elias Andreato) conspiravam por

novos rumos estéticos e sociais já não mais existem, eles se tornaram apenas

“lugares” de um passado, essa materialidade da cidade está extinta, apesar de

fazer parte do imaginário da sociedade paulista. O esquecimento (a perda) é da

ordem da matéria (objetos urbanos) e do ideal, mas a vivência do “lugar”, a

criação de um “espaço”, não será apagada da memória da geração de Gustavo. A

fonte de inspiração da criação do novo e do resgate simbólico de um momento

histórico está presente no imaginário social e pode ser ativada pelos agentes

sociais produtores do “espaço”.

103

O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti

A degeneração da Rua Morato Coelho.

As grandes reformas urbanas, as mudanças da forma e do conteúdo trazem

novos discursos com uma carga simbólica diferenciada, remanejada do universo

do imaginário social. Este é reelaborado, constituem-se novos aspectos

representativos sob um tempo histórico que estrutura um quadro imagético

urbano, símbolo do olhar de diversos segmentos sociais. As imagens produzidas

representam o discurso da própria sociedade e dialogam de forma permanente

com seus observadores, elas marcam a história de um grupo social e, ao mesmo

tempo, são responsáveis pela transformação do discurso original.

O início do século XX aparece, dentro do percurso histórico da cidade do

Rio de Janeiro, como um período de mudanças radicais no que se refere à

estrutura urbana. A Reforma de Pereira Passos – Francisco Pereira Passos (1903

–1906), que foi um dos responsáveis pelo antigo plano da Comissão de

104

Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro (1875), jamais implementado -

aparece como um marco da implantação de um espaço marcadamente capitalista,

onde a cidade sofre uma restruturação para atender às necessidades reais da

criação, concentração e acumulação de capital.

A administração de Pereira Passos representa um momento de ruptura,

fundamental na relação entre o Estado e a Cidade, mudança representativa e

acelerada da estrutura urbana, tanto em relação à aparência (morfologia urbana),

como ao conteúdo (distinção de usos e de classes sociais no espaço). A cidade se

enquadra em um novo campo epistemológico, onde as categorias sociais detêm

uma lógica de funcionamento a serviço das funções produtivas. O imaginário é

redimensionado a partir das novas formas e conteúdos idealizados para a

constituição do espaço urbano.

No novo contexto, a cidade se estrutura a partir da constituição de “bairros

burgueses” (privilegiados pelo Estado) e “bairros proletários”. A natureza do

espaço se define em termos de núcleo versus periferia, sendo a classe proletária

levada a ocupar a periferia devido às grandes demolições ocorridas nas áreas

centrais, onde passam a exercer funções diretamente ligadas à criação de uma

nova capital, símbolo de um dos principais portos exportadores de café do mundo.

O que está em jogo na “cirurgia urbana” adotada é a questão do

embelezamento da cidade, que não se refere somente a uma nova imagem

arquitetônica e urbanística, mas a um embelezamento econômico, político e

social, através da retirada da população trabalhadora do centro, apresentando

uma nova função à região central como área ligada à interesses especulativos e

comerciais, de deleite social e cultural das classes privilegiadas e da instituição da

imagem política da cidade enquanto sede do poder nacional.

O período de Pereira Passos, inspirado na concepção clássica de

Haussmann, em alusão à grande reforma urbana francesa, tem como princípio

norteador o de dar importância cada vez maior à cidade no contexto internacional,

atraindo capital e afirmando o papel político do Estado Brasileiro. A cidade se

transforma em um símbolo dinâmico da modernidade, espaço de atrações

105

culturais e econômicas que explora a expansão de sua imagem para o mundo. O

imaginário urbano criado institui um espaço que é pertinente à lógica dominante

de um imaginário globalizado.

O processo de reformulação do tecido urbano deve se efetuar a partir de

uma visão sistêmica da natureza do espaço e da sociedade. Armando Silva (2001)

classifica o espaço em quatro categorias: o espaço histórico – o local da memória

do desenvolvimento social; o espaço tópico – a estrutura física da cidade; o

espaço tímico – o processo de percepção do corpo humano em relação ao corpo

da cidade; e o espaço utópico – “(...) onde observamos os seus imaginários, os

seus desejos, as suas fantasias, que se realizam com a vida diária” (SILVA, 2001,

p. 77). A intervenção física é o resultado das diversas experiências que o homem

realiza em seu processo de apropriação do corpo da cidade, uma reforma urbana

se dá a partir da reunião das demandas materiais e espirituais da organização

social. O espaço utópico é a fonte original e sagrada de uma reforma que pretenda

viabilizar mudanças estruturais que possam aprimorar a qualidade de vida da

população.

Em Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane a cidade de

Turim, um espaço marcadamente “histórico” – uma arquitetura barroca, é o “lugar”

da prática urbana e filosófica de Nietzsche. O “espaço” criado é o resultado da

percepção e do pensamento do filósofo acerca da cidade e da natureza humana.

Percebemos claramente a importância do “espaço tímico” no qual ele explicita o

seu ponto de vista em relação à forma e à função urbanas enquanto forças

motrizes para a investigação filosófica.

A cidade não é um mero cenário da performance de Nietzsche, ela é

protagonista da cena cinematográfica apresentando força dramática para o

desenvolvimento da narrativa. A arquitetura e a cidade não aparecem apenas

como elementos estéticos (visuais), mas como portadores de um imaginário que

alimenta o imaginário de Nietzsche. Desta forma, a potência dos imaginários em

jogo estruturam um “espaço utópico” radical, pois eles se constituem a partir das

fonte genuínas da história social e cultural de Turim e da história de vida do

106

filósofo. O ato de criação filosófica se dá com base em um acervo da memória

social da cidade italiana que controla o esquecimento no sentido de que a força do

“espaço histórico” é maior do que o próprio processo de transformação do espaço

urbano.

O espaço utópico pode ser associado à categoria de “imaginário radical” do

filósofo Cornelius Castoriadis (1922-1997) apresentada em seu livro A Instituição

Imaginária da Sociedade (1982), que aparece como um imaginário fundante no

que se refere aos aspectos ontológicos, um universo no qual o autor empreende

uma reflexão sobre as raízes do ato de criação. A reflexão sobre as raízes de

criação de um imaginário particular possibilita que uma intervenção no espaço da

cidade institua uma forma que produza um processo de significações cotidianas. A

forma urbana, como um elemento representativo da materialidade coletiva,

concentra um acervo de desejos, imagens, fantasias e idéias que compõe o

conteúdo (o espírito) formador de sua matéria. A fisionomia de uma cidade é o

espectro de uma forma engendrada pelo acesso do sujeito ao imaginário social,

ela é o resultado da escrita da história, de um processo de apropriação do espaço

no qual os agentes sociais produzem significações de um determinado momento

histórico.

O acesso ao imaginário da coletividade se dá a partir de uma leitura urbana

complexa, na qual estilos, proporções e formas representam insumos para um

processo de interpretação da realidade. A forma constituída é o “imaginário

efetivo” (o acervo), um corpo de significações que demarca o “imaginário radical”,

a fonte primária de criação de realidades. A imagem da cidade é o símbolo do

imaginário social e um instrumento de narrativa de histórias da sociedade.

Segundo Castoriadis (1987):

Toda sociedade é um sistema de interpretação do mundo, e, ainda aqui, o termo “interpretação” é medíocre e impróprio. Toda sociedade é uma construção, uma constituição, uma criação de um mundo, de seu próprio mundo. Sua própria identidade nada mais é que esse “sistema de interpretação”, esse mundo que ela cria. (CASTORIADIS, 1987, p. 232)

107

A configuração urbana se apresenta como elemento estruturador de uma forma de

interpretar o mundo, um elemento simbólico escolhido pela sociedade para

explicitar e adotar como prática certos discursos ideológicos, no sentido de se

construir um campo social que reflita e justifique o poder e a ação do homem.

Elaborar uma leitura da imagem da cidade, no que se refere à forma e ao

conteúdo, significa poder interpretar o ponto de vista de uma sociedade em seu

processo de transformação permanente. A imagem urbana está impregnada de

discursos os quais constituem um sistema de comunicação dos valores

acumulados ao longo da história, ela é um acervo da história da mentalidade dos

produtores do espaço, apresentando um universo de possibilidades de mudanças

das condições físicas e sociais da cidade.

Segundo Kevin Lynch – autor de um estudo sobre a fisionomia das cidades

americanas intitulado A Imagem da Cidade (1997), enquanto sistema de

significação, a cidade proporciona ao homem a produção de uma imagem mental

que é elaborada a partir do princípio de legibilidade transmitida pela cidade. A

legibilidade urbana é um conceito constituído a partir de uma estrutura e

identidade próprias, as quais permitem ao homem demarcar um processo de

percepção legitimador do sentido e da função da cidade. A relação do homem com

o espaço urbano representa um grande arquivo da memória:

A cada instante, há mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados. (...) Cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. (LYNCH, 1997, p. 1)

A cidade propicia aos seus usuários a conformação de um percurso da memória e

de uma estrutura identitária, elementos imprescindíveis para o desenvolvimento

dos aspectos culturais e sociais da sociedade. A relação entre o homem e o

espaço é o objeto de constituição da memória urbana, cujo sentido é a produção

da história e a demarcação de um acervo relativo ao registro do percurso social.

