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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Programa de Pós Graduação em Psicologia Social
Jorge Ricardo Santos de Lima Costa
A paixão de olhar: a cidade no cinema brasileiro
Rio de Janeiro 2008
Jorge Ricardo Santos de Lima Costa
A paixão de olhar: a cidade no cinema brasileiro
Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, área de concentração em Psicologia Social.
Orientadora: Profa. Dra. Ariane Patrícia Ewald
Rio de Janeiro 2008
Jorge Ricardo Santos de Lima Costa
A paixão de olhar: a cidade no cinema brasileiro
Tese apresentada, como requisito para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, área de concentração em Psicologia Social
Aprovado em ________________________________________ Banca Examinadora: ___________________________________________________ Profa. Dra Ariane Patrícia Ewald Universidade do Estado do Rio de Janeiro __________________________________________________ Profa. Dra.Heloísa Guimarães Peixoto Nogueira Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ___________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Cláudio da Costa Universidade do Estado do Rio de Janeiro ___________________________________________________ Prof. Dr. Jorge de Campos Valadares Fundação Oswaldo Cruz ___________________________________________________ Profa. Dra. Monique Augras Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - aposentada
Rio de Janeiro 2008
Dedicatória
Aos meus pais, pela dedicação e presença constante em minha vida,
aos companheiros e amantes da arte do cinema, por terem
compartilhado comigo tantas descobertas e prazeres diante de filmes
inesquecíveis, e às cidades que tenho conhecido, que são o laboratório
para o exercício do olhar e do caminhar ao longo de ruas encantadoras
e imprevisíveis.
Agradecimentos
Aos professores, colegas e funcionários do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em especial a
minha orientadora, Profa. Dra. Ariane Patrícia Ewald, pelo carinho e pela
orientação primorosa ao longo desta produção acadêmica tão significativa para
minha história de vida, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Capes, pelo apoio institucional e financeiro.
Aos amigos arquitetos pelo interesse em conhecer e divulgar esta pesquisa
que acredito ser importante para nossa formação profissional e cultural e aos
demais parceiros e amantes da cultura, que vibram ao tomarem conhecimento de
um estudo inédito e comprometido com a valorização da vida nos grandes centros
urbanos.
Resumo
Desde a criação do cinema, em 1895, a cidade vem sendo retratada de forma
surpreendente para quem a vivencia em seu cotidiano. A arte do cinema amplia o
sentido de realidade e provoca um impacto sobre o universo psicológico e social
do homem. O cinema brasileiro acompanha, através de sua vasta produção, o
percurso da cidade no tocante ao desenvolvimento estético, social, cultural,
político e econômico, apresentando a forma através da qual o homem se relaciona
com essas variáveis. O historiador Michel de Certeau desenvolve em sua obra o
tema da inventividade do cotidiano, no que se refere à prática do espaço. Os
conceitos de “espaço” (um lugar praticado), e de “lugar” (um espaço geométrico),
permitem aprofundar o estudo do papel do homem no cotidiano da cidade. É este
o eixo teórico da presente pesquisa, que pretende estudar o imaginário da cidade
no cinema brasileiro a partir de três questões principais: a formação do imaginário
urbano, a criação da forma da cidade no cinema (locações, cenários e fisionomias)
e o estado de solidão e isolamento vivido pelo homem nas grandes cidades. Para
tal, foram escolhidas para análise as seguintes produções brasileiras: Dias de
Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane, O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti
e O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein. A cidade representada
nesses filmes nos dá a oportunidade de exercitar o olhar e refletir sobre o
cotidiano da vida urbana e seus reflexos no universo psicológico do homem
contemporâneo.
Palavras-chave: cidade, cinema, imaginário urbano, direção de arte e solidão.
Abstract Since the creation of the cinema, in 1895, cities have been portrayed in a way that
surprises those who experience it in their daily lives. The art of cinema magnifies
the sense of reality, thus triggering an impact on man's psychological and social
universe. Through its large production, the Brazilian cinema follows the city's
journey in connection with the aesthetic, social, cultural, political, and economical
development, depicting the way man relates to these variants. In his work, the
historian Michel de Certeau develops the subject of everyday
inventiveness regarding the practice of space. The concepts of "space" (a
practiced place) and "place" (a geometrical space) pave the way to deepening
the investigation of man's role in the city's everyday life. This is the theoretical
chore of the present research. It proposes to investigate the city's imaginary
contents as seen in the Brazilian cinema, based on three main topics: the
formation of the urban imaginary contents, the creation of the city's form on film
(locations, settings, and looks), and the state of solitude and isolation man must
face in the big cities. In order to supply the adequate material, the following
Brazilian productions have been selected for the studies in question: Dias de
Nietzsche em Turim (Nietzsche's Torino Days) (2001), by Julio Bressane, O
Príncipe (The Prince) (2002), by Ugo Giorgetti, and O Outro Lado da Rua (The
Other Side of the Street) (2004), by Marcos Bernstein. As portrayed in these films,
the city supplies us with the opportunity to exercise the act of looking, and to reflect
about the urban daily life with its effects on the contemporary man's psychology.
Key-words: city, cinema, urban imaginary contents, art direction, and solitude.
Résumé
Depuis la création du cinéma, en 1895, la ville a toujours été représentée de façon
surprenante pour ceux qui la vivent dans son quotidien. L'art du cinéma amplifie le
sens de réalité et joue un rôle impactant sur l'univers psychologique et social de
l'homme. Le cinéma brésilien, par sa vaste production, suit le parcours de la ville
dans ce qui concerne le développement esthétique, social, culturel, politique, et
économique, en nous présentant la façon dont l'homme se met en rapport avec
ces variantes. Dans son travail, l'historien Michel de Certeau développe le sujet de
l'esprit inventif du quotidien, en ce qui concerne la pratique de l'espace. Les
concepts d'espace (un endroit pratiqué) et d'endroit (un espace géométrique)
permettent l'approfondissement de l'étude du rôle jouée par l'homme dans le
quotidien de la ville. Voilà l'axe théorique de la présente recherche, dont l'objectif
est l'étude de l'imaginaire de la ville dans le cinéma brésilien à partir de trois sujets
principaux: la formation du contenu imaginaire urbain, la création de la forme de la
ville au cinéma (extérieurs, décors et physionomies) et l'état de solitude et
d'isolement vécu par l'homme dans les grandes villes. Dans ce but, les productions
brésiliennes qui suivent ont été choisies pour être analysées: Dias de Nietzsche
em Turim (Jours de Nietzsche à Turin) (2001), de Julio Bressane, O Príncipe (Le
Prince) (2002), de Ugo Giorgetti, et O Outro da Lado Rua (L'Autre Côté de la Rue)
(2004), de Marcos Bernstein. La ville représentée dans ces films nous permet
d'exercer le regard et de repenser le quotidien de la vie urbaine et ses effets sur
l'univers psychologique de l'homme contemporain.
Mots-clé: ville, cinéma, imaginaire urbain, direction d'art et solitude.
Sumário
Introdução 11
Capítulo I 24
O sonho e a criação da cidade no cinema 24
1.1. Cenas urbanas, cenas do cinema 25 1.2. O sonho e a tėcnica no cinema 35 1.3. A cidade no cinema: as narrativas clássicas 47
Capítulo II 57
Imaginários da Cidade 57
2.1. A escrita da história, a escrita da cidade 58 2.2. O homem, a cidade e a tradição 75 2.3. O corpo na prática do espaço 88 2.4. Esquecimentos e criações 99
Capítulo III 112
Ambientes e fisionomias: a forma cinematográfica 112
3.1. A imagem do cinema: uma estética reveladora 113 3.2. Primórdios da direção de arte no cinema: obras e conceitos 118 3.3. Cenário e memória 129 3.4. Cenário, figurino, maquiagem e objeto 142 3.5. Modos de criação 153
Capítulo IV 162
Solidão e Isolamento – a vivência do homem nas janelas e nas calçadas da cidade 162
4.1 O vislumbramento da cidade através da janela 163 4.2. Nas calçadas transformamos o mundo 180
Capítulo V 202
E a paixão continua ... 202
Bibliografia 208
Hemerografia 219
Filmografia 222
Filmografia de Apoio 225
Não me interessa, absolutamente, fazer uma crônica sobre a cidade. O meu interesse inicial são as pessoas e como a cidade as influencia. Dessa forma, as pessoas não vivem impunemente; elas vivem na cidade e são do jeito que são porque a cidade é, também, do jeito que é. Então, se uma pessoa vive em São Paulo, ela recebe necessariamente influência de fatores negativos e positivos da vida urbana. Na realidade, o que me interessa, de uma maneira não muito periférica e direta, é contribuir para a criação da mitologia da cidade. Isso eu acho interessante1.
Ugo Giorgetti
1 Trecho da entrevista concedida pelo cineasta paulista Ugo Giorgetti ao programa “Revista do Cinema Brasileiro” de agosto de 2002.
11
Introdução A idéia inicial de se investigar o imaginário e a forma da cidade no cinema
brasileiro é resultante do desenvolvimento de projetos culturais que tiveram como
objetivo ampliar o olhar do espectador em relação à narrativa da vida urbana sob a
ótica do cinema brasileiro e internacional. A importância do tema aparece como
uma necessidade iminente de se buscar significado à experiência do homem
urbano contemporâneo diante da crise social e de seus reflexos no universo da
psicologia do grupo que vive e produz nas cidades.
Ao longo de minha carreira manifestei o interesse em relação à influência
do espaço urbano e da arquitetura sobre o homem. A maneira com que ele recebe
esse acervo de impressões resulta em um perfil psicológico característico do
impacto da forma sobre o ser humano. Os projetos de arquitetura e de urbanismo
precisam levar em conta a psicologia do sujeito nas diversas experiências no
âmbito dos espaços nos quais ele produz cultura, pensamento e afeto. A cidade e
a arquitetura são objetos que provocam sentimentos e aspirações em quem olha e
percebe o movimento e o sentido da forma.
O interesse pela arte do cinema vem de longa data. Desde as primeiras
sessões de cinema que constatei o impacto dos filmes sobre o meu universo
imaginário e os reflexos no cotidiano, a forma de pensar e sentir os fatos, os
objetos e as pessoas foram redimensionados diante das imagens em movimento.
A presença da cidade e da arquitetura no cinema, enquanto área de interesse
para pesquisa e para produção de projetos, surgiu no momento que percebi o
papel da cidade e da arquitetura na construção do ambiente da narrativa
cinematográfica, quando elas se tornam personagens que determinam a forma e o
conteúdo da história.
Esta pesquisa leva em conta inúmeras idéias e reflexões sistematizadas na
prática e que foram consideradas na estruturação do arcabouço teórico e na
seleção dos filmes a serem analisados. No processo de investigação dos
12
conceitos adotados foi constituído um acervo de filmes sobre o tema que foi objeto
de relato histórico e estético para o embasamento da análise teórica. A natureza
dinâmica da pesquisa proporcionou a descoberta de inúmeras possibilidades de
se contextualizar o estudo da cidade no cinema brasileiro. Neste sentido, procurei
dimensionar a minha experiência pessoal nos diversos campos de sistematização
de idéias para que eu pudesse alcançar um resultado mais adequado à realidade
social brasileira.
A experiência do homem no espaço urbano na busca de sentido para a sua
existência se caracteriza por confrontações cotidianas da ordem da subjetividade.
A natureza dessa experiência possibilita a ele e ao espaço no qual interage a
constituição de um universo provido de significação proporcionando o
reconhecimento de certos elementos enquanto símbolos representativos do
imaginário social, norteadores, portanto, de um processo conformador da memória
da sociedade, imprescindível à construção da identidade social. O território do
imaginário e do simbólico engloba um conjunto de fatos, objetos e personagens,
os quais exercem papel fundamental na instituição de símbolos representativos do
universo cultural que alimentam o imaginário social.
A estética cinematográfica, enquanto uma expressão cultural da sociedade,
se apresenta como objeto de pesquisa imprescindível para o reconhecimento da
forma como o imaginário urbano é formado e, conseqüentemente, a forma como
a cidade é apropriada pelo homem. O cinema é um instrumento de registro
(memória) social importante no tocante ao estímulo aos conteúdos profundos de
um processo de identificação do homem com sua realidade urbana.
O tema da tese de doutorado é “Cinema, cidade e imaginário”, ou seja, a
formação do imaginário urbano no cinema brasileiro. O cinema apresenta formas e
conteúdos representativos do espaço urbano que são criados e apropriados do
universo social. A visão estética do diretor e da equipe técnica institui uma cidade-
símbolo que irá ser propagada pela narrativa do filme em seus desdobramentos
de forma e de conteúdo. As imagens produzidas dialogam com o espectador
trazendo informações que irão estimular o imaginário individual e social, elas
13
redimensionam o sentido de espaço e de tempo e ampliam o olhar do homem
sobre o cotidiano da cidade.
Desde a primeira filmagem realizada em 1898 -, “Fortalezas e navios de
guerra na Baía de Guanabara”, por Afonso Segreto que, junto com seu irmão
Pascoal Segreto, foram os pioneiros do cinema no Brasil2 -, até os dias de hoje, a
cidade tem sido um tema importante na produção cinematográfica brasileira. Ela
vem sendo simbolizada das mais diversas maneiras retratando tanto os aspectos
positivos – belas paisagens e personagens emblemáticos da vida na cidade, como
os aspectos negativos (sombrios) – espaços degradados (favelas, prédios em
ruínas ... ), pobreza e marginalidade. A importância do tema no cinema permite
que se possa registrar e analisar a transformação da cidade brasileira ao longo
dos diversos momentos da história do cinema nacional.
Para a constituição do objeto de pesquisa foi delimitado o seguinte
problema central: a criação e o desenvolvimento do imaginário urbano no cinema
brasileiro. Verificamos que o ponto de vista do cineasta na criação da obra
cinematográfica produz narrativas que podem ser uma leitura particular da
realidade ou criações artísticas em potencial. A leitura que ele faz do tema pode,
também, abrir novos caminhos de compreensão ainda não explorados pela arte do
cinema e pela sociedade, uma visão a frente de seu tempo e, em um primeiro
momento, questionada pelos atores sociais.
O surgimento do cinema no final do século XIX, em 1895, na França3, é
concomitante ao processo de desenvolvimento dos grandes centros urbanos. A
cidade é retratada de forma sistemática através das lentes do cinema, existindo,
porém, poucos estudos teóricos que tratem da formação do imaginário da cidade
no cinema. A importância do tema é inquestionável pois podemos, em pleno auge
da crise urbana, utilizar o cinema para compreender melhor o universo social e
poder intervir de forma objetiva nos rumos da vida das metrópoles. O cinema é
2 No dia 8 de julho de 1896, o cinematógrafo (omniógrafo) chega no Rio de Janeiro. Em 30 de julho de 1897, instala-se na Rua do Ouvidor nº 141, o primeiro cinema permanente do país, o Salão de Novidades Paris no Rio, de Pascoal Segreto. 3 A primeira sessão pública do cinematógrafo acontece no dia 28 de dezembro de 1895, no Salão Indiano, uma pequena sala localizada no subsolo do Grand Café n. 14, Boulevard des Capucines, Paris.
14
uma arte sedutora e impactante, e apresenta instrumental estético e técnico para
contribuir para o redimensionamento do olhar sobre a cidade, no que se refere ao
papel do homem na construção da realidade social e urbana.
Pensar a cidade significa avaliar a experiência estética e social do homem
no cotidiano. A questão da “prática do espaço” aparece como uma experiência
antropológica na qual a cidade se apresenta como um local de transformações e
apropriações constantes, imprescindíveis ao redimensionamento do homem e do
próprio espaço.
Praticar o espaço significa uma forma de operação onde a cidade se
transforma de um mero “fato urbano” para se constituir em uma “cidade-conceito”,
ou seja, a ação se orienta no sentido de captar o espírito da “cidade dita
metafórica” – o lugar figurado produzido pelo olhar do sujeito. A proposição de
“cidade-conceito” apresentada pelo historiador francês Michel de Certeau (1925-
1986) em sua obra A Invenção do Cotidiano (1994) se desdobra em duas
categorias: “espaço” e “lugar”.
O “lugar” é um espaço geométrico, uma estrutura caracterizada pela ordem
e pela estabilidade, e o “espaço” é um cruzamento de móveis, subjetividades,
descobertas; uma experiência antropológica; um lugar praticado. A denominação
“cidade-conceito” como: “lugar de transformações e apropriações, objeto de
intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos é, ao
mesmo tempo, a maquinaria e o herói da modernidade” (CERTEAU, 1994, p. 174),
requer uma conquista constante e a respectiva participação do homem, no sentido
de se deflagrar um processo simbólico a partir da manipulação dos elementos da
estrutura material urbana. Este processo se caracteriza pelo desenvolvimento de
práticas microbianas, singulares e plurais que vão criando a forma de um espaço
vivenciado por um corpo desejante. O “espaço” é o local da ação e da experiência
humanas, no qual são constituídos símbolos que expressam um campo de
conhecimento de uma cultura. Buscar o sentido de uma cultura significa elaborar a
análise de um discurso no tocante ao conjunto de fatores biológicos, psicológicos
e sociológicos pertinentes à realidade do grupo social.
15
O campo de estudo denominado Sociologia dos Sistemas Simbólicos
desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) em A Economia
das Trocas Simbólicas (1974) situa a cultura e o símbolo como instrumentos tanto
de comunicação e conhecimento (consenso), quanto de afirmação de poder,
legitimação da ordem vigente. Segundo Bourdieu: “O processo de simbolização
cumpre sua função essencial de legitimar e justificar a unidade do sistema de
poder, fornecendo-lhe o estoque de símbolos necessários à sua expressão”
(BOURDIEU, 1974, p. LIV). O símbolo se estabelece não só como conseqüência
natural de uma representação social, mas, além disto, como resultado de uma
estratégia ideólogica que procura redimensionar o universo social com o objetivo
de instituir uma forma de dominação.
Neste contexto, podemos nos reportar ao princípio de habitus de Bourdieu
(1974) como um elemento que estabelece a interação entre dois sistemas de
relações: as estruturas objetivas e as práticas. O habitus é o modo pelo qual o
símbolo é apreendido, assimilado pela sociedade, em um processo de
demarcação de novas formas ou práticas sociais, interpretações e intervenções
redimensionadas. É uma leitura e uma prática da realidade com o objetivo de
promover novas significações ao processo de identidade individual e social.
A arte cinematográfica é uma linguagem fundamental para a compreensão
do processo de construção da realidade. Por ser uma “técnica do imaginário”, ou
seja, por apresentar narrativas ficcionais, como também por se estruturar sobre o
imaginário da fotografia e da fonografia, o cinema se constitui como um campo de
investigação da produção simbólica.
Na realidade, a tela do cinematógrafo pode ser considerada como um
“espelho” em referência ao conceito de “estádio de espelho”, de autoria do
psicanalista Jacques Lacan (1901-1981) apresentado em sua obra Escritos
(1998), que é um momento de fundamentação do imaginário. A associação entre o
conceito de “espelho” e o cinema se configura a partir de um processo de
identificação especular (a tela de projeção) da ordem de um “simulacro psíquico”,
no qual o espectador através da manipulação de suas categorias mentais
16
(maquinário mental) interage com o filme de forma a mergulhar em um universo
imaginário, percorrendo uma trajetória de busca de um significante, de uma
elaboração simbólica.
Como comenta o teórico de cinema Christian Metz (1915-1995) em
Psicanálise e Cinema (1980): “O particular do cinema não é o imaginário que ele
pode eventualmente representar, é aquele que antes de mais nada ele é, aquele
que o constitui como significante” (METZ, 1980, p. 58). O cinema se caracteriza
pela possibilidade de acesso ao imaginário e a respectiva constituição do
simbólico no intuito de comunicar ao espectador o ponto de vista do cineasta. Os
símbolos estimulam o sujeito em seu percurso de manipulação da mente e dos
sentidos e proporcionam o aprimoramento do olhar sobre a realidade.
Podemos estruturar o significante do cinema a partir do conceito de Lacan
de “pulsão perceptora” que fundamenta as seguintes categorias sistematizadas
por Metz (1983): “pulsão escópica” (visual) e “pulsão invocante” (auditiva). O
desejo do espectador é estimulado a partir dos recursos da fotografia e da
fonografia que apresentam o material para a elaboração do significante em sua
produção natural de símbolos representativos de uma determinada proposição
estética. O cinema utiliza em sua estrutura significante o conteúdo de diversas
artes, tais como a: pintura, música, fotografia, moda, cenografia e arquitetura. A
estética múltipla e arrebatadora do cinema, representante maior de uma
“civilização da imagem”, provoca no sujeito uma aceleração dos processos
conscientes e inconscientes. O corpo do espectador é invadido por registros
visuais e sonoros que irão trazer material significante para a produção simbólica.
Neste contexto, a cidade (o corpo urbano) aparece como um organismo produtor
de imagens e sons que estimula e qualifica a realidade de vida do homem
contemporâneo.
A subjetividade a ser considerada entre o homem e a cidade explicita, sob o
ponto de vista da corporeidade, o sentido da imagem humana que se dissemina
pelo corpo da cidade. Este é identificado como o corpo maior do homem – um
território de acúmulo de impressões, afetos e experiências. A apropriação do
17
corpo da cidade ocorre quando o sujeito se integra ao seu corpo original em um
processo de correlação entre o mundos objetivo e subjetivo. A partir da elaboração
de um discurso próprio (de uma linguagem), se verifica a integração do corpo do
homem ao corpo da cidade. O historiador Richard Sennett em sua obra Carne e
Pedra (1997) estabelece o argumento de que:
(...) a forma dos espaços urbanos deriva de vivências corporais específicas a cada povo (...) Nosso entendimento a respeito do corpo que temos precisa mudar, a fim de que em cidades multiculturais as pessoas se importem umas com as outras. Jamais seremos capazes de captar a diferença alheia enquanto não reconhecermos nossa própria inaptidão. (SENNETT, 1997, p. 300).
O corpo marca o tecido urbano com uma carga de sofrimento, uma energia
afetiva que engendra novas configurações, funções, reformulando a cultura do
espaço. A cidade se justifica a partir do corpo do homem em suas constantes
intervenções cotidianas, na incorporação de mitos de seu mapa, ou seja, na
constituição de um percurso humano.
O “corpo passivo” denominado por Sennett (1997) surge como uma
estrutura corpórea típica da cidade moderna na qual o sujeito não incorpora o
espaço, não assume uma afetividade em relação a ele. O espaço da cidade se
fragmenta por não estar imbuído de uma intenção humana, tornando-se, assim,
destituído do sentido afetivo e social que identifica a natureza da experiência
urbana.
O cinema nos permite identificar e compreender uma realidade que, muitas
das vezes, se torna difícil de assimilar no cotidiano. A cidade vista pelo cinema
aparece para o espectador de forma ampliada, potencializada no tocante ao
conteúdo e à forma do filme. A partir do redimensionamento da noção de tempo
do cinema podemos percorrer diversos lugares da cidade, a forma que o espaço e
o tempo são elaborados possibilita ao homem vivenciar inúmeras realidades e
perceber o contraste no tocante aos “fundamentos sensoriais da vida psíquica” de
18
cada segmento do espaço urbano, conforme nos fala George Simmel em A
Metrópole e a Vida Mental (1967).
O século XX foi, sem dúvida alguma, o século do cinema. Desde o
surgimento da arte cinematográfica a sociedade tem se reportado ao imaginário
social de forma a enriquecer e desenvolver a percepção individual e coletiva.
A modernidade trouxe, através da estética do cinema, a transformação do
olhar do sujeito que resultou em um “novo estatuto para o olhar”. Segundo Leo
Charney e Vanessa Schwartz em O Cinema e a Invenção da Vida Moderna
(2001):
A “modernidade”, como expressão de mudanças na chamada experiência subjetiva ou como uma fórmula abreviada para amplas transformações sociais, econômicas e culturais, tem sido em geral compreendida por meio da história de algumas inovações talismânicas: o telégrafo e o telefone, a estrada de ferro e o automóvel, a fotografia e o cinema. Desses emblemas da modernidade, nenhum personificou e, ao mesmo tempo, transcendeu esse período inicial com mais sucesso do que o cinema. (CHARNEY e SCHWARTZ, 2001, p. 19).
A narrativa do universo do cinema instaura no homem uma ativação do imaginário
e a respectiva produção simbólica, esta experiência subjetiva característica da
modernidade promoveu um salto no tocante ao conhecimento da diversidade da
experiência humana. O espectador recebe a tarefa de capturar do movimento
contínuo de imagens elementos que possam instituir o significante da própria obra
cinematográfica, como também o sentido de um percurso enquanto indivíduo e
agente social. O imaginário urbano se reconfigura com a chegada do cinema que
permite ao homem aprofundar o conhecimento sobre a realidade e criar novas
formas e idéias acerca da arquitetura e da cidade de seu cotidiano.
O objetivo geral desta pesquisa é ampliar o conhecimento da cidade, sob a
ótica do cinema brasileiro, no tocante à forma com que o homem experimenta o
espaço e estabelece sentido à prática urbana. A cidade, enquanto local de
distração, sensação e estímulo, impede o homem de realizar uma apropriação
adequada da realidade. A cidade na tela do cinema constitui um momento no qual
ele pode perceber o mundo a partir de diversos pontos de vista: técnico - distância
19
do objeto, ângulos de câmera, e cor; estilo - ficção, documentário e experimental;
subjetivo - olhar do diretor; antropológico; histórico e psicológico. Esta variedade
de leituras possibilita ao espectador ampliar o conhecimento sobre o objeto urbano
e suas especificidades culturais, visto que em seu cotidiano ele não dispõe de
recursos apropriados para realizar a tarefa de percepção e interpretação plenas da
realidade urbana.
O final do século XX e o princípio do século XXI aparecem na história do
cinema brasileiro como um período marcante em relação ao crescimento da
produção cinematográfica. A atual crise das cidades brasileiras tem sido retratada
em um considerável número de produções de forma sistemática e polêmica, o
universo urbano é considerado em seus aspectos físicos, sociais e culturais,
propiciando um debate público até então incipiente em relação ao tema.
Para o desenvolvimento da pesquisa foi delimitado o período entre 1994 e
2004, década de grande repercussão do cinema brasileiro no exterior e no país. O
período inclui o que é denominado pelos historiadores e críticos os anos da
“retomada do cinema brasileiro”, que vão de 1994 a 1998. O “renascimento do
cinema” se estabelece em relação direta a uma preocupação no tocante ao tema
da “redescoberta da nação brasileira”, as mazelas sociais e as riquezas culturais
da sociedade brasileira voltam a fazer parte das preocupações estéticas dos
cineastas brasileiros. Central do Brasil (1998) de Walter Salles é o filme-símbolo
do período da retomada que faz repercutir a imagem do Brasil para o mundo,
como também para o sentido de identidade social do povo brasileiro.
A partir de uma extensa pesquisa bibliográfica e filmográfica pude fazer
uma seleção criteriosa entre os filmes de ficção do período que tratavam da
cidade enquanto personagem da trama cinematográfica. A seleção levou em conta
a possibilidade de se apresentar uma pesquisa com uma análise inédita de filmes
brasileiros com o objetivo de desenvolver o tema em seus aspectos formais e de
conteúdo. A riqueza do universo imaginário de seus personagens, a forma (a
construção) dos espaços retratados e o estado de solidão e de isolamento vivido
por eles nas cidades em que experimentavam o mundo foram fatores decisivos
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para a escolha dos filmes. O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti, O Outro Lado da
Rua (2004) de Marcos Bernstein e Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio
Bressane foram os filmes selecionados e que atendiam a todo esse universo de
idéias e conceitos desenvolvidos ao longo da pesquisa. A análise dos três filmes
foi elaborada a partir de um diálogo com obras cinematográficas nacionais e
internacionais que pudessem aprofundar os conceitos tratados. Os filmes ilustram
o meu ponto de vista acerca da importância da qualidade da interação entre o
homem e o espaço urbano e da experiência psicológica decorrente dessa
produção de sentidos.
O filme O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti configura um símbolo de cidade
brasileira degradada na qual o protagonista Gustavo (Eduardo Tornaghi) no
retorno ao Brasil, vindo de Paris, não mais reconhece a cidade de sua juventude.
A realidade é cruel e o diretor quer mostrar a decadência da cidade paulista e de
um grupo social que perdeu de vista os ideais e os lugares nos quais ocorriam a
produção de pensamentos e afetos que poderiam transformar as futuras gerações.
A cidade de São Paulo de Giorgetti aparece como uma cidade-símbolo que
corresponde à realidade do homem urbano contemporâneo, ela é um espelho de
um momento histórico caótico – a “cidade real” do nosso cotidiano.
O cineasta paulista Ugo Giorgetti tem uma longa experiência em
publicidade e iniciou sua carreira no cinema com o documentário Campos Elíseos
(1973) que apresenta a história do bairro conhecido inicialmente como lugar da
elegância paulistana e, posteriormente, transformado como lugar da criminalidade
da Boca do Lixo. Os documentários Edifício Martinelli (1975), Quebrando a Cara
(1983) e Uma Outra Cidade (2000) e as ficções Jogo Duro (1986), Festa (1989),
Sábado (1994), Boleiros (1998), O Príncipe (2002) e Boleiros 2 (2006) formam a
produção cinematográfica do diretor conhecido como um retratista da paisagem
urbana de São Paulo. A cidade e a arquitetura na filmografia de Giorgetti são
personagens que provocam o olhar do espectador com relação ao sentido do
lugar no cotidiano da vida urbana do homem contemporâneo.
21
A descoberta do espaço urbano e do amor através da janela de uma mulher
solitária, este é o tema do filme O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein.
A personagem Regina (Fernanda Montenegro), informante da polícia, presencia
da janela de seu apartamento o suposto assassinato de uma mulher doente por
parte de seu marido, o juiz aposentado Camargo (Raul Cortez). A experiência de
um olhar invasor, que lembra o clássico do suspense Janela Indiscreta (Rear
Window, 1954) de Alfred Hitchcock, promove a transformação de uma mulher de
terceira idade na busca de afeto e de sentido para a sua vida. As dificuldades
relativas ao encontro amoroso no espaço da cidade do Rio de Janeiro constituem
uma obra que se caracteriza como uma crônica urbana protagonizada por
personagens de terceira idade de uma grande metrópole.
Marcos Bernstein pertence à nova geração de roteiristas do cinema
brasileiro. Ele se projetou enquanto roteirista a partir do filme Central do Brasil
(1998) de Walter Salles, roteiro em parceria com João Emanuel Carneiro.
Elaborou os seguintes roteiros de filmes de ficção: Terra Estrangeira (1995) de
Walter Salles e Daniela Thomas, Oriundi (1999) de Ricardo Bravo, Crime Nobre
(Noble Crime, 2001) de Walter Lima Jr., O Xangô de Baker Street (2001) de
Miguel Faria Jr., Inesquecível (2006) de Paulo Sergio de Almeida e Zuzu Angel
(2006) de Sergio Rezende. O Outro Lado da Rua (2004) é o seu primeiro longa-
metragem, uma obra de ficção que lança um olhar sobre as janelas e as calçadas
do Bairro de Copacabana nas quais o homem produz experiência social e afetiva.
Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane mostra a experiência
intelectual e urbana do filósofo Friedrich Nietzsche na cidade de Turim entre abril
de 1888 e janeiro de 1889. Nietzsche percorre os becos, as praças e os edifícios
públicos em um processo intenso de produção filosófica no espaço urbano. O
pensamento do filósofo brota do corpo da cidade e da arquitetura evidenciando o
espírito do lugar e a produção permanente do imaginário. Turim no filme de
Bressane aparece como uma obra de arte, um objeto que transcende a mera
materialidade e se apresenta como um elemento de transformação do espírito
humano.