108

O espaço urbano estabelece, além do seu papel estético e social, a

possibilidade de estruturação de uma subjetividade, de um processo de

simbolização, ele é um organismo repleto de significados:

Um cenário físico, vivo e integrado, capaz de produzir uma imagem bem definida, desempenha também um papel social. Pode fornecer a matéria-prima para os símbolos e reminiscências coletivas da comunicação do grupo. Uma paisagem admirável é o esqueleto sobre o qual muitas raças primitivas eregem seus mitos socialmente importantes. (LYNCH, 1997, p. 5)

A legibilidade da imagem de uma cidade é um instrumento ideológico que permite

afirmar, através de toda uma estruturação física, um conteúdo cultural e político

resultante da trajetória histórica da sociedade. Os elementos simbólicos

representam a abertura de um canal de comunicação com o universo social

decorrente da mentalidade de uma época, da forma de interpretar e intervir nos

diversos segmentos sociais.

O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein

A suposta cena do assassinato da mulher de Camargo

109

A busca da legibilidade da imagem que Regina (Fernanda Montenegro)

toma como meta para comprovar o que os seus olhos viram - a suposta cena na

qual Camargo (Raul Cortez) dá fim à vida de sua mulher, é o fio condutor de O

Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein.

A cena faz alusão à arte do cinema, ao enquadramento que se dá a partir

dos quadros das janelas de Copacabana. O olhar de Regina potencializado pelo

binóculo (o olho-câmera) imprime na narrativa uma referência à arte e à técnica da

imagem cinematográfica.

A performance de Regina se constitui a partir da exploração de um quadro

particular da paisagem urbana que a leva ao enfrentamento afetivo com o outro, a

investigação da legibilidade da imagem captada por ela toma o registro visual

como verdade. Ao longo do desenvolvimento da história, na aproximação com o

objeto e o sujeito da cena, o registro visual cede lugar ao registro de um corpo

pulsante em afeto. O encontro entre Camargo e Regina traduz a legibilidade da

imagem em contrapartida com a legibilidade do corpo em processo de atração.

O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein

A realização do afeto entre Regina e Camargo.

110

A fisionomia dos espaços e dos personagens urbanos demarca um quadro

de rostos e de expressões que se situa na superfície, na forma. A expedição do

olhar de Regina nos mostra o seu processo de transposição das superfícies em

direção ao significado e ao conteúdo das formas-personagens da cidade. Os

corpos da cena, então, ultrapassam o sentido de meros objetos emoldurados e se

tornam sujeitos da paisagem.

As transformações urbanas ocorridas ao longo da história implicam em uma

reformulação da imagem da cidade, uma diferenciação em sua legibilidade, na

forma de percepção do homem frente a um novo cenário e aos códigos

estabelecidos pelos organizadores da ordem vigente. Elas demarcam uma

revolução cultural que constrói um novo mapa para o caminhar do homem no

processo de incorporação de mitos, transformando o “mapa” em “percurso”, e

valorizando a memória da cidade, enquanto projeto de constituição da identidade

social.

A marca identitária de uma cidade, o que a caracteriza como elemento que

concentra valores culturais e sociais próprios, é uma possibilidade de se

interpretar o mundo, um elemento representativo do imaginário social. O caráter

rigoroso da permanência não deve ser associado à questão identitária, pois esta

se constitui em uma base transitória, em constante processo de (re) construção,

sendo moldada de acordo com a vivência das classes sociais e políticas. A

dinâmica cultural e psicológica da sociedade apresenta a todo o momento novos

processos de ressignificação que irão promover formas diferenciadas de olhar o

mundo, um novo olhar sobre a realidade significa poder reestruturar a identidade

do indivíduo e do grupo. A contemplação da paisagem urbana possibilita ao

homem um mergulho no universo do imaginário, a vivência de um processo de

acesso ao passado e de vislumbramento de um por vir. O mergulho contemplativo

possibilita a ele se deparar com diversas cidades, realidades diferenciadas de um

percurso de formação da identidade social.

A cidade vigiada de O Outro Lado da Rua, a cidade degradada de O

Príncipe e a cidade amada de Dias de Nietzsche em Turim são exemplos de

111

cidades que se apresentam como símbolos de uma determinada realidade social,

o processo de construção de suas identidades é decorrente da vivência e do

percurso dos personagens envolvidos na narrativa dos filmes em análise. A

instituição da forma cinematográfica, mais especificamente a formulação e a

implementação de um projeto que cria e produz a forma urbana no cinema,

apresenta os ambientes e as fisionomias de lugares e de personagens que são

insumos para o ato de criação de um olhar sobre uma história a ser contada.

112

Capítulo III

Ambientes e fisionomias: a forma cinematográfica

... e a entonação é a coisa mais importante na arte. Aleksander Sokurov

113

3.1. A imagem do cinema: uma estética reveladora

O século XX demarca em seu percurso histórico o surgimento de uma

civilização da imagem caracterizada por uma multiplicação abundante de formas

expressivas. A imagem é um poderoso símbolo cultural, psicológico e estético que

estimula a produção imaginária da sociedade, no sentido psicossocial, a imagem –

do cinema, do vídeo, da televisão ou do próprio cotidiano da vida urbana – é uma

projeção do universo interno e social do homem. Esse acervo de imagens é o

espelho da realidade humana, a forma que ocorre a identificação com o mundo e

a respectiva manutenção da vida sensorial. Elaborar os seus conteúdos é

conectar-se com o imaginário social, pois a imagem é capaz de deflagrar símbolos

que permitirão a expansão do pensamento, fazendo emergir novas percepções e

sentimentos.

O sentido de uma imagem reside em um processo de apropriação de um

conjunto de representações que identifica uma narrativa, e apresenta uma série de

acontecimentos que são representados pela transformação do espaço e do tempo

em imagem. A construção de uma narrativa é a instituição de uma história

reveladora de significados assimilados a partir de uma encenação, a marca da

cena é o registro do movimento dramático dos personagens em sua relação com o

espaço e os objetos que demarcam um lugar imaginário.

O homem se desenvolve através de estímulos visuais, e nada melhor que a

obra cinematográfica para despertar questões fundamentais para o

aperfeiçoamento individual e social. A imagem do cinema se constitui através de

uma narrativa que articula o plano e a seqüência de planos que compõem uma

linguagem de representação do espaço e do tempo diegéticos – os fatos relativos

à história ficcional. O conjunto de significantes da linguagem cinematográfica

caracteriza uma estética que cria um modo próprio de se observar o objeto fílmico,

ela proporciona um redimensionamento dos padrões éticos e morais da

114

sociedade, engendra um novo olhar e promove uma ressignificação da forma de

interpretar o mundo.

A correspondência entre o estético e o ético faz parte do sentido de uma

verdadeira obra de arte. O cineasta russo Andrei Tarkovski (1932–1986)

reconhecido por uma produção que considera o cinema como uma arte temporal,

cuja tarefa é registrar e desvelar a realidade do tempo, comenta em seu livro

Esculpir o Tempo (1990) sobre a correlação entre o estético e o ético:

A busca da perfeição leva um artista a fazer descobertas espirituais, e a empregar o máximo de esforço espiritual. A aspiração ao absoluto é a força que impele o desenvolvimento da humanidade. Para mim, a idéia de realismo na arte está ligada a esta força. A arte é realista quando se empenha em expressar um ideal ético. O realismo é uma aspiração à verdade, e a verdade sempre é bela. Neste ponto, o estético e o ético coincidem. (TARKOVSKI, 1990, p. 133)

A arte é um elemento de representação do mundo que conduz a um despertar da

capacidade de apreciação sobre a qualidade da experiência humana; ela eleva o

espírito do homem a um estado superior de transformação da realidade. O ideal

ético da arte institui um caminho de mudança da sociedade no qual o belo é a

expressão e o desejo de se poder aspirar a uma verdade que justifique a presença

no mundo. A questão ética na obra cinematográfica de Tarkovski passa pela

realidade do espectador em produzir uma experiência do tempo, o qual é

considerado pelo cineasta como um estado de apreensão do registro dos

acontecimentos. Ele trabalha o ritmo do filme na própria modulação temporal, e

não no processo de montagem, isto é, como uma técnica de criação que institui

um tempo próprio. A estética do cinema se configura como um caminho de acesso

à verdade da dimensão da vida e do espírito ampliando o olhar de quem

contempla a obra. O valor ético na arte de Tarkovski corresponde a uma crença no

tempo enquanto elemento de produção do sentido da vida, sua apreensão é o

mergulho no universo da imagem no qual o infinito se apresenta, para o

espectador, como um modo arrebatador de pensar e de sentir as imagens em

movimento.

115

O espectador diante do objeto fílmico se conecta com o universo imaginário

produzindo pensamento e criatividade que transformarão a realidade a partir de

uma experiência vivida do real. Esta experiência institui um entrecruzamento entre

a estética do homem e a do objeto artístico (o filme), uma intersubjetividade

pensada originalmente por Hegel (1997) no século XIX. A intersubjetividade em

questão proporciona ao espectador uma transcendência da forma sensível em

direção aos seus conteúdos interiores, a uma verdade superior conquistada pela

intuição e pelo sentimento diante da obra. Desta forma, o filme torna-se um

elemento revelador, pois ele estimula o homem a exercer o poder de refinamento

da matéria no que diz respeito à realidade objetiva e spiritual, o objeto fílmico é

uma forma sensível a ser traduzida pela percepção do espectador em seu

processo de elaboração do universo imaginário.

A arte do cinema se caracteriza como uma linguagem representativa da

“técnica do imaginário”, ou seja, por constituir narrativas ficcionais, como também

por se estruturar sobre o imaginário da fotografia e da fonografia, ela constitui um

veículo de produção de sentidos, o sentido de um filme se dá a partir de uma

narrativa que utiliza um aparato técnico cujo objetivo é a criação de uma realidade

a ser vivenciada pelo espectador. O imaginário do homem apresenta um

componente visual predominante que estabelece um canal de acesso a um

universo de significações, a forma e o conteúdo do acervo visual alimenta o

processo de elaboração do sentido do olhar em relação ao universo criativo. A

plástica cinematográfica é, então, um elemento de identificação do registro

imaginário do filme, uma fonte de representação que contribui para o processo de

estruturação do significado da narrativa. O projeto de criação do visual do filme

tem como objetivo o estabelecimento do fundo (o cenário) e da atmosfera de uma

seqüência de cenas para tal, o departamento de arte do filme traduz o conteúdo

dramático em elementos plásticos, estes promovem uma entonação, uma

modulação na intensidade e no ritmo da narrativa.

A demarcação do visual da obra cinematográfica é constituída pelo o que

Aumont em sua obra A Imagem (1993) denomina de “espaço plástico”. O teórico

116

francês situa o conceito no que se refere ao valor da experiência da imagem para

o espectador:

(...), no fato de que olhar uma imagem é entrar em contato, a partir do interior de um espaço real que é o do nosso universo cotidiano, com um espaço de natureza bem diferente, o da superfície da imagem. A primeira função do dispositivo é propor soluções concretas à gestão desse contato antinatural entre o espaço do espectador e o espaço da imagem, que qualificaremos de espaço plástico.” (AUMONT, 1993, p. 136)

O dispositivo fílmico, a sistematização material da experiência do cinema, ou seja,

o fato de que em uma sala escura os espectadores podem distinguir as imagens

projetadas por um aparelho em uma tela, configura o espaço plástico como o lugar

da delimitação dos diversos elementos sensíveis (cores, formas, linhas, volume

etc.) cuja função é evidenciar o sentido da narrativa. O espaço plástico se

estabelece a partir da superfície da imagem em sua composição, do contraste de

luz e cores, dos elementos gráficos (cenários, objetos, figurinos, maquiagem e

cabelo), e da própria matéria da imagem do cinema – a película. O ato de revelar

uma história passa pela compreensão do significado da mise-en-scène em todos

os seus recursos estéticos e técnicos. O desenho da cena cinematográfica é o

esboço de uma fisionomia da forma dos personagens e dos objetos que será

impressa no espaço plástico criando ao mesmo tempo uma imagem plana e

profunda, a realidade bidimensional – a superfície da imagem, é a base para o

estabelecimento da representação da profundidade – a realidade tridimensional. O

ato de desenhar objetos (figuras) em uma imagem em movimento significa lidar

com o desdobramento da forma em seu significado narrativo.

A criação de um projeto de composição visual do filme é realizada por um

artista que tem aspiração a um ideal estético, o caminho de desenvolvimento de

um conceito em um elemento plástico se dá através de descobertas espirituais e

materiais que caracterizam o trabalho artístico. O desenhista de produção

(projetista de produção) - profissional responsável pela concepção do visual e da

ambientação do filme, e o diretor de arte - o executor do projeto de ambientação e

117

de caracterização, respondem por todo o processo de produção do departamento

de arte. A função de desenhista de produção é quase inexistente no Brasil,

cabendo ao diretor de arte a titularidade do projeto de direção de arte. O conceito

estético concebido por ele é resultado de um trabalho conjunto com o diretor e o

diretor de fotografia, o diretor tem a função de criar e coordenar a parte artística e

técnica da produção do filme - ele concebe uma obra sob um olhar revelador de

um sentimento do mundo, e o diretor de fotografia cria a iluminação e indica os

ângulos, a movimentação e os enquadramentos de câmera. Estes profissionais

são os principais mentores artísticos da produção e compõem o que se pode

chamar de “alto escalão” da criação cinematográfica. Não podemos esquecer o

papel do produtor no que tange ao desenvolvimento do projeto, no qual exerce

influência na concepção artística da obra decorrente das especificidades

administrativas, financeiras e logísticas da função de produtor.

O diretor de arte em seu processo de composição visual do filme tem na

equipe técnica do departamento de arte o cenógrafo, o figurinista, o maqui(l)ador e

o cabeleireiro como os responsáveis pela realização dos cenários e locações, dos

figurinos, da maquiagem e dos penteados e perucas. Estas áreas de criação, sob

o comando artístico e técnico do diretor de arte, concebem o material plástico que

serve de suporte para a delimitação do espaço e do tempo da narrativa

cinematográfica. O espectador diante do cenário e do clima da cena demarca um

caminho de produção de imaginário, um momento de sintonia entre a obra e a

possibilidade de criação por parte de quem a vê. As imagens representadas na

tela do cinema indicam a oportunidade de uma experiência estética de um espaço

plástico gerador de um significado dramático, a estética do filme conduz a

estruturação de um universo imaginário que induz o olhar do espectador a uma

percepção do sentido ético da obra.

118

3.2. Primórdios da direção de arte no cinema: obras e conceitos

O discurso da ficção no cinema estabelece um espaço de encenação de

histórias que demanda um desenho dos personagens, dos lugares e dos objetos

que irão contribuir para a construção de uma narrativa. Criar histórias é instituir um

universo imaginário no qual aparecem figuras – elementos visuais, que imprimem

na imagem do cinema uma forma reveladora de um sentido dramático. A comoção

vivida pelo espectador, seja ela proveniente de uma comédia ou de uma tragédia,

necessita de um ambiente propício para que ocorra uma representação que seja

objeto de criação da arte do cinema. O ambiente da ficção requer um projeto que

apresente um desenho das figuras que serão transformadas em imagem,

constituindo, assim, elementos representativos de um discurso estético.

Segundo o historiador e diretor de arte russo Léon Barsacq (1906-1969) no

livro A History of Film Design (1978), o ano de 1908 é o momento da evolução do

design cinematográfico que se dá a partir do movimento de câmera, a qual passa

a explorar o espaço da ação dramática e a exigir maiores recursos técnicos e

estéticos para a mise-en-scène.

O cineasta americano David Wark Griffith (1875-1948) introduz uma série

de procedimentos que revolucionam a linguagem cinematográfica: o corte e a

montagem de planos-seqüência, o uso de aproximação da câmera para evidenciar

detalhes e a expressão dos atores (close up) e as diferentes formas de

enquadramento abrem o caminho para a fundamentação da arte do cinema. O

clássico O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1915), sobre a Guerra

civil americana, consolida a importância de Griffith para a história da

cinematografia.

Saímos, então, da fase do teatro filmado na qual a câmera fixa captava

imagens de cenários pintados, o cinema se liberta do teatro desvinculando-se do

raio de visão da platéia. Com o movimento de câmera a trucagem cinematográfica

119

(planos em espelho, o processo Schuftan – técnica que emprega cenários em

miniatura (maquetes) e atores com o auxílio de espelhos, panos de fundo

fotográficos, retroprojecão etc) é incorporada aos novos tempos de invenção e de

fabricação de cenários, fisionomias e performances, a técnica traz uma

contribuição para o enriquecimento e a utilização do material plástico enquanto

elemento que amplia os recursos narrativos.

Em Méliès – Magie et Cinéma (2002) organizado por Joseph Jacquet,

verificamos que se deve ao cineasta francês George Méliès (1861-1938) a

invenção da trucagem - técnica que influenciou o desenvolvimento da arte dos

cenários, ele é procedente do teatro de mágicas e é considerado o precursor da

produção de arte no cinema, o criador da mise-en-scène (encenação), termo

surgido na França no início do século XIX para designar o aspecto visual e

representativo da arte do teatro. No exercício de uma especialidade em truques

mágicos - o ilusionismo, Méliès utilizou o cinema para reproduzir o teatro de modo

fantástico produzindo filmes a partir de “cenas artificialmente arranjadas”, ele era

diretor, cenógrafo, figurinista, criador de efeitos visuais e ator, e ficou consagrado

mundialmente com o filme Viagem à lua (Voyage dans la lune, 1902), inspirado

nas obras de Julio Verne (De la terre à la lune) e Herbert George Wells (Les

premiers hommes dans la lune), produção que promoveu o encontro definitivo

entre a magia (a fantasia) e o cinema.