22
O cineasta experimental carioca Júlio Bressane começou a trabalhar no
cinema como assistente de direção de Walter Lima Jr. em Menino do Engenho
(1965) e de Fernando Campos em A Viagem (1965). Junto com Rogério
Sganzerla João Silvério Trevisan e Ozualdo Candeias formaram, nos anos 60 e
70, o movimento denominado Cinema Marginal que se caracterizava por
produções de baixo orçamento no período inicial do movimento, pela noção de
autor lançada no Brasil pelo Cinema Novo e pela forma com que subvertia a
linguagem cinematográfica. Cara a Cara (1967) foi seu primeiro longa-metragem e
que obteve um prêmio especial do júri no Festival de Brasília. Em sua filmografia
destacam-se os seguintes filmes: O Anjo Nasceu (1969), Matou a Família e foi ao
Cinema (1969), Agonia (1977), Tabu (1982), Brás Cubas (1985), O Mandarim
(1995), Miramar (1997), São Jerônimo (1998), Dias de Nietzsche em Turim (2002),
Filme de Amor (2003) e Cleópatra (2007).
Os procedimentos da Filosofia, Teoria Cinematográfica, Psicanálise,
História Cultural (Urbana), Sociologia, Estética, entre outros campos de
conhecimento, aparecem como subsídios teóricos para o desenvolvimento do
objeto de pesquisa. Os conceitos de Michel de Certeau, Pierre Bourdieu, Christian
Metz, Jacques Lacan, Richard Sennett, André Comte-Sponville, Kevin Lynch, Jane
Jacobs, Cornelius Castoriadis, Jacques Aumont, Walter Benjamin, Nobert Elias,
Gaston Bachelard e outros teóricos proporcionaram o desenvolvimento do tema
“Cinema, Cidade e Imaginário” contribuindo para a visibilidade dos estudos da
cidade no cinema, área de pesquisa pouco aprofundada pelos pesquisadores
acadêmicos. O instrumental teórico adotado elabora uma análise da forma e do
conteúdo das obras cinematográficas em questão apresentando um estudo que
amplia o sentido da cidade na vida cotidiana do homem brasileiro.
A tese de doutorado está estruturada em 5 (cinco) capítulos: O capítulo I -
O sonho e a criação da cidade no cinema - apresenta a relação entre a cidade e o
cinema a partir da história da técnica de cinema e de seus reflexos na psique
humana. Ao longo do capítulo são apresentados clássicos do cinema brasileiro e
internacional que evidenciam a trajetória da cidade no cinema no contexto da
23
história da cultura; o Capítulo II - Imaginários da cidade - trata da criação e do
desenvolvimento do imaginário social e urbano se reportando à cidade tradicional,
analisando o papel do corpo do homem na prática do espaço e contrapondo a
memória e o esquecimento na formação da sociedade; o Capítulo III - Ambientes e
fisionomias: a forma cinematográfica - aborda a criação dos espaços (cenografia),
a escolha das locações e o trabalho de produção da fisionomia dos personagens
na cena cinematográfica. Neste capítulo foi elaborado um histórico do projeto de
direção de arte salientando sua importância estética e técnica para a criação da
forma dos espaços, objetos e personagens; o Capítulo IV - Solidão e isolamento –
a vivência do homem nas janelas e nas calçadas da cidade - analisa os conceitos
de solidão e isolamento do homem nos grandes centros urbanos a partir da
arquitetura – a janela e do espaço da cidade – a calçada. A questão do olhar, do
corpo no espaço e do encontro social são discutidos como elementos que
demarcam a prática e o sentido do espaço urbano para a vida do homem; e
Capítulo V – E a paixão continua ... – apresenta as considerações finais da
pesquisa.
O estudo da cidade no cinema brasileiro permite à sociedade ter acesso ao
imaginário social e urbano de forma a constituir uma prática cotidiana em
consonância à realidade cultural e psíquica do homem. O homem é o produtor e,
ao mesmo tempo, o receptor de pensamentos e sentimentos que poderão
transformar a realidade social das cidades brasileiras
24
Capítulo I
O sonho e a criação da cidade no cinema
Todos aqueles que amam a sua arte
buscam a essência profunda da sua própria técnica. Dziga Vertov
25
1.1. Cenas urbanas, cenas do cinema
O movimento do corpo do homem no âmbito do espaço urbano compõe
uma seqüência de imagens que permite construir uma narrativa identificadora de
uma cultura em um determinado momento histórico. O desenvolvimento da
seqüência de imagens forma um quadro representativo da intenção e das
possibilidades humanas em seu espaço. A relação do homem com o espaço
urbano constitui um sistema de signos que representa uma diversidade de formas
de pensar, sentir e agir. A dinâmica desse movimento cria um desenho que traz
vida às linhas que definem a forma da cidade. A arte cinematográfica captura o
espírito das imagens que pulsa em um momento de apropriação do espaço.
O cinema, enquanto linguagem que se reporta ao real, apresenta uma
elaboração estética dos elementos (signos) que caracterizam a cultura da vida na
cidade. As cenas urbanas são o material primordial de experimentação das
possibilidades técnicas e estéticas que o cinema materializa para o aprimoramento
do ponto de vista do espectador diante das cenas do cotidiano. A cidade é o lugar
da sistematização do recorte do espaço e do movimento incessante dos objetos
que imprimem ritmo ao percurso do olhar. O olhar do homem é redimensionado a
partir do olhar investigativo da câmera em relação ao objeto urbano.
Os signos podem oferecer um conjunto de significados para uma análise
sistemática da cidade. A questão fundamental é apreender a natureza
essencialmente significante do espaço, promovendo uma semântica urbana na
intenção de se procurar a imagem da cidade em seus usuários. A busca de uma
legibilidade significa reencontrar no espaço urbano o que o semiólogo francês
Roland Barthes (1915-1980) em sua obra A Aventura Semiológica (1987)
denomina de “unidades descontínuas” que são os caminhos, fechamentos,
bairros, pontos de referência, a realidade física e cultural construída pelo homem.
Esta prática possui um enunciado a ser apreendido pelo leitor da cidade o qual o
26
semiólogo considera como uma “fonte de erotismo”, um ensinamento a ser
adquirido a partir da natureza metafórica do discurso urbano.
O caráter erótico de uma prática aparece através da interação afetiva entre
o sujeito e a cultura do espaço, um processo de apropriação da forma e do
conteúdo da experiência humana na cidade. Erotismo, enquanto uma força de
natureza da ordem de um lirismo amoroso, promove um movimento que cria um
laço, uma comunicação afetiva entre o sujeito e o lugar de produção da vida. O
espaço e os objetos que formam o universo da realidade urbana se tornam
elementos eróticos quando ocorre uma nomeação afetiva e cultural por parte do
grupo social. O envolvimento produzido ultrapassa o mero sentido funcional do
espaço e atinge o lugar da produção simbólica, o que constitui a representação
genuína do imaginário social.
A praça na história de uma cidade aparece como lugar do exercício do
afeto, da prática social onde o lúdico e o contemplativo regem a dinâmica da
organização do espaço. As interações afetivas ocorridas ao longo de uma praça
imprimem ao lugar um sentido erótico, pois ela seduz os seus usuários para um
encontro marcado pela disponibilidade pelo outro e para si mesmo. Esta abertura
do espírito humano é decorrente da própria natureza (do desenho) do lugar que
propicia o movimento erótico, afetivo, em relação ao ambiente e aos atores que
praticam o lugar desse encontro.
Os elementos os quais Barthes (1987) se refere – “as unidades
descontínuas”, e que caracterizam a cultura do espaço urbano são constituídos a
partir do desenho, da escrita da cidade. Todos os objetos que desempenham uma
função no desenho da forma urbana resultam de uma “técnica de montagem”
realizada por um especialista da área de urbanismo que permite a formação de
cenas do cotidiano que irão imprimir significado à forma original. A montagem dos
objetos da cena urbana é uma técnica que promove o exercício de uma prática
erótica constituidora de uma narrativa coletiva do espaço. Os fragmentos de cenas
da cidade se constituem como planos que serão montados para atender às
funções narrativa, metafórica, rítmica ou plástica necessárias para o
27
desenvolvimento da linguagem do cinema, a poética do espaço é o insumo para a
montagem das cenas poéticas do cinema. A captação de imagens da realidade da
vida urbana é a matéria bruta para o exercício e a construção de uma estética que
tem como objetivo mostrar a representação do mundo sob um olhar subjetivo e
poético.
O espaço urbano, enquanto ambientação - cenário natural, concentrador da
vida do homem contemporâneo, visto que a grande maioria da população mundial
vive nas cidades, aparece como um grande set de filmagem, um espaço propício
para o ato cinematográfico. Os olhos humanos são lentes que detectam e
presenciam cenas preciosas da dramaturgia cotidiana, cenas poderosas que
podem elucidar, sob a ótica do cinema, as nuances e o sentido da narrativa
humana. A narrativa cinematográfica pode se inspirar na narrativa do cotidiano na
tentativa de provocar um êxtase do sujeito diante do filme e da vida. A produção
do cotidiano do homem torna-se, assim, material significante para o processo de
criação artística e para a compreensão do fenômeno urbano.
O cinema surge no momento em que o desenvolvimento das cidades
começa a se estruturar com maior visibilidade. O frenesi urbano – o ritmo e a
forma de viver nas cidades, aparece como insumo para a criação do cinema. O
movimento das imagens (cenas) urbanas está relacionado ao movimento das
imagens do cinema. A técnica do cinema reflete a necessidade da sociedade de
criar um instrumento que possa captar e mostrar imagens que simbolizem o
dinamismo típico de uma época. As cidades se apresentam como tema das
primeiras imagens captadas pela tecnologia nascente, elas aparecem como objeto
de interesse dos pioneiros do cinema, contribuindo para a afirmação de uma arte
que amplia o sentido de realidade, linguagem que propicia um diálogo entre o
mundo interno do homem e o mundo material.
A arte cinematográfica registra e divulga informações, situações e
significados que, muitas das vezes, não são apropriados pelo olhar humano em
seu cotidiano. Ela aparece como elemento de expansão do acesso e da
compreensão do mundo, de aprimoramento das acuidades visual, auditiva e
28
mental e de sensibilização do afeto humano. O teórico francês de cinema, pintura
e imagens, Jacques Aumont, em A Estética do Filme (1995), afirma que:
O cinema foi inventado para uma coisa, uma única coisa: mostrar o mundo tal qual é. A vocação é tão forte, tão irresistível, que nem os gêneros “irrealistas”, nem as cinematografias expressionistas, nem os excessos de truques puderam livrar o cinema desta vocação (gênio de Cocteau cineasta: ter compreendido que o cinema não devia produzir a magia, mas partir da magia, como de alguma coisa que fosse do mundo). (AUMONT, 1995, p. 23)
O cinema é o espelho do mundo, um quadro gerador de sentido e de desejo, uma
arte que propicia um conhecimento maior da dimensão humana e do poder
extraordinário (mágico) do cotidiano da vida. A estética do cinema reflete a
capacidade humana de transformar gestos, palavras e movimentos em momentos
mágicos que constituem material significante para a conhecimento da realidade. O
espaço das cidades é o cenário no qual o homem experimenta práticas que irão
instituir o potencial mágico de produção de novos contextos sociais. O cinema
capta e elabora imagens reveladoras de uma forma de criar sentido às
representações do homem em seu ambiente. O potencial estético e técnico que a
arte do cinema utiliza em seu processo de criação permite que a fonte de magia
inerente à vida urbana seja materializada e disseminada através da forma e do
conteúdo das imagens. O sutil, o poético do cotidiano é revelado pela composição
do enquadramento das cenas filmadas.
Podemos considerar a tela do cinematógrafo como espelho do mundo e
fazer referência ao conceito elaborado por Jacques Lacan de “estádio de espelho”
que constitui um momento de fundamentação do imaginário, segundo ele um
processo de identificação do homem com seu universo físico. Lacan discorre
sobre o conceito:
Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assum28e uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago. (LACAN, 1998, p.. 97)
29
O espelho, enquanto superfície reflexiva, traduz a realidade do homem diante da
constatação de sua imagem e da forma com que ele se apropria do corpo
representado no aparelho especular. A imagem do corpo refletido no espelho
institui um caminho no qual o corpo se apresenta como um instrumento de
apropriação do cotidiano (espaço) do universo psíquico e social do sujeito. A
consciência de sua imagem comunica ao outro as diversas possibilidades de
contato que possam construir um processo de significação da existência individual
e coletiva.
Em relação ao cinema, o conceito de “estádio de espelho” pode se
configurar a partir de um processo de identificação especular (a tela) na qual o
sujeito, através da manipulação de suas categorias mentais e sensoriais, interage
com o filme de forma a mergulhar em um universo imaginário, percorrendo uma
trajetória de busca de significante e elaboração simbólica. A transformação do
espectador acontece quando há uma apropriação dos conteúdos estéticos a partir
de referenciais culturais e psicológicos próprios, e o que ele vê na tela do cinema
é a realidade de uma narrativa imaginária e não a imagem do seu corpo. Esta é
uma diferença importante quando se aplica o conceito lacaniano no âmbito do
dispositivo cinematográfico.
Por outro lado, temos duas características comuns apresentadas por Lacan
(1998): a “submotricidade” – a redução da atividade motora e a “superpercepção”
– a predominância das funções visuais e auditivas, a suspensão da interação
(movimentação) do corpo no espaço é compensada pela concentração nos
sentidos do ver-olhar-ouvir. Estes sentidos aparecem como elementos
predominantes que estabelecem o contato entre a estética cinematográfica e o
espectador.
A estruturação do significante do cinema pode ser elaborada a partir do
conceito lacaniano de “pulsão perceptora”, o qual fundamenta as categorias
desenvolvidas por Christian Metz (1983) de “pulsão escópica” (visual) e de “pulsão
invocante” (auditiva). O desejo do espectador é estimulado a partir dos recursos
da fotografia e da fonografia que apresentam o material para a elaboração do
30
significante em sua produção natural de símbolos representativos de uma
determinada proposição estética e técnica. Ele passa por um processo de
direcionamento dos sentidos visual e auditivo para se apropriar da narrativa
simbolizada na tela do cinema; temos uma superpercepção que radicaliza o
momento interior do espectador e institui o momento mágico da arte e da vida.
Segundo Metz, cujo trabalho trata de uma semiologia do cinema que utiliza
os procedimentos da lingüística e da psicanálise, a “pulsão de olhar” e a “pulsão
auditiva” se constituem no âmbito da mise-en-scène do espaço, da experiência
dramática e sensorial do lugar da cena. O teórico elucida esta correlação:
(...) Já no caso das outras pulsões, como na pulsão de olhar ou nas pulsões auditivas, tem-se uma mise-en-scène espacial. Nas artes, na pintura, no teatro – em todas as artes ligadas aos sentidos da distância (visão e audição) – observa-se essa lacuna espacial, essa mise-en-scène da distância. O ato de olhar implica precisamente uma distância. Se nos achamos demasiados próximos de um objeto, não o vemos mais. O ato de ouvir implica precisamente uma distância. Assim, acho que todas as pulsões fundamentam-se nessa relação perdida com o objeto. Em certas pulsões, há uma mise-en-scène espacial concreta desse liame perdido. Em outras pulsões, naquelas relacionadas com os sentidos do contato, pode-se chegar mais facilmente à ilusão ou à impressão de uma relação diversa com o objeto. (METZ, 1983, p.430)
O espaço criado pela narrativa imaginária do cinema é vivenciado pela
imobilização motora e pela mobilização intensa dos sentidos da visão e da
audição. A busca da forma e do sentido do objeto na tela é incrementada pelo
aguçamento desses sentidos que acompanham o desenvolvimento da construção
da narrativa. O espaço da experiência fílmica é o espaço do exercício do
olhar, ouvir e perceber o significado transcendente das imagens em
movimento. Os recursos técnicos do cinema levam o espectador a experimentar
o percurso de uma cena, o movimento dos personagens em sua relação com o
espaço e os objetos. A qualidade do sentido do olhar, ouvir e interagir é invocada
a partir da mise-en-scène que caracteriza a narrativa de uma história. A técnica
cinematográfica amplia o canal de comunicação entre o conteúdo perceptivo da
cena (olhar e ouvir) vivenciado pelos personagens, lugares e objetos e a recepção
do conteúdo dramático pelo espectador.
31
A cidade é o universo no qual o homem vivencia uma profusão de imagens,
sons e percepções que dinamizam sua capacidade de dar sentido e transformar a
realidade. O cenário que contextualiza o modo de vida do homem urbano é
marcado por referenciais físicos, sociais e culturais que anunciam as diversas
possibilidades de poder construir cenas imaginárias no cinema. O antropólogo
Jean-Paul Colleyn apresenta algumas questões sobre o interesse dos cineastas
pela cidade:
O que é abordar um objeto, um espaço, uma cidade? O que é circular e o que é inventar trajetos? E por que a cidade atrai tanto os cineastas? Sem dúvida porque todos os temas essenciais ligados ao reencontro do tempo com o espaço aí se encontram condensados e o que se tem a fazer é escolher os trajetos, os itinerários, os buracos, os interiores, os exteriores. (COLLEYN, 1997, p. 206)
As marcas do tempo e as configurações do espaço se apresentam como
elementos de um processo de representação da realidade. O cinema reproduz a
cidade sob novos ângulos e pontos de vista oferecendo ao espectador material
para o redimensionamento do olhar e a respectiva transformação da forma de
intervir no mundo. Os trajetos, os itinerários, os buracos, os interiores, os
exteriores, ou seja, as “unidades descontínuas” que nos fala Barthes (1987) são
signos do espaço urbano a serem apreendidos pelo sujeito. Esses elementos
quando enquadrados na tela do cinema sofrem um processo de potencialização
de seus significados constituindo, assim, uma redescoberta do espaço pelo
homem. O cinema exerce, então, a função de uma arte que mostra para ele o que
é impossível de ver e olhar no cotidiano da vida urbana.
O percurso do homem na cidade, os lugares simbólicos e o cotidiano do
povo carioca são temas de Rio, 40 Graus (1955) de Nelson Pereira dos Santos,
produção que é um marco na história do moderno cinema brasileiro. O filme é o
início da trajetória do cineasta marcada por obras – ficcionais e documentais, que
tematizam o universo social e político e a literatura brasileira. Rio, 40 Graus
(1955), Rio Zona Norte (1957), Vidas Secas (1963), Como era gostoso o meu
francês (1972), O Amuleto de Ogum (1974), Memórias do Cárcere (1984), dentre
32
outras produções, apresentam o olhar de Nelson Pereira dos Santos sobre a
cultura e a realidade da vida brasileira.
Rio, 40 Graus (1955) mostra a história de cinco vendedores de amendoim
da favela do Morro do Cabuçu na busca de sobrevivência material e social em um
domingo de forte calor. Os jovens negros percorrem os pontos turísticos da cidade
oficial: Quinta da Boa Vista, Copacabana, Maracanã, Pão de Açúcar e Corcovado
para realizar um contraponto com a cidade real dos habitantes da favela. As
diferenças sociais, étnicas e geográficas são exploradas em contraste com
personagens que representam a burguesia da grande cidade. Segundo a
pesquisadora Mariarosaria Fabris, o filme mostra o espaço da favela de forma
realista, trazendo a voz do morro em toda a sua representação cultural:
(...), a câmera de Nelson Pereira, ao acompanhar o perambular pelas ruas da então capital federal dos pequenos vendedores de amendoim, traçava um painel das várias camadas sociais do país, mostrando não só o ritual de espoliação a que as comunidades marginalizadas pela cidade burguesa estavam sujeitas, como a solidariedade intraclasse, que as ajudava a sobreviver. (FABRIS, 2005)
Os trajetos percorridos pelos vendedores de amendoim representam o mapa
oficial dos elementos simbólicos da cidade do Rio de Janeiro. Os espaços
vivenciados por eles recebem a marca da experiência humana de quem vive numa
cidade, mas está impedido de transitar junto aos outros segmentos da população.
O filme mostra a realidade dos habitantes da favela e a possibilidade de uma
integração, mesmo que esta seja conflitante. O espaço do Morro do Cabuçu
aparece como integrante de uma rede urbana de diversos espaços portadores de
um discurso social, cultural, afetivo ou econômico próprio. A inspiração do neo-
realismo italiano permite que atores não profissionais participem da produção e
tragam um relato mais documental do que uma simples montagem ficcional. Essa
espontaneidade da experiência e do discurso da população negra do morro coloca
a cultura dos excluídos frente à cultura oficial. A cidade deixa de ser um mero
cartão postal e se torna uma cidade mais humana e marcada pela diferença, pela
realidade social, cultural e econômica dos diversos segmentos da população. O
33
filme constitui uma estética que amplia o significado da função da arte enquanto
elemento de investigação do mundo.
O quadro da imagem cinematográfica institui um olhar investigativo sobre a
representação estética do mundo. O recorte de uma cena representa a forma com
que o diretor ilustra seu ponto de vista em relação às especificidades estéticas e
técnicas da narrativa do filme. Aumont diz que a técnica do enquadramento
estabelece o campo do imaginário,
(...) institui uma relação entre a posição da câmera e a do objeto; o enquadramento cria uma superfície de contato imaginário entre as duas zonas: a do filmado e a do que filma. (...) O quadro é, antes de tudo, limite de um campo, no sentido pleno que o cinema nascente não tardaria em conferir à palavra. O quadro centraliza a representação, focaliza-a sobre um bloco de espaço-tempo onde se concentra o imaginário, ele é a reserva desse imaginário. (AUMONT, 2004, p. 39)
O objeto (a cidade) é deslocado do mundo real para o mundo imaginário do
cinema a partir da intervenção da técnica – os recursos da câmera, que
transcende sua função original de mera estrutura material para se tornar veículo
da arte. O quadro captura o imaginário apresentando um momento revelador do
sentido da história, identificado a partir de um recorte espacial e temporal, que
conduzirá o olhar do espectador em direção a um percurso no qual ele vai
adquirindo conhecimento do universo imaginário que está sendo criado.
O homem diante da tela de cinema se apropria através de seus sentidos de
um determinado “lugar” da cena. Este ato de apropriação transforma o “lugar” em
“espaço”, o qual é constituído a partir de uma experiência sensorial, mental e
afetiva que produz sentido à forma e à função do “lugar” da narrativa. O
procedimento teórico da “prática do lugar” elaborado por Michel de Certeau (1994)
apresenta uma forma de se elaborar a nomeação pelo sujeito (espectador) dos
elementos funcionais e simbólicos da vida urbana. A cidade simbolizada no
cinema é proveniente do ponto de vista do diretor que oferece ao espectador uma
imagem-símbolo de uma cidade a ser vivenciada. A forma narrativa apresentará
os elementos técnicos e estéticos que irão fornecer subsídios para a crença ou
34
não em uma cidade imaginária. A criação de mitos e símbolos resultante da
vivência do “lugar” promove a estruturação de uma narrativa que justifica a
presença de um determinado sujeito e objeto no contexto urbano. O “espaço”
nomeado pelo espectador é o “espaço” resultante de uma crença em uma imagem
que toca os sentidos e o afeto de quem se dispõe a olhar e vivenciar o “lugar” da
narrativa.
O filósofo Walter Benjamin (1892-1940) ao longo de sua vasta obra
relaciona a experiência de passear pelas ruas à experiência de ver um filme. O ato
de flanar na cidade sugere uma interação afetiva (erótica) com o ambiente a partir
do movimento do corpo e do direcionamento do olhar. Esta experiência constrói
uma narrativa indentificadora de um momento histórico, de uma cultura produzida
pelo grupo social. O sujeito ao ver um filme vive uma experiência - uma “aquisição
cognitiva”, resultante de uma forma sensorial e afetiva de flanar através de uma
narrativa cinematográfica. Ele sonha de olhos abertos e vê uma cena imaginária
de uma história que ele poderá viver.
As duas experiências permitem o mergulho do homem em um universo
narrativo (imaginário) sob a supremacia de um olhar extasiado diante das imagens
(cenas) em movimento. Andar pela cidade pode significar a possibilidade de
criação de uma história a ser narrada através do cinema. O homem articula o
movimento do corpo e a produção de pensamento ao se deparar com o cenário
urbano instituindo, assim, um momento de percepção do real significado da vida
na cidade. O cinema captura o trajeto da experiência humana no que se refere à
articulação com o espaço e o tempo da narrativa urbana.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro a partir do movimento da câmera
do cinema é o que nos proporciona o documentário Cidade do Rio de Janeiro
(1948) de Humberto Mauro que traça um panorama das diversas paisagens que
integram o espaço urbano carioca. O percurso pela geografia da cidade é um
momento de celebração da memória no que ela pode contribuir para o exercício
do afeto do homem pela sua cidade, uma celebração no sentido erótico da
paisagem do lugar. O ponto de vista da câmera é mostrar a cidade em seus
35
diversos quadros de paisagem que elucidam a forma e a função dos espaços. A
narrativa do documentário procura seduzir o espectador para o exercício de
promoção da memória urbana e a respectiva apropriação do espaço pelo homem
no cotidiano da capital do país. Assistir ao filme Cidade do Rio de Janeiro é poder
passear pelas ruas e pelos lugares representativos de uma cidade que é exibida
pela história de sua paisagem, costumes e personagens que constituem a
identidade brasileira.
1.2. O sonho e a tėcnica no cinema
A experiência de ver um filme está relacionada ao espaço no qual o homem
passa por uma vivência onde o seu desejo é ativado e regulado pela natureza
metapsicológica do cinema. A arte cinematográfica produz uma simulação técnica
do sonho em um espaço concebido para que o “sujeito desejante” – aquele que se
apropria do objeto fílmico, vivencie a representação do mundo e seja estimulado
por fortes efeitos subjetivos. O espectador é o agente receptor de um acervo
imagético que será transformado em material significante a partir da elaboração de
cenas imaginárias. O imaginário do filme conduz o olhar do observador por um
percurso de assimilação do conteúdo narrativo em sua expressão plástica.
O êxtase vivido pelo espectador aparece como uma experiência onírica na
qual fantasias e emoções são ordenadas pela estrutura da linguagem do cinema.
O sonho produzido durante o filme acontece em um espaço da técnica, um lugar
praticado pelo homem através dos sentidos. O pensador e analista Félix Guattari
(1930-1992) em Caosmose – um novo paradigma estético (1992) comenta sobre a
relação entre o corpo e o espaço:
A abordagem fenomenológica do espaço e do corpo vivido mostra-nos seu caráter de inseparabilidade. Por exemplo, no sono e no sonho, o corpo fantasmado coincide com as diferentes modalidades de semiotização espacial que ponho em funcionamento. A dobra do corpo sobre si mesmo é acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários. (...) No cinema, o corpo se
36
encontra radicalmente absorvido pelo espaço fílmico, no seio de uma relação quase hipnótica. (GUATTARI, 1992, p. 153)
O momento do sonho no cinema surge com o afastamento do espectador de sua
realidade e a respectiva inserção em uma narrativa estética da ordem do
imaginário. O corpo do homem é tomado pelo universo do filme que engendra,
através das diversas técnicas que caracterizam a linguagem cinematográfica, um
processo de ressiginificação das categorias de espaço e de tempo. A técnica do
cinema conduz o olhar do homem para uma vivência de um estado onírico no qual
o contato com o imaginário aparece como um elemento que o qualifica para a
produção de novas realidades. A experiência fílmica proporciona um
enriquecimento da vida psíquica e social do homem em seus embates cotidianos
na busca de significação de seus sonhos.
Os psicanalistas Chaim Samuel Katz e Jurandir Freira Costa em recente
entrevista Sem Mistério nem Sacrifício (2005) levantaram a questão de que o
sonho produzido pelo homem contemporâneo está perdendo presença na clínica
psicanalítica e na vida, os sonhos já não são rememorados, invocados como em
outros momentos históricos. A forma narrativa de elaborar o material onírico pelo
sujeito não tem mais o mesmo significado de antes, o sonho se tornou um fato
comum, um elemento que não causa mais o mesmo espanto, os relatos
diminuíram e o impacto resultante proporciona pouca surpresa e inexpressivo
incômodo para o homem. Katz afirma:
Eu diria que os adultos se surpreendem menos. Curiosamente, também, as crianças, por causa das novas linguagens às quais elas estão sujeitadas, a televisão, o computador, a internet. Aí a criança aprende a sua vivência, o seu inconsciente. Com isso o sonho não é mais surpresa, ele entra permanentemente por meio de outras modalidades. (KATZ , 2005)
Percebemos que a linguagem audiovisual proveniente da televisão, vídeo,
computador – internet, cartazes informativos, terminais eletrônicos e painéis de
alta definição passou a exercer um papel preponderante no tocante à produção de
imagens a serem apropriadas pelo homem. O movimento interno de geração de
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imagens oníricas é influenciado pelo fluxo externo de imagens do cotidiano
tecnológico. O sentido de elaboração e individuação próprio à função do sonho na
vida do homem não encontra uma contrapartida nas imagens eletrônicas, elas
oferecem uma forma pradonizada (coletiva) de recepção de conteúdos. Essas
invenções da indústria da informação demarcam uma linguagem caracterizada
pela velocidade, por um ritmo frenético de estímulos visuais e sensoriais que
entorpecem o olhar. Por outro lado, a linguagem cinematográfica possibilita um
processo de significação de conteúdos estéticos para o desenvolvimento do
universo psíquico e social do homem, a técnica do cinema consegue criar uma
atmosfera de produção imaginária que traz sentido ao percurso de individuação. O
surgimento do cinema trouxe uma revolução na forma de olhar e de pensar o
mundo.
Em 1895, a partir da invenção do cinema, a modernidade toma novos
rumos na sociedade francesa trazendo um sentido transformador da realidade
cultural e social. A imagem precursora do cinema A chegada de um trem a Ciotat
(L’ Arrivée d’ un train à La Ciotat, 1895) produzida pelo cineasta, desenhista e
fotógrafo Louis Lumière (1864-1948) provoca no público espanto diante das
possibilidades de percepção das figuras humanas e dos objetos filmados. Lumière
é considerado por Aumont o inventor do cinema:
(...) porque ele é aquele que mais se aproxima da conjunção ideal dos três momentos maiores dessa invenção: imaginar uma técnica, conceber o dispositivo no qual ela será eficaz e perceber o objetivo em vista do qual essa eficácia se exerce. (AUMONT, 2004, p. 30)
A transformação revolucionária do olhar do artista (diretor) e do espectador
aparece como decorrência do caráter transcendente da técnica do cinema. O
aparato tecnológico da arte cinematográfica é apenas a base para a conquista de
uma outra técnica, a técnica do exercício do olhar, uma experiência que
transcende o real em direção ao campo do imaginário. O homem passa a
vivenciar sonhos engendrados por uma tecnologia que cria imagens
representativas do mundo. A natureza psíquica já não tem mais a supremacia na
38
produção de sonhos; o cinema aparece como uma nova forma de se produzir
estados oníricos.
O filme A chegada de um trem a Ciotat (L’ Arrivée d’ un train à La Ciotat,
1895) de Lumière mostra a chegada de um trem vindo de Marselha e a espera dos
passageiros na estação de Ciotat. A forma com que os elementos são
enquadrados sugere uma precipitação do trem no espaço da sala de exibição. O
pavor causado nos espectadores decorre da dinâmica de uma perspectiva cujo
sentido é invertido, uma técnica que transmite a idéia de precipitação do trem para
fora do quadro (campo), um movimento que constitui o “transbordamento da
imagem”, ou seja, o trem e os passageiros interagem (atravessam) os limites do
quadro. Toda esta configuração estética demarca o uso do “fora de campo” como
um elemento técnico que traz para a narrativa do filme o sentido e a função do
universo do imaginário. O espaço da cena cinematográfica aparece como uma
nova forma de se poder interagir e perceber o espaço do cotidiano da vida do
espectador.