Viagem à lua (1902) é o primeiro filme de ficção científica que narra a

história de astrônomos que criam uma aeronave e partem para a lua na qual

encontram habitantes lunares – os selenitas, os primeiros “Ets” do cinema. A

imagem do rosto da lua com um foguete cravado em seu olho é uma imagem-

símbolo que ficou na história do cinema, a produção realizada em trinta cenas é

uma obra que utiliza os recursos de trucagem para criar um imaginário de uma

história repleta de fantasia sobre a vida em outro planeta. A riqueza da

composição visual do filme nos leva a embarcar em uma aventura na qual o

sentimento dos personagens é materializado através de figuras expressivas que

120

evidenciam o sentido de uma narrativa fantástica mas, ao mesmo tempo, humana

no que tange aos mitos da experiência da civilização.

Méliès pertenceu à vertente fantástica do cinema, enquanto Louis Lumière

(1864-1948) à vertente realista. As produções de Méliès eram verdadeiros

tratados do uso da magia no cinema, e as de Lumière eram documentários sobre

o cotidiano da vida das pessoas na cidade, os dois cineastas marcam a pré-

história do cinema e lançam os conceitos iniciais de um percurso de

desenvolvimento da linguagem cinematográfica. Em 28 de dezembro de 1895, em

Paris, Méliès ingressa no mundo do cinema ao assistir a primeira exibição dos

irmãos Lumiére, ele compra em Londres um cinematógrafo e começa a realizar

experiências estéticas e técnicas que subverteram o sentido da realidade.

O conceito visual das produções de Hollywood com o uso abundante de

trucagens e de tecnologia tem como origem o trabalho pioneiro de Méliès que

trouxe para o cinema a possibilidade de explorar o lado fantástico (mágico) da

narrativa. Viagem à lua (1902) faz parte da trajetória da ficção científica no cinema

constituindo um gênero que produziu obras como Metropolis (Metropolis, 1926) de

Fritz Lang, 2001: uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, 1968) de

Stanley Kubrick, Guerra nas estrelas (Star wars, a new hope, 1977) de George

Lucas, Blade runner, o caçador de andróides (Blade runner, 1982) de Ridley Scott,

Matrix (The matrix, 1999) de Andy e Larry Warchowski, entre outras. O filme de

Méliès simboliza o potencial artístico que o cinema iria desenvolver e emocionar o

público ao longo de sua história.

O imaginário no cinema é evidenciado com o estabelecimento do lugar e do

clima da cena, o universo cênico criado é resultado do projeto de direção de arte

que se realiza a partir da dramatização do objeto e do espaço, da inflexão

(entonação) dos diversos elementos que participam da produção cinematográfica.

Este processo valoriza e contextualiza uma idéia (conceito) através das diversas

formas que criam vida ao enredo em desenvolvimento, cada um dos elementos

contribui para o acabamento da obra, e o importante é que o espectador perceba

a função de cada objeto, de cada atitude. A posição, a forma, a intenção e a cor

121

do objeto, assim como o ator - a caracterização dos personagens, e o próprio

espaço precisam estar sintonizados na trama audiovisual. O espaço como um

todo, envolvendo locações e cenários adequados e o entrosamento entre seus

componentes, deve constituir uma poética que leve o observador a absorver o

conteúdo da história, uma poética visual e dramática que seja o elemento indutor

do olhar do espectador em relação ao imaginário do filme.

A poética do espaço (1993) é tema de investigação do filósofo francês

Gaston Bachelard (1884-1962) que desenvolve o objeto em estudo a partir de uma

reflexão filosófica sobre a ciência do imaginário e sobre a fenomenologia – o

sentido das liberdades espaços-temporais no tocante à forma com que o homem

interfere em seu meio. O espaço analisado, a partir da conformação de seu

quadro imagético, pode ser considerado um fenômeno cultural, onde ele se

apresenta como reflexo de um universo individual e social repleto de sonoridades

(subjetividades) típicas da natureza humana.

Tomar o espaço como campo de estudo sob a ótica fenomenológica implica

em elucidar os conceitos de Bachelard (1993) de “ressonância” e “repercussão”,

elementos indispensáveis à compreensão da imagem do espaço. A categoria

“repercussão”, por estabelecer um papel ativo (participante) do homem no

ambiente social, visto que o conceito opera uma revirada do ser, constitui-se em

uma linguagem operante e se enquadra na questão da apropriação do espaço

pelo homem. A partir do desenvolvimento da “repercussão”, a categoria da

“ressonância” torna-se um fato da realidade do homem, uma vez que ambas

constituem conceitos de duplicidade fenomenológica. Havendo um inter-

relacionamento qualitativo entre o homem e o espaço, a “ressonância” aparece

como um elemento propagador do conteúdo elaborado, a internalização da

experiência espacial (repercussão) pelo universo humano precede o processo de

“ressonância”, onde o material assimilado é diluído no ambiente da sociedade,

promovendo um redimensionamento do universo cultural. Desta forma, o homem

atua em um espaço com uma identidade estabelecida, resultado de sua própria

intervenção.

122

O espaço se constitui através de uma experiência subjetiva, de uma

fundamentação existencial, típica de um determinado período histórico, ele

adquire uma real dimensão a partir de uma abstração do olhar do homem em

relação ao seu valor material. Bachelard considera que:

O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente, entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. (...) Incessantemente a imaginação imagina e se enriquece com novas imagens. É essa riqueza do ser imaginado que gostaríamos de explorar. (BACHELARD, 1993, p. 19)

O homem na busca de sua consciência individual e social necessita romper a

precariedade do imediato, do estritamente objetivo, no sentido de apreender a

verdadeira natureza do fenômeno espacial. A imaginação é uma capacidade

humana que subverte a lógica da razão e promove uma poética do pensar e do

sentir o mundo, ela lança o sujeito nas diversas camadas de significado cultural e

de criação de experiências que determinam o universo espiritual e material do

espaço. A cidade, como a casa, são descrições topográficas, anatômicas de

nosso ser íntimo, instrumentos para a análise da alma humana e da alma social. A

imagem do espaço no filme deve promover um sentido de repercussão na forma

do homem pensar e sentir o objeto, a transformação que esta experiência

proporciona a ele leva a uma ressonância da vivência da matéria e do espírito no

ambiente social.

O processo artístico só se estabelece quando há assimilação afetiva do

objeto e do espaço por parte do público. Dá-se, segundo o crítico, historiador do

cinema brasileiro e roteirista Jean-Claude Bernardet, em seu artigo O Processo

como Obra (2003), uma “construção de conexões”, um momento de

aprofundamento do sentido e da natureza da relação do espectador com a obra

cinematográfica. O filme cumpre, assim, a função de elemento que provoca,

estimula no homem seus sentidos diante da obra audiovisual, a forma fílmica

induz a uma apreensão da linha dramática a qual define o papel dos elementos

123

plásticos, estes expressam a significação do conteúdo narrativo e são

instrumentos de comunicação do sentido da obra.

Bernardet nos fala da importância do papel do crítico no que se refere à

busca do desenvolvimento do potencial do filme em correspondência à qualidade

de recepção da obra pelo espectador. O crítico não é um mero julgador que

aprisiona a opinião de quem assiti a um filme, ele é um analista de uma estética e

deve promover um engajamento cultural da produção artística e do público. O

exercício da crítica se dá a partir de um processo no qual o crítico se procura na

obra a ser analisada, construindo sua individualidade com o objetivo de provocar o

olhar do espectador. O profissional da crítica de cinema é um agente social que

sistematiza uma conexão entre o valor cultural do filme e a formação intelectual e

espiritual do público.

A constituição de conexões já faz parte da própria cultura do cinema, o

diálogo entre o espaço e o tempo estrutura sua natureza, o cinema espacializa o

tempo, ou seja, demarca na trama espaços de ação de diversos tempos históricos.

A arquitetura, como elemento da ambientação da história - espaço de locações, é

uma arte dinamizadora do espaço e, conseqüentemente, do tempo desse espaço,

o cinema e a arquitetura utilizam a razão e a imaginação poéticas para a produção

de suas obras. O uso de analogias (citações), metáforas (símbolos) e de técnicas

de montagem traduzem o processo de criação estética e técnica, as linguagens do

cinema e da arquitetura criam e manipulam o espaço. O espaço não é somente

um objeto em si, um fato objetivo da construção humana, mas ele subentende um

espaço mental no qual o sujeito elabora o objeto produzindo significado ao

processo de conexão com a obra.

A arquitetura no filme Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane

aparece como um objeto (uma locação) impregnado de pensamentos e

sentimentos de seu personagem-andarilho (um flâneur). Nietzsche (Fernando

Eiras) percorre e vive a cidade em busca de alimento para sua produção

intelectual, ele encontra na e através da arquitetura inspiração para a produção de

um pensamento pulsante. A arquitetura é uma fonte de formas, detalhes, cores e

124

texturas que direciona o olhar do filósofo em uma rotina na qual o corpo da cidade

barroca amarela e marrom-avermelhada revela o êxtase do pensamento. O filme

mostra uma arquitetura potente (um personagem) no sentido de que ela é mais do

que um objeto estético e funcional atingindo a posição de obra de arte que

evidencia o sentido espiritual do homem e da natureza. A riqueza da arquitetura

barroca em seus detalhes e formas é o reflexo do pensamento de Nietzsche

marcado pela imponência e pela riqueza estética. Por se tratar de uma narrativa

que apresenta e elabora o processo do pensamento do filósofo alemão, podemos

situar a arquitetura e a cidade de Turim como estéticas imaginárias decorrentes da

experiência imaginária de Nietzsche, o que vemos, então, é uma cidade

imaginária apesar de toda a sua riqueza e expressividade material, ela é o que é

devido a uma vivência do imaginário de um pensador.

A escolha das locações de um filme vem definir uma cor da obra

cinematográfica. O diretor americano Sidney Lumet autor de Um dia de cão (Dog

day afternoon, 1975), Doze homens e uma sentença (12 angry men, 1957), Rede

de intrigas (Network, 1976), O veredicto (The veredict, 1982) e Assassinato no

Oriente Expresso (Murder on the Orient Express, 1974) comenta sobre o conceito

da cor no espaço da cena em seu livro Fazendo Filmes (1998)

:

Um resultado natural da cuidadosa seleção de locação é que quase sempre criamos uma palheta de cor para um filme. O veredicto (1982) fala de um homem caçado por seu passado. Ed Pisoni era o diretor de arte. Eu lhe disse que usaríamos apenas cores outonais, cores que dessem a idéia de tempo decorrido. Isto imediatamente eliminou o azul, rosa, verde-claro e amarelo-claro. Procurávamos marrons, castanhos-avermelhados, amarelos fortes, laranja queimado, os vermelho borgonha, tons outonais. Os sets do estúdio foram feitos nestas cores. Se nos decidíssemos por uma locação e ela tivesse uma cor indesejada, pedíamos autorização para repintá-la. (LUMET, 1998, p. 95)

O espaço de locações e os sets, então, apresentam uma determinada cor que

define uma época em suas especificidades psicológicas e culturais. A cor se

insere no projeto de concepção plástica de cada plano do filme demarcando um

tom dramático para a composição narrativa da cena, a definição de seu uso institui

uma determinada composição da imagem cinematográfica. A cor de um espaço

125

revela o espírito de uma proposta estética que pretende criar um clima para a

crença em um acontecimento dramático.

O diretor Alberto Cavalcanti em seu clássico Filme e Realidade (1952)

declara que a cor é um dos elementos da construção da estética do filme e que

ela compõe uma linha de composição fundamental – uma linha dominante da

composição visual da imagem do cinema. O partido gráfico adotado se inscreve

no universo dramático da história, criando o clima para a mise-en-scène dos

personagens, o lugar da cena é a materialização estética de determinados

estados de espírito expressos pela presença ou ausência da cor.

Cavalcanti situa o uso da cor no espaço cinematográfico em associação ao

fato de que os sets precisam ser fotografados e apresentar um determinado

número de fundos para as diversas tomadas. A luz passa a ser um elemento que

influencia a qualidade da cor e do espaço a serem impressos nas imagens

captadas. Na época da produção Le capitaine fracasse (1928) os iluminadores

começaram a ter grande importância na realização dos filmes, o diretor comenta

sobre a interferência dos iluminadores no processo de produção:

Não chegaram a interferir na direção, mas intrometeram-se, e muito, no “décor”. Começaram lançando a moda atroz do cenário branco. Como é sabido, uma superfície branca não iluminada dá por resultado o preto, mas os efeitos de iluminação requerem um preparo exaustivo. (...) Muito antes disso, nós, os cenógrafos, já sabíamos que para conseguir, na tela, o efeito de uma sala em três dimensões era preciso, em primeiro lugar, facilitar uma iluminação que desse a impressão da sala em três dimensões, construindo-se o “décor” nessa base. (...) Por paradoxal que pareça, os diretores artísticos daquele período tiveram que fazer os “décors” sem calcular o efeito de luz, para agradar aos operadores – o que não contribuiu, naturalmente, para a boa qualidade do ambiente. (CAVALCANTI, 1952, p. 142)

O projeto de luz no filme concebido pelo diretor de fotografia deve dimensionar a

cor, o espaço e o objeto em consonância com a natureza da linguagem

cinematográfica que é a de criar unidade e sentido aos diversos elementos que

compõem a narrativa.Todas as técnicas que produzem o objeto fílmico contribuem

para a criação de uma imagem expressiva que necessita ser convicente em seu

126

valor de dramaticidade e de comunicação. A luz no cinema tem a capacidade de

extravazar o valor espiritual contido nos objetos filmados.

O filme alemão mudo O gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor

Caligari, 1919) de Robert Wiene é uma obra representativa do expressionismo

alemão, tendo uma linha de composição demarcada pela imagem tratada como

gravura com considerável contraste de preto e branco e cenários gráficos com

predominância de linhas oblíquas. O teatro e a pintura influenciaram o

expressionismo no cinema no que se refere à concepção dramática e plástica do

espaço. O cenógrafo Hermann Warm e os desenhistas Walter Röhrig e Walter

Reimann deram às cenas do filme cenários e formas que transmitem intensidade

aos pensamentos e às emoções dos personagens. Kracauer comenta sobre o

processo de criação dos artistas:

Os filmes devem ser desenhos que ganham vida”: esta era a fórmula de Hermann Warm na época em que ele e seus dois companheiros desenhistas estavam construindo o mundo de Caligari. Obedecendo às suas crenças, os quadros e cortinas de Caligari tinham abundantes complexos de formas recortadas, pontudas, lembrando muito os padrões góticos. Produtos de um estilo que na época quase se tornara um maneirismo, esses complexos sugeriam casas, paredes, paisagens. Exceto por alguns lapsos ou concessões – alguns fundos se opunham ao convencionalismo pictórico de uma maneira muito direta, enquanto outros os preservavam – os cenários significavam uma perfeita transformação de objetos materiais em ornamentos emocionais. (KRACAUER, 1988, p. 85)

A concepção plástica da obra cria um clima psicológico para a caracterização dos

personagens com suas fisionomias e gestos exagerados e intensos, toda esta

atmosfera irreal foi criada para contar a história do cientista Caligari que provoca

inúmeras mortes através de Cesare, um homem hipnotizado.

Na realidade, o expressionismo tem como problema central a questão da

dramatização exagerada que excede a própria intensidade de composição visual.

Percebemos uma certa obsessão na ação da narrativa que encontra um ambiente

com formas deformadas sob o contraste de luz e sombra, a atmosfera soturna é

acentuada através dos becos, caminhos tortuosos e escadas que relacionam os

diversos espaços dramáticos nos quais os personagens vivem cenas de intensa

emoção e mistério. A divisão do espaço expressionista não tem somente uma

127

função pictórica, mas também uma função dramatúrgica, no sentido de que ela é

uma forma de intervenção no desenvolvimento plástico das cenas, estas sugerem

que os cenários se apresentem como “visões” de um espaço utópico que

sensibilize o espectador. O espaço, a arquitetura do filme aparece como um objeto

gráfico, sendo a obra considerada um marco do cenário estilizado.

A representação da arquitetura do filme oferecia uma nova forma de

expressão plástica no cinema. O cineasta russo Serguei Eisenstein (1898-1948),

pensador das relações entre a arquitetura e o cinema, aparece como uma

referência neste campo. Manuel C. Teixeira em seu ensaio Arquitectura e Cinema

(1999) comenta:

Por um lado, ele (Eisenstein) considerava que a arte do cinema oferecia a possibilidade de desenvolver uma nova arquitetura, entendida como pura concepção de espaços, liberta das condicionantes materiais e físicas do mundo real. Isto é, liberta das limitações materiais e construtivas, a arquitetura podia agora aspirar à expressão de puras sensações espaciais. (TEIXEIRA, 1999, p. 32)

A arquitetura no cinema pode ampliar seu processo de constituição da forma e

demarcar no espaço cinematográfico a representação de uma nova estética, mas

com um sentido revolucionário no que tange ao espaço da ação dramática. Ela

deixa de ser um mero objeto estético para se tornar uma forma que engendra um

ritmo narrativo e apresenta um discurso de ordem temporal.

A questão do estilo do expressionismo no filme O gabinete do Dr. Caligari

(1919) se refere mais ao objeto de expressão em si, ou seja, aos cenários

pintados com linhas curvas e inversões de perspectiva, do que ao “modo” de filmar

o qual se configura de fato um estilo cinematográfico. Os cenários expressionistas

são uma realidade pré-fílmica, eles são preexistentes à linguagem do cinema, os

efeitos apresentados pela cenografia poderiam ser obtidos através do movimento

de câmera (uso de ângulos) resultando na dilatação ótica dos espaços. Desta

forma, o filme é mais uma nova investida na imagem pictórica do que

propriamente na imagem produzida pela arte do cinema.

128

A estética expressionista influenciou outros momentos marcantes da

história do cinema. O estilo (gênero) noir sofreu a influência do expressionismo

alemão com a vinda dos cenógrafos e fotógrafos alemães para os Estados Unidos

no período do nazismo. As ficções policiais americanas tem como marco o filme

Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, 1941) de John Huston e direção de arte de

Robert Haas. Os filmes se passavam em ambientes noturnos opressores, com

pouca luz e contraste de claro e escuro, e tinham como pano de fundo a cidade

americana, o mundo era visto pelos olhos de detetives, prostitutas, políticos e

criminosos sob uma visão amarga da sociedade liberal no período da depressão.