O cinema retrata o espírito de uma época mostrando não só suas
possibilidades estéticas e técnicas, mas também o surgimento de inovações que
trouxeram novas possibilidades de experiências sociais. A estrada de ferro é um
elemento precursor nas imagens em movimento, um dos componentes que
demarca a modernidade no final do século XIX. O telégrafo, o telefone, a estrada
de ferro, o automóvel, a fotografia e o cinema são inovações emblemáticas desse
momento que provocam um redimensionamento do universo social, econômico e
cultural do homem. Um jornalista da época comenta sobre a nova tecnologia do
cinema que aparece como um instrumento de reprodução da vida:
Quando esses aparelhos forem entregues ao público, quando todos puderem fotografar os seres que lhe são caros, não mais em sua forma imóvel, mas em seu movimento, em sua ação, em seus gestos familiares, com a palavra nos lábios, a morte deixará de ser absoluta. (jornalista anônimo apud TOULET, 1998, p. 17)
39
A descoberta do cinema estimula o desejo de se poder conhecer e dominar as
forças da natureza. A influência das imagens em movimento na psicologia humana
amplia o conhecimento de si próprio, do outro e proporciona um
redimensionamento da realidade social. Olhar as imagens na tela significa encher
os olhos de esperança diante dos embates entre a vida e a morte percorrendo,
assim, a dimensão do infinito da existência. A vivência do espectador percorre um
trajeto que vai ao encontro do espírito de Eros – momentos afetivos e
harmoniosos, e do espírito de Tanatos – momentos de combate e de provação,
proporcionando o refinamento da capacidade de pensar e de sentir o mundo. O
espectador experimenta energias opostas e complementares do universo da
experiência humana que proporciona o fortalecimento do sentido de identidade da
vida em sociedade e a delimitação de um ponto de vista refinado engendrando
formas de conhecimento e domínio das forças da natureza. A arte do cinema
produz uma experiência estética e imaginária que estimula o espírito do homem a
ampliar a qualidade do contato com o mundo.
O espanto inicial dos franceses ao receber as imagens de sua própria
realidade significou uma mudança de paradigma psicológico e ótico. Até então, a
fotografia, criada em 1839, apesar de ser o primeiro meio de reprodução
verdadeiramente revolucionário, não proporcionou o sentimento de estranheza e
atração que o cinema trouxe para o público. O movimento dos corpos humanos e
dos objetos na tela era uma imagem refletida do próprio cotidiano da vida dos
espectadores, o olhar do homem sofreu um processo de ressignificação do
sentido e da forma de perceber a realidade. A fotografia aparecia como uma
imagem estática - segundo André Bazin (1983), ela concentrava um tempo
“embalsamado”, e o cinema como uma imagem dinâmica (animada) – detentora
de um tempo que alimentava o desenvolvimento da história a ser narrada. Ambas
as linguagens elaboram um diálogo com o instante explorando a forma com que
ele é capturado. O instante único da fotografia que promove a eternidade de uma
amostra de uma história de vida; e o instante do cinema que está em constante
processo de significação de sentido. A imagem do cinema apresenta uma
40
diversidade de pontos de vista, ela amplia a posição fixa do olhar do espectador
promovendo uma vivência do universo imaginário do filme.
A construção de sentido da estética cinematográfica se dá a partir tanto do
ponto de vista do criador da obra quanto do espectador. O universo imagético
constituído no quadro representativo da cena cinematográfica é o material que o
diretor concebe para o exercício do olhar de quem interage com um fluxo de
imagens reveladoras de pensamento e emoção. A natureza da linguagem do
cinema influi no processo de consciência humana como comenta o neurologista
americano Oliver Sacks no artigo A Torrente da Consciência (2004), considerado
um dos maiores escritores clínicos do século XX:
Um filme, com seu fluxo constante de imagens tematicamente integradas, sua narrativa visual integrada segundo os pontos de vista e os valores do diretor, não é uma má metáfora para designar o próprio fluxo de consciência. (...) Apreendemos o movimento, assim como apreendemos a cor ou a profundidade, como uma experiência qualitativa única que é vital para nossa consciência visual. (SACKS, 2004)
A consciência visual que o cinema proporciona ao espectador está diretamente
relacionada à consciência do indivíduo frente a sua realidade. Os estímulos
estéticos e técnicos são elementos que alimentam o processo de desenvolvimento
da consciência e redimensionam o olhar em relação à forma e ao conteúdo da
experiência humana. A composição plástica do filme é o lugar no qual ocorre o
exercício do refinamento da percepção visual de quem elabora o significado da
obra. A experiência do espectador imerso em um espaço da técnica – formado
pelo projetor, pela ambientação da sala de exibição e pela tela, demarca um clima
de transcendência que constitui um momento de elaboração do estado interior do
observador das imagens em movimento. O ato de olhar as cenas (imagens) de um
filme é o canal de constituição do processo de criação e recepção da obra
cinematográfica.
A modernidade marca o tempo da reprodutibilidade técnica que promove a
emancipação da imagem em um percurso de ativação dos padrões inconscientes
da forma de olhar e captar a realidade. O significado da questão ótica passa tanto
41
pela câmera quanto pelo olho humano. Benjamin (1992) associa a câmera ao
inconsciente ótico e o olho ao inconsciente relativo às pulsões – o universo da
psicanálise. A câmera é um instrumento científico, um “olho” que capta de maneira
objetiva imagens do mundo. Os recursos estilísticos e formais que ela detém
podem ser considerados como um potencial subjetivo que redimensiona o caráter
objetivo de formação da imagem. O olho do espectador é o canal de recepção do
material imagético que processa uma elaboração dos conteúdos recebidos a partir
dos sentidos visual e auditivo, dos pensamentos e das emoções. O sujeito da
experiência cinematográfica passa por momentos de intenso dinamismo de sua
atividade psíquica que o leva a uma interpretação particular das cenas narradas.
O aparato da técnica é a base para que se possa superar o sentido estritamente
objetivo do real e caminhar em direção ao universo do imaginário. Desta forma,
percebemos que o filme é o resultado do ponto de vista da câmera e do
espectador que criam um discurso constitutivo da linguagem cinematográfica. Não
podemos deixar de lembrar do ponto de vista ideológico de quem manipula a
câmera. Apesar dela ser um instrumento científico – um “olho mecânico”, o
processo de captação e tratamento das imagens é conduzido pelo diretor que
imprime um pensamento, uma visão de mundo.
O cineasta soviético Dziga Vertov (1896-1954) em Resolução do Conselho
dos três (1983) denomina a câmera como um “super-olho”, um instrumento que
concentra qualidades tecnológicas próprias intermediadas pelas qualidades
fisiológicas do homem (cérebro). O operador da câmera e o diretor são os
responsáveis pela sistematização das capacidades tecnológicas e fisiológicas.
Vertov considera a imagem cinematográfica um elemento de compreensão e de
análise da realidade (cinema-verdade) mostrada e elaborada a partir da câmera.
Esta tecnologia revolucionária – “o super-olho”, sistematizada em sua teoria,
aparece como um instrumento necessário para se ampliar o sentido e a projeção
da história da humanidade. O registro de imagens através do cinema permite que
a construção da história possa ter seu percurso subsidiado por relatos
audiovisuais que sejam testemunhos de um momento histórico.
42
Vertov foi considerado um designer da imagem e do som por acreditar na
arte do cinema enquanto técnica que organizava os movimentos entre as imagens
- a tese dos intervalos, e detentora de uma série de recursos artísticos rítmicos
pertinentes à forma e à função de cada objeto. O som aparece como um elemento
que complementa o sentido da realidade no tocante ao que “o olho não vê”. O
cinema-verdade difundido por ele traz sua experiência realizada no Laboratório do
Ouvido no qual pesquisava o som dos lugares, desde a fala humana até os ruídos
das ruas e das fábricas. O importante é a qualidade de percepção da realidade e o
papel da câmera neste processo, o cineasta discorre sobre sua teoria:
O principal, o essencial é a cine-sensação do mundo. Assim, como ponto de partida, defendemos a utilização da câmera como cine-olho, muito mais aperfeiçoada do que o olho humano, para explorar o caos dos fenômenos visuais que preenchem o espaço, o cine-olho vive e se move no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que colhe e fixa impressões de modo totalmente diverso daquele do olho humano. A posição de nosso corpo durante a observação, a quantidade de aspectos que percebemos neste ou naquele fenômeno visual nada tem de coercitivo para a câmera, que percebe mais e melhor na medida em que é aperfeiçoada. (VERTOV, 1983, p. 253)
A câmera é um aparelho – um “olho mecânico”, que surge para ampliar o que olho
humano não consegue captar e elaborar. Ela revoluciona o olhar do sujeito frente
à realidade preenchendo as lacunas – os vazios de sentido, da existência
humana. A teoria do cine-olho é um procedimento teórico não só de percepção
visual, mas também de percepção auditiva, no tocante ao registro dos elementos
sonoros que compõem e estimulam o olhar do espectador na busca de
compreensão do mundo.
Em 1916, o psicólogo alemão Hugo Münsterberg (1863-1916) elaborou a
primeira obra de teoria sistemática de cinema denominada “The Photoplay: a
Psychological study”. Münsterberg (1983) considera o processo cinemático como
um processo mental, ou seja, o cinema é a arte da mente. O filme é um objeto
mental elaborado a partir de uma “atenção extasiada” vivida pelo espectador que
desempenha um papel fundamental no tocante à organização das imagens,
imprimindo no universo do objeto fílmico um ponto de vista intelectual e emocional.
43
A consciência do espectador diante do filme cria um momento propício para o
surgimento de uma subjetividade que dará sentido às imagens projetadas no uso
das faculdades mentais que aparecem como instrumento de produção de
significado da forma e do conteúdo do material imagético. O autor considera que o
cinema dá a oportunidade ao espectador de vivenciar momentos nos quais a
atenção, a memória, a imaginação e a emoção são ativadas a partir do olhar sobre
o filme. O universo interior do homem é um campo de projeção de sentido em
relação aos elementos que constituem a narrativa cinematográfica. Münsterberg
comenta:
(…), o cinema pode agir de forma análoga à imaginação: ele possui a mobilidade das idéias, que não estão subordinadas às exigências concretas dos acontecimentos externos, mas às leis psicológicas da associação de idéias. Dentro da mente, o passado e o futuro se entrelaçam com o presente. O cinema, ao invés de obedecer às leis do mundo exterior, obedece às da mente. (MÜNSTERBERG, 1983, p. 38)
A experiência do espectador institui um momento de dinamização da capacidade
mental a partir da fruição do objeto, a qual caracteriza uma prática - uma aquisição
de conhecimento diferenciada, pois ela está submetida a um olhar e a uma
experiência de um determinado sujeito, mas única no que se refere ao resultado
da produção artística concebida pelo diretor.
Os conceitos de Sacks (2004) e Münsterberg (1983) apresentam uma
analogia entre a natureza das imagens em movimento (cinema) e a produção do
fluxo de pensamento humano. O cinema não é apenas uma expressão estética da
realidade, mas também uma arte da consciência humana, onde as imagens
cinematográficas são constituídas a partir de uma contrapartida fisiológica do
homem. O sujeito interage com o objeto fílmico e reconstrói sob o seu ponto de
vista o acervo imagético em material significante que representará uma leitura
particular da obra. Os valores estéticos e psíquicos reelaborados pelo espectador
é resultado de uma experiência particular que contribuirá para a repercussão da
história do filme no que se refere ao desenvolvimento cultural da sociedade.
44
O cinema permite ao homem se tornar mais humano, mais vivo e atuante
diante da realidade. A força das imagens reside na correspondência entre o
imaginário social e o imaginário do homem que juntos constituíram um olhar
ampliado sobre a estética e o significado das imagens. Estas aparecem como uma
necessidade de se poder materializar todo um universo não estruturado no campo
simbólico e que significa promover uma vitalização de uma expressão humana
ainda não constituída em sua totalidade. Os símbolos constituídos no filme
aparecem como elementos de materialização de conteúdos culturais, sociais e
psicológicos tendo a função de comunicar e representar um discurso estético e
social. O filme é uma linguagem que simboliza um determinado discurso da
coletividade, um veículo de acesso ao imaginário de uma nação como afirma o
sociólogo, teórico e crítico de cinema alemão Siegfried Kracauer (1889-1996):
E, em geral, veremos que só se pode compreender totalmente a técnica, o conteúdo da história e a evolução dos filmes de uma nação relacionando-os com o padrão psicológico vigente nesta nação. Os filmes de uma nação refletem a mentalidade desta, de uma maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico, por duas razões: primeiro, os filmes nunca são produto de um indivíduo. (...) Em segundo lugar, os filmes são destinados, e interessam, às multidões anônimas. Filmes populares ou, para sermos mais precisos, temas de filmes populares são supostamente feitos para satisfazerem os desejos das massas. (KRACAUER, 1988, p.17)
A leitura de um filme traz a possibilidade de uma leitura do universo cultural e
psicológico de uma sociedade. A obra cinematográfica é um elemento simbólico e
representa o discurso cultural e psicológico instituído de uma organização social
em um determinado momento histórico. Ela concentra um potencial estético, social
e técnico significativo por ser um produto coletivo – resultado de uma equipe
técnica, e por ser destinada a um grande público, que justificará o investimento
econômico da produção do filme.
O ensaio fílmico São Paulo, Sinfonia e Cacofonia (1995) de Jean-Claude
Bernardet elabora, a partir de trechos de filmes de ficção e documentários do
início do século que abordam a cidade de São Paulo, um novo olhar sobre a
cidade imaginária – uma metrópole sem referências precisas de espaço e de
tempo. Segundo o diretor, o filme é uma obra da ordem da “antropologia poética”
45
que permite ao espectador realizar um diálogo sensorial. As 53 produções
filmadas em São Paulo e selecionadas para o ensaio não apresentam, na maior
parte do tempo, diálogos. A música de Lívio Tratemberg e Wilson Sokorski conduz
o espectador a uma experiência dramática através das imagens urbanas. Estas
fazem parte de clássicos do cinema brasileiro tais como: Anjos da Noite (1987) de
Wilson de Barros, Anjos do Arrabalde (1986) e Filme Demência (1986) de Carlos
Reichenbach, Cidade Oculta (1986) de Francisco Botelho, A Dama do Cine
Shangai (1987) de Guilherme de Almeida Prado, Noite Vazia (1964) de Walter
Hugo Khoury, O Bandido da Luz Vermelha (1968) de Rogério Sganzerla, São
Paulo Sociedade Anônima (1965) de Luiz Sérgio Person, dentre outros
representantes do cinema paulista. Na realidade, a produção torna possível um
processo de apropriação do conteúdo imaginário e, posteriormente, da
constituição de determinados símbolos sob o ponto de vista do agente receptor. É
uma obra que estimula o sujeito a se posicionar diante de seus sentidos e do
ambiente urbano mostrado no filme.
São Paulo, Sinfonia e Cacofonia (1995) apresenta uma leitura do drama da
vida do homem em uma grande metrópole. A relação do corpo com o espaço é
trabalhada a partir do movimento e sua dinâmica com a rua, prédios, janelas,
portas e escadas. A solidão, a angústia, o medo e o anonimato vividos pelos
personagens provocam um choque no espectador, apresentando uma radiografia
psicológica do homem urbano contemporâneo. Os personagens estão em busca
de um sentido para suas vidas, eles necessitam de uma resposta para continuar a
viver. “Tem que haver um centro!”, diz o personagem do ator Edison Celulari
procurando informação sobre a localização exata do centro da cidade de São
Paulo. As grandes cidades já não têm mais uma precisão geográfica de seus
limites, elas se expandiram de tal forma que o homem se perdeu na imensidão de
espaços que desconcertam o direcionamento do olhar. O fluxo das imagens do
filme está diretamente relacionado ao fluxo da vida urbana em seu movimento
frenético onde a cidade apresentada é objeto de um discurso estético da
representação no cinema.
46
A solidão é um fato que perpassa a vida do homem nas grandes cidades.
Os personagens dos filmes que aparecem em São Paulo, Sinfonia e Cacofonia
vivenciam a “solidão da diferença” identificada por Richard Sennett (1989), ou
seja, em alguns momentos eles “estão sós’, em outros, “sentem-se sós”, mesmo
fazendo parte de uma multidão. A natureza indiferenciada da multidão leva o
homem a refugiar-se em seu próprio mundo tornando o seu estado interior
oscilante no que se refere a sua auto-suficiência, o isolamento do indivíduo nas
cidades demarca um espaço de alienação de si próprio e do grupo social. O
estado de solidão institui uma subjetividade típica da cultura moderna que marca a
geografia das cidades por uma indiferença contagiante. Viver na cidade significa
trilhar caminhos nos quais a presença humana nem sempre demarca a
possibilidade de trocas afetivas e sociais que possam fortalecer o espírito social.
O movimento e a luz são os elementos característicos da arte do cinema. O
processo de apreensão dos corpos e objetos em movimento, sob um foco
luminoso, constituiu uma revolução cultural para a percepção humana, pois
possibilitou uma vivência até então não experimentada, a percepção real de um
determinado recorte espacial e temporal. O cinema nada mais é do que uma
máquina de construção (manipulação) do espaço e do tempo, uma arte que
produz memória articulando personagens, cenários, locações, objetos e figurinos.
O mundo interno do sujeito (espectador) é mobilizado por essa arte revolucionária
no sentido maior da dimensão psicossocial.
A memória social é instituída a partir da confecção de um filme e
redimensionada a cada visionamento realizado por parte do espectador. Desta
forma, o filme torna-se material instituinte, ou seja, em constante processo de
reapropriação estética e psicológica. Este processo permanente de busca de
significado é uma prática de invenção cotidiana do mundo e de seus símbolos
culturais. Inventar o mundo (a cidade) é poder criar o ambiente propício para que o
homem de fato possa olhar a sua volta e experimentar a vida em seu cotidiano.
Tanto o espectador quanto o criador de imagens necessitam reinventar a sua
realidade para se relacionar com o universo imaginário que apresenta múltiplas
47
formas de expressão. O ato de invenção cotidiana é uma tentativa de poder ver o
mundo de forma ampliada, particular e criativa e transformar a experiência
humana em um acontecimento da ordem do extraordinário.
1.3. A cidade no cinema: as narrativas clássicas
Imagens de corpos, casas, ruas atormentadas, anúncios luminosos,
sombras de árvores, edifícios, carros poderosos. Caminhamos através de imagens
híbridas que inundam os espaços pessoais dos habitantes da cidade. O corpo do
homem se torna um arquivo de imagens múltiplas em constante enfrentamento
que demonstra a intenção de uma configuração do simbólico, pela palavra e pela
imagem que darão significado à interação entre o corpo do homem e o corpo da
cidade. Os corpos se fundem em um espaço que se alimenta de um volume
incessante de informações.
Vivemos num tempo alienante no qual a assimilação do que está a nossa
volta, e em nós mesmos, é influenciada pela velocidade de informações e pela
natureza do sistema social que não estimula o reconhecimento e a compreensão
das forças atuantes sobre o homem. O universo urbano permanece em estado
trágico, o silêncio se personifica, pois o sujeito impossibilitado de olhar, furta-se a
toda tentativa de interpretação, inviabilizando a adequação entre o espaço pessoal
e o espaço público. A cidade é um organismo que impressiona a cada esquina e
solicita de seus habitantes que enunciem palavras e gestos reveladores.
A partir do surgimento do cinema o universo urbano passou a ser focalizado
em sua totalidade provocando no olhar do homem que vive na cidade um
redimensionamento em sua relação com o espaço. O espanto inicial na história do
cinema marca o início de uma trajetória de novas percepções de experiências
culturais no âmbito do espaço urbano. Ao longo da história do cinema foram
produzidas obras emblemáticas da vida na cidade que se tornaram símbolos da
48
cultura audiovisual e possibilitaram uma leitura da modernidade em seus aspectos
de inovação e compreensão do percurso histórico e social.
A modernidade, enquanto momento de transformação material, cultural e
social, aparece como um esforço do homem em materializar o desejo de criação
de novas formas de se viver. Segundo o sociólogo francês Henri Lefébvre (1901-
1991): “A modernidade é esta tentativa: a descoberta e a apropriação do desejo”
(LEFEBVRE, 1969, p. 223). A busca de um sentido para a realidade implica em
um movimento contínuo de descobertas que possam dar continuidade ao
processo de desenvolvimento social, o desejo do homem é o elemento que
promove essa transformação da forma de se olhar e intervir no mundo. O cinema
é a expressão maior do processo de transcendência da experiência subjetiva do
olhar e da projeção da modernidade na história das inovações culturais.
O documentário aparece como um modo de representação que se
transformou em símbolo da cultura audiovisual no tocante à vida urbana. A
linguagem do documentário apresenta uma forma própria de se poder elaborar
uma representação de temas e de personagens que se tornem elementos de uma
leitura da realidade. A leitura produzida pelos cineastas, pioneiros das produções
sobre as grandes cidades, era inspirada nos movimentos da avant-garde, um
desejo de natureza estética de interpretar o mundo. Os filmes eram realizados à
margem das grandes indústrias de cinema e tinham uma preocupação com o
universo plástico da imagem e o uso da técnica de montagem. A captação das
imagens das cidades era feita no lugar de produção do cotidiano urbano. A
locação é o espaço no qual são criadas imagens representativas da realidade de
uma metrópole.
A primeira produção cinematográfica que apresenta a cidade como
proposta estética é Apenas algumas horas (Rien que les heures, 1926) de Alberto
Cavalcanti. A obra francesa inaugura, sob o formato de “sinfonia urbana” -
combinação variada de imagens da vida na cidade, uma série de filmes sobre o
olhar do cinema em relação às grandes cidades do mundo. Esse repertório
apresenta a cidade como um “personagem coletivo”, protagonista e tema da
49
narrativa cinematográfica. Apenas algumas horas (1926) aborda a vida na cidade
de Paris dos anos 20 mostrando os pobres e suas mazelas em contraste aos
lugares turísticos e desconhecidos. A experiência do cotidiano na cidade de Paris
é mostrada através do encontro entre pessoas, da relação do corpo do homem
com o espaço, da transformação da matéria orgânica, da alegria e da tristeza do
ato de se viver em uma metrópole. O filme conduz o olhar do espectador por uma
experiência subjetiva do significado da imagem para a apreensão da realidade
urbana.
O cineasta e arquiteto brasileiro Alberto Cavalcanti (1897-1982) teve um
papel importante na avant-garde francesa ao lado de Marcel L’Herbier, Jean
Renoir e Louis Delluc. Ele realizou seu primeiro trabalho no cinema como
cenógrafo no filme A desumana (L’Inhumaine, 1923), de L’Herbier. Os projetos
cenográficos desenvolvidos por ele tiveram uma marca de originalidade com a
introdução da cor com o objetivo de facilitar o trabalho dos iluminadores e de dar
um tom favorável ao desempenho dos atores. Os primeiros filmes de Cavalcanti –
Le train sans yeux (1925), Rien que les Heures (1926), Yvette (1927), ... -
apresentavam temas e momentos específicos da vanguarda, sob uma linguagem
tipicamente experimental. O diretor brasileiro era um “surrealista cinematográfico”,
apesar do seu olhar “realista”, e declarou em uma entrevista:
Mas a vanguarda não tinha nada de escola, como se chegou a acreditar com o tempo, não mais do que o estilo pré-concebido que cultivava: ela representava a expressão de um grupo de pessoas que se opunha ao cinema romanesco, ao cinema teatral. Tínhamos o desejo e a intenção de criar uma linguagem puramente cinematográfica. Desse ponto de vista, a vanguarda estava à procura de uma forma própria no cinema, de um meio de expressão específico às imagens. (PELLIZZARI, 1995, p. 279)
A criação das imagens se dava no campo restrito do cinema, não incorporando
referências da linguagem da literatura e do teatro. A arte do cinema era concebida
como um campo próprio de expressão artística e reveladora de uma forma e de
um conteúdo que recriavam o mundo. Apesar de ser uma arte onívora – que
incorpora outras linguagens artísticas, o cinema apresenta uma peculiaridade
50
estética no tocante à poética do espaço e do tempo, a captação das imagens em
movimento, do real, institui uma forma de resgate da vida sob a ótica de uma
câmera que enquadra um momento narrativo.
Apenas algumas horas (1926) é uma obra impressionista no sentido da
forma – contraste do preto-e-branco, imagens da ordem do surrealismo onírico e
experimentalismo estético, e do conteúdo – personagens populares e excluídos da
sociedade e cenas marcadas por conteúdos afetivos, sociais e psicológicos. Em
entrevista Cavalcanti comenta: “Rien que les heures foi o primeiro filme a dar uma
perspectiva sociológica ao documentário” (PELLIZZARI, 1995, p. 290). A produção
promoveu o ingresso do cineasta ao grupo seleto da intelligentsia cinematográfica
da década de 20, momento marcante de experimentalismo estético e teórico. O
filme antecede em “invenção” uma das mais importantes obras do gênero Berlim,
sinfonia da metrópole (Berlin, die sinfonie der grobstadt, 1927) de Walter Ruttman.
A opção por um olhar voltado para o popular e os excluídos é evidenciada
nos primeiros instantes do filme, quando vemos uma cena da sociedade elegante
parisiense e logo após uma fotografia dessa mesma cena sendo rasgada,
destruída. A partir deste instante, a câmera percorre ruas que, na maioria das
vezes, aparecem em perspectiva acentuada, e mostram os monumentos e os
personagens da cidade em cenas de trabalho, amor, angústia, lazer e desamparo.
Em determinado momento do filme um dos letreiros apresenta a seguinte
afirmação: “Todas as cidades serão semelhantes se seus monumentos não as
distinguirem”. O valor simbólico dos monumentos constitui a marca identitária e a
imagem representativa de uma cidade, é uma obra sobre o tempo, o tempo de
uma grande cidade - uma “cidade-mundo”, segundo o registro das imagens. O
filme aborda o olhar sobre a realidade da vida das pessoas que vivem na cidade e
pela cidade, personagens do cotidiano que são protagonistas de uma abordagem
onírica de ver o mundo.
Berlim, sinfonia da metrópole (1927) apresenta cenas da vida na cidade de
Berlim ao longo de um dia no final da primavera. É uma obra cinematográfica que
pertence à escola dos filmes de montagem – corte transversal, e é um marco do
51
cinema documental de vanguarda. O diretor alemão Walther Ruttman (1887-1941)
iniciou sua carreira na pintura e passou a realizar filmes abstratos constituídos de
formas geométricas em movimento. Os estudos de arquitetura o influenciaram na
concepção dessa obra marcante que integra a série de filmes que tem como tema
a cidade. A produção de Ruttman teve influência das teorias sobre montagem de
Serguei Eisenstein e, principalmente, de Dziga Vertov. A teoria do cine-olho de
Vertov o inspirou na realização de filmes a partir de fragmentos da “realidade
objetiva”, sem a participação de atores e enredo.
O filme constituído de cinco atos traz a cidade como um organismo vivo que
vai manifestando ações e impressões com relação à passagem do tempo. A cena
inicial do movimento do trem em direção a Berlim demarca o papel da técnica, da
modernidade em um momento histórico de grande efervescência cultural. A
velocidade do trem é o sinal de que a cidade acorda e mostra sua fisionomia –
vistas da cidade aparecem para exibir a imagem do objeto a ser observado. Os
trabalhadores percorrem as artérias (ruas) do espaço urbano demonstrando o
papel da força de trabalho na criação da atmosfera social de uma cidade moderna,
eles se movimentam em direção às fábricas. As lojas de rua abrem suas vitrines,
os manequins e os objetos de consumo aparecem para pontuar a encenação da
vida urbana. A vida do espaço público toma força ao mesmo tempo em que as
cenas domésticas dinamizam o interior das casas preparando a saída das
crianças para a escola. O sentido de liberdade, irreverência e dramatização do
espaço público aparece através de protestos políticos e cortejos, a massa toma as
ruas e passa por um extravazamento de suas emoções coletivas. Os meios de
transporte – o automóvel, o trem e o bonde promovem a circulação de pessoas
que irão vivenciar as mais diversas experiências em pontos distantes de uma
prática doméstica e segura, o caos urbano se configura. A possibilidade de
apreender outras realidades – fatos e lugares se dão também com a circulação
dos jornais que ampliam o conhecimento do universo social, uma mulher com uma
fisionomia representativa dos filmes expressionistas se joga da ponte,
possivelmente ela será matéria dos jornais. O culto ao corpo aparece através do
52
desfile de modas e da prática de esportes. Fim do expediente, os trabalhadores
saem das fábricas, a noite chega, os cinemas, os teatros de revista e os clubes de
dança proporcionam momentos de prazer e de fantasia aos entusiastas da vida
noturna.
O valor artístico de Berlim, sinfonia da metrópole (1927), enquanto obra de
vanguarda, se dá em seus aspectos de documento audiovisual que utiliza a
técnica de montagem como elemento de construção narrativa e explora as
qualidades formais dos objetos filmados em um padrão caracterizado por um
movimento intenso. Ao contrário do projeto idealizado pelo roteirista Carl Mayer,
que tinha como objetivo criar uma obra de conteúdo no sentido de que ela
pudesse imprimir um significado ideológico às imagens, Ruttmann optou por uma
obra formal sem a preocupação de elaborar um conteúdo crítico da sociedade
alemã. O filme enaltece a cidade moderna a partir de um deslocamento do olhar
que traz para o espectador a possibilidade de uma apreensão das várias
paisagens que compõem uma cidade. A multiplicidade de lugares, técnicas e
movimentos é o que caracteriza a vida do homem da cidade moderna.
Dziga Vertov associa em sua obra os aspectos formais e as implicações de
conteúdo – no caso o ponto de vista dos ideais comunistas, apresentando
significado ideológico às cenas captadas da realidade soviética do período Lênin.
A produção Um Homem com uma câmera (L’homme à la câmera, 1929), de
Vertov, aparece como um filme-paradigma da gênese cinematográfica no que se
refere à técnica – aos procedimentos de filmagem, montagem e projeção. A obra
soviética apresenta o olhar (a tese) do artista em relação ao processo
cinematográfico voltado para a captação do real, o “cinema-verdade”. O filme é
uma investigação epistemológica do próprio cinema a partir de um estudo de caso
– a cidade de Leningrado, atual São Petersburgo.
Um Homem com uma câmera (1929) mostra a vida do homem na cidade, o
trabalho, o lazer, a arquitetura, a forma urbana e a performance do cineasta no
processo de captação das imagens. A obra é uma tese sobre o processo de
construção da forma fílmica e do seu significado crítico sobre a grande cidade.
53
Segundo o pesquisador e documentarista Sílvio Da-Rin, o papel do espectador é
de fundamental importância para o exercício da crítica social e da elaboração
estética do filme:
Ao invés de alimentar a contemplação passiva de uma história que parece contar-se por si própria, o filme impõe-se como discurso construído e reconstruído pelo espectador através de um processo intenso de intelecção baseado no distanciamento crítico. (Da-Rin, 2004, p.179)
A produção de Vertov, a partir do uso intenso de metáforas visuais, apresenta uma
obra que provoca uma sensação de estranhamento que leva o espectador a
redimensionar o seu olhar frente ao objeto fílmico e à cidade de Leningrado. A
narrativa não-linear e a ausência de um continuum espaço-temporal promovem a
inserção do espectador em um universo mágico no qual a técnica e os temas
abordados se constituem em elementos de produção de conhecimento.