A estética noir pode ser considerada como uma atualização do expressionismo

alemão, ela incorpora expressões plásticas do período para discutir um momento

marcante da história americana.

A influência do expressionismo ainda vigora nos dias de hoje. O filme Nina

(2004) de Heitor Dhalia, inspirado no romance Crime e Castigo de Dostoiévski,

constrói um ambiente radical que reflete as pertubações psicológicas da

protagonista Nina (Guta Stresser) em um momento histórico trágico da metrópole

paulista. A proprietária do apartamento onde ela mora – a avarenta Dona Eulália

(Myriam Muniz), é a personagem que explora e tortura a jovem. O projeto de

direção de arte assinado por Akira Goto e Guta Carvalho apresenta o mundo

sombrio de Nina com pouca cor, muito contraste e o uso intenso de texturas nos

ambientes e na luz. Segundo os diretores de arte: “O desafio foi criar, junto com a

fotografia, essa atmosfera pertubadora. (...) A idéia era representar nos cenários e

locações o estado psicológico da personagem.” (GOTTO e CARVALHO, 2004). A

composição visual do filme aponta o sentido da vida de uma personagem que

“grita de desespero” ao longo da narrativa, o lado material é impregnado do

conflito existencial de uma jovem de sensibilidade aguda e mente frágil.

A forma do espaço revela o ponto de vista da protagonista, a opressão

vivida por Nina é evidenciada nos ambientes amplos, pé direito alto, corredores

largos, escadas em caracol, cores dessaturadas e luzes esmaecidas. Podemos

captar o estado emocional da personagem a partir da percepção do sentido e da

129

forma do espaço. A obra teve grande parte de sua composição visual testada

através de desenhos de produção e de programas de computador, o planejamento

criterioso da produção levou a um refinamento estético e técnico do conjunto da

obra. A estética do filme é pontuada pelos desenhos do escritor e autor de

quadrinhos paulista Lourenço Mutarelli que ilustra as animações que traduzem a

alma da personagem principal e a vida das pessoas miseráveis que vivem pela

cidade de São Paulo a qual aparece como um lugar de passagem onde Nina vive

suas angústias e enfrenta situações adversas típicas de uma grande metrópole. A

estética urbana se constitui através de pichações, escuridão e violência, cenário

para o conflito da protagonista, um conflito da vida em uma cidade habitada por

personagens do underground paulistano.

3.3. Cenário e memória

Ao desenhar o espaço da cena cinematográfica o diretor de arte deve ter em

mente que o lugar da cena é instituído a partir dos pontos de vista do ator e da

câmera que criam uma performance que irá demarcar a imagem do lugar com

uma carga estética e afetiva. Esta prática do espaço durante as filmagens marca o

cenário como o lugar da fabricação da memória no qual o espectador capta o

sentido da experiência do ator e da câmera. A trajetória de construção do cenário

se dá por um processo de constante recriação: o diretor de arte projeta um

espaço, os atores e a câmera reelaboram a forma e o conteúdo dos cenários e

das locações e o espectador redimensiona o espaço a partir de uma apropriação

da narrativa, o filme é um universo de experiências recriadas e de formação de

uma memória que está sendo sempre revista.

130

Podemos, então, nos referir à uma “memória espacial” – a marca da ação e

do desejo do homem em seu ambiente, que estabelece uma dinâmica do

processo de (re) significação do espaço. A constituição de uma forma não se

refere somente à realidade da matéria em si, mas também à realidade do espírito,

ao universo imaginário, da memória, elementos que proporcionam um

transbordamento de fantasias, pensamentos e experiências que irão dar o tom

afetivo e artístico de uma narrativa. O lugar da narrativa é onde ocorre um

enfrentamento com a memória instituída e uma produção de uma nova memória,

de uma experiência estética a ser criada pela produção cinematográfica. A

memória do espaço cenográfico e das locações é um dado que contribui para a

construção da narrativa pois ela é um elemento que impregna o espaço com

evocações da ordem do espírito – lembranças e visões, norteando a ação do ator

em direção aos fatos e objetos da história.

A construção do espaço no filme - o projeto cenográfico, aparece como um

dos elementos que compõe o ambiente para o exercício tanto da criatividade do

ator (construção narrativa) quanto do espectador (conexão com a obra). O

ambiente deve sugerir, e não ilustrar, o conteúdo dramático através de uma

concepção visual marcada pelo equilíbrio e pelo ritmo, utilizando elementos

cênicos que sejam essenciais (oportunos) ao desenvolvimento do trabalho do ator

no espaço da cena cinematográfica. Como comenta o cenógrafo e diretor italiano

Gianni Ratto em Antitratado de Cenografia (1999):

Cenografia é o espaço eleito para que nele aconteça o drama ao qual queremos assistir. Portanto, falando de cenografia, podemos entender tanto o que está contido num espaço quanto o próprio espaço. A cenografia faz parte do instrumental do espetáculo. Ela deve fugir do personalismo, do individualismo. (RATTO, 1999, p. 22)

131

O cenário e os objetos nele contidos não se constituem apenas como um desenho

de um ambiente de uma história, eles fundamentam uma forma dramática quando

os elementos desenhados são incorporados pelo gesto, pelo movimento e pelo

olhar do ator através do enquadramento da câmera. O projeto cenográfico é um

mapa da trajetória dos personagens em seu processo de produção de sentido dos

objetos que demarcam e justificam a constituição de um acontecimento. Os

objetos cênicos fazem parte de uma unidade plástica do quadro de imagem, eles

não evidenciam sua forma como uma expressão meramente pictórica, mas como

elementos de composição dramática que situam e direcionam a imagem no

tempo. Diante desta constatação a pintura aparece como uma arte que oferece

um referencial plástico para a construção da imagem do filme, Ratto afirma sobre

a influência da pintura no cinema:

O cinema, assim como o teatro, deve muito à arte dos grandes mestres da pintura. A composição dos grandes afrescos e das grandes telas de artistas como Rafael, Tintoretto, Rembrandt, Caravaggio, David etc não pode ter deixado de influenciar as composições dos grandes planos dos filmes históricos, nem as imagens extremamente elaboradas na luz, na cor e na colocação das personagens visualizadas por diretores como Griffith, Kurosawa, Bergman, DeMille etc. (RATTO, 1999, p. 36)

Podemos constatar um paralelo entre o vocabulário plástico do cinema e da

pintura no que se refere à cor, formas, contrastes, valores e superfícies, a

utilização destes elementos sensíveis não representam, no entanto, o espaço, o

tempo e a ficção da mesma maneira. O material plástico da pintura é da ordem do

pictórico – ele traduz um momento, e a do cinema é da ordem do dramático – ele

é elaborado para a construção de uma narrativa, da encenação de um

acontecimento. As citações pictóricas empregadas pelo cinema são a base para a

articulação de uma memória instituída no processo de produção do espaço e do

tempo da narrativa cinematográfica, a imagem da pintura é um elemento plástico

que passa por uma ressignificação dos princípios espirituais que emanam do

objeto de arte para ser aplicado no contexto semântico da linguagem do cinema.

132

O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein

O jogo de luz e sombra no apartamento de Regina.

O apartamento de Regina (Fernanda Montenegro) em O Outro Lado da Rua

(2004) de Marcos Bernstein, mais especificamente, as salas, são os espaços –

lugares nos quais ela vive intensamente a sua solidão, neles podemos perceber a

influência da pintura na constituição da imagem cinematográfica.

A influência da arte realista do pintor Edward Hopper (1882-1967) aparece

no uso do jogo de luz e sombra enquanto elemento que integra o design do

ambiente vivenciado por Regina. O realismo de Hopper não se apresenta como

uma mera cópia do que ele observa, mas como uma impressão particular da

natureza. As pinturas Eleven A. M. (1926), Room in Brooklyn (1932), Morning in a

City (1944), Hotel by a Railroad (1952), Morning Sun (1952), City Sunlight (1954),

Western Motel (1957) e Sunlight in a Cafeteria (1958) são obras que revelam o

estilo de Hopper no que se refere à recepção da luz nos espaços retratados, à

solidão de seus personagens e à cidade americana contemporânea como temas

centrais de sua produção artística.

133

O entrosamento entre a direção de arte (Bia Junqueira) e a direção de

fotografia (Toca Seabra) resultou em uma qualidade de imagem marcada pelo uso

da luz e da sombra que dramatiza o cenário de uma mulher que vive o vazio

afetivo. O apartamento de Regina é um “esconderijo” e o lugar onde a realidade

de seu abandono enquanto mulher, idosa e mãe é demonstrado visceralmente, o

ambiente reflete a depressão de uma personagem que utiliza determinados

elementos cenográficos (sofá, cadeira e bidê) para se entregar e viver a sua

tristeza e solidão. O jogo de luz e de sombra - um instrumental pictórico, pontua o

estado de abandono e de “ressonância” de experiências vividas, o uso de uma cor

fria (azul) carrega, também, o ambiente de um impressionismo que evidencia a

sensação do personagem que criou e vive um espaço dramático repleto de

memória de uma vida em conflito existencial.

O olhar do diretor de cinema através da câmera é, também, um elemento

de construção da composição cenográfica. A realização do projeto de direção de

arte é o material de trabalho do diretor que irá montar um enquadramento

identificador de um sentido narrativo, a forma como ele irá mostrar um

determinado espaço é um desdobramento do projeto original, uma transfiguração

de um objeto real. O diretor elabora a escrita da imagem dando sentido aos

diversos segmentos do espaço sejam eles “lugares artificiais” (cenários) ou

“lugares naturais” (locações: arquitetura e paisagem). De qualquer forma, os

lugares da cena cinematográfica aparecem como elementos marcantes para a

representação de um universo imaginado O cenário é produzido sob o ponto de

vista de uma história a ser contada, é o lugar de construção de uma nova

memória, de experiências instituintes de uma cultura dramática. A locação já traz

em seu imaginário a marca de histórias vividas, é o lugar de uma memória

instituída, do confronto com um potencial dramático estabelecido por um tempo

decorrido, o diretor ao captar imagens em uma locação se depara com um acervo

de realizações efetivas que irá influenciar o processo de criação artística.

Os “lugares artificiais” (cenários) em O Outro Lado da Rua (2004) de

Marcos Bernstein aparecem como o laboratório existencial de vidas que se

134

encontram em uma grande cidade. O apartamento de Regina (Fernanda

Montenegro) é o seu posto de trabalho – a janela é utilizada como um grande

quadro para um olho (binóculo/câmera) voraz que vigia e julga um outro

personagem, Camargo (Raul Cortez), como se ele estivesse projetado em uma

tela de cinema, em um apartamento do outro lado de uma rua em Copacabana. O

lugar de moradia de Regina aparece como um “esconderijo” no qual ela exercita o

olhar, pensa e percorre o universo sombrio de seus sentimentos. Na realidade, o

movimento dela é para a rua, a praia, a praça – “os lugares naturais” (locações)

onde ela trama situações para comprovar a sua tese baseada na crença no que

ela vê. Ela consegue mudar a rotina de Camargo que vive em um apartamento

(cenário) luminoso com design sofisticado repleto de vazamentos (janelas e

divisórias), uma marca do filme – o olhar que espreita algo que está escondido,

sugerido. Os dois cenários se caracterizam por um realismo absoluto no tocante à

composição de uma arquitetura contemporânea de uma cidade tropical brasileira.

Regina consegue mudar o ritmo de vida de Camargo, supostamente uma vida

mais ligada à casa, o levando para a rua, um espaço de comprovação de uma

tese “imaginária” e de embates afetivos e perceptivos. A rua (“lugar natural” –

locação) é, então, o espaço da experimentação de olhares e sentimentos

gestados nos apartamentos (“lugar artificial” – cenário) de personagens que são o

símbolo da vida em uma grande cidade litorânea. O espaço de reclusão abastece

o universo psicológico dos personagens com uma recarga de experiências que

não são vividas no espaço da rua. O movimento para fora representa uma

mudança de comportamento compatível com os seus objetivos individuais e com a

maneira de se viver em uma cidade violenta e repleta de cenas que configuram o

imaginário urbano.

O espaço pode também ser estabelecido a partir de uma referência

metafórica, ou seja, ele pode se constituir como um “espaço imaginário” (fora do

quadro), mas pertinente ao desenvolvimento da narrativa, apenas uma referência

ao que está fora já permite a instituição de um espaço dramático. A ausência na

cena cinematográfica não significa a ausência da função do objeto, do lugar de

135

instauração do fato dramático. O que importa é a denominação do “espaço

imaginário” na estrutura dramatúrgica, na memória da experiência de quem faz a

história, dos produtores do acontecimento narrativo, o fundamental é aonde se

produz a memória, independente da visibilidade do lugar no quadro da imagem.

A memória do lugar é um elemento que contribui para a criação da

atmosfera de uma cena. Uma determinada locação traz consigo uma “sensação”

percebida através do sentimento de quem atua no lugar da narrativa, a apreensão

do sentido e da história da locação institui um caminho para o desenho da cena.

Desta forma, o clima dramático é resultado tanto da proposta estética do filme em

seus diversos elementos plásticos, quanto da dramaticidade da própria locação. O

sentido da “sensação” e da “impressão” do lugar aparece como um fator

importante para a escolha do espaço no qual irá se desenvolver a história, o

conhecimento que resulta dessa experiência dos sentidos é fundamental para a

composição da trama cinematográfica. Percebemos, então, que o ato de criação

no cinema se dá em consonância a um projeto de pesquisa das peculiaridades do

espaço e do tempo a serem significados.

Na realidade, podemos nos reportar ao Impressionismo, movimento

artístico iniciado na França por volta de 1860, e que tinha como interesse principal

a captação da “impressão” da paisagem no que se refere ao seu sentido de

acolhimento de “vida”, ao universo físico e humano do retrato de um lugar. A obra

impressionista proporcionava uma experiência dos sentidos:

Tinha-se a "sensação" de um lugar, uma pessoa, uma obra de arte, um meio, até mesmo de uma situação de vida, como uma qualidade não verbal única, uma estética distintiva que parecia permear o todo complexo e que podia ser sentida por uma intuição imediata. A "sensação" era o fundamento de um sentimento do observador receptivo, um efeito desse todo percebido diretamente no humor e na sensibilidade. (SCHAPIRO, 2002, p. 37)

Este movimento artístico representado por Manet, Degas, Renoir, Monet, Sisley e

Pissarro aparece como a expressão mais importante da arte pictórica do século

XIX. O Impressionismo utilizava cores brilhantes e pinceladas esquemáticas de

forma confusa e chocante, ele tinha o interesse na constituição da superfície ótica

136

relativa ao registro da vida contemporânea com o objetivo de mostrar o conteúdo

sensorial da realidade.

Na obra de Tarkovski constata-se um olhar impressionista no que se refere

ao ato de criação e percepção da realidade. Ele fala a respeito do seu filme O

Espelho (Zerkalo, 1974) da importância da escolha e do sentido da locação:

Quando o set foi construído sobre os alicerces da casa em ruínas, nós todos, como membros da equipe, costumávamos ir até lá esperar pelo nascer do sol, para sentirmos o que havia de especial no lugar, estudá-lo em climas diferentes e observá-los nos diferentes períodos do dia. Queríamos nos impregnar das sensações das pessoas que haviam vivido na casa e presenciado, uns quarenta anos antes, as mesmas auroras e crepúsculos, as mesmas chuvas e neblinas. (TARKOVSKI, 1990, p. 163)

Percebemos que o processo artístico do cineasta russo incorpora uma ritualística

com o objetivo de acessar a memória do lugar e captar os seus conteúdos

culturais, psicológicos e estéticos. A composição gráfica do filme se dá a partir da

qualidade da percepção do espaço e do objeto, resultado da capacidade de

observação da equipe criadora e da respectiva recepção por parte do espectador.

A carga dramática do lugar é um elemento que influencia a mise-en-scène em

seus aspectos formais (cenário, figurino, maquiagem e cabelo) e de representação

dramática (a atuação do ator). A "impressão" sugerida pelos elementos cênicos

traz a identificação da forma com que eles acolhem o sentido de "vida" de um

universo imaginário.

O Espelho (1974) é considerado um dos filmes mais autobiográficos de

Tarkovski, a obra aborda a vida espiritual do homem contemporâneo, suas

angústias e dúvidas acerca da existência, da vida familiar e social. O filme tem

como ponto central: a memória das relações familiares do autor, as lembranças de

uma história de vida cheia de impressões acerca dos fatos e dos lugares de

convivência afetiva e social. O projeto de direção de arte assinado por Nikolai

Dvigubski evidencia a passagem do tempo através da textura, da cor e da forma

desgastada dos espaços e dos objetos da cena. A casa de Tarkovski é

reconstituída no filme afirmando as referências pessoais e o tom de realidade da

vida do cineasta. A produção russa é uma sinfonia do tempo, das lembranças que

137

ficam, de uma memória infinita, apesar de ser uma obra que trata de traços

familiares particulares de uma vida, ela dá espaço para um mergulho interior na

experiência do espectador. O tom melancólico e a dor provenientes das

experiências vividas apontam para a possibilidade de uma existência mais rica

espiritualmente.

A transformação da cidade e a memória dos lugares representativos da

história cultural e social da cidade de São Paulo são os temas abordados em O

Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti sob a direção de arte de Isabelle Bittencourt. O

filme utiliza a cidade como uma grande locação na qual uma geração se

reencontra para trocar impressões acerca do passado e da forma como se

desenvolveram os seus ideais. A cidade de São Paulo é protagonista de uma

história que mostra a decadência física, social e cultural de uma sociedade tendo

como referência um momento rico e dinâmico de um grupo social. O uso de

locações (lugares reais) imprime um sentido de realidade para uma obra de ficção

que utiliza a memória social para avaliar a transfiguração de lugares simbólicos

que integram o imaginário urbano.

Os personagens Gustavo (Eduardo Tornaghi), Mario (Ricardo Blat),

Mariano Esteves (Ewerton de Castro). Maria Cristina (Bruna Lombardi), Renato

(Otávio Augusto) e Aron (Elias Andreato) são os porta-vozes de uma época que

apresentam suas impressões acerca dos lugares, da qualidade de vida e dos

ideais de uma geração.