O operador de câmera – o captador das imagens, é o protagonista de um
espetáculo urbano que é registrado a partir da câmera e do olhar do cineasta – um
cinema espetáculo. Ele inscreve uma sinfonia de imagens sobre o movimento da
cidade, os ritmos das cenas do cotidiano captados pelos mais diversos ângulos. A
modernidade é revisitada sob o ponto de vista de um cineasta engajado no uso da
técnica para a realização de um ensaio audiovisual crítico sobre a relação entre o
homem, a cidade e a arquitetura. Um filme que apresenta uma metáfora entre o
olho humano e o olho da câmera e é um exemplo de uma obra que propõe a
promoção da educação estética do homem moderno.
A visão futurista (o sonho) de um diretor trouxe para a história do cinema
um dos mais representativos filmes sobre a cidade industrial moderna. A viagem a
Nova York no ano de 1924, inspirou o diretor austríaco Fritz Lang (1890-1976) na
criação do clássico do cinema mudo alemão Metropolis (1927). A obra pertencente
à estética do expressionismo alemão é um marco da ficção científica e
representou um papel importante no que se refere à utilização das capacidades
econômicas, técnicas e humanas no processo de produção cinematográfica. Os
estudos de pintura e de arquitetura de Lang contribuíram para a criação de um
54
filme que tem como cenário obras arquitetônicas monumentais e paisagens
industriais desafiadoras. A estética da produção alemã é impregnada de símbolos
que representam a marca de grandeza, do drama e do vigor de uma grande
cidade.
Metropolis (1927) aborda o conflito do papel da técnica (máquina) na gestão
econômica, social e tecnológica de uma grande metrópole. Vemos o confronto de
uma cidade superior, desenhada por arranha-céus em estilo art déco e
simbolizada pelo conhecimento e pelo poder, em relação à uma cidade inferior
(subterrânea), constituída por casas e ruas labirínticas próximas a uma central de
produção de energia elétrica – o coração da cidade. A cidade superior é
comandada pela elite econômica e política, e a cidade inferior é o lugar da vida e
do trabalho dos operários, responsáveis pelo funcionamento da engrenagem
urbana. O ensaísta espanhol Eduardo Subirats, autor de um importante ensaio A
Flor e o Cristal (1988) sobre arte e arquitetura modernas, elucida sobre a natureza
do conflito explicitada no filme:
Esse conflito entre a cidade superior e a cidade inferior não é somente espacial e simbólico: é um conflito humano, em que se entretecem os aspectos psicológicos, sociais, tecnológicos e morais, que configuram a trama complexa da narrativa cinematográfica. Fritz Lang introduz, sob a forma espacial de uma metrópole dividida, o conflito entre produção e destruição, entre o desenvolvimento técnico-econômico da civilização e a regressão humana que caracteriza o mundo moderno. (SUBIRATS, 1988, p. 120)
Essa metrópole dividida é simbolizada pelo “cérebro”, que conduz o destino
histórico da sociedade – a classe política e social da cidade superior, e pela “mão”,
que executa as ordens superiores – a classe operária da cidade inferior. Ao
mesmo tempo em que a técnica traz um avanço para o desenvolvimento da
organização social e econômica, ela instaura um conflito permanente com relação
às necessidades íntimas do homem em seu processo de aprimoramento espiritual.
O filme mostra a importância da técnica e a exaustão humana diante de seu
domínio material e político. A fisionomia da cidade e de seus personagens se
materializa através da estética da máquina que demarca ornamentos, formas e
movimentos próprios. A mediação entre o comando – o “cérebro”, e a produção –
55
a “mão”, é simbolizada pela personagem Maria (Brigitte Helm) que utiliza o poder
do “coração” como instrumento de convivência humana e uso racional da técnica.
A cidade é um organismo vivo constituído de embates cotidianos que vão
promovendo a ressignificação da forma do homem interagir em seu espaço social.
O conflito implícito da experiência urbana é decorrente do processo natural de
transformação da sociedade e da forma e do conteúdo do espaço da cidade.
As obras cinematográficas sob o formato de “sinfonia urbana” analisadas
contrastam com Metrópolis (1927) não só por serem documentários que retratam
a vida na cidade em seus diversos aspectos – estéticos, sociais, culturais e
econômicos, elas oferecem um vislumbramento ampliado da potência da cidade
enquanto personagem da vida moderna. O pesquisador de cinema Ismail Xavier
comenta sobre esse contraste:
O filme de Lang, ao contrário das sinfonias da cidade, onde a simultaneidade é um campo de possibilidades e promessas, conota abafamento, cadeia opressiva, sistema fechado. A cidade aí é trabalho e supervisão do trabalho que não produzem senão a própria cidade, num movimento de reprodução do que não teria outro uso senão o de espelhar uma suposta grandeza de seus criadores. (XAVIER, 2007, p. 31)
A natureza ficcional de Metrópolis (1927) espelha um momento histórico no qual a
cidade vive o impacto da ideologia industrial marcada pela produção e exploração
da força de trabalho. O ponto de vista do filme enaltece a razão, a técnica e o
poder fazendo um recorte rigoroso que enquadra a cidade como um objeto
meramente industrial. A narrativa de Lang descarta o imprevisível e a criatividade
da vida na cidade.
O ato de sonhar com as cidades imaginárias do cinema é vivenciado não só
por quem está vendo o filme, mas também por quem presencia a vivência do
sonho do outro. A arte cinematográfica consegue através da técnica produzir o
sonho do homem inebriado pela razão e pela própria técnica. A fabricação de um
estado onírico vivido pelo espectador no cinema subverte o sentido restrito da
técnica, enquanto instrumento de produção objetiva do processo de otimização da
ação humana. A técnica cinematográfica permite aproximar o homem do universo
56
gerador da realidade urbana – o imaginário social, contribuindo para o
aprimoramento do olhar em relação ao modo de interpretar o mundo. O imaginário
da cidade, enquanto segmento do imaginário social, é constituído de uma
multiplicidade de encarnações estéticas, afetivas, sociais e históricas que fazem
da cidade um personagem de múltiplas personalidades. Percorrer o espaço
urbano é se lançar em uma jornada repleta de olhares que atravessam o tempo e
o corpo da cidade.
57
Capítulo II
Imaginários da Cidade
A cidade é antes um campo de forças em movimento e organização contínua.
Nelson Brissac Peixoto
58
2.1. A escrita da história, a escrita da cidade
Ao andar pelas ruas de uma cidade o homem se depara com um vasto
acervo de formas urbanas que compõe a paisagem cultural da sociedade. As
obras arquitetônicas, os elementos urbanísticos, os meios de transporte e o
movimento do homem no espaço urbano desenham uma paisagem cuja
fisionomia apresenta um campo de conhecimento que delineia o percurso histórico
da cidade. Os diversos tempos deste percurso constituem o material da narrativa
do lugar e a forma com que o homem inventa o cotidiano, transforma o ambiente
social produzindo histórias que o revelam enquanto agente de criação do
imaginário social. O acúmulo de experiências decorrente da vida na cidade vai
constituindo um acervo e uma fonte de saberes, imagens, fatos e idéias que
formam um universo gerador de produção da realidade. O homem se reporta a
este universo significante para instituir narrativas que configurem um canal de
comunicação de conteúdos socializantes.
O narrador das experiências culturais e os personagens de filmes que
formam o imaginário urbano aparecem como porta-vozes que trazem significado
aos acontecimentos. Ao se deparar com a realidade da vida na cidade eles
introjetam o espírito do flâneur, o observador do clima de encontro social, figura
cujo interesse se concentra nos locais públicos. O escritor e jornalista carioca João
do Rio (1881-1921) foi um dos representantes mais expressivos da arte de narrar
os costumes e a transformação do espaço da cidade. João do Rio (1987) inspira-
se em Charles Pierre Baudelaire (1821-1867) – poeta da modernidade, autor de
As Flores do Mal, que aborda a temática visceral do submundo e expressa o
sentimento da vivência na cidade. Baudelaire é quem lança a idéia do flâneur
enquanto agente social que recupera o sentido da individualidade, perdido na
multidão, mas imerso no prazer de olhar o universo cultural. A rua – símbolo maior
das trocas sociais, aparece sob o olhar de João do Rio, como um objeto
59
transbordante em qualidades humanas. Em sua época, a Rua do Ouvidor era uma
artéria da futilidade, lugar de pose, vaidade e inveja, um personagem-símbolo da
cultura carioca. Ele caracterizava o objeto urbano a partir de especificidades
psicológicas da natureza humana, a rua era um reflexo da performance da
sociedade em relação aos conteúdos simbólicos do lugar. A alma da cidade
floresce pelo entrecruzamento de desejos humanos intervindo nas formas urbanas
que incorporam uma dimensão psicológica e afetiva.
A modernidade que se estabelece a partir do nivelamento dos gostos e
costumes sociais provoca a perda da “alma singular” do objeto urbano, resgatada,
porém, por João do Rio em sua obra através de um olhar sensível e crítico acerca
de possibilidades mais humanas de coexistência social. Percebemos um
movimento intenso de resgate de sensibilidades reconhecido pela pesquisadora
Mônica Pimenta Velloso em sua obra As Tradições Populares na Belle Époque
Carioca (1988),
Esse transbordamento de sensibilidade e de tensão é marcante na obra de João do Rio, sendo denominado de “hiperestesia”. É a experiência do choque, vivenciada pelo homem moderno angustiado e dilacerado em sua integridade de sujeito. (...) De início, João do Rio se comporta como um observador atento, que deleita a si próprio e a seus leitores com a seqüência de imagens carnavalescas. Ele é um flâneur, que se caracteriza pela vagabundagem descompromissada, pela curtição e pelo voyeurismo. Mas depois ele adere aos cordões, se transformando num homem da multidão. (VELLOSO, 1988, p. 33)
A inserção do sujeito no espaço urbano é redimensionada com a chegada da
modernidade, que traz, além de uma racionalidade característica, uma cultura
irracional pontuada por vícios, corrupção e miséria. O drama da vida urbana
transfigura a estabilidade do ambiente social, demarcando o espaço da cidade a
partir de comportamentos sociais que passam a simbolizá-lo. A “hiperestesia”
promove uma marca no corpo urbano dos sentimentos que caracterizam o modo
de vida da cultura da modernidade. O papel do narrador (cronista) aparece como
crítico de uma nova ordem que necessita ser entendida, nomeada e denunciada,
ele é uma figura simbólica a serviço do conhecimento social e da comunicação
dos anseios do homem.
60
As experiências ao longo do tempo organizam um discurso histórico
produzido nos lugares de subjetivação da prática do sujeito – o cotidiano das
realizações efetivas originárias do imaginário social. Os locais públicos e os
espaços privados da vida do homem urbano representam o cenário no qual são
criados os relatos de demarcação dos processos de individualidade e de
alteridade. O confronto com o outro delimita a fronteira entre as diversas
espacialidades e seus respectivos modos de expressão. O sentido do discurso
histórico institui a noção de identidade social em seu processo dinâmico de
produção simbólica, as marcas identitárias de uma cidade resultam de um modo
de interpretar o mundo, da forma com que o homem simboliza os conteúdos
formadores do universo do imaginário. Interpretar uma realidade significa escrever
(demarcar) no tecido urbano as impressões captadas do imaginário e
imprescindíveis para a organização da vida na cidade, do universo imagético que
a caracteriza.
O cinema apresenta o ponto de vista de personagens (narradores) de um
universo urbano retratado que configura um determinado discurso da ordem social
e cultural. O imaginário do filme é o imaginário de seus personagens em confronto
com o imaginário da cidade que detém um acervo de experiências, desejos e
pensamentos constituídos ao longo do tempo. A construção narrativa do filme
instituída mostra a marca da identidade dos narradores da história e do espaço no
qual ela se desenrola.
O pensamento flui ao percorrer os becos, ao olhar a arquitetura de Turim
em sua representação simbólica e registro da memória de uma sociedade. O
imaginário do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), interpretado pelo ator
Fernando Eiras, em Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane,
explode ao se defrontar com a carga estética e cultural da cidade italiana onde a
história provoca os sentidos de um filósofo que vive o êxtase do pensamento e da
arte. A permanência nessa cidade, entre abril de 1888 e janeiro de 1889, nos
proporcionou algumas obras de grande relevância para a história da filosofia e da
cultura tais como: Ecce Homo, Crepúsculo dos Ídolos e Os Ditirambos
61
Dionisíacos. Nietzsche era imbuído de um espírito dionisíaco, um poeta lírico que
revia as perspectivas da natureza humana.
Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane
Beco de Turim
62
Turim, antiga capital da Itália, uma cidade barroca amarela e marrom-
avermelhada, a partir do trabalho do arquiteto Guarino Guarini (1624-1683) se
projetou como uma cidade “aristocrática”, marcadamente geométrica, distante dos
padrões modernos. A exuberância da arquitetura encontra uma contrapartida na
natureza seduzindo Nietzsche em suas associações mentais com a cidade
conforme apresenta Lesley Chamberlain no livro Nietzsche em Turim – o fim do
futuro (2000):
Nietzsche se apaixonou instantaneamente pela cidade, e um dos motivos era o seu esplendor, combinado a uma acomodação sem esforço ao ambiente natural. Constituía motivo de celebração o fato de poder, do estreito balcão exterior à sua janela, ver la collina – os norros verdes de Turim – a sudeste e, num dia claro, os Alpes a noroeste. (CHAMBERLAIN, 2000, p. 35)
O olhar contemplativo do filósofo se voltava para a cidade e para a natureza
dermarcando um diálogo entre a paisagem urbana e a natural. Este cenário é o
alimento para que Nietzsche promova um caminhar constituído pelo prazer do
próprio caminhar, de pensar e de elaborar uma escrita que materialize essas
experiências que são, na realidade, “expedições filosóficas”, segundo Chamberlain
(2000), no âmbito do interior da paisagem.
A cidade para ele é um laboratório do pensamento e do corpo em
movimento: “Meus bigodes são meus filtros e as calçadas desta cidade são o
paraíso para os meus pés. Só os pensamentos que temos caminhando valem
alguma coisa”. A liberdade de pensar é a liberdade do corpo em seu percurso de
observação e reconhecimento de uma cidade amada que estimula os pés e os
olhos. Amar um objeto urbano significa se entregar ao espírito de suas formas e
ao seu sentido na história da civilização. A manifestação de prazer ao se defrontar
com a cidade italiana proporcionou a produção de escritos (anotações) que
aparecem como o reflexo de uma escrita da cidade, de um pensamento oriundo
da contemplação da arquitetura.
64
O espírito de flâneur de Nietzsche, a “expedição filosófica” que ele promove
ao longo da cidade, nos labirintos da arte e da razão, consiste em procurar no
ambiente urbano algo que provoque sua percepção interior e do mundo. A
arquitetura enquanto elemento formal, então, reflete o processo do filósofo de lidar
com o seu caos original: “Sendo uma arte fundada na síntese do impulso vital
(dionisíaco) com o impulso formal (apolíneo), a arquitetura constitui um meio
racional para satisfazer fins irracionais” (PULS, 2006, p. 416). O ato de flanar pela
Piazza Castello e arredores aparece como uma possibilidade de Nietzsche
redimensionar o corpo e o espírito em direção à arte da razão, ao processo de
associações mentais que conduzem à criação do seu corpo filosófico.
A câmera trêmula que nos leva pelos becos de Turim reflete a natureza do
pensamento de Nietzsche – instigante, em constante êxtase, uma mente que
percorre os extremos do humano. A dinâmica do percurso do filósofo pela cidade
se dá a partir do olhar, do perceber e do pensar. A assimilação e a apropriação do
espaço urbano é resultado de um processo intenso da dimensão do intelecto. O
corpo de Nietzsche vai acumulando impressões que acabam o levando à
desorganização de sua estrutura psíquica, à loucura. A “hiperestesia” vivida por
ele transfere as marcas imaginárias e físicas da cidade para o universo corpóreo
de um espírito inebriado.
A riqueza do pensamento de Nietzsche reflete a riqueza, a minúcia da
forma e da função da arquitetura e da cidade de Turim. Os detalhes, sob o ponto
de vista do personagem, que vemos ao longo do filme, revela a sutileza do olhar e
do pensamento de um filósofo que ousa ao se deparar com uma arquitetura, uma
arte que inspira a vida de quem contempla a cidade, “A arte torna a vida possível”,
diz ele. O esplendor da arquitetura leva a marca do pensamento humano e faz
com que um observador sensível possa se revelar perante o seu próprio
imaginário e o imaginário da sociedade. A obra de arte, então, exerce a função do
divino na matéria, o humano encontra o divino a partir da contemplação de um
objeto de arte irradiado.
65
Michel de Certeau em sua obra A Cultura no Plural (1995) nos fala que o
imaginário urbano tem uma predominância do “ver”, no qual o homem é levado a
captar o sentido das impressões visuais, constituindo o valor da imagem em um
elemento representativo do imaginário social. No contexto do universo urbano
temos, então, uma exaltação da “pulsão escópica” (visual), conceito denominado
por Metz (1983), que leva o homem a sistematizar uma produção acelerada de
conhecimento. A velocidade da informação visual configura uma forma de
pensamento na qual a imagem aparece como um signo que traz significados para
a interpretação do mundo. A cidade instituída é um acervo e uma fonte
permanente de escrita, de produção de novas imagens:
A cidade contemporânea torna-se um labirinto de imagens. Ela se dá uma grafia própria, diurna e noturna, que dispõe um vocabulário de imagens sobre um novo espaço de escritura. Uma paisagem de cartazes organiza nossa realidade. É uma linguagem mural com o repertório das suas felicidades próximas. Esconde os edifícios onde o trabalho foi encerrado, cobre os universos fechados do cotidiano; instala artifícios que seguem os trajetos da faina para lhes justapor os momentos sucessivos do prazer. Uma cidade que constitui um verdadeiro “museu imaginário” forma o contraponto da cidade ao trabalho. (CERTEAU, 1995, p. 46)
A imagem da cidade vai sendo remodelada a partir de novas leituras e
interpretações em um momento histórico particular. A realidade urbana é fruto de
uma apropriação constante de algo da ordem do “exotismo ótico”, de imagens
ainda não pertencentes à realidade, mas que poderão ser incorporadas a partir de
um olhar revelador de uma experiência social. A busca e o conhecimento de
novos significados da produção imagética implica em um desvelamento das
diversas camadas encobertas pelas imagens instituídas. A constituição de um
“espaço”, a prática de um “lugar”, como elucida Certeau (1994), a transfiguração
do sentido de estabilidade e o respectivo cruzamento de experiências de direção,
velocidade e tempo, traçam o momento do surgimento de imagens até então
apagadas por um processo de alienação relativo à capacidade ótica, às
possibilidades de “ver” outras imagens. A cidade é uma grande galeria de quadros
de imagem – a arquitetura, a publicidade, os equipamentos urbanos, as imagens
66
digitais formam seu acervo visual, que vão se remodelando ao longo do tempo em
um processo de manipulação do espaço. A forma e a qualidade da imagem
encobrem e interferem no valor estético e simbólico do espaço transfigurando o
sentido da composição urbana. A natureza de uma cidade, enquanto um “museu
imaginário”, nos remete aos diversos espaços que estão escondidos, guardando
um acervo de imagens a ser descoberto pelo caminhante, pelo flâneur e pelo
poder imaginário do ser humano.
O imaginário urbano é um campo de percepção vivenciado pelo
homem em relação à vida na cidade, a partir de experiências visuais, afetivas
e mentais, que fazem com que o presente seja um momento de inspiração
para a produção de material significante que transforme o espaço
estabelecido. As possibilidades advindas da inspiração do homem estão sujeitas
a um processo de seleção que é definido segundo critérios políticos e econômicos
estipulados pelos organizadores da ordem social. A materialização de um
elemento do universo do imaginário percorre uma trajetória de redimensionamento
da realidade, de promoção de uma mudança de paradigma das formas simbólicas.
As práticas urbanas são o reflexo de um processo de subjetivação de fatos e
pensamentos vivenciados no mundo imaginário, elas constituem o que foi possível
ser nomeado para que se desse prosseguimento à atualização das formas de
representação da vida social.
A categoria do imaginário se estabelece como uma determinante de
geração de sentido que redimensiona a estrutura do real. O real é um universo
constituído por uma lógica demarcada pelo o que existe, ou seja, uma lógica
instituída no que se refere ao valor absoluto do objeto (da matéria) enquanto
elemento que organiza a vida do conjunto da sociedade. O imaginário alimenta e
subverte o real constituindo a realidade do sujeito, resultado de uma experiência
(prática) vivida do real. A realidade se caracteriza a partir de um processo de
experimentação da ação e do pensamento do sujeito sob a produção incessante
da fonte imaginária, o acervo de imagens proveniente dessa fonte se apresenta
como uma matriz das imagens presentes na realidade do homem.
67
A alusão ao tempo é um fato na demarcação do universo do imaginário. O
passado e o por vir aparecem como referências ao tempo presente no que tange
às possibilidades de significação de novas realidades, o presente é uma dimensão
fugaz – instantânea, entre os dois momentos que estão instituindo a noção de
tempo. O homem escreve sua história se reportando ao imaginário e trazendo
idéias aos lugares de produção da cultura social, a instituição de novas práticas
cria uma forma diferenciada de pensar o cotidiano e redirecionar o percurso da
sociedade. Os projetos urbanísticos constituem um corte epistemológico na
realidade da organização e do funcionamento da cidade, eles demarcam um novo
mapa que conduzirá as práticas cotidianas emergentes. O cotidiano é o universo
no qual o homem experimenta a todo momento a simbolização de conteúdos do
imaginário social.
Em A Escrita da História (1982), Certeau diz que a escrita da história é
produzida sob o ponto de vista de quem a escreve e do momento no qual é
realizada a leitura do passado. O autor discorre sobre as nuances do
desenvolvimento dos estudos históricos na relação entre o tempo e o lugar da
produção da história:
Assim, fundada sobre o corte entre um passado, que é seu objeto, e um presente, que é o lugar de sua prática, a história não pára de encontrar o presente, no seu objeto, e o passado, nas suas práticas. Ela é habitada pela estranheza que procura, e impõe sua lei às regiões longíquas que conquista, acreditando dar-lhes a vida. (CERTEAU, 1982, p. 46)
A leitura de um fato histórico advindo do imaginário social aparece de forma
ressignificada como decorrência do olhar do historiador em um momento particular
onde o passado é uma fonte de informação e de inspiração para a construção do
que é próprio ao momento presente. O passado é recriado pela experiência do
homem em uma direção na qual os princípios instauradores dessa prática vão
adquirindo uma verdade narrativa mais próxima ao sentido da história. O presente
traz novos significados ao passado ampliando seu valor e sua dimensão no que se
68
refere à transformação de um material “morto” (ruínas urbanas, documentos
deteriorados, pessoas e fatos esquecidos) em objeto de análise e de (re) criação
de vida. O material “morto” – um elemento não apropriado pelo discurso social,
pela narrativa dos agentes culturais, faz parte do corpo social, constitui uma
presença a ser nomeada (enunciada) pela fala e pela prática dos produtores do
espaço.
A tendência atual de revitalização de áreas urbanas e de restauração de
obras arquitetônicas resgata a importância do valor estético e social de
determinados bens imóveis enquanto portadores de um discurso histórico que traz
conhecimento acerca da forma de organização da sociedade. As formas a serem
revitalizadas ilustram a necessidade de se promover um diálogo entre a
atualização do passado e a criação do presente. O discurso dos bens históricos,
no que tange às experiências técnicas, estéticas e simbólicas, marca no espaço
da cidade uma referência cultural na trajetória da construção do imaginário social.
O espírito de uma época é lembrado através de um elemento urbano que relata
um episódio da formação da sociedade.
O passado da cidade inscrito no imaginário social é uma fonte de
questionamento acerca de seu destino traçado ao longo da história. O material
“morto” do corpo da cidade – as áreas abandonadas, as ruínas urbanas,
relacionado a uma experiência cristalizada – destituída de significados, em um
tempo decorrido, acompanha o desenvolvimento da sociedade trazendo material
para a (re) formulação da noção de identidade social. O distanciamento no tempo
de produções culturais de uma época não implica em um esquecimento do valor
histórico dessas produções para a efetivação da memória social instituinte. A
história deixa marcas no espírito de uma sociedade que poderão ser resgatadas e
incorporadas a um momento de redefinição de um discurso. Pensar a vida na
cidade é retomar o sentido dos diversos estágios que contribuíram para a
formação da cidade atual, a retomada significa reelaborar a escrita que constituiu
uma forma inacabada no que tange às possibilidades de criação do universo do
imaginário.
69
A desintegração mental de um homem, o visionário professor de história
Mário, vivido pelo ator Ricardo Blat, é o fio condutor do filme O Príncipe (2002) de
Ugo Giorgetti que retrata a degradação social e do espaço da cidade de São
Paulo. Uma produção que narra os descaminhos de uma geração de jovens da
classe média paulista, um registro de memórias de uma geração. A potência do
imaginário social que transborda através das imagens cinematográficas revela
desejos que foram cultuados e, posteriormente, alijados de seus propósitos de
transformação do tempo e do espaço.
Um olhar estrangeiro, mas testemunha de um momento histórico singular
da cultura brasileira – anos 60 e 70, é o elemento de constatação de uma
identidade perdida. Gustavo (Eduardo Tornaghi), tio de Mário, retorna a São
Paulo, depois de 20 anos vivendo em Paris, ainda com um imaginário permeado
por lembranças de lugares e de pessoas repletos de afeto, esperança e ideais
revolucionários. Constatamos a configuração de um verdadeiro “espaço”, visto que
o lugar da experiência social e cultural da geração de Gustavo é apropriado pelos
atores sociais em seu processo de transfiguração de valores instituídos. O filme
revela a existência de um “espaço” que sai do universo cotidiano de uma época e
passa a se localizar apenas no imaginário social.
O percurso físico e afetivo da cidade vivido pela geração de Gustavo se
transformou em cenas obscuras de uma realidade degradada: o drama dos sem-
teto, a violência urbana, a perda e a descaracterização de espaços da memória
social e cultural. A fotógrafa Hilda (Márcia Bernardes), mulher de Mario, pontua
através de seu trabalho de repórter fotográfica a banalização do registro de corpos
mortos em uma cidade sem apelo afetivo e cultural. Os ideais de uma geração que
poderiam transformar o espaço social e urbano tornaram-se inócuos diante da
dinâmica da era da cultura de mercado, o capital minou o espírito de uma possível
vida poética. A poesia que poderia abrir o espírito de uma geração para novas
formas de olhar e intervir no mundo se tornou apenas uma expressão literária, um
fato marcante da memória social. Maria Cristina (Bruna Lombardi), antiga paixão
70
de Gustavo, ilustra esta passagem de uma personagem engajada poeticamente
para uma profissional militante de um projeto de marketing cultural.
O imaginário do prof. Mário mostra a contradição de uma sociedade que
reprime a visão poética de uma vida em um espaço urbano caótico em
conhecimento, visualidade e comunicação, o olhar de Mário denuncia a “falsa
história” que é propagada pelo discurso oficial da sociedade. O imaginário urbano
do filme reflete o percurso da mentalidade e da produção dos diversos grupos
sociais que fizeram a história da cidade. A forma urbana é o reflexo, então, de um
projeto estético e social decorrente do universo do imaginário.
A figura do Príncipe (Gustavo), um intelectual exilado, chega a São Paulo
para constituir um olhar revelador de uma realidade perturbada pelo descaso com
o imaginário, como diz Mário: “É preciso levarmos o imaginário a sério para
transformar este país e arrancá-lo de sua própria mediocridade ...”. A potência do
olhar estrangeiro de Gustavo identifica um percurso físico e cultural de uma cidade
que está desintegrando sua memória.e ofuscando a percepção e o sentimento de
seus habitantes. A cidade começa a ficar na sombra e seus elementos
constituintes perdem o potencial criativo de produção de vida tornando-se, assim,
material “morto” de um conjunto urbano em estado de entropia. O olhar desvelador
de um “doente psiquiátrico” enxerga com sensibilidade e precisão o estado atual
de uma cidade caída: “As luzes desta cidade estão se apagando”, comenta Mário.
71
O Principe (2002) de Ugo Giorgetti
Gustavo chega de táxi na Rua Morato Coelho
Ao regressar de Paris Gustavo encontra a rua onde morava – a Rua Morato
Coelho, transfigurada estética e socialmente. O impacto por ele vivido
corresponde ao espanto que viverá junto com o jornalista Renato (Otávio
Augusto), deficiente, usuário de cadeira de rodas, ao se deparar com alguns dos
lugares marcantes de sua geração – Praça D. José Gaspar, Praça da Biblioteca,
... -, lugares desaparecidos, decadentes, que ficaram na memória de uma geração
apaixonada por livros, poesia e fotos, símbolos de uma época passada que
vislumbrou um potencial de transformação da realidade. Renato mostra através do
seu corpo retraído (sem vigor) uma cidade retraída em seu processo de
valorização do imaginário social. No entanto, o corpo passivo de Renato não deixa
de viver o êxtase ao ter o contato com os resquícios físicos e afetivos de lugares
do passado. A memória dos lugares reacende o desejo de se animar um presente
destituído de significado.
72
Benjamin, em cuja obra encontramos uma tentativa de construção de uma
nova estética que possa redefinir a noção de crítica, traz uma contribuição para a
arte de escrever a história através de imagens, ele percorre uma trajetória literária
que investiga a formação da fisionomia da metrópole moderna e se inspira nos
Tableaux Parisiens de Baudelaire que o levam a realizar uma leitura da cidade
como a de um corpo humano, superpondo a percepção da cidade e a do corpo na
produção de uma narrativa do ambiente social.
O conceito de história de Benjamin (1985) trata da construção do objeto
histórico como um momento constituído de um tempo presente eterno e não de
um tempo homogêneo, vazio, morto. As lembranças que permanecem no
imaginário social são o veículo de (re) construção de um passado que já não é
mais o mesmo para o homem que se debruça sobre as suas origens. Os embates
do cotidiano recuperam o passado com o objetivo de fortalecer o presente.
Benjamin comenta:
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. (BENJAMIN, 1985, p. 224)
Desta forma, a verdade do discurso histórico se apresenta de forma relativa,
sujeita aos conteúdos ideológicos das narrativas representativas da organização
da sociedade. Por outro lado, o distanciamento do tempo histórico dos
acontecimentos permite uma maior compreensão de seu desenvolvimento
decorrente dos sucessivos enfrentamentos intelectuais e sociais que apresentam
uma leitura mais verossímil do objeto histórico.
A crítica moderna da cidade, desenvolvida por Benjamin, traça as
possibilidades de compreensão da realidade do homem no espaço publico, ela
contribui para a busca do sentido das imagens da cidade no processo de
afirmação da experiência humana, Segundo ele:
73
Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro . (BENJAMIN, 1993, p. 73)
Essa instrução é uma forma resultante de um desenvolvimento permanente, onde
o homem possa criar um espaço à sua imagem, e estruturar um inter-
relacionamento significa permitir que ele participe, demarque uma linguagem
inerente ao seu perfil sociocultural, crie um texto pertinente aos seus anseios, a
sua solidão e o interprete visando a um aprimoramento do que já foi construído (o
passado) em uma dimensão social mais adequada. O homem está diante de uma
diversidade de caminhos que o levarão a percorrer os labirintos da realidade
material e social da cidade.
A solidão de uma mulher de terceira idade em um bairro marcado pela
violência nos faz acompanhar o drama de Regina (Fernanda Montenegro) pelo
bairro de Copacabana no Rio de Janeiro no filme O Outro Lado da Rua (2004) de
Marcos Bernstein. O olhar de Regina percorre o caminho da sombra, do universo
do crime, do duvidoso e do abandono. A solidão a faz tomar atitudes em prol da
justiça pelo outro, ela observa o outro para se afastar de sua dor, entrega o outro
par fazer valer a lei do bem-estar social. Todo este percurso promove o retorno
para dentro de si, em direção ao seu afeto perdido, a apropriação do espaço cria
uma nova forma de expressão humana. Os labirintos da cidade são o cenário da
jornada de uma mulher em busca de sentido para sua vida em uma experiência no
espaço urbano que se apresenta como uma oportunidade para o refinamento do
sentimento e da comunicação afetiva.
A experiência vivida no espaço urbano, Copacabana como cenário de uma
dramaturgia voltada para o afeto enquanto elemento de transformação social,
demarca a efetivação do “espaço” a partir da predominância do “ver”, segundo
Certeau (1995), a exaltação da “pulsão escópica” (visual), como indica Metz
(1983). A determinação do redimensionamento do afeto se dá através da
investigação do sentido das cenas (imagens) da cidade que vão promovendo o
74
despertar desse afeto adormecido, a crítica do olhar aparece como instrumento de
aproximação ao universo do outro.
A cidade aprisiona o homem, mas também pode possibilitar sua libertação.
O sentido de orientação e de perda na cidade postulado por Benjamin (1993)
possibilita um aprendizado que se dá em O Outro Lado da Rua através do olhar
que aprisiona e, posteriormente, liberta. A prisão de Regina ao olhar a afasta da
possibilidade de troca, a potência de seu olhar esvazia a entrega ao outro, ela
declara: “Vejo coisas demais, é isso. Eu acho que eu ainda me vejo de um jeito
que ninguém mais me vê. Eu me vejo como eu sempre fui, entende?”. As janelas
nas quais Regina se lança ao mundo são as barreiras e, ao mesmo tempo, o canal
de comunicação com a vida na cidade. O alvo do olhar inquisidor de Regina, o
sujeito de sua investigação, torna-se objeto de desejo, Camargo (Raul Cortez) é a
figura que redimensiona seu olhar em direção a uma nova forma de se relacionar
com o mundo.
O imaginário de Regina é materializado nos espaços por onde ela circula. O
sentimento de isolamento aparece no momento após a tentativa de assalto a uma
senhora no banco, ela desabafa conversando com a sua própria secretaria
eletrônica, cena presenciada pela cachorra Betina, e se vê inteiramente sozinha
no espaço da rua por onde transita a multidão solitária de uma grande cidade. O
espaço psicológico (o vazio do espaço urbano) sob o seu ponto de vista simboliza
a solidão de uma mulher de terceira idade perdida em uma cidade que ameaça os
seus habitantes.
O apartamento de Regina é banhado de luz e sombra sendo o cenário de
cenas nas quais ela aparece solitária, um ambiente que remete a uma caverna de
onde alguém espia e se esconde do mundo. A cachorra Betina é a única
possibilidade de interação afetiva, apesar das limitações de sua natureza animal,
ela a faz se manter operante na vivência do espaço da cidade e do apartamento.
O percurso ao longo de Copacabana vivenciado por Regina demarca os
elementos que norteiam o seu imaginário: a praça onde os velhos se encontram
para jogar cartas, o caminho de sua casa para a praia que proporciona uma
75
abertura dos horizontes limitados de seu apartamento, a ida à delegacia para
comunicar a suspeita de um crime – a morte da mulher de Camargo, visto que ela
exerce o serviço voluntário de “olheira” da polícia sob o pseudônimo de Branca de
Neve, aparecem como espaços que são a marca do imaginário de uma mulher
movida pela solidão e pela tentativa de preencher o vazio existencial de sua vida.
As histórias que são escritas nos filmes revelam o drama de seus
protagonistas em cidades que se apresentam como personagens da trama
cinematográfica. A escrita da história, sob o ponto de vista de Nietzsche, Gustavo,
Mário, Regina e Camargo tem sua força dramática decorrente de uma escrita
particular que eles produzem acerca da forma, da função e da cultura das cidades-
personagens.
2.2. O homem, a cidade e a tradição
Ao longo da história da humanidade a cidade vem sofrendo transformações
provocadas pela forma com que o homem se organiza socialmente. A mentalidade
de uma determinada sociedade é identificada no espaço no qual ela sistematiza
sua produção cultural promovendo, assim, uma elaboração simbólica dos fatos
sociais. Os símbolos representam a capacidade imaginária da sociedade em
efetivar referências que tenham como função a reunião social e o desenvolvimento
econômico. Eles são instrumentos do universo do imaginário que expressam o
mundo social-histórico, conformam sua existência, e geram consenso, sendo
objeto de comunicação e conhecimento que demarcam a imagem de uma
sociedade de maneira que ela possa estabelecer parâmetros identitários, no
intuito de promover a efetivação do processo histórico. O símbolo promove no
conjunto social a possibilidade de estimular o desenvolvimento cultural, que vai
além da prática e da dimensão material, atingindo camadas sutis – o imaginário,
onde reside o acervo da memória social.
76
Pierre Bourdieu, autor de uma importante obra que aborda a função do
símbolo como elemento de comunicação e conhecimento e de legitimação e
justificativa do sistema de poder, traz um campo conceitual – a “Sociologia dos
Sistemas Simbólicos”, para o estudo do símbolo no processo de representação
social. Segundo Sergio Miceli (1974), o trajeto de Bourdieu:
Visa a aliar o conhecimento da organização interna do campo simbólico – cuja eficácia reside justamente na possibilidade de ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representações, que não passam de alegorias que simulam a estrutura real de relações sociais - a uma percepção de sua função ideológica e política e legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente. (MICELI, 1974, p. XIV)
O símbolo sinaliza e identifica a cultura de um sistema de poder comunicando um
conteúdo ideológico representado por um elemento material ou imaterial que
alimenta o imaginário social. A cidade, estruturada como campo simbólico, sugere
uma rede de significações que necessita ser assimilada, avaliada e reelaborada
pela sociedade, visando à construção de um espaço mais adequado aos anseios
e às reais necessidades dos seus usuários. A cultura histórica de uma cidade é
apreendida através de seus elementos simbólicos que expressam os diversos
discursos políticos formadores do imaginário urbano.
A categoria cultura desenvolvida por Bourdieu em A Economia das Trocas
Simbólicas (1974), representada sob a forma de símbolos, como um conjunto de
significantes e significados, é elucidada a partir de uma estrutura estruturada, que
elabora a ordem interna dos próprios símbolos – um sistema fechado, e de uma
estrutura estruturante, que é a influência do símbolo como elemento propagador
de um conteúdo cultural – um sistema aberto, situando a imagem da sociedade
como um campo de batalha que opera com base na força e no sentido. O poder
do símbolo aparece como uma estratégia utilizada pelos organizadores da ordem
social para imprimir significado político e cultural às práticas adotadas pelos
grupos no poder.
Neste contexto, o princípio do habitus se apresenta como um instrumento
que estabelece a interação entre dois sistemas de relações: as estruturas
77
objetivas e as práticas. Na realidade, o habitus é o modo pelo qual o símbolo,
enquanto estrutura objetiva, é apreendido e assimilado pela sociedade, ele
demarca novas formas ou práticas sociais, interpretações e intervenções
redimensionadas, uma leitura e a respectiva prática da realidade, com o objetivo
de dar novas significações ao processo de identidade da sociedade.
A apreensão da forma urbana se dá através de uma imagem que apresenta
material significante para a apropriação do espaço. A fisionomia (imagem) urbana
apresenta características da vida material e espiritual dos produtores do espaço e
é o resultado da escrita da história, a marca da passagem do tempo através da
imagem, do rosto e do corpo urbanos. Uma cidade vivenciada expressa a forma
com que o homem traz do imaginário novas maneiras de pensar e transformar a
realidade. Estabelecer uma relação com o imaginário é uma experiência da ordem
do sagrado, no sentido do homem poder se remeter a sua fonte original de vida, e
comunicar objetivamente conteúdos que poderão redimensionar o sentido e a
forma do cotidiano da sociedade.
A cidade-símbolo de Nietzsche (Fernando Eiras) em Dias de Nietzsche em
Turim (2001) de Julio Bressane é um símbolo da arquitetura barroca que aparece
como o cenário para a sua “expedição filosófica”. O percurso trilhado pelo filósofo
ao longo dos becos, das praças e do interior dos palácios é o alimento para um
pensamento barroco, exuberante, marcado pelo conflito entre o espírito e a
matéria. A arquitetura inspira e reflete o imaginário de um homem caminhante
(viajante) no tempo e no espaço.
Ele vivencia a cidade através do olhar e do pensamento entrando em
contato com o imaginário social em todo o seu esplendor estético e cultural. A
apropriação do espaço urbano se dá a partir de um ideal de integração entre a
cidade (a cultura) e a natureza que proporciona a abertura para a vertigem
intelectual de um espírito dionisíaco.
A fisionomia (a imagem) de Turim é o produto da escrita da história de uma
época redimensionada a partir do ponto de vista de Nietzsche em seu momento
de criação de pensamento e sofrimento interior. A cidade-símbolo italiana é
78
potencializada não só pelo seu valor cultural intrínseco, mas pela qualidade da
apropriação do filósofo em relação ao objeto de inspiração. Este encontro torna-
se, assim, da ordem do sagrado, pois ele evidencia a originalidade de um ser
humano em sua plenitude existencial.
Ao nos reportarmos à origem da cidade antiga, mais especificamente, aos
tempos da Grécia e de Roma, vemos que seu nascimento se deu a partir da união
de várias tribos, da confederação de diversos grupos. A referência não era um
indivíduo, mas, sim, um grupo organizado que se agregou a outros grupos
formando a rede urbana. A importância do grupo era um fator de estabelecimento
da ocupação física e social da cidade. A organização espontânea do espaço se
dava a partir de uma necessidade social em constituir uma infra-estrutura
adequada para o funcionamento da cidade.
Segundo Fustel de Coulanges em A Cidade Antiga (1981) a religião
exerceu papel fundamental na constituição da cidade antiga, confundindo-se, na
realidade, com o Estado, não havendo diferenciação e conflito entre os dois
poderes:
A alma, o corpo, a vida privada, a vida pública, as refeições, as festas, as assembléias, os tribunais, os combates, tudo estava sob o jugo da religião da cidade. A religião regulava as menores ações do homem; dispunha de todos os momentos da sua existência; determinava todos os seus hábitos. Ela governava o ser humano com autoridade tão absoluta que coisa alguma ficava fora do seu poder. (COULANGES, 1981, p. 175)
A mentalidade do homem da cidade antiga estava em sintonia com o espírito
religioso, materializado em seu cotidiano sob a forma de um poder absoluto. A
ação humana e suas formas representativas eram modeladas e referendadas por
valores religiosos que imprimiam um conjunto de significações que instituía o
caráter indentitário da sociedade. O imaginário social era impregnado de imagens
e de fatos da ordem do divino que redimensionavam o sentido de organização da
realidade.
O sagrado inspirava e organizava a sociedade, transformando a cidade em
um santuário, onde o culto aparecia como vínculo unificador de todas as camadas
79
sociais. Os banquetes públicos eram a principal cerimônia de culto e tinham como
objetivo a salvação da cidade, a celebração das divindades para a purificação e a
consolidação do cotidiano. A denominação de Deus era dada a todo homem que
tivesse contribuído tanto para a fundação da cidade, quanto para a sociedade,
prestando algum grande serviço social. Desta forma, percebemos que o sentido
de sagrado não se relacionava somente ao universo do imaginário, mas ele se
materializava através de práticas (rituais) que apresentavam benefícios sociais. As
celebrações despertavam no homem a sua capacidade imaginária de reafirmar o
valor do sagrado no cotidiano, as práticas religiosas e culturais alimentavam o
corpo e o espírito do homem em uma trajetória de enriquecimento dos valores que
regiam a marca ideológica do espaço urbano.
A memória da fundação da cidade antiga aparece como uma referência
religiosa e cultural, uma crença no espírito da época, que norteava o
desenvolvimento social e urbano, estabelecendo princípios de identidade para o
conjunto da sociedade. A referência geográfica do ponto de fundação - o altar
público – tinha, em contrapartida, o culto do antepassado, agregando a família ao
redor do altar. O ponto aglutinador do espírito divino e social referendava uma
delimitação física; a geometria tornava-se sagrada, protegendo e reforçando os
laços afetivos e sociais, a organização do espaço urbano se estabelecia a partir de
um fato divino constituído na realidade física do homem. O espaço de fundação
era o símbolo sagrado do princípio instaurador de um percurso histórico no qual as
práticas cotidianas iam (re) atualizando o sentido sagrado da ordem social.
O caráter público tinha um valor preponderante sobre o privado. O sentido
de organização social estava estritamente vinculado à esfera do bem comum; o
objetivo maior era a consolidação dos laços sociais que acarretariam benefícios e
sentido à vida privada. De uma certa forma, os universos público e privado não
eram estabelecidos a partir de um grande contraste, pois ambos se inter-
relacionavam de forma harmônica, havendo um conteúdo privado significativo no
universo público, que propiciava um intercâmbio de produção de conhecimento
entre os dois universos. O sentido da vida privada era delineado com base na
80
projeção de uma vida pública constituída sob o domínio do bem-estar religioso e
social da sociedade.
Nobert Elias (1897-1990) apresenta um conceito sociológico que
sistematiza o público e o privado - o de “rede de relações sociais” (1994), que se
define como:
(...) um continuum de seres humanos interdependentes que tem um movimento próprio nesse cosmos mais poderoso, uma regularidade e um ritmo de mudança que, por sua vez, são mais fortes do que a vontade e os planos das pessoas individualmente consideradas. (ELIAS, 1994, p. 46).
Este conceito estabelece o pressuposto de que o indivíduo não é um fim em si; ele
é fruto de uma estrutura social que o modela a todo o momento, apropriando-se
do seu corpo, do seu espírito, criando um imaginário que influencia a organização
da ordem material da sociedade. Os indivíduos são como “espelhos” que
desempenham a função de mostrar para outros indivíduos conteúdos que lhe são
relativos e que só serão apreendidos pela existência dessa rede de “relações
sociais”. Os reflexos das individualidades no todo criam uma prática de embates
sociais que leva a um ajustamento das partes visando o fortalecimento do espírito
do grupo. A natureza da trama social justifica a subjetivação do homem em um
contexto no qual a questão da alteridade aparece como condição para a
construção da pertinência do grupo e dele próprio. Desta forma, o
desenvolvimento do indivíduo é um meio para que o universo social justifique seu
valor no que tange ao sentido de interdependência entre os indivíduos em prol do
conjunto da sociedade. O imaginário social é uma potência que regula o cotidiano
e é alimentada pelo exercício constante de subjetivações individuais e coletivas. A
cultura que é produzida a partir destas experiências constitui um processo
permanente de apropriação de novos conteúdos do universo do imaginário
passando a regular o sentido e a forma de organização social.
O sentido do sagrado se evidencia quando consideramos o ideal de uma
geração de jovens imbuídos do desejo de transformar a realidade segundo um
potencial criativo genuíno. O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti mostra a
81
transfiguração de ideais sagrados em meros produtos de divertimentos sociais
onde a cultura é um pretexto para se efetivar uma estratégia de marketing que
vise à obtenção de lucro. A cidade é o cenário no qual presenciamos as marcas
do desgaste moral; ela aparece como ruínas das memórias de uma geração. Os
espaços sagrados de então – os bares, os restaurantes, os centros de cultura,
onde a poesia e os discursos revolucionários eram exaltados já não existem mais,
tornaram-se ruínas, vestígios do imaginário social, a cidade passa a ser um
símbolo de uma ruína no sentido físico e moral. O espaço da cidade de São Paulo,
por não sofrer apropriação por parte de seus agentes sociais, configura-se como
um lugar do anonimato no qual a repórter fotográfica Hilda (Márcia Bernardes)
denuncia a decadência do universo urbano a partir do registro de corpos
esfacelados no asfalto.
O esvaziamento da esfera pública, relativo à descrença nos valores sociais
e culturais que marcam os espaços de encontro e de produção de cultura,
provocou um movimento de retração da dimensão pública em prol da dimensão
privada. Os espaços de encontro perderam o seu sentido sagrado de agregar a
sociedade em torno das discussões sobre o destino urbano, a cidade já não vive o
seu apogeu.
A “rede de relações sociais” foi se deteriorando e provocou o fortalecimento
dos interesses privados que, na realidade, passaram a reger o espaço público, o
qual se tornou um lugar híbrido de abandono e de posse por parte dos agentes
privados.
A cidade, enquanto objeto simbólico, estético e funcional imprime na vida
do homem valores que direcionam a organização física e social do espaço. A
forma urbana ideal pode estar associada à princípios morais que propõem um
modelo que os simboliza, e à padrões estéticos e funcionais que apresentam a
cidade sob o ponto vista plástico e produtivo.
O termo ideal caracteriza um modelo onde a cidade é considerada uma
obra de arte, imprescindível como referência para a cidade real. As reformas
urbanas e as reivindicações dos movimentos sociais aparecem como uma
82
maneira de se remodelar a cidade real aproximando-a da cidade ideal. Uma obra
de arte concentra em sua forma não somente valores estéticos, mas também
outras ordens de valores que contribuam para a sua formação. O historiador
italiano Giulio Carlo Argan (1909-1992) em História da Arte como História da
Cidade (1992) apresenta o conceito de cidade ideal como uma referência do
imaginário social para a análise e a leitura dos problemas da cidade real:
A hipótese da cidade ideal implica o conceito de que a cidade é representativa ou visualizadora de conceitos ou de valores, e que a ordem urbanística não apenas reflete a ordem social, mas a razão metafísica ou divina da instituição urbana. Daí se deduz que a cidade moderna contrapõe-se à antiga exatamente na medida em que reflete o conceito de uma cidade que, não tendo uma instituição carismática, pode continuar a mudar sem uma ordem providencial e que, portanto, exatamente a sua mudança contínua é representativa, de modo que o que resta do antigo é interpretado, sim, como pertencente à história, mas a um ciclo histórico já encerrado. (ARGAN, 1992, p. 74)
O modelo ideal, enquanto função originária e justificativa da cidade, por seus
princípios estéticos, metafísicos, divinos e sociais, configura-se como um elemento
alusivo permanente para o desenvolvimento da cidade. O imaginário urbano está
impregnado de pensamentos, valores e imagens de uma cidade ideal que possa
em algum momento ser vivenciada por seus habitantes. O homem aspira a um
espaço no qual possa se efetivar uma interface harmoniosa entre as variáveis
físicas, sociais e econômicas.
O lugar da cidade ideal no imaginário urbano cada vez mais adquire uma
referência etérea, se distanciando de uma realização efetiva, mas sendo objeto de
criação sob as mais diversas linguagens artísticas. Ao mesmo tempo que a crise
dos grandes centros urbanos se evidencia, a literatura, as artes plásticas e o
cinema, buscam a expressão de uma cidade ideal como uma forma de lutar contra
o esquecimento de um espaço urbano que possa dar conta dos anseios de uma
coexistência social de maior significado humano. A partir de 1907, com a abertura
de inúmeras salas de exibição no Rio de Janeiro e em São Paulo, o cinema
brasileiro floresce no tocante à produção de curtas-metragem jornalísticos e,
posteriormente, de longas-metragem de ficção que alimentam o imaginário social
83
promovendo um reconhecimento da realidade urbana. As atuais condicionantes
sociais e econômicas estão apresentando um entrave para a constituição de
cidades sob princípios funcionais e estéticos mais adequados para a organização
social.
A busca de um modelo de cidade foi objeto de investigação de alguns
pensadores clássicos. Platão (1973), autor da doutrina filosófica relativa à teoria
das idéias (ideais, formas e arquétipos), apresenta o argumento de que as idéias
são objetos imutáveis e eternos do pensamento e que a realidade, nada mais é do
que uma cópia ou uma transformação (deterioração) da fonte original. Os
princípios superiores são elementos que servem de parâmetro para a composição
da realidade.
Platão (1973) configura seu conceito de cidade-modelo a partir de quatro
virtudes principais que norteiam a organização social em seu processo de
demarcação do espaço urbano: a sabedoria – conhecimento inspirado em idéias
divinas e humanas e pertencente à classe dos chefes (filósofos) que a dissemina
para toda a sociedade; a coragem – qualidade relacionada aos auxiliares dos
chefes, os guardiães do dogma da cidade (guerreiros); a temperança – virtude
caracterizada como um elemento mediador a todas as classes, estabelecendo
uma prática de moderação entre elas; e a justiça – a faculdade que constitui a
base das outras virtudes, fonte de ordem e força sociais, princípio inspirador da
divisão do trabalho e da especialização das funções, visando ao progresso moral
da sociedade.
As virtudes apresentadas por Platão são configuradas a partir da divisão de
classes e de uma estrutura político-econômica que qualifica o destino da cidade:
A ventura da cidade é, além do mais, condicionada por seu estado econômico. A cidade feliz não deve ser demasiado rica, nem demasiado pobre, pois, enquanto a riqueza engendra a ociosidade e a moleza, a pobreza faz nascer a inveja e os baixos sentimentos, sempre acompanhados de um triste séqüito de desordens. Quanto ao território, o justo limite intransponível é o que conserva ao Estado a sua perfeita unidade. (PLATÃO, 1973, p. 25)
84
O caráter pragmático do estabelecimento das virtudes apresentadas por Platão
não tem o objetivo de promover apenas uma afirmação econômica e social, e, sim,
o de conformar um universo moral para o conjunto da sociedade segundo os
princípios de justiça social. A sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça
aparecem como virtudes a serem promovidas no interior da estrutura social da
cidade no intuito de constituir a base para a criação de um espaço que possa
manter e atualizar os princípios éticos e morais que inspiraram a formação da
sociedade, a forma do espaço reflete os princípios elaborados no plano das idéias.
O imaginário urbano é uma fonte geradora de idéias e imagens que é
sistematizada sob uma ordem material e política instauradora de um
processo de ressignificação da fonte criadora.
Apesar de correlacionar o espaço da cidade à princípios (virtudes) que
regem o espírito da organização social, Platão sistematiza de maneira rigorosa as
classes sociais da cidade ideal: filósofos, guerreiros, artífices e agricultores. Ele
subestima os movimentos e os desafios naturais do funcionamento da pólis,
aprisionando as funções humanas e sociais de forma centralizadora, fixa. A
dinâmica do crescimento urbano: a variedade, o conflito e a desordem natural de
certas experiências sociais, não é levada em conta em seu projeto de
aprimoramento da vida na cidade. A diversidade cultural da experiência urbana é
um dado fundamental para o engrandecimento da consciência do homem em seu
cotidiano, revelando novos significados que não estão previstos em um modelo
rígido de sociedade.
O olhar sagrado de Regina (Fernanda Montenegro), em O Outro Lado da
Rua (2004) de Marcos Bernstein, em relação ao que ela acredita ter visto a
impulsiona ao longo de uma trajetória marcada pela aproximação com o outro –
Camargo (Raul Cortez), e pela libertação do seu olhar e do seu corpo. A cidade
dura, traiçoeira, real, aos poucos vai dando lugar a uma cidade “ideal”, no sentido
de ainda poder se experimentar algo da ordem do afetivo em um universo
desregrado em virtudes, mas que ainda pode estabelecer um equilíbrio na
organização social.
85
A cidade “ideal” de O Outro Lado da Rua tem a forma de uma ilha isolada
que pode coexistir dentro de um oceano repleto de ameaças sociais e morais, ela
se tornou uma cidade “possível” em relação a um grau de tolerância e
coexistência à cidade real. As virtudes propagadas por Platão se situam no
imaginário social e são apenas referências isoladas para um modelo de cidade de
nosso cotidiano.
Na realidade, não existe a possibilidade de um modelo ideal de cidade. Por
ser um organismo em constante processo de mudança decorrente da diversidade
das variáveis econômicas, sociais, políticas e culturais, a cidade se constitui como
um organismo “imprevisível” nas repercussões da forma e da função determinadas
a priori.
Segundo o historiador de religiões Mircea Eliade (1907-1986), pesquisador
da linguagem dos símbolos nas religiões, em sua obra Mito do Eterno Retorno
(1992), o espaço da cidade na Antigüidade era um espaço de natureza do sagrado
visto que o homem tradicional, na articulação com o seu meio social, reportava-se
à mitos - à padrões arquetípicos, que se configuravam com base na idéia de
semelhança ao “centro do mundo”, que aparece como uma região considerada
realidade absoluta, cuja constituição se dá quando ocorre a imitação ou a
repetição de um arquétipo. O imaginário da cidade alimenta a construção do
cotidiano da sociedade enquanto acervo estabelecido a partir de valores
ancestrais. O sentido do sagrado mantém a sociedade em um “tempo eterno”, de
manutenção da vida - o espaço sagrado; em contraposição ao espaço profano,
que se constitui em um universo distante do conhecimento superior, espaço que
se caracteriza por um esvaziamento de referenciais religiosos e culturais
significativos para a organização social.
Na realidade, a repetição de um arquétipo é a manutenção do ato divino de
criação, onde o caos se transforma em cosmos. A permanência do ritual no
mundo primitivo se deu com base no protótipo divino - cidade celestial , situada
em uma “região ideal da eternidade”. Eliade declara:
86
As cidades também têm protótipos divinos. Todas as cidades babilônicas tinham seus arquétipos nas constelações. (...) Não só existe um modelo que precede a arquitetura terrena, mas o modelo também se encontra situado numa região ideal (celestial) da eternidade. (ELIADE, 1992, p. 20)
A natureza simbólica da cidade antiga era sagrada, sendo considerada de fato um
“espaço”, pois havia uma prática religiosa do “lugar”, uma busca antropológica de
transcendência da realidade material. A cidade tinha um caráter rico em
subjetivações que a transformava em um grande santuário, repleto de
apropriações para a permanência da representação da cidade celestial no mundo
físico. O imaginário urbano era o próprio locus do espírito divino, influenciando a
elaboração da matéria e mostrando através dela a presença do sagrado no
cotidiano.
A importância da tradição para o conhecimento do papel do homem no
contexto social aparece como elemento que estabelece uma relação entre ele e
seu passado de modo a manter a continuidade e o desenvolvimento da sociedade.
A herança cultural e social constituída a partir de instituições, crenças e costumes,
e transmitida pela história oral e escrita, é uma fonte que alimenta o imaginário
social apresentando material para a aquisição de inovações e para o
estabelecimento de novas elaborações da realidade.
O sentido do momento histórico do homem reside no valor da tradição e na
forma com que ele ressignifica sua herança frente ao tempo presente. Segundo
Eliade (1992), podemos, então, nos referir ao momento do Homem Tradicional,
aquele que vive o “tempo mítico”, de natureza cíclica, distante do materialismo
histórico; e ao momento do Homem Moderno, sintonizado com o “tempo concreto”,
histórico, atento ao valor dos acontecimentos, das constantes novidades que
surgem em seu mundo. A produção simbólica do Homem Tradicional se constitui
como elemento de comunicação com o sagrado, no intuito de trazer e manter no
espaço da cidade os princípios divinos e éticos, permitindo que a organização
social seja a base da justiça e do conhecimento. Por outro lado, a conformação
simbólica do Homem Moderno é de natureza profana, estritamente ligada aos
fatos históricos, sem contrapartida com um referencial que transcenda ao
87
materialismo ideológico e econômico. Desta forma, percebemos que o símbolo é
manipulado a favor de certos grupos sociais, não contribuindo para a efetivação
genuína do perfil identitário da sociedade moderna. O distanciamento de valores
absolutos impede a regulação da vida social e conduz a um processo de alienação
que afasta o indivíduo de sua fonte superior de vida.
A cidade e o homem guardam em suas origens a influência do poder do
mito que atua como elemento que dá sentido e fornece subsídios éticos e morais
para o desenvolvimento de suas trajetórias. Os embates cotidianos estão a todo o
momento se reportando aos mitos ancestrais e fornecendo material para o
redimensionamento da vida humana. As “marcas de origem” (mitos) estão
presentes no imaginário do homem e são reelaboradas com o objetivo de ampliar
a capacidade de transformação do ambiente social e cultural. O mito, através de
suas narrativas repletas de significados simbólicos, engendra no cotidiano do
homem a possibilidade de se efetivar uma transcendência dos valores materiais
que enrijecem a produção espontânea de material significante.
Os mitos vividos pelos personagens que aparecem nos filmes em análise
podem provocar uma transformação, uma superação, da ordem do humano,
levando a um suposto “final feliz” – o caso de Regina e Camargo em O Outro Lado
da Rua, ou a um “final trágico” – a superação intelectual de Nietzsche em Dias de
Nietzsche em Turim que o leva à loucura.
As “marcas de origem” (mitos) podem, também, apenas oferecer uma
vivência retrospectiva da vida de um grupo social levando a um questionamento
do que foi vivido e de suas marcas afetivas, culturais e sociais, é o caso de
Gustavo e de sua geração em O Príncipe. Desta forma, o mito na trajetória desses
personagens promove a vivência do sagrado, a possibilidade do exercício de
superação e de reconhecimento do que foi possível viver.
88
2.3. O corpo na prática do espaço
O homem urbano no processo de apropriação da cidade produz em seu
cotidiano um imaginário que atua como um universo unificador de consciências,
constituidor de idéias, imagens, ações e sentimentos. Esse universo tem como
base uma estrutura social, onde os objetos e os fatos urbanos se estabelecem a
partir de ideologias com objetivos determinados por um percurso de práticas e de
sistematização de idéias.
A cidade se apresenta como um símbolo, um instrumento conformador de
mentalidades, ela não desempenha somente a função de um objeto estético, mas,
também, de um elemento psicossocial, que desperta reações que tanto
configuram a consciência humana e estabelecem um registro de natureza
psicológica, quanto atribui ao homem a determinação de um novo sentido de
espaço, fruto de um processo de apropriação. O historiador Maurice Halbwachs
em A Memória Coletiva (1990) declara:
Quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem. Ele se fecha no quadro que construiu. A imagem do meio exterior e das relações estáveis que mantém consigo passa para o primeiro plano da idéia que faz de si mesmo. Ele penetra todos os elementos de sua consciência, comanda e regula sua evolução. (HALBWACHS, 1990, p. 133)
Temos, então, uma troca permanente de impressões e ajustes que (re) alimentam
a função do símbolo urbano, a qualidade da experiência do homem no espaço
produz transformação e/ou manutenção de formas e intervenções urbanas
instituídas. O símbolo vai se redimensionando de acordo com o momento histórico
e o perfil psicológico do grupo social. O espaço praticado leva a uma reelaboração
do imaginário social e sua respectiva produção simbólica, onde o homem ao
praticar o lugar estabelece um caminho de novas formas urbanas que irão instituir
um novo discurso, no qual o modo de narrar simboliza a qualidade da
transformação social. As narrativas do universo urbano refletem um estado de
percepção resultante do impacto da cidade no corpo humano.