Os lugares reais da trama – Rua Morato Coelho, Galeria Metrópole, Praça

D. José Gaspar, Praça da Biblioteca, Restaurante Paddock, Bar Par e Bar e a

cidade como um todo aparecem como o relato de um processo de transfiguração

e morte das suas formas e funções originais. A cidade de São Paulo é objeto de

reflexão de uma obra cuja narrativa tem como tônica a impressão e a percepção

dos lugares por parte dos seus personagens.

Em poucos momentos do filme percebemos a exaltação do presente, como

por exemplo, a cena do Prof. Mario (Ricardo Blat) quando, através de um registro

audiovisual produzido por seu aluno (discípulo), Ramon, se refere à Catedral da

138

Sé: “É o nosso gótico, é a nossa Chartre!”. Este gesto evidencia uma certa

esperança e reconhecimento da arquitetura brasileira enquanto expressão estética

e simbólica imprescindível para a sustentação da identidade social.

A locação – “lugar natural”, e a cenografia – “lugar artificial”, se encontram

de forma contraditória na cena em que Renato (Otávio Augusto) em sua cadeira

de rodas sai do restaurante Paddock com a ajuda de Gustavo (Eduardo Tornaghi)

em direção à Praça D. José Gaspar. O momento vivido por Renato e Gustavo

neste espaço degradado (locação), no qual os mendigos se tornaram os “donos

da praça” no período da noite, se revela um tanto quanto irreal. Percebemos o

excesso de intervenção cenográfica: uma grande quantidade de latões com fogo

ordenados ao longo da praça e outros objetos da população de rua. Esta

cenografia em uma locação (a praça) aparece como cenário para a declamação

de uma produção poética italiana por parte de Renato. A composição da imagem

da cena da praça transmite um excesso de teatralidade incompatível com o

sentido de realidade que o filme pretende transmitir.

O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti

Renato e Gustavo percorrem a Praça D. José Gaspar.

139

Criar histórias é produzir um imaginário que eleve o espírito do espectador

a um estado de crença no que está sendo narrado. A produção da imagem no

cinema se dá com base em uma estratégia estética e psicológica que possa criar

uma atmosfera com um sentido de “verdade”. A este respeito comenta o diretor de

arte Marcos Flaksman: “Cinema é mentira. Só que para mentir corretamente o

profissional tem que saber exatamente como é de verdade” (FLAKSMAN, 1997). A

simulação da realidade, apoiada em um conhecimento histórico e cultural, tem que

ser convincente para quem assiste ao filme, propiciando uma recepção reveladora

que justifique a presença do espectador, deve ser, enfim, um processo artístico

coerente que o induza a uma viagem imaginária. O conhecimento da realidade é a

base para a construção de uma narrativa ficcional que possa estabelecer uma

verdade simulada, mas coerente aos princípios da linguagem do cinema. A arte

cinematográfica permite que o homem, a partir de seu universo imaginário, se

conecte a uma proposta estética geradora de um imaginário que sugira a

realidade narrativa.

O diretor de arte Marcos Flaksman realizou seu primeiro trabalho como

cenógrafo no cinema brasileiro em Garota de Ipanema (1967) de Leon Hirszman.

Entre outras produções, participou de Brasil Ano 2000 (1969) de Walter Lima Jr.,

Os Sete Gatinhos (1980) de Neville d'Almeida, Luar sobre Parador (1985) de Paul

Mazursky, O que é isso Companheiro? (1997) de Bruno Barreto e Villa Lobos,

uma vida de paixão (2000) de Zelito Viana. Em Xangô de Baker Street (2001) de

Miguel Faria Jr., Flaksman junto com o diretor de fotografia, Lauro Escorel,

constituíram a imagem do filme mais próxima da pintura, visto que o Segundo

Império no Brasil (1886) teve a pintura como fonte principal de informação visual e

cultural. Desta forma, o imaginário fílmico é condizente com os padrões estéticos e

técnicos da época, porém se utiliza de recursos de trucagem (simulação da

realidade) para convencer o espectador. A simulação se dá não só através da

criação de ambientes e fisionomias de época, mas também ela aparece pela

reconstituição histórica que surge como pretexto para a construção de uma

narrativa ficcional. O tempo histórico é objeto de simulação para a construção de

140

uma história imaginada, o acesso ao real é manipulado para a transmissão de

uma verdade narrativa.

O imaginário do filme, que conta a história do roubo de um violino

Stradivarius, tem como geografia locações nas cidades do Rio de Janeiro e do

Porto (Portugal). A qualidade fotográfica é conseguida por um processo de

iluminação através do equipamento Varicom que imprime às imagens textura, cor

e contraste de ilustração antiga - gravura. A arquitetura neoclássica da Corte

aparece na cidade do Porto onde foram reconstituídas a Rua do Ouvidor, o Café

Majestic, o Hotel Albion e a Livraria Lello que são símbolos da arquitetura

portuguesa incorporados ao cenário carioca do final do século XIX. Na cidade do

Rio de Janeiro, parte da praça XV (barbeiro, botequim e armazém) é recriada no

pátio da Casa da Moeda, atual Arquivo Nacional, o gabinete do Imperador D.

Pedro II é ambientado no Museu Histórico Nacional da Quinta da Boa Vista e o

Teatro de Niterói é palco para as apresentações de Sarah Bernhardt, em sua

primeira visita ao Brasil. A escolha dos cenários estabelece o caminho para a

crença do espectador em uma ficção histórica na qual a comédia e o suspense

conduzem o desenvolvimento da narrativa. Flaksman declara que:

Todo o esforço da produção esteve voltado para imprimir a maior autenticidade possível à ambientação, fundamentada em pesquisa exaustiva: lemos de livros à coluna social de João do Rio, analisamos iconografias, fomos ao Instituto Light saber como era o posteamento da cidade quando foi ligada a luz elétrica. (...) Ao fazer o desenho de um filme, procuro dar um conforto ao imaginário do espectador, no sentido de que a viagem visual seja acreditável, confortável. (FLAKSMAN, 2001).

A obra cinematográfica deve fornecer ao espectador condições para que ele

acredite em uma determinada realidade mesmo que esta seja resultado de uma

construção imaginária, a verdade pode ser transmitida mesmo que ela parta da

premissa de que se trate de uma história inventada. O material histórico é uma

fonte de pesquisa imprescindível para a produção de um ambiente de época que

seja um elemento de comunicação de um imaginário histórico forjado, mas real no

141

sentido da narrativa instituída. A memória da sociedade do Segundo Império no

Brasil é o cenário para a criação de uma memória de uma história imaginária.

A questão da crença no ambiente da narrativa de Dias de Nietzsche em

Turim (2001) de Julio Bressane e projeto de direção de arte de Moa Batsow se dá

a partir da utilização de locações da própria cidade de Turim (Itália) nas quais

Nietzsche se apropria da arquitetura e do espaço urbano para a produção de

pensamento. A Calle dei Preti é o portal de entrada para um percurso imaginário

através do pensamento e da cidade. A reconstituição histórica dos ambientes

(1888-1889) apresenta, também, locações da cidade do Rio de Janeiro: Museu

Nacional de Belas Artes (interior), Rua do Mercado, Praça Mahatma Ghandi

(chafariz), Gabinete Português de Leitura (interior), Passeio Público, Sala Cecília

Meireles, Confeitaria Colombo (interior) para compor os diversos ambientes que

embevecem o olhar do filósofo-flâneur. Estas locações que não são originárias da

própria cidade italiana, em alguns momentos, transmitem uma certa descrença no

que se refere à precisão do lugar da reconstituição histórica. Ao vermos o chafariz

da Praça Mahatma Ghandi, na Cinelândia, ficamos com a impressão que estamos

na cidade do Rio de Janeiro, e não em Turim. Na realidade, a questão não é o

objeto (a locação) em si, mas a forma com que ele é captado pela câmera e

inserido na narrativa do filme. As demais locações, mesmo que saibamos que elas

pertencem à geografia carioca, conseguem passar uma crença na fidedignidade

do espaço histórico. Penso, também, que por serem as cenas de Nietzsche na

área da Cinelândia cenas externas, inseridas em uma paisagem maior, elas

fiquem associadas de imediato à paisagem carioca. O filme, entâo, passa uma

certa descontinuidade na unidade do espaço da reconstituição histórica, a

arquitetura e a cidade de Nietzsche ultrapassam a linearidade do tratamento do

espaço da narrativa, o pensamento do filósofo explode a evolução contínua da

estética dos lugares.

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Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane

Locação: Sala Cecília Meireles

3.4. Cenário, figurino, maquiagem e objeto

A diversidade de linguagens que compõe a arte do cinema sistematiza um

processo de produção que tem como objetivo dar um acabamento técnico a um

conceito estético de um filme. A técnica torna legível as potencialidades artísticas

da linguagem cinematográfica modulando o espaço e o tempo na construção de

uma narrativa, o realismo plástico característico do objeto fílmico promove o

diálogo de diferentes expressões estéticas.

A direção de arte busca um entrosamento entre o cenário, as locações, o

figurino, o cabelo, o gestual, a fala, a maquiagem, a iluminação e a cor de modo a

dar vida a uma idéia que poderá sensibilizar e transformar o olhar do espectador

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