89
Os relatos do cotidiano urbano organizados pelo homem demarcam um
diálogo permanente que constitui uma elaboração simbólica. O teórico colombiano
Armando Silva em sua obra Imaginários Urbanos (2001), cujo trabalho abrange a
arte, a cidade e os meios de comunicação, comenta sobre a experiência da
narrativa urbana:
Se alguém vê um aviso, se deduz o seu sentido ou se responde com atos reais a uma motivação urbana, em todos os casos fala com a cidade. Se caminha em alguns roteiros em vez de outros, se segue um caminho ou decide abordar um ponto da cidade a certa hora da manhã ou à noite, fala com a cidade. (SILVA, 2001, p. 77)
O processo de comunicação entre o homem e o espaço urbano promove uma
ressignificação permanente da forma e da intervenção urbanas constituindo,
assim, um redimensionamento da produção imaginária e simbólica. O diálogo
entre eles alimenta a dinâmica da “rede de relações sociais” que amplia o olhar do
sujeito em relação aos diversos elementos constitutivos da vida urbana. A prática
de comunicação, a apreensão da realidade, o aprofundamento da percepção do
homem em relação ao seu universo físico e cultural e a respectiva instituição de
novos significados aos diversos elementos compõem a forma e o sentido da
cidade. A qualidade do conteúdo da experiência urbana influencia o destino da
organização e do funcionamento da sociedade ao longo de seu percurso histórico.
Em O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti o personagem Mário (Ricardo Blat)
é o porta-voz da desordem social e urbana que passa a sociedade brasileira, a
desintegração mental vivida por ele na realidade aponta para a importância de se
transformar a vida nas grandes cidades. Mário tem consciência do caos no qual
nos encontramos, ele fala com a cidade e se comunica com a paisagem ao seu
redor. Em um dos momentos do filme percebemos sua preocupação em relação à
qualidade de vida na cidade de São Paulo. Ele conversa com Gustavo sobre a
Rua Morato Coelho na qual eles residem: “Já viu a velha rua? ... Então espera
para ver o resto da cidade. Um monte de bosta e uma paisagem toscana na
primavera dessa cidade! Você vai ver!”. A loucura de Mário não o impede de
90
vislumbrar novos caminhos e necessidades e reconhecer a degeneração da
paisagem urbana decorrente da alienação e do descaso dos que habitam e
produzem no espaço da cidade.
A chegada de Gustavo depois de 20 anos morando em Paris e o seu
espanto diante da descaracterização física e social da Rua Morato Coelho
simboliza o estado atual da fisionomia (da imagem) das cidades brasileiras. O
desequilíbrio mental de Mário é o reflexo de uma paisagem social doente no
tocante à sua forma e à organização de seus conteúdos sociais e culturais.
Segundo a avaliação do próprio Mário o que ele está sofrendo se rotula de um
“desabamento central da alma”, a cidade, assim, passa por um processo de
“desabamento” de sua paisagem, de seus princípios estéticos e sociais. A falta de
comunicação do homem com o meio ambiente urbano tem configurado paisagens
desbotadas, desprovidas de identidade, as paisagens das cidades já não
conseguem ser mais fontes de inspiração para a vida de seus habitantes.
O imaginário, como um dado fundamental da experiência humana, institui
uma intermediação entre dois universos paralelos e complementares: o universo
do indivíduo e do grupo e o contexto no qual eles se dispõem como agentes
sociais. Esta contextualização, que é resultado da própria ação do grupo social, se
constitui em uma reformulação permanente para o grupo, formando uma rede
complexa, na qual seu desenvolvimento ocorre de forma constante através de
novas configurações e atribuições que o homem e os universos físico e cultural
afirmam em correspondência às novas reapropriações.
A regulação da vida coletiva através do imaginário social demarca a
importância de se produzir determinados símbolos, visto que: “(...) os imaginários
sociais repousam sobre o simbolismo que é, ao mesmo tempo, sua produção e
seu instrumento” (BACZKO, 1984, p. 18). A constituição simbólica no espaço
urbano estabelecido tem o intuito de identificar ideologias que estão representadas
através de obras e elementos arquitetônicos. Percebemos a marca política em
determinadas obras que expressam a forma como o Estado interpreta a realidade
e marca sua presença na história. O lado monumental da arquitetura exprime o
91
pensamento e o desejo de seus promotores em estabelecer uma presença
suprema da afirmação humana. Como afirma o teórico da Nova História Cultural
Bronislaw Baczko (1985), o imaginário social é um epifenômeno do real, ele se
materializa através das formas e das idéias produzidas pelo homem. A cidade é
um instrumento de leitura da mentalidade de quem exerce o poder de instituí-la
enquanto objeto estético e social. Baczko prossegue:
Todas as cidades, são, entre outras coisas, uma projeção dos imaginários sociais no espaço. A sua organização espacial atribui um lugar privilegiado ao poder, explorando a carga simbólica das formas (o centro opõe-se à periferia, o acima opõe-se ao abaixo). A arquitetura traduz eficazmente, na sua linguagem própria, o prestígio que rodeia um poder, utilizando para isso a escala monumental, os materiais, etc. (BACZKO, 1985, p 313)
A memória de uma cidade se constitui a partir da história de seus elementos
materiais que produzem símbolos representativos da mentalidade social. Os
símbolos urbanos – os monumentos, as obras arquitetônicas e os sítios urbanos e
paisagísticos são elementos de produção do imaginário de uma sociedade e
formam a referência para o estabelecimento de uma linguagem que promova a
troca de idéias e de experiências sobre o percurso da cidade, o rumo que ela está
percorrendo ao longo da história. A cidade é a expressão maior do universo
subjetivo das relações humanas e sociais na busca de um espaço que seja um
elemento funcional e simbólico representativo da vida urbana.
A subjetividade do elemento concreto - a forma urbana, propicia um
discurso que conforma, de modo subliminar, o inconsciente do homem. A matéria
demarca no inconsciente impressões que irão redimensionar o pensamento e a
ação do homem em seu cotidiano. A linguagem humana é sistematizada através
de símbolos identificadores de experiências situadas em um determinado espaço
que é o universo no qual o homem elabora seu inconsciente a partir de
determinantes individuais e sociais, ele redefine o espaço com base em uma
experiência particular de elaboração de seus conteúdos internos.
No intuito de alcançarmos um estágio de significação pertinente entre o
homem e o espaço, urge a necessidade do reconhecimento da cidade enquanto
92
símbolo psicossocial, de uma explicitação afetiva em relação ao seu corpo. O ato
de deflagrar o afeto do homem em seu espaço cotidiano sistematiza uma prática
de sedimentação de elementos formadores da identidade do objeto urbano,
delimitando um quadro imagético identificador dos valores socioculturais da
sociedade, o afeto materializa intenções e promove o transbordamento dos
conteúdos espirituais do objeto desejado.
A linguagem do corpo da cidade está diretamente relacionada à linguagem
do corpo do homem. Richard Sennett em sua obra Carne e Pedra (1997), na qual
apresenta uma nova história urbana através da experiência corporal, estabelece o
argumento de que:
Em geral, a forma dos espaços urbanos deriva de vivências corporais específicas a cada povo: este é o meu argumento em Carne e Pedra. Nosso entendimento a respeito do corpo que temos precisa mudar, a fim de que em cidades multiculturais as pessoas se importem umas com as outras. (SENNETT, 1997, p. 300)
O corpo marca o tecido urbano com uma carga de sofrimento, uma energia afetiva
que engendra novas configurações, funções, reformulando a cultura do espaço. A
cidade se justifica a partir do corpo do homem em suas constantes intervenções
cotidianas, na incorporação de mitos de seu “mapa”, ou seja, na constituição de
um verdadeiro “percurso” humano, de acordo com Certeau (1994). O “percurso” se
apresenta como um instrumento antropológico, um ato de enunciação, que se
constitui ao longo do “mapa”, do aparato físico no qual se dá a narrativa urbana.
A idéia de Sennett de que a vivência do homem, o choque do corpo no
tecido urbano, influi na forma das cidades, nos leva a pensar a respeito das
relações entre os corpos humanos na prática do espaço, a importância da
qualidade do contato na instituição de formas urbanas significantes. A carga
afetiva resultante das experiências dos diversos percursos ao longo do espaço da
cidade apresenta uma tipologia que sugere determinados estados de espírito.
Temos espaços de contemplação (parques e praças), tensão (favelas e
complexos penitenciários), alegria (praias e bares), tristeza e dor (cemitérios e
hospitais), reflexão (centros de cultura). O homem é influenciado pela forma e pela
93
função dos espaços que organizam a vida da cidade, como também ele subverte,
redimensiona o seu sentido original. A prática do espaço institui um imaginário
próprio à produção cultural do homem no percurso histórico de desenvolvimento
das qualidades sociais e humanas.
O corpo e a mente de Nietzsche (Fernando Eiras) em Dias de Nietzsche em
Turim (2001) de Julio Bressane invadem a arquitetura e a cidade italianas
promovendo um encontro de mentalidades barrocas, “Eis a cidade de que eu
precisava nesse momento ... Esta é uma cidade feita por encomenda para mim ...”
O potencial de arte e de pensamento de Nietzsche reverbera diante de espaços
que geram reflexão e contemplação. Após dez anos de expedições por Sorrento,
Gênova, Veneza, Zurique e Nice, ele reconhece que Turim “era o primeiro lugar
onde ele era possível” (CHAMBERLAIN, 2000, p. 58).
O clima, a arquitetura e a cidade são elementos que aceleram a idëia de
“vontade de potência” preconizada por ele. O encontro (o choque) entre o corpo
de Nietzsche e o corpo de Turim desencadeia o processo de explosão do
imaginário do filósofo: “Eu não sou um homem, sou uma dinamite”.
Os mitos gregos – Apolo (a arte) e Dionísio (o êxtase) inspiram e regem o
percurso de Nietzsche ao longo de Turim. Esta cidade digna, severa, uma
verdadeira residência do século XVII com seus 300 mil habitantes, é o cenário
para a vivência do ritual de seu corpo no espaço. A contemplação do belo o leva
ao êxtase diante da arquitetura e da cidade e da produção do pensamento. A
vivência dos mitos de Apolo e Dionísio é o insumo para a constituição de um
“percurso” celebrado pela arte e pelo pensamento. A geografia de Turim – o
“mapa da cidade”, o “lugar” no qual o filósofo passa por um exercício da ordem do
afeto, do belo e da razão, elementos que produzem uma prática do espaço e que
instituem uma forma urbana sagrada em seus princípios estéticos e funcionais.
A “expedição filosófica” transcorrida em Turim se utiliza da estética da
arquitetura, da cidade e da natureza para o exercício do papel de filósofo que é o
de “superar em si seu tempo, tornar-se atemporal”. O imaginário de Nietzsche se
enriquece ao se defrontar com o imaginário social de Turim materializado em cada
94
pedra da cidade, as pedras dos edifícios barrocos são a marca e o arquivo do
espírito de uma civilização.
95
Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane
Nietzsche observa e interage com a arquitetura
A expedição de Regina (Fernanda Montenegro) em O Outro Lado da Rua
(2004) de Marcos Bernstein é da ordem do visual visto que ela espia o outro em
busca de delação. Da sua janela com a ajuda do binóculo Regina espreita
Camargo (Raul Cortez) em um suposto crime. Na realidade, ela é vítima de uma
cilada armada pelo seu próprio ofício, a espiação de Camargo é o pretexto para
ela se aproximar de seu desejo, de se entregar ao outro e conquistar a liberdade.
96
O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein
Regina espia Camargo em seu apartamento.
O corpo tenso e deprimido de Regina enquadrado na janela de um edifício
de uma grande cidade é um corpo-objeto, um organismo passivo, à espera de um
outro olhar, de um outro corpo desejante, o corpo dela no apartamento é mais um
objeto de uma cena marcada pela solidão e pela tristeza. Por outro lado, o corpo
de Regina no espaço da cidade é ativo, ágil no movimento e malicioso no
pensamento. A passagem do universo privado (o apartamento) para o público (a
cidade) é feita sob um olhar inquisidor da realidade urbana, ela sai à busca de um
sentido de justiça no trato social, reflexo de seus desencontros afetivos e
familiares.
97
O “mapa” do cotidiano de Regina se restringe às ruas e à praia de
Copacabana, áreas próximas ao seu apartamento – uma “caverna-símbolo” da
exaltação do olhar e do corpo oprimido. A prática do “lugar” de Regina está
associada a uma vivência da cultura do perigo e da desconfiança pelo outro, ela
se expõe a cada momento de sua jornada. O “percurso” criado por ela se estrutura
a partir de um combate de corpos, mentes e afetos subordinados às ameaças de
um imaginário urbano em guerra. Vemos, então, um “espaço” retraído que
segrega os seus habitantes em apartamentos confinados, à espaços públicos
cercados e rotulados por um tipo de necessidade social – a praça dos velhos e o
submundo das casas noturnas onde mora o “perigo”. Copacabana de O Outro
Lado da Rua é o lugar de corpos em constante processo de exaltação e sujeitos a
uma demanda social oriunda de um espaço de tensão como a favela localizada no
bairro.
A favela, enquanto espaço de tensão social, evidencia a experiência
brasileira através de uma expressão urbanística que simboliza uma dívida social
marcante para as classes menos favorecidas. O aglomerado de subabitações,
sem infra-estrutura, denominado favela começa a se formar no Rio de Janeiro no
começo do século XX, mais especificamente nos anos 40 e 50, devido à migração
das populações das zonas rurais para a cidade. Este fenômeno é universal e
reflete a marcha de urbanização acelerada ocorrida no mundo após a Segunda
Guerra Mundial. Na realidade, a primeira favela do Rio de Janeiro surge em 1897
no morro da Providência, antigo morro da Favela, ocupado pelos ex-combatentes
da Guerra dos Canudos. Os morros cariocas tornam-se locais de assentamento
de comunidades organizadas fora dos padrões construtivos e urbanísticos.
A ausência de uma política habitacional tem levado a população de baixa-
renda a ocupar áreas sem uma infra-estrutura adequada para a subsistência
humana. O corpo de um habitante de uma favela é carregado de ameaças que
partem do seu próprio espaço – a pobreza, a violência e a falta de infra-estrutura,
e da sociedade que o rotula como um corpo segregado, marcado por uma
diferença que desorganiza a ordem social. Por outro lado, a forma do espaço da
98
favela fortalece o corpo exigindo dele uma performance vertiginosa (do
movimento) na prática cotidiana. As ruas estreitas, íngrimes e sinuosas
demandam agilidade, malícia e ritmo do corpo do habitante da favela em seu
percurso. A proximidade característica entre os elementos arquitetônicos e
urbanísticos produz um tipo de vida marcado por um alto grau de sociabilidade.
A natureza do espaço da favela é da ordem do movimento – o movimento
social, do corpo, da geografia e do espaço arquitetônico e urbanístico. A arquiteta
e pesquisadora Paola Berenstein Jacques em seu livro Maré, vida na favela
(2002) tem como objeto de investigação a dinâmica do movimento do corpo no
universo do espaço da favela. O percurso vivenciado ao longo dos becos e ruelas
das favelas produz uma ginga própria à experiência corporal em um “espaço-
labirinto” que transforma o corpo em um elemento que produz um desenho no
espaço. A pesquisadora comenta sobre a natureza do espaço da favela:
As favelas são espaços em movimento. A idéia de espaço em movimento não estaria mais ligada apenas ao próprio espaço físico mas sobretudo ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo e, ao mesmo tempo, ao movimento do próprio espaço em transformação. O espaço em movimento é diretamente ligado a seus atores (sujeitos da ação), que são tanto aqueles que percorrem esses espaços no cotidiano quanto os que os constroem e os transformam sem cessar. (JACQUES, 2002. p. 56)
A narrativa urbana se constitui através da palavra e do movimento do corpo que
nomeiam a forma e o sentido dos lugares em um processo de criação de uma
identidade representativa da cultura e do imaginário da cidade. O corpo é o
protagonista da prática do espaço cuja presença elabora a todo momento novas
leituras e criações acerca de um momento pulsante da realidade urbana. O
movimento orgânico do corpo no espaço da favela aparece como uma
contrapartida do movimento contido do corpo no espaço urbano tradicional. O
desenho de uma cidade é resultante do percurso do homem na busca de
otimização de suas ações cotidianas.
A prática do espaço é conseqüência de um processo de experimentação da
imagem da cidade e da própria imagem do homem. O caráter familiar que o sujeito
99
passa a estabelecer com sua imagem possibilita uma ruptura do sentimento de
estranheza consigo mesmo, e uma difusão de um sentido de transparência com
relação ao outro. O sistema social se torna permeável às trocas afetivas e
promove um revigoramento da estrutura como um todo, que passa a justificar e
valorizar o papel dos elementos participantes. Desta forma, a cidade se apresenta
como uma tela viva, pronta para sofrer a realização de leituras e apropriações
simbólicas.
A subjetividade peculiar da relação entre o homem e a cidade evidencia,
sob o ponto de vista da corporeidade, um sentido de uma imagem pessoal – o
corpo humano, que se dissemina através do espaço subjetivo da cidade, o qual é
considerado como o macro-corpo do homem. A apropriação corpórea se constitui
quando o sujeito é integrado ao seu corpo original, assimilando todas as
correlações entre os conteúdos subjetivos e objetivos concernentes a ele, e
projetando no corpo da cidade, a carga individualizadora de sua experiência. A
manifestação do fator inconsciente na estrutura corpórea é redimensionado no
objeto urbano, no qual seu conteúdo passa a ser vitalizado, sofrendo um
tratamento objetivo, marcado por elaborações que não poderão ocorrer sem uma
contrapartida da estruturação simbólica, da própria subjetividade que emana da
cidade.
As produções cinematográficas apresentam um imaginário urbano
concentrado em cenas que mostram o processo de construção de símbolos no
tempo e no espaço de uma narrativa. O corpo da cidade e dos personagens são
símbolos representativos do imaginário social expressos pela estética do cinema e
que ampliam o significado da realidade urbana.
2.4. Esquecimentos e criações
Os elementos e os fatos procedentes do imaginário e representativos de
uma corrente ideológica definem papéis e funções que são incorporados aos
100
mecanismos de organização e de funcionamento da cidade. A cidade estabelece
em sua geografia uma tipologia física e cultural, algumas vezes assimilada de
forma radical pela sociedade, que pode impedir a reformulação de sua estrutura,
dos objetos urbanos conceitualmente estabelecidos, obstaculizando uma nova
configuração que tenha como meta o redimensionamento do espaço. Desta forma,
o acervo subjetivo (o imaginário) se torna refém dos mecanismos de organização
social. A implementação de uma proposta urbana deve ter como origem o campo
do imaginário social, não podendo se esquecer de que a nova proposta deve ser
pertinente às reais necessidades da sociedade. Algumas medidas técnicas são
necessárias para o desenvolvimento do espaço urbano no que se refere ao início
de um processo de mudanças sociais e culturais.
Segundo Halbwachs (1990), a expropriação, que é um instrumento legal de
retirada da posse de um bem imóvel para o uso coletivo, aparece como um fato
necessário para a evolução urbana, responsável pela dinâmica do processo de
transformação do espaço da cidade. A reformulação de parte da imagem já
estabelecida é uma forma da cidade poder atender às mudanças do uso do solo e
às novas perspectivas culturais e sociais. Essa medida permite que se possa
trazer do imaginário social elementos que irão redimensionar a forma e o sentido
do objeto urbano, o imaginário social alimenta a realidade e, ao mesmo tempo,
reconfigura seu próprio universo gerador de novos significados sociais.
O sentido do esquecimento no processo de reformulação do espaço da
cidade é um insumo importante no que se refere à reconfiguração da memória
social. O ato de expropriar, de implementar novos projetos urbanísticos,
paisagísticos e arquitetônicos, significa promover o esquecimento de
determinados elementos impróprios a um momento histórico e reencaminhar o
que deverá fazer parte do acervo material e ideológico da sociedade. A cidade não
se sustentaria enquanto objeto social se não houvesse uma apropriação de novos
conteúdos sociais e econômicos que vão surgindo.
O esquecimento é uma marca do processo de desenvolvimento humano. A
conquista de novas experiências requer a vivência de libertação das amarras da
101
memória, dos abusos que ela sofre e pode gerar ao homem. O psicanalista inglês
Adam Phillips em seu artigo A Memória Forçada (2005) discorre sobre o sentido
de uma memória forçada:
A memória forçada, como toda forma de doutrinação, é na verdade medo da memória ou daquilo que pode surgir dela, caso permitamos que funcione sem interferência. Para permitir que a memória funcione como é preciso, o esquecimento é necessário; o tempo, o metabolismo, a dilação do esquecimento. Esquecer precisa ser permitido, se queremos dar uma chance à memória – memória não-manipulada, memória desregrada. (PHILLIPS, 2005)
O peso da força da memória deve ser relativizado por um esquecimento cujo
sentido é de poder dar espaço à criação, ao novo como uma decorrência de uma
história de vida, libertando o excesso de experiências trágicas que inibem e
aprisionam a esperança, a renovação. O decorrer do tempo traz a necessidade de
se livrar (esquecer) parte das impressões vividas e preencher o percurso do
homem com novas aquisições que irão se tornar material da memória. O
metabolismo humano funciona como um processo no qual os mecanismos
químicos, psicológicos e sociais transformam a realidade produzindo perdas,
esquecimentos e criações. O prolongamento do poder da memória se dá através
do esquecimento que abre um campo para a reorganização da capacidade de
registrar e lembrar de fatos do cotidiano.
A memória urbana se constrói em uma sistemática na qual ocorrem perdas
- construções são demolidas e áreas remodeladas, e aquisições - novas
construções, apropriações diferenciadas e expansões urbanas surgem no cenário
urbano. A imagem da cidade se institui a partir de visões ideológicas específicas,
onde se determina o que será transformado (esquecido) e a forma para se atingir
tal transformação. A reorganização do espaço demanda um questionamento dos
códigos instituídos e da respectiva memória instituída. O rito de passagem para
uma nova proposta espacial propiciará ao homem um estímulo ao
desenvolvimento de sua consciência, pois o sentido de ruptura levará a um
redimensionamento do tempo presente, com base no passado recente e na
perspectiva de um porvir.
102
Os elementos representativos da memória social e urbana da cidade de
São Paulo em O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti estão em crise diante de um
presente que denuncia um “esquecimento forçado” da sua história. A arquitetura
foi transfigurada, algumas vezes, apagada do ambiente urbano gerando uma
perda de referenciais do corpo da cidade que resvala no corpo do homem, a
quebra do sentido de identidade urbana repercute na dinâmica da identidade
social. O homem se vê esquecido de si próprio, mutilado, em decorrência das
perdas desqualificadas que a cidade vem sofrendo ao longo do tempo. O novo
aparece não como um ganho para o processo de desenvolvimento social, mas
como um elemento de degeneração da cidade enquanto organismo vivo. A Rua
Morato Coelho, em franco processo de decadência física e visual, o fim da poesia
e da música da Galeria Metrópole, os restaurantes e os bares nos quais Gustavo
(Eduardo Tornaghi), Maria Cristina (Bruna Lombardi), Renato (Otávio Augusto),
Mariano Esteves (Ewerton de Castro) e Aron (Elias Andreato) conspiravam por
novos rumos estéticos e sociais já não mais existem, eles se tornaram apenas
“lugares” de um passado, essa materialidade da cidade está extinta, apesar de
fazer parte do imaginário da sociedade paulista. O esquecimento (a perda) é da
ordem da matéria (objetos urbanos) e do ideal, mas a vivência do “lugar”, a
criação de um “espaço”, não será apagada da memória da geração de Gustavo. A
fonte de inspiração da criação do novo e do resgate simbólico de um momento
histórico está presente no imaginário social e pode ser ativada pelos agentes
sociais produtores do “espaço”.
103
O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti
A degeneração da Rua Morato Coelho.
As grandes reformas urbanas, as mudanças da forma e do conteúdo trazem
novos discursos com uma carga simbólica diferenciada, remanejada do universo
do imaginário social. Este é reelaborado, constituem-se novos aspectos
representativos sob um tempo histórico que estrutura um quadro imagético
urbano, símbolo do olhar de diversos segmentos sociais. As imagens produzidas
representam o discurso da própria sociedade e dialogam de forma permanente
com seus observadores, elas marcam a história de um grupo social e, ao mesmo
tempo, são responsáveis pela transformação do discurso original.
O início do século XX aparece, dentro do percurso histórico da cidade do
Rio de Janeiro, como um período de mudanças radicais no que se refere à
estrutura urbana. A Reforma de Pereira Passos – Francisco Pereira Passos (1903
–1906), que foi um dos responsáveis pelo antigo plano da Comissão de
104
Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro (1875), jamais implementado -
aparece como um marco da implantação de um espaço marcadamente capitalista,
onde a cidade sofre uma restruturação para atender às necessidades reais da
criação, concentração e acumulação de capital.
A administração de Pereira Passos representa um momento de ruptura,
fundamental na relação entre o Estado e a Cidade, mudança representativa e
acelerada da estrutura urbana, tanto em relação à aparência (morfologia urbana),
como ao conteúdo (distinção de usos e de classes sociais no espaço). A cidade se
enquadra em um novo campo epistemológico, onde as categorias sociais detêm
uma lógica de funcionamento a serviço das funções produtivas. O imaginário é
redimensionado a partir das novas formas e conteúdos idealizados para a
constituição do espaço urbano.
No novo contexto, a cidade se estrutura a partir da constituição de “bairros
burgueses” (privilegiados pelo Estado) e “bairros proletários”. A natureza do
espaço se define em termos de núcleo versus periferia, sendo a classe proletária
levada a ocupar a periferia devido às grandes demolições ocorridas nas áreas
centrais, onde passam a exercer funções diretamente ligadas à criação de uma
nova capital, símbolo de um dos principais portos exportadores de café do mundo.
O que está em jogo na “cirurgia urbana” adotada é a questão do
embelezamento da cidade, que não se refere somente a uma nova imagem
arquitetônica e urbanística, mas a um embelezamento econômico, político e
social, através da retirada da população trabalhadora do centro, apresentando
uma nova função à região central como área ligada à interesses especulativos e
comerciais, de deleite social e cultural das classes privilegiadas e da instituição da
imagem política da cidade enquanto sede do poder nacional.
O período de Pereira Passos, inspirado na concepção clássica de
Haussmann, em alusão à grande reforma urbana francesa, tem como princípio
norteador o de dar importância cada vez maior à cidade no contexto internacional,
atraindo capital e afirmando o papel político do Estado Brasileiro. A cidade se
transforma em um símbolo dinâmico da modernidade, espaço de atrações
105
culturais e econômicas que explora a expansão de sua imagem para o mundo. O
imaginário urbano criado institui um espaço que é pertinente à lógica dominante
de um imaginário globalizado.
O processo de reformulação do tecido urbano deve se efetuar a partir de
uma visão sistêmica da natureza do espaço e da sociedade. Armando Silva (2001)
classifica o espaço em quatro categorias: o espaço histórico – o local da memória
do desenvolvimento social; o espaço tópico – a estrutura física da cidade; o
espaço tímico – o processo de percepção do corpo humano em relação ao corpo
da cidade; e o espaço utópico – “(...) onde observamos os seus imaginários, os
seus desejos, as suas fantasias, que se realizam com a vida diária” (SILVA, 2001,
p. 77). A intervenção física é o resultado das diversas experiências que o homem
realiza em seu processo de apropriação do corpo da cidade, uma reforma urbana
se dá a partir da reunião das demandas materiais e espirituais da organização
social. O espaço utópico é a fonte original e sagrada de uma reforma que pretenda
viabilizar mudanças estruturais que possam aprimorar a qualidade de vida da
população.
Em Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane a cidade de
Turim, um espaço marcadamente “histórico” – uma arquitetura barroca, é o “lugar”
da prática urbana e filosófica de Nietzsche. O “espaço” criado é o resultado da
percepção e do pensamento do filósofo acerca da cidade e da natureza humana.
Percebemos claramente a importância do “espaço tímico” no qual ele explicita o
seu ponto de vista em relação à forma e à função urbanas enquanto forças
motrizes para a investigação filosófica.
A cidade não é um mero cenário da performance de Nietzsche, ela é
protagonista da cena cinematográfica apresentando força dramática para o
desenvolvimento da narrativa. A arquitetura e a cidade não aparecem apenas
como elementos estéticos (visuais), mas como portadores de um imaginário que
alimenta o imaginário de Nietzsche. Desta forma, a potência dos imaginários em
jogo estruturam um “espaço utópico” radical, pois eles se constituem a partir das
fonte genuínas da história social e cultural de Turim e da história de vida do
106
filósofo. O ato de criação filosófica se dá com base em um acervo da memória
social da cidade italiana que controla o esquecimento no sentido de que a força do
“espaço histórico” é maior do que o próprio processo de transformação do espaço
urbano.
O espaço utópico pode ser associado à categoria de “imaginário radical” do
filósofo Cornelius Castoriadis (1922-1997) apresentada em seu livro A Instituição
Imaginária da Sociedade (1982), que aparece como um imaginário fundante no
que se refere aos aspectos ontológicos, um universo no qual o autor empreende
uma reflexão sobre as raízes do ato de criação. A reflexão sobre as raízes de
criação de um imaginário particular possibilita que uma intervenção no espaço da
cidade institua uma forma que produza um processo de significações cotidianas. A
forma urbana, como um elemento representativo da materialidade coletiva,
concentra um acervo de desejos, imagens, fantasias e idéias que compõe o
conteúdo (o espírito) formador de sua matéria. A fisionomia de uma cidade é o
espectro de uma forma engendrada pelo acesso do sujeito ao imaginário social,
ela é o resultado da escrita da história, de um processo de apropriação do espaço
no qual os agentes sociais produzem significações de um determinado momento
histórico.
O acesso ao imaginário da coletividade se dá a partir de uma leitura urbana
complexa, na qual estilos, proporções e formas representam insumos para um
processo de interpretação da realidade. A forma constituída é o “imaginário
efetivo” (o acervo), um corpo de significações que demarca o “imaginário radical”,
a fonte primária de criação de realidades. A imagem da cidade é o símbolo do
imaginário social e um instrumento de narrativa de histórias da sociedade.
Segundo Castoriadis (1987):
Toda sociedade é um sistema de interpretação do mundo, e, ainda aqui, o termo “interpretação” é medíocre e impróprio. Toda sociedade é uma construção, uma constituição, uma criação de um mundo, de seu próprio mundo. Sua própria identidade nada mais é que esse “sistema de interpretação”, esse mundo que ela cria. (CASTORIADIS, 1987, p. 232)
107
A configuração urbana se apresenta como elemento estruturador de uma forma de
interpretar o mundo, um elemento simbólico escolhido pela sociedade para
explicitar e adotar como prática certos discursos ideológicos, no sentido de se
construir um campo social que reflita e justifique o poder e a ação do homem.
Elaborar uma leitura da imagem da cidade, no que se refere à forma e ao
conteúdo, significa poder interpretar o ponto de vista de uma sociedade em seu
processo de transformação permanente. A imagem urbana está impregnada de
discursos os quais constituem um sistema de comunicação dos valores
acumulados ao longo da história, ela é um acervo da história da mentalidade dos
produtores do espaço, apresentando um universo de possibilidades de mudanças
das condições físicas e sociais da cidade.
Segundo Kevin Lynch – autor de um estudo sobre a fisionomia das cidades
americanas intitulado A Imagem da Cidade (1997), enquanto sistema de
significação, a cidade proporciona ao homem a produção de uma imagem mental
que é elaborada a partir do princípio de legibilidade transmitida pela cidade. A
legibilidade urbana é um conceito constituído a partir de uma estrutura e
identidade próprias, as quais permitem ao homem demarcar um processo de
percepção legitimador do sentido e da função da cidade. A relação do homem com
o espaço urbano representa um grande arquivo da memória:
A cada instante, há mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados. (...) Cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. (LYNCH, 1997, p. 1)
A cidade propicia aos seus usuários a conformação de um percurso da memória e
de uma estrutura identitária, elementos imprescindíveis para o desenvolvimento
dos aspectos culturais e sociais da sociedade. A relação entre o homem e o
espaço é o objeto de constituição da memória urbana, cujo sentido é a produção
da história e a demarcação de um acervo relativo ao registro do percurso social.
108
O espaço urbano estabelece, além do seu papel estético e social, a
possibilidade de estruturação de uma subjetividade, de um processo de
simbolização, ele é um organismo repleto de significados:
Um cenário físico, vivo e integrado, capaz de produzir uma imagem bem definida, desempenha também um papel social. Pode fornecer a matéria-prima para os símbolos e reminiscências coletivas da comunicação do grupo. Uma paisagem admirável é o esqueleto sobre o qual muitas raças primitivas eregem seus mitos socialmente importantes. (LYNCH, 1997, p. 5)
A legibilidade da imagem de uma cidade é um instrumento ideológico que permite
afirmar, através de toda uma estruturação física, um conteúdo cultural e político
resultante da trajetória histórica da sociedade. Os elementos simbólicos
representam a abertura de um canal de comunicação com o universo social
decorrente da mentalidade de uma época, da forma de interpretar e intervir nos
diversos segmentos sociais.
O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein
A suposta cena do assassinato da mulher de Camargo
109
A busca da legibilidade da imagem que Regina (Fernanda Montenegro)
toma como meta para comprovar o que os seus olhos viram - a suposta cena na
qual Camargo (Raul Cortez) dá fim à vida de sua mulher, é o fio condutor de O
Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein.
A cena faz alusão à arte do cinema, ao enquadramento que se dá a partir
dos quadros das janelas de Copacabana. O olhar de Regina potencializado pelo
binóculo (o olho-câmera) imprime na narrativa uma referência à arte e à técnica da
imagem cinematográfica.
A performance de Regina se constitui a partir da exploração de um quadro
particular da paisagem urbana que a leva ao enfrentamento afetivo com o outro, a
investigação da legibilidade da imagem captada por ela toma o registro visual
como verdade. Ao longo do desenvolvimento da história, na aproximação com o
objeto e o sujeito da cena, o registro visual cede lugar ao registro de um corpo
pulsante em afeto. O encontro entre Camargo e Regina traduz a legibilidade da
imagem em contrapartida com a legibilidade do corpo em processo de atração.
O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein
A realização do afeto entre Regina e Camargo.
110
A fisionomia dos espaços e dos personagens urbanos demarca um quadro
de rostos e de expressões que se situa na superfície, na forma. A expedição do
olhar de Regina nos mostra o seu processo de transposição das superfícies em
direção ao significado e ao conteúdo das formas-personagens da cidade. Os
corpos da cena, então, ultrapassam o sentido de meros objetos emoldurados e se
tornam sujeitos da paisagem.
As transformações urbanas ocorridas ao longo da história implicam em uma
reformulação da imagem da cidade, uma diferenciação em sua legibilidade, na
forma de percepção do homem frente a um novo cenário e aos códigos
estabelecidos pelos organizadores da ordem vigente. Elas demarcam uma
revolução cultural que constrói um novo mapa para o caminhar do homem no
processo de incorporação de mitos, transformando o “mapa” em “percurso”, e
valorizando a memória da cidade, enquanto projeto de constituição da identidade
social.
A marca identitária de uma cidade, o que a caracteriza como elemento que
concentra valores culturais e sociais próprios, é uma possibilidade de se
interpretar o mundo, um elemento representativo do imaginário social. O caráter
rigoroso da permanência não deve ser associado à questão identitária, pois esta
se constitui em uma base transitória, em constante processo de (re) construção,
sendo moldada de acordo com a vivência das classes sociais e políticas. A
dinâmica cultural e psicológica da sociedade apresenta a todo o momento novos
processos de ressignificação que irão promover formas diferenciadas de olhar o
mundo, um novo olhar sobre a realidade significa poder reestruturar a identidade
do indivíduo e do grupo. A contemplação da paisagem urbana possibilita ao
homem um mergulho no universo do imaginário, a vivência de um processo de
acesso ao passado e de vislumbramento de um por vir. O mergulho contemplativo
possibilita a ele se deparar com diversas cidades, realidades diferenciadas de um
percurso de formação da identidade social.
A cidade vigiada de O Outro Lado da Rua, a cidade degradada de O
Príncipe e a cidade amada de Dias de Nietzsche em Turim são exemplos de
111
cidades que se apresentam como símbolos de uma determinada realidade social,
o processo de construção de suas identidades é decorrente da vivência e do
percurso dos personagens envolvidos na narrativa dos filmes em análise. A
instituição da forma cinematográfica, mais especificamente a formulação e a
implementação de um projeto que cria e produz a forma urbana no cinema,
apresenta os ambientes e as fisionomias de lugares e de personagens que são
insumos para o ato de criação de um olhar sobre uma história a ser contada.
112
Capítulo III
Ambientes e fisionomias: a forma cinematográfica
... e a entonação é a coisa mais importante na arte. Aleksander Sokurov
113
3.1. A imagem do cinema: uma estética reveladora
O século XX demarca em seu percurso histórico o surgimento de uma
civilização da imagem caracterizada por uma multiplicação abundante de formas
expressivas. A imagem é um poderoso símbolo cultural, psicológico e estético que
estimula a produção imaginária da sociedade, no sentido psicossocial, a imagem –
do cinema, do vídeo, da televisão ou do próprio cotidiano da vida urbana – é uma
projeção do universo interno e social do homem. Esse acervo de imagens é o
espelho da realidade humana, a forma que ocorre a identificação com o mundo e
a respectiva manutenção da vida sensorial. Elaborar os seus conteúdos é
conectar-se com o imaginário social, pois a imagem é capaz de deflagrar símbolos
que permitirão a expansão do pensamento, fazendo emergir novas percepções e
sentimentos.
O sentido de uma imagem reside em um processo de apropriação de um
conjunto de representações que identifica uma narrativa, e apresenta uma série de
acontecimentos que são representados pela transformação do espaço e do tempo
em imagem. A construção de uma narrativa é a instituição de uma história
reveladora de significados assimilados a partir de uma encenação, a marca da
cena é o registro do movimento dramático dos personagens em sua relação com o
espaço e os objetos que demarcam um lugar imaginário.
O homem se desenvolve através de estímulos visuais, e nada melhor que a
obra cinematográfica para despertar questões fundamentais para o
aperfeiçoamento individual e social. A imagem do cinema se constitui através de
uma narrativa que articula o plano e a seqüência de planos que compõem uma
linguagem de representação do espaço e do tempo diegéticos – os fatos relativos
à história ficcional. O conjunto de significantes da linguagem cinematográfica
caracteriza uma estética que cria um modo próprio de se observar o objeto fílmico,
ela proporciona um redimensionamento dos padrões éticos e morais da
114
sociedade, engendra um novo olhar e promove uma ressignificação da forma de
interpretar o mundo.
A correspondência entre o estético e o ético faz parte do sentido de uma
verdadeira obra de arte. O cineasta russo Andrei Tarkovski (1932–1986)
reconhecido por uma produção que considera o cinema como uma arte temporal,
cuja tarefa é registrar e desvelar a realidade do tempo, comenta em seu livro
Esculpir o Tempo (1990) sobre a correlação entre o estético e o ético:
A busca da perfeição leva um artista a fazer descobertas espirituais, e a empregar o máximo de esforço espiritual. A aspiração ao absoluto é a força que impele o desenvolvimento da humanidade. Para mim, a idéia de realismo na arte está ligada a esta força. A arte é realista quando se empenha em expressar um ideal ético. O realismo é uma aspiração à verdade, e a verdade sempre é bela. Neste ponto, o estético e o ético coincidem. (TARKOVSKI, 1990, p. 133)
A arte é um elemento de representação do mundo que conduz a um despertar da
capacidade de apreciação sobre a qualidade da experiência humana; ela eleva o
espírito do homem a um estado superior de transformação da realidade. O ideal
ético da arte institui um caminho de mudança da sociedade no qual o belo é a
expressão e o desejo de se poder aspirar a uma verdade que justifique a presença
no mundo. A questão ética na obra cinematográfica de Tarkovski passa pela
realidade do espectador em produzir uma experiência do tempo, o qual é
considerado pelo cineasta como um estado de apreensão do registro dos
acontecimentos. Ele trabalha o ritmo do filme na própria modulação temporal, e
não no processo de montagem, isto é, como uma técnica de criação que institui
um tempo próprio. A estética do cinema se configura como um caminho de acesso
à verdade da dimensão da vida e do espírito ampliando o olhar de quem
contempla a obra. O valor ético na arte de Tarkovski corresponde a uma crença no
tempo enquanto elemento de produção do sentido da vida, sua apreensão é o
mergulho no universo da imagem no qual o infinito se apresenta, para o
espectador, como um modo arrebatador de pensar e de sentir as imagens em
movimento.
115
O espectador diante do objeto fílmico se conecta com o universo imaginário
produzindo pensamento e criatividade que transformarão a realidade a partir de
uma experiência vivida do real. Esta experiência institui um entrecruzamento entre
a estética do homem e a do objeto artístico (o filme), uma intersubjetividade
pensada originalmente por Hegel (1997) no século XIX. A intersubjetividade em
questão proporciona ao espectador uma transcendência da forma sensível em
direção aos seus conteúdos interiores, a uma verdade superior conquistada pela
intuição e pelo sentimento diante da obra. Desta forma, o filme torna-se um
elemento revelador, pois ele estimula o homem a exercer o poder de refinamento
da matéria no que diz respeito à realidade objetiva e spiritual, o objeto fílmico é
uma forma sensível a ser traduzida pela percepção do espectador em seu
processo de elaboração do universo imaginário.
A arte do cinema se caracteriza como uma linguagem representativa da
“técnica do imaginário”, ou seja, por constituir narrativas ficcionais, como também
por se estruturar sobre o imaginário da fotografia e da fonografia, ela constitui um
veículo de produção de sentidos, o sentido de um filme se dá a partir de uma
narrativa que utiliza um aparato técnico cujo objetivo é a criação de uma realidade
a ser vivenciada pelo espectador. O imaginário do homem apresenta um
componente visual predominante que estabelece um canal de acesso a um
universo de significações, a forma e o conteúdo do acervo visual alimenta o
processo de elaboração do sentido do olhar em relação ao universo criativo. A
plástica cinematográfica é, então, um elemento de identificação do registro
imaginário do filme, uma fonte de representação que contribui para o processo de
estruturação do significado da narrativa. O projeto de criação do visual do filme
tem como objetivo o estabelecimento do fundo (o cenário) e da atmosfera de uma
seqüência de cenas para tal, o departamento de arte do filme traduz o conteúdo
dramático em elementos plásticos, estes promovem uma entonação, uma
modulação na intensidade e no ritmo da narrativa.
A demarcação do visual da obra cinematográfica é constituída pelo o que
Aumont em sua obra A Imagem (1993) denomina de “espaço plástico”. O teórico
116
francês situa o conceito no que se refere ao valor da experiência da imagem para
o espectador:
(...), no fato de que olhar uma imagem é entrar em contato, a partir do interior de um espaço real que é o do nosso universo cotidiano, com um espaço de natureza bem diferente, o da superfície da imagem. A primeira função do dispositivo é propor soluções concretas à gestão desse contato antinatural entre o espaço do espectador e o espaço da imagem, que qualificaremos de espaço plástico.” (AUMONT, 1993, p. 136)
O dispositivo fílmico, a sistematização material da experiência do cinema, ou seja,
o fato de que em uma sala escura os espectadores podem distinguir as imagens
projetadas por um aparelho em uma tela, configura o espaço plástico como o lugar
da delimitação dos diversos elementos sensíveis (cores, formas, linhas, volume
etc.) cuja função é evidenciar o sentido da narrativa. O espaço plástico se
estabelece a partir da superfície da imagem em sua composição, do contraste de
luz e cores, dos elementos gráficos (cenários, objetos, figurinos, maquiagem e
cabelo), e da própria matéria da imagem do cinema – a película. O ato de revelar
uma história passa pela compreensão do significado da mise-en-scène em todos
os seus recursos estéticos e técnicos. O desenho da cena cinematográfica é o
esboço de uma fisionomia da forma dos personagens e dos objetos que será
impressa no espaço plástico criando ao mesmo tempo uma imagem plana e
profunda, a realidade bidimensional – a superfície da imagem, é a base para o
estabelecimento da representação da profundidade – a realidade tridimensional. O
ato de desenhar objetos (figuras) em uma imagem em movimento significa lidar
com o desdobramento da forma em seu significado narrativo.
A criação de um projeto de composição visual do filme é realizada por um
artista que tem aspiração a um ideal estético, o caminho de desenvolvimento de
um conceito em um elemento plástico se dá através de descobertas espirituais e
materiais que caracterizam o trabalho artístico. O desenhista de produção
(projetista de produção) - profissional responsável pela concepção do visual e da
ambientação do filme, e o diretor de arte - o executor do projeto de ambientação e
117
de caracterização, respondem por todo o processo de produção do departamento
de arte. A função de desenhista de produção é quase inexistente no Brasil,
cabendo ao diretor de arte a titularidade do projeto de direção de arte. O conceito
estético concebido por ele é resultado de um trabalho conjunto com o diretor e o
diretor de fotografia, o diretor tem a função de criar e coordenar a parte artística e
técnica da produção do filme - ele concebe uma obra sob um olhar revelador de
um sentimento do mundo, e o diretor de fotografia cria a iluminação e indica os
ângulos, a movimentação e os enquadramentos de câmera. Estes profissionais
são os principais mentores artísticos da produção e compõem o que se pode
chamar de “alto escalão” da criação cinematográfica. Não podemos esquecer o
papel do produtor no que tange ao desenvolvimento do projeto, no qual exerce
influência na concepção artística da obra decorrente das especificidades
administrativas, financeiras e logísticas da função de produtor.
O diretor de arte em seu processo de composição visual do filme tem na
equipe técnica do departamento de arte o cenógrafo, o figurinista, o maqui(l)ador e
o cabeleireiro como os responsáveis pela realização dos cenários e locações, dos
figurinos, da maquiagem e dos penteados e perucas. Estas áreas de criação, sob
o comando artístico e técnico do diretor de arte, concebem o material plástico que
serve de suporte para a delimitação do espaço e do tempo da narrativa
cinematográfica. O espectador diante do cenário e do clima da cena demarca um
caminho de produção de imaginário, um momento de sintonia entre a obra e a
possibilidade de criação por parte de quem a vê. As imagens representadas na
tela do cinema indicam a oportunidade de uma experiência estética de um espaço
plástico gerador de um significado dramático, a estética do filme conduz a
estruturação de um universo imaginário que induz o olhar do espectador a uma
percepção do sentido ético da obra.
118
3.2. Primórdios da direção de arte no cinema: obras e conceitos
O discurso da ficção no cinema estabelece um espaço de encenação de
histórias que demanda um desenho dos personagens, dos lugares e dos objetos
que irão contribuir para a construção de uma narrativa. Criar histórias é instituir um
universo imaginário no qual aparecem figuras – elementos visuais, que imprimem
na imagem do cinema uma forma reveladora de um sentido dramático. A comoção
vivida pelo espectador, seja ela proveniente de uma comédia ou de uma tragédia,
necessita de um ambiente propício para que ocorra uma representação que seja
objeto de criação da arte do cinema. O ambiente da ficção requer um projeto que
apresente um desenho das figuras que serão transformadas em imagem,
constituindo, assim, elementos representativos de um discurso estético.
Segundo o historiador e diretor de arte russo Léon Barsacq (1906-1969) no
livro A History of Film Design (1978), o ano de 1908 é o momento da evolução do
design cinematográfico que se dá a partir do movimento de câmera, a qual passa
a explorar o espaço da ação dramática e a exigir maiores recursos técnicos e
estéticos para a mise-en-scène.
O cineasta americano David Wark Griffith (1875-1948) introduz uma série
de procedimentos que revolucionam a linguagem cinematográfica: o corte e a
montagem de planos-seqüência, o uso de aproximação da câmera para evidenciar
detalhes e a expressão dos atores (close up) e as diferentes formas de
enquadramento abrem o caminho para a fundamentação da arte do cinema. O
clássico O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1915), sobre a Guerra
civil americana, consolida a importância de Griffith para a história da
cinematografia.
Saímos, então, da fase do teatro filmado na qual a câmera fixa captava
imagens de cenários pintados, o cinema se liberta do teatro desvinculando-se do
raio de visão da platéia. Com o movimento de câmera a trucagem cinematográfica
119
(planos em espelho, o processo Schuftan – técnica que emprega cenários em
miniatura (maquetes) e atores com o auxílio de espelhos, panos de fundo
fotográficos, retroprojecão etc) é incorporada aos novos tempos de invenção e de
fabricação de cenários, fisionomias e performances, a técnica traz uma
contribuição para o enriquecimento e a utilização do material plástico enquanto
elemento que amplia os recursos narrativos.
Em Méliès – Magie et Cinéma (2002) organizado por Joseph Jacquet,
verificamos que se deve ao cineasta francês George Méliès (1861-1938) a
invenção da trucagem - técnica que influenciou o desenvolvimento da arte dos
cenários, ele é procedente do teatro de mágicas e é considerado o precursor da
produção de arte no cinema, o criador da mise-en-scène (encenação), termo
surgido na França no início do século XIX para designar o aspecto visual e
representativo da arte do teatro. No exercício de uma especialidade em truques
mágicos - o ilusionismo, Méliès utilizou o cinema para reproduzir o teatro de modo
fantástico produzindo filmes a partir de “cenas artificialmente arranjadas”, ele era
diretor, cenógrafo, figurinista, criador de efeitos visuais e ator, e ficou consagrado
mundialmente com o filme Viagem à lua (Voyage dans la lune, 1902), inspirado
nas obras de Julio Verne (De la terre à la lune) e Herbert George Wells (Les
premiers hommes dans la lune), produção que promoveu o encontro definitivo
entre a magia (a fantasia) e o cinema.
Viagem à lua (1902) é o primeiro filme de ficção científica que narra a
história de astrônomos que criam uma aeronave e partem para a lua na qual
encontram habitantes lunares – os selenitas, os primeiros “Ets” do cinema. A
imagem do rosto da lua com um foguete cravado em seu olho é uma imagem-
símbolo que ficou na história do cinema, a produção realizada em trinta cenas é
uma obra que utiliza os recursos de trucagem para criar um imaginário de uma
história repleta de fantasia sobre a vida em outro planeta. A riqueza da
composição visual do filme nos leva a embarcar em uma aventura na qual o
sentimento dos personagens é materializado através de figuras expressivas que
120
evidenciam o sentido de uma narrativa fantástica mas, ao mesmo tempo, humana
no que tange aos mitos da experiência da civilização.
Méliès pertenceu à vertente fantástica do cinema, enquanto Louis Lumière
(1864-1948) à vertente realista. As produções de Méliès eram verdadeiros
tratados do uso da magia no cinema, e as de Lumière eram documentários sobre
o cotidiano da vida das pessoas na cidade, os dois cineastas marcam a pré-
história do cinema e lançam os conceitos iniciais de um percurso de
desenvolvimento da linguagem cinematográfica. Em 28 de dezembro de 1895, em
Paris, Méliès ingressa no mundo do cinema ao assistir a primeira exibição dos
irmãos Lumiére, ele compra em Londres um cinematógrafo e começa a realizar
experiências estéticas e técnicas que subverteram o sentido da realidade.
O conceito visual das produções de Hollywood com o uso abundante de
trucagens e de tecnologia tem como origem o trabalho pioneiro de Méliès que
trouxe para o cinema a possibilidade de explorar o lado fantástico (mágico) da
narrativa. Viagem à lua (1902) faz parte da trajetória da ficção científica no cinema
constituindo um gênero que produziu obras como Metropolis (Metropolis, 1926) de
Fritz Lang, 2001: uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, 1968) de
Stanley Kubrick, Guerra nas estrelas (Star wars, a new hope, 1977) de George
Lucas, Blade runner, o caçador de andróides (Blade runner, 1982) de Ridley Scott,
Matrix (The matrix, 1999) de Andy e Larry Warchowski, entre outras. O filme de
Méliès simboliza o potencial artístico que o cinema iria desenvolver e emocionar o
público ao longo de sua história.
O imaginário no cinema é evidenciado com o estabelecimento do lugar e do
clima da cena, o universo cênico criado é resultado do projeto de direção de arte
que se realiza a partir da dramatização do objeto e do espaço, da inflexão
(entonação) dos diversos elementos que participam da produção cinematográfica.
Este processo valoriza e contextualiza uma idéia (conceito) através das diversas
formas que criam vida ao enredo em desenvolvimento, cada um dos elementos
contribui para o acabamento da obra, e o importante é que o espectador perceba
a função de cada objeto, de cada atitude. A posição, a forma, a intenção e a cor
121
do objeto, assim como o ator - a caracterização dos personagens, e o próprio
espaço precisam estar sintonizados na trama audiovisual. O espaço como um
todo, envolvendo locações e cenários adequados e o entrosamento entre seus
componentes, deve constituir uma poética que leve o observador a absorver o
conteúdo da história, uma poética visual e dramática que seja o elemento indutor
do olhar do espectador em relação ao imaginário do filme.
A poética do espaço (1993) é tema de investigação do filósofo francês
Gaston Bachelard (1884-1962) que desenvolve o objeto em estudo a partir de uma
reflexão filosófica sobre a ciência do imaginário e sobre a fenomenologia – o
sentido das liberdades espaços-temporais no tocante à forma com que o homem
interfere em seu meio. O espaço analisado, a partir da conformação de seu
quadro imagético, pode ser considerado um fenômeno cultural, onde ele se
apresenta como reflexo de um universo individual e social repleto de sonoridades
(subjetividades) típicas da natureza humana.
Tomar o espaço como campo de estudo sob a ótica fenomenológica implica
em elucidar os conceitos de Bachelard (1993) de “ressonância” e “repercussão”,
elementos indispensáveis à compreensão da imagem do espaço. A categoria
“repercussão”, por estabelecer um papel ativo (participante) do homem no
ambiente social, visto que o conceito opera uma revirada do ser, constitui-se em
uma linguagem operante e se enquadra na questão da apropriação do espaço
pelo homem. A partir do desenvolvimento da “repercussão”, a categoria da
“ressonância” torna-se um fato da realidade do homem, uma vez que ambas
constituem conceitos de duplicidade fenomenológica. Havendo um inter-
relacionamento qualitativo entre o homem e o espaço, a “ressonância” aparece
como um elemento propagador do conteúdo elaborado, a internalização da
experiência espacial (repercussão) pelo universo humano precede o processo de
“ressonância”, onde o material assimilado é diluído no ambiente da sociedade,
promovendo um redimensionamento do universo cultural. Desta forma, o homem
atua em um espaço com uma identidade estabelecida, resultado de sua própria
intervenção.
122
O espaço se constitui através de uma experiência subjetiva, de uma
fundamentação existencial, típica de um determinado período histórico, ele
adquire uma real dimensão a partir de uma abstração do olhar do homem em
relação ao seu valor material. Bachelard considera que:
O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente, entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. (...) Incessantemente a imaginação imagina e se enriquece com novas imagens. É essa riqueza do ser imaginado que gostaríamos de explorar. (BACHELARD, 1993, p. 19)
O homem na busca de sua consciência individual e social necessita romper a
precariedade do imediato, do estritamente objetivo, no sentido de apreender a
verdadeira natureza do fenômeno espacial. A imaginação é uma capacidade
humana que subverte a lógica da razão e promove uma poética do pensar e do
sentir o mundo, ela lança o sujeito nas diversas camadas de significado cultural e
de criação de experiências que determinam o universo espiritual e material do
espaço. A cidade, como a casa, são descrições topográficas, anatômicas de
nosso ser íntimo, instrumentos para a análise da alma humana e da alma social. A
imagem do espaço no filme deve promover um sentido de repercussão na forma
do homem pensar e sentir o objeto, a transformação que esta experiência
proporciona a ele leva a uma ressonância da vivência da matéria e do espírito no
ambiente social.
O processo artístico só se estabelece quando há assimilação afetiva do
objeto e do espaço por parte do público. Dá-se, segundo o crítico, historiador do
cinema brasileiro e roteirista Jean-Claude Bernardet, em seu artigo O Processo
como Obra (2003), uma “construção de conexões”, um momento de
aprofundamento do sentido e da natureza da relação do espectador com a obra
cinematográfica. O filme cumpre, assim, a função de elemento que provoca,
estimula no homem seus sentidos diante da obra audiovisual, a forma fílmica
induz a uma apreensão da linha dramática a qual define o papel dos elementos
123
plásticos, estes expressam a significação do conteúdo narrativo e são
instrumentos de comunicação do sentido da obra.
Bernardet nos fala da importância do papel do crítico no que se refere à
busca do desenvolvimento do potencial do filme em correspondência à qualidade
de recepção da obra pelo espectador. O crítico não é um mero julgador que
aprisiona a opinião de quem assiti a um filme, ele é um analista de uma estética e
deve promover um engajamento cultural da produção artística e do público. O
exercício da crítica se dá a partir de um processo no qual o crítico se procura na
obra a ser analisada, construindo sua individualidade com o objetivo de provocar o
olhar do espectador. O profissional da crítica de cinema é um agente social que
sistematiza uma conexão entre o valor cultural do filme e a formação intelectual e
espiritual do público.
A constituição de conexões já faz parte da própria cultura do cinema, o
diálogo entre o espaço e o tempo estrutura sua natureza, o cinema espacializa o
tempo, ou seja, demarca na trama espaços de ação de diversos tempos históricos.
A arquitetura, como elemento da ambientação da história - espaço de locações, é
uma arte dinamizadora do espaço e, conseqüentemente, do tempo desse espaço,
o cinema e a arquitetura utilizam a razão e a imaginação poéticas para a produção
de suas obras. O uso de analogias (citações), metáforas (símbolos) e de técnicas
de montagem traduzem o processo de criação estética e técnica, as linguagens do
cinema e da arquitetura criam e manipulam o espaço. O espaço não é somente
um objeto em si, um fato objetivo da construção humana, mas ele subentende um
espaço mental no qual o sujeito elabora o objeto produzindo significado ao
processo de conexão com a obra.
A arquitetura no filme Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane
aparece como um objeto (uma locação) impregnado de pensamentos e
sentimentos de seu personagem-andarilho (um flâneur). Nietzsche (Fernando
Eiras) percorre e vive a cidade em busca de alimento para sua produção
intelectual, ele encontra na e através da arquitetura inspiração para a produção de
um pensamento pulsante. A arquitetura é uma fonte de formas, detalhes, cores e
124
texturas que direciona o olhar do filósofo em uma rotina na qual o corpo da cidade
barroca amarela e marrom-avermelhada revela o êxtase do pensamento. O filme
mostra uma arquitetura potente (um personagem) no sentido de que ela é mais do
que um objeto estético e funcional atingindo a posição de obra de arte que
evidencia o sentido espiritual do homem e da natureza. A riqueza da arquitetura
barroca em seus detalhes e formas é o reflexo do pensamento de Nietzsche
marcado pela imponência e pela riqueza estética. Por se tratar de uma narrativa
que apresenta e elabora o processo do pensamento do filósofo alemão, podemos
situar a arquitetura e a cidade de Turim como estéticas imaginárias decorrentes da
experiência imaginária de Nietzsche, o que vemos, então, é uma cidade
imaginária apesar de toda a sua riqueza e expressividade material, ela é o que é
devido a uma vivência do imaginário de um pensador.
A escolha das locações de um filme vem definir uma cor da obra
cinematográfica. O diretor americano Sidney Lumet autor de Um dia de cão (Dog
day afternoon, 1975), Doze homens e uma sentença (12 angry men, 1957), Rede
de intrigas (Network, 1976), O veredicto (The veredict, 1982) e Assassinato no
Oriente Expresso (Murder on the Orient Express, 1974) comenta sobre o conceito
da cor no espaço da cena em seu livro Fazendo Filmes (1998)
:
Um resultado natural da cuidadosa seleção de locação é que quase sempre criamos uma palheta de cor para um filme. O veredicto (1982) fala de um homem caçado por seu passado. Ed Pisoni era o diretor de arte. Eu lhe disse que usaríamos apenas cores outonais, cores que dessem a idéia de tempo decorrido. Isto imediatamente eliminou o azul, rosa, verde-claro e amarelo-claro. Procurávamos marrons, castanhos-avermelhados, amarelos fortes, laranja queimado, os vermelho borgonha, tons outonais. Os sets do estúdio foram feitos nestas cores. Se nos decidíssemos por uma locação e ela tivesse uma cor indesejada, pedíamos autorização para repintá-la. (LUMET, 1998, p. 95)
O espaço de locações e os sets, então, apresentam uma determinada cor que
define uma época em suas especificidades psicológicas e culturais. A cor se
insere no projeto de concepção plástica de cada plano do filme demarcando um
tom dramático para a composição narrativa da cena, a definição de seu uso institui
uma determinada composição da imagem cinematográfica. A cor de um espaço
125
revela o espírito de uma proposta estética que pretende criar um clima para a
crença em um acontecimento dramático.
O diretor Alberto Cavalcanti em seu clássico Filme e Realidade (1952)
declara que a cor é um dos elementos da construção da estética do filme e que
ela compõe uma linha de composição fundamental – uma linha dominante da
composição visual da imagem do cinema. O partido gráfico adotado se inscreve
no universo dramático da história, criando o clima para a mise-en-scène dos
personagens, o lugar da cena é a materialização estética de determinados
estados de espírito expressos pela presença ou ausência da cor.
Cavalcanti situa o uso da cor no espaço cinematográfico em associação ao
fato de que os sets precisam ser fotografados e apresentar um determinado
número de fundos para as diversas tomadas. A luz passa a ser um elemento que
influencia a qualidade da cor e do espaço a serem impressos nas imagens
captadas. Na época da produção Le capitaine fracasse (1928) os iluminadores
começaram a ter grande importância na realização dos filmes, o diretor comenta
sobre a interferência dos iluminadores no processo de produção:
Não chegaram a interferir na direção, mas intrometeram-se, e muito, no “décor”. Começaram lançando a moda atroz do cenário branco. Como é sabido, uma superfície branca não iluminada dá por resultado o preto, mas os efeitos de iluminação requerem um preparo exaustivo. (...) Muito antes disso, nós, os cenógrafos, já sabíamos que para conseguir, na tela, o efeito de uma sala em três dimensões era preciso, em primeiro lugar, facilitar uma iluminação que desse a impressão da sala em três dimensões, construindo-se o “décor” nessa base. (...) Por paradoxal que pareça, os diretores artísticos daquele período tiveram que fazer os “décors” sem calcular o efeito de luz, para agradar aos operadores – o que não contribuiu, naturalmente, para a boa qualidade do ambiente. (CAVALCANTI, 1952, p. 142)
O projeto de luz no filme concebido pelo diretor de fotografia deve dimensionar a
cor, o espaço e o objeto em consonância com a natureza da linguagem
cinematográfica que é a de criar unidade e sentido aos diversos elementos que
compõem a narrativa.Todas as técnicas que produzem o objeto fílmico contribuem
para a criação de uma imagem expressiva que necessita ser convicente em seu
126
valor de dramaticidade e de comunicação. A luz no cinema tem a capacidade de
extravazar o valor espiritual contido nos objetos filmados.
O filme alemão mudo O gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor
Caligari, 1919) de Robert Wiene é uma obra representativa do expressionismo
alemão, tendo uma linha de composição demarcada pela imagem tratada como
gravura com considerável contraste de preto e branco e cenários gráficos com
predominância de linhas oblíquas. O teatro e a pintura influenciaram o
expressionismo no cinema no que se refere à concepção dramática e plástica do
espaço. O cenógrafo Hermann Warm e os desenhistas Walter Röhrig e Walter
Reimann deram às cenas do filme cenários e formas que transmitem intensidade
aos pensamentos e às emoções dos personagens. Kracauer comenta sobre o
processo de criação dos artistas:
Os filmes devem ser desenhos que ganham vida”: esta era a fórmula de Hermann Warm na época em que ele e seus dois companheiros desenhistas estavam construindo o mundo de Caligari. Obedecendo às suas crenças, os quadros e cortinas de Caligari tinham abundantes complexos de formas recortadas, pontudas, lembrando muito os padrões góticos. Produtos de um estilo que na época quase se tornara um maneirismo, esses complexos sugeriam casas, paredes, paisagens. Exceto por alguns lapsos ou concessões – alguns fundos se opunham ao convencionalismo pictórico de uma maneira muito direta, enquanto outros os preservavam – os cenários significavam uma perfeita transformação de objetos materiais em ornamentos emocionais. (KRACAUER, 1988, p. 85)
A concepção plástica da obra cria um clima psicológico para a caracterização dos
personagens com suas fisionomias e gestos exagerados e intensos, toda esta
atmosfera irreal foi criada para contar a história do cientista Caligari que provoca
inúmeras mortes através de Cesare, um homem hipnotizado.
Na realidade, o expressionismo tem como problema central a questão da
dramatização exagerada que excede a própria intensidade de composição visual.
Percebemos uma certa obsessão na ação da narrativa que encontra um ambiente
com formas deformadas sob o contraste de luz e sombra, a atmosfera soturna é
acentuada através dos becos, caminhos tortuosos e escadas que relacionam os
diversos espaços dramáticos nos quais os personagens vivem cenas de intensa
emoção e mistério. A divisão do espaço expressionista não tem somente uma
127
função pictórica, mas também uma função dramatúrgica, no sentido de que ela é
uma forma de intervenção no desenvolvimento plástico das cenas, estas sugerem
que os cenários se apresentem como “visões” de um espaço utópico que
sensibilize o espectador. O espaço, a arquitetura do filme aparece como um objeto
gráfico, sendo a obra considerada um marco do cenário estilizado.
A representação da arquitetura do filme oferecia uma nova forma de
expressão plástica no cinema. O cineasta russo Serguei Eisenstein (1898-1948),
pensador das relações entre a arquitetura e o cinema, aparece como uma
referência neste campo. Manuel C. Teixeira em seu ensaio Arquitectura e Cinema
(1999) comenta:
Por um lado, ele (Eisenstein) considerava que a arte do cinema oferecia a possibilidade de desenvolver uma nova arquitetura, entendida como pura concepção de espaços, liberta das condicionantes materiais e físicas do mundo real. Isto é, liberta das limitações materiais e construtivas, a arquitetura podia agora aspirar à expressão de puras sensações espaciais. (TEIXEIRA, 1999, p. 32)
A arquitetura no cinema pode ampliar seu processo de constituição da forma e
demarcar no espaço cinematográfico a representação de uma nova estética, mas
com um sentido revolucionário no que tange ao espaço da ação dramática. Ela
deixa de ser um mero objeto estético para se tornar uma forma que engendra um
ritmo narrativo e apresenta um discurso de ordem temporal.
A questão do estilo do expressionismo no filme O gabinete do Dr. Caligari
(1919) se refere mais ao objeto de expressão em si, ou seja, aos cenários
pintados com linhas curvas e inversões de perspectiva, do que ao “modo” de filmar
o qual se configura de fato um estilo cinematográfico. Os cenários expressionistas
são uma realidade pré-fílmica, eles são preexistentes à linguagem do cinema, os
efeitos apresentados pela cenografia poderiam ser obtidos através do movimento
de câmera (uso de ângulos) resultando na dilatação ótica dos espaços. Desta
forma, o filme é mais uma nova investida na imagem pictórica do que
propriamente na imagem produzida pela arte do cinema.
128
A estética expressionista influenciou outros momentos marcantes da
história do cinema. O estilo (gênero) noir sofreu a influência do expressionismo
alemão com a vinda dos cenógrafos e fotógrafos alemães para os Estados Unidos
no período do nazismo. As ficções policiais americanas tem como marco o filme
Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, 1941) de John Huston e direção de arte de
Robert Haas. Os filmes se passavam em ambientes noturnos opressores, com
pouca luz e contraste de claro e escuro, e tinham como pano de fundo a cidade
americana, o mundo era visto pelos olhos de detetives, prostitutas, políticos e
criminosos sob uma visão amarga da sociedade liberal no período da depressão.
A estética noir pode ser considerada como uma atualização do expressionismo
alemão, ela incorpora expressões plásticas do período para discutir um momento
marcante da história americana.
A influência do expressionismo ainda vigora nos dias de hoje. O filme Nina
(2004) de Heitor Dhalia, inspirado no romance Crime e Castigo de Dostoiévski,
constrói um ambiente radical que reflete as pertubações psicológicas da
protagonista Nina (Guta Stresser) em um momento histórico trágico da metrópole
paulista. A proprietária do apartamento onde ela mora – a avarenta Dona Eulália
(Myriam Muniz), é a personagem que explora e tortura a jovem. O projeto de
direção de arte assinado por Akira Goto e Guta Carvalho apresenta o mundo
sombrio de Nina com pouca cor, muito contraste e o uso intenso de texturas nos
ambientes e na luz. Segundo os diretores de arte: “O desafio foi criar, junto com a
fotografia, essa atmosfera pertubadora. (...) A idéia era representar nos cenários e
locações o estado psicológico da personagem.” (GOTTO e CARVALHO, 2004). A
composição visual do filme aponta o sentido da vida de uma personagem que
“grita de desespero” ao longo da narrativa, o lado material é impregnado do
conflito existencial de uma jovem de sensibilidade aguda e mente frágil.
A forma do espaço revela o ponto de vista da protagonista, a opressão
vivida por Nina é evidenciada nos ambientes amplos, pé direito alto, corredores
largos, escadas em caracol, cores dessaturadas e luzes esmaecidas. Podemos
captar o estado emocional da personagem a partir da percepção do sentido e da
129
forma do espaço. A obra teve grande parte de sua composição visual testada
através de desenhos de produção e de programas de computador, o planejamento
criterioso da produção levou a um refinamento estético e técnico do conjunto da
obra. A estética do filme é pontuada pelos desenhos do escritor e autor de
quadrinhos paulista Lourenço Mutarelli que ilustra as animações que traduzem a
alma da personagem principal e a vida das pessoas miseráveis que vivem pela
cidade de São Paulo a qual aparece como um lugar de passagem onde Nina vive
suas angústias e enfrenta situações adversas típicas de uma grande metrópole. A
estética urbana se constitui através de pichações, escuridão e violência, cenário
para o conflito da protagonista, um conflito da vida em uma cidade habitada por
personagens do underground paulistano.
3.3. Cenário e memória
Ao desenhar o espaço da cena cinematográfica o diretor de arte deve ter em
mente que o lugar da cena é instituído a partir dos pontos de vista do ator e da
câmera que criam uma performance que irá demarcar a imagem do lugar com
uma carga estética e afetiva. Esta prática do espaço durante as filmagens marca o
cenário como o lugar da fabricação da memória no qual o espectador capta o
sentido da experiência do ator e da câmera. A trajetória de construção do cenário
se dá por um processo de constante recriação: o diretor de arte projeta um
espaço, os atores e a câmera reelaboram a forma e o conteúdo dos cenários e
das locações e o espectador redimensiona o espaço a partir de uma apropriação
da narrativa, o filme é um universo de experiências recriadas e de formação de
uma memória que está sendo sempre revista.
130
Podemos, então, nos referir à uma “memória espacial” – a marca da ação e
do desejo do homem em seu ambiente, que estabelece uma dinâmica do
processo de (re) significação do espaço. A constituição de uma forma não se
refere somente à realidade da matéria em si, mas também à realidade do espírito,
ao universo imaginário, da memória, elementos que proporcionam um
transbordamento de fantasias, pensamentos e experiências que irão dar o tom
afetivo e artístico de uma narrativa. O lugar da narrativa é onde ocorre um
enfrentamento com a memória instituída e uma produção de uma nova memória,
de uma experiência estética a ser criada pela produção cinematográfica. A
memória do espaço cenográfico e das locações é um dado que contribui para a
construção da narrativa pois ela é um elemento que impregna o espaço com
evocações da ordem do espírito – lembranças e visões, norteando a ação do ator
em direção aos fatos e objetos da história.
A construção do espaço no filme - o projeto cenográfico, aparece como um
dos elementos que compõe o ambiente para o exercício tanto da criatividade do
ator (construção narrativa) quanto do espectador (conexão com a obra). O
ambiente deve sugerir, e não ilustrar, o conteúdo dramático através de uma
concepção visual marcada pelo equilíbrio e pelo ritmo, utilizando elementos
cênicos que sejam essenciais (oportunos) ao desenvolvimento do trabalho do ator
no espaço da cena cinematográfica. Como comenta o cenógrafo e diretor italiano
Gianni Ratto em Antitratado de Cenografia (1999):
Cenografia é o espaço eleito para que nele aconteça o drama ao qual queremos assistir. Portanto, falando de cenografia, podemos entender tanto o que está contido num espaço quanto o próprio espaço. A cenografia faz parte do instrumental do espetáculo. Ela deve fugir do personalismo, do individualismo. (RATTO, 1999, p. 22)
131
O cenário e os objetos nele contidos não se constituem apenas como um desenho
de um ambiente de uma história, eles fundamentam uma forma dramática quando
os elementos desenhados são incorporados pelo gesto, pelo movimento e pelo
olhar do ator através do enquadramento da câmera. O projeto cenográfico é um
mapa da trajetória dos personagens em seu processo de produção de sentido dos
objetos que demarcam e justificam a constituição de um acontecimento. Os
objetos cênicos fazem parte de uma unidade plástica do quadro de imagem, eles
não evidenciam sua forma como uma expressão meramente pictórica, mas como
elementos de composição dramática que situam e direcionam a imagem no
tempo. Diante desta constatação a pintura aparece como uma arte que oferece
um referencial plástico para a construção da imagem do filme, Ratto afirma sobre
a influência da pintura no cinema:
O cinema, assim como o teatro, deve muito à arte dos grandes mestres da pintura. A composição dos grandes afrescos e das grandes telas de artistas como Rafael, Tintoretto, Rembrandt, Caravaggio, David etc não pode ter deixado de influenciar as composições dos grandes planos dos filmes históricos, nem as imagens extremamente elaboradas na luz, na cor e na colocação das personagens visualizadas por diretores como Griffith, Kurosawa, Bergman, DeMille etc. (RATTO, 1999, p. 36)
Podemos constatar um paralelo entre o vocabulário plástico do cinema e da
pintura no que se refere à cor, formas, contrastes, valores e superfícies, a
utilização destes elementos sensíveis não representam, no entanto, o espaço, o
tempo e a ficção da mesma maneira. O material plástico da pintura é da ordem do
pictórico – ele traduz um momento, e a do cinema é da ordem do dramático – ele
é elaborado para a construção de uma narrativa, da encenação de um
acontecimento. As citações pictóricas empregadas pelo cinema são a base para a
articulação de uma memória instituída no processo de produção do espaço e do
tempo da narrativa cinematográfica, a imagem da pintura é um elemento plástico
que passa por uma ressignificação dos princípios espirituais que emanam do
objeto de arte para ser aplicado no contexto semântico da linguagem do cinema.
132
O Outro Lado da Rua (2004) de Marcos Bernstein
O jogo de luz e sombra no apartamento de Regina.
O apartamento de Regina (Fernanda Montenegro) em O Outro Lado da Rua
(2004) de Marcos Bernstein, mais especificamente, as salas, são os espaços –
lugares nos quais ela vive intensamente a sua solidão, neles podemos perceber a
influência da pintura na constituição da imagem cinematográfica.
A influência da arte realista do pintor Edward Hopper (1882-1967) aparece
no uso do jogo de luz e sombra enquanto elemento que integra o design do
ambiente vivenciado por Regina. O realismo de Hopper não se apresenta como
uma mera cópia do que ele observa, mas como uma impressão particular da
natureza. As pinturas Eleven A. M. (1926), Room in Brooklyn (1932), Morning in a
City (1944), Hotel by a Railroad (1952), Morning Sun (1952), City Sunlight (1954),
Western Motel (1957) e Sunlight in a Cafeteria (1958) são obras que revelam o
estilo de Hopper no que se refere à recepção da luz nos espaços retratados, à
solidão de seus personagens e à cidade americana contemporânea como temas
centrais de sua produção artística.
133
O entrosamento entre a direção de arte (Bia Junqueira) e a direção de
fotografia (Toca Seabra) resultou em uma qualidade de imagem marcada pelo uso
da luz e da sombra que dramatiza o cenário de uma mulher que vive o vazio
afetivo. O apartamento de Regina é um “esconderijo” e o lugar onde a realidade
de seu abandono enquanto mulher, idosa e mãe é demonstrado visceralmente, o
ambiente reflete a depressão de uma personagem que utiliza determinados
elementos cenográficos (sofá, cadeira e bidê) para se entregar e viver a sua
tristeza e solidão. O jogo de luz e de sombra - um instrumental pictórico, pontua o
estado de abandono e de “ressonância” de experiências vividas, o uso de uma cor
fria (azul) carrega, também, o ambiente de um impressionismo que evidencia a
sensação do personagem que criou e vive um espaço dramático repleto de
memória de uma vida em conflito existencial.
O olhar do diretor de cinema através da câmera é, também, um elemento
de construção da composição cenográfica. A realização do projeto de direção de
arte é o material de trabalho do diretor que irá montar um enquadramento
identificador de um sentido narrativo, a forma como ele irá mostrar um
determinado espaço é um desdobramento do projeto original, uma transfiguração
de um objeto real. O diretor elabora a escrita da imagem dando sentido aos
diversos segmentos do espaço sejam eles “lugares artificiais” (cenários) ou
“lugares naturais” (locações: arquitetura e paisagem). De qualquer forma, os
lugares da cena cinematográfica aparecem como elementos marcantes para a
representação de um universo imaginado O cenário é produzido sob o ponto de
vista de uma história a ser contada, é o lugar de construção de uma nova
memória, de experiências instituintes de uma cultura dramática. A locação já traz
em seu imaginário a marca de histórias vividas, é o lugar de uma memória
instituída, do confronto com um potencial dramático estabelecido por um tempo
decorrido, o diretor ao captar imagens em uma locação se depara com um acervo
de realizações efetivas que irá influenciar o processo de criação artística.
Os “lugares artificiais” (cenários) em O Outro Lado da Rua (2004) de
Marcos Bernstein aparecem como o laboratório existencial de vidas que se
134
encontram em uma grande cidade. O apartamento de Regina (Fernanda
Montenegro) é o seu posto de trabalho – a janela é utilizada como um grande
quadro para um olho (binóculo/câmera) voraz que vigia e julga um outro
personagem, Camargo (Raul Cortez), como se ele estivesse projetado em uma
tela de cinema, em um apartamento do outro lado de uma rua em Copacabana. O
lugar de moradia de Regina aparece como um “esconderijo” no qual ela exercita o
olhar, pensa e percorre o universo sombrio de seus sentimentos. Na realidade, o
movimento dela é para a rua, a praia, a praça – “os lugares naturais” (locações)
onde ela trama situações para comprovar a sua tese baseada na crença no que
ela vê. Ela consegue mudar a rotina de Camargo que vive em um apartamento
(cenário) luminoso com design sofisticado repleto de vazamentos (janelas e
divisórias), uma marca do filme – o olhar que espreita algo que está escondido,
sugerido. Os dois cenários se caracterizam por um realismo absoluto no tocante à
composição de uma arquitetura contemporânea de uma cidade tropical brasileira.
Regina consegue mudar o ritmo de vida de Camargo, supostamente uma vida
mais ligada à casa, o levando para a rua, um espaço de comprovação de uma
tese “imaginária” e de embates afetivos e perceptivos. A rua (“lugar natural” –
locação) é, então, o espaço da experimentação de olhares e sentimentos
gestados nos apartamentos (“lugar artificial” – cenário) de personagens que são o
símbolo da vida em uma grande cidade litorânea. O espaço de reclusão abastece
o universo psicológico dos personagens com uma recarga de experiências que
não são vividas no espaço da rua. O movimento para fora representa uma
mudança de comportamento compatível com os seus objetivos individuais e com a
maneira de se viver em uma cidade violenta e repleta de cenas que configuram o
imaginário urbano.
O espaço pode também ser estabelecido a partir de uma referência
metafórica, ou seja, ele pode se constituir como um “espaço imaginário” (fora do
quadro), mas pertinente ao desenvolvimento da narrativa, apenas uma referência
ao que está fora já permite a instituição de um espaço dramático. A ausência na
cena cinematográfica não significa a ausência da função do objeto, do lugar de
135
instauração do fato dramático. O que importa é a denominação do “espaço
imaginário” na estrutura dramatúrgica, na memória da experiência de quem faz a
história, dos produtores do acontecimento narrativo, o fundamental é aonde se
produz a memória, independente da visibilidade do lugar no quadro da imagem.
A memória do lugar é um elemento que contribui para a criação da
atmosfera de uma cena. Uma determinada locação traz consigo uma “sensação”
percebida através do sentimento de quem atua no lugar da narrativa, a apreensão
do sentido e da história da locação institui um caminho para o desenho da cena.
Desta forma, o clima dramático é resultado tanto da proposta estética do filme em
seus diversos elementos plásticos, quanto da dramaticidade da própria locação. O
sentido da “sensação” e da “impressão” do lugar aparece como um fator
importante para a escolha do espaço no qual irá se desenvolver a história, o
conhecimento que resulta dessa experiência dos sentidos é fundamental para a
composição da trama cinematográfica. Percebemos, então, que o ato de criação
no cinema se dá em consonância a um projeto de pesquisa das peculiaridades do
espaço e do tempo a serem significados.
Na realidade, podemos nos reportar ao Impressionismo, movimento
artístico iniciado na França por volta de 1860, e que tinha como interesse principal
a captação da “impressão” da paisagem no que se refere ao seu sentido de
acolhimento de “vida”, ao universo físico e humano do retrato de um lugar. A obra
impressionista proporcionava uma experiência dos sentidos:
Tinha-se a "sensação" de um lugar, uma pessoa, uma obra de arte, um meio, até mesmo de uma situação de vida, como uma qualidade não verbal única, uma estética distintiva que parecia permear o todo complexo e que podia ser sentida por uma intuição imediata. A "sensação" era o fundamento de um sentimento do observador receptivo, um efeito desse todo percebido diretamente no humor e na sensibilidade. (SCHAPIRO, 2002, p. 37)
Este movimento artístico representado por Manet, Degas, Renoir, Monet, Sisley e
Pissarro aparece como a expressão mais importante da arte pictórica do século
XIX. O Impressionismo utilizava cores brilhantes e pinceladas esquemáticas de
forma confusa e chocante, ele tinha o interesse na constituição da superfície ótica
136
relativa ao registro da vida contemporânea com o objetivo de mostrar o conteúdo
sensorial da realidade.
Na obra de Tarkovski constata-se um olhar impressionista no que se refere
ao ato de criação e percepção da realidade. Ele fala a respeito do seu filme O
Espelho (Zerkalo, 1974) da importância da escolha e do sentido da locação:
Quando o set foi construído sobre os alicerces da casa em ruínas, nós todos, como membros da equipe, costumávamos ir até lá esperar pelo nascer do sol, para sentirmos o que havia de especial no lugar, estudá-lo em climas diferentes e observá-los nos diferentes períodos do dia. Queríamos nos impregnar das sensações das pessoas que haviam vivido na casa e presenciado, uns quarenta anos antes, as mesmas auroras e crepúsculos, as mesmas chuvas e neblinas. (TARKOVSKI, 1990, p. 163)
Percebemos que o processo artístico do cineasta russo incorpora uma ritualística
com o objetivo de acessar a memória do lugar e captar os seus conteúdos
culturais, psicológicos e estéticos. A composição gráfica do filme se dá a partir da
qualidade da percepção do espaço e do objeto, resultado da capacidade de
observação da equipe criadora e da respectiva recepção por parte do espectador.
A carga dramática do lugar é um elemento que influencia a mise-en-scène em
seus aspectos formais (cenário, figurino, maquiagem e cabelo) e de representação
dramática (a atuação do ator). A "impressão" sugerida pelos elementos cênicos
traz a identificação da forma com que eles acolhem o sentido de "vida" de um
universo imaginário.
O Espelho (1974) é considerado um dos filmes mais autobiográficos de
Tarkovski, a obra aborda a vida espiritual do homem contemporâneo, suas
angústias e dúvidas acerca da existência, da vida familiar e social. O filme tem
como ponto central: a memória das relações familiares do autor, as lembranças de
uma história de vida cheia de impressões acerca dos fatos e dos lugares de
convivência afetiva e social. O projeto de direção de arte assinado por Nikolai
Dvigubski evidencia a passagem do tempo através da textura, da cor e da forma
desgastada dos espaços e dos objetos da cena. A casa de Tarkovski é
reconstituída no filme afirmando as referências pessoais e o tom de realidade da
vida do cineasta. A produção russa é uma sinfonia do tempo, das lembranças que
137
ficam, de uma memória infinita, apesar de ser uma obra que trata de traços
familiares particulares de uma vida, ela dá espaço para um mergulho interior na
experiência do espectador. O tom melancólico e a dor provenientes das
experiências vividas apontam para a possibilidade de uma existência mais rica
espiritualmente.
A transformação da cidade e a memória dos lugares representativos da
história cultural e social da cidade de São Paulo são os temas abordados em O
Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti sob a direção de arte de Isabelle Bittencourt. O
filme utiliza a cidade como uma grande locação na qual uma geração se
reencontra para trocar impressões acerca do passado e da forma como se
desenvolveram os seus ideais. A cidade de São Paulo é protagonista de uma
história que mostra a decadência física, social e cultural de uma sociedade tendo
como referência um momento rico e dinâmico de um grupo social. O uso de
locações (lugares reais) imprime um sentido de realidade para uma obra de ficção
que utiliza a memória social para avaliar a transfiguração de lugares simbólicos
que integram o imaginário urbano.
Os personagens Gustavo (Eduardo Tornaghi), Mario (Ricardo Blat),
Mariano Esteves (Ewerton de Castro). Maria Cristina (Bruna Lombardi), Renato
(Otávio Augusto) e Aron (Elias Andreato) são os porta-vozes de uma época que
apresentam suas impressões acerca dos lugares, da qualidade de vida e dos
ideais de uma geração.
Os lugares reais da trama – Rua Morato Coelho, Galeria Metrópole, Praça
D. José Gaspar, Praça da Biblioteca, Restaurante Paddock, Bar Par e Bar e a
cidade como um todo aparecem como o relato de um processo de transfiguração
e morte das suas formas e funções originais. A cidade de São Paulo é objeto de
reflexão de uma obra cuja narrativa tem como tônica a impressão e a percepção
dos lugares por parte dos seus personagens.
Em poucos momentos do filme percebemos a exaltação do presente, como
por exemplo, a cena do Prof. Mario (Ricardo Blat) quando, através de um registro
audiovisual produzido por seu aluno (discípulo), Ramon, se refere à Catedral da
138
Sé: “É o nosso gótico, é a nossa Chartre!”. Este gesto evidencia uma certa
esperança e reconhecimento da arquitetura brasileira enquanto expressão estética
e simbólica imprescindível para a sustentação da identidade social.
A locação – “lugar natural”, e a cenografia – “lugar artificial”, se encontram
de forma contraditória na cena em que Renato (Otávio Augusto) em sua cadeira
de rodas sai do restaurante Paddock com a ajuda de Gustavo (Eduardo Tornaghi)
em direção à Praça D. José Gaspar. O momento vivido por Renato e Gustavo
neste espaço degradado (locação), no qual os mendigos se tornaram os “donos
da praça” no período da noite, se revela um tanto quanto irreal. Percebemos o
excesso de intervenção cenográfica: uma grande quantidade de latões com fogo
ordenados ao longo da praça e outros objetos da população de rua. Esta
cenografia em uma locação (a praça) aparece como cenário para a declamação
de uma produção poética italiana por parte de Renato. A composição da imagem
da cena da praça transmite um excesso de teatralidade incompatível com o
sentido de realidade que o filme pretende transmitir.
O Príncipe (2002) de Ugo Giorgetti
Renato e Gustavo percorrem a Praça D. José Gaspar.
139
Criar histórias é produzir um imaginário que eleve o espírito do espectador
a um estado de crença no que está sendo narrado. A produção da imagem no
cinema se dá com base em uma estratégia estética e psicológica que possa criar
uma atmosfera com um sentido de “verdade”. A este respeito comenta o diretor de
arte Marcos Flaksman: “Cinema é mentira. Só que para mentir corretamente o
profissional tem que saber exatamente como é de verdade” (FLAKSMAN, 1997). A
simulação da realidade, apoiada em um conhecimento histórico e cultural, tem que
ser convincente para quem assiste ao filme, propiciando uma recepção reveladora
que justifique a presença do espectador, deve ser, enfim, um processo artístico
coerente que o induza a uma viagem imaginária. O conhecimento da realidade é a
base para a construção de uma narrativa ficcional que possa estabelecer uma
verdade simulada, mas coerente aos princípios da linguagem do cinema. A arte
cinematográfica permite que o homem, a partir de seu universo imaginário, se
conecte a uma proposta estética geradora de um imaginário que sugira a
realidade narrativa.
O diretor de arte Marcos Flaksman realizou seu primeiro trabalho como
cenógrafo no cinema brasileiro em Garota de Ipanema (1967) de Leon Hirszman.
Entre outras produções, participou de Brasil Ano 2000 (1969) de Walter Lima Jr.,
Os Sete Gatinhos (1980) de Neville d'Almeida, Luar sobre Parador (1985) de Paul
Mazursky, O que é isso Companheiro? (1997) de Bruno Barreto e Villa Lobos,
uma vida de paixão (2000) de Zelito Viana. Em Xangô de Baker Street (2001) de
Miguel Faria Jr., Flaksman junto com o diretor de fotografia, Lauro Escorel,
constituíram a imagem do filme mais próxima da pintura, visto que o Segundo
Império no Brasil (1886) teve a pintura como fonte principal de informação visual e
cultural. Desta forma, o imaginário fílmico é condizente com os padrões estéticos e
técnicos da época, porém se utiliza de recursos de trucagem (simulação da
realidade) para convencer o espectador. A simulação se dá não só através da
criação de ambientes e fisionomias de época, mas também ela aparece pela
reconstituição histórica que surge como pretexto para a construção de uma
narrativa ficcional. O tempo histórico é objeto de simulação para a construção de
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uma história imaginada, o acesso ao real é manipulado para a transmissão de
uma verdade narrativa.
O imaginário do filme, que conta a história do roubo de um violino
Stradivarius, tem como geografia locações nas cidades do Rio de Janeiro e do
Porto (Portugal). A qualidade fotográfica é conseguida por um processo de
iluminação através do equipamento Varicom que imprime às imagens textura, cor
e contraste de ilustração antiga - gravura. A arquitetura neoclássica da Corte
aparece na cidade do Porto onde foram reconstituídas a Rua do Ouvidor, o Café
Majestic, o Hotel Albion e a Livraria Lello que são símbolos da arquitetura
portuguesa incorporados ao cenário carioca do final do século XIX. Na cidade do
Rio de Janeiro, parte da praça XV (barbeiro, botequim e armazém) é recriada no
pátio da Casa da Moeda, atual Arquivo Nacional, o gabinete do Imperador D.
Pedro II é ambientado no Museu Histórico Nacional da Quinta da Boa Vista e o
Teatro de Niterói é palco para as apresentações de Sarah Bernhardt, em sua
primeira visita ao Brasil. A escolha dos cenários estabelece o caminho para a
crença do espectador em uma ficção histórica na qual a comédia e o suspense
conduzem o desenvolvimento da narrativa. Flaksman declara que:
Todo o esforço da produção esteve voltado para imprimir a maior autenticidade possível à ambientação, fundamentada em pesquisa exaustiva: lemos de livros à coluna social de João do Rio, analisamos iconografias, fomos ao Instituto Light saber como era o posteamento da cidade quando foi ligada a luz elétrica. (...) Ao fazer o desenho de um filme, procuro dar um conforto ao imaginário do espectador, no sentido de que a viagem visual seja acreditável, confortável. (FLAKSMAN, 2001).
A obra cinematográfica deve fornecer ao espectador condições para que ele
acredite em uma determinada realidade mesmo que esta seja resultado de uma
construção imaginária, a verdade pode ser transmitida mesmo que ela parta da
premissa de que se trate de uma história inventada. O material histórico é uma
fonte de pesquisa imprescindível para a produção de um ambiente de época que
seja um elemento de comunicação de um imaginário histórico forjado, mas real no
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sentido da narrativa instituída. A memória da sociedade do Segundo Império no
Brasil é o cenário para a criação de uma memória de uma história imaginária.
A questão da crença no ambiente da narrativa de Dias de Nietzsche em
Turim (2001) de Julio Bressane e projeto de direção de arte de Moa Batsow se dá
a partir da utilização de locações da própria cidade de Turim (Itália) nas quais
Nietzsche se apropria da arquitetura e do espaço urbano para a produção de
pensamento. A Calle dei Preti é o portal de entrada para um percurso imaginário
através do pensamento e da cidade. A reconstituição histórica dos ambientes
(1888-1889) apresenta, também, locações da cidade do Rio de Janeiro: Museu
Nacional de Belas Artes (interior), Rua do Mercado, Praça Mahatma Ghandi
(chafariz), Gabinete Português de Leitura (interior), Passeio Público, Sala Cecília
Meireles, Confeitaria Colombo (interior) para compor os diversos ambientes que
embevecem o olhar do filósofo-flâneur. Estas locações que não são originárias da
própria cidade italiana, em alguns momentos, transmitem uma certa descrença no
que se refere à precisão do lugar da reconstituição histórica. Ao vermos o chafariz
da Praça Mahatma Ghandi, na Cinelândia, ficamos com a impressão que estamos
na cidade do Rio de Janeiro, e não em Turim. Na realidade, a questão não é o
objeto (a locação) em si, mas a forma com que ele é captado pela câmera e
inserido na narrativa do filme. As demais locações, mesmo que saibamos que elas
pertencem à geografia carioca, conseguem passar uma crença na fidedignidade
do espaço histórico. Penso, também, que por serem as cenas de Nietzsche na
área da Cinelândia cenas externas, inseridas em uma paisagem maior, elas
fiquem associadas de imediato à paisagem carioca. O filme, entâo, passa uma
certa descontinuidade na unidade do espaço da reconstituição histórica, a
arquitetura e a cidade de Nietzsche ultrapassam a linearidade do tratamento do
espaço da narrativa, o pensamento do filósofo explode a evolução contínua da
estética dos lugares.
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Dias de Nietzsche em Turim (2001) de Julio Bressane
Locação: Sala Cecília Meireles
3.4. Cenário, figurino, maquiagem e objeto
A diversidade de linguagens que compõe a arte do cinema sistematiza um
processo de produção que tem como objetivo dar um acabamento técnico a um
conceito estético de um filme. A técnica torna legível as potencialidades artísticas
da linguagem cinematográfica modulando o espaço e o tempo na construção de
uma narrativa, o realismo plástico característico do objeto fílmico promove o
diálogo de diferentes expressões estéticas.
A direção de arte busca um entrosamento entre o cenário, as locações, o
figurino, o cabelo, o gestual, a fala, a maquiagem, a iluminação e a cor de modo a
dar vida a uma idéia que poderá sensibilizar e transformar o olhar do espectador
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